Mapas das Minas / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2010

Como nos apontam os diversos estudos reunidos neste Dossiê, a história da exploração, ocupação e consolidação territorial das Minas Gerais, sob o signo da América portuguesa e / ou do processo de formação da jovem nação brasileira, confunde-se com a própria necessidade de conhecer e delimitar esse espaço, o que se expressa em documentos diversos de natureza cartográfica: são roteiros, relações, mapas, esboços, plantas, borrões, desenhos.

Os primeiros mapas realizados da Capitania das Minas vão se configurar como um momento de inflexão da arte cartográfica. Por um lado, revelam o contínuo conhecimento do interior do Brasil e o desvelamento de sua geografia; por outro, inserem-se na tradição medieval de preencher os espaços desconhecidos com elementos que lembram o onírico e o maravilhoso. Mas, à medida que os portugueses adentram pelo Novo Mundo, a geografia imaginária vai aos poucos sendo abandonada, substituída progressivamente por outra, resultante da experiência concreta de penetração no território da América. A cartografia da Capitania de Minas Gerais vai então ocupar nesse contexto importante papel. Assim, a partir do século XVIII, os espaços das cartas, que antes configuravam áreas de representação pictórica, vão sendo preenchidos por rios, montanhas, acidentes naturais do terreno, bem como por arraiais, vilas, caminhos e roças, estes frutos da ocupação humana.

O progressivo avanço dos portugueses para o interior impulsionou a necessidade de conhecer melhor a geografia local e de confeccionar mapas mais precisos para orientar as futuras discussões sobre os limites entre as coroas de Portugal e Espanha na América. Resultado disso é que essa cartografia salienta o progressivo predomínio que se estabelecia sobre a geografia real da região. Não estão mais presentes nessas cartas luso-brasileiras, como ocorreu com a cartografia dos séculos anteriores, a proximidade entre as minas brasileiras e as peruanas, que se acreditara serem contíguas; nem a presença do lago do Xarais, entidade geográfica que uniria a corrente hidrográfica dos rios da Prata, Amazonas e São Francisco, cujas proximidades seriam abundantes em tesouros minerais; como também não mais se imprime uma rota circular e subterrânea ao Rio São Francisco, a exemplo do que ocorria com o Rio do Paraíso. O abandono dessa geografia mítica já é evidente nos mapas que representam a província a partir do segundo quartel do século XIX, sob o primado da razão.

Essa cartografia, ainda que assentada em critérios racionais, não pode, no entanto, deixar de ser analisada também como forma de representação desse espaço. Essa forma se caracteriza por sua leitura racional, que utiliza elementos esquemáticos buscando uma uniformização e padronização universal das cartas. Apesar de sua aparência objetiva externa, esses mapas estão, da mesma maneira, imersos de subjetividade. Dessa forma, muito frequentemente, um mapa pode nos informar mais sobre o universo cultural do seu autor e de seu público consumidor do que sobre a área representada.1

Dimensão histórica e simbólica

O estudo da cartografia não pode ser desvinculado de sua dimensão histórica e simbólica. Não existe uma linguagem cartográfica única, universal e imutável. Todo mapa é um conjunto de signos, símbolos que só podem ser compreendidos e decodificados com base nos elementos da própria cultura na qual ele foi elaborado. Por isto, cartografia e história estão indissociavelmente ligadas, pois só a segunda nos permite decodificar os signos de que a primeira se utilizou. Um mapa é sempre representação do real, no entanto, ele mantém uma íntima relação com o espaço que delimita. Perde-se essa característica, deixa de ter sua função reconhecida e se torna ininteligível. Um mapa é, pois, uma expressão simbólica de uma área e, ainda que nos dias atuais as imagens de satélite sejam ferramentas essenciais para a arte cartográfica, essas imagens não deixam de ser também uma forma de representação do espaço.

Cartografar um território não é, pois, uma operação neutra, cuja objetividade estaria assegurada pelo uso das técnicas mais aperfeiçoadas. Um mapa é sempre uma representação de um território, o que implica que vários filtros separam o real da coisa representada. Como alertavam os filósofos iluministas, o estudo da natureza com suas formas de representação geográfica da terra adquirira uma dimensão política. Para o abade Raynal, por exemplo, “a natureza da América é revolucionária”. Para ele, a relação estabelecida entre os homens e a natureza no continente americano tinha uma conexão de causa e efeito que poderia explicar, por exemplo, a gênese da Revolução Americana.2

Os mapas miniaturizam o mundo, imprimindo-lhe uma dimensão gráfica que permite, assim, inúmeras leituras. Ao longo do tempo, as técnicas de desenho, impressão e gravação variaram e seu estudo fornece inúmeras informações sobre as formas de produção, reprodução e distribuição desses documentos. Outro aspecto que o estudo da cartografia permite é a análise da formação e da consolidação de um território, como ele foi compreendido e ocupado ao longo do tempo, o que só pode se desvelar ao estudioso se ele estiver de posse de outras ferramentas de análise pertencentes a outras ciências como a História. Todo documento humano faz parte de um sistema de comunicação, e desvendar esse sistema nos ajuda a compreender como os mapas eram lidos e compreendidos na época em que foram produzidos. É preciso salientar que representações cartográficas podem ser produzidas e circular em suportes outros que não os planisférios gráficos.

O estudo da cartografia engendra uma série de outros elementos, tais como o entendimento das técnicas de medição do espaço, das noções de forma e de área que expressam, dos espaços que o mapa cobre e dos que deixa em branco ou preenche com um desenho ou uma iluminura. Tudo isso compõe a forma como o homem entende e representa o mundo e exige do estudioso um esforço interdisciplinar. Todo mapa é um conjunto de signos ou símbolos historicamente construídos. Podemos compreender os mapas produzidos no passado, como da mesma forma fazemos com os documentos outrora escritos, a partir do conhecimento dos elementos que compunham a cultura na qual eles foram formulados, ainda que não tenhamos vivido na mesma época. É aí que reside o trabalho do historiador e é aí que a Cartografia e a História se tornam indissociavelmente ligadas. É a partir da História que podemos mergulhar na aventura de decodificar os signos que os cartógrafos do território das Minas Gerais – conforme desvelam os textos constantes deste Dossiê – utilizaram no passado, e, como se verá, alguns de forma claramente intencional, outros nem tanto

Notas

1. EDNEY, Matthew H. A história da publicação do Mapa da América do Norte de John Mitchell de 1755. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 23, n. 37, p. 31-52, jan / jun. 2007.

2. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida; MUNTEAL, Oswaldo. Prefácio: a propósito do abade Raynal. In: RAYNAL, Guilhaume-Thomas François. A Revolução da América. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993. p. 26-27. 24

Junia Ferreira Furtado – Graduada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Realizou estudos de pós-doutoramento na Universidade de Princeton (EUA), onde foi também professora visitante, e na École des Hautes Études em Sciences Sociales / Sorbonne / França. Atualmente é professora titular em História Moderna na UFMG. Tem vários livros publicados, com destaque para Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito (Companhia das Letras e Cambridge University Press). É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1.


FURTADO, Junia Ferreira. Apresentação. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v.46, n.2, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]

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