A comunicação social na Revolução dos Alfaiates / Florisvaldo Mattos

Os movimentos nativistas do século XVIII são objetos de revisão dos historiadores ao tempo em que ciências afins também lançam mão de investigações transversais com recortes pioneiros, trazendo à luz vertentes para outras leituras. É o caso da Revolta dos Alfaiates, conhecida também por outras denominações: Conspiração ou Revolução dos Alfaiates, Revolta dos Búzios, Sedição de 1798, Conjuração Baiana, Levante de 1798, Inconfidência Baiana.

São passados 220 anos da Revolta dos Búzios, movimento nativista revolucionário negro-mestiço, que teve como baluarte o fenômeno da comunicação, através da oralidade e dos chamados boletins sedicioso espalhados na cidade do Salvador. É disso que trata o livro A comunicação social na Revolução dos Alfaiates, do jornalista, poeta e pesquisador Florisvaldo Mattos, agora relançado em edição comemorativa. Um trabalho interdisciplinar reconhecido pelo pioneirismo, gerado durante os estudos de mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), com abordagem sobre o formato da comunicação no processo revolucionário em questão.

Literato, escritor, autor de vários livros e participante de coletâneas, Florisvaldo Mattos é baiano com longa estrada no jornalismo, além de professor na UFBA. Sempre disposto a orientar e incentivar os alunos e colegas, é portador de grandes experiências culturais e acadêmicas. E nessa linha de atuação, seu trabalho científico faz a diferença nos estudos da história da comunicação brasileira, agora à disposição de qualquer interessado. Até o momento, a comunicação parece um tema despercebido como fonte de estudo e pesquisa ao longo de todo o período colonial.

Apaixonado pelo drama do movimento, o autor confessa que de início a ideia do trabalho era escrever um longo poema ou uma peça de teatro. Porém a convivência com as metodologias científicas do curso de mestrado na época gerou o ensaio ora em discussão e acrescenta ser “a comunicação um fenômeno pelo qual a ordem social respira”. (p.9) Em seis capítulos, o livro apresenta um panorama das relações sociais de comunicação no período colonial. Em foco, um conjunto de fatos e conflitos de ideais que desafiaram valores de um sistema socioeconômico.

O público tem a chance de (re) ler essa narrativa que nos remete a uma cidade que vivia um clima de rebelião, cuja discussão gira em torno dos comportamentos de comunicação da época. Salvador foi cenário da Revolta dos Búzios ou Revolta dos Alfaiates, sob forte influência da Revolução Francesa. A bandeira humanística de liberdade e igualdade se dispersava pelo mundo e motivava o interesse de renovação política na intenção de separar o Brasil do reino de Portugal, de abolir a escravidão e criar o regime republicano. Assim, podemos seguir em parte o roteiro dessa pesquisa dedicada a avaliar a comunicação na Bahia colonial.

As referências históricas do livro apontam que na última década do século XVIII, Salvador era uma cidade tipicamente portuária, considerada a principal porta de entrada da América portuguesa, no Atlântico sul. Apesar de ter perdido o status de capital para o Rio de Janeiro desde 1763, seguia com alguma importância de ordem econômica e administrativa. Estava decadente a produção de açúcar, mas seguiam em alta a produção e a exportação do tabaco, café, mamona, madeira e piaçava. Em troca, a colônia recebia produtos do mercado europeu e o contingente humano da costa africana para servir de mão de obra escrava.

Sem conhecer a imprensa, a capitania da Bahia tinha uma população formada de escravos, alforriados e homens livres de ocupações consideradas desprezíveis na época, como os alfaiates. Instalados na diáspora pela compulsão do tráfico negreiro, precisavam se livrar dos critérios de exclusão social. Na época, as profissões eram poucas e algumas categorias sociais são visibilizadas entre funcionários da administração real, militares, clero, grandes mercadores, grandes proprietários rurais, que formavam a chamada elite da sociedade baiana. Também havia os grandes e pequenos comerciantes, os profissionais liberais, os mestres de oficio, mecânicos, e mais a camada dos escravos, mendigos, vagabundos e prostitutas. E diante do panorama investigado, os rebeldes “são quase todos artesãos, soldados e escravos”2.

O livro é uma oportunidade de conhecer um pouco da sociedade colonial baiana, nos aspectos da educação, cultura e comunicação. Isso facilita compreender melhor as possibilidades de comunicação durante o regime escravocrata, que se dava basicamente através da oralidade. Portanto, dentro de um cenário sem escola, eram poucos os que tinham acesso ao saber da leitura e da escrita. Esse reflexo decorria do retardamento de Portugal em aderir à economia industrial, sobretudo na área da imprensa, não assimilar as conquistas da Revolução Comercial e a rivalizar a Revolução Francesa.

Nessa linha de raciocínio, o autor aborda no primeiro capítulo a clara falta de interesse em alfabetizar os índios, que deveriam ser utilizados só como força de trabalho ou então exterminá-los. Os negros vindos da África deveriam ser mantidos na ignorância, afinal eram apenas mercadoria. A narrativa revela que os portugueses limitaram o desenvolvimento da cultura na colônia, a começar pelo ensino, e desprezaram a construção de um sistema educacional. Mattos expõe ainda que “a colônia não conheceu nem a imprensa nem a universidade e as sociedades literárias, quando toleradas”. [3] O intercambio intelectual era mínimo e não havia a comunicação de ideias, por serem precárias as técnicas de informação.

Segundo o texto da pesquisa, adquirir conhecimentos necessários ao desenvolvimento cultural, troca de informações, só seria possível de três maneiras: 1) pelo aprendizado informal; 2) pela comunicação manuscrita e 3) pelo livro ou outros materiais impressos, geralmente de origem estrangeira e de contrabando. De forma que o transporte marítimo era a única via de comunicação com outros lugares.

O autor verifica ainda que no século XVIII, a sociedade baiana conta com o privilégio de duas formas de comunicação: 1) direta, verbal e não-verbal; e 2) indireta, produzida pela escrita, e outros códigos como desenhos, figuras, etc. E aponta ainda uma vasta rede de contatos interpessoais entre as diversas camadas da população como conversas, cantos, mexericos, festas, pregões de rua, cochichos, algazarras, serões, missas, procissões, epigramas, versos, discursos, enterros etc., um grande fervilhar da vida urbana e rural. A depender da situação, a forma de transmissão mais comum era o recado. A comunicação escrita, segundo revela o autor, limitava-se ao registro de documentos ou à transmissão de algo fora do alcance da linguagem fônica. E assim, a Bahia tinha uso limitado da escrita e sempre esteve fora da produção impressa, mesmo quando era sede do governo geral.

Mattos conduz o leitor na rota de como se deu a consciência política e revolucionária do movimento através das relações de comunicação possíveis, tanto pela via oral dos diálogos ou do recado, como pela via manuscrita das cartas, bilhetes e avisos. O movimento mostra que ganhou forma através de uma vasta rede de contatos verbais, em sua maioria, conforme indica o autor. Ao que parece, escapou aos historiadores que, do nascimento ao fracasso, a revolta se constituiu apenas de atos de comunicação. E sobre o papel da comunicação nos preparativos do levante, três formas típicas se destacam: a conversa, o recado e o bilhete.

As reuniões e a proposta de levante foram delatadas. Na manhã do dia 12 de agosto de 1798, domingo, a cidade acordou com uma serie de manifestos espalhada em pontos de grande movimentação, contendo mensagens revolucionárias, falando de liberdade e igualdade, e reivindicando mudanças de governo. A leitura desse material foi reduzida, mas a repercussão teve grande audiência graças ao boca a boca, ao boato, à oralidade do povo, em decorrência da leitura de alguns semialfabetizados que tentavam decifrar as mensagens. Mas, alguém há de perguntar, o que estava mesmo escrito naqueles manuscritos para causar tanta inquietação? A coroa portuguesa deu início imediato ao processo da devassa.

Em face do contexto, a narrativa sugere que o conteúdo era incendiário para a época, revolucionário. Um verdadeiro escândalo para o regime por falar de liberdade, igualdade e se manifestar contra a escravidão. Os rebeldes lançavam propostas concretas para resolução de uma crise sociopolítica e mudança de regime na Bahia, inclusive com garantia de igualdade para todos perante a lei. Os manuscritos foram afixados certamente por um grupo em locais que hoje demarcam o Centro Histórico de Salvador. Eram onze manifestos, classificados pela elite como boletins sediciosos, que conclamavam a população a se rebelar contra o domínio português.

No plano da comunicação, o autor/pesquisador classifica essas mensagens como: orais, escritas e de sinais convencionais. A primeira caracteriza a predominância da oralidade em todas as fases do movimento, através da via direta entre os rebeldes em reuniões e troca de informações. A segunda categoria marca a importância da divulgação das ideias revolucionárias pela via indireta. O autor revela que a escrita de cartas e bilhetes se estendeu também à região do Recôncavo. A terceira categoria implicava em linguagem especial de símbolos secretos representativos para identificar aliados, facilitar a comunicação no grupo e reconhecer em público a ideologia do outro. Entre eles, o uso do búzio, código dos mais conhecidos e que levou alguns historiadores a nomearem o movimento de Revolta dos Búzios.

Assim, seguindo a ordem da pesquisa, em todo ato de comunicação, o comunicador busca a atenção do destinatário, deve atingir o outro e obter uma resposta. A intenção dos rebeldes baianos era estimular parcela da população sobre problemas sociais e políticos inerentes a suas necessidades. O autor estima que tais mensagens transmitiam as ideias francesas e abalavam o contexto de então, devido aos temas polêmicos e revolucionários.

Em suma, uma nova leitura possibilita concluir que o movimento foi totalmente sufocado. A revolta foi traduzida pela difusão de ideias, informações, planos, através de folhetos manuscritos que funcionaram como veículo de comunicação para um público mais amplo. A divulgação de um pensamento e ação política teve como resposta a crueldade da repressão. Com esse recorte o pesquisador Florisvaldo Mattos analisa a Revolta dos Búzios pelo prisma da comunicação, deixando nas entrelinhas que os boletins teriam sido um preâmbulo do jornalismo no Brasil, o que muito enriquece o seu significado histórico para as ciências sociais.

Marcos Rodrigues – Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA. E-mail: [email protected].

MATTOS, Florisvaldo. A comunicação social na Revolução dos Alfaiates. 3. ed. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2018. Resenha de: RODRIGUES, Marcos. Indícios do jornalismo brasileiro. Outros Tempos, São Luís, v.16, n.28, p.281-285, 2019. Acessar publicação original. [IF].