A Civilização Grega – CHAMOUX (RA)

CHAMOUX, François. A Civilização Grega. Lisboa, Portugal: Edição 70, 2003. Resenha de: SANTOS, Maria Carolina Alves dos. Revista Archai, Brasília, n.2, p. 165-167, jan., 2009.

Notável helenista nascido no início do século passado, François Chamoux é especialista em história da civilização, filologia e literatura gregas, lecionou arqueologia e história da arte em Nancy; literatura e civilização gregas na Sourbonne. Foi diretor da Revue d’Études Grecques durante dez anos, e é autor de inúmeras obras.

Nesta, indaga sobre o que nos foi legado pela vasta a complexa civilização dos antigos gregos, cujos traços arquetípicos tendem a se esmaecer em nossa memória, embaçando a visão que  possa haver sido retida das origens do pensar no Ocidente.

Chamoux apela ao homem do presente para que se disponha, enfrentando o desafio, a tentar religar-se mais intimamente ao que nossa cultura originária tem de perene. De modo abrangente e cristalino, nos nove capítulos de que a obra se compõe, tece uma rede de temas essenciais:  urde  a época  arcaica  e  clássica desde  as  realidades  materiais  (território, propriedades,  monumentos,  túmulos),  às  maneiras  de  ser  e  às  criações  da  consciência (costumes, crenças, ritos, linguagem, matemática, literatura, política, filosofia) com descrições fundamentadas nas mais variadas fontes.

Em sua dinâmica a exposição percorre desde a época micênica (e os séculos obscuros que a ela se sucederam), a época geométrica de Homero, caracterizando em pormenor a vida cotidiana, a produção intelectual, filosófica, literária, artística, a índole religiosa e política. Sob este particular aspecto da configuração do poder, a função da guerra é considerada vital, pois o grego identifica a luta com a própria vida: os confrontos, desencadeados por interesses conflitantes, são os geradores do progresso. Diz Heráclito (fr.53,80):

“A guerra (pólemos) pai e rei de todas as coisas, que a uns faz deuses e a outros homens, que a uns torna livres e a outros escravos, é universal”.

Além das virtudes do guerreiro (o heroísmo e a coragem), o grego valoriza sobretudo a firmeza de alma (exemplificados no Prometeu de Ésquilo e na Antígona de Sófocles); a criação de obras-primas da arte e da técnica; a vida moral e, mais ainda, o humanismo tal como é expresso pelo coro dos anciãos tebanos na Antígona de Sófocles, que canta o homem como a maior das maravilhas entre todas as outras existentes no mundo.

O ritmo ágil e imagético da exposição revela, assim, como todos esses aspectos sejam em forma de crença ou de mentalidade religiosa, sejam como um modo de racionalidadeembora irredutíveis entre si, interligam-se estreitamente, conferindo coesão e unidade à totalidade dessa cultura: constituem a um só tempo o fundamento e a condição de sua existência. E, ao ressaltar a força de sua expressão social e sua presença histórica, o texto de Chamoux vai dando, gradativamente, maior visibilidade à sua permanente atualidade na civilização moderna.

Toda sociedade, enquanto experiência plena e original não é, paradoxalmente, herança recebida de seu s antepassados à qual se funde, e que com forte impacto será legada a seus pósteros? Todas as grandes obras então surgidas que derivam do diálogo incessante que seus autores mantiveram com seus antecessores, resultam para nós, em última análise no plano da história desse significativo encontro entre a cultura atual e o conjunto de heranças distantes que este livro explicita e condensa em algo de monumental riqueza. Consagra-se uma convergência única, irrepetível, que nos revela o que na verdade somos: c om esse livre exercício de rememoração revivemos extraordinária aventura, recuperamos algo que, mesmo delineado há muitos séculos, permanece ainda intacto, a nossa real identidade..

Um dos capítulos de especial interesse para a fecundidade desse exercício é o que se refere à civilização micênica (instalada na bacia do Mar Egeu), desenvolvida num período ainda obscuro e misterioso da Grécia arcaica, conhecido como a Idade Média helênica. A língua então usada (em meados do século XV), simbólica (ideogramas desenhados em plaquetas de argila com um estilete), só recentemente está sendo decifrada (e nomeada Linear B). Abrem-se assim novas perspectivas de compreensão das origens de uma civilização helênica brilhantemente desenvolvida, com uma população aproximada de 50 mil habitantes, dando notícia da pujante vida cotidiana e da organização social e religiosa que floresceu três mil e quinhentos anos antes da época de Homero. Este estudo esclarece o quanto é longo e rico o trajeto iniciado pelos poetas micênicos que lhe são antecessores, e que se estende até Platão, mostrando que na corrente temporal desses 10 séculos, não cessam de fluir esforços e tentativas, explorações e batalhas, rivalidades e emulações. Mais que isso, fornece importantes elementos para uma reflexão e conseqüente reformulação dos nossos parâmetros a respeito do período em que se datou, historicamente,  como  o  das  origens  da  filosofia  e  das  condições  culturais  decisivas  que propiciaram esse nascimento. Diz Chamoux, como conclusão de sua exposição:

“Esse pequeno povo simultaneamente uno e diverso, elaborou de forma paciente, apesar das discórdias internas e das ameaças externas, uma cultura original, inovadora e completa, onde os principais aspectos da condição humana têm seu lugar: fé religiosa, confiança no homem, sentido do mistério cósmico, vontade de compreender a natureza, idéias de hierarquia e igualdade, respeito pelo grupo social,  interesse  atribuído  ao  indivíduo.  E,  todos  esses  campos  do  saber constituem exigências contraditórias que suscitam incessantes conflitos tanto entre os espíritos, como entre os Estados, gerando progresso: têm proporcionado um comentário sem fim sobre essa cultura que fundamenta os 20 séculos de cultura européia nos seus mais variados domínios”.

O autor utiliza-se ao fim de cada capítulo, didaticamente, referências bibliográficas específicas, que permitem ao leitor aprofundar-se no assunto tratado; além de um substancioso índice documental de 60 páginas, com os verbetes utilizados ao longo de sua exposição, que constituem um valioso instrumento de leitura para aqueles que estão se iniciando neste estudo.

Trata-se de um livro indispensável, um clássico no sentido usual do termo, que está ai para ser lido e relido por ser um testemunho histórico primoroso que põe em relevo aspectos essenciais da civilização que transcendeu seu tempo para permanecer historicamente em latência no nosso e falar através dele. O caráter desse dizer oferece insights a todo aquele que busca conhecer mais solidamente o fundamento e os elementos insubstituíveis do nosso patrimônio cultural. Mais que uma especulação de caráter geral, o livro é um convite a um contato direto, pessoal, íntimo com algo valioso, que propicia o regresso no tempo e o encontro de sua parte nessa herança para além dos traços eternos do homem, pelo diálogo com o que há de mais profundo em si mesmo.

Os comentários de Chamoux nos permitem renovar nossa compreensão da civilização dos gregos, naquilo que ela tem de imorredouro, pois, apesar das lacunas não se mostra petrifica da mas plena de vida, desde que enraizada em nossos instrumentos intelectuais, a linguagem, o imaginário (seus mitos misteriosos são ricos de sugestões que estimulam nossa sensibilidade), as categorias do nosso pensamento, nossos valores, princípios políticos e morais: nessa medida, podemos dizer que o antigo está para sempre em nosso porvir.

Maria Carolina Alves dos Santos – Professora de Filosofia Antiga na FSB (Faculdade de Filosofia São Bento)

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