Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia do século XIX | Márcio Couto Henrique

Marcio Couto Henrique Imagem Como eu escrevo
Márcio Couto Henrique | Imagem: Como eu escrevo

Resultado de pós-doutoramento do historiador Márcio Couto Henrique, realizado entre 2014 e 2015, Sem Vieira nem Pombal permite revelar aspectos da trajetória do próprio autor que irá se refletir na própria obra. No momento em que o autor agradece a Capes “[…] de antes do golpe” (HENRIQUE, 2018, p. 09), Henrique busca se situar como sujeito do seu próprio tempo (BLOCH, 2008, p. 55), como busca realizar o mesmo procedimento em relação à história de vida dos próprios sujeitos que analisa em seus trabalhos. Situando a sua história de vida pessoal, escrevendo que proveio de uma família muito pobre do interior da cidade de Americano, no estado do Pará, o autor dialoga com as questões de seu tempo, ao se referir à transformação da universidade por meio do ingresso de alunos a partir das políticas de afirmação social, em meio a um contexto de gradativa asfixia da ciência brasileira.

Transitando entre a História e a Antropologia, área em que realizou seu doutoramento, a sua formação permite revelar aspectos significativos relacionados à maneira de como o autor percebe os sujeitos que busca analisar. No livro, é possível notar alguns aspectos biográficos do autor e como a sua formação se coaduna com as propostas presentes em cada capítulo. Coordenador do Grupo de Pesquisa de História Indígena e do Indigenismo na Amazônia, o autor realiza um escrutínio das produções acadêmicas historiográficas e antropológicas sobre o tema, tanto bibliografias mais recentes e com discussões mais ampliadas quanto as mais clássicas, derivadas de um movimento historiográfico e  antropológico na década de 1990, que buscou alargar a compreensão sobre a questão do passado colonial a partir de uma perspectiva indígena. Leia Mais

O sertão de Oswaldo Lamartine de Faria: a biografia de uma obra / Gustavo Sobral

SOBRAL Gustavo e BULHOES Juliana
Gustavo Sobral e Juliana Bulhões / Foto: Apartamento 708 /

SOBRAL G O Sertao de Oswaldo Lamartine de FAriaO sertão de Oswaldo Lamartine de Faria: a biografia de uma obra [2], escrito pelo jornalista Gustavo Sobral, é fruto do projeto Natal 420 anos, “enquadrado no Programa Municipal de Incentivos Fiscais a Projetos Culturais e patrocinado pelo Colégio CEI (Centro de Educação Integrada)”, comemorativo ao aniversário de fundação da cidade do Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte (RN), na intenção de “registrar a história da cidade e o trabalho de grandes e significativos pesquisadores, deixando para as gerações futuras o registro de sua memória” [3]. Portanto, a obra se propõe – o subtítulo sugere – a uma história intelectual, motivada por uma oportunidade comemorativa.

Além do ensaio de Gustavo Sobral acerca do “desenvolvimento intelectual” do sertanista, principal conteúdo da publicação, o livro é composto também por um exaustivo levantamento bibliográfico, realizado pelas bibliotecárias da Biblioteca Central Zila Mamede da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (BCZM/UFRN), Tércia Marques e Margareth Menezes, das produções de e sobre Oswaldo Lamartine de Faria e sua obra; sendo encerrado com a justificativa e agradecimentos, onde o jornalista indica as fontes bibliográficas (livros, periódicos e correspondências dispersos em acervos públicos e privados diversos) e orais (parentes e amigos do círculo de sociabilidades do sertanista) a que teve acesso[4].

Gustavo Sobral introduz o ensaio com uma apresentação do autor/objeto. Em suma, um etnógrafo identificado com um discurso regionalista construído por memorialistas que, antes dele, se dedicaram a escrever sobre um espaço distinto: o sertão do Seridó! Seu empreendimento particular teria a função de “preservar a essência sertaneja” dessa espacialidade, comprometida, na segunda metade do século XX, pelos “elementos do progresso” (modernização). O folclorista Luis da Câmara Cascudo teria incentivado Oswaldo Lamartine nesta tarefa “documental e sentimental” devido à sua ligação privilegiada com a terra e com o homem do sertão, por sua descendência direta de uma “linhagem responsável por domesticar e povoar a região, formando assim uma cultura sertaneja”. Além de sua vinculação com o sertão, Oswaldo Lamartine teria ainda as habilidades requeridas devido à sua formação técnico-agrônoma, além do acesso aos canais (pessoais e institucionais) de publicação, em um contexto intelectual interessado pelos “estudos regionais” e “aspectos sociológicos do folclore”[5].

Após a apresentação introdutória da personagem, Gustavo Sobral empreende uma narrativa cronologicamente progressiva no intuito de apresentar agora as produções do sertanista e as experiências que as possibilitaram, intercalando discussões acerca dos aspectos formais (artigos, notas e ensaios), locais (experiências vivenciadas na Fazenda Lagoa Nova, e em centros culturais na cidade do Rio de Janeiro) e estilísticos da obra (o sertão como temática privilegiada, o vocabulário regionalista, o uso de recursos ilustrativos, o olhar bibliófilo sobre o livro), revelando gradativamente os procedimentos metodológicos (etnografia, questionários, certo padrão de organização e apresentação dos conteúdos, a diversificação das fontes, a correspondência com outros estudiosos como espaço de pesquisa), as influências intelectuais (folcloristas, sociólogos e historiadores de renome, além de memorialistas e artesões seridoenses), que conformariam, enfim, os principais atributos dos escritos de Oswaldo Lamartine de Faria. Dessa forma, Gustavo Sobral pretende ter mapeado o ambiente intelectual no qual ganha evidência o trajeto percorrido pelo sertanista potiguar.
O clima de louvação e homenagem prevalece no ambiente comemorativo desfavorecendo uma abordagem crítica acerca da produção historiográfica do sertanista. Portanto, aquela que seria uma das mais importantes funções características do fazer especializado de uma reflexão historiográfica é negligenciada pela abordagem adotada nesta “biografia bibliográfica”. Para o conhecimento histórico, a própria seleção do sertanista entre os nomes que merecem considerações da reflexão historiográfica já é, em si, uma homenagem, um gesto de respeito aos estudos desenvolvidos por Oswaldo Lamartine de Faria. Contudo, isto não elimina o compromisso crítico do historiador com a produção do conhecimento e da memória historiográfica.

Gustavo Sobral chega a apresentar os principais tópicos merecedores de problematização, aqueles propriamente referentes aos procedimentos de pesquisa e escrita do sertanista e aquele referente ao lugar de onde fala Oswaldo Lamartine de Faria, mas estes tópicos não foram devidamente explorados, tal como seriam operados pelo profissional em história. Ou seja, pensar mais profunda e criticamente sobre a vinculação de Oswaldo Lamartine de Faria à oligarquia pecuarista-algodoeira seridoense e a direta relação desta com a tessitura discursiva sobre o sertão do Seridó da qual o sertanista é adepto e reprodutor; refletir sobre as implicações ético-políticas – para a escrita da história – dos posicionamentos do sertanista nos embates de seu tempo (tradição vs. modernização); e analisar o rigor (ou a falta de rigor) teórico-metodológico na produção de conhecimento realizada pelo sertanista, investigando seu uso das fontes, problematizando o sentido explicativo construído para seus objetos, esmiuçando as funções narrativa e retórica dos recursos estilísticos utilizados na construção do seu texto.
Nascido e falecido em Natal/RN, Oswaldo Lamartine de Faria (1919 – 2007) foi um técnico-agrônomo que dedicou em torno de sessenta anos a pesquisar e escrever sobre os sertões, especialmente os sertões do Seridó – mesorregião central do Rio Grande do Norte. Seus escritos receberam o reconhecimento de intelectuais e literatos como Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Câmara Cascudo e Rachel de Queiroz. Além de condecorações da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS) e da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras (ANRL). Trata-se, portanto, de um nome indiscutivelmente consagrado nos ambientes letrados, cuja obra, nos últimos quinze anos, tem recebido cada vez mais atenção da academia, tanto na área de Letras quanto em História.

Fora da academia, contudo, há tempos que o autor se tornou personagem corrente. O pertencimento a um grupo familiar das elites políticas e econômicas no Rio Grande do Norte da Primeira República lhe garante visibilidade pública desde cedo – basta uma rápida busca por seu nome na Hemeroteca Digital Brasileira [6] para o comprovar. Na maturidade, na ocasião de sua consagração literária, recebe a alcunha de “príncipe do sertão”, aludindo à linhagem genealógica dos colonizadores do sertão e ao “posto” de filho de um ex-governador de Estado (RN), deposto em 1930 pelo levante militar tenentista. Seu nome está vinculado a uma tradição historiográfica [7] da memória construída para a região do Seridó desde fins do século XIX, e relacionada àquela oligarquia, dedicada a homenagear “grandes homens” e “famílias tradicionais” responsáveis por dar a ver o Seridó como um espaço de tradições rural e patriarcal.

Apesar da identificação com a região, Oswaldo Lamartine nunca chegou a residir de fato no Seridó, suas vivências no sertão do Seridó se dão principalmente na infância e em visitas breves e esporádicas durante a vida adulta. O sertão que imortalizou em seus livros ganhou vida na biblioteca de seu apartamento, no Rio de Janeiro/RJ, onde residiu durante quarenta anos de sua vida.[8] Não é à toa o tom saudosista predominante em seus escritos, o sertão oswaldiano é de fato um sertão singular, que carrega marcas de experiências muito particulares, um sertão afetivo, escrito como espaço da saudade! Para muitos de seus comentadores, a vida que o escritor levou fora do estado será lida como um longo exílio, como uma consequência do golpe de estado sofrido pelo seu pai em 1930. A noção de exílio será mais um atributo a somar na construção da imagem de “príncipe do sertão”, destronado e forçado ao exílio, saudando “sua terra” à distância.
A monumentalização realizada sobre Oswaldo Lamartine de Faria não será desafiada no ensaio de Gustavo Sobral, mantém-se incólume, até mesmo reforçada. Grosso modo, o jornalista apresenta um pouco mais do mesmo sobre o sertanista e sua obra. Em termos de fontes, cabe chamar atenção à entrevista que o jornalista realiza com seu próprio tio, Theodosio Lamartine Paiva, que, por sua vez, é sobrinho de Oswaldo Lamartine de Faria. Apesar de ser um nome inédito na colônia de narradores que tomam o sertanista como objeto de depoimento, as informações não trazem maiores novidades para a pesquisa histórica. Suas memórias se voltam principalmente ao cotidiano da Fazenda Lagoa Nova, situada na região do Agreste potiguar, ambiente de importância para as experiências (profissional e de campo) de Oswaldo Lamartine de Faria, mas que já eram de conhecimento público. Outra fonte oral, o Pe. João Medeiros Filho, apesar de ser recorrentemente consultado para prestar depoimentos sobre o sertanista, oferece informações sobre personagens, eventos e instituições que podem ampliar o mapeamento do círculo de sociabilidades do escritor. Porém, a grande novidade desta publicação está no levantamento bibliográfico realizado pelas bibliotecárias da BCZM.

De fato, este levantamento se mostra um rico instrumento de pesquisa, ainda mais útil quando se trata de uma obra dispersa e relativamente pouco estudada.
Este breve comentário acerca da publicação do jornalista Gustavo Sobral serve para chamar atenção à necessária leitura crítica da produção do escritor Oswaldo Lamartine de Faria (e da própria personagem que se criou para este). A historiografia dos sertões continua em dívida quanto a um estudo biográfico histórico que tome o sertanista como objeto, ou de uma análise historiográfica que problematize devidamente a escrita da história praticada pelo mesmo, por isso a importância de uma pesquisa histórica profissional. A subjetividade da memória, a ficcionalização da história e a falta de rigor nas produções do sertanista são atributos que, se não problematizados, podem contribuir para a permanência de uma narrativa histórica realizada desde cima, desde a casa-grande do criatório seridoense, uma narrativa que promove certos sujeitos históricos e a invisibilização de conflitos sociais em detrimento de outros sujeitos. Portanto, o sertão posto no papel por Oswaldo Lamartine de Faria, o sertão idílico como imagina ter existido no passado, aquele “sertão de nunca mais”, deve ser cuidadosamente explorado pela perspectiva da história da historiografia, uma ótica que consegue colocar problemáticas próprias da crítica historiográfica, e que não se permita seduzir pela sofisticação narrativa, que ultrapasse a superfície dos ornamentos estilísticos, mas sem ignorá-los, muito pelo contrário, problematizando cada operação realizada pelo pesquisador/escritor.

Notas

2. SOBRAL, Gustavo. O sertão de Oswaldo Lamartine de Faria: a biografia de uma obra. Natal: Caravela Selo Cultural, 2018.

3. Ibid.

4. No sítio oficial do autor é possível ter acesso, em formato PDF, ao livro aqui resenhado, além de diversas outras publicações do autor voltadas para literatura, memória e história. Disponível em: http://www.gustavosobral.com.br/livros.php. Acesso em: 20 out. 2020.

5. SOBRAL, op. cit., p. 11 – 34.

6. BIBLIOTECA NACIONAL DIGITAL. Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 22 out. 2020.

7. Manoel Gomes de Medeiros Dantas (1867-1924), José Augusto Bezerra de Medeiros (1884-1971) e Juvenal Lamartine de Faria (1874-1956), pai de Oswaldo Lamartine de Faria.

8. No Rio Grande do Norte, o escritor morou na capital, Natal/RN, situada no litoral, e em Riachuelo/RN, situada na região Agreste do estado. Oswaldo Lamartine também residiu em Recife/PE, Fortaleza/CE, Lavras/MG e Barra do Corda/MA.

Eduardo K. de Medeiros – Mestrando / Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Caicó / Rio Grande do Norte / Brasil. E-mail. [email protected].


SOBRAL, Gustavo. O sertão de Oswaldo Lamartine de Faria: a biografia de uma obra. Natal: Caravela Selo Cultural, 2018. 200 p. Resenha de: MEDEIROS, Eduardo K. de. Um sertão no papel: o sertão literário de Oswaldo Lamartine de Faria. Outros Tempos, São Luís, v.19, n.21, p.357-361, 2021. Acessar publicação original. [IF].

Amamentação e políticas para a infância no Brasil: a atuação de Fernandes Figueira, 1902-1928 / Gisele Sanglard

A desnaturalização da infância como uma idade da vida que requer cuidados muito específicos e da maternidade e amamentação como essências feminina têm sido temas recorrentes nas pesquisas históricas, uma vez que estes processos são vistos como construções e tiveram diversos sentidos ao longo do tempo. O desenvolvimento da medicina e de suas especialidades, dentre outros fatores, interliga-se a estes processos de criações de sentido, (res)significando aspectos como a alimentação e os cuidados materno-infantis à higiene, à puericultura e aos conhecimentos científicos. No Brasil, a temática da infância surgiu no debate público como assunto ligado à civilidade e à cidadania, no contexto do final do século XIX, mas também foi fruto de disputas em que muitos projetos entraram em choque e cujos resultados eram incertos para os contemporâneos. As práticas de assistência à infância ao longo do século XX foram ressignificadas como políticas públicas e envolveu diferentes agentes como médicos, educadores, filantropos, mulheres ligadas a obras de caridade e a correntes feministas maternalistas, religiosos, profissionais liberais e agentes públicos que exerceram funções políticas e administrativas nos órgãos estatais voltados para política de cuidados.

Pensando neste campo de discussões, o livro Amamentação e políticas para a infância no Brasil: a atuação de Fernandes Figueira, 1902-1928, organizado pela professora Gisele Sanglard2, contribui ao pensar as relações muito próximas entre medicina, filantropia, políticas públicas e infância. As trajetórias dos médicos filantropos, tendo como fio condutor as ações iniciais do médico Fernandes Figueira, incluindo seus espaços de atuação como congressos, revistas e instituições científicas, coincidem por atravessar ações em prol da criança, seja no âmbito da filantropia como na organização de políticas públicas. Ao mesmo tempo, este percurso permite pensar os processos de legitimação da pediatria e da puericultura como especialidades médicas, buscando normatizar práticas relativas ao cuidado diário e à alimentação dos infantes, aspectos até então tratados como esferas privada e feminina.

A obra constitui-se como um desdobramento de áreas de interesse de pesquisa da professora Sanglard, atualmente coordenadora do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde – Casa de Oswaldo Cruz Fiocruz e presidente da Sociedade Brasileira de História das Ciências, destacando-se o Rio de Janeiro, a assistência, a filantropia, a primeira república e a saúde pública.

Em cinco capítulos, a obra defende o argumento de que as propostas do médico Fernandes Figueira a respeito do aleitamento materno e as políticas para a infância repercutiram em ações de médicos, filantropos, intelectuais e jornalistas, não apenas no Rio de Janeiro, mas em outras realidades brasileiras, destacando a atuação baiana. Para Figueira, era mediante esse consórcio entre benemerência, ciência, inteligência e perspicácia que se conseguiria vencer o problema da mortalidade infantil no Brasil da primeira república3.

Além dos artigos, o livro possui uma seção de imagens das atividades desenvolvidas na Policlínica das Crianças e Instituto de Proteção e Assistência à Infância, instituições pioneiras no atendimento materno-infantil nas primeiras décadas do século XX no Rio de Janeiro. Ademais, a obra traz um fac-símile da segunda edição do Livro das mães: consultas práticas de higiene infantil, publicado em 1920 pelo médico Fernandes Figueira.Por essa multiplicidade de abordagens, o livro foi premiado em 2017 pela Associação Brasileira de Editoras Universitárias (ABEU), na seção Ciências da Vida.

Na apresentação, a organizadora remete o leitor à trajetória de Antônio Fernandes Figueira, médico que fez parte, juntamente com Moncorvo Filho e Luiz Barbosa, da primeira geração de pediatras brasileiros. O lugar-social experienciado por Figueira ao longo da carreira – escritor em revistas e livros, ocupou cargos em instituições hospitalares e no IHGB e fundou a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) – permitiu consolidar a sua imagem não apenas em torno da ciência, mas da puericultura, aquele preocupado com a primeira infância. Ambas reúnem, em uma só figura, a ciência e a infância [4].

No primeiro capítulo, “Alimentação na primeira infância: médicos, imprensa e aleitamento no fim do século XIX”, Karoline Carula aborda o contexto de defesa do aleitamento materno, relacionando a uma mudança que se pretendia para própria ordem familiar. Buscava-se forjar a família fundamentada em uma sociedade burguesa liberal. O discurso médico, neste contexto, por meio de argumentos higienistas, buscava delinear os novos parâmetros a serem adotados pelas famílias. O aleitamento materno mereceu destaque, visto que era considerado a melhor forma de alimentação do bebê [5]. Desta forma, as análises da autora estão concentradas em matérias veiculadas pelo jornal A Mãi de Familia, que circulou na capital imperial entre 1879 e 1888, e em teses defendidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro no mesmo período, nas quais se dissertou sobre diferentes modos de aleitamento na primeira infância. Uma das estratégias recorrentes era a associação aleitamento materno e natureza, ressaltando o instinto materno. Os médicos foram unânimes em considerar o aleitamento materno como a melhor maneira de alimentar o bebê. As mulheres que não amamentavam seus filhos, entregando-os às amas de leite, foram duramente condenadas e consideradas desnaturadas. O aleitamento mercenário, por sua vez, foi profundamente associado pelos médicos à escravidão, e muitos dos argumentos a que recorreram para desqualificar o método se fundamentaram no fato de a maioria das amas de leite ser cativa.

No segundo capítulo, “Fernandes Figueira e a política de assistência à infância: Estado, filantropia e aleitamento materno”, Gisele Sanglard afirma que a necessidade de organizar a assistência no Brasil da Primeira República (1889-1929) está diretamente relacionada à emergência da chamada “questão social”. Nesse cenário, as mulheres, as crianças e a família em geral se tornam objeto da atenção de médicos, de filantropos e do Estado. O texto enfoca a ação de Fernandes Figueira em prol do aleitamento materno a partir da criação de consultórios de lactantes, onde seria realizada a educação das jovens mães, espaços de baixo custo de manutenção e por isso se multiplicaria pela cidade, auxiliados por beneméritos. A importância do trabalho dos consultórios de lactantes estava no acompanhamento médico. Portanto, dirigia esforços para abertura de ligas voltadas para primeira infância, de associações maternas ou de creches [6]. A filantropia é considerada uma das facetas da sociedade da belle époque e o seu investimento social, político e financeiro culminou na criação de instituições voltadas para assistência materno-infantil, como o Instituto de Proteção e Assistência à Infância/ IPAI (1899); a Policlínica de Botafogo (1899); a Policlínica das Crianças (1909), vinculada às ações da Misericórdia carioca; e o Hospital São Zaccharias (1914), também da Misericórdia carioca e vinculado à cátedra de clínica pediátrica da FMRJ. Na década de 1920 seria inaugurado o primeiro hospital público voltado para a infância, vinculado à Inspetoria de Higiene Infantil do Departamento Nacional de Saúde Pública [7]. Figueira era favorável à “parceria” estabelecida entre o poder público e a sociedade civil, pois, segundo ele, o Estado não conseguiria amparar todas as mães pobres, ficando a seu cargo as tarefas de fiscalização, orientação e assistência.

No terceiro capítulo, “Salvando o esteio da nação: Moncorvo Filho e o Instituto de Proteção à Assistência à Infância no Rio de Janeiro”, Maria Martha de Luna Freire apresenta uma outra possibilidade de assistência à infância, pois as ações do pediatra Moncorvo Filho incorporavam a questão da alimentação infantil de forma abrangente e inclusiva, num aparente esforço em se adequar às estratégias que já vinham sendo adotadas pelas mulheres, apoiando-as, corrigindo-as quando julgasse necessário e conferindo-lhes um selo de cientificidade. Se por um lado incentivava a adoção de nutrizes – desde que vigiadas pela família e examinadas e supervisionadas pelos médicos –, de outro, tolerava e orientava o aleitamento misto e o artificial [8]. Conforme este princípio, adotou no IPAI o modelo francês das Gotas de Leite de fornecimento de leite esterilizado simultaneamente à oferta de assistência e orientação técnica a mães e filhos [9]. Moncorvo aparentemente tentava proporcionar às mulheres alternativas alimentares mais seguras para seus filhos e reduzir os riscos de distúrbios do aparelho digestivo e, consequentemente, de adoecimento e morte infantis.

Em “Entre a assistência e a higiene: saúde pública e infância no Rio de Janeiro e na Bahia – 1921-1933”, Luiz Otavio Ferreira e Lidiane Monteiro Ribeiro analisam o modo como os órgãos públicos atuaram para pôr em prática a política oficial de higiene infantil, promovida após a reforma sanitária da década de 1920, em contraposição ao papel desempenhado pelas entidades privadas filantrópicas na política de Estado para a infância pobre. Para tanto, os autores descrevem as ações de duas agências públicas de higiene infantil: a Inspetoria de Higiene Infantil (IHI), sediada na capital federal (Rio de Janeiro), comandada pelo médico Fernandes Figueira, e o Serviço de Higiene Infantil (SHI), sediado em Salvador, dirigido pelo pediatra Martagão Gesteira. Os órgãos eram repartições do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) e seriam responsáveis não apenas pela assistência, desenvolvidas pela filantropia, mas pela higiene infantil propriamente dita, incluindo atendimento hospitalar, oferta de remédios no caso de diagnóstico de doenças, postos de higiene, inquéritos sanitários e visitas domiciliares realizadas por enfermeiras visitadoras [10] . Apesar de as diretrizes oficiais do IHI preconizarem que os serviços públicos e privados de assistência atuassem de forma independente, na prática, no caso da Bahia, os serviços misturavam-se às atividades desenvolvidas pela Liga Baiana Contra Mortalidade Infantil, entidade filantrópica também dirigida pelo pediatra Martagão Gesteira. Nos jornais locais era constante o apelo para que as elites baianas apoiassem os consultórios de lactantes ou higiene infantil e as creches mantidos pela Liga com a orientação técnica do SHI.

No quinto capítulo, “Embaixadores da academia: puericultura, congressos da criança e a repercussão multinacional da medicina brasileira”, Okezi T. Otovo argumenta que os médicos brasileiros engajaram-se completamente em diálogos multinacionais sobre puericultura e assistência, especialmente via Conferências Pan-Americanas, ocorridas após 1916, incorporando ideias criadas no exterior e contribuindo com conceitos inspirados na realidade nacional. Perceber as similaridades de muitas nações latino-americanas possibilitou a distinção da França, de onde veio a teoria inicial da puericultura, e dos EUA, pela relevância global pós-guerra. Porém, é válido ressaltar que o pan-americanismo não foi a única influência nas políticas brasileiras de saúde infantil, especialmente quando se analisa os contextos dos anos 1930-40, e a eugenia e puericultura se tornaram aspectos explícitos do programa nacional da família [11].

Completa o elenco de textos do livro o fac-símile Livro das mães: consultas práticas de higiene infantil, cuja intenção era tornar mais “acessível” os saberes científicos na medida em que se propunha a escrever diretamente para as mães e comentar dúvidas, ditas cotidianas, a respeito das práticas de maternagem e os cuidados com o bebê. Nos capítulos, as mais de 100 dúvidas respondidas pelo médico, tais como “Que alimento convém a um recém-nascido?”, “o umbigo do meu filhinho, que vae completar onze dias, dessora, e às vezes até sanguíneo ou purulento […]”, “qual a melhor alimentação da criança?”, “como e quando operar o desmame?”, “qual a melhor mamadeira?”, “Porque chora a criança?”, perpassam pelo cotidiano das mulheres que se tornam mães até mesmo nos dias atuais. No entanto, é significativo o fato de que os questionamentos deveriam ser sanados não pelas mães, avós, comadres, vizinhas, etc., como era a prática mais habitual no universo feminino, mas pelo médico pediatra, detentor do conhecimento científico e, portanto, apto a aconselhar da forma mais correta.

Em verdade, o livro permite compreender as tentativas de legitimação do saber e do ofício de médicos, na gestão do corpo feminino, da maternidade e da infância. Outras possibilidades de pesquisas surgem a partir de então. As mulheres/mães seguiam as indicações apontadas pelo médico? Na prática, outros saberes relacionados ao cuidado, à higiene, à alimentação da infância permaneciam? As mulheres foram aliadas dos médicos? O que podemos afirmar é que somente quando elas passam a compartilhar a maneira de pensar dos médicos sobre como criar os filhos e adotam as práticas preconizadas, a pediatria se estabelece. No entanto, as práticas de maternagem constituem-se na esfera da multiplicidade e da incerteza e, no que se refere à saúde, não raro, ainda podemos encontrar aquela mãe que mesmo levando o bebê frequentemente ao pediatra utiliza-se ainda de chás e rezas, ou aquela que introduz uma mamadeira de fórmula de leite por considerar que “seu leite é fraco”.

Na historiografia brasileira, temas como o corpo, as práticas populares e médicas sobre saúde e doenças, bem como a crescente intervenção médica nas práticas maternas desde finais do século XIX têm aproximado campos de produção relacionado à história das mulheres e das relações de gênero e história da saúde [12]. As primeiras pesquisas que tratam, mesmo que de forma tangencial, das práticas relacionadas à maternidade surgem por volta dos anos 1990 [13] e atualmente têm abordado os saberes e as práticas sociais relativas ao parto, à maternidade, às profissões das parteiras e enfermeiras, bem como o maternalismo no Brasil [14].

Esta última possibilidade incorpora estudos mais recentes que problematizam temas como políticas públicas materno-infantis; práticas e instituições benemerentes e os discursos e práticas de assistência médica à maternidade e à infância [15].

O livro Amamentação e políticas para a infância no Brasil: a atuação de Fernandes Figueira, 1902-1928 é reflexo da abertura de diálogos e certamente abre novos caminhos de compreensão e desnaturalização não apenas da infância, mas das práticas de maternagem, bem como permite uma outra chave de leitura para compreensão da complexidade do processo de higienização da sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX, sendo, por isso, uma leitura necessária.

Notas

  1. SANGLARD, Gisele (org.). Amamentação e políticas para a infância no Brasil: a atuação de Fernandes Figueira, 1902-1928. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2016. 324 p.
  2. Ibid., p. 16.
  3. Ibid., p. 26.
  4. Ibid., p. 33.
  5. Ibid., p. 59.
  6. Ibid., p. 60.
  7. Ibid., p. 90-93.
  8. Ibid., p. 94-97.
  9. Ibid., p. 104-108.
  10. Ibid., p. 128.
  11. MARTINS, A. P. V.; FREIRE, M. M. L. História dos cuidados com a saúde da mulher e da criança. In: PIMENTA, T. S.; HOCHMAN, G. História da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018. p. 182- 224.
  12. DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: a condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993.
  13. MARTINS, A. P. V. Gênero e assistência: considerações histórico-conceituais sobre práticas e políticas assistenciais. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18, p. 15-34, dez. 2011; MARTINS, A. V. O Estado, as mães e os filhos: políticas de proteção à maternidade e à infância no Brasil na primeira metade do século XX. Humanitas, Belém, v. 21, p. 7-31, 2006; MARTINS, A. P. V. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004; MOTT, M. Maternalismo, políticas públicas e benemerência no Brasil (1930-1945). Cadernos Pagu, Rio de Janeiro, n. 16, p. 199-234, 2001; MOTT, M. L.; BYINGTON, M. E. B; ALVES, O. S. F. O gesto que salva: Pérola Byington e a Cruzada Pró-Infância. São Paulo: Grifo Projetos Históricos e Editoriais, 2005; ROHDEN, F. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2001.
  14. FREIRE, M. M. L. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

Lívia Suelen Sousa Moraes Meneses – Mestre em História do Brasil – UFPI. E-mail: [email protected].


SANGLARD, Gisele (Org.). Amamentação e políticas para a infância no Brasil: a atuação de Fernandes Figueira, 1902-1928. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2016. 324 p. Resenha de: MENESES, Lívia Suelen Sousa Moraes. Desnaturalizando a amamentação e os cuidados com a infância: a atuação da Medicina, da filantropia e das políticas públicas na assistência à infância nas primeiras décadas do século XX. Outros Tempos, São Luís, v.17, n.29, p.389-395, 2020. Acessar publicação original. [IF].

A comunicação social na Revolução dos Alfaiates / Florisvaldo Mattos

Os movimentos nativistas do século XVIII são objetos de revisão dos historiadores ao tempo em que ciências afins também lançam mão de investigações transversais com recortes pioneiros, trazendo à luz vertentes para outras leituras. É o caso da Revolta dos Alfaiates, conhecida também por outras denominações: Conspiração ou Revolução dos Alfaiates, Revolta dos Búzios, Sedição de 1798, Conjuração Baiana, Levante de 1798, Inconfidência Baiana.

São passados 220 anos da Revolta dos Búzios, movimento nativista revolucionário negro-mestiço, que teve como baluarte o fenômeno da comunicação, através da oralidade e dos chamados boletins sedicioso espalhados na cidade do Salvador. É disso que trata o livro A comunicação social na Revolução dos Alfaiates, do jornalista, poeta e pesquisador Florisvaldo Mattos, agora relançado em edição comemorativa. Um trabalho interdisciplinar reconhecido pelo pioneirismo, gerado durante os estudos de mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), com abordagem sobre o formato da comunicação no processo revolucionário em questão.

Literato, escritor, autor de vários livros e participante de coletâneas, Florisvaldo Mattos é baiano com longa estrada no jornalismo, além de professor na UFBA. Sempre disposto a orientar e incentivar os alunos e colegas, é portador de grandes experiências culturais e acadêmicas. E nessa linha de atuação, seu trabalho científico faz a diferença nos estudos da história da comunicação brasileira, agora à disposição de qualquer interessado. Até o momento, a comunicação parece um tema despercebido como fonte de estudo e pesquisa ao longo de todo o período colonial.

Apaixonado pelo drama do movimento, o autor confessa que de início a ideia do trabalho era escrever um longo poema ou uma peça de teatro. Porém a convivência com as metodologias científicas do curso de mestrado na época gerou o ensaio ora em discussão e acrescenta ser “a comunicação um fenômeno pelo qual a ordem social respira”. (p.9) Em seis capítulos, o livro apresenta um panorama das relações sociais de comunicação no período colonial. Em foco, um conjunto de fatos e conflitos de ideais que desafiaram valores de um sistema socioeconômico.

O público tem a chance de (re) ler essa narrativa que nos remete a uma cidade que vivia um clima de rebelião, cuja discussão gira em torno dos comportamentos de comunicação da época. Salvador foi cenário da Revolta dos Búzios ou Revolta dos Alfaiates, sob forte influência da Revolução Francesa. A bandeira humanística de liberdade e igualdade se dispersava pelo mundo e motivava o interesse de renovação política na intenção de separar o Brasil do reino de Portugal, de abolir a escravidão e criar o regime republicano. Assim, podemos seguir em parte o roteiro dessa pesquisa dedicada a avaliar a comunicação na Bahia colonial.

As referências históricas do livro apontam que na última década do século XVIII, Salvador era uma cidade tipicamente portuária, considerada a principal porta de entrada da América portuguesa, no Atlântico sul. Apesar de ter perdido o status de capital para o Rio de Janeiro desde 1763, seguia com alguma importância de ordem econômica e administrativa. Estava decadente a produção de açúcar, mas seguiam em alta a produção e a exportação do tabaco, café, mamona, madeira e piaçava. Em troca, a colônia recebia produtos do mercado europeu e o contingente humano da costa africana para servir de mão de obra escrava.

Sem conhecer a imprensa, a capitania da Bahia tinha uma população formada de escravos, alforriados e homens livres de ocupações consideradas desprezíveis na época, como os alfaiates. Instalados na diáspora pela compulsão do tráfico negreiro, precisavam se livrar dos critérios de exclusão social. Na época, as profissões eram poucas e algumas categorias sociais são visibilizadas entre funcionários da administração real, militares, clero, grandes mercadores, grandes proprietários rurais, que formavam a chamada elite da sociedade baiana. Também havia os grandes e pequenos comerciantes, os profissionais liberais, os mestres de oficio, mecânicos, e mais a camada dos escravos, mendigos, vagabundos e prostitutas. E diante do panorama investigado, os rebeldes “são quase todos artesãos, soldados e escravos”2.

O livro é uma oportunidade de conhecer um pouco da sociedade colonial baiana, nos aspectos da educação, cultura e comunicação. Isso facilita compreender melhor as possibilidades de comunicação durante o regime escravocrata, que se dava basicamente através da oralidade. Portanto, dentro de um cenário sem escola, eram poucos os que tinham acesso ao saber da leitura e da escrita. Esse reflexo decorria do retardamento de Portugal em aderir à economia industrial, sobretudo na área da imprensa, não assimilar as conquistas da Revolução Comercial e a rivalizar a Revolução Francesa.

Nessa linha de raciocínio, o autor aborda no primeiro capítulo a clara falta de interesse em alfabetizar os índios, que deveriam ser utilizados só como força de trabalho ou então exterminá-los. Os negros vindos da África deveriam ser mantidos na ignorância, afinal eram apenas mercadoria. A narrativa revela que os portugueses limitaram o desenvolvimento da cultura na colônia, a começar pelo ensino, e desprezaram a construção de um sistema educacional. Mattos expõe ainda que “a colônia não conheceu nem a imprensa nem a universidade e as sociedades literárias, quando toleradas”. [3] O intercambio intelectual era mínimo e não havia a comunicação de ideias, por serem precárias as técnicas de informação.

Segundo o texto da pesquisa, adquirir conhecimentos necessários ao desenvolvimento cultural, troca de informações, só seria possível de três maneiras: 1) pelo aprendizado informal; 2) pela comunicação manuscrita e 3) pelo livro ou outros materiais impressos, geralmente de origem estrangeira e de contrabando. De forma que o transporte marítimo era a única via de comunicação com outros lugares.

O autor verifica ainda que no século XVIII, a sociedade baiana conta com o privilégio de duas formas de comunicação: 1) direta, verbal e não-verbal; e 2) indireta, produzida pela escrita, e outros códigos como desenhos, figuras, etc. E aponta ainda uma vasta rede de contatos interpessoais entre as diversas camadas da população como conversas, cantos, mexericos, festas, pregões de rua, cochichos, algazarras, serões, missas, procissões, epigramas, versos, discursos, enterros etc., um grande fervilhar da vida urbana e rural. A depender da situação, a forma de transmissão mais comum era o recado. A comunicação escrita, segundo revela o autor, limitava-se ao registro de documentos ou à transmissão de algo fora do alcance da linguagem fônica. E assim, a Bahia tinha uso limitado da escrita e sempre esteve fora da produção impressa, mesmo quando era sede do governo geral.

Mattos conduz o leitor na rota de como se deu a consciência política e revolucionária do movimento através das relações de comunicação possíveis, tanto pela via oral dos diálogos ou do recado, como pela via manuscrita das cartas, bilhetes e avisos. O movimento mostra que ganhou forma através de uma vasta rede de contatos verbais, em sua maioria, conforme indica o autor. Ao que parece, escapou aos historiadores que, do nascimento ao fracasso, a revolta se constituiu apenas de atos de comunicação. E sobre o papel da comunicação nos preparativos do levante, três formas típicas se destacam: a conversa, o recado e o bilhete.

As reuniões e a proposta de levante foram delatadas. Na manhã do dia 12 de agosto de 1798, domingo, a cidade acordou com uma serie de manifestos espalhada em pontos de grande movimentação, contendo mensagens revolucionárias, falando de liberdade e igualdade, e reivindicando mudanças de governo. A leitura desse material foi reduzida, mas a repercussão teve grande audiência graças ao boca a boca, ao boato, à oralidade do povo, em decorrência da leitura de alguns semialfabetizados que tentavam decifrar as mensagens. Mas, alguém há de perguntar, o que estava mesmo escrito naqueles manuscritos para causar tanta inquietação? A coroa portuguesa deu início imediato ao processo da devassa.

Em face do contexto, a narrativa sugere que o conteúdo era incendiário para a época, revolucionário. Um verdadeiro escândalo para o regime por falar de liberdade, igualdade e se manifestar contra a escravidão. Os rebeldes lançavam propostas concretas para resolução de uma crise sociopolítica e mudança de regime na Bahia, inclusive com garantia de igualdade para todos perante a lei. Os manuscritos foram afixados certamente por um grupo em locais que hoje demarcam o Centro Histórico de Salvador. Eram onze manifestos, classificados pela elite como boletins sediciosos, que conclamavam a população a se rebelar contra o domínio português.

No plano da comunicação, o autor/pesquisador classifica essas mensagens como: orais, escritas e de sinais convencionais. A primeira caracteriza a predominância da oralidade em todas as fases do movimento, através da via direta entre os rebeldes em reuniões e troca de informações. A segunda categoria marca a importância da divulgação das ideias revolucionárias pela via indireta. O autor revela que a escrita de cartas e bilhetes se estendeu também à região do Recôncavo. A terceira categoria implicava em linguagem especial de símbolos secretos representativos para identificar aliados, facilitar a comunicação no grupo e reconhecer em público a ideologia do outro. Entre eles, o uso do búzio, código dos mais conhecidos e que levou alguns historiadores a nomearem o movimento de Revolta dos Búzios.

Assim, seguindo a ordem da pesquisa, em todo ato de comunicação, o comunicador busca a atenção do destinatário, deve atingir o outro e obter uma resposta. A intenção dos rebeldes baianos era estimular parcela da população sobre problemas sociais e políticos inerentes a suas necessidades. O autor estima que tais mensagens transmitiam as ideias francesas e abalavam o contexto de então, devido aos temas polêmicos e revolucionários.

Em suma, uma nova leitura possibilita concluir que o movimento foi totalmente sufocado. A revolta foi traduzida pela difusão de ideias, informações, planos, através de folhetos manuscritos que funcionaram como veículo de comunicação para um público mais amplo. A divulgação de um pensamento e ação política teve como resposta a crueldade da repressão. Com esse recorte o pesquisador Florisvaldo Mattos analisa a Revolta dos Búzios pelo prisma da comunicação, deixando nas entrelinhas que os boletins teriam sido um preâmbulo do jornalismo no Brasil, o que muito enriquece o seu significado histórico para as ciências sociais.

Marcos Rodrigues – Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA. E-mail: [email protected].

MATTOS, Florisvaldo. A comunicação social na Revolução dos Alfaiates. 3. ed. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2018. Resenha de: RODRIGUES, Marcos. Indícios do jornalismo brasileiro. Outros Tempos, São Luís, v.16, n.28, p.281-285, 2019. Acessar publicação original. [IF].

Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia / Judith Butler

Conhecida internacionalmente pelo livro Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade2, publicado no início da década de 1990 e lançado no Brasil apenas em 2003, a filósofa estadunidense Judith Butler se dedica às análises sobre feminismos, gêneros, corpos e sexualidades. Sua obra, que mantém fluxo entre teoria e engajamento político, exerce significativa influência, tanto nos debates acadêmicos em diferentes áreas do conhecimento quanto nos movimentos sociais e em setores da sociedade civil. Suas teorias, em destaque sobre a performatividade dos gêneros, ensejaram um intenso debate e tensões, por deslocar certezas naturalizadas como a do sexo biológico. Na sua perspectiva, há um esforço em retirar o caráter ontológico das interpretações sobre as identidades de gênero e sobre o sexo, gerando uma dissociação entre o sexo, gênero e desejo.

Nos últimos títulos publicados pela autora, como Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?3 e Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia4, há o interesse em discutir sobre formas de inserção políticas contemporâneas, violências institucionalizadas ou não e sobre a precariedade a que determinados conjunto de sujeitos são induzidos e que limitam a prática efetiva da democracia e que encontram no gênero e na experiência corporificada espaços privilegiados de acontecimento.

O livro Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia reúne seis capítulos que possuem como eixo norteador a relação entre os corpos, suas performances em assembleias e a ocupação de espaços públicos promovida pelas manifestações que se multiplicaram em vários países do mundo, desde 2010, quando cerca de um milhão de pessoas se reuniram na Praça Tahrir no centro do Cairo, no que ficou conhecido como Primavera Árabe. Para a autora, as manifestações no Egito, além de servirem de exemplo para lutas políticas em outros países, renovaram o interesse de pesquisadores de várias partes do mundo sobre o estudo de assembleias públicas e de movimentos sociais que tomaram como fator estimulante a condição precária a que muitos corpos são submetidos, nas chamadas democracias neoliberais.

Para iniciar a reflexão, Butler apresenta algumas categorias importantes para pensar os temas desenvolvidos ao longo dos capítulos, entre elas: democracia, povo, precariedade e performance. A autora sofistica a análise dessas categorias, considerando a polifonia à qual são sujeitas. No que se refere à conceitualização de democracia, é apontada a necessidade de pensá-la, para além de uma abordagem nominalista que não considera os limites da prática democrática em contextos neoliberais que operam pela precarização da vida, limitando o direito à existência de grupos. Em outros termos, para pensar em democracia na contemporaneidade é necessário ir além de estruturas governamentais que se autoproclamam democráticas, discutindo a inserção de práticas em assembleia que reivindicam formas de existência não precárias. Verticalizando ainda mais a análise sobre esse aspecto, Butler aponta que os discursos que se apoiam no marketing e na propaganda são os definidores de quais movimentos populares podem ou não serem chamados de democráticos.

Nesse debate, emerge a segunda categoria problematizada pela autora: povo. Seu interesse é responder às seguintes questões: quem realmente é o povo? Que operações de poder discursivo e com que intencionalidades se constrói essa categoria? A resposta que a autora constrói para essas perguntas é a de que não existe “povo” sem uma fronteira discursiva, ou seja, sua definição é um ato de autodemarcação que corresponderia a uma “vontade popular”. Aplicando à análise dos movimentos contra a condição precária, como a Primavera Árabe e o Occupy the Wall Street, a autora conclui que é necessário “ler tais cenas não apenas através da versão de povo que eles enunciam, mas das relações de poder por meio das quais são representadas”5.

Por precariedade, Butler entende uma condição induzida por violência a grupos vulneráveis ou ainda a ausência de políticas protetivas. Sua análise situa em torno das economias neoliberais que cada vez mais retira direitos – previdenciários, trabalhistas, de moradia – e acesso a serviços públicos como escolas e universidades.

A última categoria basilar para entender as discussões que seguem nos seis capítulos do livro é a de performance, já discutida pela autora em outros textos, mas que, nesta obra, é pensada através do viés das coletividades e para além do gênero. Em outros termos, Butler incorpora o seu conceito de performance para entender como os corpos agem de forma coordenada em assembleias. Para a autora, podemos perceber as manifestações de massa como uma rejeição coletiva à precariedade e, mais que isso, como um exercício performativo do direito de aparecer, “uma demanda corporal por um conjunto de vidas mais vivíveis”6.

A tese sobre a qual os capítulos versam é a de que, quando os corpos se reúnem em assembleias, quer sejam em praças, ruas ou mesmo no ambiente virtual, eles estão exercitando o direito plural e performativo de aparecer e de exigir formas menos precárias de existência. Os objetivos dessas assembleias são desde oposição a governos autoritários até redução de desigualdades sociais, questões ecológicas ou de gênero. Pensar sobre elas e sobre a pluralidade que incorporam é discutir como a condição precária é representada e antagonizada nesses movimentos e como se materializam na expressão de corpos que entram em alianças.

Os capítulos deste livro “buscam antes de tudo compreender as funções expressivas e significantes das formas improvisadas de assembleias públicas, mas também questionar o que conta como público e quem pode ser considerado povo.”7 Os primeiros capítulos se concentram na discussão sobre formas de assembleia que possuem modos de pertencimento e que ocorrem em locais específicos. Já os últimos capítulos discutem movimentações que acontecem entre aqueles que não compartilham um sentido de pertencimento geográfico ou linguístico.

No capítulo 1, intitulado “Políticas de gênero e o direito de aparecer”, Butler discute as manifestações de massa, com destaque àquelas que pautam as questões de gênero, como uma rejeição coletiva à precariedade de corpos que se reúnem por meio de um exercício performativo do direito de aparecer. Nesse sentido, a autora insere a discussão sobre o reconhecimento com um dos cernes dessas manifestações públicas. Segundo ela, os sujeitos estariam lutando por reconhecimento em um campo altamente regulado e demarcado de zonas que permitem ou interditam formas corporificadas. No capítulo, a autora ainda se lança a responder questões como: por que esse campo é regulado de tal modo que determinados tipos de seres podem aparecer como sujeitos reconhecíveis e outros tantos não podem? Quais humanos contam como humanos? Quais humanos são dignos na esfera do aparecimento e quais não são? Para a autora, o reconhecimento passa pela noção de poder que segmenta e classifica os sujeitos de acordo com as normas dominantes que buscam normalizar determinadas versões de humanos em detrimentos a outras. A autora avança ainda mais: a necessidade de se questionar como as normas são instaladas é o começo para não as tomar como algo certo/ um dado.

Utilizando o gênero para pensar essa questão, Butler argumenta que as normas de gênero são transmitidas por meio de fantasias psicossomáticas como patologização e a criminalização, que buscam normalizar determinadas práticas e versões do humano em relação às outras, basta pensar que há formas de sexualidade para as quais não existe um vocabulário adequado porque as lógicas como pensamos sobre o desejo, orientação, atos sexuais e prazeres não permitem que elas se tornem inteligíveis. Nesse processo de apagamento, o que se observa é a luta em assembleia pelo direito de viver uma vida visível e reconhecível que opera por meio de rompimentos no campo do poder.

No segundo capítulo, “Corpos em aliança e a política das ruas”, é dada visibilidade para os significados das manifestações no espaço público que articulam pluralidades de corpos que compartilham a experiência da precariedade e que se exibem e lutam por direito de existir. Para a autora, a política nas ruas deve congregar uma luta mais ampla contra a precariedade, sem que sejam apagadas as especificidades e pluralidades identitárias. Para tanto, há a necessidade de uma luta mais articulada que requer uma “ética de coabitação”. A ideia não é de “se reunir por modos de igualdade que nos mergulhariam a todos em condição igualmente não vivíveis”8, mas sim de “exigir uma vida igualmente possível de ser vivida”9.

Para pensar no espaço de aparecimento, Butler recorre e questiona Hanna Arendt que pensa o espaço a partir da perspectiva da pólis, onde a ação política é sine qua non ao aparecimento do corpo no espaço público. Para Butler, o direito de ter direitos não depende de nenhuma organização política particular para sua legitimação, pois antecede qualquer instituição política. O direito, então, passa a existir quando é exercido por aqueles que estão unidos em alianças e que foram excluídos da esfera pública, que é marcada por exclusões constitutivas e por formas de negação. Isso fica claro quando:

Ocupantes reivindicam prédios na Argentina como uma maneira de exercer o direito a uma moradia habitável; quando populações reclamam para si uma praça pública que pertenceu aos militares; quando refugiados participam de revoltas coletivas por habitação, alimento e direito a asilo; quando populações se unem, sem a proteção da lei e sem permissão para se manifestar, com o objetivo de derrubar um regime legal injusto ou criminoso, ou para protestar contra medidas de austeridade que destroem a possibilidade de emprego e de educação para muitos. Ou quando aqueles cujo aparecimento público é criminoso – pessoas transgênero na Turquia ou mulheres que usam véu na França – aparecem para contestar esse estatuto criminoso e reafirmar o seu direito de aparecer10.

Em outros termos, o espaço público é tomado por aqueles que não possuem nenhum direito de se reunir nele. Indivíduos que emergem de zonas de invisibilidade para tomarem o espaço, ao mesmo tempo em que se tornam vulneráveis às formas de violência que tentam reduzi-los ao desaparecimento. Neste capítulo, a autora discute o direito de ter direitos não como uma questão natural ou metafísica, mas como uma persistência dos corpos contra as forças que buscam sua erradicação.

No terceiro capítulo chamado “A vida precária e a ética da convivência”, Butler discute os significados de aparecer na política contemporânea e as possibilidades de aproximação entre corpos identitariamente diferentes e espacialmente separados, unidos apenas pela experiência da globalização e mediados pelos fenômenos tecnológicos e comunicacionais atuais, como as redes sociais. Para Butler, “alguma coisa diferente está acontecendo quando uma parte do globo, moralmente ultrajada, se insurge contra as ações e os eventos que acontecem em outra parte do globo”11. Para a autora, trata-se de laços de solidariedade que emergem através do espaço e do tempo, ou seja, uma forma de indignação que não depende da proximidade física ou do compartilhamento de um língua. Em outros termos, as obrigações éticas são surgem apenas nos contextos de comunidades “paroquiais” que estão reunidas dentro das mesmas fronteiras, constituintes de um povo ou uma nação.

Em parte, essas experiências compartilhadas são possibilitadas pelas novas mídias que, além de espaço de mobilização, se configuram também como uma potente possibilidade de transpor a cena, simultaneamente, para vários outros lugares. De outro modo, “quando o evento viaja e consegue convocar e sustentar indignação e pressão globais, o que inclui o poder de parar mercados ou de romper relações diplomáticas, então o local terá que ser estabelecido, repetidas vezes, em um circuito que o ultrapassa a cada instante”12. Assim:

Quando a cena é transmitida, está ao mesmo tempo lá e aqui, e se não estivesse abrangendo ambas as localizações – na verdade, múltiplas localizações – não seria a cena que é. A sua localidade não é negada pelo fato de que a cena é comunicada para além de si mesma e assim constituída em mídia global; ela depende dessa mediação para acontecer como o evento que é. Isso significa que o local tem que ser reformulado para fora de si mesmo a fim de ser estabelecido como local, o que significa que é apenas por meio da mídia globalizante que o local pode ser estabelecido e que alguma coisa pode realmente acontecer ali. […] As cenas das ruas se tornam politicamente potentes apenas quando – e se – temos uma versão visual e audível da cena comunicada ao vivo ou em tempo imediato, de modo que a mídia não apenas reporta a cena, mas é parte da cena e da ação; na verdade, a mídia é a cena ou o espaço em suas dimensões visuais e audíveis estendidas e replicáveis. Quando a cena é transmitida, está ao mesmo tempo lá e aqui, e se não estivesse abrangendo ambas as localizações – na verdade, múltiplas localizações […]13

O quarto capítulo – “A vulnerabilidade corporal e a política de coligação” – estrutura-se em torno de três questões fundamentais: vulnerabilidade corporal, coligações e políticas das ruas. A vulnerabilidade é uma experiência corpórea de exposição a possíveis formas de violências como conflitos entre manifestantes, violência policial ou violência de gênero, pois “algumas vezes o objetivo de uma luta política é exatamente superar as condições indesejadas da exposição corporal. Outras vezes a exposição deliberada do corpo a uma possível violência faz parte do próprio significado de resistência política”14. Para a autora, essa vulnerabilidade torna-se menos problemática quando os coletivos criam redes de proteção. A multidão, então, assumiria a função de suporte coletivo, pois:

Quando os corpos daqueles que são considerados “dispensáveis” se reúnem em público (como acontece de tempos em tempos quando os imigrantes ilegais vão às ruas nos Estados Unidos como parte de manifestações públicas), eles estão dizendo: “Não nos recolhemos silenciosamente nas sombras da vida pública: não nos tornamos a ausência flagrante que estrutura a vida pública de vocês.” De certa maneira, a reunião coletiva dos corpos em assembleia é um exercício da vontade popular, a ocupação e a tomada de uma rua que parece pertencer a outro público, uma apropriação da pavimentação com o objetivo de agir e discursar que pressiona contra os limites da condição de ser reconhecido em sociedade. Mas as ruas e a praça não são a única maneira de as pessoas se reunirem em assembleia, e sabemos que uma rede social produz ligações de solidariedade que podem ser bastante impressionantes e efetivas no domínio virtual15.

No quinto capítulo intitulado “Nós, o povo – considerações sobre a liberdade de assembleia”, Butler discute a categorização e a reivindicação da ideia de “povo”, em meio às lutas políticas, problematizando concepções restritivas de povo, como no caso da Constituição dos Estados Unidos. Necessário pensar que a construção de “povo” é uma autodenominação que opera por meio de uma construção discursiva, integrando e excluindo grupos que estão ou não dentro dessa categoria. Ainda no capítulo, a autora discute as privatizações no contexto neoliberal, que minimiza a proteção do Estado e enseja formas de alianças nas ruas que lutam contra o precário.

No último capítulo, intitulado “É possível viver uma vida boa em uma vida ruim?”, Butler aborda, a partir da proposta analítica de Adorno, sobre as possibilidades de vida em um mundo marcado pela condição de desigualdade. Para a autora, a luta política e a performance coletiva em assembleia são ações que vão de encontro à lógica da precarização e que podem ser uma alternativa no contexto neoliberal de diminuição de direitos.

O fio que costura toda a argumentação do livro é o da necessidade de criar condições coletivas de existência e de visibilidade de corpos contra as formas de precariedade que limitam a vida de vários sujeitos. A proposta da autora é a criação de alianças políticas que incluam várias pautas e demandas no contexto das democracias neoliberais. Butler revisita alguns conceitos como de performatividade e de precariedade, já utilizados em outras obras, aplicando-os às questões contemporâneas. Nessa obra, Butler extrapola a análise teórica acerca das assembleias contemporâneas e assume uma postura política de incitação à luta por democracia e direitos sociais no contexto de precarização provocada pelo neoliberalismo.

Laura Lene Lima Brandão – Doutoranda/Universidade Federal do Piauí. Teresina/ Piauí/ Brasil. E-mail: [email protected].


BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. Resenha de: BRANDÃO, Laura Lene Lima. Pelo direito de (r)existir: os corpos nas ruas. Outros Tempos, São Luís, v.17, n.29, p.396-342, 2020. Acessar publicação original. [IF].

História do Brasil Império / Miriam Dolhnikoff

  1. A Autora

Miriam Dolhnikoff é atualmente uma das historiadoras mais atuantes no campo das pesquisas sobre o Oitocentos, direcionando sua produção em torno de temas sobre o Brasil Império como organização institucional do Estado, representação política, entre outros aspectos da história do Brasil voltados para a política nacional e o processo de organização do Estado Nacional. Também possui análises sobre elites regionais, atuação dos partidos e o processo eleitoral no período. Professora do Departamento de História na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, graduou-se no ano de 1986 em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, concluiu o Mestrado em História Econômica pela Universidade de São Paulo em 1993 e no ano 2000 finalizou o Doutorado na mesma universidade e programa.

É autora de importantes obras, como: O Pacto Imperial: origens do federalismo no Brasil, lançado em 2005; José Bonifácio, de 2012; e, em coautoria com Flávio Campos, o livro Atlas de História do Brasil, de 2002. Além desses, tem várias colaborações com artigos em coletâneas sobre o Brasil Império, como o texto Elites Regionais e a construção do Estado nacional, publicado na importante coletânea Brasil – Formação do Estado e da Nação (2003), e São Paulo na Independência, na coletânea Independência: História e Historiografia (2005), ambas organizadas por István Jancsó. Oferecendo uma formatação mais didática em História do Brasil Império (2017), Dolhnikoff mergulha mais uma vez no universo do Brasil oitocentista, buscando, através de temas conhecidos sobre o período, agregar seu olhar experiente e sua análise apurada.

  1. A Coleção História na Universidade

A obra História do Brasil Império é parte integrante da coleção História na Universidade da editora Contexto, que tem por objetivo oferecer discussões historiográficas realizadas por grandes pesquisadores em um formato didático. A coleção conta com 8 (oito) obras: História Antiga, por Norberto Luiz Guarinello; História da África, por José Rivair Macedo; História da América Latina, por Maria Lígia Prado e Gabriela Pellegrino; História do Brasil Colônia, por Laima Mesgravis; História do Brasil Contemporâneo, por Carlos Fico; História do Brasil República, por Marcos Napolitano, História Moderna, por Paulo Miceli e, por fim, História do Brasil Império, de Miriam Dolhnikoff, objeto de análise desta resenha.

A proposta da coleção História na Universidade parte do princípio de trazer para a discussão do público geral momentos importantes da História, oferecendo formatação próxima dos livros didáticos, sem perder a objetividade e credibilidade das obras historiográficas. Com linguagem acessível, abrindo mão da configuração típica da produção historiográfica atual permeada por citações, referências, notas bibliográficas e/ou explicativas e por discussões teóricas, a coleção perpassa as análises, não se valendo diretamente desses expedientes. Como exemplo aqui eleito para o exercício de análise, História do Brasil Império, de Miriam Dolhnikoff, adequa-se bem ao modelo proposto e de forma eficiente, debate, analisa e traz novas perspectivas para os temas eleitos pela autora para discutir o período imperial brasileiro.

  1. A obra

Em História do Brasil Império, a historiadora Miriam Dolhnikoff parte do marco cronológico da Independência em 1822, explorando, por meio de uma introdução e mais 8 (oito) capítulos, 67 anos da história imperial brasileira, elegendo, para tanto, temas caros à historiografia sobre o período. Da Independência à República, os capítulos receberam como títulos: “Independência: deixar de ser português e tornar-se brasileiro”; “Uma nova nação, um novo Estado”; “Os tumultuados anos da Regência”; “A invenção do Brasil: a vida cultural no Império”; “Conflitos e negociação”; “O fim da escravidão”; “A Monarquia e seus vizinhos”; “Abaixo a monarquia, viva a República”. Todos os capítulos possuem subtópicos, em que são explorados aspectos mais específicos aos temas trabalhados nos capítulos, também compostos por boxes, responsáveis por analisar algum tema em destaque e/ou não aprofundado no corpo do texto.

Destaca-se em torno da estrutura dos capítulos a opção pelo não uso de referências completas ou notas americanas para citar as fontes utilizadas, o que cria certa dificuldade caso algum pesquisador profissional se interesse em localizar as fontes consultadas. Entretanto, como a coleção é voltada para um público mais abrangente que inclui estudantes do ensino básico e universitários no início da vida acadêmica, é perfeitamente compreensível a ausência das indicações das fontes, o que torna, por sua vez, a leitura mais dinâmica. Muito embora suas referências estejam ausentes, as fontes são bem exploradas e variadas: de obras literárias, jornais, correspondências íntimas e oficiais a iconografias, elas dão base para as discussões desenvolvidas na obra, assim como ensejam o cuidado e o minucioso trabalho de pesquisa da autora. O livro é completado com uma sessão intitulada “Sugestões de Leitura”, onde constam, além de algumas obras utilizadas ao longo dos capítulos, outras referências para pesquisas futuras e que comtemplam/exploram os temas abordados ao longo dos capítulos.

Para ilustrar as discussões dos capítulos, Dolhnikoff traz na introdução da obra, como abertura das discussões em torno do tema do livro, o debate sobre o contexto anterior à Independência. Discutindo antecedentes da emancipação política brasileira, a autora destaca na introdução os diversos projetos de construção do Brasil, as diferenças econômicas regionais, além da heterogeneidade social em torno da qual o projeto emancipacionista gravitava. Esse processo, segundo Dolhnikoff, não contou com uma posição consensual das elites, que estavam envoltas em suas divergências e objetivos variados. No entanto, destaca pontos em comum que convergiam em torno do projeto nacional: “a continuidade da escravidão, a preservação da economia agrárias voltada prioritariamente para a exportação, a manutenção da ordem interna, em uma sociedade profundamente hierarquizada”2. Assim, para caracterizar a transição do Brasil colônia de Portugal para nação independente, Dolhnikoff enfatiza o caráter de uma (em suas palavras) “continuidade relativa”.

A autora destaca ainda, na introdução, conceitos e definições essenciais para a análise desenvolvida ao longo dos capítulos. Em primeiro ângulo, aborda a questão do liberalismo, seus princípios e doutrinas essencialmente baseados nos modelos norte-americano e europeu. Tendo como base o liberalismo, cita a questão dos direitos civis, o princípio da representação, como foram tratados no Brasil e o que significou naquele momento um governo representativo. Fazendo uma contraposição ao conceito de democracia na contemporaneidade, Dolhnikoff enfatiza o sentido de “democracia restrita” do período, fechando, então, a introdução da obra com a questão sobre a identidade nacional, tão importante para a constituição do Estado ao longo do século XIX.

  1. Os capítulos

No primeiro capítulo, “Independência: deixar de ser português e tornar-se brasileiro”, a autora inicia a argumentação buscando os antecedentes de 1808, a chegada da Família Real Portuguesa a então colônia e as medidas que principiaram o processo que culminou na Independência. Entre as medidas, enumera o fim do exclusivo comercial, tratados com a Inglaterra, a chegada de viajantes de outras nacionalidades, entre outras. Dolhnikoff mostra ainda duas razões para a permanência da Corte na América: primeiro, “o enraizamento dos interesses de membros da nobreza da burocracia reinol nas terras de além-mar”3; segundo, observa que “havia ainda as motivações de natureza política”4.

Destacando as tensões do outro lado do Atlântico, a autora traça o perfil dos embates que culminaram com a Revolução do Porto de 1820, a Reunião das Cortes em 1821 e as consequências geradas na então colônia como o questionamento sobre a autonomia do reino em terras americanas, a desobediência do Brasil a respeito das determinações das Cortes e a união de paulistas, fluminenses e mineiros em defesa de D. Pedro. No tópico “As disputas se intensificam”, há a análise do desdobramento dos acontecimentos que culminaram na ruptura como a aliança (provisória) de D. Pedro com as elites locais, a participação das elites nacionais no processo, a autonomia para os governos locais, as disputas entre José Bonifácio e Gonçalves Ledo e a recusa dos brasileiros em jurar a Constituição portuguesa.

O processo de ruptura é analisado partindo das recusas, tendo o Pará e o Maranhão como exemplos de não adesão imediata à causa independentista. A autora busca, então, as premissas do 7 de setembro, como o Manifesto de 6 de agosto de 1822, já vislumbrando a intencionalidade da emancipação de Portugal. Nesse aspecto, cabe ressaltar que Dolhnikoff explora um documento importante e ainda pouco explorado no que se refere aos acontecimentos relativos à Independência. O Manifesto de 6 de agosto de 1822 é, segundo a autora, o “primeiro registro formal da decretação da Independência do Brasil”5.

Com base na análise dos discursos, em um interessante trecho do capítulo, a autora percebe a inversão de valores feita por D. Pedro e José Bonifácio como justificativa para o fim da relação metrópole-colônia entre Brasil e Portugal. Para ambos, “o pacto colonial era apontado como um dos instrumentos de opressão e exploração, ao impor o monopólio do comércio colonial pela metrópole”6. E continua:

Curiosa inversão, essa forma de contar a história da América lusitana era assinada pelo príncipe herdeiro da Coroa portuguesa e redigida por um homem que vivera a maior parte da vida em Portugal, integrando a burocracia lusitana e dedicando todos seus esforços para salvar o Império português da decadência7.

O capítulo encerra-se com um boxe chamado “Os habitantes do novo Império”, que resumidamente se encarrega de explorar os aspectos mais gerais da sociedade imperial, em específico, uma rápida análise sobre escravos, índios e livres pobres.

O capítulo 2, “Uma nova nação, um novo Estado”, discute o processo de organização, construção, consolidação e expansão do novo Estado nacional. Aqui a autora explora os debates do período sobre a preocupação das elites provinciais sobre a possibilidade de fragmentação do território e as razões para a manutenção da unidade territorial. Uma das razões para a manutenção dessa unidade era justamente a peça fundamental da economia colonial: a escravidão. Havia um consenso dentro das elites políticas e econômicas no pós-Independência de que a manutenção da escravidão era essencial para o sucesso do projeto de nação que estava em andamento. Outra questão era sobre o modelo de Estado a ser adotado para a recém-emancipada nação. A opção pela monarquia constitucional foi o caminho mais seguro, pois “o regime prevalecente no mundo ocidental era o representativo”8 e significou o que Dolhnikoff chamou de “transição dentro da ordem”9.

No tópico “Assembleia Constituinte” são abordadas questões que gravitaram em torno do processo de organização do governo representativo como a adoção de um modelo federativo que atribuísse autonomia provincial sem desarticular as conexões e preponderância decisória do governo central. Outro tema debatido foi a questão da cidadania e da nacionalidade, além dos critérios eleitorais para a participação da vida política do Império. Cidadania, nacionalidade e a participação no sistema eleitoral eram, assim, espécies de crivos que definiam quem de fato seria considerado brasileiro. A autora traça a diferença fundamental entre cidadania e nacionalidade para evocar o peso que o uso desses termos pelos operadores das leis teve na exclusão de parcelas importantes da sociedade de direitos fundamentais.

Ao trabalhar o processo de montagem do sistema de representação política, Dolhnikoff detalha e analisa com bastante competência os entremeios da organização política do século XIX, esmiuçando o processo eleitoral e fazendo a diferenciação entre cidadania política, cidadania civil e cidadania escrava. Traça ainda a natureza dos cargos políticos e o processo de criação do Conselho de Estado.

Sobre as atribuições e medidas do parlamento, o capítulo analisa as leis criadas no contexto da organização das premissas legais do Estado, como a Lei de Responsabilidade e a lei que criava o Juizado de Paz, ambas em 1827; o Código Criminal de 1830 e a lei de 1828 que regulamentava o funcionamento das Câmaras Municipais.

O capítulo é concluído com o tópico “Oposição ao Imperador”, dando destaque aos acontecimentos que culminaram com sua abdicação ao trono, como as divergências com as elites provinciais, a questão do tráfico negreiro e a Guerra da Cisplatina, resultando em seu retorno a Portugal em abril de 1831.

Em “Os tumultuados anos da Regência”, os anos que se seguiram à abdicação de D. Pedro são caracterizados a partir da nova organização político-administrativa estabelecida pela série de governos provisórios. Ensejados pelas reformas liberais, que discutiram a autonomia provincial, estabeleceram-se na Regência a criação da Guarda Nacional e o Ato Adicional que, dentre outras coisas, estabelecia uma série de reformas na letra constitucional de 1824. No judiciário, a maior reforma foi o Código de Processo Criminal de 1832.

O período Regencial foi caracterizado também pelos levantes populares em várias províncias, para o que Dolhnikoff apresenta dois motivos principais: o monopólio português do pequeno comércio e a imposição do recrutamento forçado. A Balaiada, Cabanagem, Revolta dos Malês e Farroupilha são apresentadas em seus contextos gerais, motivações e conclusões.

Sobre as reformas legais, são colocadas em destaque a Reforma do Código de Processo Criminal de 1841 e a Interpretação do Ato Adicional, aprovada em 1840.

Explorando a questão da política partidária no período, Dolhnikoff estabelece uma ótima contextualização e caracterização dos partidos do século XIX, definindo as diferenças entre as organizações partidárias surgidas naquele contexto e as formas partidárias contemporâneas. As definições e análises lançadas sobre o tema são, inclusive, sensivelmente elaboradas e pouco vistas nas obras historiográficas atuais dedicadas a esse aspecto da organização político-administrativa imperial. Sobre os partidos políticos, em especial os partidos Conservador e Liberal, Dolhnikoff define:

Os partidos do século XIX não tinham as mesmas características que os partidos contemporâneos. Embora cada um dos dois estivesse organizado em todo país, não havia coesão interna, programas claramente definidos, filiações oficialmente formalizadas, enfim, não tinha a organicidade dos partidos atuais. Em cada província, tanto o partido Liberal como o partido Conservador adquiriam feições específicas relacionadas às particularidades locais. Não havia diferença de origem social entre as pessoas que compunham cada um dos partidos10.

Conclui o capítulo com os episódios que culminaram com a maioridade de D. Pedro de Alcântara e um boxe que explora a questão da expansão cafeeira.

A vida cultural brasileira no Oitocentos é explorada no capítulo “A invenção do Brasil: a vida cultural no Império”, abordando a vida cultural como parte do projeto de construção do Estado através da busca de uma identidade nacional. A fonte de análise desse aspecto da vida imperial brasileira é primordialmente a literatura, a poesia e a produção historiográfica e científica. A busca por essa nacionalidade foi feita através de movimentos literários como o romantismo e o indianismo e esteve permeada pela produção literária de Joaquim Manoel de Macedo e José de Alencar, cujo tema principal de seus escritos era a questão da escravidão.

A História como disciplina subsidiada com a criação do IHGB e o pioneirismo de Adolfo Varnhagen, a Geografia, a Etnologia e suas contribuições para a busca da identidade nacional brasileira, são temas ligeiramente investigados no capítulo. Estão presentes na análise também a questão do embate entre ciência e costumes, as práticas populares africanas, a atuação das irmandades e a renovação cultural experimentada a partir da década de 1870, com as contribuições de uma literatura menos romântica de Machado de Assis e o naturalismo-realismo de Aluísio Azevedo. Uma necessária discussão sobre a participação da imprensa na época e sua influência na opinião pública foi eleita para compor o boxe, fechando o capítulo.

“Conflitos e Negociação” discute as disputas entre grupos das elites provincial e o poder central durante o Segundo Reinado. Dolhnikoff traz a caracterização da monarquia constitucional e as especificidades do Brasil. As eleições e todo seu processo representava uma preocupação para os grupos das elites, uma vez que manter sua representação e não permitir a influência das “paixões populares” era objetivo primordial. Mais uma vez, Dolhnikoff explora as questões políticas com maestria, esmiuçando, analisando e trazendo dados para traçar perfil político do Brasil, agora na segunda metade do século XIX.

Para as elites políticas, a possibilidade da abertura à participação política das classes menos favorecidas era um temor a ser combatido, pois representava uma ameaça ao equilíbrio representado pela monarquia. Como ponto de apoio, D. Pedro II figurava como o árbitro das questões que norteavam o Legislativo por meio do poder moderador. O imperador, por sua vez, não exercia um poder centralizador ao extremo, precisando negociar as vagas para os ministérios com os partidos Liberal e Conservador.

Ao discutir cidadania e eleições, partidos e ministérios, a autora faz um passeio interessante e bem fundamentado sobre as questões que norteavam o processo eleitoral e a participação dos partidos na organização do sistema político brasileiro. Como característica do processo, vigoravam as fraudes eleitorais que geravam o clientelismo e ao mesmo tempo era alimentado por este. Dolhnikoff passa a traçar o perfil do eleitor da segunda metade do século XIX e o problema da participação social no processo, e como o judiciário e o legislativo limitavam o acesso de determinadas classes por meio da restrição do sentido do termo “cidadania”. Em meio a esse processo, desenrolava-se a alternância de poder entre os partidos, a atuação em conjunto de liberais e conservadores no Ministério da Conciliação em 1853 e o aparecimento da Liga Progressista.

Na última parte do capítulo, há uma apurada análise das leis eleitorais durante o Segundo Reinado e a interpretação de sua aplicabilidade pelos partidos, além das incompatibilidades dos projetos dos partidos diante da realidade palpável do Império. Discussão importantíssima e bem elaborada. Fechando o capítulo, há um resumido boxe sobre as revoltas no Segundo Reinado.

O capítulo 6, “O fim da escravidão”, busca as motivações que culminaram na Lei Áurea. Em primeiro plano, a influência e pressão inglesa, seus interesses e todo o processo, desde o Tratado de 1825, o Bill Aberdeen e o fim do tráfico negreiro em 1854. Prosseguindo a análise, relata os primeiros passos do movimento abolicionista e o processo de mudança de mentalidade da sociedade brasileira aliada ao processo de modernização, importantes para o fim da escravidão.

A decisão de uma libertação gradual através das leis e as discussões pró e contra o fim da escravidão contrastavam com a falha na aplicação das leis em uma sociedade cada vez mais preocupada com suas perdas econômicas. Todo esse processo levaria à radicalização do movimento abolicionista em sua luta por uma abolição imediata, a assinatura da Lei Áurea e um novo planejamento, agora em torno da mão de obra de imigrantes europeus, para a substituição dos escravos nos postos de trabalho. Os imigrantes, aliás, são o tema do boxe de encerramento do capítulo.

O penúltimo capítulo, “A monarquia e seus vizinhos”, trata da política externa brasileira como uma das estratégias de consolidação do Brasil como Estado Nacional e sua tentativa de atuação preponderante em relação aos países vizinhos da América Latina.

Os projetos nacionais incluíam as disputas por territórios e pela supremacia brasileira no continente por meio da Guerra da Cisplatina (1825-1828), a Guerra Grande (1839-1852) e a Guerra do Paraguai (1865-1870). A descrição dos fatos que narram as rivalidades entre os países envoltos nos conflitos, a visão diplomática do Brasil sobre os vizinhos e as dificuldades das guerras e suas consequências são o centro da discussão do capítulo. Para o boxe de encerramento, o tema eleito foi a política para o comércio externo.

No último capítulo, “Abaixo a monarquia, viva a República”, Dolhnikoff explora o contexto das décadas finais do século XIX, a crise da monarquia e a ascensão do modelo republicano. A autora apresenta a monarquia como um projeto da elite, símbolo de um projeto nacional benéfico até o momento em que as classes abastadas tinham seus objetivos atendidos e ganhos garantidos. Em um balanço geral da monarquia, resume:

A monarquia criou mecanismos de controle e legitimação, de modo que a sociedade profundamente hierarquizada, com formas de acesso a bens, participação, direitos e privilégios extremamente desiguais, com parte da população na condição de escravos, tivesse algum grau de coesão que permitisse sua transmudação em comunidade nacional. Assim, o regime monárquico mostrou-se eficaz como projeto da elite dirigente para preservar a ordem escravista, a desigualdade social e ao mesmo tempo, criar laços simbólicos e políticos entre os diversos setores sociais que garantissem certa estabilidade11.

A análise volta-se para os fatores que propiciaram a ampliação das ideias republicanas e o questionamento do modelo monárquico, como o crescimento do número de cidades. A urbanização crescente das décadas finais do século XIX não proporcionou uma superação da vida rural, mas trouxe em seu lastro um importante crescimento populacional e a diversificação das atividades desenvolvidas nas províncias mais importantes do Império. A diversificação profissional também proporcionou uma diversidade social que obrigava a coexistir em um mesmo espaço “escravos e livres […] negros, pardos e brancos, membros da elite, inclusive agrária, setores intermediários, livres e pobres habitavam as cidades”12.

A infraestrutura dessas cidades recebeu melhorias, em um processo de modernização do sistema de transporte e mobilidade urbana, com a chegada dos bondes na zona urbana e interligando localidades com as ferrovias; no sistema de iluminação com os lampiões a gás e eletricidade; o fornecimento de água por meio de canos e em domicílio; e a revolução do telégrafo, facilitando a comunicação entre várias cidades dentro do país e localidades no exterior.

Para Dolhnikoff, quanto mais se expandia as possibilidades oferecidas pela cidade, mais diversificava o perfil da população. Assim, como vitrine das mudanças que viam a monarquia como algo aquém da modernidade que se avizinhava, “a diversificação da população urbana, em todos os seus matizes, gerava novas visões, demandas e comportamentos em relação a questões fundamentais como a escravidão, o sistema representativo e a organização política”13.

Somava-se a essas transformações, a fundação do partido Republicano Paulista em 1873 e o descontentamento dos cafeicultores do Vale do Paraíba com a falta de políticas do governo para a expansão do produto mais importante da pauta de exportação do país. Os investimentos em outras províncias também desagradavam os cafeicultores paulistas, que consideravam São Paulo a província mais importante economicamente do Império. Conjeturou-se até em um movimento separatista de São Paulo que, no entanto, não teve tanta força. Então, uniu-se a insatisfação paulista ao movimento republicano que ganhou força a partir de 1870. O partido Liberal aderiu ao movimento no mesmo ano. Durante essa década e na seguinte, clubes republicanos e jornais ligados ao movimento multiplicaram-se. Encerrar a monarquia e instaurar uma república estava na ordem do dia. A partir de então, Miriam Dolhnikoff passa a analisar as estratégias pelas quais se pensou para instaurar a República. Uma delas, a corrente evolucionista, via no processo pacífico e gradual a melhor maneira para a mudança do sistema político, pois, a República:

Viria com o tempo, a partir de um programa reformista a ser encaminhado no Parlamento e por uma política de convencimento gradual dos vários setores sociais, que tornaria a transição pacífica porque desejada por todos. Uma transição dentro da ordem, sem convulsões sociais14.

Uma corrente minoritária, a revolucionária, via pela revolução e violência o método mais eficaz para a instauração do novo regime. Nesse clima de discussões sobre o futuro político do país, um novo elemento é agregado ao conjunto dos fatos. O exército, a partir da década de 1880, passou a buscar a concretização de seus objetivos corporativos, com militares concorrendo a cargos na Câmara dos Deputados e Senado.

Miriam Dolhnikoff faz uma eficiente e detalhada análise do conjunto de fatores que levaram os militares às esferas de poder político-administrativo e, consequentemente, a serem os responsáveis pela Proclamação da República. Com base na narrativa dos acontecimentos que culminaram no 15 de novembro de 1889, encerra o capítulo e suas análises sobre o fim do Império. Um mapa que acompanha o final do capítulo fica responsável por mostrar as mudanças nas unidades administrativas brasileiras ao longo do século XIX, obedecendo também à cronologia eleita pela autora para desenhar o quadro geral do período imperial brasileiro na qual se dedica a obra, ou seja, de 1822 a 1889.

  1. Temas em destaque

Ao fim de cada capítulo, a autora fez a opção por ilustrar subtemas relativos à discussão central por meio de boxes. Seis dos oito capítulos da obra seguem esse padrão de encerramento, exceto os capítulos 2 e 8. Boxes em geral são recursos largamente utilizados em livros didáticos e têm a função de comunicar e dar destaque a respeito de determinados aspectos paralelos ao tema central do capítulo. Dolhnikoff também elege temas transversais na utilização desse recurso, mas que auxiliam, de forma didática, a finalizar o tema proposto pelo capítulo. Os temas enquadram, por outro lado, discussões indispensáveis e recorrentes na historiografia sobre o período, como a sociedade, a economia, a imprensa, as revoltas populares, os imigrantes e o comércio exterior. Talvez tenham sido alternativas à ausência de notas de rodapé explicativas, inexistentes no texto ou por opção da autora ou pelo formato escolhido para o livro. Assim, questões que ficam em suspenso no corpo do texto principal ganham aí espaço e destaque, agregando uma discussão a mais ao tema central.

O primeiro boxe no capítulo 1 ganhou por título “Os habitantes do novo Império” e encarrega-se de discutir a formação da sociedade monárquica brasileira, dando destaque à contribuição dos escravos, homens livres pobres e indígenas. A autora traz informações sobre a função social/econômica de cada um desses estratos sociais, local de atuação/morada, ocupação e a especificação sobre como ou se as leis tratavam desses indivíduos. Ilustrado por uma iconografia de Johann Moritz Rugendas, de 1835, o boxe traz ainda perspectiva percentual desses grupos sociais no Brasil na primeira metade do século XIX.

No capítulo que explora os embates das Regências, ficou em destaque a questão da expansão cafeeira. Adiantado à discussão contida no capítulo sobre a escravidão, a autora enfatiza o crescimento da cultura do café em comparação ao plantio do açúcar e sua importância para a economia nacional. O café foi, dentre outras coisas, uma das razões para alavancar São Paulo como uma das províncias mais importantes do Império em meados do Oitocentos. A produção de café no Vale do Paraíba e em outras regiões da província ajudou a transformar não apenas São Paulo, mas o sudeste no novo eixo econômico do país. A construção de uma infraestrutura com estradas e ferrovias foi realizada quase que exclusivamente para atender a demanda dos cafezais. A questão da mecanização da lavoura e a consequente gênese de sua modernização tiveram como subsídio as necessidades dessa lavoura, em especial pelo fim do tráfico negreiro em 1850. O café não significou grandes mudanças na natureza econômica do Brasil, mas introduziu novos elementos na agricultura praticada no país.

Para ilustrar os principais fatores que contribuíram para a construção cultural do Brasil, o boxe “Imprensa e Opinião Pública” estabelece a imprensa como “uma importante forma de manifestação cultural e política ao longo da monarquia”15. Por ser um dos principais veículos de circulação de ideias, os jornais participavam ativamente dos acontecimentos, ajudando a “difundir cultura e discutir política”16. Não apenas os jornais, mas também revistas tinham o poder de formatar uma opinião pública e foram fundamentais em momentos importantes da história do país. Dolhnikoff define seus redatores a partir de suas ocupações: eram além de jornalistas, padres, romancistas, advogados.

A autora sinaliza uma informação importante: “a imprensa brasileira no século XIX teve seu conteúdo e formato vinculado às concepções políticas do liberalismo, no sentido de construir uma nova ordem que se distinguia em muitos aspectos do Antigo Regime”17. Certamente, ela se refere especificamente à imprensa atuando no pós-Independência. Os jornais ocupavam, por isso, um espaço precioso na vida da sociedade em geral. Era, dessa forma, “parte da constituição dos espaços públicos”18, formadores da opinião pública nacional.

Dito isso, Dolhnikoff parte para analisar a importância desses periódicos para os partidos políticos do período. Desse modo, enfatiza a questão da parcialidade jornalística, uma vez que cada partido possuía seus próprios periódicos, um grande contraste com a suposta imparcialidade do jornalismo na atualidade. Trazendo uma definição geral sobre o papel da imprensa, a autora enumera:

Os jornais eram meio de angariar apoios e expressar repúdios, além de fazer circular ideias e fatos políticos, atos e decisões governamentais. A função de jornais e a edição de panfletos, a publicação de artigos e a realização de debates, sob novo regime, integraram o cotidiano da nova nação.

Ilustrando o boxe com a imagem de Francisco de Paula Brito, editor do jornal O Homem de Cor, publicado em 1833, há o destaque para a imprensa voltada para as questões que norteavam a escravidão negra. Os escritores/editores negros não eram presença maciça nos periódicos que circulavam à época, mas o tema da escravidão, do preconceito e a situação dos negros no Brasil eram discutidos em jornais como O Brasileiro Pardo e O Crioulinho, que Dohnikoff define como “imprensa negra”.

A função de entretenimento da imprensa fica por conta da publicação de romances, folhetins e contos, assim como artes em forma de imagens e caricaturas que ilustraram desde um momento satírico a uma crítica política.

Para o capítulo “Conflitos e Negociação”, o boxe dedica-se a discutir as revoltas no Segundo Reinado. Aqui se desfaz a ideia de pacificidade do pós-período Regencial. O texto principal menciona como uma das principais revoltas do período a Praieira, fica a cargo do boxe evidenciar outras manifestações de bases populares que ocorreram nas províncias.

Entre elas, a revolta contra a Lei do Registro Civil, conhecida como Guerra dos Marimbondos, em Pernambuco, e Ronco da Abelha, na Paraíba, mas que atingiu também lugares como Alagoas, Sergipe e Ceará. Contra a alta dos preços de gêneros de subsistência, eclodiu ainda a revolta do Quebra-Quilos, que atingiu as províncias da Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Norte, de outubro de 1874 a fevereiro de 1875. Essas revoltas evidenciaram as tensões entre povo e Estado e mostraram um lado não tão pacífico do reinado de D. Pedro II.

“Imigrantes para substituir escravos na cafeicultura” retoma a discussão final do capítulo sobre o fim da escravidão e introduz um resumo sobre a mão de obra de emigrantes europeus no Brasil. O fim do tráfico negreiro em 1850, a insuficiência do tráfico interprovincial, a dificuldade de contar com a mão de obra de pobres livres e a mentalidade sobre o trabalho manual exigiam outra saída para a questão do trabalho nos cafezais.

Assim, partindo do princípio de que a lógica do trabalho assalariado não era a vigente/aceitável no Brasil naquele momento, os cafeicultores do Oeste Paulista fizeram vir imigrantes de vários países europeus para trabalhar sob um sistema de contrato. Para tanto, eram oferecidos aos imigrantes como uma forma de atrativo, “50% dos lucros obtidos com a venda do café produzido por ele”19 e empréstimos para pagar despesas da viagem e demais gastos. Dolhnikoff registra o fracasso da iniciativa nas primeiras tentativas. A impossibilidade de cumprimento imediato do contrato e o tempo de espera entre o plantio e o lucro geravam prejuízos aos imigrantes, provando a ineficácia daquele empreendimento.

Na década de 1880, o financiamento da imigração pelo Estado foi a saída para o logro da iniciativa, responsável, dessa vez, pela chegada de milhares de imigrantes, em grande parte de origem italiana, para trabalhar nos cafezais do Vale do Paraíba.

No último boxe, Miriam Dolhnikoff ocupa-se da política para o comércio externo como encerramento das discussões do capítulo “A Monarquia e seus vizinhos”. Está em destaque aqui os tratados comerciais feitos entre o Brasil e Inglaterra, principal fornecedora de gêneros manufaturados, grande interlocutora diplomática e enfaticamente interessada no mercado consumidor brasileiro. A autora concentra-se na gradual mudança de postura do Brasil em relação às imposições diplomático-comerciais dos ingleses, além das desvantagens na assinatura dos acordos para o Brasil. Enfrentar a hegemonia britânica através da não renovação de tratados e o questionamento do valor das taxas de importação foi uma das maneiras do governo brasileiro sublinhar a soberania nacional. Dentre as medidas protecionistas, o boxe dá destaque à Tarifa Alves Branco, mecanismo utilizado até o final da monarquia para proteger a economia nacional.

  1. Considerações finais

História do Brasil Império é uma obra bem elaborada que cumpre com os objetivos da coleção a qual faz parte. Miriam Dolhnikoff usa de sua experiência e conhecimento para compor uma narrativa acessível e bem elaborada. Os temas que enquadram os capítulos são facilmente identificados por um público leitor leigo ou mesmo para um público mais especializado. Transitar entre os dois universos sem parecer aquém ou além para ambos os leitores pode ser considerada uma tarefa complexa, mas que é bem alcançada pela obra. Considerando que vigora na academia, e para parte considerável dos historiadores, a feitura de uma produção que na maioria dos casos é pouco acessível às mentes não especializadas em análises historiográficas, a obra de Dolhnikoff mostra exatamente o contrário. Dialogar com um público geral e não restrito significa transpor os muros, os preconceitos e as limitações do universo acadêmico. História do Brasil Império tanto pode ser adotada por um professor do ensino superior para discutir questões pontuais sobre o período com seus alunos, como pode ser um excelente auxiliar de um professor do ensino básico interessado em levantar debates para além do conteúdo dos livros didáticos.

Nesse sentido, como historiadora, Miriam Dolhnikoff cumpre uma função social importante ao tornar acessível à sociedade em geral um conhecimento que a ela pertence e que não pode ficar restrito aos muros da universidade. Mais que isso, a obra em questão ensina ultrapassando os limites da simples descrição dos fatos, ainda presente de forma tão insistente nos livros didáticos. A autora narra, analisando os acontecimentos; não se prende a cronologias, mas as utiliza nos momentos necessários e em favor da análise; mostra novos ângulos de temas já cristalizados pela historiografia tradicional, insere as fontes, enriquece o debate. Tudo isso permeado por uma linguagem fácil e bem elaborada.

Sem notas americanas, notas de rodapé explicativas, referências às fontes ou longas teorizações, Dolhnikoff permite o texto fluir, sem abrir mão da objetividade da análise. As fontes, bem escolhidas, variadas e inseridas em momentos pontuais, funcionam como aprofundamento das análises. Assim, uma obra com um viés mais didático, não abre mão das características de uma boa produção historiográfica e apresenta esse importante período da história brasileira com competência.

Notas

  1. DOLHNIKOFF, Miriam. História do Brasil Império. São Paulo: Contexto, 2017. p. 09.
  2. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 16.
  3. Ibid, p. 17.
  4. Ibid., p. 28.
  5. Ibid, p. 27.
  6. Idem.
  7. Ibid, p. 33.
  8. Ibid.
  9. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 65.
  10. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 153-154.
  11. Ibid., p. 155.
  12. Ibid., p. 156.
  13. Ibid., p. 164.
  14. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 83.
  15. Ibid.
  16. Ibid.
  17. Ibid.
  18. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 130.

Edyene Moraes dos Santos – Universidade Federal do Maranhão. Doutoranda UNESP-Assis. São Luís, Maranhão, Brasil. E-mail: [email protected].


DOLHNIKOFF, Miriam. História do Brasil Império. São Paulo: Contexto, 2017. Resenha de: SANTOS, Edyene Moraes dos. Sobre “História do Brasil Império” de Miriam Dolhnikoff: análise e considerações. Outros Tempos, São Luís, v.16, n.27, p.342-357, 2019. Acessar publicação original. [IF].

A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito / Marco Morel

Fruto de mais de quinze anos de pesquisa, o novo livro de Marco Morel busca tratar das repercussões da Revolução do Haiti no Império do Brasil. Com as lentes voltadas aos setores livres, e não aos escravizados da sociedade brasileira, Morel demonstra aos leitores que em pleno Brasil escravista também floresceram visões positivas ou, ao menos, não completamente negativas acerca dos eventos ocorridos na antiga colônia francesa. Para tanto, o historiador postula a existência de um “modelo de repercussões não hostis”, composto de quatro elementos: “soberania nacional”, “soberania popular”, “antirracismo” e “crítica à escravidão”.

O estudo cobre o intervalo de 1791 a 1840, dividido em dois momentos. O primeiro inicia-se em 1791, isto é, com o começo da revolução escrava em Saint-Domingue, e finaliza-se em 1825, ano considerado por Morel como o marco final do processo revolucionário, pois foi quando a França reconheceu a independência do Haiti. Já o segundo percorre o intervalo c.1800-c.1840 e refere-se especificamente à formação e consolidação do Estado nacional brasileiro. No que diz respeito às fontes, o autor valeu-se de uma gama variada: documentação oficial, folhetos, periódicos e livros brasileiros, franceses e haitianos escritos e publicados coetaneamente ao período analisado.

O livro é dividido em três partes bem delimitadas. Na primeira, o historiador traça um balanço dos eventos que tomaram a ilha de São Domingos em 1791, destaca os principais personagens e suas ações, mas igualmente os conflitos internos entre os revolucionários, oferecendo ainda um levantamento resumido das cinco primeiras constituições haitianas (elaboradas entre 1801 e 1816) que, apesar de suas diferenças, tinham em comum o “repúdio à escravidão […] a defesa da propriedade e da agricultura”. O enorme esforço de síntese dessa parte originou-se da preocupação específica em situar o leitor não especializado no tema, fornecendo-lhe as balizas referenciais para a compreensão do restante do livro, onde, efetivamente, cumpre-se o objetivo anunciado da obra.

Na segunda parte, “Entre batinas e revoluções”, Marco Morel apresenta então as reflexões de Raynal, Grégoire e De Pradt, três abades franceses, que viveram a Revolução em seu país e acompanharam cuidadosamente os eventos em São Domingos. Antes mesmo da insurreição dos escravos, Raynal sugeriu que um Spartacus negro poderia levantar-se na massa dos escravizados (Toussaint L’Ouverture, um dos líderes icônicos da Revolução do Haiti, chegou a declarar que era essa personagem). Gregóire, o mais radical entre eles, figura atuante na Revolução Francesa, apoiou abertamente o movimento dos cativos e reconheceu publicamente a independência do Haiti antes mesmo do Estado francês. Para o último, se a escravidão fosse a termo, o processo não deveria ser controlado pelos escravos. As ações que culminaram na criação do Haiti foram vistas por De Pradt como um “não-exemplo”. Não à toa ele foi o mais conhecido entre os historiadores do Brasil oitocentista. Embora houvesse diferenças marcantes entre eles, o que os ligava era tanto a percepção de que a escravidão “caminhava inexoravelmente para a extinção” quanto o fato de participarem “da fundação de linhas interpretativas” sobre a Revolução do Haiti. Suas formulações chegaram aos mais diversos quadrantes, pois “havia um campo político e intelectual com áreas de interseção de ambos os lados do Atlântico”, que contribuiu para que alguns clérigos brasileiros concebessem interpretações sobre os eventos haitianos.

O relacionamento das “experiências históricas tão disparares como a unitária monarquia escravista brasileira e a república construída por ex-escravos” efetiva-se no campo da história das ideias. Ao analisar as manifestações de cinco clérigos brasileiros, elaboradas nas três primeiras décadas dos oitocentos, Morel constatou notável semelhança entre elas e os trabalhos de Grégoire, isto é, havia a condenação da escravidão e o apoio à revolução escrava em curso, na medida em que ela destruía a dominação senhorial. Os religiosos também se posicionavam contra as diferenciações raciais que a instituição originava; no entanto, não se perfilhavam ao abolicionismo ou muito menos à violência da prática revolucionária cativa tal como ocorreu em Saint-Domingue. No “modelo de repercussões”, claro está, esse grupo manifestou a crítica da escravidão e o sentimento antirracista. Entre os casos, vale citar o do monsenhor Miranda, sem dúvida, o mais emblemático. O clérigo manteve correspondências tanto com De Pradt como com Grégoire. Em 1816, Grégoire chegou a enviar a Miranda, por intermédio de Joachim Le Breton, chefe da Missão Artística Francesa, livros de sua autoria que continham claro apoio à Revolução Haitiana e recebeu na França publicações do monsenhor Miranda. Essa troca de cartas, nas palavras de Morel, demonstrava que “os caminhos da Revolução do Haiti no Brasil poderiam ser intermediados, sinuosos e surpreendentes”.

É na terceira parte do livro que o historiador apresenta as demais faces do “modelo de repercussões” dos eventos de Saint-Domingue em terras brasileiras. A Revolução do Haiti, ao conquistar a segunda independência do jugo colonial na América, foi valorizada enquanto exemplo de soberania nacional. Por esta razão, chegou a aparecer como recurso discursivo nas falas dos deputados brasileiros tanto nas Cortes de Lisboa (1821-1822) quanto nas primeiras legislaturas nacionais. Na mesma senda, a experiência da independência haitiana foi louvada nas páginas do Correio Braziliense, da Gazeta do Rio de Janeiro e do Reverbero Constitucional Fluminense, periódicos de orientações políticas diversas. Se a independência era elogiada, consoante ao momento político de separação com Portugal que o Brasil vivia, a abolição da escravidão não recebia a mesma apreciação dos contemporâneos e, na maior parte das vezes, sequer era discutida.

Esse ímpeto coube a uma figura pouco conhecida na historiografia: Emiliano Mundurucu, pardo, republicano, antiescravista e comandante do Batalhão dos Pardos. A ele é atribuída a autoria das quadras cantadas nas ruas de Recife, em 22 de junho de 1824, que evocavam a figura de um heroico Henri Christophe e conclamava a população na defesa da Confederação do Equador e na luta contra o branco opressor. A tentativa de levante, que previa a participação dos setores subalternos não-escravizados, malogrou, mas representou, segundo Morel, uma genuína repercussão do caráter da soberania popular presente entre os rebeldes de São Domingos.

Assim concebido e estruturado, é possível afirmar que o livro foge às linhas gerais da historiografia sobre o tema, que, ao tratar das repercussões do fim da escravidão e da formação do Haiti independente no Império do Brasil, sempre salientou o receio contemporâneo a respeito do haitianismo, isto é, de que uma ação escrava tão intensa quanto aquela ocorrida no Caribe francês se reproduzisse nos trópicos. [2] O trabalho de Marco Morel, portanto, inova e avança consideravelmente na compreensão do objeto, demonstrando a sua complexidade. Assim, “o que não deve ser dito”, subtítulo do livro, é aquilo que foi historicamente silenciado na sociedade brasileira. [3]

No entanto, nesse caso em específico, para que se possa adequadamente compreender o não dito é necessário atentar ao seu inter-relacionamento com as forças políticas, sociais e econômicas que construíram o Estado imperial brasileiro. O enorme esforço em lançar luz sobre as percepções positivas acerca dos eventos haitianos fez com que o autor deixasse na obscuridade as condições materiais mais amplas nas quais essas percepções erigiram-se. O Estado brasileiro formou-se na primeira metade do século XIX em inter-relação estreita com os interesses agrário-escravistas que, notadamente no Centro-Sul do Império, a partir dos complexos cafeicultores com ampla utilização do braço escravo, agigantaram-se em importância justamente devido ao vácuo produtivo aberto no mercado mundial de café na esteira da ação dos escravos de Saint-Domingue. [4] A par dessas condições materiais que ligaram Brasil e Haiti no alvorecer do século XIX, é possível compreender os motivos pelos quais as visões positivas sobre a Revolução Haitiana, mesmo aquelas que evocavam a soberania nacional, terem sido elididas na história e, posteriormente, na historiografia: assimilá-las organicamente poderia implicar na contestação sistêmica ou mesmo na erosão da ordem escravista que começava a se fundar em bases nacionais.

Notas

  1. Veja-se, dentre outros: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; SOARES, Carlos Eugênio; GOMES, Flávio. Sedições, haitianismo e conexões no Brasil e escravista: outras margens do Atlântico negro. Novos Estudos, n. 63, p.131-144, 2002; MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972. O haitianismo também foi utilizado como recurso retórico nos debates travados na imprensa brasileira entre os grupos políticos adversários nos anos da Regência. Cf. EL YOUSSEF, Alain. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). São Paulo: Intermeios, 2016, p.144-150 e p.173-177.
  2. Nesse sentido, valem as reflexões de Michel-Rolph Trouillot, uma inspiração imediata para o livro de Morel: An Unthinkable History: The Haitian Revolution as a Non-event. In: TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: power and the production of history. Boston: Beacon Press, 1995. p.70-107.
  3. Sobre a mútua formação do Estado nacional brasileiro e da classe senhorial escravista: MATOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 1987. Sobre as possibilidades abertas no mercado mundial do café em virtude da revolução dos escravos: MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil Imperial, v. 2: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p.339-383. Nos anos subsequentes (1823-1839) o volume da produção cafeeira do Brasil era tamanho que foi capaz de criar uma baixa internacional nos preços da rubiácea, popularizando em demasia seu consumo, sobretudo no mercado norte-americano, de longe, o principal comprador do café brasileiro. Cf. PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1781-1846. 2015. Tese (Doutorado em História Social)- Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. p. 323-327.

Bruno da Fonseca Miranda – Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, SP, Brasil. [email protected].


MOREL, Marco. A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.Resenha de: MIRANDA, Bruno da Fonseca. Os ecos elididos da Revolução do Haiti no Brasil. Outros Tempos, São Luís, v.16, n.27, p.358-361, 2019. Acessar publicação original. [IF].

As faces de John Dube: memória, história e nação na África do Sul / Antonio E. A. Barros

A reconstituição progressiva das diferentes estratégias, tramas de competição política e batalhas pela memória da nação sul-africana contemporânea constituídas em torno do legado e da biografia de uma de suas figuras centrais, John Langalibalele Mafukuzela Dube (1871-1946), constituem o objeto principal do mais recente livro do historiador maranhense Antônio Evaldo Almeida Barros. Resultante de sua tese de doutorado, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, em 2012, sob orientação de Lívio Sansone, o livro constitui um convite etnográfico, interdisciplinar e bem documentado para acompanhar o autor na aventura da exploração das artimanhas da nação e da memória no contexto sul-africano, explorando o contínuo, complexo e multifacetado processo de reconstrução biográfica d’As Faces de John Dube.

Por oportuno, tendo em vista o próprio objeto analisado na obra, talvez fosse interessante tecer algumas breves considerações sobre o autor, assim se tornará mais compreensível o esforço intelectual realizado e algumas de suas bases epistemológicas. Podemos começar então pelo denso investimento realizado anteriormente por Antonio Evaldo para a reconstituição de uma história social da cultura popular maranhense na contemporaneidade, cujos resultados só parcialmente começam a ser divulgados2. Desde esse momento, parece-me, os meandros da nação, cultura, memória e identidade constituem eixos centrais de discussão que se prolongam no trabalho ora resenhado. Da mesma forma, do ponto de vista metodológico, percebe-se n’As Faces de John Dube a mesma paixão pela imersão no campo arquivístico, porém, com uma exposição muito mais arguta e envolvente a respeito do processo de construção da pesquisa, com um enredo que nos convida a acompanhar a construção da obra em processo e, paralelamente, do próprio Dube em movimento. Para um observador próximo, torna-se claro também a inscrição dessa pesquisa em um programa de investigação promovido por jovens pesquisadores do Maranhão, que tem como meta incorporar o continente africano em uma pauta de investigações comparativas, constituída em torno de afinidades temáticas e problemas conceituais, e radicada nas redes de discussão epistemológica do eixo sul-sul3.

Com efeito, recorrendo a textos e narrativas desse intelectual sul-africano reconhecido, passando por biografias, artigos, ensaios e livros de natureza diversa sobre Mafukuzela distribuídos por diversos arquivos, e atravessando diferentes configurações temporais, Antônio Evaldo nos convida, então, a uma densa e multissituada exploração das modalidades de gestão coletiva, enquadramento institucional e lutas de memória em torno de Dube. E aqui se encontra, para o parecerista, o aspecto mais interessante da obra, posto que o que se coloca sob análise não é propriamente o sujeito empírico, mas o problema das formas de autoinscrição simbólica e política dessa figura central da narrativa sul-africana em diferentes configurações. São, portanto, as modalidades de patrimonialização da cultura e suas distintas concepções de história, desenvolvimento, raça e cultura que entram em pauta.

Evidentemente, a escolha temática e a pluralidade de fontes e materiais de caráter crítico ou laudatório sobre John Dube têm como suporte a pluralidade de papéis e cargos por ele exercidos e as sucessivas tomadas de posição que adotou no espaço público. Assim, como bem demonstra o autor, em que pese a variedade de visões construídas por biógrafos, documentaristas e comentadores, há relativo consenso de que não se trata de um indivíduo ordinário ou socialmente insignificante, o que ajuda a compreender a profusão de dispositivos empregados para produzir, atualizar ou questionar o legado desse personagem4. Porém, se essas realizações são bem conhecidas por aqueles que têm se interessado por sua vida e obra, é também significativo observar que os discursos e práticas atribuídos a Dube não costumam ser trazidos à tona de modo despropositado; a eles são destinadas ênfases e interpretações de natureza política, acadêmica ou artística, situadas no contexto social e histórico de seus produtores, numa cadeia de interpretações que envolve, além de Dube, homens e mulheres que com ele conviveram ou que, posteriormente, o tomaram como objeto de suas narrativas.

Para recobrar o processo complexo de utilização de Mafukuzela como objeto de diferentes estratégias e tramas de competição política e batalhas pela memória da nação, Antônio Evaldo tenta reconstituir esse trabalho de muitas mãos em três recortes. No primeiro capítulo, intilulado John Dube no seu próprio tempo, o autor narra alguns momentos da vida de John Dube explorando os seus discursos distribuídos por ensaios, livros e outras formas de intervenção social escrita. Neste caso, interessa ao autor descrever simultaneamente o contexto sócio-político e o itinerário de vida de John Dube, ao passo em que são exploradas as suas interpretações sobre a realidade e as narrativas e imagens que projetou sobre si. A hipótese de fundo é que a extraordinariedade do seu trajeto, situado nas fronteiras entre a sua cultura de origem e as fontes da cultura dominante, e o seu esforço por encontrar um sentido e posição no mundo dentro do conjunto de injunções contraditórias aos quais foi submetido delimitam e influem sobre as operações posteriores de revisão do seu legado.

A partir de então a análise descola-se propriamente do indivíduo para nos situar nas grandes tendências interpretativas que, desde o final do século XIX até o início do século XXI, tomam John Dube como objeto ou sujeito de interesse. É assim que, em Dube rememorado em tempos e espaços da África dos Sul segregada (capítulo 2), o autor passa a explorar aqueles que tendem a identificar Mafukuzela como colaborador direto ou indireto do processo de implementação do regime segregacionista sul-africano. A despeito de que essa representação da vida de Dube posa ser encontrada em diferentes momentos e contextos da história da África do Sul contemporânea, fato é que ela se torna claramente dominante nos anos do Apartheid, particularmente entre as décadas de 1940 e 1970. A tônica das publicações diversas que analisou – e com maior detalhe, dois ensaios biográficos e uma biografia – é aquela na qual Dube pode ser visto como fantoche dos brancos, incentivador da solidariedade racial, numa expressão, promotor do apartheid. Em suma, John Dube seria o retrato de como ser fraco e ambíguo diante das forças sociais, políticas e econômicas da história sul-africana, e da luta contra a opressão social e racial.

De outro lado, há aqueles que posicionam John Dube como personagem central das lutas históricas contra a segregação racial, inscrevendo-o, como ocorre atualmente, como uma espécie de herói sul-africano. Também neste caso podem-se observar registros desta tendência em diferentes décadas e situações, como nas representações sobre Dube produzidas por sua família e grupo social nos anos 1970 no âmbito dos izibongos5 que lhe foram dedicados, analisados no final do segundo capítulo. Mas este padrão interpretativo tornar-se-ia claramente dominante na África do Sul pós-Apartheid, particularmente no contexto de invenção da África do Sul como Rainbown Nation.

São justamente esses usos e abusos de John Dube que o autor analisa no terceiro capítulo: John Dube em tempos e espaços da nação arco-íris. Porém, antes de destacarmos o foco do capítulo, interessa enfatizar a digressão feita pelo autor no início dessa última parte do livro, quando somos surpreendidos com uma nova e bem-humorada exploração de sua experiência etnográfica, destacando não apenas as suas percepções subjetivas a respeito das diferenças entre África e Brasil, como também o complexo jogo de permanências e mudanças no jogo de classificações e etiquetagens naquele espaço simbólico. É que o tópico permite ver com clareza que o foco principal da obra não se situa exatamente nas situações e experiências múltiplas, desiguais e diferentes dos sujeitos concretos, mas nas condições sociais de formatação, enquadramento e reconhecimento público de determinadas narrativas e categorias de classificação da realidade.

Em museus e monumentos, nos meios acadêmicos, celebrações e homenagens, na imprensa ou em meios digitais, o autor vai explorando como vai sendo esculpida simbolicamente e objetivado o discurso da Rainbow Nation ao passo em que Dube é reabilitado como sujeito absolutamente envolvido nas lutas pela liberdade, opositor inteligente de ações e movimentos que visavam instituir o Apartheid. Conectada à instalação dessa ruptura, a vida de Mafukuzela passa a ser tomada como exemplo de que nas origens da nação sul-africana moderna haveria formas claras de relações raciais harmônicas entre brancos e negros. John Dube seria, portanto, o retrato de como ser forte diante das forças sociais, políticas e econômicas da história e na luta contra a opressão social e racial; um exemplo heróico para ser seguido numa África do Sul que se pretende como nação caracterizada pela diversidade cultural e étnica.

A guisa de conclusão, gostaria de destacar um último aspecto da obra que retoma os argumentos da conclusão apresentada pelo autor. Ele diz respeito ao valor pedagógico de uma abordagem que tem clareza com relação ao foco principal do trabalho. Sem prender-se a uma visão encantada e celebratória a respeito da construção da Rainbow Nation, e mobilizando uma pluralidade de fontes com precauções teóricas, o livro consegue, antes de qualquer coisa, demonstrar as múltiplas tensões, simbólicas e sociais, por meio das quais a nação é fabricada e representada na contemporaneidade. Porém, a apreensão desse processo de produção da realidade oficial e pública, objeto do trabalho, não faz com que o autor deixe de ponderar o fato de que os processos de visibilização e consagração de determinados patrimônios e atores sociais, como John Dube, recobrem diferentes formas de silenciamento e, por vezes, fazem esquecer realidades não ditas e percebidas nessas narrativas, o que pode se desdobrar ainda em um novo e instigante programa de investigações.

Notas

  1. Consultar, por exemplo: BARROS, Antonio Evaldo A. Invocando deuses no templo ateniense: (re)inventando tradições e identidades no Maranhão. Outros Tempos, São Luís, v.3, p. 156-182, 2006. Id. O pantheon encantado: culturas e heranças étnicas na formação da identidade maranhense. 2007. 319 p. Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) – IFCH, PÓS-AFRO, CEAO, Salvador: UFBA, 2007.
  2. Desse ângulo, inclusive, este livro pode ser lido como um dos mais belos e pedagógicos exemplares de uma agenda de pesquisas coletivas levada a cabo no bojo do Núcleo de Estudos África e Sul Global (NeÁfrica) – grupo vinculado à Universidade Federal do Maranhão e Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) – o qual tem se traduzido em diferentes publicações, eventos e irrigado diversos projetos de investigação.
  3. Neste caso, valeria muito à pena atentar para a sugestão de um programa de pesquisas realizada por Livio Sansone no prefácio do livro, quando assinala que “Dube não é somente importante, mas é também exemplar para o estudo das biografias dos pais da pátria que foram a expressão de vários outros países africanos” (p. 15).
  4. Izibongo refere-se a louvores entoados em honra de uma pessoa, trata-se de um gênero de louvor poético, de poesia oral, comum entre os zulus, uma espécie de poesia ou louvor com características metafóricas, laudatórias, elogiosas e no qual se narram feitos históricos de uma pessoa que já morreu, sobretudo reis e aqueles que são heroificados. Imbongi é a pessoa especializada em proferir o izibongo.

Wheriston Silva Neris – Doutor em Sociologia. Professor do Campus III -UFMA e docente permanente do PPGHIST/UEMA. E-mail: [email protected].


BARROS, Antonio Evaldo Almeida. As faces de John Dube: memória, história e nação na África do Sul. Curitiba, PR: CRV, 2016. Resenha de: NERIS, Wheriston Silva. As tramas da patrimonialização da cultura: histórias, memórias e narrativas de/sobre John Dube na Rainbow Nation. Outros Tempos, São Luís, v.15, n.25, p.192-196, 2018. Acessar publicação original. [IF].

Democracia e estado de exceção: transição e memória política no Brasil e na África do Sul / Edson Teles

Democracia e Estado de Exceção, livro escrito por Edson Teles, trata da questão do papel da memória, no Brasil e na África do Sul. Seus usos e abusos na assunção das novas democracias no Hemisfério Sul, ante a herança autoritária da ditadura militar brasileira e do apartheid sul-africano. Em específico, a obra discute como esse passado, em tempos democráticos, interfere nas ações políticas do presente e na consolidação dos novos contratos sociais, sob a tensão entre a lembrança e o esquecimento dos tempos de exceção.

A publicação é fruto da tese de doutoramento intitulada: Brasil e África do Sul: paradoxos da democracia, defendida no ano de 2007 pela Universidade de São Paulo. Além disso, é resultado de anos de militância política e engajamento por parte do autor nas questões que envolvem os direitos humanos. A obra sedimenta suas reflexões no campo da filosofia política. Assim, constitui-se como um dos pontos chaves para o entendimento da abordagem do autor, a relação paradoxal entre a certeza do discurso e a insegurança da ação.

Nesse sentido, Democracia e Estado de Exceção, em comparação com outras obras do campo da filosofia, foge de uma perspectiva clássica. O livro não somente investe na densidade do debate filosófico que envolve noções e conceitos de memória, democracia, perdão e ressentimento, mas, por outro lado, busca o entendimento de como essas noções e conceitos foram articulados em realidades históricas específicas – Brasil e África do Sul – através da relação dialética entre lembrança e esquecimento.

De maneira geral, ao autor interessa como o debate filosófico interfere e constrói novos sentidos à esfera pública, ou como, em momentos de transição política, criam-se condições e possibilidades para o forjamento de novas formas de sociabilidade. As novas democracias teriam a difícil missão de criar um novo cenário de reconciliação com o passado, (re)construção do presente e projeção de um futuro para brasileiros e sul-africanos.

Os anos de chumbo da ditadura civil-militar no Brasil e o apartheid na África do Sul violaram o sentido democrático na medida em que a violência fez parte de maneira autorizada na esfera pública. Por consequência, a democracia foi encoberta pela exceção através dos crimes cometidos contra a humanidade: tortura, desaparecimento, assassinato e prisão daqueles que lutaram contra o regime. De certa forma, ambos os países experienciaram a produção da violência como uma política de Estado em tempos de exceção. Portanto, configuram-se como sociedades marcadas pelo ressentimento e trauma.

Em contextos como o de transição, os crimes ditos públicos, tais como casos de corrupção e violações à humanidade, passam a ter cada vez mais visibilidade. O filósofo propõe refletir a questão a partir das novas jurisprudências que foram criadas com o objetivo de julgar tais crimes, como: A Comissão Sul-Africana de Verdade e Reconciliação. Por outro lado, os períodos de transição e assunção de novos modelos políticos que confrontam os regimes de exceção enfrentam um grande dilema no reestabelecimento dos novos contratos sociais: punir ou anistiar; punir ou perdoar?

Para melhor compreender as especificidades de cada caso, Teles recorre ao método comparativo. As novas democracias – brasileira e sul-africana – tiveram que lidar, cada qual à sua maneira, com o passado dos regimes de exceção. Para tanto, o autor compreende que a memória desempenha um papel importante no acesso ao passado – seja enquanto esquecimento através do silêncio, seja enquanto lembrança – com a possibilidade de publicização dos traumas do passado em esfera pública.

A obra está disposta em cinco capítulos, dos quais o primeiro versa sobre as problemáticas da memória. Apesar de possuir um capítulo em específico, as reflexões acerca do papel da memória nas novas democracias são norteadoras para o desenvolvimento e considerações do autor ao longo dos outros quatro capítulos. Teles propõe iniciar suas reflexões a respeito do papel da memória questionando o que se lembra, e quem lembra. O investimento no conteúdo e agente da ação expõe as complexidades do acesso à memória.

Em suas considerações iniciais o autor rejeita a tese de que a memória seja um dado natural. O filósofo compreende que conteúdo e agente podem ser um importante indicativo para o entendimento das ações de recordação, tendo em vista que a coisa lembrada (conteúdo) projeta-se sobre o sujeito que realiza a recordação (agente). Teles pondera que, no campo social, o acesso ao passado através das ações de recordação torna-se mais complexo, pois o discurso dirigido por terceiros – Estado, partidos políticos e ONGs – reconfigura não somente a mensagem (conteúdo), mas o acesso à recordação (agentes e receptores). Para Teles, tais reconfigurações pelas quais passa a memória no campo social, ou as ações de recordação que envolvem conteúdo e agentes possibilitam compreender dois campos de abordagem.

O primeiro diz respeito à participação dos sujeitos nas ações de recordação de forma plural e subjetiva; já o segundo tem por finalidade tratar de forma objetiva e duradoura os elementos do passado. Nesse sentido, o autor considera que na esfera pública – no discurso proferido pelo Estado, partidos políticos e outras entidades – seja impossível compreender as ações de recordação, eu e nós, subjetividade e objetividade de forma distinta. Por consequência, a memória política seria esse espaço de análise das incongruências e conjunções entre o esquecimento e lembrança, singular e plural, subjetivo e objetivo.

Em diálogo com o historiador Peter Burke1, o autor expõe os conflitos e complementaridades da memória objetivada nas placas, monumentos e nos novos nomes das ruas com a subjetividade da memória dos moradores da cidade de Sófia. Teles considera que nos entulhos da objetividade da memória das datas, nomes e livros existem pontos mnemônicos subjetivos pouco acessíveis que fogem da homogeneidade imagética que as sociedades fazem de si mesmas. As memórias dos regimes autoritários seriam momentos de rupturas e de conflitos entre as ações objetivas e a pouca visibilidade às ações de recordações subjetivas.

Apesar do livro não investir em uma divisão em partes ou seções, consigo observar dois eixos centrais a partir do segundo capítulo. Estes configuram-se, também, como eixos espaciais, um estudo de caso do fim dos regimes autoritários e os processos de transição e consolidação das democracias no Brasil e na África do Sul. Esses dois eixos, por assim dizer, articulam as reflexões propostas por Teles. As experiências brasileira e sul-africana vivenciaram o signo da violência, mas lidaram com a memória de maneira distinta. Apesar de certas aproximações, Brasil e África do Sul, parecem divergir nos caminhos percorridos e pelo modo como reconstruíram suas democracias entre o final dos anos 80 e o início dos anos 90.

Nos capítulos dois e três, o autor se preocupa com o caso brasileiro, mais precisamente, com o processo de transição política negociada entre os representantes da classe política que acabou por negligenciar o povo da esfera pública. Nesse sentido, creio que a experiência brasileira consagra as políticas de silêncio. O consenso, ou memória consensual – no período de transição – produziu silêncios a respeito dos crimes cometidos durante a ditadura militar. Para o autor, a memória objetiva do período limitou-se a datas, comemorações e placas alusivas ao fim do regime. Por outro lado, a impossibilidade do aparecimento de outras narrativas, que pudessem traduzir a subjetividade das experiências traumáticas na dimensão pública, silenciou vários indivíduos produzindo um vácuo entre passado e presente. Em alguns casos, sem a possibilidade de falar, esses mesmos indivíduos optam pelo silêncio reduzindo sua publicidade ao campo privado.

A transição brasileira negligenciou a memória política, ou seja, a nova dimensão pública limitou a presença plural do passado no presente. No capítulo Lembrar e Esquecer, Teles classifica três tipos de memória do período de transição. São elas: a memória dos militares, a memória das vítimas e, por fim, a memória do consenso. Em síntese, a memória dos militares seria a da vitória contra os subversivos, a famigerada ameaça comunista. Em contraste com a versão anterior, a memória das vítimas defende a investigação e punição a todos os culpados pelos crimes cometidos no período da ditadura militar. O esquecimento e passividade estatal perante as denúncias criaram uma zona de inconformismo por parte desses movimentos. E, por fim, a memória do consenso busca uma posição central entre as duas memórias. Sendo assim, esta memória irá expor de forma limitada sua visão sobre os crimes do passado e, em contrapartida, será simpática ao novo governo civil com o fim da ditadura.

Analisando o consenso, enquanto marca da transição brasileira, acredito que seu entendimento cruze as considerações do autor a respeito do conceito de democracia. Para Teles, o processo de transição de forma lenta e gradual ao qual se propôs o acordo entre os militares, lideranças políticas, latifundiários e empresários constituiu-se como uma democracia relativa ou incompleta. O filósofo questiona a eficácia da nova roupagem institucional – assembleias, eleições e direitos individuais – se estes mesmos espaços de ação na esfera pública limitam a área de atuação das subjetividades políticas. Como podemos falar de democracia se os crimes do passado não foram ainda julgados?

No capítulo três, intitulado Políticas do Silêncio, o autor faz algumas considerações sobre os efeitos do silêncio com a consolidação do período democrático no Brasil. Analisando algumas reflexões feitas pelo autor, acredito que a democracia brasileira não tenha se preocupado com o conteúdo do discurso e seu espaço de atuação. Nesse sentido, a memória objetiva peca no revestimento de novos sentidos mnemônicos para os espaços públicos. Ainda é comum no Brasil encontrarmos monumentos, nomes de ruas e escolas que prestam homenagens a presidentes e políticos envolvidos de forma direta com o regime militar. Soma-se, do ponto de vista subjetivo, a ocultação de falas e arquivos públicos. A democracia passa a enrustir e transformar o passado em segredo.

O segundo eixo é composto dos dois últimos capítulos. Neles o autor investiga a experiência sul-africana através da Comissão de Verdade e Reconciliação. A partir deste órgão e de outras ações, a África do Sul promoveu sua política de anistia em troca da confissão dos crimes. A dissonância entre o caso sul-africano e o brasileiro ocorre na opção do primeiro por criar espaços públicos de confissão e perdão, analisando caso a caso. Já o Brasil, através da anistia coletiva, transfigurou a memória ao campo do esquecimento através do silêncio. Por seu turno, a África do Sul optou pela publicização dos traumas e ressentimentos, através de políticas de narrativas. Tais espaços tinham por objetivo consumar luto e recriar novos laços sociais entre os indivíduos.

O período de segregação racial – apartheid – chegou ao fim com a eleição de Nelson Mandela para a presidência do país em 1994. A partir de então, a África do Sul elaborou uma nova constituição e lançou um plano de reconciliação com o objetivo de reconstruir a nação sem as marcas da violência e do preconceito de outrora. Para tanto, seria necessário lidar com o ressentimento e trauma do passado. Segundo o autor, esferas públicas foram criadas, reunindo vítimas e criminosos com o objetivo de apurar e reparar os crimes contra a humanidade. Tais momentos funcionavam mais como espaços de reconciliação do que tribunais cujo único objetivo seria o de punir todos aqueles que estivessem envolvidos em crimes no regime segregacionista.

Edson Teles pondera que a reconciliação sul-africana não ocorreu em um momento único. Na verdade, foi um processo que demandou tempo. Compreendo este momento não somente pelo seu viés institucional e burocrático, mas por sua dimensão simbólica, algo que se assemelha a momentos de ritualização coletiva, com o objetivo de recriar novos espaços de comunhão. Nesse sentido, o conceito ubunto, fortemente enraizado na tradição africana, auxiliou no processo de reconciliação, à medida que a reintegração dos réus à sociedade só era aceita por meio de um pedido de desculpas públicas após a confissão do crime.

Edson Teles, em comparação com o processo brasileiro, vê as narrativas construídas pelos sul-africanos como inovadoras por dois aspectos: primeiro, pela comissão ter ouvido não somente vítimas, mas também aqueles que cometeram os crimes no período; segundo, pela ampla publicidade dada às narrativas criando espaços de pluralidade e construção de subjetividades sobre o passado. Algo que a transição brasileira sempre negligenciou. Contudo, se o caso brasileiro peca pela ausência de memória, Teles critica o excesso de memória da experiência sul-africana como um dos pontos que também dificultam a concretude e o perdão.

Democracia e Estado de Exceção é um importante estudo de caso que recorre ao método comparativo para compreender os sentidos do passado. Para além do campo da filosofia política, em vários momentos, a obra parece estar inserida dentro do campo da História Social das Ideias, devido à análise contextual e atuação dos agentes nos processos de consolidação das novas democracias no hemisfério sul.

Wendell Emmanuel Brito de Souza – Mestre em História Social/UFMA. São Luís/Maranhão/Brasil. E-mail: [email protected].


TELES, Edson. Democracia e estado de exceção: transição e memória política no Brasil e na África do Sul. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2015. 220 p. Resenha de: SOUZA, Wendell Emmanuel Brito de. Memória política entre silêncios e narrativas: transição democrática no Brasil e na África do Sul. Outros Tempos, São Luís, v.15, n.26, p.250-255, 2018. Acessar publicação original. [IF].

Una historia del libro judío: la cultura judía argentina a través de sus editores, libreros, traductores, imprentas y bibliotecas / Alejandro Dujovne

Este libro integra la colección Metamorfosis, dirigida por Carlos Altamirano, conformada por investigaciones pertenecientes a las Ciencias Humanas y Sociales, abocadas a objetos poco explorados o que proponen herramientas conceptuales novedosas. Escrito por Alejandro Dujovne, constituye el resultado de su investigación doctoral en Ciencias Sociales y se erige como culminación de una línea de preocupaciones e intereses del autor sobre la cultura judía y la edición. Aunque el título pueda prestarse a confusiones, el trabajo no busca reconstruir la “cultura judía en Argentina” sino específicamente su desarrollo en el espacio urbano porteño, un fenómeno que dialoga y está condicionado, antes bien, por centros de la cultura internacional que por otras provincias del interior argentino.

Su principal objeto de estudio es el mundo del libro judío en Buenos Aires, mundo integrado por diferentes ámbitos y agentes fundamentales en toda historia de la edición (imprentas y bibliotecas, libreros y editores, etc.) y que se encuentra construido partiendo de la importancia de la dimensión transnacional y los contactos en la forja de la cultura. De manera complementaria, subyace a este análisis una comprensión del mundo de la edición como necesariamente dinámico y configurado en la circulación, mediación e intercambio. En este sentido, el trabajo se inscribe, en primer lugar, en una línea de estudios sociales sobre el libro y la edición entre los que se incluye a Robert Darton, Don MacKenzie y Roger Chartier y, en segundo lugar, en los trabajos que vinculan dos dimensiones centrales a su análisis, lengua y nación, tales como los realizados por Pascale Casanova, Franco Moretti, Anne-Marie Thiesse, Joseph Jurt, Johan Heilbron y Gisèle Sapiro. Al mismo tiempo, en el plano local, este estudio es un testimonio directo de la expansión que en los últimos años han tenido los estudios sobre el libro y la edición. Esto se manifestó, por un lado, en el desarrollo de trabajos como los de José Luis de Diego, Gustavo Sorá, Alejandro Eujanian y Horacio Tarcus y, por el otro, en la creación de programas, centros de investigación y revistas especialmente dedicados al libro y la edición, ya no como capítulos anexos de investigaciones sobre literatura, sino como una esfera de estudios autónoma.

La principal hipótesis que guía el trabajo es que la experiencia judía moderna es inseparable del libro. Esto implica que para comprenderla hay que pensarla dentro de este mundo social de la edición y ligada a geografías de producción y circulación específicas. Estas dos variables, mundo social y geografías de la edición, son puestas en análisis en el caso porteño, cuyas singularidades – tales como ciertas políticas estatales, un catolicismo hegemónico, un idioma diferente y determinada distancia de otros centros de producción cultural judía – establecen los contornos específicos de la reconstrucción y relato de esta Historia del Libro Judío.

El autor parte de considerar que los principios organizativos de producción y circulación de libros judíos en Buenos Aires sólo pueden ser comprendidos inscribiendo su análisis en una geografía transnacional; esto implica, a su vez, reconocer la existencia de centros y periferias en el mundo de la cultura impresa (es decir, polos de creatividad y polos de acatamiento y producción). En esta lógica, Dujovne sitúa a Buenos Aires en un entramado muy específico, configurado por la creación, publicación y circulación de libros judíos, y conformado por metrópolis como Tel Aviv, Vilna, Varsovia o Nueva York. Así, el libro ilustra la historicidad de los vínculos establecidos entre los diferentes centros, sus cambiantes funciones y jerarquías. De este modo, se establece que Buenos Aires cumplía un rol generalmente periférico, especialmente en términos de polo creativo, y excepcionalmente central en relación a la producción (en términos estrictamente materiales) y publicación de obras extranjeras. Esto se hace visible en el análisis que el autor realiza en el capítulo dos acerca de la publicación de libros en lengua ídish. Allí queda explicitado cómo desde un comienzo la posición de Buenos Aires en este mapa estuvo estructuralmente condicionada por los cambios acontecidos en la geografía transnacional de edición en lengua ídish: específicamente, a raíz de la Segunda Guerra Mundial y el Holocausto, y las consecuencias que estos procesos tuvieron en el escenario europeo. Vale aclarar que las publicaciones eran libros creados en los principales centros judíos como Vilna y Varsovia, y que la capital porteña publicó y difundió escasamente su propia literatura ídish. La contraparte de esta realidad no es la ausencia de creatividad en Buenos Aires, sino la existencia de canales alternativos de circulación como las autopublicaciones o publicaciones independientes. Este tipo de señalamientos por parte del autor permiten visualizar con detenimiento las dinámicas propias de una construcción transnacional de la cultura, donde la mirada está puesta y la acción condicionada en pos de su integración a una geografía transnacional. Aunque genere cierta tensión entre su origen internacional y su pertenencia local, una de las premisas es, justamente, indicar que tal tensión fue una condición de posibilidad para el acontecer de una historia del libro judío en Buenos Aires.

Así, constituyendo un capítulo más en la vasta historia de la palabra impresa, este trabajo presenta dos singularidades: está centrado en una cultura vinculada de manera especial al libro (se señala, por ejemplo, la importancia de la Torá como factor de unión tras la Diáspora) y busca reconstruir el fenómeno a través de diferentes aristas (espacios, sujetos, roles) involucradas en la producción y circulación de libros judíos en Buenos Aires, en lugar de privilegiar la mirada sobre una de ellas en especial. Los siete capítulos que componen la obra reflejan está voluntad de alcanzar una explicación más cabal del objeto. Por ello, se combinan temporalidades, geografías y escalas de análisis diferentes: a lo largo del libro recorremos la historia de larga duración del libro judío (cap. 1) y el análisis de un evento como el “Mes del Libro Judío” (cap.7); un análisis que contempla los centros de edición transnacionales y la reconstrucción de imprentas, librerías y bibliotecas porteñas (cap. 6), como también la ponderación de un colectivo y el estudio de la trayectoria de individuos (cap. 5).

Para finalizar, el trabajo nos demuestra que la presencia y el consumo de los libros judíos excedía a los valores literarios de las obras y que se inscribía, por el contrario, en un complejo mundo en el que individuos, lazos sociales, intercambios transnacionales, equilibrios geográficos y coordenadas urbanas definían la posibilidad de su existencia, sus límites y alcances. Como el título señala, ésta pretende ser una historia del libro judío, incluyendo así la posibilidad de que el fenómeno se reconstruya desde otras perspectivas y anulando toda intención de presentarse como un análisis agotado del objeto. En este sentido, queda pendiente un episodio sobre la recepción de libros judíos en Buenos Aires, algo que, aunque complejo y siempre difícil de reconstruir, resulta de gran interés. No obstante ello, tras recorrer el libro entramos en contacto, en diferentes niveles de profundidad, con variadas caras del fenómeno: formas de circulación y jerarquías de producción, trayectorias individuales y catálogos, acontecimientos y procesos, espacios, instituciones y asociaciones. Aquí puede ponderarse, positivamente, la complejidad de reponer un mundo social con huellas dispersas, y la labor del autor para acercarnos, lo más cabalmente posible, a un episodio de la cultura judía en Buenos Aires.

Paulina Iglesias – Lic. en Historia, Programa de Historia y Antropología de la Cultura, Instituto de Antropología de Córdoba, CONICET-UNC. Córdoba, Argentina. E-mail: [email protected].


DUJOVNE, Alejandro. Una historia del libro judío: la cultura judía argentina a través de sus editores, libreros, traductores, imprentas y bibliotecas. Buenos Aires: Siglo Veintiuno editores, 2014. 304p. Resenha de: IGLESIAS, Paulina. Transnacionalidade e contatos culturais em uma história de edição: o livro judaico em Buenos Aires. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.21, p.281-284, 2016. Acessar publicação original. [IF].

 

História da América Latina / Maria Ligia Prado

O espaço reservado à história da América Latina em editoras de livros didáticos e acadêmicos – assim como da África – tem se ampliado no decorrer dos últimos anos. Parte do resultado deve-se ao empenho de professores-pesquisadores dessa área, que têm empreendido inúmeros esforços para que os brasileiros conheçam melhor os fatos, personagens e processos que compõem a rica narrativa histórica dessa região tão complexa e diversificada em termos tanto geográficos quanto culturais. Embora essa realidade esteja se configurando, ainda é perceptível a ausência de trabalhos que sejam, além de acessíveis a públicos distintos, também, confiáveis, sob o ponto de vista histórico, teórico e metodológico.

A obra História da América Latina é parte integrante da Coleção “História na Universidade”. A larga experiência de pesquisa e de ensino na área de História da América de suas autoras, Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino Soares, ambas, docentes-pesquisadoras da Universidade de São Paulo, confere legitimidade ao trabalho. Dividido em doze capítulos a publicação é composta por um panorama amplo de temas, privilegiando aqueles mais recorrentes nos cursos de graduação de História, na disciplina de América Latina.

Respeitando os protocolos próprios do ofício do historiador – leitura crítica das fontes, conhecimento sólido da bibliografia e emprego das ferramentas teóricas e metodológicas (p.9) –, as pesquisadoras demonstram cautelas necessárias na análise das conjunturas históricas e ações dos múltiplos sujeitos ali tratados. Distanciam-se, por exemplo, de armadilhas traiçoeiras, como dividir personagens em dois campos opostos e simplistas, que oscilam entre a “heroicização” e a “demonização”.

O leitor não encontrará análises e discussões metodológicas sobre as múltiplas fontes citadas – não é a proposta. Contudo, ao tratarem sobre os temas, fazem frequentes referências a romances, textos de imprensa, filmes, ensaios, memórias, cartas, imagens (pinturas, fotos), músicas e filmes que foram explorados – de forma crítica e aprofundada – por elas e/ou outros historiadores, noutros trabalhos nos quais se debruçaram sobre grandes questões da América Latina, analisando tais documentações. Algumas dessas pesquisas são relacionadas, no fim da obra, como indicações de leituras.

Prado e Soares fazem questão de ressaltar a dificuldade e, ao mesmo tempo, a urgência da ênfase às especificidades no trato das histórias dos países latino-americanos. Dessa forma, ao tratarem das temáticas, embora busquem estabelecer conexões entre os respectivos contextos históricos, contemplando experiências que transcenderam fronteiras nacionais, demonstram sérias preocupações em marcar as diferenças que caracterizaram a história de cada Estado nacional. Frente à impossibilidade de abordarem todos os temas e países de forma equânime, optaram por alguns enfoques com o formato “box”, de modo que certos temas e trajetórias biográficas foram analisados separadamente. Alguns deles: as independências do Haiti, do México e de Cuba; Reforma Universitária de Córdoba, de 1918; escravidão na América Espanhola; os conflitos políticos na região do Rio da Prata; a guerra entre México e Estados Unidos, a Guerra no Pacífico e suas implicações e um recorte biográfico de Eva Perón.

Sobre o Brasil, “parte da América Latina” – como gostam de sublinhar –, pode-se afirmar que não foi tomado como alvo de reflexões específicas. No entanto, as pesquisadoras traçaram uma narrativa paralela, travando aproximações com os demais países, desde o processo de colonização ibérica, as lutas por independências políticas, a formação dos Estados nacionais, chegando até o século XX, com assuntos ligados às Ditaduras Civis-Militares.

Optaram por iniciar o texto historicizando a denominação “América Latina”. Ali, já fica evidenciado o quanto a origem e difusão do termo trouxeram, no seu bojo, variados interesses – externos e internos – que estiveram presentes no tabuleiro das pelejas políticas e ideológicas. São colocadas em discussão as apropriações e manipulações do conceito bem como as disputas envolvendo interesses expansionistas, considerando os campos de atuação e influência por parte da Europa – naquele momento, França, em especial. Merece atenção a vertente mais recente, que considera que “[…] a denominação não foi imposta, mas cunhada e adotada conscientemente pelos latino-americanos, a partir de suas próprias reivindicações […].” (p. 9)

Ao abrirem o livro com o tema das identidades, tão caro aos pesquisadores da área, a América Latina é apresentada como um cenário marcado por complexas estratégias da parte de atores e interesses em disputa que se travaram (e se travam) no cenário geopolítico e cultural. Textos ensaísticos clássicos, bastante conhecidos por estudiosos da área são mencionados, com o intuito de dar uma dimensão do quanto a região tem uma história vibrante, além de mostrar os embates identitários em jogo. Entre outros, Nuestra América, do cubano José Martí, Carta de Jamaica, do venezuelano Simon Bolívar ou Ariel, do uruguaio Enrique Rodó.

As Independências Latino-americanas, um dos “grandes temas” de América, mereceu destaque e a análise considerou as dificuldades inerentes à difícil arte da conciliação de interesses, as disputas e visões divergentes de líderes políticos e grupos sociais que compuseram a trama que marcou o longo e complexo trajeto de luta. Não foi omitido o registro dos sentimentos díspares de líderes que, como Simón Bolívar ou Bernardo de Monteagudo conviveram com esperanças e desencantos ao longo do processo.

A “guerra” de símbolos, a construção de representações e discursos identitários, em disputa pelos sujeitos históricos, também estiveram presentes no momento da formação dos Estados nacionais, processo longo, marcado por inúmeros avanços e recuos na história de cada um dos povos da região. Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino Soares deixam evidenciado, na escrita, o quanto o processo envolveu embates de forças antagônicas que evidenciaram dissensos regionais articulados em torno de duas forças principais: Liberais e Conservadores ou, no caso argentino, “Unitários” e “Federalistas”. Cada um dos grupos é bem examinado, de forma que o leitor possa entender os seus horizontes políticos e as razões de suas disputas.

O tema da “Modernidade” perpassa alguns capítulos, sendo entrelaçado, especialmente, com a temática da identidade nacional. Ao abordarem-no, não negligenciam as necessárias distinções entre conceitos relacionados (modernização e modernismos). No campo da Educação, enfatizam projetos culturais colocados em prática pelos governantes, em associação com artistas e intelectuais. Com campanhas de alfabetização e outras ações, eles buscavam “elevar” o nível cultural e técnico de grupos subalternos, preparando-os para as necessidades e exigências da “modernidade”. A leitura de artistas e intelectuais frente aos esforços de governantes e elites econômicas para engendrarem a modernização, não passou ao largo da análise. Seja quando esses artistas se referiam às mudanças, dando conotações positivas ou quando se manifestaram, denunciando os custos sociais e humanos que as inovações técnicas, o “desenvolvimento” alteraram as relações de grupos com a terra e com o trabalho.

Sobre o papel da Igreja Católica no imbricado jogo das questões políticas, em vez de simplesmente reforçarem a atuação da instituição ao lado de grupos conservadores que desejaram, desde a Colonização, a manutenção do status quo de grupos dominantes, bem como de antigos privilégios e prerrogativas assegurados a ela (educação, posse de terras), Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino exploraram as complexidades do papel desempenhado pela instituição, no contexto latino-americano. Ressaltam, claro, que sendo a Igreja altamente hierarquizada esteve, em inúmeros contextos, ao lado de grupos dominantes, usando de ideologias religiosas para dissuadir os rebeldes. No entanto, lembram que figuras atreladas ao universo religioso nem sempre estiveram do lado conservador, mas se destacaram em momentos importantes, como nas lutas pela Independência, atuando ao lado dos “rebeldes”, abraçando causas sociais de movimentos populares. Casos emblemáticos foram os curas Miguel Hidalgo e José María Morelos, que lideraram o primeiro movimento pró-emancipação do México em relação à Espanha, em 1810. A rebelião alimentou esperanças, ao proclamar o fim da escravidão negra, o fim do pagamento de tributos indígenas e propor a distribuição de terras – inclusive da Igreja –, contando, assim, com a adesão de indígenas e camponeses. Pela radicalidade contida no movimento, nessa fase inicial, logo foi sufocado e seus líderes executados.

Ao contemplarem numerosos temas, explorando um amplo recorte cronológico que foi do século XVI – marco do processo colonizador – até o século XX, incluíram múltiplos atores sociais que participaram dos eventos citados e narrados. Além dos “grandes vultos”, que se tornaram conhecidos pela liderança exercida nos movimentos políticos, outros sujeitos e suas formas de ações foram contempladas pelas autoras: soldados anônimos, intelectuais, negros, mulheres, indígenas, camponeses e operários. Vale ressaltar que não foram esquecidas as diversas formas com as quais aqueles que ocuparam o poder – no plano interno e externo –, em fases distintas da História, lidaram com as demandas dos grupos reivindicantes. Assim como em determinados momentos esses grupos não se privaram de usar a força para reprimirem duramente as demandas, em outras circunstâncias, viram-se obrigados a ceder, fazendo uso do diálogo e das negociações, desenhando, assim, novas configurações nas relações de poder.

Conceitos como “caudilhos” e “populismo”, usualmente utilizados erroneamente em determinados textos e contextos relacionados à América Latina, não compõem o repertório da escrita da obra. Este último, por exemplo, tão recorrente em segmentos da imprensa quando se referem a algumas lideranças latino-americanas, foi evitado pelas autoras, por entenderem-no “demasiadamente genérico, eclipsando as particularidades nacionais” (p. 131). Em vez disso, optaram por tratar de “políticas de massas”, discutindo ações de lideranças carismáticas de alguns países latino-americanos (anos 1940 e 1950), que se mostraram capazes de manter a ordem, num período em que as classes populares lutavam por ganhar espaço no cenário político e exigiam reformas. Sob a égide do Estado, uma série de mudanças ocorreram e as formas de ações desses governantes variaram entre reformas que concederam direitos sociais, propaganda, cooptação e, também, repressões.

Dois movimentos revolucionários ocorridos na América Latina, no século XX, mereceram maior atenção em História da América Latina: a Revolução Mexicana e a Cubana. Em comum, o fato de imprimirem novos contornos na ordem estabelecida, tanto no plano interno, quanto externo. A do México, por ter sido a primeira do século, antes mesmo que a Russa, ocorrida em 1917, quase uma década após a da América. Também, por seus desdobramentos políticos, culturais e sociais, envolvendo novas configurações nas relações de gênero, leis de reforma agrária, nacionalizações de bancos e empresas estrangeiras. A de Cuba, além de alguns desses aspectos, pelas consequências produzidas no cenário latino-americano. Uma delas e a mais crítica, por tornar-se símbolo de luta contra o imperialismo norte-americano. Sob o temor de que outras nações latino-americanas seguissem o “mau” exemplo cubano, redundou no apoio do “irmão do Norte”, os Estados Unidos, na implantação das ditaduras.

A partir dos anos 1960, tempos de “Guerra Fria”, quando duas ideologias dominantes provocavam polarizações no globo, os países da América Latina coincidiram no compartilhamento de experiências políticas de regimes autoritários. Com intervalos maiores ou menores e com distintos graus de repressão, guardam feridas abertas em diversos países, inclusive no Brasil. Não mais são denominadas simplesmente como “militares”, mas “civis-militares”, posto que, sabidamente, contaram com o apoio da parte significativa de forças conservadoras da sociedade civil – empresários, imprensa, Igreja, cidadãos comuns. São apresentadas, na obra, como resposta ao alto grau de mobilização de alguns setores em países latino-americanos naquele momento: sindicatos, partidos de esquerda, ligas camponesas, guerrilhas indígenas ou movimentos estudantis. Chile, Nicarágua, Peru, Paraguai, Argentina, Brasil, Uruguai, Bolívia, El Salvador são contemplados nessa questão, ressaltando-se as especificidades de cada caso.

“Cultura e Política”, além de ser abordagem presente durante todo o livro é, também, o título do último capítulo. A imagem da “Orquestra Sinfônica Simón Bolívar”, composta por 180 músicos venezuelanos que tocaram na Sala São Paulo, em 2013, foi a estratégia utilizada para encerrar a obra, focando a América Latina Contemporânea. O resultado visto na apresentação em São Paulo teve sua origem em 1975, por meio da iniciativa de um musicista-economista que, como outras iniciativas colocadas em prática na América Latina, ao longo do século XX, buscou difundir acesso gratuito à cultura – nesse caso, educação musical – promovendo inclusão social e cultural a jovens e crianças provenientes de meios populacionais carentes.

A música como intervenção social foi motivo para reflexões, colocando a ênfase do capítulo sobre a Nueva Canción, movimento artístico e político que articulou nomes da música de alguns países no engajamento de oposição aos governos militares, nos anos 1960 e 1970. O pano de fundo serviu para evidenciar o quanto, em diversos momentos e contextos, a circulação de ideias e o compartilhamento de experiências contribuíram para que latino-americanos se articulassem em utopias e perspectivas de transformações sociais e políticas.

O contexto latino-americano das últimas décadas, marcado por cenários de ascensão de mulheres ao andar mais alto da política; a chegada ao poder de governos “progressistas” em alguns países, avanços sociais e, por sua vez, numa perspectiva ainda mais recente, as reações de grupos conservadores às mudanças colocadas em prática; a apresentação de possibilidades de recomposição das relações de Cuba com os Estados Unidos são fatos que conferem à obra uma relevância ainda maior, já que os leitores terão condições de compreender melhor o diálogo entre passado e presente.

História da América Latina atende, portanto, às expectativas e necessidades de um público bastante amplo – acadêmico ou não. Aos “iniciantes”, o prazer da leitura de uma obra na qual poderão embarcar no horizonte histórico (político e cultural) latino-americano, conduzidos pela experiência de duas pesquisadoras sérias que decidiram compartilhar parte do seu fascínio por essa região do globo. Aos “iniciados”, a satisfação de terem contato com uma narrativa histórica livre de voluntarismos e anacronismos, comuns a algumas obras que, essencialmente comprometidas com o aspecto comercial, são lançadas no mercado editorial vendendo-se como “guias”, isto é, como promotoras de um suposto e ilusório contato com a “verdadeira” história da América Latina. Sem tais pretensões, a obra resenhada cumpre a função de atender a estudantes e professores que queiram e necessitem acesso a abordagens e interpretações fundamentadas, oferecendo importante contribuição no que concerne à construção do conhecimento histórico crítico.

Romilda Costa Motta – Doutora pela Universidade de São Paulo. Professora do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-SP). São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].


PRADO, Maria Ligia; SOARES, Gabriela Pellegrino. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2014. 206p. Resenha de: MOTTA, Romilda Costa. A História da América Latina sob perspectiva crítica. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.21, p.285-290, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Angola: história, nação e literatura (1975-1985) / Silvio A. Carvalho Filho

Lembro-me que, por volta de 2008, pude assistir a uma comunicação sobre a relação entre a escrita literária de Pepetela e a história de Angola, proferida por Silvio de Almeida Carvalho Filho, no âmbito dos encontros realizados pelo Núcleo de Estudos Africanos, da Universidade Federal Fluminense. Passados oito anos, com o lançamento do livro Angola: história, nação e literatura (1975-1985), Silvio Carvalho Filho consolida-se como um dos mais importantes pesquisadores no que tange à análise da construção identitária do que veio a se tornar a nação angolana independente.

A oralidade foi e continua sendo explorada como um fator importante para diferentes sociedades africanas espalhadas pelo continente. No entanto, Silvio Carvalho Filho consegue demonstrar como, dependendo do contexto, nesse caso o do processo de independência angolana das amarras coloniais portuguesas, existe uma África que vai para além da oralidade. Propondo diferentes demandas políticas por meio de uma literatura escrita, aqueles que conseguiram publicar e publicitar suas obras entre o período de 1975 e 1985 são o destaque no livro.

Dando um enfoque na análise para essa comunidade imaginada existente nas obras literárias selecionadas, mas sem deixar de lado a atuação desses literatos durante a guerra de independência e a ocupação de cargos no novo Estado que emergiu pós-1975, Silvio Carvalho Filho posiciona-se defendendo uma abordagem do “[…] literato como arauto de um imaginário coletivo ou como parcela do mesmo”2. Nesse sentido, com um extenso levantamento de fontes, elegendo 56 livros, dentro de um universo de 129 publicações existentes para o período analisado, cartas, entrevistas, comentários e diversos periódicos, como o jornal Diário de Angola (1975-76) e as revistas Novembro (1976-86) e Lavra & Oficina (1979-83), Silvio Carvalho Filho conseguiu produzir um panorama a respeito da nação angolana imaginada e produzida na e pela literatura/literários. Percebendo-a como fortemente influenciada pelo seu meio social e agindo também como interventora nesse ambiente, o autor demonstra a íntima relação entre as ações pela independência de Angola, a construção de um projeto de nação profundamente ligado ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e as ações dos literários, principalmente por meio de sua escrita, em prol desse projeto específico.

No entanto, o título do livro de Silvio Carvalho Filho pode enganar alguns leitores, especialmente no que diz respeito ao recorte cronológico referenciado. Aqueles que adquirirem o livro em busca de uma análise dos dez anos posteriores à independência de Angola não conseguirão encontrar ali muitas respostas. Os anos entre 1975 e 1985 fazem referência ao período de publicação das fontes analisadas, mas não necessariamente aos assuntos abordados tanto pelos autores da documentação consultada como pelo próprio Silvio Carvalho Filho. Dos dez capítulos existentes, encontramos várias ponderações a respeito desse período anunciado. Porém, em apenas dois o autor aborda de maneira direta a relação entre uma consciência crítica dos literários e de suas obras enquanto ferramentas políticas de atuação, um discurso engrandecedor do projeto socialista defendido pelo MPLA, assim como, posteriormente, do sistema que se tentou implementar em seguida à vitória sobre Portugal e as desilusões e desesperanças com a percepção de um Estado independente marcado pela ascensão de “[…] burocráticos despóticos, corruptos e nepotistas […].”3

Esse descompasso entre anunciação do recorte cronológico do livro e a atenção a um tempo histórico diferente nas análises pode ser explicado pelas características que o próprio Silvio Carvalho Filho elenca ao buscar compreender a construção da identidade nacional angolana a partir das obras de literatos como Manuel Rui, Uanhenga Xitu, Pacavira, Pepetela e tantos outros. Apesar de uma parte significativa da obra desses autores ter sido publicada apenas no pós-independência, muitas foram confeccionadas ainda durante o período colonial, acabando, por inúmeros motivos, tendo como destino o fundo das gavetas. Talvez a principal causa para a incapacidade desses autores de publicarem seus escritos antes de 1975 tenha sido, justamente, a maneira como viam sua literatura como um entrelaçamento entre a ação política e partidária de maneira engajada na formação da nação angolana.

Ao detalhar os diferentes fatores elencados pelos personagens e pelas narrativas das obras literárias analisadas, Silvio Carvalho Filho acaba por retornar para um passado marcado brutalmente pelas ações violentas da repressão colonial portuguesa. Nesse sentido, mais do que falar sobre os dez anos posteriores à independência angolana, no livro Angola: história, nação e literatura (1975-1985) temos contato com processos de elaboração e disseminação de uma memória sobre um passado existente previamente a esse período, com objetivos políticos marcados pelas experiências e pelas referências ideológicas, predominantemente marxistas, dos literários angolanos vinculados ao projeto nacionalista do MPLA. Portanto, um suposto empobrecimento estético existente em determinados trabalhos desses autores é abordado por Silvio Carvalho Filho dentro de um contexto onde existiu um esforço político em direção a tornar a literatura mais como uma ferramenta de transformação por meio de seu posicionamento político ante a sociedade, do que uma valorização de uma possível noção do sublime estético das rimas poéticas e/ou da prosa narrativa.

Aos poucos, ao longo do livro Angola: história, nação e literatura (1975-1985), somos apresentados às bases do projeto nacionalista angolano vitorioso na guerra de independência, sua relação com a literatura e com a atuação dos literários na sua escrita. Nesse sentido, Silvio Carvalho Filho demonstra a existência de um campo literário angolano que se consolida como hegemônico após a independência, que de maneira comum ao longo do período da guerra contra o regime colonial concebeu uma nação que desejavam ver quando livres da opressão portuguesa muito próxima do MPLA e bastante distante dos demais movimentos independentistas. Esse campo não necessariamente condizia com uma realidade ampla das experiências dos futuros cidadãos angolanos. Tendo a cidade de Luanda como cidade-símbolo da nacionalidade imaginada pelo MPLA e “[…] as populações de cultura crioula […]” estabelecendo a “[…] matriz básica da cultura nacional a ser engendrada […]”4, existiu um esforço de, por um lado, aglutinar a pluralidade sociocultural dentro de marcos nacionalistas de uma angolanidade almejada. Por outro lado, essa angolanidade encontrava-se em disputa com essa pluralidade quando a mesma não se coadunasse “[…] com a racionalidade ocidental, da qual o socialismo revolucionário era uma das vertentes […]”5. A nacionalidade angolana que emergiu dos literários analisados era estritamente vinculada ao MPLA. Nas obras literárias, ser angolano, em 1975, era entendido como ser adepto das propostas desse movimento. Com o decorrer dos anos, as desilusões e desesperanças com o socialismo levaram a mudanças que encerram a proposta analítica do livro.

Porém, o que era ser angolano? Talvez essa tenha sido a pergunta primordial que os literários analisados por Silvio Carvalho Filho tentaram responder. Como o autor aponta, esse processo de construção do projeto de nação imaginado pelos literários angolanos em suas obras remeteu constantemente a um passado. Buscar retratar um passado de uma determinada forma, mesmo que sendo através da ficção, era fortalecer premissas políticas do momento presente à produção dessas obras. Foi no embate a uma narrativa sobre o passado produzida nos marcos do colonialismo português que a literatura angolana construiu a si e a nação que almejava. Nesse sentido, ao invés de tentarem buscar no passado que construíam em suas obras uma essência nacionalista angolana atemporal, elaboraram uma identidade angolana baseada numa noção de experiência compartilhada entre a maioria da população. Essa experiência, que funcionaria como uma ferramenta agregadora da diversidade capaz de produzir uma unidade nacional, seria a da resistência contra a exploração e a repressão colonial.

O exercício literário desses escritores na tentativa de elaborar um passado comum, marcado pelas experiências de resistência ao colonialismo português, que buscou produzir um sentido de “nós angolanos”, por vezes parece ter seduzido algumas das abordagens de Silvio Carvalho Filho. O colonialismo foi uma forma de exploração altamente devastadora e violenta. Porém, o tom de denúncia das atrocidades coloniais adotado pelos literários angolanos, por mais importantes que tenham sido no contexto da descolonização, passou ao largo das complexidades dos contextos históricos que os mesmos tentaram recriar. Esse embaralhar entre história, memórias, literatura e os projetos políticos ensejados pelos literários da geração independentista, faz com que em determinados momentos Silvio Carvalho Filho adote uma abordagem que enxerga as narrativas literárias como uma espécie de testemunhos da verdade, sobretudo quando os textos literários dizem respeito às relações estabelecidas entre setores do mundo colonial como grupos estanques divididos entre, de um lado, o colonizador e, do outro diametralmente oposto, o colonizado.

Para concluir, no temeroso cenário acadêmico brasileiro de 2016, o livro Angola: história, nação e literatura (1975-1985), de Silvio de Almeida Correio Filho é um importante contributo para os estudos africanos. Sua expansão no Brasil, acompanhada pela proliferação do ingresso de professores especialistas nas universidades e do crescimento da obrigatoriedade da História da África nos currículos disciplinares acadêmicos, encontra aqui uma importante ferramenta. O capítulo “A Nação, os Escritores e a Literatura” merece destaque especial. A apresentação panorâmica que Silvio Carvalho Filho produz no capítulo fornece aos professores universitários, sempre em busca de produções historiográficas de qualidade e em língua portuguesa, um importante texto para ser trabalhado nas salas de aula de graduação de todo o país. Além disso, a grandeza do livro recai na sua capacidade de realizar análises vastas e ricas, mas, ainda assim, deixar inúmeras outras possibilidades de pesquisa a serem exploradas. Abrindo caminhos para novas gerações, Silvio Carvalho Filho consegue brindar-nos com uma obra que acende pistas para futuras pesquisas e que poderão ampliar de maneira qualitativa os estudos africanos produzidos em solo brasileiro.

Notas

  1. CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida. Angola: história, nação e literatura (1975-1985). Curitiba: Editora Prisma, 2016. p. 24.
  2. Ibid., p. 346.
  3. Ibid., p. 236-237.
  4. Ibid., p. 276.

Matheus Serva Pereira – Doutorando em História Social da África – Unicamp. Bolsista Fapesp. E-mail: [email protected].


CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida. Angola: história, nação e literatura (1975-1985). Curitiba: Editora Prisma, 2016. Resenha de: PEREIRA, Matheus Serva. Literatura, memória e a construção de uma perspectiva nacional angolana. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.219-223, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola: século XVII / Mariana F. Bracks

A obra publicada recentemente pela editora Mazza e intitulada “Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola, século XVII” é fruto da dissertação de mestrado defendida pela professora Mariana Bracks Fonseca na Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo sob a orientação da professora doutora Marina de Mello e Souza. Com experiência na área de História da África, especialmente História de Angola durante os séculos XVI e XVII, temáticas como o desenvolvimento do tráfico negreiro e a resistência política de personagens africanos, como a rainha Nzinga Mbandi, compõem os principais interesses de pesquisa da autora.

Nas primeiras páginas que compõem a introdução, Mariana Fonseca atenta para o exaltar da rainha Nzinga pelos movimentos políticos como MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola). Utilizando conceitos como “nação” associado a concepções modernas, ou ainda “luta de classes”, estes movimentos políticos mitificam a rainha como uma personagem símbolo de resistência ao colonialismo português. O texto de Fonseca grifa que essa produção de memória, ou imagem como quer a autora, habita o imaginário angolano contemporâneo.

Como sugere Fonseca, houve exageros interpretativos que fomentam os nacionalismos nos movimentos políticos em Angola. Observando o posicionamento da autora, compreendemos a utilização da imagem de capa, que consiste em uma fotografia da estátua da rainha Nzinga erguida em Luanda no ano de 2015. O maximizar desse sentido de “resistência” cunhado à obra é o objetivo principal, e talvez por isso a escolha da ilustração. O mobiliário urbano luandense possui símbolos que enaltecem personagens históricos como a rainha Nzinga, com o objetivo de construir um ideal calcado em interpretações míticas da história.

A historiadora Mariana Fonseca está atenta a essas problematizações, no entanto, o esforço em ressaltar Nzinga enquanto uma líder tenaz falou mais alto. Isso resulta ao leitor alguns ganhos, como o adentrar por entre as instabilidades políticas de sobas e europeus, as complexidades das flutuações de fronteiras ou as empreitadas igualmente movediças do aliançar dos jagas, bem como discussões acerca da legitimidade do poder feminino do Ndongo, visto que o enfoque da obra de Fonseca são as resistências de Nzinga no século XVII, principalmente entre os anos de 1620 e 1630, quando segundo a autora houve maior oposição aos portugueses.

A rainha Nzinga, Jinga, Ginga ou Njinga habitou muitos escritos em diferentes contextos. Logo, há dificuldades em padronizar uma grafia. Esse problema é recorrente quando se atenta para historicidades das Áfricas nos seiscentos. As fontes documentais utilizadas no trabalho de Fonseca foram escritas por europeus falantes de diferentes línguas, além de difundidas e traduzidas de modo impossível de quantificar. Os escritos do padre Cavazzi e do soldado António Cadornega, e também de Fernão de Souza, fontes amplamente utilizadas pela autora, são um exemplo. Há ainda documentos administrativos advindos da compilação realizada por António Brásio junto ao Monumenta Missionária Africana, que também apresenta grafias não uniformes para designar a insígnia Nzinga.

Fonseca explica que grafa não só Nzinga, mas ainda outros termos como rios e localidades, bem como nomes e insígnias de diferentes personagens como os angolanos convencionam em um kimbudo. Essa decisão, principalmente se o trabalho se afasta temporalmente de uma África contemporânea será sempre arbitrária, como alerta a autora. Traduzir é já trair, e as opções tomadas pelos africanólogos caminham sempre em direção à coerência entre as interpretações das fontes e dos pesquisadores que já abordaram determinada temática.

Para além das fontes documentais, outros escritores também grafam a insígnia Nzinga de diferentes maneiras e constroem rainhas múltiplas em suas obras. Castilhon, Marquês de Sade, Bocage e mais tarde Hegel são exemplos citados brevemente no trabalho de Fonseca. Historiadores como Beatrix Heintze, John Thornton, Joseph Miller, Adriano Parreira e Roy Glasgow também são problematizados quanto as suas “Nzingas” e são substanciais para os estudos sobre essa personagem. Dentre muitos caracteres trabalhados por esses intelectuais, citamos o debruçar sobre um amplo corpus documental e o cruzamento deste, metodologia também empregada por Fonseca.

Mesmo com obras produzidas em contextos e sentidos distintos, como por exemplo, romances, poemas, crônicas e produções historiográficas, a personagem rainha Nzinga ainda é pouco conhecida no Brasil, como os estudos sobre História da África em geral. O livro de Mariana Fonseca não é uma biografia sobre a rainha. Apresenta muitos elementos que podem ser considerados como compondo experiências nominadas pela autora como “uma longa e conturbada trajetória”, caso pensarmos nos movimentos políticos, militares e ainda religiosos, que apesar de costumeiramente os distinguirmos nos seiscentos e regiões adjacentes ao Ndongo, se entrelaçavam em uma instigante tessitura.

O território do Ndongo, nas descrições de Cavazzi e Cadornega, era um território cuja liderança pertencia ao Ngola, ou reis guerreiros, que sabiam confeccionar objetos de metais, facas, lanças e todo o tipo de armamento. Esses utensílios eram muito utilizados nos cotidianos e nas guerras, os artesãos que os fabricavam tinham a estima do povo e em virtude disso foram sendo proclamados pelos régulos como líderes daqueles territórios. A própria insígnia Ngola deriva do modo como designavam objetos de metais. Ngola poderia ser qualquer objeto de metal e, mais tarde, emprestou denominação como uma corruptela aos territórios que os portugueses e demais europeus mercadejavam, ou a Angola.

As supracitadas descrições compõem o capítulo primeiro da obra de Mariana Fonseca. Intitulado “O reino do Ndongo”, proporciona ao leitor acessar informações sobre, por exemplo, a constituição do poder no Ndongo e adjacências. A autora cita os estudos de Joseph Miller como um passo importante para compreensão das genealogias na África Central, bem como as constituições de poder. O autor foi um dos precursores ao afirmar que os termos tidos por nomes próprios, como Ngola Inene ou Ngola a Kiluange, eram na verdade insígnias que distinguiam as escalas de poder.

Miller trouxe novas interpretações às palavras “filho”, “pai”, “irmão”, “casamento”, revelando o caráter metafórico dessas expressões nas genealogias centro-africanas. Pai e filho poderiam revelar relações políticas entre títulos e não biológicas. Talvez, os avultados escritos deixados pelos europeus traduziam o que os mesmos observavam calcados nas suas experiências. Ou seja, explicavam o mundo a partir daquilo que conheciam.

Isso não quer dizer que as fontes escritas são menos credíveis, ao contrário, elas são fundamentais. Podemos exemplificar expondo características dos Jagas que nunca teriam sido conhecidas caso não fosse a interpretação de documentos. Cavazzi frisa a heterogeneidade dos Jagas, descrevendo rituais que eram comuns, como mitos, ritos, juramentos, crenças, formas de moradia e alimentação. Essas descrições maximizam o caráter guerreiro e antropofágico dos bandos Jagas, como o ritual magi a samba, que consistia em jogar um recém-nascido em um caldeirão com ervas, e em um pilão esmagar até virar uma pasta que seria passada no corpo de guerreiros para garantir forças mágicas e imortalidade.

Joseph Miller sugere que esse ritual servia para romper os laços de linhagem que alguns guerreiros poderiam trazer como resquícios de outras sociedades. Os jovens raptados e não iniciados de outros grupos, como os Mbundos, após passarem por esse ritual se desprendiam das regras e costumes do grupo anterior, devendo obediência ao chefe do Kilombo, que nesse contexto era o modo de organização dos Jagas, ou seja, altamente hierarquizado e com funções bem definidas, ou ainda como define Miller: “máquina de guerra”. Para Vancina, os bebês mortos também serviam para garantir a mobilidade das tropas que viviam em guerras permanentes, logo, o infanticídio garantia o progresso das tropas, para além de uma “inovação” nas táticas de guerrilhas.

O capítulo segundo “Angola portuguesa: conquista e resistência” inicia com a problematização da libertação de Paulo Dias de Novais, que permanecera como cativo durante cinco anos, visto que o Ngola interessava-se apenas pelo comércio com os portugueses, pelas sedas e bebidas, e não pela fé que condenava a poligamia. O Ngola com dificuldades em derrotar um soba vizinho liberta Novais para que ele peça reforços a Portugal, segundo descrições de fontes documentais. Para Fonseca, não faz sentido o soberano do Ndongo, um rei poderoso que já conseguira derrotar inclusive o exército do Congo, ter dificuldades em sublevar um reino menor, necessitando o auxílio dos portugueses.

Ao retornar a Portugal, Paulo Dias de Novais planeja uma entrada com armas no Ndongo, já que a tentativa pacífica de levar a fé tardava em mostrar resultados. Os jesuítas fomentavam essa intervenção, e mesmo após o regresso de Novais ao Ndongo, com o mercadejo próspero e as investigações no solo para obtenção de metais, os jesuítas não se contentavam com o comportamento do Ngola. Eis a chama de articulações políticas e dissidências que cunharam conflitos entre os sobas, fundamentais no jogo político da “conquista”, pois para os religiosos mercadejar não bastava.

Isso não significa que a coroa, os jesuítas e Paulo Dias de Novais não fossem parceiros nas empreitadas da “conquista”. Ao contrário, a insistência em propagar a fé católica instrumentalizava a escravização, justificando-a através da necessidade de salvar as almas. Conforme Fonseca, a palavra “resgate” comumente aparece nas fontes documentais, ou seja, os negros seriam resgatados por viverem em meio a rituais pagãos, evitando que perecessem em práticas antropofágicas. Em contrapartida, os religiosos sustentavam o mito da prata e demais riquezas no solo angolano, convencendo a coroa, na altura em mãos dos Áustrias, ou dos Filipes de Espanha, em investir nas expedições. Ganhavam todos, inclusive os sobas, participantes ativos do comerciar com os europeus.

Em resumo, sobre as tentativas de adentrar no território que correspondia aos domínios do Ngola, o capítulo ainda discorre sobre a “Guerra Preta”, que consistia em lutas entre africanos contra africanos, pois o grosso dos exércitos tidos como portugueses eram compostos por diversos grupos de Jagas e forças auxiliares que combatiam contra os exércitos do Ndongo. Fonseca também delineia o comércio em várias feiras, citando a construção de fortalezas e presídios que impulsionavam o colonizar rumo ao interior. Dentre as localidades detalhadas pela autora estão Muxima, Cambambe, Massangano, Ango e Ambaca.

A autora Mariana Fonseca discute amplamente os conflitos que ambicionavam aquelas terras banhadas pelo Kuanza. Em meio às descrições de acontecimentos bélicos, o que chama a atenção no capítulo “Nzinga Mbandi e as guerras pelo Ndongo” são as sofisticadas disputas diplomáticas quando executadas na mão de Nzinga. Uma das cenas que habitou o imaginário local e foi amplamente comentada em fontes documentais, como nos escritos do padre Cavazzi ou do soldado António de Cadornega, bem como em trabalhos historiográficos que problematizam a existência da rainha, ou em romances que recriam e multiplicam as “Nzingas” é o “episódio da cadeira”, como designa Fonseca.

Nzinga se reunira com o governador João Correia de Souza em Luanda, fora mandada como embaixadora do seu irmão, o Ngola. As embaixadas estavam presentes no cenário político dos XVII na África Central, tanto para o trato com o sobas quanto para os portugueses. Cavazzi narra que na ocasião a rainha portava luxuosas vestes, com muitas joias e gemas preciosas. Ao chegar foi oferecido um tapete para sentar-se, enquanto o governador estava acomodado em um trono. No mesmo instante Nzinga chama uma criada e pede que ela fique em uma posição que lembra um acento, com mão e pés no chão. A rainha sentou-se nas costas da súdita e discorreu sobre diversos assuntos, com vivacidade e inteligência, garantindo que o Ndongo continuasse como um estado independente e isento de tributações exigidas pelos portugueses, na ocasião negociadas e refutadas pela rainha.

Talvez o aceite em ser batizada tenha contribuído para o êxito na performance de Nzinga, garantindo sucesso nas negociações que interessavam ao Ndongo. Os historiadores interpretam esse evento com diferentes posições. Mariana Fonseca argumenta que o cristianismo estava notoriamente envolvido com a política do século XVII e a rainha possivelmente compreendia que para obter a paz e sucesso junto aos objetivos do Ngola, necessitaria aceitar a cruz. Apesar do batismo o Ndongo não se tornou cristão, uma vez que o Ngola se recusou em receber o sacramento, pois achou um absurdo que o enviado para batizar-lhe era o filho de uma de suas escravas, enquanto Nzinga, sua irmã, teria sido ungida com toda a pompa e honras do governador.

O quarto e último capítulo segue dissertando sobre as novas terras e os novos aliados persuadidos por Nzinga. O reino de Matamba e as particularidades de um poderio feminino são tecidos através de considerações advindas de autores com ampla pesquisa sobre o tema. A interpretação de documentação escrita continua fortemente, por exemplo, quando a autora questiona a masculinização de Nzinga para a entronização do poder. Fonseca observa essas descrições as alocando como exageradas, pois o interesse, especialmente dos padres, era frisar o quão demoníaco era o comportamento dos Jagas.

John Thornton concluiu que em Matamba, Nzinga conseguira formar um reino que tolerava sua autoridade, pois estava embasada em apoiadores leais, tornando-se um precedente histórico e contribuindo para a legitimação de poderes femininos na África Central. O caso de sua irmã Dona Bárbara, que assume a liderança logo após a morte de Nzinga é um exemplo. Parece que quanto mais o tempo passava, mais a conquista do Ndongo ficava distante para Nzinga, que agora se refugiara em Matamba, acolhendo em seu kilombo milhares de pessoas de diversas etnias, para além dos Jagas, já multiétnicos.

Não há indícios de que Nzinga praticasse a fé cristã, ao contrário, as fontes sempre condenavam seu comportamento tido como promíscuo tanto pelos rituais exercidos pelos Jagas, quanto pelos inúmeros concubinos que mantinha, dentre outras observações que povoam as descrições especialmente dos capuchinhos. Porém, já no final da vida um episódio marcou sua conversão e foi igualmente relatado por religiosos como Cavazzi, que descreve uma batalha contra um poderoso soba, onde o capitão Nzinga-Amona encontra um crucifixo que fora abandonado no mato. Pela noite o capitão sonhou que a cruz rejeitada o reprimia e exprobrava o desprezo para com o rei Cristão.

Segundo Cavazzi, a partir desta feita, Nzinga teria verdadeiramente se convertido. Para o frei Gaeta a rainha entendeu que o crucifixo fora mandado por Deus através das mãos do general como troféu de sua vitória. Na narrativa, Gaeta menciona o “milagre do crucifixo”, onde Deus mostrava que a amava e a convidava para retornar ao catolicismo. Apesar das detalhadas narrativas as fontes não consideram que os reinos vizinhos, Congo, Angola e Dembo estavam todos cristianizados. Com a idade avançada e estabilizada em Matamba, a paz e o fluxo do mercadejar de escravaria seria algo desejável a um líder nessas condições. Os Jagas que a seguiam abandonaram a vida errante e passaram a se dedicar à agricultura e ao comércio, surgindo no norte de Angola a etnia “Jinga”, uma evidência das configurações políticas e influências identitárias da rainha.

Cavazzi relata com entusiasmo as ações de Nzinga, como a fundação de uma nova igreja em Santa Maria de Matamba, às margens do rio Uamba e a duas léguas da antiga capital. Nzinga pessoalmente carregava as pedras para animar os construtores da Igreja, nas missas sentava-se na primeira fila, assistia ajoelhada os cultos e preferia ser chamada pelo nome de batismo: Dona Anna. Parece que seus últimos anos foram marcados por fervor cristão e extravagância da corte. A rainha vestia-se sempre com capricho, com panos feitos de cascas de árvores, semelhantes ao cetim. Em audiências públicas não dispensava a coroa e o cetro, exigindo que seus súditos, principalmente em batalhas, usassem o crucifixo para que fossem enterrados como cristãos.

As memórias produzidas sobre a vida da rainha Nzinga Mbandi nos avultados escritos que a descrevem possibilitam a reconstrução de alguns acontecimentos que envolvem disputas políticas, de territórios e poder, de comércio e fé. Nzinga foi uma personagem ímpar e se destacou em muitos momentos nos contextos dos seiscentos. Com tamanha eloquência, por vezes aparece mitificada em literaturas e até mesmo em trabalhos com cunho historiográfico. O trabalho de Mariana Fonseca rompe com análises simplistas ao apresentar uma dedicada análise das fontes documentais, dialogando com a historiografia sobre o assunto e se posicionando no debate com uma rainha que participou do tráfico de escravos, mas garantiu a “liberdade” para quem a seguia.

O trabalho observa os mandos de uma cristianização europeia, pautando a rainha como resistente a essa “dominação”. Fonseca delineia os portugueses no decorrer de sua obra como inimigos da rainha, por imposição da fé, mas não só, pois as disputas por territórios e mercados igualmente são mencionados pela autora como propulsores dessa resistência. Contudo, essa categoria pode ser repensada dentro do próprio texto da autora, pois descreve minunciosamente as complexas competições, flutuações fronteiriças e interesses dos próprios africanos em mercadejar e obter vantagens com negociações de qualquer natureza.

A obra de Mariana Fonseca seguramente marcará uma etapa importante na historiografia brasileira. Quer isso dizer que jovens pesquisadores se debruçam em entender realidades tão complexas, com personagens tão intrigantes quando a rainha Nzinga Mbandi. Esses trabalhos auxiliam sobremaneira a explicar-nos enquanto brasileiros e descendentes, como quer Alberto da Costa e Silva, de senhores ou de escravos. Pensar a África é também pensar o Brasil, os escravos saídos das margens de lá e embarcados em navios foram capturados e negociados por líderes como a rainha Nzinga, trazendo-a na memória e a ressignificando por essas paragens.

Isso será tema para uma próxima resenha, pois acompanhando o trabalho de Mariana Bracks Fonseca torcemos para que nos brinde com mais uma Nzinga.

Priscila Maria Weber – Doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].


FONSECA, Mariana Bracks. Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola: século XVII. Belo Horizonte: Mazza, 2016. Resenha de: WEBER, Priscila Maria. A Rainha Nzinga Mbandi como personagem-chave nas disputas de poder no Ndongo; África Central, século XVII. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.224-2231, 2016. Acessar publicação original. [IF].

The Walking Qur’an: islamic education, embodied knowledge and history in West Africa / Rudolph Ware III

O crescimento dos estudos africanos no Brasil, nas últimas décadas, evidencia a necessidade de expandir os objetos de análise para além das relações históricas e culturais afro-brasileiras pautadas na escravidão. Neste processo de emancipação da História da África, um novo tema emerge na agenda dos pesquisadores brasileiros: o Islã. Abordado em publicações pontuais2, o estudo de práticas, crenças, experiências e relações sociais, culturais, econômicas e políticas muçulmanas mostra-se uma necessidade inescapável à compreensão de historicidades africanas, passadas e presentes. A demografia torna inquestionável o papel desempenhado pela África na comunidade islâmica global: a Nigéria possui uma população muçulmana maior que o Irã, maior que o dobro presente no Iraque e que o triplo da Síria; na Etiópia, há mais muçulmanos que na Arábia Saudita; no Senegal, há mais que na Jordânia e na Palestina juntas3. Um peregrino que sair de Dacar poderá cruzar o continente, de oeste a leste, até atingir as margens do Mar Vermelho, andando somente por terras muçulmanas. O Islã, portanto, não é um fenômeno externo à história da África.

Este é o tema central do trabalho de Rudolph Ware, atualmente professor na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos (EUA), cujo objetivo é evidenciar como a experiência da educação islâmica moldou aspectos da história da África Ocidental no último milênio. “The Walking Qur’na” cumpre a importante tarefa de chamar a atenção para esta realidade, muitas vezes desprezada tanto por pesquisadores de História da África quanto de História Islâmica: o Islã africano costuma ser visto como “orientalista” demais para interessar aos primeiros; “africanizado” demais para os segundos. Além disso, a mais importante contribuição do autor é oferecer-nos uma obra inaugural, na qual a educação e a produção de conhecimentos islâmicos ocupam posição de destaque.

Publicado em 2014, o livro é uma versão expandida da tese defendida por Ware em 2004, na Universidade da Pensilvânia (EUA). Nos 10 anos, ele transformou seu estudo sobre educação corânica no Senegal do século XX em importante volume amparado na longa duração, que defende a especificidade e o resguardo das tradições islâmicas na África Ocidental, desde o século XI até as transformações em curso a partir do período pós-1945. Organizado em cinco capítulos, o livro é composto por uma introdução teórica, seguida de um capítulo no qual os principais conceitos – educação, epistemologia islâmica e incorporação (embodiment) – são apresentados. Na sequência, Ware opta por uma organização cronológica para analisar os impactos da educação corânica no Senegal, evidenciando como a cronologia política dialogou com transformações sociais protagonizadas pelos muçulmanos.

Os capítulos abordam a formação de um clero islâmico (c.1000-1770); escravidão e revoluções marabúticas na Senegâmbia (1770-1890); sufismo e mudança social sob o colonialismo francês (1890-1945); reforma epistemológica ou “desincorporação” do conhecimento no Senegal pós-1945. Suas fontes são textos clássicos de tradições islâmicas concernentes à instrução religiosa, oralidades, notas de cientistas sociais do imperialismo europeu, narrativas ficcionais e documentos de arquivos senegaleses, ingleses e franceses, além de observações participantes no Senegal. O argumento fundamental da obra é que o corpo humano foi o vetor primordial dos saberes islâmicos no período clássico, nisto incluído o aprendizado esotérico como princípio ortodoxo do Islã. Daí deriva toda a narrativa: uma vez que o corpo é o Alcorão que anda, ou seja, o livro sagrado memorizado e integrante do corpo físico, toda violência sofrida pelos portadores da revelação seria encarada por seus correligionários como ataque à própria palavra de Deus.

Central na abordagem é o terceiro capítulo, no qual Ware analisa as guerras marabúticas, que marcaram a África Ocidental nos séculos XVIII e XIX. Em sua interpretação, elas corresponderam ao esforço de clérigos islâmicos para impedir a escravização dos muçulmanos. As relações raciais construídas nesse contexto seriam fundamentais à compreensão posterior do Islã praticado pelas populações negras, bem como à produção de discursos civilizadores europeus. Estes, por sua vez, clamariam pela primazia da abolição da escravidão no século XIX, apropriando-se de uma ideia produzida e desenvolvida pelos próprios marabus no final do século XVIII. Não obstante, ao analisar as relações entre Islã e escravidão, o autor produz certa essencialização de personagens africanos, como o Almaami ‘Abdul-Qadir Kan ou o cheikh Amadu Bamba, nutrida por apropriação entusiasmada de narrativas biográficas e tradições orais4. Contudo, isto não reduz o valor do trabalho realizado, uma vez que não compromete o centro da questão.

O trabalho de Ware carrega o grande mérito de evidenciar uma perspectiva epistemológica da educação islâmica com vistas à formação do indivíduo por completo – que envolve valores, comportamentos e conhecimento intelectual. Tal epistemologia, ausente na tradição racionalista ocidental e marcada por castigos físicos, memorização e exposição a situações humilhantes (como a necessidade de a criança peregrinar pelas ruas pedindo esmolas, atividade cuja justificativa é formação do caráter humilde), muitas vezes é entendida como violência, atraindo campanhas de organizações internacionais, governamentais e não governamentais, pela sua supressão. Este é o fio condutor da narrativa, com ênfase no processo de incorporação do Alcorão, performance corporal das práticas religiosas, educação do comportamento e valores, mais do que aprendizado asséptico de conhecimentos abstratos.

Ware analisa a epistemologia associada à incorporação de saberes e adesão ao poder atribuído à palavra do Alcorão, capaz de curas e proteção, cujo aprendizado é tanto intelectual como físico – a palavra deve, literalmente, ser ingerida na água que lava os quadros nos quais os estudantes escreveram suas lições. Ao afirmar que esta orientação decorre do Islã clássico, e não de um processo posterior de africanização, ele se posiciona contrário à tese que estabelece a supremacia árabe na condução e caracterização da comunidade islâmica. Tal tese, estabelecida no início do século XX a partir do colonialismo francês na África, na comparação entre o Islã no Senegal e na Argélia, atribuía caráter inferior ao Islam Noir, o Islã praticado pelos povos negros. Entretanto, ao combater tal interpretação, Ware acaba por inverter o prisma de sua análise. Trata-se, agora, de afirmar que, a despeito das transformações vivenciadas no restante da comunidade islâmica, a “África Ocidental continua a preservar a forma original de educação corânica e suas respectivas disposições corpóreas para o conhecimento”5. Tal afirmação parece estabelecer um novo essencialismo, semelhante àquele produzido pelos colonialistas, mas em direção oposta.

Decerto, sua interpretação é desafiadora e instigante, sobretudo por reequacionar o papel do Islã na África na comunidade global e trazer sua contribuição no campo dos saberes religiosos para o primeiro plano do debate. Contudo, sua premissa traz em si uma reapropriação das teses racialistas, que outrora viam o Islã na África como heterodoxo e inferior. Agora, caberia considerá-lo como indisputavelmente verdadeiro, superior àquele praticado pelos árabes (a quem muçulmanos mourides senegaleses afirmariam que Maomé teria feito grandes críticas6), tributário aos primeiros muçulmanos, visto que a religião teria chegado ao continente africano no ano de 616, antes mesmo do movimento da Hégira – migração de Meca à Medina, que marca o início do calendário muçulmano7. Eis, pois, uma perspectiva afrocêntrica que corre o sério risco de essencializar aquilo que busca historicizar8.

Ao longo do livro, papel importante é atribuído à forma de transmissão de conhecimentos: neste paradigma, uma pessoa não deve acessar um dado saber através de estudo individual, literal e amparado numa racionalidade externa ao sujeito. Antes, este procedimento é entendido pelo autor como decorrente da modernização cartesiana e da racionalidade iluminista, vistas como irreconciliáveis com a corporeidade, a mística e com a relação direta estabelecida entre mestre e discípulo na produção e divulgação de saberes muçulmanos, presentes num modelo clássico. Ware argumenta que a África foi a única região que conseguiu manter a forma clássica de educação corânica, abandonada pelo restante do mundo muçulmano em função da expansão dos valores racionalistas europeus. Portanto, atribui à Europa a gênese do que considera como traços fundamentais de movimentos como o salafismo e wahabismo: a ênfase em interpretações literais como supostamente autênticas, resistência ao Islã místico e às práticas de incorporação, vistas como expressões heterodoxas.

Assim, afirma que o Islã árabe foi corrompido pelo colonialismo europeu, uma vez que identifica os traços fundamentais de correntes como o islamismo, wahabismo e salafismo como decorrentes de um processo de desincorporação, expressão exotérica (voltada para fora do indivíduo, em oposição à esotérica, ocupada com a internalização dos saberes, seja através da memorização ou do consumo físico da palavra) e racionalizada, próprias do pensamento cartesiano e iluminista. Neste sentido, argumenta que a concepção racialista do Islam Noir foi, de forma irônica, salutar para preservar a identidade muçulmana da região. Os franceses, ao acreditarem que o Islã senegalês era inferior ao árabe e, do ponto de vista político, não oferecia riscos às pretensões coloniais, teriam limitado a circulação dos muçulmanos negros no exercício da peregrinação a Meca e estabelecido redes de censura à produção em língua árabe que chegava ao Senegal. Este processo, cujo objetivo era limitar ideias pan-islâmicas e anticoloniais na África Ocidental Francesa, teria resguardado a religiosidade islâmica na região ante a influência modernizante árabe, permitindo à religião e às formas de transmissão a manutenção de disposições corpóreas, vistas como fundamentais à prática9. O restabelecimento de comunicações entre a África Ocidental e os países de língua árabe, após 1945, teria acelerado o processo de desincorporação, iniciado com a oferta de educação colonial nas escolas francesas, e atribuído a ele novo sentido, agora estritamente religioso.

O autor considera a incorporação e a busca pela reprodução do comportamento de Maomé como características fundamentais e universais do mundo islâmico clássico, corrompidas pela modernização que se pretende ortodoxa. Operando um pensamento indutivo, Ware parte da análise das práticas decorrentes da escola de jurisprudência maliquita, largamente presente no Magrebe e na África Ocidental, e universaliza suas conclusões. Este processo permite-lhe atribuir tal modernização a uma suposta contaminação ocidental do Islã. Esta conclusão, contudo, carece de análise mais cuidadosa das relações de outras escolas de jurisprudência islâmica com a produção e exercício dos saberes religiosos. Uma vez que suas referências remetem à fiqh maliquita, pode-se perguntar se as orientações sunitas das escolas shafita, hambalita e hanafita seriam as mesmas10, além das disposições xiitas e ibaditas. De todo modo, sua explanação torna indubitável o desenvolvimento de uma nova epistemologia na África Ocidental, seja ela procedente da cultura ocidental ou de outra orientação islâmica.

“The Walking Qur’na” é um livro de grande importância aos estudos sobre o Islã na África. Elaborado a partir de grande diversidade documental, tem o mérito de conseguir realizar exatamente o que propõe: o estudo da educação islâmica ao longo de um milênio. Um grande desafio que Rudolph Ware consegue superar, trazendo novas e instigantes perspectivas ao debate da História da África diretamente atrelada ao Islã. O livro cumpre o papel de açular o leitor, levá-lo a refletir sobre categorias muitas vezes cristalizadas, fomentar curiosidades e estimular o debate sobre um tema tão fascinante quanto desprezado por grande parte da historiografia sobre a África. A inflexão epistemológica central à proposta torna-o parada obrigatória a todos os estudiosos do tema, ensinando que a história do conhecimento é fundamental ao conhecimento da História.

Thiago Henrique Mota – Doutorando em História em regime de cotutela entre UFMG e Universidade de Lisboa. Bolsista FAPEMIG. E-mail: [email protected].


WARE III, Rudolph T. The Walking Qur’an: islamic education, embodied knowledge and history in West Africa. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2014. 330p. Resenha de: MOTA, Thiago Henrique. Epistemologia islâmica como fio narrativo da História na África Ocidental. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.232-237, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Encontros com Moçambique / Regiane A. Mattos, Matheus S. Pereira e Carolina G. Morais

“Encontros com Moçambique” é um livro fruto de apresentações e debates realizados durante a II Semana da África: Encontros com Moçambique, na PUC do Rio de Janeiro, entre os dias 21 e 23 de março de 2016. Se há uma década os colóquios e seminários reuniam pouco mais de uma dezena de pesquisadores interessados na grande área de História da África, abrangendo assim um amplo recorte temático e temporal de estudos, este livro é o retrato de como, hoje, encontramo-nos em um novo momento. Regiane Augusto de Mattos, Carolina Maíra Gomes Morais e Matheus Serva Pereira apostaram que seria possível organizar uma obra que reunisse pesquisas cujo tema principal fosse Moçambique. A investida não apenas se concretizou como é prova, como afirma Valdemir Zamparoni em seu prefácio à obra, de “um amadurecimento ímpar da área de estudos africanos”2 no Brasil.

Com a maioria dos trabalhos delimitados pelo período colonial ou que perpassam o período em sua análise, o livro conta com 10 artigos divididos em 3 unidades: Deslocamentos, conexões históricas e conflitos; Narrativas; e Agendas de um Moçambique contemporâneo. Na primeira parte, um ponto de união entre os textos são os fatores condicionantes e as consequências de deslocamentos, forçados ou não, em diferentes períodos históricos, além do uso de fontes oficiais, trabalho etnográfico ou registros de imprensa para as análises, com acurado rigor metodológico no uso da documentação.

O artigo de Regiane Mattos, “Aspectos translocais das relações políticas em Angoche no século XIX”, contempla as relações entre sociedades litorâneas e interioranas do norte de Moçambique, destacando os contatos não hierárquicos entre o sultanato de Angoche e as elites muçulmanas de outras localidades, em especial no Zanzibar. Mattos parte de um evento principal para orientar sua pesquisa e desafiar a interpretação tradicional da historiografia: a viagem do comandante militar de Angoche, Mussa Quanto, e seu parente sharif, em 1849. A autora, a partir desse deslocamento, avalia a formação de uma rede comercial e cultural no oceano Índico em consonância com o aumento da presença da religião muçulmana nesses territórios. Mais do que realizar a análise histórica de uma questão localmente específica, interessa a Mattos averiguar as conexões a partir da perspectiva da translocalidade, conceito desenvolvido pela historiadora Ulrike Freitag e central na abordagem proposta no artigo. Muito bem explicado no texto, o conceito ampara a pesquisa em seu objetivo de destacar as interconexões entre lugares e atores, abrindo espaços para ressignificações de aspectos globais em âmbito local.3

No artigo seguinte, “Algazarras ensurdecedoras: conflitos em torno da construção de um espaço urbano colonial (Lourenço Marques – 1900-1920)”, Matheus Serva Pereira aborda, a partir de notícias na imprensa local, a difícil relação entre o projeto urbano colonial português para Lourenço Marques, cuja área central de Maxaquene foi delimitada para a ocupação de famílias brancas europeias, e a insistência – e resistência – dos “batuques” da população local. O argumento de Serva Pereira é que, a despeito do projeto colonial urbano, do uso da violência física e simbólica no deslocamento forçado das comunidades para a periferia, as notícias veiculadas na imprensa da época põem em xeque o sucesso de tal empreitada. Pereira atesta que os batuques, como práticas culturais, revelam uma atuação “longe de passiva em relação as instituições criadas para regular e fiscalizar o perímetro urbano de Lourenço Marques”4, estabelecendo assim um diálogo estreito com as premissas teóricas de Frederick Cooper sobre a noção de resistência em espaços coloniais5. Do mesmo modo, o autor esforça-se em defender uma organização social não totalmente polarizada na cidade, ao recompor o espectro social dos batuques nas cantinas de Lourenço Marques, onde não era incomum a convivência, num mesmo espaço de diversão, de figuras oficialmente opostas na lógica colonial e urbana.6

Ainda sob a premissa dos deslocamentos e seus conflitos, o capítulo que encerra o primeiro conjunto de textos, “Saúde além das fronteiras: doenças, assistências e trabalho migratório ao sul de Moçambique (1930-1975)”, de Carolina Maíra Gomes Morais, analisa de que maneira a imigração de trabalhadores para a África do Sul, no período colonial, além de atender a uma demanda econômica, trouxe consequências sensíveis no âmbito da saúde e das relações pessoais em Moçambique. Para acessar as condições desse movimento migratório, Morais faz uso, sobretudo, de fontes oficiais de relatórios de inspetores administrativos e se questiona de que maneira se davam as relações entre medicina “oficial” e “tradicional”. Pela disponibilidade das fontes, há uma comprovação mais substancial em relação à atuação dos Serviços de Saúde do que ao recurso à medicina tradicional. Interessante é notar a fluidez de fronteiras entre Moçambique e África do Sul sugerida pela autora para os saberes e medicinas tradicionais, proporcionada pelo trabalho migratório, além da ampla modificação nas relações pessoais em Moçambique, quando do retorno dos trabalhadores.

Na segunda unidade do livro, composta por trabalhos de pesquisadores provindos de diferentes áreas do conhecimento, os artigos têm em comum o estudo de uma obra ou do conjunto da obra de moçambicanos. Nesta unidade, que traz fontes interessantes e pouco convencionais nas pesquisas sobre Moçambique, como a fotografia e o cinema, cumpre enfatizar como nota comum o superdimensionamento do contexto histórico nas abordagens. Nos trabalhos, o contexto é instrumentalizado de modo a legitimar as narrativas ficcional ou visual presentes na documentação, utilizada muitas vezes como mero exemplo comprobatório da realidade colonial. Não resta dúvida quanto ao esforço teórico de todos os textos da unidade, mas, de um modo geral, a metodologia utilizada para a análise da relação entre ficção e História, literatura e História e visualidade e História nesses trabalhos limitou o uso mais abrangente das fontes, negligenciando, em certa medida, as narrativas criativas das próprias obras como propositivas e autoras de discursos formadores do social.

Em “O cinema em Moçambique – história, memória e ideologia: análise dos filmes Chaimite, a queda do Império Vátua (1953) e Catembe: sete dias em Lourenço Marques (1965)”, Alex Santana França realiza uma interpretação sócio-histórica e comparativa entre os filmes Chamite… e Catembe…, ancorando-se na perspectiva teórica de Francis Vanoye. Com a análise sobre Chaimite, o autor demarca as principais características do cinema de propaganda portuguesa, que se dispunha a responder, na época, à crítica internacional sobre o colonialismo luso. Catembe…, ao mesmo tempo em que demonstra o empenho português em conformar uma imagem oficial das colônias, comprovado pelos diversos cortes impostos ao filme, é considerado pelo autor como um exemplo de crítica à colonização.

Em “Não Vamos Esquecer! A propósito da fotografia ‘Marca de gado em jovem pastor’ de Ricardo Rangel”, Isa Márcia Bandeira de Brito busca analisar uma imagem feita pelo fotógrafo moçambicano em 1973, na qual um menino havia sido ferido a ferro na testa por seu patrão, por ter deixado fugir um animal. O prisma da autora na interpretação da imagem, no entanto, não favorece uma análise aprofundada e complexa do objeto, já que toma a imagem como exemplo das relações de violência colonial de maneira generalizada e dicotomiza as relações colonizador/colonizado, enfoque do qual vem se distanciando a historiografia mais recente, amparada nos estudos pós-coloniais, como são exemplos trabalhos consagrados, como os de Frederick Cooper, Homi Bhabha e Mary Louise Pratt7. A autora, vale frisar, mobiliza uma bibliografia interessante para a teorização do objeto no campo das visualidades e o trabalho dimensiona possíveis significados simbólicos da fotografia.

Em “A poesia contestatória de Noémia de Sousa e a situação colonial em Moçambique (1948-1951)”, Gabriele de Novaes Santos se propõe a compreender como a imprensa se ofereceu como veículo para a poesia de contestação colonial da escritora moçambicana Noémia de Sousa. O trabalho de Gabriele Santos é ainda inicial e, portanto, muito promissor, uma vez que a autora abre, no próprio texto, possibilidades de pesquisa interessantes sobre a obra da moçambicana. Por fim, o texto que encerra Narrativas é de autoria de Fatime Samb, com o título “A mulher moçambicana e as práticas culturais”. Ainda no primeiro parágrafo, a autora atesta sua proposta de fazer uma análise sobre o livro Niketche: uma história de poligamia e sobre o papel da mulher na obra de Paulina Chiziane. Samb faz uma importante recapitulação sobre as relações de gênero em Moçambique e a posição social da mulher na “sociedade tradicional” moçambicana, além dos impactos da independência nas relações de gênero e atuação política feminina a partir do comando da Frelimo, um tema ainda pouco conhecido e abordado em pesquisas sobre Moçambique.

A terceira e última unidade do livro, Agendas de um Moçambique contemporâneo, é formada por três artigos, sendo que dois estão em profundo diálogo a respeito da inserção internacional moçambicana, e provêm de duas áreas de formação distintas: Administração e Antropologia. Elga Lessa de Almeida e Elsa Sousa Krayachete, em “Moçambique e a cooperação internacional para o desenvolvimento”, fazem um retrospecto sobre as relações bilaterais estabelecidas por Moçambique com seus parceiros internacionais, demarcando a diferença entre cooperações verticais e horizontais, estas firmadas por países em desenvolvimento, como África do Sul, China e Brasil. O estudo de Elsa de Almeida e Elga Krayachete e o de Fernanda Gallo, “(Des)encontros do Brasil com Moçambique: o caso da Vale em Moatize” complementam-se diante do leitor atento às investidas e consequências da presença brasileira no país. Com um interessantíssimo trabalho antropológico, Gallo busca a vivência da população diante das transformações provocadas pela chegada das empresas multinacionais, em especial a mineradora Vale, e pergunta-se se há alguma relação entre esses megaprojetos para o país e a retomada crescente dos conflitos com a Renamo e ataques a trens. A antropóloga, munindo-se das comprovações de seu trabalho de campo, torna evidente ao leitor o desrespeito das empresas sobre as relações das pessoas com seus locais de origem, ao decidirem, unilateralmente, os locais para reassentamento, por exemplo, e deixa às claras o descompasso entre o discurso oficial da solidariedade e a prática de maximização dos lucros das empresas estrangeiras no país.

O livro se encerra com o capítulo desafiador de Vera Fátima Gasparetto, no qual a autora se dispõe a discutir as possibilidades de uma pesquisa interdisciplinar feminista a partir de uma análise sobre a questão da veiculação da imagem feminina na mídia, comparando a atuação feminina sobre essa questão no Brasil e em Moçambique. A autora traz um panorama sobre a composição e atuação das mulheres em seus espaços de organização nos dois países, como o Fórum Mulher e a Rede Mulher e Mídia. De um ponto de vista feminista e das novas epistemologias no Sul, em diálogo com Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, Gasparetto faz ainda uma crítica interna a algumas teorias feministas que essencializam africanas, fazendo do trabalho acadêmico também um trabalho militante na investida de produzir “[…] uma investigação interessada em conhecer a partir das mulheres, conceituadas como sujeitas conhecedoras e conhecíveis.”8

O livro sem dúvida é uma referência importante e necessária para quem deseja se aprofundar em alguns temas moçambicanos e os trabalhos são, em conjunto, uma contribuição valiosa que demonstra um país repleto de possibilidades de pesquisa e com múltiplas fontes possíveis para análise. Mostra-se especialmente interessante nessa obra organizada o diálogo bibliográfico entre os trabalhos e, sobretudo, os diferentes exercícios teóricos e metodológicos que ultrapassam as barreiras temáticas e configuram-se como inspiração aos pesquisadores leitores. Assuntos e referências atravessam alguns capítulos do livro, como o conceito de colonialidade de Aníbal Quijano9, mais profundamente abordado no artigo de Vera Gasparetto, a discussão de gênero, de trabalho e a noção de resistências, no plural, ao longo da história moçambicana. Esse é um livro que, sem dúvida, deve ser consultado para se conhecer mais e melhor sobre Moçambique.

Taciana Almeida Garrido de Resende – Doutoranda em História Social – USP. São Paulo, SP-Brasil. E-mail: [email protected].


MATTOS, Regiane A. de; PEREIRA, Matheus Serva; MORAIS, Carolina Gomes (Org.). Encontros com Moçambique. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016. 286p. Resenha de: RESENTE, Taciana Almeida Garrido. Desafios metodológicos, interdisciplinaridade, História: Encontros com Moçambique. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.238-243, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Another Black Like Me: the construction of identities and solidarity in the African diaspora / Nielson R. Bezerra

Another Black Like me, editado por Elaine Rocha e Nielson Bezerra, discute a questão racial, na América Latina e no Caribe, a partir da perspectiva dos negros, sejam estes escravizados ou descendentes de pessoas que passaram pelo cativeiro. Para tanto, os autores ressaltam que é de negros, e não de afrodescendentes, que estão tratando. E o fazem como forma de pontuar e trazer para o debate as complexidades e subjetividades às quais a percepção da negritude esteve submetida, desde o início da diáspora africana até os tempos atuais. Procurando contemplar uma ampla gama de recortes temporais e conceituais, o livro abrange temáticas diversas, que vão, desde o gênero até a resistência, passando por questões ligadas à territorialidade, mobilidade espacial, abolicionismo e identidade.

Esse livro é fruto do esforço de seus dois editores em unir perspectivas e abordagens, das mais diversas, acerca da diáspora africana na América Latina. Oferecendo uma abordagem sólida para tais questões, essa obra consegue agregar artigos que dialogam e fazem sentido quando unidos. Os pesquisadores ora reunidos, apesar de oriundos de diferentes instituições e formações, convergem em uma direção que dá sentido à obra, que é o que toda coletânea precisa (e deveria) ter.

Como é de se esperar em um trabalho feito a muitas mãos, as fontes utilizadas são das mais diversas. Destaco o uso de relatos de viajantes que, nessa obra, servem a diferentes análises. Ygor Rocha Cavalcante os utiliza para identificar os locais de esconderijo dos escravos fugidos bem como para visualizar o cotidiano das localidades por ele analisadas; já Luciana da Cruz Brito acessa tais relatos como forma de analisar a percepção internacional sobre a mítica democracia racial brasileira. Além de tais fontes, o livro ainda apresenta trabalhos que contam com o uso da literatura, história oral, fontes processuais, registros cartoriais, entre outras.

Another Black Llike me nos leva, então, do Brasil à Porto Rico, passando pelo Caribe Britânico e, de volta à África, até Gana. Apesar do livro não possuir nenhuma divisão em partes ou seções, ao lê-lo, consigo identificar dois eixos norteadores do trabalho. Estes correspondem, também, a uma divisão temporal, que pode ser marcada pelo progressivo fim do escravismo nos países da América Latina. Dois momentos, por assim dizer, que se organizaram de diferentes maneiras, nas diferentes sociedades ora abordadas, mas que guardam convergências e similaridades e permitem aproximação em uma única obra.

Dessa forma, esse livro apresenta um primeiro eixo, que corresponde a uma América Latina pós-escravista, que precisa lidar – tanto política, como social e economicamente – com suas questões raciais, suas desigualdades e pertencimentos. E um segundo eixo, que trata dos séculos XVIII e XIX, correspondente ao período escravista da América Latina. Lidando com resistências, construções de identidades e com o abolicionismo, esse segundo eixo trata, principalmente, do Brasil e dos desdobramentos das questões afro-brasileiras.

Analisando o livro nessa chave de leitura, o primeiro eixo que identifico, neste trabalho, compreende os quatro primeiros artigos, de autoria de Elaine Rocha, Ronald Harpelle, Victor C. Simpson e Rhonda Collier. Rocha debate a identificação dos afrodescendentes na América Latina, seja ela imposta ou escolhida. A autora discute questões ligadas à identificação racial, e às formas como essa identificação foi (e tem sido) utilizada, tanto de forma positiva, quanto de forma negativa. Harpelle lida com os grupos de descendentes de africanos na América Central que, na metade do século XX, não sabiam quais eram suas origens, que também não eram conhecidas pelas autoridades britânicas que, no século anterior, controlaram a imigração para muitas das ilhas Caribenhas, de onde a maior parte dos imigrantes saíram para a América Central continental. Simpson delineia a taxonomia racial em Porto Rico e no Caribe Anglófono, buscando, na experiência histórica da diáspora africana e do domínio colonial europeu, as raízes que, depois de séculos de interação, dominação e exclusão, deram origem às designações de cor naquelas localidades. Assim como em grande parte da América Latina, tais denominações não se resumem apenas a negro e branco, possuindo uma enorme gama de outras gradações entre essas duas. Tais divisões não se resumem apenas a tons de pele, sendo influenciadas por questões sociais e econômicas. Collier examina as condições de vida de mulheres cubanas, de ascendência africana, no século XX, enfatizando as dificuldades pelas quais passam, devido à cor de sua pele, e as consequências que os estereótipos por elas enfrentados trazem para suas vidas, como a pobreza e a prostituição. Muitas dessas mulheres são o único sustento de suas famílias, o que as empurra ainda mais fundo para essas condições.

Neste primeiro momento do trabalho, destaco o artigo de Rhonda Collier. Analisando as duras condições sociais às quais uma grande maioria de mulheres cubanas foi submetida, no final do século XX, com a queda da União Soviética e as dificuldades econômicas enfrentadas por Cuba, Collier aponta que a única saída que muitas encontravam, para sobreviver e prover a sobrevivência de suas famílias, era a prostituição. Isso gerou um estereótipo relacionado às mulheres cubanas de ascendência africana, que persiste até os dias de hoje.

A autora explora obras de poetisas cubanas, em fins do século XX, que denunciavam as condições às quais tais mulheres eram expostas, bem como o fato de que a revolução socialista, em Cuba, teria feito com que a pobreza levasse, cada vez mais, mulheres para a prostituição. Em oposição à prostituta, que se havia tornado peça de mercado, no turismo cubano, a figura que deveria emergir em seu lugar seria, então, a da mãe, valorizando o país, enquanto pátria que nutre seus filhos e filhas. A África seria, nessa visão, a mãe, na qual Cuba deveria se espelhar. Collier demonstra, nesse artigo, como a identidade da mulher cubana foi palco de disputas, por representatividade e reconhecimento, bem como por participação social e econômica.

O segundo eixo do livro, por sua vez, está articulado em torno das questões ligadas à escravidão, sem perder de vista o foco nas identidades e representações dos negros nas sociedades. Esse segundo momento do trabalho conta com cinco artigos, escritos por Flávio dos Santos Gomes, Ygor Rocha Cavalcante, Nielson Rosa Bezerra, Luciana da Cruz Brito e Marco Aurelio Schaumloeffel. Gomes analisa as experiências de fugas, nas fronteiras do Brasil colonial e da Guiana Francesa, nos séculos XVIII e XIX, atentando para as trocas culturais atlânticas, as experiências coletivas e as formas de resistência delas advindas. O autor enfatiza que as fronteiras coloniais não estabeleciam limites para tais trocas, demonstrando que as ideias circulavam entre os escravos, possibilitando, além das fugas, a migração ou a formação de mocambos, comunidades de escravos fugidos. Cavalcante também trabalha com a questão espacial, ao examinar a resistência escrava na fronteira amazônica do século XIX. Numa região marcada pelo povoamento indígena – nas regiões afastadas das cidades, pela interação entre indígenas e mestiços livres ou vivendo em diversas formas de dependência, e também pelo cultivo e preparo da borracha, atividade que exigia mobilidade – o trabalho escravo se organizava de maneiras diferentes daquelas encontradas no Sul e Sudeste, e até mesmo das regiões açucareiras do Nordeste. Dessa forma, a ação dos escravos e suas experiências acumuladas também se organizam de maneira própria. Bezerra analisa a trajetória de Mohammed Gardo Baquaqua, africano apreendido na África Ocidental e vendido como escravo, no século XIX, que, após uma verdadeira odisseia atlântica, com passagem pelo Brasil, Estados Unidos, Haiti e Canadá, conseguiu a liberdade, estabeleceu-se nos Estados Unidos e lá escreveu suas memórias, em forma de relato autobiográfico. Bezerra examina, então, a mobilidade espacial e a sociabilidade de Baquaqua, bem como seu relato, a fim de demonstrar como as pessoas escravizadas lidavam com os limites impostos pela escravidão. Brito analisa as perspectivas dos abolicionistas, dos Estados Unidos do século XIX, no tocante às relações raciais no Brasil. A autora aponta como o mito da democracia racial afetou a visão que se tinha sobre os direitos e o tratamento dado aos ex-escravos no Brasil, mostrando como tal mito espalhou-se e ganhou força mundo a fora, sendo utilizado como argumento, em querelas referentes aos direitos das pessoas de ascendência africana. Schaumloeffel encerra o livro, analisando a diáspora afro-brasileira, na África, com o caso dos Tabom em Gana. Esse grupo era formado por brasileiros descendentes de africanos que decidiram, espontaneamente, imigrar para a África, bem como por outros que, após se revoltarem, foram banidos para a África Ocidental. O autor toca nas questões relativas à formação de identidade desse grupo, bem como sua organização familiar política.

O artigo de Nielson Bezerra merece destaque, por demonstrar um exercício metodológico bastante interessante, ao preencher as lacunas da vida de Baquaqua com uma perspectiva historiográfica, a fim de entender o contexto brasileiro vivido por aquele africano. É importante notar, que o foco de Bezerra é o período que Baquaqua passou no Brasil, vivendo nas províncias de Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande. Assim, esse artigo não apenas descreve a vida de Baquaqua e o que pode ser encontrado em seu relato autobiográfico, como também analisa as relações escravistas, naquelas províncias, e seu impacto na vida dos africanos escravizados.

O uso de biografias de africanos, como fonte, é algo bastante recorrente na historiografia sobre a escravidão na América do Norte. Para o caso brasileiro, entretanto, o relato de Baquaqua é, até o momento, o único encontrado. Nesse sentido, o artigo de Bezerra pode servir, também, de reflexão, para pensarmos em outras formas de analisar trajetórias de africanos e africanas no Brasil: na ausência de relatos autobiográficos, a historiografia brasileira vem reconstruindo essas histórias, a partir de diversos tipos de fontes, como registros cartoriais, policiais e eclesiásticos. Convergir essa metodologia, com a análise feita por Bezerra, pode ser um exercício metodológico interessante.

Another Black Like Me pode ser lido, então, como um bom exercício de história social. Com sólido embasamento nas fontes, todos os nove artigos apresentam perspectivas que possibilitam compreender as pessoas escravizadas e suas descendentes como sujeitos ativos, ainda que limitados, por suas condições sociais, políticas, econômicas e históricas. Além disso, é um livro que lida com a identidade dos africanos e seus descendentes, entendidos no contexto da diáspora, no interior das formações e transformações de suas identidades, entendidas no contexto da longa história do negro na América Latina.

Daniela Carvalho Cavalheiro – Doutoranda em História Social da Cultura/UNICAMP. Campinas/São Paulo/Brasil. E-mail: [email protected].


BEZERRA, Nielson Rosa; ROCHA, Elaine (Org.). Another Black Like Me: the construction of identities and solidarity in the African diaspora. Newcastle upon Tyne, UK: Cambridge Scholars Publishing, 2015. 230 p. Resenha de: CAVALHEIRO, Daniela Carvalho. Identidades em questão: escravidão, liberdade e pertencimento no mundo atlântico. Outros Tempos, São Luís, v.12, n.19, p.268-272, 2015. Acessar publicação original. [IF].

O primeiro Duque de Palmela: político e diplomata. Lisboa: D. Quixote, 2015 / Maria de Fátima Bonifácio

Após a sua já consagrada Apologia da história política2 publicado pela Quetzal em Lisboa, Maria de Fátima Bonifácio3 publicara já uma série de estudos no âmbito de uma defesa da História Política e de suas perspectivas de análise. Com vista a críticas de uma história das estruturas, “invisível” e “profunda”, defende em sua apologia as formas e os métodos da História Política, ao mesmo tempo em que passa a oferecer ao público acadêmico estudos de biografia política de destacadas figuras portuguesas, desde os finais do século XVIII e todo o século XIX. Fora com esse ímpeto que em 2002 publica A segunda ascensão e Queda de Costa Cabral, 1847-1851 e em 2013, pela Editora D. Quixote, uma extensa análise em Um homem singular biografia política de Rodrigo da Fonseca Magalhães, 1787-18584. O seu estudo já conhecido e reeditado várias vezes sobre D. Maria II5 também entra na lista de sua bibliografia sobre biografias de personalidades políticas, sejam elas envoltas nas tentativas de instituição de um liberalismo em Portugal ou mesmo nos períodos posteriores ao “radicalismo” vintista, setembrista e cabralista.

Em 2006, pela Quetzal, escreve um longo posfácio à edição portuguesa de Correspondência Madame de Staël e Dom Pedro de Souza6, organizada e comentada por Béatriz d’Andlau7. Neste posfácio levanta já alguns dos fatos que seriam retomados na edição das Memórias do Duque de Palmela8, transcritas e editadas por ela e que, num detalhado prefácio, analisa a trajetória do diplomata, tendo atuado em Londres, Madrid e no Congresso de Viena (1815). Esse prefácio, acrescido de mais um capítulo, fora reediado pela Editora D. Quixote e é agora publicado com o título O primeiro Duque de Palmela- político e diplomata em edição de junho de 2015, objeto desta resenha.

No texto, analisa a trajetória política e biográfica do primeiro Conde, primeiro Marquês e primeiro Duque de Palmela, D. Pedro de Sousa Holstein. Nascido em Turim em 1781, descendia de membros da alta aristocracia portuguesa, da Casa Palmela,9 tendo desempenhado uma ascendente carreira diplomática10, desde Conselheiro de embaixada em Roma (1802-1805), Ministro em Cádiz (1810-1812), embaixador em Londres (1812), representante português no Congresso de Viena (1815), dentre diversos outros cargos de grande representação política e social, tendo sido Secretário de Negócios Estrangeiros e da Guerra por diversos períodos.

O texto divide-se em três partes: (I) Vocação e caráter de um conservador liberal, (II) Em luta pela liberdade portuguesa e (III) Em busca de um “partido moderado e médio”; esses foram resgatados do prefácio que a autora havia publicado em Memórias do Duque de Palmela11. Em “o capítulo que falta”, Maria de Fátima Bonifácio detalha aquele que, segundo sua análise, fora um dos principais desafios do ministro português: a abolição do fatídico Tratado de Amizade, Comércio e Navegação luso-britânico de 181012 e a aprovação de outro tratado que seria colocado em ratificação apenas em 1842. O livro encerra-se com uma detalhada cronologia da vida política e pessoal de D. Pedro, de 1781 à sua morte por pneumonia dupla, em 12 de outubro de 1850.

O ambiente internacional de formação de D. Pedro envolve um período de conturbações importantes de finais da era moderna. A conjuntura após a Revolução Francesa que se desdobra, dentre outras coisas, em movimentos de controle e de fortalecimento das Monarquias, temerosas de contestações de tal calibre, encontra terreno para movimentos reformistas e de algumas reorientações no campo político internacional. No caso português, que vivia na órbita de aproximação e conflito entre ingleses e franceses, a ascensão de Napoleão e a definição clara de sua linha de atuação na Europa, antibritânica, encurrala em perigosas negociações as tomadas de posição da Coroa Lusa. Os desdobramentos do Bloqueio Continental (1806) e do ultimatum de Napoleão ao Príncipe Regente D. João VI (julho de 1807) pelo cumprimento ou guerra com o exército francês, que culmina na transferência da família real ao Rio de Janeiro (novembro de 1807), serão eventos chave para os movimentos que se seguiram e que seriam colocados pelos representantes portugueses no Congresso de Viena (1814-1815)13.

A atuação de D. Pedro de Sousa no Congresso de Viena fora, para um jovem diplomata de 33 anos, o início de uma consagrada carreira nos orbes europeus. Chega a Viena em 27 de setembro, antes do “início”14 do Congresso e passa a apurar os estados das negociações. Os problemas que pareciam postergar as atividades congressuais apontavam, dentre outras coisas, ao direito de voto das potências, sendo que inicialmente Portugal estava fora deste seleto grupo15. Após longas conversas e ofícios enviados, D. Pedro consegue16 que Portugal fosse alçado ao pé de igualdade das demais grandes nações europeias: Rússia, Prússia, Suécia, Inglaterra, Espanha e Áustria.

O fantasma de Napoleão rondou o Congresso no seu andamento e somente após a chegada das notícias de Waterloo (18 de junho) que a tranquilidade se instalou nos ministros, depois da assinatura do “Ato Final”. Estes representavam quase todos os Estados e principados europeus, até os que não eram reconhecidos por alguns chefes, sendo que muitas destas questões foram colocadas em resolução. O ambiente era de total cosmopolitismo e de ostentações, festas e vaidades, com os mais importantes chefes das nações europeias17; D. Pedro circulava com total liberdade pelos principais salões de Viena, correspondendo-se com os mais importantes ministros acerca das pautas portuguesas, além de aumentar consideravelmente seu círculo de contatos, essencial para sua carreira ao retornar a Portugal.

As principais questões colocadas por D. Pedro de Sousa e os demais ministros, como o Caso da Guiana, não resultaram em grandes modificações do que já ficara acordado entre França e Inglaterra no tratado de Paris (1814); no entanto, os plenipotenciários portugueses além de D. Pedro, como Antonio Saldanha da Gama e Joaquim Lobo da Silveira, conseguiram que as definições fronteiriças entre a Guiana e a América portuguesa ficassem definidas na linha do Rio Oiapoque18. A questão da abolição da escravatura, colocada sobre forte pressão britânica19, e do tráfico de escravos ficara limitada ao norte da linha do Equador, o que provocara, na então ex-colônia e agora Reino Unido20, elevação aprovada em Carta de Lei de dezembro de 1815 no próprio Congresso, do preço médio dos escravos vindos da África, principalmente nas províncias do Norte do Brasil21. Em torno das indenizações que a França deveria pagar aos Estados lesados, Portugal não saíra com grandes quantias e, segundo Ana Faria22, a participação fora tão baixa quanto da Suíça e Dinamarca.

Uma das principais questões portuguesas no Congresso seria a restituição de Olivença pelos Espanhóis. Após o Tratado de Badajoz de 1801, que pôs fim a chamada Guerra das Laranjas e que deu ao espanhóis a soberania de Olivença desde o Rio Guadiana e suas possessões, que essa questão se arrastava pelos campos diplomáticos. Em 1808, já no Rio de Janeiro, D. João VI denunciara o tratado que seria, por D Pedro de Sousa, quando enviado a Cádiz (1810), retomado às negociações que, dentre outras coisas, determinava a devolução de Olivença aos portugueses; no entanto, este acordo não fora cumprido e não figurava no Tratado de Paris. Em Viena, dado o reconhecimento das demais nações da soberania portuguesa sobre Olivença, fora adicionado ao tratado um artigo que definia a devolução em favor de Portugal23. Por mais que a Espanha tenha reconhecido, à época, a soberania portuguesa, a devolução nunca veio a acontecer.

No entanto, a coroação da brilhante carreira de D. Pedro de Sousa aconteceria logo em seguida ao Congresso de Viena, com o seu envio como embaixador em Londres. Desde esse momento, o nome Palmela já era, mais que antes, conhecido e admirado na Europa24. A partir desse momento, mais particularmente após o movimento vintista e sua passagem pelo Brasil (1820), passa a ser uma importante figura de conciliaçao nacional.

Sempre a buscar um partido moderado e a simbiose dos diferentes interesses postos no jogo político, D. Pedro será figura-chave nas querelas pela coroa portuguesa após o Vintismo, sendo que suas raízes aristocráticas o farão25 ao mesmo tempo lutar pela soberania de D. Maria II e também ser alvo, em diversos momentos, da ira dos Miguelistas, mesmo depois de derrotados. A sua tentativa progressista de compor ministérios com ambas as partes, vistas como conciliatórias, foram rechaçadas e sua tomada de partido sempre colocada sobdúvida.

As ambiguidades do primeiro Duque de Palmela, sempre a ostentar “a gala da sua independência partidária”, acabaram por torná-lo mal visto até mesmo pela Rainha, acabando por isolá-lo do círculo palaciano. Conforme Maria de Fátima, no final de seu texto, apesar dos revezes de sua trajetória política, fora o único ministro português conhecido em todos os palácios europeus e sua casa uma das mais ricas e reconhecidas casas aristocráticas do Reino; de seu tempo, fora um dos mais representativos agentes da história portuguesa.

Notas

  1. Resenha submetida à avaliação em junho de 2015 e aprovado para publicação em novembro de 2015.
  2. BONIFÁCIO, Maria de Fátima. Apologia da história política: estudos sobre o século XIX português. Lisboa: Quetzal Editora, 1999.
  3. Com larga carreira em ensino e pesquisa, fora professora da Universidade Nova de Lisboa de 1980 a 2006, tendo sido doutorada com agregação pela mesma universidade; licenciou-se em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e fora investigadora-coordenadora do Instituto de Ciências Sociais da mesma universidade até 2012.
  4. BONIFÁCIO, Maria de Fátima. Um homem singular: biografia política de Rodrigo da Fonseca Magalhães (1787-1858). Lisboa: D. Quixote, 2013.
  5. BONIFÁCIO, Maria de Fátima. D. Maria II: 1819-1853. Lisboa: Temas e Debates, 2007.
  6. D’ANDLAU, Béatriz (Org.). Correspondência de Madame de Staël e Dom Pedro de Souza. Lisboa: Quetzal, 2010.
  7. Ao estar com o pai em Roma, ainda com vinte e quatro anos, D. Pedro de Sousa conhece a famosa romancista francesa (1804), Mme de Stäel que viaja à Itália para recolher notas a um novo romance. A efusiva correspondência entre os dois demonstra um longo relacionamento, com cartas inflamadas e saudosas. Com o retorno do Duque a Portugal, a correspondência passa a cessar nomedamente depois dos planos de casamento de D. Pedro. Cf. CAMPOS, Claudia. A Baronesa de Estäel e o Duque de Palmella. Lisboa: Tavares Cardoso & Irmão, 1901.
  8. BONIFÁCIO, Maria de Fátima. Memórias do Duque de Palmela. Lisboa: D. Quixote, 2011.
  9. Cf. URBANO, Pedro. A casa Palmela. Lisboa: Livros Horizonte, 2008.
  10. Filho de D. Alexandre de Sousa Holstein, Conde de Sanfré, e de D. Isabel Juliana de Sousa Holstein; D. Alexandre já tinha desempenhado na diplomacia diversos cargos, Embaixador em Copenhaga (1785-1789), Berlim (1789-1790), Viena (1790) e Roma (1808-1803) para onde leva o filho. Desde então, D. Pedro adquire o gosto pelos mais requintadores salões da política europeia do período, tendo contato com as mais importantes famílias.
  11. BONIFÁCIO, Memórias…op. cit.
  12. BONIFÁCIO, Memórias…op. cit. p.83: “Não confundir com o Tratado de Aliança e Amizade também celebrado em 1810, destinado a regular as relações políticas entre Portugal e a Grã-Bretanha durante o domínio napoleônico na Europa, tendo sido abolido na sequência da Paz Geral oficializada pelo Congresso de Viena em 1815”.
  13. Cf. FARIA, Ana Leal de. Arquitectos da paz: a diplomacia portuguesa de 1640 a 1815. Lisboa: Tribuna, 2008. p.152-157.
  14. Segundo Maria Amália Vaz de Carvalho (1898, p.293, nota I), o Congresso nunca possuiu uma “abertura”, não havendo a constituição efetiva de um Congresso; na prática, apenas algumas comissões entre ministros plenipotenciários foram instaladas, com assinaturas de tratados unilaterais ou de interesses comuns que foram feitos. No final de todas essas negociações, em 19 de junho de 1815, há a assinaura de um Ato final do Congresso de Viena. Cf. CARVALHO, Maria Amália Vaz de (1898). Vida do Duque de Palmela D. Pedro de Sousa e Holstein. Lisboa: Imp. Nacional, 1898.
  15. O temor inicial das demais nações era que a presença de mais uma nação alinhada com os interesses ingleses pudesse representar um voto a mais para o Império Britânico, para além da já presença de uma nação Ibérica, a Espanha. Cf. CARVALHO, Maria Amália Vaz de (1898), p.292-294.
  16. BONIFÁCIO, O primeiro Duque…op. cit., p. 28.
  1. Cf. ZAMOYSKI, Adam. Ritos de paz: a queda de Napoleão e o Congresso de Viena. São Paulo: Record, 2012.
  2. Cf. ALÇADA, Isabel; FERNANDES, Paulo Jorge. MAGALHÃES, Ana Maria. As invasões francesas e a Corte no Brasil. Lisboa: Caminho, 2011. p.216-219.
  3. Cf. VICK, Brian E. The Congress of Vienna: power and politics after Napoleon. London: Havard University Press, 2014. p. 196-198.
  4. Segundo FARIA, op cit., p.157, fora a elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal que permitiu as negociações que conseguiram consumar o casamento do Príncipe D. Pedro com D. Carlota Josefina Leopoldina de Habsburgo (maio de 1818).
  5. Cf. GALVES, Marcelo Cheche. The Congress of Vienna and the matter of slavery in the North of the Portuguese America. In: THE CONGRESS OF VIENNA AND ITS GLOBAL DIMENSION, 2014, Vienna. Book of abstracts… Viena: Universitat Wien, 2014. v. 1. p. 9.
  6. FARIA, op cit., p.156-157.
  7. Cf. MENDONÇA, Antonio Pedro Lopes de. Notícia histórica do Duque de Palmella. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859. p.36-39.
  8. BONIFÁCIO, O primeiro Duque…op. cit., p.30-32.
  9. Ibid., p. 57-59.

Romário Sampaio Basilio – Mestrando em História Moderna e dos Descobrimentos, Universidade Nova de Lisboa, FCSH, Lisboa, Portugal. E-mail: E-mail: [email protected].


BONIFÁCIO, Maria de Fátima. O primeiro Duque de Palmela: político e diplomata. Lisboa: D. Quixote, 2015. Resenha de: BASILIO, Romario Sampaio. A Diplomacia portuguesa no Congresso de Viena (1815): a trajetória do primeiro Dugue de Pamela, D. Pedro de Sousa Holstein. Outros Tempos, São Luís, v.12, n.20, p.288-292, 2015. Acessar publicação original. [IF].

 

Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989) / Soraia C. Mello

Resta saber (…) se as mulheres são desvalorizadas socialmente porque encarregadas do trabalho doméstico ou se o trabalho doméstico é desprezível porque feito por mulheres.[2]

A citação acima, retirada da obra aqui resenhada, revela com maestria a discussão realizada por Soraia Carolina de Mello em seu livro Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989). A autora é graduada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre em História Cultural pela mesma instituição. Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação de História também da UFSC e continua realizando discussões sobre o trabalho doméstico através de uma metodologia comparativa entre os países Brasil e Argentina, no período de 1970 a 1980. Suas fontes são periódicos feministas e a imprensa feminina e, dentro da área da História, tem como temas centrais as relações de gênero, feminismo e história das mulheres.

A obra aqui destacada é fruto de sua dissertação de mestrado, defendida com méritos no ano de 2010, e tem como título Feminismos de Segunda Onda no Cone Sul problematizando o trabalho doméstico (1970-1989). O livro está dividido em duas partes: a primeira tem como foco a problematização do trabalho doméstico gratuito pelo movimento feminista de Segunda Onda; já a segunda parte do livro apresenta as discussões sobre o emprego doméstico. Vale destacar que esse trabalho insere-se em um conjunto de pesquisas realizadas por um grupo de pesquisadores e pesquisadoras que ultimamente tem como tema central de suas pesquisas a categoria gênero e os movimentos feministas e, por meio de um método comparativo, vem contribuindo para esse campo de estudos. [3]

O livro trazà tona uma discussão que parece ter sido esquecida pela historiografia ou que talvez não tenha mostrado importância suficiente para se tornar o foco de uma pesquisa. Igualmente, a chamada historiografia feminista parece ter deixado esse debate de lado, o que demonstra o pioneirismo exercido pela autora. Soraia Carolina Mello demonstra muito bem em seu trabalho o ofício do historiador, ou seja, a busca constante de vestígios humanos do passado para (re)construí-lo através de suas questões do presente.

A autora, no decorrer da apresentação do livro, faz um significativo estado da arte em torno do tema abordado e realiza uma discussão metodológica sobre as categorias que utiliza na pesquisa. Além disso, a autora compreende a existência de uma diferenciação do trabalho doméstico, realizado pela dona de casa, em relação ao trabalho efetuado pela empregada doméstica. Da mesma maneira, percebe a existência de um conservadorismo por parte das pessoas mais jovens quando se trata desse tipo de trabalho.

Inicialmente, a partir da análise de suas fontes, Mello apresenta como um discurso conservador presente na sociedade colocava a mulher como sendo a única pessoa que tinha obrigação para com os serviços do lar. Da mesma forma, a autora coloca em destaque que a maternidade dificultava ainda mais o trabalho doméstico visto que, em muitas vezes, o aumento da família incidia diretamente no aumento do trabalho no lar.

Outros pontos trabalhados nessa primeira parte referem-seà invisibilidade que o trabalho doméstico tinha no período, a falta de divisão do mesmo, os afazeres domésticos como algo interminável e que muitas das mulheres tinham que exercer uma dupla jornada trabalhando tanto dentro de casa quanto fora dela. Muitas dessas mulheres que tinham dupla jornada sofriam, também, com a falta de locais para deixar seus filhos enquanto trabalhavam, o que pode demonstrar um esquecimento das forças políticas para com as mães trabalhadoras. Ressalta-se ainda a discussão travada em torno do motivo para que o trabalho doméstico não fosse colocado na mesma categoria que outros trabalhos. Aqueles que defendiam essa exclusão não viam no trabalho doméstico uma atividade geradora de capital e, por isso, não aceitavam a comparação com o trabalho industrial ou o feito fora do lar. Como contraponto a esse ideal, a autora discorre acerca dos debates feministas que defendiam o trabalho doméstico como um gerador de capital para o país, mesmo que de forma indireta.

A segunda parte do livro tem como abordagem central o emprego doméstico. A autora discorre sobre como as leis trabalhistas praticamente não eram existentes no período estudado e apresenta a persistência de uma desvalorização do emprego doméstico pela sociedade. Para ela, um dos motivos para a não valorização do emprego doméstico é a forte ligação que se construiu entre essa forma de trabalho e as mulheres, através do qual estas foram historicamente relegadas a um espaço considerado de pouco valor: o espaço doméstico. As condições de trabalho também são problematizadas em seu texto, ou seja, a elevada carga horária de serviço; a questão de muitas empregadas serem de outras localidades e por isso não conhecerem ninguém na cidade em que trabalhavam; o fato de dormirem na casa de seus patrões que, entre outros, acaba por dificultar/reduzir o contato social com o mundo externo. Com isso, a autora levanta a hipótese de que, por não terem um convívio social fora do lar onde exercem a função, essas trabalhadoras não reconhecem a precariedade presente em seu emprego. Soraia Carolina de Mello continua sua análise apresentando as formas como se davam as relações de distanciamento entre patroas e empregas e as formas como funcionavam os jogos de identificação das mesmas.

Outro ponto que merece destaque é o olhar dado pela autora para as relações entre as feministas e suas empregadas domésticas e como elas justificam essa prática, uma vez que consideram o trabalho doméstico como uma opressão. Mello vai perceber a falta de uma problematização dessa relação até os dias atuais, citando o exemplo da participação em eventos no qual costuma ouvir que não se pode deixar essas mulheres desempregadas. Além disso, a autora vai entender esse posicionamento como uma contradição dentro dos feminismos, apresentando trabalhos que defendiam que o trabalho doméstico é um dos causadores da estabilidade na pobreza e que ele impossibilita uma evolução nos rendimentos das trabalhadoras.

A autora finaliza a segunda parte do livro discutindo sobre o motivo de, muitas vezes, o emprego doméstico não ser considerado uma “reprodução da força de trabalho para o capitalismo” [4], pois ele pode ser remunerado por outras formas que não o dinheiro. Igualmente, aborda sobre a hierarquização existente entre emprego e trabalho doméstico assinalando que, na verdade, esses dois afazeres se tratam da mesma atividade. Por fim, a autora argumenta que “a questão chave do problema de desvalorização do emprego doméstico [é] sua relação com o trabalho doméstico” [5], isto é, Mello vai apontar que por ser realizado dentro do espaço doméstico, este considerado menos valorizado, o exercício da função de empregada doméstica foi e continua sendo visto como um trabalho sem valor para o desenvolvimento do país, pois ele poderia ser feito pela dona de casa.

Em suas considerações finais, Mello, discorre brevemente acerca da discussão sobre o emprego e o trabalho doméstico no século XXI. A partir dessa análise, a autora demonstra que persiste ainda em nossa sociedade um problema na distribuição do serviço doméstico entre os sexos, isto é, as mulheres na maioria das vezes são as que fazem o serviço de casa, o que se configura como uma questão de hierarquização de gênero. Assim como o emprego doméstico é visto como algo prescindível.

O livro carrega grandes contribuições e principalmente inovações no que diz respeito aos estudos sobre o tema abordado, pois o trabalho doméstico esteve marginalizado nos estudos historiográficos. A forma como a pesquisadora dialogou com suas fontes, assim como suas análises, trazem à luz vozes de sujeitos que são colocados à margem da história oficial, mas que são primordiais para uma (re)construção de um passado determinado. Seu trabalho serve, também, para mostrar que se atualmente o trabalho doméstico ainda é um serviço para as mulheres e isso se deve a uma construção histórica e social, cabendo àqueles que pesquisam questões relativas às áreas de humanas desnaturalizarem essa ideia. Com isso, pode-se concluir que esta obra colabora não apenas para os estudos de gênero, mas também para aqueles que estudam as questões trabalhistas e, principalmente, para todo cidadão e cidadã que ainda acredita que o trabalho doméstico é sim: coisa de mulher.

Notas

2. FARIAS apudMELLO, Soraia Carolina. Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989). Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2011. p.155.

3. Para saber mais sobre essas pesquisas e suas discussões ver PEDRO, Joana Maria; VEIGA, Ana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe. (Org.). Resistências, gênero e feminismos contra as ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: Editora Mulheres, 2011.

4. MELLO, op.cit.,p. 151.
5. Ibid., p. 155.

 

Thiago do Vale Pereira Livramento – Mestrando em História da UFSC. Florianópolis –SC – Brasil. E-mail: [email protected].


MELLO, Soraia Carolina. Trabalho doméstico: coisa de mulher? Debates feministas no Cone Sul (1970 – 1989). Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2011. 197 p. Resenha de: LIVRAMENTO, Thiago do Vale Pereira. O trabalho doméstico em debate. Outros Tempos, São Luís, v.11, n.17, p.286-289, 2014. Acessar publicação original. [IF].

História e Energia: Memória, informação e sociedade / Gildo Magalhães

Debatendo os caminhos do setor energético, esta obra propõe reflexões sobre os limites das fontes energéticas, suas transformações em escala mundial e seu campo de estudo no contemporâneo. Problemáticas entre a História, Arquivologia e Cultura Material são alguns dos eixos que compõe este trabalho.

Organizado pelo historiador Gildo Magalhães, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e coordenador do Projeto Eletromemória, a obra resulta de um emaranhado de debates derivados do 3º Seminário Internacional de História e Energia: memória, informação e sociedade, ocorrido em setembro de 2010, na cidade de São Paulo.

Dividido em quatro partes, o conjunto de artigos resulta de conferências, mesas-redondas e debates realizados neste mesmo seminário, mas que remontam às experiências historicamente acumuladas de outros projetos e encontros, que conseguiram nesta obra, por meio de cada temática apresentada, promover considerações sobre políticas de preservação e gestão de patrimônios, a reestruturação do setor ante as privatizações ocorridas assim como desbravar as memórias do setor energético. Ao analisar a atual situação da produção e organização do setor no país, Magalhães destaca que tal acesso às memórias do processo de eletrificação nacional tem grande impulso na década de 1980, por meio de iniciativas públicas visando à preservação de seu patrimônio histórico. Porém, com o processo de privatização instaurado a partir da década de 1990, houve não somente uma fragmentação das atividades, como em transmissão e distribuição, mas também de sua documentação e possibilidades de realização de pesquisas históricas, influenciando diretamente em suas memórias.

A partir de um brilhante prefácio apresentado por Nicolau Sevcenko evidencia-se como o modelo de fonte energética adotado, principalmente no pós Segunda Guerra, influenciou diretamente nas mudanças e crises visualizadas ao longo do século XX. Assim, se a história procura analisar como ciências e técnicas são o resultado da ação dos sujeitos em seu meio, entre necessidades e circunstâncias, devemos ter em mente como estas são percebidas e apropriadas de acordo com os interesses de cada momento histórico. Se mudanças na produção de fontes de energia, transporte e comunicação são fundamentais para compreender as sociedades, visualizar como estas são percebidas e apreendidas em cada momento também o são.

Assim, reúnem-se na primeira parte do trabalho, denominada História e Políticas Energéticas, autores que procuram apresentar direcionamentos, do passado ao presente, dos caminhos do setor energético. Inicialmente, Jonathan Tennenbaum nos oferece uma nova perspectiva de observação para as próximas “revoluções energéticas”, em que, a partir do olhar de estudos da economia física, visualiza-se como a ampliação na distribuição e produção passa diretamente por um processo de desenvolvimento científico, ligado, segundo o autor, à produção de energia nuclear. Neste sentido, o segundo texto, de autoria do organizador da obra, Gildo Magalhães, nos proporciona vislumbrar tal dinâmica analisando o caso paulista, em que demonstra como ao longo do século passado o ritmo da oferta energética esteve atrelado ao desenvolvimento industrial. Dialogando com autores como Rousseau e analisando criticamente as posições malthusianas, evidencia como a falta de oferta de energia esconde-se em meio a dados de crescimento econômico e social, demonstrando como o campo energético paulista passou de um “progresso e desenvolvimentismo alucinante” entre 1950 e 1960, para um “desenvolvimento nulo”, entre 1970 e 1980 a uma espécie de “crescimento sustentável”, em meio ao processo de privatizações da década de 1990.

Na continuidade, os trabalhos de Isabel Bartolomé e Diego Bússola remontam às relações internacionais presentes no setor energético. O primeiro destaca paralelamente paridades e distinções no processo de eletrificação brasileira com Portugal e Espanha. Próximos pela presença histórica do modelo hídrico de geração, estes espaços compartilharam a resultante do crescimento urbano e industrial atrelado à produção energética, sob o manto dos mesmos grupos internacionais. Ao mesmo tempo, seus caminhos entrecruzam-se com regimes ditatoriais e intervenções privadas que direcionam as formas de organização em cada um destes espaços. No segundo caso, Diego Bússola elucida os caminhos de uma multinacional atuante em Buenos Aires no início do século XX. Analisa como a empresa Sofina adotou uma diversidade de princípios de atuação neste local, implementando ações como a ideia de crescimento “em superfície”, visando estimular o aumento de consumidores e outras em que, por um lado, realizavam a diminuição das tarifas e ao mesmo tempo forneciam vantagens na compra de eletrodomésticos, o que ampliava o consumo.

Sem perder o leque diversificado de investigações e interpretações, a obra adentra os marcos da organização energética nacional. Sonia Seger reconstrói o processo de estabelecimento do sistema energético nacional elencando como, ainda no século XIX, regiões como o Brasil foram assimiladas como “zonas de expansão” para empresas elétricas, o que marcou o seu desenvolvimento inicial. Empresas como a Light e Amforp ocuparam tal organização do setor, atuando na virada do século XX em capitais, como São Paulo e Rio de Janeiro e regiões como o Interior de São Paulo. Assim, da criação da Eletrobrás à CESP, das ações do regime civil militar ao período das privatizações, colabora para evidenciar o “desmonte” gradual do setor energético nacional. Seguindo os mesmo caminhos, mas analisando o setor nuclear, Fernanda Corrêa e Leonam Guimarães apresentam em seu texto os dilemas da produção energética nuclear, no qual entre os primeiros estudos e as campanhas contra sua utilização, apresenta-se as potencialidades e riscos de seu uso, estando em foco novos horizontes da produção energética.

Fechando a primeira parte, dois pequenos textos nos conduzem pelas relações entre as empresas energéticas e as experiências participativas. A partir de suas memórias como participante do I Seminário de História e Energia, realizado em 1986, Ricardo Maranhão demonstra como estes eventos foram, e ainda são centrais para ampliar o debate sobre os caminhos da produção energética, bem como redimensionaram a percepção dos aspectos relacionados a este meio, de impactos ambientais a reorganizações sociais. Por isso, complementando este debate, Ildo Sauer ressalta a necessidade de democratizarmos a distribuição e participação nas decisões do setor energético, para além da hegemonia de grupos ou mesmo países.

Compondo um conjunto de trabalhos referentes à memória empresarial do setor energético, a segunda parte do livro apresenta cinco artigos que desvelam o crescimento de trabalhos ligados a historia empresarial, algo não corrente no Brasil até as últimas décadas. Parte desta ausência gestava-se principalmente pelas relações das empresas com seus arquivos, que fica evidente no primeiro texto de Bruce Bruemmer, em que, ao relatar suas experiências como pesquisador e posteriormente como arquivista nos EUA, pontua que elementos como interesses das empresas, limitações na legislação e aperfeiçoamento dos pesquisadores influenciam diretamente na existência destes arquivos.

No caso do Brasil, empresas como a CESP, criada pela fusão de onze companhias em 1966, tornam-se um excelente exemplo de atuação nestes arquivos. Em meio a um emocionante depoimento, Sidnei Martini apresenta suas experiências de atuação junto a uma empresa deste setor, no qual desvela as dificuldades que enfrentou ao buscar criar condições para que houvesse a conscientização da necessidade de criar um arquivo e o centro de memória. Complementado pela transcrição de uma rodada de perguntas, o texto contribui para que visualizemos os desafios ainda a serem enfrentados para o fortalecimento de projetos de preservação documental.

Nesta perspectiva, os trabalhos de Antonio Carlos Bôa Nova e Paulo Nasser vêm a exemplificar os meandros que permeiam tais dificuldades. No primeiro caso, em Paralelos entre culturais organizacionais: CESP e Eletropaulo, o autor demonstra como a própria cultura organizacional das empresas influi diretamente nos meandros da organização de sua memória. Muito próximo ao que retratou em sua obra Percepções da cultura da CESP, Nova deixa claro que mesmo com transformações como processos de privatizações ou fusões empresariais, a cultura organizacional se sobrepõe e influencia diretamente nos meandros de sua imagem, de suas memórias. Por isso, como ressalta Paulo Nasser no texto seguinte, devemos propor ampliar os caminhos de percepção de tais memórias, averiguando como operam sua própria linguagem e operação da empresa, sua comunicação com o público, parte de sua cultura organizacional.

Fechando este debate, Lígia Cabral vem apresentar a importância e atuação do Centro de Memória da Eletricidade, elencando como desde sua fundação, em 1986, projetos, publicações e debates foram gestados em meio a sua existência. Sediado no Rio de Janeiro e fundado pela Eletrobrás, este espaço penetra os caminhos da memória energética nacional, influindo diretamente no que será rememorado e em quais elementos engendram tais memórias. Entre publicações infanto-juvenis e projetos de história oral, este constitui um marco no processo organizacional do setor energético.

Ainda com fôlego e muito a contribuir, a obra adentra a terceira parte denominada Acervo, processos, fluxos documentais e a memória do setor elétrico, e como já denota o tópico, contempla artigos dedicados a arquivologia e questões relacionadas aos demais tratamentos junto à documentação. Por meio das especificidades de cada “operação documentária”, transparecem os desafios de uma área com muito trabalho a ser realizado, e que contribui diretamente em aspectos históricos e culturais das próprias empresas ou instituições. Ao longo de cada trabalho, se evidencia os percalços na conservação, desrespeito à legislação junto às empresas públicas e privadas e o crescente processo de digitalização de documentos, ainda um campo aberto a considerações e reflexões.

Maria Morais apresenta inicialmente suas práticas e experiências junto à organização da documentação de empresas do setor energético (Light e Eletropaulo), e examina, mapeia e diagnostica como o processo de privatização na década de 1990 contribuiu para a dispersão destes documentos, resultando em um quadro em que grande parte da documentação não obedece a critérios técnicos, mas são principalmente arquivados por uma possível função legal. E tal fato fica evidente no texto de Marcia Pazin, quando constata que esta dispersão, mesmo que agravada pelo processo de privatização inicia-se, na maioria dos casos, antes mesmo deste evento. Este debate traz à tona a necessidade de buscarmos conscientizar as empresas e demais segmentos da importância de classificação e manutenção dos arquivos referentes às suas atividades, que em muitos casos acabam descumprindo as próprias medidas legais de preservação e manutenção destes arquivos, como é trabalhado no texto de Maria Izabel de Oliveira. Tal exemplo torna-se elucidativo no trabalho apresentado por Telma Carvalho em relação à realização do projeto Eletromemória.

Os três últimos trabalhos desta terceira parte nos convidam a elucidar as posturas teórico-metodológicas presentes no processo de organização documental, demonstrando como, de forma interdisciplinar, tal área cunhou todo um aparato de instrumentos técnicos e teóricos. E por estes meandros Mario Barité apresenta como a organização do conhecimento está intimamente relacionada aos critérios de classificação, gestão e manutenção de centros documentais e bibliotecas. Dialogando com as ideias anteriores, Fátima Tálamo esboça no texto Informação, conhecimento e bem cultural como esta tríade epistemológica está intimamente relacionada ao fluxo de informações e o desenvolvimento do que chama de “sociedade do conhecimento”. Isto resulta em questões, como demonstra Marilda Lara, no exame entre a denominada Ciência da Informação e sua relação com os processos documentais e fluxos sociais de informação. Para a autora, a relação encontra-se na percepção do documento enquanto produtor e receptor da informação, expressa em diferentes escolas, como a europeia e americana.

Fechando a obra, os trabalhos de David Rhees, Heloísa Barbuy e Renato Diniz apontam como a cultura material da eletricidade e sua preservação fornecem instrumentos para diversas áreas do conhecimento, funcionando como elemento educacional, fonte de documentação e pesquisa. Sua dimensão alcança ares como demonstrado por Rhees, onde um museu nos EUA tornou-se referência no patrimônio de equipamentos eletrodomésticos. São elementos que estão intimamente presentes cada vez mais no cotidiano de cada geração, produzindo uma infinidade de elementos que devem ser observados como resultado da cultura material de cada momento histórico como propõe Heloísa Barbuy, pois de colecionadores a acervos públicos, são objetos que revelam histórias e memórias. Mas para isto, toda a sociedade deve rever as maneiras de entender tais elementos da cultura material, estando no centro de tais debates, o papel que se reserva aos setores públicos e privados na preservação da cultura material e do patrimônio histórico.

Enfim, os artigos apresentados nesta obra buscam apresentar as potencialidades de uma área do saber que cada vez mais amplia seus leques de pesquisa e ensino, contando com grandes referenciais para a continuidade dos debates. Destarte, tal obra, assim como o evento da qual resulta, contribui significativamente para ressaltar como transformações políticas, econômicas e sociais influem diretamente nos caminhos do setor energético, e assim, no próprio rememorar de um grupo ou da sociedade.

Tal empreita, derivada do 3º Seminário Internacional de História e Energia, fornece elementos não somente para compreensão das trajetórias do setor energético, mas dos próprios caminhos da cultura e da sociedade em geral.

Andrey Minin Martin – Doutorando em História. Universidade Estadual Paulista-UNESP. Bolsista FAPESP. Assis/São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].


MAGALHÃES, Gildo (Org). História e Energia: Memória, informação e sociedade. São Paulo: Alameda, 2012. 376 p. Resenha de: MARTIN, Andrey Minin. Os caminhos do Setor energético. Outros Tempos, São Luís, v.11, n.17, p.190-295, 2014. Acessar publicação original. [IF].

O que é um autor? Revisão de uma genealogia / Roger Chartier

A obra Objeto gritante de Clarice Lispector foi pauta de debates na Comissão de Leitura do Instituto Nacional do Livro em 1972. A discussão colocava em xeque a qualidade do texto da autora e o peso da representação de sua autoria. Decisão complicada para os avaliadores envolvidos, mas ao que parece, Adonias Filho [3], principal parecerista, pendeu para o valor da autoria de Clarice e deixou em segundo plano os atributos “duvidosos” do livro [4]. Aqui e em outras situações, a tradição do nome e a noção de autoria foram evocadas, não só para legitimar a obra, como também para identificar os discursos. E é justamente a respeito da noção de autoria que este texto retoma e apresenta a obra de Roger Chartier publicada em 2012 pela EdUSFCar, intitulada O que é um autor? Revisão de uma genealogia [5].

No final da década de 1960, Michel Foucault proferiu a célebre conferência intitulada “O que é um autor?” [6] abordando a polêmica em torno do desaparecimento da figura autor. Ao contrário das principais teses em voga que reforçavam o ocultamento dessa personagem, dentre as quais se sobressaiam as de Roland Barthes, Foucault destaca as condições que possibilitaram o nascimento do sistema de autoria e traça as regras históricas e culturais de seu funcionamento na sociedade ocidental. Procurando refletir a respeito dos dispositivos através dos quais se tornou importante saber “quem fala”, Foucault ressalta os diferentes mecanismos no tempo e no espaço que legitimaram a atribuição de um nome próprio a certos textos. Além disso, destacou a filiação de certos discursos a um grupo específico, estabelecendo aos indivíduos a noção de autoria e ao conjunto de seus feitos, o conceito de obra.

Cerca de trinta anos depois da palestra de origem, o historiador Roger Chartier fora convidado a proferir, também para a Sociedade Francesa de Filosofia, uma palestra na qual revisita a famosa conferência de Foucault. Nesta fala, Chartier evidencia as limitações da análise do filósofo, tais como: a incorreção na genealogia cronológica da noção de autoria e a atribuição incorreta de características próprias das obras pertencentes às auctoritates a obras em linguagem vulgar. Nesse sentido e na tentativa de reforçar a relevância da questão apresentada por Foucault em 1969, Chartier propõe uma revisão da tese do filósofo.

No pequeno resumo da proposta da revisão, Roger Chartier afirma reavaliar a análise de Foucault através da associação da crítica textual dedicada a tratar da interpretação dos textos e das operações de historicidade dos discursos e da História Cultural que se ocupa da história dos objetos e das práticas sociais. A intenção do historiador é pensar não só na ordem dos discursos, mas também na própria ordem dos livros. Para tanto, retoma em Foucault a intenção de analisar a construção da “função autor”, isto é, considerar o autor como um agente dotado de uma função complexa e variável no discurso, e não apenas como uma evidência puramente individual. Daí decorre a tese fundamental de Foucault que consiste na constatação de que a “função autor” é característica do modo de existência de determinados discursos no interior de uma sociedade. Além disso, essa mesma função é marcadamente definida pelo nome próprio que, de início, possibilita o mecanismo de classificação dos discursos. Nesse sentido, a autoria é criadora da noção de obra e da existência de um estilo de escrita particular de determinados grupos.

O primeiro problema na análise de Foucault, destacado por Chartier, é o que se refere à distinção entre o “eu” empírico e a função discursiva, tal qual, apresentado por Borges, em 1960, na coleção El hacedor. O jogo narrativo proposto pelo argentino e retomado por Chartier tenciona entre aprisionamento do “Eu” pelo nome próprio e a invenção de uma escrita desvencilhada do autor. De acordo com Chartier, Foucault retoma essa utopia do discurso sem nome, no entanto, a considera apenas uma função discursiva e não um instrumento que oferece existência a uma ausência essencial. [7]

O segundo problema identificado na análise foucaultiana refere-se ao esboço de cronologia esquematizado na conferência de 1969. Esta cronologia compõe-se de três principais momentos que podem ser assim descritos: o primeiro aborda a questão da inscrição da “função autor” no sistema de propriedade característico das sociedades contemporâneas, compreendido por Foucault como uma relação que esteve diretamente ligada à própria concepção burguesa sobre o tema; o segundo se detém no fato de que essa mesma “função autor” esteve relacionada à censura dos textos e à punição dos escritores em decorrência de uma circulação de discursos considerados transgressores; e, por fim, a terceira e principal consideração de Foucault que trata do entrecruzamento dos enunciados científicos e as regras de identificação do texto literário datados entre o século XVII ou XVIII.

Sobre essa genealogia foucaultiana, Chartier tece algumas ponderações. A primeira delas é sobre o questionamento feito pelo filósofo a respeito da divisão entre literatura e ciência. Roger Chartier chama atenção para o fato de que a utilização de expressões imprecisas [8] é um indício da incerteza de Foucault na ocasião das genealogias que ele mesmo apontou. Um segundo aspecto inexplorado pelo filósofo é o que trata do momento de elaboração da “função autor”. Conforme indica o historiador, a construção dessa função reside na disseminação da noção de autoria entre os escritos de língua vulgar, algo que antes pertencia apenas aos escritores cristãos e aos da Antiguidade submetidos ao regime de auctoritates.

O terceiro ponto e o mais enfatizado por Chartier é a identificação da ausência da “função autor” para os textos ficcionais anteriores aos séculos XVII e XVIII, e o consequente desaparecimento dessa mesma função para os discursos científicos a partir desse período. Nas próximas páginas do livro e até o fim da conferência, Roger Chartier explora detalhadamente a história do copyright (direito sobre a obra) na Inglaterra em paralelo à cronologia imprecisa apresentada por Foucault.

A história do copyright foi profundamente modificada na Inglaterra do século XVIII. Em decisão tomada a partir de 1709, os autores ingleses passaram a ter o direito de registro sobre suas obras, ou seja, obtiveram desta data em diante o copyright por, pelo menos, 14 anos, mais 14 suplementares caso o autor estivesse vivo. Paralelamente, buscando a defesa do direito pessoal, os livreiros impressores londrinos inventaram a propriedade literária consistindo no princípio de posse sobre os textos, a partir daquela época, garantido por lei aos autores. E é embasado neste argumento que Chartier crítica a genealogia foucaultiana. De acordo com o historiador, é no interior desse processo judicial e com o propósito de resguardar o privilégio tradicional, que se “inventa” o autor proprietário de sua obra. A justificativa fundamental para a lei reside na teoria do direito natural que compreende o homem como sendo o proprietário intransferível de seu corpo e, consequentemente, dos produtos de seu trabalho. Além disso, fundamenta-se também na justificativa de ordem estética ancorada na categoria de originalidade, esta última em alta no século XVIII. É a partir desse ponto que Chartier repensa a cronologia proposta por Foucault ao defender que não fora em fins do século XVIII, mas sim em seus primórdios que emergiu a concepção do autor como proprietário de sua obra e a noção de propriedade literária. Além disso, esta emergência não pode ser considerada como fruto do direito burguês, mas advinda da perpetuação de um antigo sistema de privilégios.

Outro aspecto que recebe atenção do historiador é o referente à desmaterialização das obras, isto é, ao fato de que as consideramos apenas como o produto estético e intelectual dos autores, independentemente das suas formas materiais e das condições sociais de sua produção. A partir do século XVIII na Inglaterra se produz uma distinção entre os principais elementos do universo da produção e da circulação dos textos: a property e propriety. A primeira é a possibilidade de transformação de um escrito num bem negociável de mercado; e a segunda refere-se a um possível controle sobre os escritos, ou seja, a forma de preservação da moral, da honra e da reputação. No século XVIII, ambas as noções começaram a relacionar-se e culminaram no que conhecemos atualmente como propriedade literária: a interlocução entre o direito moral e o direito econômico dos autores sobre as obras.

O terceiro e último ponto da cronologia esboçada por Foucault é sobre a circulação dos enunciados científicos em regime de anonimato durante os séculos XVII-XVIII. Sobre este aspecto, Roger Chartier defende que, ao contrário do que propõe a análise foucaultiana, justamente nesse momento acontece uma reviravolta provocada pela revolução científica, tornando essencial a difusão do nome, ou seja, da autoridade competente para enunciar o que é verdadeiro numa sociedade cuja hierarquia define o jogo das posições sociais e a credibilidade da palavra. É no cerne dessas discussões que se molda a noção de autoria e, principalmente, a ideia do autor enquanto a autoridade do erudito, distante do universo comercial dos textos. Nesse sentido, o interesse tácito dos autores é a garantia de veracidade nos enunciados do saber que proferem [9].

Sobre a “função autor” e as apropriações penais destacadas por Foucault, Chartier também apresenta considerações. O historiador argumenta que os livros não só funcionavam como provas incriminatórias dos autores, mas a prospecção de todas as obras que esses mesmos autores condenados poderiam escrever e/ou publicar também servia como mecanismos de condenação. É inegável que o nome próprio funcionava como um meio de identificação, de criação e de transgressão, mas além dele, as obras publicadas em anonimato eram consideradas como suficientemente condenáveis, pois os livros deveriam trazer o nome de seu autor e de seu impressor. No entanto, apesar de estar diretamente ligada à censura, à repressão e à proibição, a “função autor” também esteve entrelaçada à própria passagem do manuscrito ao impresso, pois desde as primeiras versões, os livros contêm os mecanismos de identificação da “função autor”, dentre os quais podem ser citados a simbologia das impressões e até mesmo a disposição do retrato do autor.

Por todas essas nuances, a genealogia rediscutida por Chartier apresenta-se numa duração mais longa do que a sugerida por Foucault e coloca em questão não unicamente a ordem dos discursos, mas a dos livros. A proposta de Roger Chartier é a introdução de uma análise que considera as condições materiais de produção dos discursos e a noção de autoria, tal como a postulada por Donald MacKenzie em sua sociologia dos textos, promovendo, assim, o estudo dos escritos inscritos em sua materialidade. Para Chartier, a construção do autor é indissociável da materialidade e não é função exclusiva dos discursos conforme propunha Foucault.

Em 1972, a justificativa para a publicação da obra de Clarice Lispector não estava inscrita apenas na tradição de seu nome, mas nas próprias tramas intelectuais e editoriais que compunham o mercado editorial brasileiro e que definiam, acima de tudo, a materialidade dos textos e a construção da figura autor. Nesse sentido, para encerrar, é possível retomar as palavras de Herberto Sales, diretor do Instituto em 1974, ao afirmar que “uma coisa é escrever livros, e outra é entender deles, do seu comércio, de suas transas”. [10]

Notas

  1. Adonias Filho (1915-1990) foi jornalista, crítico literário, ensaísta e romancista. Mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro onde colaborou para os jornais Correio da Manhã (1944-45), Jornal das Letras (1955-1960) e do Diário de Notícias (1958-1960). Esteve à frente da direção da editora A Noite (1946-1950), diretor do Serviço Nacional de Teatro (1954) e da Biblioteca Nacional (1961-1971). Esteve na direção do INL entre os anos 1954-55 ingressando mais tarde nos quadro da direção da Biblioteca Nacional. Durante os anos 1970 e principalmente no período de coedições do INL pertenceu ao setor dos pareceristas da Instituição.
  2. Sobre esta produção de Clarice Lispector é necessária uma observação. Apesar dos pareceres favoráveis à publicação de Objeto gritante, esta obra nunca foi editada. Ela foi revisada, reduzida a metade e acabou sendo lançada anos mais tarde com outro título: Água viva. Para maiores detalhes ver: ANDRADE, Maria das Graças. Da escrita da si à escrita fora de si: uma leitura de Objeto gritante e Água viva de Clarice Lispector. 2007. 225 f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, 2007.
  3. CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. Tradução de Luzmara Curcino; Carlos Eduardo de Oliveira Bezerra. São Carlos: EdUFSCar, 2012.
  4. “Qu’est-ce qu’un auteur?” foi publicado inicialmente em 1969 no Bulletin de La Société Française de Philosophie e posteriormente alterado para ser lançado na revista Textual Strategies, sendo relançado em 1994 em Dits et écrits. Na versão traduzida para o português foi publicado com o título “O que é um autor?” em Ditos e Escritos, vol.III. Estética: literatura e pintura, música e cinema.
  1. CHARTIER, op cit., p. 35
  2. Chartier destaca como expressões imprecisas as seguintes frases: “textos que hoje chamaríamos de literários” e “textos que chamaríamos de científicos”.
  3. CHARTIER, op cit., p. 55
  4. Carta de Herberto Sales a Lygia Fagundes Telles. Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1979.

Mariana Rodrigues Tavares – Mestranda em História Social pelo PPGH-UFF. Rio de Janeiro/Brasil. [email protected].


CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. Tradução de Luzmara Curcino; Carlos Eduardo de Oliveira Bezerra. São Carlos: EdUFSCar, 2012. 90p. Resenha de: TAVARES, Mariana Rodrigues. Redes intelectuais e noção de autoria: breve análise sobre a revisão de Roger Chartier para a Genealogia de Foucault. Outros Tempos, São Luís, v.11, n18, p.312-314, 2014. Acessar publicação original. [IF].

A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950) / Durval M. Albuquerque Jr.

Podemos considerar Luiz Gonzaga como um dos muitos inventores do Nordeste, demonstrado em suas canções como lugar de tradições, do homem sertanejo sofredor em sua peleja cotidiana, enfrentando a seca, labutando na roça, lutando contra as agouras da vida. Esse mesmo sertanejo que se diverte e se encontra nos espaços das feiras nordestinas, um dos principais lugares de sociabilidade do homem nordestino, do comércio, da compra e venda “de tudo que há no mundo” e que “nela tem pra vender”.

Essa imagem caricata do Nordeste e do homem nordestino é refletida no último livro do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920 – 1930)3, vencedor do concurso Silvio Romero 2012 IPHAN/Conselho Nacional do Folclore e Cultura Popular.4 Atualmente, o autor é colaborador da Universidade Federal de Pernambuco e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Ao contrário do que se vê, se diz e se mostra, o autor propõe novas chaves de leituras e pesquisa sobre o Nordeste, espaço construído e delimitado já discutidos em outras obras.5 Como um lugar inventado a partir de um discurso que se repete hoje nos diversos meios de comunicação ao retratar, por exemplo, o Festival de Quadrilhas Juninas do Nordeste, ou Festival de Quadrilhas Juninas da Rede Globo Nordeste, ou ainda o Nordestão de Quadrilha, só para citar alguns casos, em que se representa a cultura legitimada por um discurso fabricador da imagem nordestina.

Em imagens, signos, são mitos de um lugar fabricado a partir do discurso de agentes que assumiram um posicionamento referente ao seu espaço regional. Conforme o estudo de Durval Muniz, que também teve motivos iniciais a partir de sua própria trajetória biográfica, ao trabalhar durante a adolescência em uma feira na cidade de Campina Grande no estado da Paraíba, e como homenagem a sua terra natal, por intermédio das reminiscências do espaço da feira como lócus privilegiado das muitas formas e significados elaborados sobre a cultura nordestina. A feira “da balburdia, do falario […] do aglomerado de pessoas, pela multiplicidade de vozes […] do mercado dos mais disparatados artefatos para serem consumidos” (p. 24) como cantado pelo rei do baião, Luiz Gonzaga.

Munido de um vasto referencial teórico,6 as questões sobre a fabricação do folclore e da cultura no nordeste, em um recorte temporal que não se restringe apenas as décadas de 1920 a 1950, mas que margeiam por temporalidades anteriores, num processo que se construiu desde o final do século XIX, época da crise dos setores agrários e a quebra do sistema escravista para o regime de trabalho livre no Brasil. Essa será umas das teses propostas por Albuquerque que pensa as manifestações folclóricas, os conceitos de cultura não como algo dado, mas como algo construído, desta forma, critica amplamente a historiografia que aborda o folclore e a cultura popular que “tende-se a confundir o conceito e a coisa, o conceito e a materialidade, o conceito e a empiricidade, o conceito e a forma” (p. 27).

Para Durval é necessário perceber a diferença entre conceitos e formas para se proceder a análise da operação discursiva que articula um e outro. Deste modo recorre aos estudos de Derrida (Pensar a desconstrução) e Foucault (Arqueologia do saber) para questionar a ingenuidade dos historiadores que faz com que normalmente confundam as empiricidades com os conceitos que as significam.

O livro é dividido em seis capítulos. No primeiro, “condições históricas de emergência”, o autor faz um inventário do processo de constituição cultural nordestina, como um novo objeto que será construído a partir de práticas e discursos, sejam eles da elite ou dos segmentos das camadas tidas como populares.

Ao delimitar o final do século XIX e início do XX como marco de profundas mudanças sociais no Brasil, surge nesse momento os primeiros usos da noção de cultura nordestina. Com o surgimento da sociedade burguesa e todas as distinções dos modos de vida que esta proporcionou, apresentando novos padrões de comportamento, nasce então uma “nostalgia pelo retorno a essa ordem social, vista como menos violenta, como mais harmônica e mais justa, e será partilhada por setores das camadas populares e das elites letradas, o que contribui para o encontro entre eles e com esse encontro a emergência da ideia de folclore ou de cultura popular” (p. 44).

As relações entre o regional e o nacional a partir da cultura legitimam-se quando o Estado Nacional assume com políticas econômicas as manifestações identitárias de cada região, sobretudo, se tomarmos como exemplo a partir do Estado Novo na década de 1930 e a criação de órgãos de proteção do patrimônio nacional.

No segundo capítulo aborda os mitos de origem da cultura nordestina interligada à construção da ideia de cultura brasileira quando se pensou um projeto de constituição da nação. Para o mito de origem do folclore ou da cultura nordestinos, e ao que parece o autor não faz distinção dos conceitos, toma como base a produção de folcloristas regionais. Uma bibliografia que aponta as primeiras obras que trataram da cultura nordestina ainda no século XIX, como as de Juvenal Galeno, Couto de Magalhães e Celso de Magalhães.

Os mitos de origem para os estudos de folclore e cultura popular estiveram atrelados a duas tradições influenciadoras nos estudos de folclore nordestino. Uma de inspiração romântica que, segundo o autor, estabeleceu a relação entre a cultura nacional e cultura popular, dando origem ao conceito de povo. No Brasil, Durval Muniz aponta o folclorista Juvenal Galeno como um dos precursores ao fazer uma genealogia dos estudos em torno da cultura nordestina. A segunda tem como representante Silvio Romero, de características positivista e evolucionista. Tais paradigmas tiveram grande recepção ao longo da produção folclórica no Brasil, tendo sido esses intelectuais os primeiros a fazerem uma releitura da bibliografia internacional, adaptando-as às pesquisas locais sobre a cultura do povo.

Tais tradições foram marcantes ao produzirem constante material para a elaboração da noção de cultura nordestina. A temática será retomada e explorada nos capítulos 04 e 05 quando o autor faz um levantamento dos dados biográficos dos produtores dessas obras e as fontes utilizadas como legítimas para a fabricação do folclore.

Os Acontecimentos no capítulo três referem-se aos casos e acasos dos primeiros autores que empregaram a denominação “Nordeste”, “Nordestino”. É importante destacar que o livro de Durval Muniz insere-se no contexto de análise da cultura escrita, por isso, não foge de suas interpretações do processo de fabricação da cultura nordestina, os procedimentos que, através da literatura regional, definiriam temáticas desta cultura.

É no processo de construção das obras e seus usos que o autor se debruça ao analisar os contextos de produção do livro do folclorista Leonardo Mota, publicado em 1921, com o subtítulo “poesia e linguagem do sertão cearense” e que em edição posterior a obra é apresentada como “poesia e linguagem do sertão nordestino”. Enquanto análise histórica, é preciso reconstruir as variações que diferenciam os espaços legíveis, ou seja, as formas discursivas e materiais, as leituras compreendidas como práticas concretas e como procedimento de interpretação7.

Ao tomar como análise a produção da obra de Leonardo Mota, Durval demonstra as variações que implicaram na ideia de nordeste incorporada nas obras dos folcloristas. A mudança do subtítulo deu-se, segundo Albuquerque, após encontros e debates que se firmaram em torno do Centro Regionalista do Nordeste criado no Recife durante a década de 1920 e que passou a disseminar essas questões. Outro autor é Gustavo Barroso e também o sergipano João Ribeiro que adota em livro publicado a denominação “Norte” para se referir ao que seria o espaço da região como um todo e, explicitamente, refira-se a “Nordeste” para designar a área de ocorrência das secas (p. 106).

Deste modo, percebemos o folclore em seu momento de fabricação, como algo inventado pelo próprio folclorista, num processo de (re) invenção, de criação (p.115). Ao citar diversos acontecimentos que dão conta da fabricação do folclore enquanto elemento constituinte de uma cultura nordestina, demonstrada a partir de autores regionalistas, onde definem seu lócus de atuação no espaço nordestino, para Durval Muniz, é “entre os anos 20 e 30 do século passado, que a emergência da ideia da existência de um folclore nordestino, de uma cultura nordestina, se afirma paulatinamente, até se tornar uma verdade inquestionável, um fato do qual ninguém mais escapa” (p. 117). O autor, assim, demonstra “genealogias de atitudes, práticas, ditos e escritos que vão paulatinamente dando forma a este novo objeto para o saber que é: o folclore nordestino, a cultura do Nordeste, mais tarde nomeados de cultura popular nordestina” (p. 117).

No capítulo 4, Os inventores, é lançado um ensaio de prosopografia dos letrados que adotaram os conceitos de folclore e de Nordeste. A prosopografia, segundo Giovanni Levi, ocorre nos casos em que as biografias individuais “ilustram os comportamentos ou as aparências ligadas às condições sociais estatisticamente mais frequentes”.8 Nesse capítulo, podemos perceber os laços de cooperação entre os folcloristas que adotaram a noção de folclore nordestino, ao passo em que fora analisado de modo geral “as atitudes e trajetórias individuais que terminam por configurar uma ação coletiva” (p.120).

O autor contextualiza com base nos estudos foucaultianos dos “pontos de cruzamento […] das redes de relações pessoais, sociais, culturais, políticas e intelectuais” (p. 121), ao buscar nos traços ou dados biográficos uma imagem de conjunto dos folcloristas responsáveis pela fabricação do folclore e cultura nordestinos.

A discussão inicialmente toma como base os quatro autores considerados pioneiros quanto ao tema do folclore do Nordeste: Gustavo Barroso, Leonardo Mota, José Rodrigues de Carvalho e Luís da Câmara Cascudo, buscando traçar um “perfil de conjunto”. Em seguida, confronta com os traços biográficos dos intelectuais que viveram anteriormente a estes citados, interessados pelo popular, que foram posteriormente por eles utilizados e citados como os precursores dos estudos do folclore nordestino, sendo eles Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa. Por último, traça os dados daqueles que deram continuidade ao trabalho, reafirmando e reatualizando o conceito de cultura nordestina, como Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maio, contemporâneos no século XX.

Os inventores da cultura nordestina, os chamados pioneiros têm em comum suas trajetórias o pertencimento às elites sociais e políticas de seus Estados, articulados por vínculos de parentesco e/ou compadrio com as oligarquias dominantes nestes espaços, demonstrando logo em seguida o perfil dos intelectuais inspiradores desse grupo, elementos de contato e de continuidade, seja pela formação seja pelo pertencimento do mesmo grupo social, político e cultural.

Já aqueles que se interessaram pelas formas e matérias de expressão das camadas populares e serviram de inspiração para os pioneiros, Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa, têm como ponto comum o pertencimento à elite agrária decadente, onde em seus perfis elitistas demonstram um interesse inicialmente pelo estudo do popular. O autor coloca que os discípulos ou seguidores dos pioneiros foram os responsáveis por ampliarem, reafirmarem e darem legitimidade ao folclore nordestino, são eles: Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maior. Estes acabaram por assumir a tarefa de elaborar o que seria o folclore e a cultura popular de seus Estados, “ao mesmo tempo em que vão inseri-los no interior da identidade regional nordestina […] estes folcloristas assumirão a tarefa de incorporar o folclore de sua terra natal no interior do que seria a cultura regional ou nacional”. Esse era o contexto de produção do folclore, ao passo que instituições foram criadas com parâmetros de nacionalização de uma cultura integradora9.

Durval Muniz a partir dessa prosopografia busca visualizar o lugar social de produção do discurso acerca da cultura nordestina. O autor ao selecionar os folcloristas limita a fabricação do folclore e da cultura popular nordestina aos espaços de sociabilidades desses intelectuais, particularizando em seus estados, como Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Alagoas. Talvez isso se justifique pelo acesso às fontes produzidas por eles, em grande parte produtores de uma vasta obra sobre a cultura popular. Apesar disso, o estudo abre possibilidades de se ampliar as discussões com base em novas pesquisas sobre os estados não contemplados ao longo do livro.

No sexto e último capítulo, o autor discorre sobre as trajetórias de alguns agentes populares que contribuíram também para a emergência do que seria a cultura nordestina. Ao visitar essas trajetórias, como a de Leandro Gomes de Barros, considerado o primeiro cordelista nordestino e o primeiro produtor de folhetos a viver do seu ofício, e a de João Martins de Athayde, outro ícone da poesia popular, ao montar uma tipografia e imprimir seus próprios versos, o autor considera-os parte de uma importante “indústria de folhetos”, resultante do processo de mudança capitalista emergente na sociedade do final do século XIX e início do XX, onde aproveitaram as oportunidades mercantis da cultura, para sua subsistência. A prática desses homens, que não faziam parte da elite decadente, demonstra, segundo o autor, como sendo “atividades que criam o novo, utilizando-se de e remanejando um arquivo de matérias e formas de expressão que conhecem e que está à disposição desses agentes culturais, a partir do aproveitamento das condições novas oferecidas pela sociedade urbana de mercado” (p. 201).

Deste modo, são ressignificados a própria noção de “popular” e “povo” que, para Albuquerque, acaba se tornando complexa quando se leva em conta somente o público para o qual eram dirigidos os folhetos ou cordéis, seus preços, temas, mas ao adotar, por exemplo, a condição ou origem social de seus produtores e/ou editores, “a noção de popular já não será tão adequado” (p. 217). Para o autor, isso é um reflexo da emergência de uma classe média baixa “fruto do declínio de setores das antigas elites rurais ou da ascensão de dados indivíduos das camadas populares […] nomeadas de tradicionais, folclóricas […] que gozarão de maior espaço de ação […] onde suas habilidades estarão voltadas para o sustento (p. 218), como é o caso de Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde e tantos outros de que não se tem um estudo específico.

Por fim, ao concluir um trabalho que deixa em aberto várias chaves de leitura e pesquisa, o autor lança uma crítica ferrenha aos estudiosos da cultura popular, sejam eles acadêmicos ou os próprios folcloristas. Durval Muniz critica o que ele chama de “síndrome de resgate” existente nos estudos de cultura popular ou organizações de grupos e manifestações classificadas como folclóricas, onde imperam a noção de resgatar das tradições, sem ao menos se fazer a crítica à volta ao passado através de manifestações populares no presente, tidas e entendidas por aquele como seriam praticadas anteriormente. A prática dessas manifestações no presente, tomada como a possibilidade de retorno do tempo, para Durval Muniz, é o principal mito com que opera essa síndrome.

Embora a crítica deste estudo esteja voltada às interpretações que se fazem do folclore e da cultura popular nordestina, o autor as reconhece como importante, pois permite a reflexão de todo o processo de fabricação da cultura, das práticas e operações as quais dão origem e significados e, consequentemente, implicam diversas formas de seu uso. Como último exemplo, podemos retornar ao rei do baião, como um de muitos que ao longo do século XX tornou-se um propagandeador da cultura nordestina fabricada pelos pioneiros e seguidores apontados ao longo da Feira dos mitos. Um livro indicado para os estudos sobre cultura escrita, sobretudo, do ponto de vista teórico-metodológica, onde o autor refaz os caminhos da pesquisa e seus métodos de análise, é fundamental para repensarmos os conceitos em torno do Nordeste. De maneira impactante, põem em questão estereótipos, “verdades” construídas.

Notas

  1. ALMEIDA, Onildo. A Feira de Caruaru In: Luiz Gonzaga. LP, 1957.
  2. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p.
  3. O Concurso instituído no ano de 1959 foi idealizado com o propósito de estimular a produção de conhecimento científico sobre os diversos temas do folclore e da cultura popular. Lançado anualmente por edital confere ao primeiro e segundo colocados prêmios pagos em dinheiro, prevendo-se, ainda, até três menções honrosas, selecionadas por comissão de especialistas indicados pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Disponível em: < http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=52> Acesso em: 29 junh. 2014.
  4. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino – de problema à solução (1877 – 1920). Campinas: Unicamp, 1988 (Dissertação de Mestrado em História); A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 2011.
  5. Jaques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Michel de Certeau, Reinhart Koselleck e outros.
  6. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UNB, 1994.
  7. LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da História oral. 8 ed. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006, p. 168-169.
  8. Para mais detalhes sobre o processo de institucionalização dos folcloristas, cf. ORTIZ, Renato. Cultura Popular: Românticos e Folcloristas. Editora Olho d’água, S.D; VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947–1964). Rio de Janeiro: FUNARTE: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

Valério Rosa de Negreiros – Mestrando em História Social. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Rio de Janeiro. Brasil. [email protected].


ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p. Resenha de: NEGREIROS, Valério Rosa de. Outros Tempos, São Luís, v.11, n.18, p.318-324, 2014. Acessar publicação original. [IF].

 

O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 –c. 1853) / João J. Reis

Na trajetória da História Social dos últimos 40 anos, o interesse dos historiadores abandonou a análise das estruturas –que produziam resultados cada vez menos capazes de apreender a complexidade da realidade histórica, e que falhavam em oferecer respostas satisfatórias a novos questionamentos –em favor de observações qualitativas, preocupadas em conferir como as pessoas reais lidaram com os desafios e condições de seu tempo. Diminuiu a convicção sobre teorias e modelos, já que a observação das experiências vividas punha em xeque a validade de tais postulados. Talvez a corrente historiográfica que mais fielmente tenha encarnado os novos valores da historiografia seja aquela rotulada de micro-história. Estudos ligados a essa metodologia buscam reunir eixos que haviam sido apartados: estrutura e experiência. A historiadora Hebe Castro -em artigo publicado na obra coletiva “Domínios da História” –afirma que tais estudos encontram “agentes históricos por trás dos discursos”, rompem “excessos de agregação e da simplificação das variáveis”, deixam claro a “liberdade e a inteligibilidade da ação humana na história”.

O “Alufá Rufino” de Reis, Gomes e Carvalho é um trabalho que enfeixa todas estas considerações historiográficas. Amparada numa extensa bibliografia e em documentação histórica levantada em três continentes e em vários estados do Brasil, a obra foi definida pelos autores como uma “história social do tráfico e da escravidão no Atlântico”. O que se observou não foi um Atlântico genérico, impessoal e ideal, e sim o Atlântico de Rufino José Maria, o contexto onde a vida tumultuada e incerta deste africano se desenrolou. Um Atlântico particular que, se por um lado estava marcado por condições que determinaram a trajetória daquele africano, ao mesmo tempo era espaço para suas manobras, negociações e decisões. Como resultado, os autores delinearam não um quadro mecânico, devorador de vidas e vontades ao sabor de suas leis, mas um espaço de possibilidades, uma demonstração do poder do indivíduo frente ao que se lhe impõe. A reboque destas realizações historiográficas, extraídas do emprego inteligente da micro-análise, os autores contribuíram ainda com “quadros” ricos de diversos aspectos do período estudado, observações que cobrem temas tão díspares quanto uma vida humana, uma “experiência”, pode abarcar.

Sobre a África de Rufino, para começar, a obra faz ver o tumultuado contexto de lutas étnicas que estabeleciam com o tráfico humano uma relação de estimulação mútua. No início do século XIX, a África Ocidental da região dos golfos de Benim e Biafra e seus sertões era uma colcha de retalhos étnica, onde grupos islamizados de diversos matizes (desde ortodoxos até aqueles mais abertos a sincretismos com as religiões tradicionais africanas), disputavam entre si pelo controle dos territórios e se sucediam no governo de pequenos reinos, estados e califados. Oriundo de um reino outrora poderoso mas então em crise, o africano que no Brasil viria a se chamar Rufino, membro de uma família malê (iorubá islamizada), foi aprisionado e remetido ao porto litorâneo por membros de outra etnia islamizada, que agora detinha o poder na região.

Saindo de uma África deflagrada, Rufino se deparou, na Bahia, com mais conflitos: tratava-se da Guerra de Independência, que na região de Salvador opôs militares portugueses –que controlavam a capital –aos fazendeiros brasileiros entrincheirados na região do Recôncavo. O fato de ter sido vendido a um boticário de renome foi oportunidade para que os autores explorassem as particularidades desta atividade, demonstrando detalhes da medicina e do comércio da Bahia de inícios do século XIX.

É também seguindo Rufino para o Rio Grande do Sul onde, ainda na condição de escravo, ele acompanha o filho de seu senhor, que os autores acabam penetrando nas fímbrias da Revolução Farroupilha. Perseguindo a sinuosa trajetória daquele africano, que parecia destinado a viver em regiões belicosas, aproximaram-se da rotina de José Maria de Salles Gameiro de Mendonça Peçanha, o desembargador Peçanha, chefe de polícia da Província gaúcha. Peçanha seria o novo senhor de Rufino. Aproveitando-se desta parada na acidentada trajetória atlântica de Rufino, os autores oferecem um olhar sobre a Porto Alegre do início dos oitocentos, especialmente sobre as condições da escravidão naquela região, que tinha fama de ser dura com os cativos. Transparecem, por meio dos documentos policiais, dos relatos de viajantes, das informações colhidas em jornais daquele tempo, as táticas de resistência e repressão empregadas por escravos e senhores. Mostram ainda as faíscas iniciais, detectadas nos relatórios do senhor de Rufino aos seus superiores no governo, da grande rebelião que tomaria o sul do país por uma década, a Farroupilha.

Outro aspecto importante da obra, também ligado à trajetória de Rufino, é a discussão que se faz sobre as etnias africanas no Brasil, sua distribuição territorial e profissional, e sobre as representações feitas sobre elas pelos senhores. Escravos minas, chamados malês na Bahia, eram temidos e perseguidos naquele momento. Pairava sobre eles uma endêmica suspeita de conspiração, um medo que servia inclusive aos fins políticos dos conservadores, que se apoiavam nele para adotar medidas de exceção e perseguir seus oponentes (segundo a acusação dos liberais). O domínio da escrita e o emprego do idioma árabe eram fatores que tornavam os minas ainda mais perigosos aos olhos dos senhores e das autoridades.

O Rio de Janeiro, destino seguinte de Rufino, era uma “extraordinária Babel africana” (REIS et alii, 2010, p. 71), a maior cidade africana das Américas. Ali desembarcaram, nas três primeiras décadas do século XIX, entre 500 e 900 mil africanos. Apesar de serem minoria no Rio de Janeiro –cuja população negra era composta majoritariamente de africanos de Angola, Congo e Moçambique –os minas apareciam desproporcionalmente em documentos policiais. Eram também majoritários nas atividades de ganho, o que os tornavam mais aptos à conquista da liberdade. Nessa época, 45% das alforrias pagas beneficiaram africanos minas, que representavam algo em torno de 5% da população africana carioca. A massa africana no Rio de Janeiro provocava um clima de tensão e repressão constante, traduzindo uma intensa pressão emancipatória dos escravos. Na Bahia, a presença de africanos oriundos da Costa da Mina, falantes do iorubá e familiares a Rufino, era maior.

Segmento essencial da obra aparece após a alforria de Rufino, diante da decisão que este toma sobre o que fazer com a sua liberdade: é aí que se penetra nos bastidores do tráfico humano do Atlântico. Livre, Rufino ingressa no comércio de escravos, na função de cozinheiro assalariado (o que lhe dava a chance de ser também pequeno comerciante transatlântico). É oportunidade para que os autores desvendem as intrincadas tramas deste negócio lucrativo e, a partir de 1831, ilegal, que juntava interesses e fazia fortunas nos dois lados do Atlântico. Eles demonstram as condições aviltantes da travessia, onde a falta de espaço, de alimentação e hidratação corretas e os precários padrões sanitários vitimavam, em média, 12% dos cativos. Através da análise do caso de Rufino e de outros correlatos e coevos, demonstra-se o funcionamento interno de uma embarcação traficante clandestina, destacando-se a importância do papel do cozinheiro. Evidenciam-se os esquemas absurdos erigidos pelos traficantes para “enganar” as autoridades brasileiras, que na verdade faziam vista grossa para o movimento incessante do tráfico negreiro. Aparecem as nuances das redes internacionais do tráfico, as conexões entre traficantes radicados nas duas extremidades do Atlântico; demonstra-se o caráter familiar de muitos desses empreendimentos escravistas, passados de pai para filho. Os “patrões de Rufino” são desmascarados neste segmento, que revela os meandros da atividade escravista.

Finalmente, aparece o papel da repressão inglesa, devidamente desmistificada e vinculada a interesses nada humanitários. O pragmatismo da marinha inglesa, que por motivos jurídicos tentava preservar a “cena do crime”, contribuía para um aumento absurdo das taxas de mortalidade nos tumbeiros. Os autores apontam ainda o cuidado que os ingleses tinham para evitar que a repressão ao tráfico interviesse nos seus interesses comerciais: os navios negreiros quase nunca eram capturados antes de tocar o solo africano e trocar as mercadorias trazidas do Brasil (muitas delas de origem inglesa) por africanos escravizados. Transparece também o caráter negocial das apreensões de navios traficantes, cuja captura gerava bônus para os perseguidores e que, levados para Serra Leoa e leiloados, produziam lucros para os potentados locais.

Radicado em Recife na década de 1840, Rufino torna-se alufá, espécie de sacerdote, contando para isso com os ensinamentos que recebeu na comunidade islâmica em Serra Leoa, onde passou duas temporadas de estudos. Emerge neste ponto da narrativa uma reflexão sobre o processo de sincretismo, em pleno desenvolvimento, entre religiosidades multicontinentais. Ao islamismo africanizado de Rufino, marcado pelo apego a patuás e amuletos, somavam-se crenças, conceitos e ritos brasileiros, estes também já bastante marcados pelo contato com outras religiosidades. Analisando o depoimento de Rufino, tomado em 1853, os autores detectaram o emprego de termos usados comumente por negros católicos no Brasil. A parada de Rufino em Recife, outro ponto do Atlântico sinalizado por este viajante incansável, dá ensejo ainda a análises sobre o espaço urbano recifense e sobre as tensões sociais subjacentes a sua vida cotidiana.

Além de todo o trabalho detetivesco feito pelos autores, verdadeiro exercício de faro fino, e da reunião e análise de uma extensa bibliografia que desse conta dos contextos percorridos por Rufino em sua trilha atlântica, sobressai do trabalho grande nota de sinceridade, de reconhecimento de limites. Durante todo o trajeto, quando necessário, os autores deixam claro a fragilidade de suas constatações. Não raras vezes encontraram pontos cegos, ausências e falhas na documentação, vicissitudes que não permitiram apontar com precisão total os passos dados pelo protagonista ou por aqueles que o cercavam. Os autores, diante dessas lacunas, oferecem conjecturas e possibilidades, mas o fazem de maneira a permitir que o leitor acompanhe o raciocínio, pese as possibilidades e julgue por sua conta. A própria decisão de publicar como anexos documentos importantes ligados à trajetória de Rufino, na íntegra, demonstra essa escolha de exibir os caminhos que levaram a esta ou aquela interpretação, no lugar de oferecer um produto fechado, inviolável e que se deve aceitar no todo e sem questionamentos.

Ao explicitar o modus operandi de seu trabalho, mostrando as escolhas interpretativas que fizeram, os argumentos que sustentam suas afirmações, os autores fazem um convite à reflexão, levando o leitor a adotar uma postura crítica, que poderá ser estendida a todas as outras leituras que ele vier a realizar. A escolha da micro-análise, a perseguição do indivíduo e de sua experiência, o abandono das análises totalizantes, ao contrário do que alguns apregoam, é um caminho vantajoso para os estudos de história. Longe de impedir a formação de uma compreensão maior, o estudo da trajetória de Rufino demonstrou exatamente o contrário, que a análise qualitativa é capaz de oferecer dados sólidos para a compreensão de um determinado contexto. A obra é, afinal, um grande tratado sobre a escravidão africana, um contributo valioso para a historiografia sobre o tema.

Daniel Rincon Caires – Instituto Brasileiro de Museus –IBRAM.


REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de. O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 –c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.Resenha de: CAIRES, Daniel Rincon. Outros Tempos, São Luís, v.10, n.15, p.250-254, 2013. Acessar publicação original. [IF].

History, Memory, and State-Sponsored Violence: Time and Justice / Berber Bervernage

O professor Berber Bevernage atua na Universidade de Gent, Bélgica, e participa do grupo “TAPAS – Thinking about the past”, localizado na mesma universidade. O trabalho resenhado é o fruto de sua tese de doutorado e traz consigo discussões basilares para sociedades que passaram por períodos de regimes ditatoriais ou atos de extrema violência protagonizados pelo Estado. A principal fonte de análise do autor são os resultados das comissões da verdade de três países: Argentina, África do Sul e Serra Leoa. Bevernage defenderá a tese de que a compreensão tradicionalmente defendida pela historiografia ocidental sobre tempo e história não pode ser aplicada às vítimas de violência promovida por esses Estados.

Logo no prefácio de sua obra, Bevernage nos apresenta as suas teses principais: primeira, “that the way one delas with historical injustice and the ethics of history is strongly dependente on the way one conceives of historical time”; segunda, “that the concept of time traditionally used by historians are structurally more compatible with the perpetrators’ than the victims’ point of view” e, terceira, “that the breaking with this structural bias demands a fundamental rethinking of the dominant modern notions of history and historical time” (BEVERNAGE, p. 9, 2012). De acordo com essas teses, portanto, será perseguida, durante todo o restante do trabalho, a maneira com a qual as vítimas entendem o passado que lhes é traumático. Essa maneira de compreender o tempo e a história específica das vítimas se contrapõe, portanto àquela tradicionalmente aplicada pela historiografia moderna ocidental, a qual, de maneira oposta, se adequa muito melhor ao ponto de vista dos perpetradores da violência. Bevernage propõe, pois, outra maneira de lidar com as noções de tempo e história dessas vítimas.

O livro está dividido em duas partes. Na primeira, encontra-se a discussão acerca dos eventos traumáticos passados pelas vítimas nos três países referenciados. No final desta, o autor apresenta conclusões preliminares que apontam para a necessidade de se repensar a maneira com a qual se tem tratado o tempo e a história para vítimas de eventos traumáticos protagonizados pelo Estado. Na segunda, Bevernage se debruça sobre a discussão teórica que dará cabo de sua análise dos casos desses três países. O autor, então, perpassa uma série de tradições historiográficas da teoria da história e aponta o pensamento do filósofo francês Jacques Derrida como o mais apto a ser aplicado à noção de tempo dessas vítimas. Ao término dessa segunda parte, igualmente, Bevernage apresenta as suas conclusões acerca de todo o processo, deixando clara, não obstante, a sua opinião sobre o que deveria ser feito com relação ao passado traumático nesses três casos analisados. Exatamente por isso, ele afirma ainda no prefácio, o seu trabalho trazer uma contribuição à teoria da história, porém, uma contribuição “não-ortodoxa”. Sua contribuição é assim qualificada, pois:

Unorthodox because it does not focus on professional historiography; it does not go into questions of truth, objectivity, or narrativism; but mostly, this book differs from conventional philosophy of history because it tries to draw the attention to some long-neglected ‘big questions’ about the historical condition – questions about historical time, the unity of history, and the ontological status of present and past – and because it is openly programmatic in its plea for a new historical ethics [2].

Será, portanto, essa “nova ética histórica” o foco das discussões de Bevernage em sua obra. Qual seria a melhor teoria, pois, para se analisar o tempo e a história presente nas narrativas das vítimas da violência estatal nesses três casos analisados? Uma vez analisadas “corretamente”, haveria alguma maneira de tratá-las de acordo com os seus pedidos, mantendo a paz e a integridade de todos? Ou o simples ato de ouvir os seus anseios da maneira que eles querem já poria a sociedade em uma situação de instabilidade política? Na introdução, o autor apresenta o pensamento de dois autores consagrados na historiografia ocidental, Nietzsche e Benjamin, contrapondo seus pensamentos. Enquanto para o primeiro, “para se viver torna-se necessário esquecer”, para o segundo, as injustiças históricas cometidas no passado devem ser redirecionadas para o presente, reorientando-o. Segundo Bevernage, a tradição moderna ocidental teria se afiliado muito mais ao pensamento nietzcheniano, tendo como consequência disso o foco numa ética histórica muito “presentista”. O autor faz dialogar, portanto, o “tempo da história” com o “tempo da jurisdição”, trazendo para o centro da discussão a possibilidade de serem julgados crimes cometidos em um passado muito longínquo. Dentro dessa lógica, pois, o “tempo da história” aparece como aquele responsável por apresentar o tempo como algo “reversível”, enquanto o “tempo da jurisdição” o apresenta de maneira “irreversível”. Para as vítimas, contudo, conforme Bevernage apresenta na fala de um sobrevivente de Auschwitz, essa noção de tempo “irreversível” é “inaceitável” [3].

A partir dessa discussão aparentemente dicotômica e sem saída, Bevernage apresenta a ideia de “tempo irrevogável” (“notion of irrevocable”) enquanto possibilidade de saída para tal quimera, expressa no dilema sobre o que fazer com os crimes históricos ocorridos nos países que sofreram atos de violência protagonizados pelo Estado, uma vez que a “justiça transicional” deve decidir sobre algo extremamente delicado:

(…) to repair historical injustice and thereby risk social dissent, destabilization, and return to violence; or to aim at a democratic and peaceful present and future to the ‘disadvantage’ of the victims of a grim past? [4].

Quando se trata de atos de violência cometidos pelo Estado, contudo, tem sido muito mais comum o esquecimento. Para as vítimas, entretanto, a situação tem se mostrado completamente diferente. As vítimas não esquecem. Pelo contrário, para elas o passado continua presente, atormentando-as, clamando por justiça, mesmo que ela cause desestabilização na “paz social”. A partir dos anos 1980 essa situação tem mudado um pouco. Conforme apresenta Bevernage, as comissões da verdade trazem consigo esse dilema da justiça transicional e, a partir da análise dos resultados obtidos pelas comissões nos três países supracitados, Bevernage busca por uma saída satisfatória para o tormento que o passado causa na vida das vítimas, mesmo o Estado tendo oficializado tal evento traumático enquanto “superado”. A história, portanto, apresenta a qualidade de “performática”, pois: “it can also produce substantial socio-political effects and that, to some extent, it can bring into being the state of affairs it pretends merely to describe” [5]

O primeiro caso analisado, no primeiro capítulo da Parte I do livro, é o das “Madres de Plaza de Mayo”, na Argentina, as quais clamam por justiça em nome de seus filhos, os “desaparecidos”. Esse grupo de vítimas levanta uma série de conceitos problemáticos acerca da ditadura militar na Argentina, os quais são facilmente relacionados à ideia de “tempo irrevogável” defendida por Bevernage. Enquanto o governo argentino lançou o “Nunca Más” como slogan para o esquecimento e superação da violência protagonizada pelo Estado durante tal período, as “Madres” lançaram o “Aparición con vida”, opondo-se claramente à ideia de esquecimento em prol da superação. Para elas, portanto, não importa se os seus filhos estão realmente mortos ou são “desaparecidos”. Elas clamam por justiça, para que o Estado prenda os perpetradores da violência que matou os seus filhos, não pelo esquecimento ou pela superação. A força do debate levantado pelas “Madres” é, portanto, colocada por Bevernage como exemplar de um grupo de vítimas que se opõe declaradamente ao conceito de tempo e história “irreversíveis”. Para Bevernage, apenas o “tempo irrevogável” é capaz de compreender tais anseios trazidos por estas mães [6].

No capítulo seguinte, Bervernage apresenta o caso da África do Sul e do “Apartheid”. Algo semelhante ao caso das “Madres” se apresenta aqui: apesar de a comissão da verdade trazer à tona crimes de violação aos direitos humanos, a grande maioria desses casos foi engavetada em nome da “paz social”. Para um grupo específico de vítimas, contudo, os “Khulumani”, o passado não deve ser esquecido dessa maneira. Independente do que possa ter ocorrido oficialmente com a chegada de Nelson Mandela ao poder, uma quebra maior com o legado do “Apartheid” ainda é, para esse grupo, um projeto de longa duração. Dessa forma, de maneira semelhante ao que se observou na Argentina, as narrativas das vítimas do “Apartheid” na África do Sul precisam ser analisadas a partir da ideia de “tempo irrevogável”, pois eles chamam por uma justiça que, para a justiça transicional oferecer, seria necessário resolver àquele dilema apresentado anteriormente, o que colocaria em cheque a paz social, uma vez que o enfrentamento do passado, no presente, viria em termos legais e criminais, não apenas sociais.

O terceiro caso, de Serra Leoa, analisado no capítulo seguinte, apresenta conclusões semelhantes com relação ao “tempo irrevogável”. Para Bevernage, a ideia de “tempo irreversível”, amplamente divulgada pelas comissões da verdade nesses três países, tem por principal objetivo manter a integridade nacional, manter o povo unido em prol de algo menos catastrófico quanto encarar o passado traumático de frente, algo preconizado pelo “tempo irrevogável”. Não se trata de resolver os problemas do passado, no presente, como se eles pudessem ser apagados. Trata-se, isso sim, de reconhecer que, para as vítimas, pedir para simplesmente “esquecer” é, tanto cruel, quanto irreal, pois elas não esquecem e, conforme o autor demonstra nesses capítulos, elas criam grupos sociais e se articulam em prol de mostrar para o Estado: “nós não esquecemos. Nós queremos justiça”.

As conclusões preliminares às quais o autor chega ao final da primeira parte de seu livro trazem tais questões ao foco do debate. As “políticas temporais” (“politics of time”) promovidas pelas comissões da verdade nesses três casos voltam-se para a história, não em prol de elaborar uma continuidade temporal capaz de sanar as insatisfações e os traumas das vítimas, mas sim em prol de uma descontinuidade temporal, sendo esta responsável por deixar clara a necessidade de elaboração de uma política de tempo “irreversível”. Esquecer para superar. O esquecimento vem, ainda, aliado à ideia de “perdão”. Todos esses argumentos promovidos por tal “política temporal” tem por objetivo central a manutenção de uma nação coesa, evitando trazer para si as polêmicas de um enfrentamento do passado traumático em termos legais e jurídicos. O ato de posicionar os atos violentos no “passado” elabora uma cronologia responsável por alocar as vítimas em um tempo que não lhes pertence mais, tornando-as antiquadas e rancorosas, caso queiram clamar por justiça [7].

As experiências delas, portanto, ainda substantivas, sensíveis e vivas, são transformadas em cronologia pela justiça transicional baseada na ideia de tempo “irreversível”. Para as vítimas, o passado ainda é um espectro, um fantasma, algo que ronda as suas consciências no presente e não pode simplesmente ser “exorcizado” pelo Estado e suas políticas temporais baseadas neste outro modelo de compreensão do tempo.

Na segunda parte de seu livro, Bevernage inicia a busca por algum modelo temporal que se adequasse ao das vítimas desses três exemplos elencados. O autor dialoga com o tempo newtoniano, com o tempo formulado pelo historicismo, pelo modernismo e pelo secularismo, para chegar à conclusão inicial de que, nenhuma delas, apesar de significativas para a formação do que a historiografia ocidental considera tempo e história, dialoga com o passado “aterrorizante” das vítimas (BEVERNAGE:108, 2012). Não obstante, tornasse necessário frisar que este modelo temporal e de história formulado pela modernidade, no qual o autor afirma a historiografia ocidental basear-se, precisar ser repensado, caso desejemos trazer para a discussão os passados traumáticos e atormentadores das vítimas de violências causadas pelo Estado. A isso, Bevernage nomeará de “cronosofia” (“chronosophy”): “we need to rethink historical time and look for the possibility of na alternative chronosophy” [8].

Em seguida, ainda em busca de alguma teoria que abarque esta outra “cronosofia” necessária, Bevernage dialoga com autores como Fernand Braudel, Collingwood, Paul Ricoeur, Ernst Bloch, Louis Althusser. De todos esses autores, Bevernage destaca que houve, durante todo o século XX, a tentativa de discutir o tempo e a história sob vieses capazes de trazerem consigo tempos plurais e polirrítmicos, porém, nenhum deles quebrou tão fortemente com a tradição temporal marxista e hegeliana como o filósofo francês Jacques Derrida:

What we need and what is mostly lacking in the alternative chronosophies discussed in this chapter, therefore, is an explicit deconstruction of any notion of a time that acts as a container time and pretends to be the measure of all other times. Who can we better turn to for this type of deconstruction job than the French philosopher Jacques Derrida? [9]

Derrida aparece, na fala de Bevernage, como o teórico mais apropriado para lidar com o tempo aterrorizante das vítimas porque ele, mesmo sendo assumidamente marxista, foi capaz de assumir e trazer para a sua “cronosofia” os “espectros” temporais, aos quais o próprio Marx faz referência em muitas de suas obras. Para o autor, portanto, Derrida trará para a sua “cronosofia” a máxima shakespeariana “time is out of joint” (“o tempo está fora de eixo”) em prol de elaborar uma teoria temporal capaz de trazer para si os espectros e os presentes não desejados, uma vez que deveriam já ter se tornado passado [10].

Já próximo às conclusões final do livro, Bevernage associa tal teoria ao tratamento do luto e da melancolia. Uma vez que às vítimas das violências tratadas nos capítulos anteriores foi negado o tratamento social do luto, Bevernage aponta que, ao tratá-las dessa forma, o Estado não estaria sanando um problema, mas sim, criando um ainda maior – como é o caso das “Madres” que, independente do tempo passado desde o desaparecimento de seus filhos ainda os qualificam como “desaparecidos”, não como “mortos” [11]. O autor, então, chega à conclusão de que, o modo com o qual se tem tratado o luto nas sociedades modernas tem-se mostrado ineficaz para com a sua superação. As vítimas precisam senti-lo e, não apenas isso, elas precisam ver medidas serem tomadas, legalmente, em prol de seu sentimento de “passado-presente”, em nome desse espectro que os ronda, uma vez que não se trata de uma questão meramente pessoal, mas de uma questão de violência causada pelo próprio Estado. Bevernage toma, mais uma vez, o exemplo das “Madres” para ilustrar tal necessidade, quando afirma: “this, I think, is how we have to interpret the Madres’ claim that although more than thirty years of calendar time have passed since their children were disappeared, they do not consider them to belong to the past” [12].

Às conclusões finais às quais Bevernage chega podem ser destacadas da seguinte maneira: enquanto as comissões da verdade, por meio da ação da justiça transicional, trazem à tona o tempo espectral e aterrorizante das vítimas, esse tempo no qual, segundo o autor, a teoria mais adequada para analisar é a de Derrida, elas nada podem intervir, uma vez que, ao apoiarem-se nos discursos históricos acadêmicos sobre tempo e história, elas não encontram respaldo para tal. O tempo e história nas narrativas das vítimas, então, encontram-se em uma situação problemática: apesar de o próprio Estado trazer à tona as suas falas a partir das comissões da verdade, nada é feito, pois a sua “cronosofia” não é vista enquanto possível, dentro da tradição historiográfica ocidental.

Bevernage, contudo, não se abstém de opinar neste quesito. Após toda a pesquisa, ele afirma, com relação à teoria do tempo irrevogável e às políticas temporais, que não é de sua alçada afirmar que se deva fazer justiça a todo e qualquer. Essa, de acordo com o autor, é uma decisão que não pode ser tomada fora do contexto específico no qual a violência efetivamente aconteceu “deciding how exactly to deal with the past after political transition and/or violent conflict will remain a socio-political issue that cannot be solved a priori or out of context”, às vezes, a “besta do passado” é simplesmente forte demais para ser olhada diretamente [13]. Para tanto, pois, Bevernage afirma que o dilema da justiça transicional, uma vez considerado o tempo irrevogável, deve permanecer enquanto um “dilema político”, isto é, algo que deva variar de acordo com as especificidades de cada país e de cada acontecimento histórico violento.

Ao invés de, ao término da pesquisa, Bevernage pretender uma espécie de “fórmula” para a resolução dos problemas sociais em sociedades pós-transicionais, ele nos oferece a reflexão de que, afinal, esta é uma questão política e, trazer as narrativas das vítimas para o seu cerne é, não apenas necessário, como vital. Se a “cronosofia” moderna não consegue abarcar a “cronosofia” das vítimas, tampouco negá-la é a solução para manter a estabilidade social em situações extremas como as tratadas durante o livro. O diálogo com a teoria de Derrida serve para o autor exatamente nesse aspecto: existem, inevitavelmente, inúmeros presentes naquilo que acreditamos ser o “presente” e, em casos como esses, negá-los pode gerar um nível de dissensão perigoso para a manutenção da coesão social responsável por formar uma nação.

Notas

  1. BEVERNAGE, Berber. History, Memory, and State-Sponsored Violence: Time and Justice. New York/London: Routledge, 2012. p. 10.
  2. BEVERNAGE, Berber. History, Memory, and State-Sponsored Violence: Time and Justice. New York/London: Routledge, 2012. p.3.
  3. Ibid., p.7.
  4. BEVERNAGE, Berber. History, Memory, and State-Sponsored Violence: Time and Justice. New York/London: Routledge, 2012.p.15.
  5. Ibid., p.45.
  6. BEVERNAGE, Berber. History, Memory, and State-Sponsored Violence: Time and Justice. New York/London: Routledge, 2012.p.86.
  7. BEVERNAGE, Berber. History, Memory, and State-Sponsored Violence: Time and Justice. New York/London: Routledge, 2012.p.109.
  8. Ibid., p.130.
  9. BEVERNAGE, Berber. History, Memory, and State-Sponsored Violence: Time and Justice. New York/London: Routledge, 2012. p.144.
  10. Ibid., p.157.
  11. Ibid., p.167.

Caio Rodrigo Carvalho Lima – Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Natal/RN. E-mail: [email protected].


BEVERNAGE, Berber. History, Memory, and State-Sponsored Violence: Time and Justice. New York/London: Routledge, 2012. 250p. Resenha de: LIMA, Caio Rodrigo Carvalho. Outros Tempos, São Luís, v.10, n.16, p.308-315, 2013. Acessar publicação original. [IF].

Teoria da História (v.1) Princípios e conceitos | José D’Assunção Barros

Iniciamos esta resenha nos remetendo a algumas questões feitas por José Carlos Reis, em um instigante e provocante artigo. Diz o autor: “Pode um historiador ser considerado culto e competente sem nenhuma preparação teórico-metodológica?”, ou então, “Pode um professor, mesmo do ensino fundamental e médio, ensinar história sem nenhuma bagagem teórico-metodológica?”.2

Reis está entre os historiadores mais dedicados especialistas a abordar as questões teórico-metodológicas da disciplina da História no Brasil e, a seu lado, outro proeminente historiador, José D’Assunção Barros igualmente tem feito sua parte. Este último, escritor de tantos artigos e livros, vem igualmente despertando a atenção do público leitor especializado em História, com uma trajetória consagrada ao estudo de Teoria, Metodologia e Historiografia, propondo que debatamos e discutamos tais esferas do nosso ofício desde o início da graduação nas diversas licenciaturas em História espalhadas pelo país.

Barros, tal como José C. Reis, avalia que é essencial para qualquer profissional da História, ter denso conhecimento teórico sobre sua área de atuação. Conforme ressalta o autor,

A Teoria da História constitui um campo de estudos fundamental para a formação do historiador. Não é possível desenvolver uma adequada consciência historiográfica, nos atuais quadros de expectativas relacionadas ao nosso ofício, sem saber se utilizar de conceitos e hipóteses, sem compreender as relações da História com o Tempo, com a Memória ou com o Espaço, ou sem conhecer as grandes correntes e paradigmas teóricos disponibilizados aos historiadores da própria história da historiografia.3 Não por acaso o livro aqui resenhado, “Teoria da História, Vol. I. Princípios e conceitos”, foi lançado originalmente em 2011 e, já no ano de 2013, encontra-se em mais uma edição, a terceira. Tal obra faz parte de um ambicioso projeto, que contará com seis volumes, cinco dos quais já foram publicados.

Ainda que negue ser do tipo “especialista” que se dedica a um único tema, conforme relatou em recente entrevista,4 José D’Assunção Barros tem ocupado lugar de destaque na área de Teoria, produzindo uma respeitada bibliografia acerca do tema, tanto em formato de artigos, ou em seus livros, tais como, “O campo da História”5 e “O projeto de pesquisa em História”6. Isso não significa que o referido autor esteja limitado à “Teoria e Metodologia”, pois como se sabe, pesquisou temas medievais em seu mestrado e doutorado, além de ter estudado a música, lançando há pouco tempo o livro “Raízes da música brasileira”,7 dentre outros, confirmando sua transitoriedade em diversos assuntos.

Trata-se, neste sentido, de um projeto que vem de longa data, amadurecida no decorrer dos anos em que o autor tem publicado dezenas de textos sobre Teoria e Metodologia. Segundo Barros, sua principal intenção foi pensar a coleção “Teoria da História”, “como um livro que buscasse suprir as demandas, nos cursos de graduação, para a disciplina que recebe este mesmo nome”.8

Desse modo, no primeiro volume de sua coleção, o autor pretenderá situar seus leitores sobre questões pertinentes ao “Campo Disciplinar”, “Teoria”, “Metodologia”, “Escola histórica”, “Paradigmas Historiográficos”, dentre outros temas. Sua preocupação em ser didático está presente, e esta é uma de suas características, isto é, fazer da “Teoria da História” um tema que possa ser atrativo e, ao mesmo tempo, indispensável para o estudante de graduação.

No capítulo inicial, de suma importância para toda a coleção, Barros pretenderá mostrar essencialmente o que são Teoria e Metodologia, quais as suas diferenças, e em que momento elas se aproximam e mantém o que ele chama de “confronto interativo”. Segundo o autor, tal cuidado é pertinente e necessário, pois “não são raras, por exemplo, a confusão entre ‘Teoria’ e ‘Método’ e, mais particularmente, entre Teoria da História e Metodologia da História”.9

Para tanto, inicialmente o autor tem a louvável preocupação de apresentar para o seu leitor o que é exatamente uma “disciplina”, ou um “campo disciplinar”, pois uma vez que ele está a falar de História enquanto disciplina, é bastante produtiva sua preocupação em esmiuçar tal questão, evidenciando como todo “campo disciplinar”, seja da Química, Física, Astronomia, Geologia, Medicina, etc., possui uma história e se modifica com o tempo, conjuntamente com suas práticas e objetos. Neste sentido, Barros – apoiado em Bourdieu -, entende que as regras de um campo disciplinar se transformam e podem ser redefinidas a partir de seus embates internos.

Assim, o autor é bastante instrutivo na sua tentativa de reflexão sobre quais elementos são necessários para que exista uma disciplina, ou um “campo disciplinar”. Desse modo, ele nos apresenta um quadro, com dez características, apresentadas da seguinte maneira. Toda a disciplina é constituída, antes de tudo, por, 1) “campo de interesses” (por exemplo, a História e o estudo daquilo que é humano e nas mudanças dos níveis no tempo e no espaço que ocorrem na história); 2) “singularidades” (isto é, conjunto de parâmetros definidores que justificam sua existência. No caso da História, a consideração do tempo, o uso de fontes, etc.); 3) “campos intradisciplinares” (os desdobramentos dentro da própria disciplina em “microdisciplinas”, tais como “História Cultural, “Micro-história”, “História Política”, etc.); 4) “aspectos expressivos”; 5) “aspectos metodológicos”; 6) “aspectos teóricos” (estes três tópicos se referem ao fato de que nenhuma disciplina se desenvolve sem que sejam construídas certas práticas discursivas, metodologias e teorias); 7) “oposições e diálogos interdisciplinares” (ainda que tenha sua singularidade, todo campo de saber está inserido em uma constante luta disciplinar, desde o seu surgimento, e o diálogo entre várias disciplinas é inevitável); 8) “interditos” (aquilo que se coloca como “proibido” ou “interditado” para os praticantes de uma determinada disciplina, mas que pode se alterar com o tempo); 9) “rede humana” (trata-se do próprio ato de fazer, isto é, os próprios indivíduos de um determinado campo o modificam, com maior ou menor grau de impacto, no exercício de seu ofício); 10) “olhar sobre si” (seria a reflexão sobre o campo, no caso da História, isso se dá por meio de disciplinas como a Historiografia, que é uma tentativa de compreender e analisar historicamente o desenvolvimento dos trabalhos históricos).10 Serão mais de vinte páginas dedicadas a explicar os aspectos inerentes a um “campo disciplinar” e que são bastante úteis para a compreensão de todo o texto, pois situa o leitor, a compreender melhor o funcionamento das disciplinas como um todo e, especialmente a História. Após esse tópico, José D’ Assunção Barros irá se debruçar na tentativa de deixar claro o que é “Teoria” e “Metodologia”, suas aproximações e peculiaridades. Segundo o autor, a teoria seria um “modo de ver” e a metodologia, um “modo de fazer”. Nas suas palavras,

A “teoria” remete (…) a uma maneira específica de ver o mundo ou de compreender o campo de fenômenos que estão sendo examinados (…) Por outro lado, a Teoria remete ainda aos conceitos e categorias que serão empregados para encaminhar uma determinada leitura da realidade (…)

Já a “Metodologia” remete sempre a uma determinada maneira de trabalhar algo, de eleger ou constituir materiais, de extrair algo específico desses materiais (…) A metodologia vincula-se a ações concretas (…) mais do que o pensamento, remete à ação e a prática.11

No entanto, conforme já foi mencionado, o autor enfatiza que há um “confronto interativo” entre ambas, nos mostrando como isso se dá, pois como informa, é frequente que uma decisão teórica possa encaminhar um tipo de escolha metodológica ou vice-versa. O “Materialismo Histórico” foi utilizado como exemplo pelo autor,

(…) não é raro que o Materialismo Histórico – um dos paradigmas historiográficos contemporâneos – seja referido como um campo teórico-metodológico, uma vez que enxergar a realidade histórica a partir de certos conceitos como a “luta de classes” ou como os “modos de produção” também implica necessariamente uma determinada metodologia direcionada à percepção dos conflitos, das relações entre condições concretas imediatas e desenvolvimentos históricos e sociais. [Deste modo] Uma certa maneira de ver as coisas (uma teoria) repercute de alguma maneira numa determinada maneira de fazer as coisas em termos de operações historiográficas (uma metodologia).12

Desta maneira, teoria e metodologia são, nas suas palavras, “irmãs siamesas” e que “vivem” inseparáveis na prática da pesquisa científica e, evidentemente, da operação historiográfica.

No capítulo seguinte, intitulado de “Teoria da História e Filosofia da História”, dividido em três subcapítulos -, Barros mostra o encontro entre a historiografia e a ciência a partir da Teoria, e o papel desta última na formação do historiador, “ontem e hoje”, além de explicar as diferenças entre teoria e filosofia da História.

O autor faz um percurso acerca da teorização da História enquanto conhecimento científico, nos mostrando que se antes do século XVIII havia uma Historiografia, entretanto, não se pode falar que existia uma “Teoria da História”. Para ele, tanto as filosofias da História quanto as teorias da História são enunciadas em uma nova era historiográfica que data da passagem do século XVIII para o XIX e que existira entre ambas, cumplicidades e diferenças.

No campo da História, institucionalmente profissionalizada a partir do século XIX, pode-se falar que emergem os primeiros paradigmas historiográficos, que eram o Positivismo, o Historicismo e o Materialismo Histórico. Segundo Barros, uma “Teoria da História, ou um paradigma historiográfico, corresponderá a uma certa visão histórica do mundo, ou mesmo a uma a uma determinada visão sobre o que vem a ser História”.13

Além disso, faz uma observação bastante importante nos mostrando que dependendo de sua filiação teórica, o historiador poderá “ver” o mundo e “pensar” a historiografia de um modo ou de outro, o que não anula, evidentemente, que o mesmo transite por diversas correntes teóricas. Neste sentido, diz ele, com certeira observação:

Diante do amplo conjunto de teorias que se disponibilizam ao historiador, será sempre preciso escolher, pois não existem fórmulas consensuais com vistas a entender ou praticar a história. Em termos de Teoria, cada historiador está condenado a ser livre.14

Para finalizar, Barros apresenta efetivamente as diferenças entre as teorias da história e as filosofias da história. Para ele, as primeiras preocupam-se com a escrita e o ofício da História-Disciplina, enquanto as segundas procuram decifrar o sentido da história-processo. Em termos bastante didáticos, dirá o autor que as “filosofias da história” “podem ser entendidas como um gênero filosófico que produz uma reflexão ou especulação sobre a história”,15 ou, em outras palavras, sobre seu fim. O autor, no entanto, pondera que ainda que as especulações sejam bem mais limitadas nas teorias, elas existem num “certo nível”. Basta ver os casos do Positivismo de Comte, que pensava em um “fim da história” com a “sociedade positiva”, ou então o Marxismo e sua “sociedade sem classes”.

Para simplificar, o autor nos apresenta um ilustrativo quadro mostrando as principais características das filosofias da história e das teorias da história. Em tal ilustração, as primeiras teriam

maior carga de especulação filosófica, preocupação primordial com o sentido da história, produzidas predominantemente por filósofos, que seriam muito mais realizações pessoais dos filósofos, enquanto as segundas carregariam consigo uma menor carga de especulação filosófica, preocupação primordial com a realidade histórica percebida através das fontes, produzidas predominantemente por historiadores e cientistas sociais, espaços de discussão coletiva de setores da historiografia.16

Assim, será a partir do século XIX, com o afastamento das filosofias da história e a partir da formação da comunidade científica dos historiadores e sua institucionalização, que esse profissional passará a teorizar e pensar incessantemente no seu ofício. Isso significa dizer que com a Teoria da História, o “campo disciplinar” História passou a “olhar sobre si”. Desde então, a “Teoria da História estabeleceu-se como um horizonte obrigatório para todo historiador que aprende e desenvolve seu ofício”.17

O terceiro e último capítulo é mais extenso e aborda uma porção de questões que são divididas em cinco subcapítulos. Barros apresentará essencialmente os principais conceitos para o estudo de Teoria da História. Primeiramente o autor divide a Teoria da História em três direções: a primeira seria aquela mais geral, ou seja, o “campo de estudos que examina todos os aspectos teóricos envolvidos na produção do conhecimento histórico”; a segunda, Teoria da História II, mais voltadas às “grandes correntes de concepção da História no interior de cada paradigma (ex: variações do Positivismo […] do Materialismo Histórico), ou mesmo ‘entre’ os paradigmas e até independente deles”; e a terceira, Teoria da História III tem ligação aos problemas mais particulares, ou seja, “sistemas coerentes para a compreensão de processos históricos específicos (a Revolução Francesa, o Nazismo, etc.) desenvolvidos por um ou mais historiadores”.18

Além dessas três, o autor nos mostra alguns outros importantes conceitos, tais como Matriz disciplinar, “Conjunto de preceitos e atributos da História (forma de conhecimento) que é aceito pela ampla maioria dos historiadores”; Paradigma Historiográfico, isto é, “Grandes linhas dentro da historiografia (…) que apresentam uma forma específica de conceber e lidar com a História”, como por exemplo, o Positivismo, Historicismo e Materialismo Histórico; Escola Histórica, “grandes conjuntos coerentes de historiadores, unidos por um programa de ação em comum”; e Campo Histórico, que se divide em dois, pois seria tanto “Modalidades no interior da História, que estabelecem conexão umas com as outras” e, “subespecializações da História”.19 Devemos lembrar, claro, que Barros dedica todo restante de sua obra para esmiuçar tais conceitos. Trata de mostrar as especificidades das Ciências Humanas em relação às Ciências Naturais e Exatas, enfatizando, por exemplo, a ideia de que o historiador, desde a sua graduação, deve ter consciência de que não existe apenas um paradigma historiográfico “verdadeiro”. Por esta razão, pode exercer a liberdade para transitar em vários deles, ou, pelo menos, respeitá-los e aceitá-los como plausíveis dentro do grande campo disciplinar que é a História, para não cair naquilo que José Carlos Reis chama de “pirronismo histórico”.20

Para citarmos um exemplo, no tópico quarto do terceiro capítulo, o autor indica que devemos nos afastar de alguns vícios que, segundo ele, são nocivos ao historiador. Para citar alguns, o péssimo costume de atacarmos autores pessoalmente, em vez de fazermos uma discussão eminentemente teórica, ou então, o “fetiche do autor”, isto é, o endeusamento de determinados teóricos como se fossem os únicos corretos, ou até mesmo a fé cega em um único paradigma ou teoria, como se todos os outros fossem errados. Nas suas palavras, não podemos incorrer no erro de transformarmos determinadas correntes teóricas em dogmas, uma vez que tal atitude “pode transformar uma boa ciência em má religião” (p. 256).

Nesse sentido, o texto de José D’Assunção Barros tem diversas qualidades, desde sua notória erudição, quanto sua disposição em auxiliar (jovens) pesquisadores, pois nessa obra, a principal característica ali encontrada, reside nas suas cirúrgicas explicações dadas ao pesquisador da Ciência da História. Com uma boa quantidade de exemplos, diversos quadros explicativos, e uma narrativa bastante suave, acreditamos que o autor foi bem-sucedido em seu objetivo, uma vez que tal obra merece atenção dos professores de Teoria da História da graduação. No entanto, não se trata de ser apenas uma obra de apresentação da Teoria da História, trata-se de uma demonstração de que não é possível escrever uma história problematizada, sem que haja um exercício teórico-metodológico na orientação das nossas pesquisas e do nosso ensino de História.

Notas

  1. REIS, José Carlos. O lugar da teoria-metodologia na cultura histórica. Revista de Teoria da História, ano 3, n. 6, dezembro de 2011, p. 5.
  2. BARROS, José D’Assunção. Teoria da História Vol. I. Princípios e conceitos. 2013, p. 11. Os grifos são nossos.
  3. ROIZ, Diogo da Silva. Teoria e Metodologia da História no Brasil: entrevista com José D Assunção Barros. Historiae: revista de história da Universidade Federal do Rio Grande, v. 3(1), p. 249-258, 2012.
  4. BARROS, José D’Assunção. O Campo da História – especialidades e abordagens. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. v. 1. 222p.
  5. BARROS, José D’Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. v. 1. 236p.
  6. BARROS, José D’Assunção. Raízes da música brasileira. Ed. Hucitec, 2011.
  7. ROIZ, Diogo. Op. Cit., p. 256.
  8. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 12.
  9. Id., p. 19-40.
  10. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 65-67. Os grifos são nossos.
  11. Ibid., p. 73.
  12. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 87.
  13. Id., Ibid., p. 91-92. Os grifos são nossos.
  14. Id., Ibid., p. 117.
  15. Fizemos um resumo de tais características, que são apresentadas mais detalhadamente em BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 126.
  16. Id., Ibid., p. 147.
  17. Id., Ibid., p. 163.
  18. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 163.
  19. REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2010.

Eduardo de Melo Salgueiro – Doutorando em História – PPGH/UFGD. Universidade Federal da Grande Dourados. Bolsista CAPES. Dourados / Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: [email protected].


BARROS, José D’Assunção. Teoria da História Vol. I. Princípios e conceitos. Petrópolis/RJ. Editora Vozes, 3ª Ed., 2013, 319 p. Resenha de: SALGUEIRO, Eduardo de Melo. Teoria e Metodologia em debate: maneiras de “ver” e “fazer” história. Outros Tempos, São Luís, v.10, n.16, p.316-322, 2013. Acessar publicação original. [IF].

 

O negro e a mulher em Úrsula de Maria Firmina dos Reis / Juliano C. Nascimento

O livro de Juliano Nascimento traz, para os estudiosos de literatura feita por mulheres no Brasil, uma grande contribuição, na medida em que o autor faz uma belíssima investida sobre a obra Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense do século XIX.

Nascida em 1825 na província do Maranhão, mulata e pobre, Maria Firmina dos Reis conseguiu uma façanha extraordinária para as mulheres do oitocentos: escrever e publicar um romance em 1859, Úrsula. Não só o ineditismo da escrita feminina, fato que eram poucas, bem poucas mesmo as mulheres de letras do século XIX, como também a forma inusitada de falar da e contra a escravidão presente em seu romance.

Firmina inaugura, dessa forma, uma literatura abolicionista inédita para o período, pois em seu romance os negros cativos têm voz e vez e falam da escravidão e contra ela, de forma direta, muito antes mesmo do famoso poema Navio Negreiro, de Castro Alves, de 1868.

O processo de diáspora e o aviltamento nos tumbeiros que transportavam os negros africanos para o Brasil são descritos de forma minuciosa pela personagem preta Suzana criada por Firmina, assim como dois outros personagens cativos ganham voz na pena firminiana, que são o escravo Túlio e o velho escravo Antero. Túlio, em um ponto alto do romance, fala que “a mente, essa ninguém pode escravizar” (Reis, p.38), questionando a situação a que estava submetido e o desejo de liberdade que não calava em sua consciência.

Ora, como bem coloca Nascimento, muito já foi dito sobre a obra Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Talvez isso hoje se coloque com mais força porque agora a autora esteja relativamente em alta graças à visibilidade de um discurso sobre a afro-descendência, do “Brasil de e para todos”.

A autora foi por muito tempo esquecida, tanto no âmbito do cânone literário como da historiografia literária. Afinal, é apenas em 1962, ou seja, quase cem anos depois da primeira edição de Úrsula, que Horácio de Almeida, ao encontrá-la em um sebo do Rio de Janeiro, a obra chama a sua atenção por vir assinada com o pseudônimo de “uma maranhense”.

Em 1975, o mesmo Horácio de Almeida traz a lume a segunda edição de Úrsula, em edição fac-similar, hoje também uma raridade encontrada apenas em sebos. (MUZART,2000) Em 1975, também, Nascimento de Morais Filho, desenvolvendo pesquisa sobre autores maranhenses, traz à tona o livro Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma vida, no qual o autor reúne tudo o que encontrou nos jornais do Maranhão da segunda metade do século XIX – jornais que foram espaço onde Maria Firmina publicou bastante: Jornal do Comércio, A Moderação, A Verdadeira Marmota, Jardim dos Maranhenses, A Imprensa, Eco da Juventude, Publicador Maranhense, Porto Livre, O Domingo, O País, A revista Maranhense, Diário do Maranhão, A Pacotilha, Federalista.

Morais Filho reúne também em seu livro poesias, dois contos de Firmina (Gupeva de 1861 e A Escrava, de 1887) e entrevistas com ex-alunos, já que Maria Firmina dos Reis foi professora por quase toda a vida, em Guimarães, interior da província do Maranhão.

No livro de Morais Filho encontramos uma defesa acirrada de que a autora havia sido a primeira romancista brasileira, fato que inaugurou uma famosa disputa pelas origens entre os críticos literários, da primogenia ou não de Maria Firmina em relação à publicação de um romance feito por mulher no Brasil.

Depois desse “resgate”, o livro Úrsula será retomado mais uma vez com uma terceira edição em 1988, centenário da abolição no Brasil. Prefaciado por Charles Martin, o autor coloca Firmina no patamar de primeira escritora abolicionista, e compara o seu romance com outros como A escrava Isaur, de Bernardo Guimarães, de 1875. Para Martin, a autora consegue colocar-se muito melhor, inaugurando, nas letras abolicionistas do XIX, “uma rara visão de liberdade”.

É nesse cadinho que a obra de Maria Firmina dos Reis vai se tornando relativamente conhecida fora do Estado do Maranhão: escritora, mulher, mulata, abolicionista. Daí surgem, ao longo dos tempos artigos, pequenas biografias e, por fim, dois trabalhos de maior fôlego: Algemira Macêdo Mendes e Adriana Barbosa de Oliveira – respectivamente, uma tese de doutorado e uma dissertação de mestrado.

Algemira Macêdo, em sua tese, na qual trabalha com Maria Firmina e Amélia Beviláquia, tem como questão central “rastrear o processo de inclusão e de exclusão das escritoras Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláquia na historiografia literária brasileira do século XIX e XX”. (MENDES, 2006, p.28) Já Adriana Oliveira busca “fazer uma leitura do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, que evidencia a denúncia da condição de desigualdade a que as mulheres e que os africanos e seus descendentes estavam submetidos, no Brasil, do século XIX, devido à atuação do regime patriarcal”. (Oliveira,2007 p. 24) Juliano Nascimento, no entanto, acerta em cheio ao afirmar que “o fato consiste no tempo perdido sem que se examinasse seriamente se há um discurso poético ou não na obra, se há qualidade literária aliada a crítica cultural no romance Úrsula, ou se o romance se mostra apenas como um dramalhão onde mulheres e negros aparecem de forma exótica, ou no melhor dos casos, peculiar.”( Nascimento,2009, p. 24).

Dessa forma, Juliano Nascimento, pela primeira vez e de forma séria, tenta ver o romance Úrsula para além daquilo que o autor entende como motivos “extra-literários”. Ou seja, o valor do romance estaria em seu pioneirismo de ser ou não a primeira publicação de uma mulher brasileira, ou por falar da e contra a escravidão de forma diferenciada, ou por abordar a questão da mulher, entendida hoje como questão de gênero.

Para o autor, que defendeu seu trabalho em forma de dissertação na área de teoria literária na UFRJ e depois o transformou em livro, o importante e fundamental ainda não teria sido feito, que é aprofundar a crítica ao romance, ler e reler a obra como aconselhou Alfredo Bosi, ao falar da falta de leitura de uma determinada nova crítica literária, empenhada em fazer uma super análise, onde o texto não mais apareceria e sim as motivações do crítico literário ou aquilo que ele gostaria de ler na obra. (BOSI, 2009) Nascimento não faz isso, não exerce a super análise, e sim se deixa levar pela narrativa de Maria Firmina dos Reis, fazendo um trabalho minucioso dividido em quatro capítulos: a receptividade da obra, as possibilidades estéticas e ideológicas do romance, a forma do relacionamento entre gêneros no romance e a forma estética e ideológica do negro em Úrsula.

O trabalho é primoroso e chega em boa hora, visto que, como o próprio autor aponta, estava passando do tempo de um debruçamento crítico literário sobre o que Maria Firmina escreveu, para além das razões extratextuais. Fato é que a dissertação de Juliano Nascimento intitula-se: O romance Úrsula de Maria Firmina dos Reis: estética e ideologia no romantismo brasileiro. O título do livro O negro e a mulher em Úrsula de Maria Firmina dos Reis é obviamente uma escolha mercadológica da editora para vender o livro. No entanto, o título não faz jus à abrangência e ao mérito da obra, mas essa já é outra história…

Régia Agostinho da Silva. Professora da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Doutoranda FFLCH-USP. São Luís, MA- Brasil. E-mail: [email protected].


NASCIMENTO, Juliano C. do. O negro e a mulher em Úrsula de Maria Firmina dos Reis. Rio de Janeiro: Caetés, 2009.130p. Resenha de: SILVA, Régia Agostinho da Silva. Outros Tempos, São Luís, v.9, n.13, p.255-257, jul. 2012.  Acessar publicação original. [IF].

 

A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana / Massimo Canevacci

A obra produzida em 2004 foi relançada em 2011 – em evento promovido pelo Programa de Pós-Graduação Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade (PGAU-Cidade), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É constituída pelos estudos do Antropólogo, Doutor em Letras e Filosofia Massimo Canevacci, docente de Antropologia Cultural na Faculdade de Sociologia da Universidade de Roma. Em seu início, apresenta uma instigante epígrafe de Walter Benjamin: “Não saber se orientar numa cidade não significa muito. Perder-se nela, porém, como a gente se perde numa floresta é coisa que se deve aprender a fazer” (BENJAMIN, 1971, p.76)1.

No texto de Massimo Canevacci, esse desejo de querer “perder-se na cidade” traduz-se como condição para realizar a metodologia da comunicação urbana. É o ponto de partida para a compreensão do fenômeno comunicacional, por intermédio de uma visão antropológica inovadora ancorada no conceito de “polifonia”. O autor utiliza tal conceito para analisar a cidade de São Paulo sob o prisma de diversas técnicas interpretativas que levam à identificação de um “paradigma inquieto” a partir do qual a cidade é interpretada.

Com um estilo refinado e envolvente, a escrita de Canevacci leva o leitor a transitar por um universo temático em que se destaca a multiplicidade conceitual, reflexo da tentativa de analisar a complexidade dos ritmos que caracterizam o espaço urbano, os espaços comportamentais e psicológicos dos indivíduos que transitam por ele. Na introdução, o relato de sua primeira visita à capital paulista, no ano de 1984, instiga o leitor a tentar compreender as dimensões do aparato simbólico da cidade.

Para Canevacci, o tecido urbano de São Paulo pode ser conhecido a partir da alternância de três ritmos de comportamento e controle espaço-temporal: a imobilidade doméstica, a hipervelocidade noturna e a lentidão do passeio solitário. Contudo, através da experiência, o autor pôde constatar o excesso de “metropolitanidade” como elemento de “irrepresentabilidade simbólica” da grande metrópole.

A impossibilidade de “mapear simbolicamente” o paulistano somente a partir de uma exploração superficial dos espaços públicos e privados nutre o conceito de “polifonia”, central na obra do antropólogo. O aspecto polifônico da cidade é caracterizado pelo entrecruzamento de diversas vozes copresentes nas ruas, avenidas, lojas, shopping centers, centros culturais e outros espaços da comunicação urbana.

Desse modo, busca o estabelecimento de passos para análise da cidade polifônica. Cada capítulo se desenvolve em torno de um tema específico, na tentativa de caracterizar cada aspecto da cidade a partir da abstração epistemológica do perder-se na cidade, destacando-se a autonomia das “vozes” que constroem seu caráter polifônico.

Assim, na primeira parte do livro, o autor apresenta os critérios epistemológicos para o desenvolvimento da pesquisa antropológica no âmbito da metrópole. Canevacci caracteriza a comunicação como eixo central para a discussão de tal pesquisa no seio da sociedade “pós-moderna”. Para tanto, o antropólogo desenvolve cinco capítulos.

No primeiro capítulo, são discutidas as particularidades da pesquisa urbana antropológica. O autor enfatiza a comunicação que ocorre no interior da “zona cinzenta”, formada pela interação entre as diferentes construções da cidade e os videopanoramas reprodutíveis.

O segundo capítulo evoca o tema do abandono sedutor à metrópole. Segundo o autor, tal discussão fora fomentada pelo futurismo a partir da oposição a uma espécie de “passadismo”, característico da tradição artística.

O terceiro capítulo aponta o nexo entre pensamento abstrato e forma-cidade. Com base na idéia de “pensamentos selvagens”, o autor evoca Claude Levi-Strauss, Canevacci para introduzir o estruturalismo como eixo de análise do contexto urbano.

O quarto capítulo apresenta uma tentativa de compreender a metrópole atual a partir das polifonias comunicativas. Desse modo, o autor recorda o olhar de Walter Benjamin sobre Paris como modelo de procedimento para compreensão do caráter polifônico em qualquer metrópole da contemporaneidade.

O último capítulo da primeira parte evoca a perspectiva literária para interpretação da condição urbana atual. Nesse capítulo, o autor elege o realismo fantástico de Italo Calvino como exemplo de estilo narrativo que evoca o sentido expresso pela polifonia urbana.

Na segunda parte do livro, Canevacci apresenta uma seleção de imagens que retratam os modos de comunicação urbana na grande metrópole paulista. A partir da interpretação de vinte e um sítios urbanos significativos para a cidade de São Paulo, o autor tenta “mapear” visualmente a cidade, desvendando as redes de significados que se formam através da comunicação polifônica.

O caráter empírico-aplicado da análise associa-se a uma escrita cujo estilo literário seduz o leitor e o estimula a conhecer as “vozes” que compõem o ethos da cidade. O complexo de tráfegos-miasmas-engarrafamentos é o caminho a ser percorrido pelo flâneur para compreender o estilo particular da cidade, a multiplicidade dos circuitos metropolitanos e os movimentos que definem sua urbanidade.

Em A cidade polifônica, Massimo Canevacci rompe com os meios tradicionais do métier antropológico. Através de uma instigante análise da metrópole comunicacional, o autor busca compreender seus sujeitos múltiplos, atores no processo interativo que formata o caráter sócio-espacial da cidade.

A cidade é compreendida como um organismo subjetivo que inventa valores e modelos de comportamentos estruturados por uma linguagem própria, baseada em intervalos delimitados pela ação dos indivíduos que habitam o espaço urbano. A leitura é indicada para todos aqueles que buscam compreender os sentidos de mobilidade, hibridismos e sincretismos culturais, substância da polifonia urbana na metrópole contemporânea.

Diêgo Marinho Martins – Mestrando PPGCULT-UFMA. São Luís, MA- Brasil. E-mail: [email protected].


CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. 2. ed. São Paulo: Studio Nobel, 2004 (reimpresso em 2011). Resenha de: MARTINS, Diêgo Marinho. Outros Tempos, São Luís, v.9, n.13, p.252-254.jul. 2012. Acessar publicação original. [IF].

 

Capítulos de História: o trabalho com fontes / Marcela L. Guimarães

Verificamos, nos últimos anos, um notável crescimento da produção acadêmica brasileira que se dedica ao estudo da teoria da história, a saber, como devemos pensar e escrever sobre os acontecimentos do passado. De fato, nossa disciplina possui a qualidade da renovação: teorias, metodologias e técnicas diferentes estão sempre surgindo, tendo em vista que cada novo momento histórico ocasiona uma nova dinâmica no campo intelectual. No entanto, notamos que grande parte desses trabalhos apresentam uma narrativa densa e uma linguagem excessivamente técnica, o que acaba restringindo o público leitor de tais obras. Dessa forma, muitos estudantes e professores, que não sejam propriamente dito “especialistas” na área, veem-se privados de grande parte desse importante conhecimento à disciplina histórica. Porém, interessantes inovações no campo da escrita estão surgindo e alterando gradualmente esse panorama. Uma obra que, nesse sentido, contribui para alargar o campo de recepção da teoria da historiografia, mantendo o nível de excelência da escrita e pensamento acadêmicos, é Capítulos de História: o trabalho com fontes (2012), de Marcella Lopes Guimarães. Graduada e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná, a autora apresenta, ao longo dos cinco capítulos de sua obra, uma série de orientações, do ponto de vista teórico e metodológico, para aqueles que desejam analisar fontes e iniciar uma pesquisa histórica.

O capítulo inicial da obra intitula-se Do Livro de cozinha da infanta D. Maria de Portugal às receitas eletrônicas: o sabor e saber no tempo, momento em que a autora ressalta o fato da cultura alimentar de uma época ser um importante objeto de investigação para os historiadores, pois é um indicio revelador dos costumes, práticas e preferências dos homens e mulheres do passado. No sentido de exemplificar tal questão, Guimarães recorre a uma documentação do século XVI, o Livro de cozinha da infanta D. Maria de Portugal, apontando que os ingredientes e temperos de tais receitas podem ser considerados indicativos dos sabores buscados pela sociedade daquela época. Como um dos seus exemplos, a autora aponta que, na receita da “Galinha Mourisca”, presente no livro da referida infanta “(…) sobressaem os temperos, em especial a hortelã, bastante apreciada entre os muçulmanos” (GUIMARÃES, 2012, p.28). Paralelamente à sua observação do passado, a autora provoca o leitor a avaliar os gostos e as sensações do seu próprio presente, o qual se faz marcar de modo intenso pela cultura alimentar do fast /slow food.

O capítulo seguinte, O que revelam nossos álbuns de família?, instiga o leitor a observar atentamente as fotografias que possui em casa, as quais devem ser consideradas também reveladoras fontes históricas. Para Guimarães, os registros fotográficos (e as artes visuais) imprimem a passagem do tempo e podem assinalar o fluxo de mudanças nos comportamentos e ações das pessoas; pois, para a autora, “Os primeiros fotógrafos tiveram de confrontar desafios científicos dos quais hoje estamos libertos” (GUIMARÃES, 2012, p.49). Como exemplo, a autora apresenta uma série de fotos, dentre as quais está o registro da neve em Curitiba, em 1975 – um acontecimento singular.

No terceiro capítulo da obra, Crônicas de jornal e crônicas régias: a transformação de um gênero histórico, Guimarães coloca em seu foco de análise o modelo narrativo cronístico. Em sua reflexão, a autora volta-se para a Idade Média com o intuito de apontar a transformação que as crônicas literárias atuais demonstram em relação às crônicas históricas medievais. Como exemplo do passado, Guimarães apresenta uma crônica composta no século XIV intitulada Crónica del rey D. Pedro y del rey D. Henrique su hermano hijos del rey D. Alfonso onceno, escrita por Pero Lopez de Ayala (1332-1407). Uma obra como essa, cuja característica principal era a narrativa organizada por datas, deve ser vista, segundo a autora, como um importante resquício para se analisar as atitudes mentais do passado. Ora, para Guimarães, o homem é o espectador das transformações históricas: “É irresistível muitas vezes apontar para o que nos aproxima, para as continuidades e para as analogias que provariam que o homem é o mesmo, no caso da crônica, o narrador como espectador do mundo” (GUIMARÃES, 2012, p.85).

O caráter interdisciplinar atribuído pela autora a sua obra está claramente presente no quarto capítulo, História e Literatura: um debate desde Aristóteles, no qual se faz indicar como a História e a Literatura travam um embate entre o verdadeiro e o verossímil (possível). Para essa discussão, Guimarães tem por apoio a obra Arte Poética, de Aristóteles, autor que atribui uma perspectiva universal para a Literatura e particular à História. Guimarães demonstra que a escrita historiográfica modificou-se sensivelmente ao longo do tempo – de Heródoto até os dias de hoje -, e que nela podemos perceber uma vinculação direta para com a Literatura. Conforme suas próprias palavras, “A Literatura exercita possibilidades, como previra o estagirita” (GUIMARÃES, 2012, p.119). Como exemplo para a discussão dessa questão, a autora apresenta uma reflexão tendo por base o livro do escritor português José Saramago, História do cerco de Lisboa, de 1989, o qual possui duas partes definidas: a histórica e a fictícia. Com relação a essa obra de Saramago, Guimarães ressalta justamente a contribuição da ação literária no sentido de estimular a problematização da História.

No quinto e último capítulo da obra, Notas sobre possibilidades de trabalho com fontes não escritas, Guimarães ressalta que a investigação histórica, em sua escolha documental, deve continuar cada vez mais se utilizando da cultura material na busca de informações sobre o passado. De fato, Guimarães chama a nossa atenção para a grande quantidade de fontes materiais que temos à nossa volta, espalhadas por nossos centros urbanos. Museus, praças, monumentos, prédios históricos são locais que, por sua historicidade, devem ser frequentados e analisados pelo historiador. Como exemplos nesse sentido, Guimarães traz imagens do Alcácer de Sevilha e da Mesquita Catedral de Córdoba (arquiteturas situadas na atual Espanha), monumentos que, por sua beleza, suscitam nosso interesse e estimulam nosso desejo pelo conhecimento do passado. Portanto, para a autora, “Inúmeras são hoje as possibilidades de trabalho histórico quando convocamos a cultura material, ou seja, quando convocamos os vestígios materiais, concretos, com os quais os grupos humanos fizeram sua vida” (GUIMARÃES, 2012, p.143).

A leitura de Capítulos de História: o trabalho com fontes, competente trabalho da historiadora Marcella Lopes Guimarães, é uma experiência que instiga o público leitor a querer investigar sobre o passado, uma tarefa que se torna possível graças ao recurso às diversas categorias de fontes históricas que dispomos perto de nós: seja dentro de casa (utensílios/livros antigos e álbuns de fotografia da família) ou no espaço público de nossa cidade (museus e monumentos). Guimarães realiza o paralelo passado/presente ao longo de toda sua obra, demonstrando que a fonte motivadora para o estudo do historiador são as questões de seu próprio tempo, seguindo, dessa forma, a importante perspectiva de Marc Bloch. Todas as ideias da autora são apresentadas em uma narrativa muito agradável; ademais, no canto lateral das páginas, foram colocados pequenos textos explanativos sobre determinados termos ou acontecimentos/pessoas que foram mencionados. Nesse sentido, a obra ganha em valor didático. E é provavelmente pensando nisso que a autora apresenta, ao final de cada capítulo, sugestões de atividades a serem desenvolvidas pelos professores de História junto aos seus alunos. Portanto, para todos aqueles que demonstram interesse pela investigação e conhecimento do presente e do passado, acadêmicos ou não, a obra de Marcella Lopes Guimarães é uma considerável recomendação, pois ela cumpre muito bem com seu papel de estimular a crítica e a reflexão no público leitor da atualidade.

Elaine Cristina Senko – Doutoranda PPGH-PR. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected].


GUIMARÃES, Marcella Lopes. Capítulos de História: o trabalho com fontes. Curitiba: Aymará Educação, 2012. p.175. Resenha de: SENKO, Elaine Cristina. Reflexões sobre a Escrita, Metodologia e Teoria da História. Outros Tempos, São Luís, v.9, n.14, p.240-243, 2012. Acessar publicação original. [IF].

Escravidão, mestiçagens, populações e identidades culturais / Eduardo F. Paiva, Isnara P. Ivo e Ilton C. Martins

O livro Escravidão, mestiçagens, populações e identidades culturais, organizado pelos historiadores Eduardo França Paiva, Isnara Pereira Ivo e Ilton Cesar Martins contem textos apresentados em mesas redondas e conferências na FAFIUV do Paraná em 2008. A coletânea de artigos é o desdobramento de comunicações e trocas de experiências em pesquisas que tiveram início em 2005, no XXIII Encontro Nacional da ANPUH, em que foi criado o Simpósio “Escravidão: sociedade, cultura, escravidão e trabalho”. Desde então, esses pesquisadores, que ficaram conhecidos como Grupo Escravidão e Mestiçagens, promoveram diversos eventos, nos quais socializam o resultado de suas pesquisas. O primeiro livro publicado pelo grupo foi Escravidão, mestiçagem e história comparadas, em 2008, e foi organizado pelos mesmos historiadores do livro aqui resenhado.

O líder do grupo, Eduardo França Paiva, tem se dedicado ao estudo das mestiçagens e do trânsito de cultura entre os continentes africano, europeu e americano. Ele tem mostrado que o intenso trânsito entre esses continentes resultou em uma realidade nova, multifacetada, cujas configurações sócio-culturais são mais bem compreendidas com o conceito de mestiçagem. É notória a referência ao historiador francês Serge Gruzinski. Apesar dos diversos aportes teórico-metodológicos dos artigos presentes no livro, o fio que os liga é exatamente as ideias de deslocamento e mestiçagem, como é bem ilustrado por Isnara Pereira Ivo. Esses dois fenômenos, que cresceram vertiginosamente na modernidade devido à era das navegações, foram abordados à luz da História Cultural Francesa, da História Social e da Micro-História.

Ancoradas na História Cultural são as análises que se valem das categorias de representação social e apropriação. Os artigos de Eduardo Paiva, Carlos Alberto Medeiros, Maciel Henrique Silva e Caio Ricardo B. Moreira, cujas fontes são mais características da História Cultural, como é o caso da iconografia, dos relatos de viagem e da literatura, enfatizam a forma como a realidade é simbolizada por vários sujeitos históricos; e como tais leituras são essenciais na classificação e hierarquização do mundo social, definindo como os homens vêem a si e aos outros, criando sentidos de identidade.

Já os artigos de Douglas Coli Libby, Ilton Cesar Martins, Márcia Amantino e José Newton Coelho de Menezes tangenciam mais as questões colocadas pela História Social. Têm destaque os “sujeitos anônimos”, as suas experiências e relações com os poderes hegemônicos. Daí a relevância dos estudos dos aparatos jurídicos e da lei e a forma como os agentes históricos se colocam frente a eles, estabelecendo formas de resistência e acomodação. Na mesma senda, cabem os estudos das mobilidades sociais e as estratégias cotidianas, dentro de um panorama em que são importantes a classe, o gênero e a etnia.

Por fim, são evidentes as inspirações da Micro-História nos artigos de Paulo Roberto Staudt Moreira, Rafael Cunha Scheffer e Vinícius Maia Cardoso. Transitando entre a macro e a micro escala, as análises das trajetórias pessoais de personagens anônimos e das histórias locais, dadas por olhar detetivesco, permitem uma compreensão mais pontual e complexa de como os agentes históricos transitam nos vários níveis socioculturais, cuja experiência é a dialética entre a norma e o vivido.

Contudo, não faz sentido estabelecer rígidas compartimentações entre os aportes teórico-metodológicos dessas abordagens. As divisões acadêmicas disciplinares não são critérios aceitáveis quando se analisa estudos que em sua maioria transitam entre essas várias abordagens. Indivíduo, cultura e sociedade, são dimensões intercambiáveis e assim foram tratadas nas várias análises presentes nesse livro.

A presença de profissionais das várias regiões do país oferece um amplo quadro dos atuais problemas, enfoques e abordagens colocados pela historiografia contemporânea sobre escravidão no Brasil. O uso de documentos, até pouco tempo inexplorados pelos historiadores, como é o caso da iconografia, dos testamentos, dos processos crimes, do rol de confessados, dos inventários post-mortem, dos registros de batismos e da literatura, é um destaque do livro. Analisados com sensibilidade e argúcia pelos articulistas, coloca-nos em contato com um passado que parecia distante e estranho. A presença, por exemplo, de práticas religiosas islamizadas dos negros no período colonial é de difícil identificação, devido à intolerância religiosa e à falta de “registros explícitos” que as revelem. A partir do uso de novas fontes, aliadas a novos enfoques, Eduardo Paiva analisa esse aspecto da realidade múltipla da América Portuguesa.

A colonização da África e do Novo Mundo favoreceram as trocas materiais e simbólicas dos três continentes e resultaram em uma realidade americana maleável, dinâmica e diversa de suas matrizes europeias, africanas e nativas. Segundo Isnara Pereira Ivo, os portugueses não arranhavam a costa como caranguejos, como havia afirmado Frei Vicente Salvador. Comerciantes, comboieiros, boiadeiros são tidos pela autora como “agentes integralizadores”, responsáveis pelo trânsito de culturas, produtos e gentes trafegados por caminhos, rotas e picadas, muitas vezes à revelia dos projetos metropolitanos. Daí, o motivo de os conceitos de Antigo Sistema Colonial e de Antigo Regime não comportarem as realidades dinâmicas e móveis plasmadas no Império Português Ultramarino. Tais conceitos pressupõem relações verticalizadas de poder incapazes de dar conta das peculiaridades culturais, hierarquias e relações sociais estabelecidas na colônia. A descoberta do Novo Mundo impactou também significativamente as culturas europeias, sendo mais apropriado falar em circulação, trocas, mediações, negociações, do que apenas dominação cultural. Ao estudar o discurso de intelectuais religiosos e leigos, Carlos Alberto Medeiros de Lima aponta que a descoberta de povos portadores de culturas diferentes levou os europeus a pensarem a si próprios não como superiores moralmente, mas tão degradados quanto os americanos.

Nesta esteira, a mestiçagem, como afirma Eduardo França, assume um lugar central na compreensão do crisol que representou as intensas mesclas culturais e biológicas, favorecidas pelo deslocamento de gentes e produtos que integraram, num mesmo universo, culturas distintas. A diversidade étnica nas Américas é demonstrada pelas classificações dadas aos sujeitos: brancos, pretos, cafuzos, mulatos, cabras, mamelucos e pardos indicam não só qualificação de cor, mas também as diversas posições sociais ocupadas por esses sujeitos que se modificam tanto no tempo como no espaço. O termo pardo, como mostra Douglas Cole Libby, é uma das mais controversas formas de qualificações das populações nas Minas Gerais na segunda metade do século XVIII e ao longo do século XIX. Nos Setecentos, ser qualificado como pardo representava uma associação direta com o passado escravista mais recente. Na passagem para o Oitocentos, devido ao intenso processo de mestiçagem, o termo pardo vai indicando mais a marca da mestiçagem com brancos do que a proximidade da condição de escravo. Em alguns casos estudados pelo autor, aparecem pessoas definidas como “sem cor”. Esse “silenciamento das cores” acontece quando há algum tipo de ascensão social, como bem colocara Hebe Maria Mattos, em seu livro Das cores do silêncio. A cor, portanto, no caso dos pardos, é indício não apenas da tez da pele, mas também de posição social. De qualquer forma, segundo Libby, a ascendência branca possibilitava o afastamento do estigma do cativeiro. A definição mineira de crioulo, por sua vez, referia-se aos negros nascidos no Brasil, independentemente de sua condição legal. Esta identificação era herdada pelos descendentes como forma de ligá-los a uma origem africana e não para ligá-los ao cativeiro. Portanto, se uma pessoa era negra ou crioula não significava que fosse necessariamente escrava. Outro termo controverso é cabra. Se por um lado liga o sujeito a um passado escravista, pois pressupunha a mestiçagem com negros, por outro, esconde a ascendência indígena. Talvez porque a política metropolitana proibia a escravização dos índios, o que poderia representar certamente um constrangimento para os donos de escravos.

Com respeito à escravização de índios, Márcia Amantino destaca um importante aspecto de sua relação com a mestiçagem. Durante muito tempo, pensou-se que o intercurso de índios e negros se deu de forma livre e espontânea. Contudo, a autora aponta que o casamento de índios com negras escravas era também uma forma astuciosa usada pelos fazendeiros para aumentar o seu contingente de trabalhadores. De um lado, porque os índios se mantinham presos à fazenda por laços familiares e afetivos, sendo tratados muitas vezes como escravos; por outro, os ventres escravos geravam filhos escravos, tornando essa uma forma de reprodução da mão-de-obra escravizada. Daí, podemos perceber a complexidade das condições étnicas, sociais, culturais e jurídicas que, segundo Rangel Cerceau Neto, possibilitou o aparecimento de “realidades familiares poliformes, composta de identidades múltiplas e de constantes metamorfoses”. Relações que eram ora toleradas, ora clandestinas, que se estabeleceram, muitas vezes, à revelia das normas rígidas demandadas pela Igreja e pelo Estado.

A complexidade jurídica da América Portuguesa é argutamente analisada por José Newton Coelho de Menezes. Ao estudar o caso de escravos que dominavam algum ofício, Menezes percebe uma contradição em suas condições jurídicas. Os ofícios eram regulamentados pelas câmaras municipais, sendo exigida uma certidão de exame para exercê-los. O profissional, mesmo sendo escravo, deveria submeter-se a todo o longo processo burocrático que o habilitava ao exercício de seu ofício, incluindo o cerimonial de juramento público do compromisso com o bem-comum. Este profissional, portanto, parece ter uma dupla condição jurídica. Se por um lado é considerado como um bem semovente, por outro, era obrigado a cumprir todos os deveres próprios da condição de um civil, “como se livre fosse”.

O aparelho jurídico, a lei e sua aplicabilidade devem ser, portanto, compreendidos levando em conta a tessitura social e o contexto que os engloba, como afirma Ilton Cesar Martins. Seu estudo a respeito da lei, crime e punição em Castro, município do Paraná, discute a legislação escravista no século XIX, dado que nesse período a interferência do Estado Imperial nas relações entre senhores e escravos foi mais marcante do que no período colonial. Esse aparato judicial serviu em alguns casos, segundo o autor, para legitimar a legalidade da violência dos senhores sobre os escravos. As leis, sendo escritas pelos proprietários, favoreciam-nos, além de representar um poder simbólico justificador de sua violência. As penas, aplicadas em caso de homicídio, eram letra morta ou abrandadas quando se tratavam dos senhores. No caso de réus escravos, a morte era a punição mais comum.

Os estudos de trajetórias pessoais e de Micro-História possibilitam dimensionar as complexidades que envolviam as relações entre identidades culturais e hierarquias sociais em contextos e espaços diversos, como bem indicam os artigos de Paulo Roberto Staudt Moreira, Rafael Cunha Scheffer e Vinícius Maia Cardoso. Staudt traça os primeiros anos de Aurélio Veríssimo de Bittencourt, um pardo que se tornou tipógrafo, burocrata e abolicionista. Acompanhamos com o autor as reviravoltas e sobressaltos de um sujeito não-branco que ascendeu socialmente, compreendendo melhor as mediações entre cor da pele e posição social no século XIX. Já Sheffer, leva-nos com João Mourthé, comerciante de escravos de Rio Claro, pelas intricadas teias que davam significado à comercialização de escravos no século XIX. Sua análise é elaborada a partir do desenrolar do processo jurídico que visava à devolução do escravo, sob a alegação de que o mesmo se encontrava doente no momento de sua compra. A análise da escravidão no Vale do Macacu, no Rio de Janeiro, desenvolvida por Vinícius Cardoso, é também instigante quanto à dinâmica, diversidade e maleabilidade da condição social dos mestiços nas Américas. Os estudos do micro, apoiados em vasta e variada quantidade de fonte – sem esquecer, é claro, o cabedal intelectual e a astúcia interpretativa do historiador –, faz-nos ver uma realidade mais verossímil e palpável do que apontariam estudos macro e generalizantes.

A literatura também tem destaque no livro por meio dos artigos de Maciel Henrique Silva e Caio Ricardo B. Moreira. Henrique Silva analisa a obra ficcional dos escritores pernambucanos Mário Sette, Carneiro Vilela e Theotônio Freire, e dos baianos Xavier Marques e Ana Bittencourt, todos eles filhos de senhores de escravos, e suas representações sociais sobre trabalho e escravidão no século XIX. O autor aponta a saudade das relações afetivas e amenas entre senhores e escravos como um traço comum às obras desses escritores. O estilo memorialístico remonta a uma infância idílica: um tempo austero, simples, pródigo, marcado por trocas mais afetuosas e sinceras entre senhores e escravos. Tais sentimentos e representações nos fazem entrever, segundo o autor, a ideologia de uma classe em decadência que encontra refúgio e consolo em lembranças de um passado melhor, fazendo dessas memórias um aparato discursivo de crítica ao seu tempo. Moreira, por sua vez, estuda a obra utópica e mística do escritor curitibano Dário Vellozo, que no fim do século XIX já se referia ao mestiço como personagem ideal de país futuro idealizado em seu livro.

O livro resenhado, como vemos, é uma leitura obrigatória para quem se interessa em compreender o desenvolvimento atual das pesquisas sobre a escravidão no Brasil. Oferece-nos, além do mais, narrativas prazerosas e instigantes, demonstrando que os historiadores estão atentos não apenas em divulgar os resultados de suas pesquisas, como também em apresentá-los sem descurar das formas e estilos de narrar uma história.

Manoel Carlos Fonseca de Alencar – Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE. Doutorando PPGH-UFMG. E-mail: [email protected].


PAIVA, Eduardo França, Org.; IVO, Isnara Pereira, Org.; MARTINS Ilton Cesar, Org. Escravidão, mestiçagens, populações e identidades culturais. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: PPGH-UFMG, Vitória da Conquista: Edições UESB, 2010. 310 p. Resenha de: ALENCAR, Manoel Carlos Fonseca. Outros Tempos, São Luís, v.9, n.14, p.244-249, 2012. Acessar publicação original. [IF].

Giorgio Agamben: Poetry, philosophy, criticism / Alberto Pucheu

Ao se debruçar sobre o conjunto da obra de um dos maiores críticos literários da atualidade, o italiano Giorgio Agamben, Alberto Pucheu Neto, nessa monumental obra, esclarece e perscruta as sendas do processo de criação artística entre a relação que envolve a poética e sua imbricada conjunção com a filosofia, sem olvidar de como a crítica no mundo ocidental construiu seu arcabouço a partir da linguagem, do texto como elemento semântico e sintagmático de explicação do mundo, à medida que a razão instrumental ora recorria à poesia, ora se distanciava dela, enquanto mecanismo compungido de expiação do sentimento de descoberta do cosmos.

Essa é uma das razões pelas quais o pensamento filosófico e teórico do século XIX caracterizou-se pela invenção de uma escrita poético-teórica, ou seja, o processo de designação de uma linguagem responsável até pela própria criação dos sentidos, dando conta de uma explicação causal das coisas. Giorgio Agamben denuncia a separação ocidental entre filosofia e poesia. O que no princípio nasceu imbricado com os gregos, aos poucos se deslindava para uma ruptura da qual a poesia cada vez mais ficava resguardada não como mecanismo de elucidação do não revelado, mas como manifestação isolada de seus criadores, os poetas, como se suas conjunções expostas sob forma poética não contivessem em si um processo de exposição, até mesmo da linguagem. Para tanto, a crítica pode ser poesia e a poesia, crítica, segundo Pucheu, porque a suposta dicotomização entre ambas dificulta a compreensão de como a crítica, nasce a partir da poesia, instrumentalizando sua interpretação, assim como a crítica ao desvendar as filigranas da poesia, é, em sua essência, também poesia, estabelecendo intermediação, paralelismo, imbricação.

Para Alberto Pucheu, Giorgio Agamben aposta numa reconciliação de uma “teoria nela mesma literária”, a fim de encontrar a unidade da palavra despedaçada. A aposta reside em (PUCHEU, 2010, p. 20).

Lidar com a filosofia, a literatura e seus entornos interventivos a partir da busca incansável por uma nova modalidade de escrita, que reconcilie o cindido ocidental em um novo destino, é o projeto perseguido por Giorgio Agamben desde a primeira página de abertura de seu primeiro livro, quando assume a herança nietzschiniana de uma anunciada reversão de Kant.

A estética tornou-se um elemento da própria configuração instrumental da reflexão desgastada da própria arte. Propôs-se a ser maior que o ato da criação, de desapego às forças internas da criação para medir a transmissão e valor da obra. Ora, a obra não se resume ao seu resultado impresso, aquilo de que a crítica e a estética tentam dar conta, já que cada vez que se “retira um livro da estante para ler, outro livro, desse mesmo livro, permanece lá, para sempre invisível, para sempre ilegível”, na asserção do escritor egípcio Edmond Jabés, segundo Pucheu (2010, p. 56); afinal, toda obra escrita é apenas um prelúdio de uma obra ausente.

Outro problema colocado pela teoria literária do século XIX é a difícil desvinculação entre poesia e prosa — uma análise acurada da obra de Euclides da Cunha dá conta disso, afinal, as estruturas poéticas comportam diferenças de uma prosa que se proveu de elementos poéticos ao longo da história como estância criadora de sua narração, posto que a prosa contém em si elementos de sonoridade.

A sonoridade existente no processo de hibridização da prosa está contida em estâncias como a Versura do enjambement, ou como diria o próprio autor (PUCHEU, 2010, p. 76): A versura é o momento exato em que ela própria, enquanto disjunção, dá passagem e nascimento à articulação necessária dos versos. Assim, a versura do enjambement, fazendo a palavra retornar à sua origem criadora, manifesta a ideia do verso e, não menos, a ideia de linguagem: confundindo-se com ela, o poema, como um de seus lugares privilegiados, se fende em duas movimentações vazadas, a mostrar as duas forças intrínsecas a ele e a ela.

Ao evidenciar as diferenças entre poesia e história e poesia e cinema, o autor não se propõe a destacar a importância desta primeira em detrimento de qualquer outra forma de linguagem, expressão ou explicação do mundo; ao contrário, os mecanismos de legibilidade de linguagens como a histórica e a cinemática, ao se colocarem por vezes como não poesia, é que perdem sua força inextrincável não de explicação, mas de expiação dos sentidos, ou seja, aquilo que não pode ser explicado nem tudo pode ser explicado – deve ser intuído pelos sentidos, sorvido, consumido, compungido. Desta feita, Pucheu recorre à alusão feita pelo cineasta Abbas Kiarostami, que, afastando cinema de literatura e aproximando-a da poesia, se nega a aceitar um cinema que conte tudo, que explique didaticamente o sentido das coisas, que conte histórias. Para Abbas, a incompreensão faz parte da essência da poesia. O cinema deveria fazer a mesma coisa.

E quanto à história? Essa, por seu turno, no afã e desiderato de “explicar” tudo, ao ter se abastado da poesia e da literatura no século XIX, perdeu a sua força criadora, sua capacidade de imbricar-se nos mecanismos da existência humana pela dinamicidade da vida, por aquilo que, ainda que não realizado no plano do real vivido, nem por isso deixou de existir, tal como o livro que, tirado da prateleira, continuou a existir como preâmbulo de outro livro ainda não escrito. A história também se faz daquilo que se sentiu, daquele que se desejou, mesmo não efetivado no plano das relações objetivas.

Por essa razão é que Pucheu, no seu último e quarto ensaio, mostra as intrínsecas relações entre poesia e filosofia, mostrando como poetar e filosofar está carregado de sentidos e de uma captura da ou das existências. Para o autor, segundo o italiano Giorgio Agamben, “na busca de acesso a uma autêntica compreensão do problema da significação, o que está em jogo é a reflexão ocidental sobre o significar ou a linguagem. Entender esta questão é entender a necessidade de filosofar” (PUCHEU, 2010, p. 119).

Não à toa o autor culmina sua obra citando Hegel na sua explanação sobre o enigma na arte egípcia os diferentes níveis do simbolismo na arte, a superação das artes por outras artes, e o esforço de Édipo em decifrar o enigma da esfinge, ou seja, libertar a Grécia do que “ainda possuía de egípcio”, ou, “a vitória do humano sobre a naturalidade da animalidade presente na figura da Esfinge”, pletora vontade potente do herói civilizador moderno.

Giorgio Agamben e Alberto Pucheu Neto são interseccionais. O pensamento dos dois se funde nessa obra reveladora de como a trajetória de um pensamento instrumental ocidental pode levar a existência humana a um aprisionamento de um tipo de linguagem. Ser interseccional é romper com a atomização dos sentidos, com o encaixotar das formas de expressão, é perceber o mundo através das suas múltiplas formas sem encerrá-las em seus sentidos estanques, é enxergar o que de filosofia existe na poesia e o que de poesia contém a substância filosófica, é retornar para casa, para quando homens e mulheres se preocupavam em existir desvelando os mistérios, e não meramente afirmar que até os mistérios são criações da linguagem, como se antes da linguagem existisse o nada.

A poesia e a filosofia não são turistas, são viajantes. O turista quer chegar ao seu destino de qualquer forma, ele quer chegar. O viajante está preocupado com o caminhar, com o processo. Ele se descobre no percurso.

José Henrique de Paula Borralho – Universidade Estadual do Maranhão – EMA São Luís, Maranhão – Brasil. E-mail: [email protected].


PUCHEU, Alberto. Giorgio Agamben: Poetry, philosophy, criticism. Rio de Najeiro: Beco do Azougue, 2010. 168, p. Resenha de: BORRALHO, José Henrique de Paula. Outros Tempos, São Luís, v.8, n.11, p.341-344, 2011. Acessar publicação original. [IF].

 

A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-1825) / André R. A. Machado

A obra ora resenhada faz parte da renovação historiográfica nos estudos sobre as mudanças políticas vividas no mundo lusobrasileiro no primeiro quartel dos oitocentos. Durante décadas, debruçados sobre a “questão da Independência” – tema de forte apelo nacional –, historiadores de diferentes matizes obscureceram as alternativas políticas que se apresentavam para o momento. A mesma perspectiva transformou a Revolução do Porto – vitoriosa em agosto de 1820 – numa espécie de “antecedente” da Independência, reação última ao “projeto recolonizador” levado a cabo pelas Cortes portuguesas.

Desde a década de 1990, autores como István Jancsó – mestre de todos nós e orientador da tese que dá origem a este livro – destacavam os pressupostos a serem refutados e sugeriam os caminhos a serem trilhados por um renovado conjunto de historiadores. Em síntese: 1) recusava-se a pré-existência do Estado e da Nação, com a abolição de expressões como “manutenção da unidade”, “restauração das províncias rebeldes”, “separatismo do Norte”; 2) propunha-se a recuperação da dinâmica política a partir das variáveis que afligiam os cidadãos que se movimentavam na nova cena pública, sem o peso de explicações estruturais, como aquelas pautadas na “truculência das Cortes”, na “falência ibérica” e nas “novas necessidades do capital”; 3) recuperava-se a participação dos “homens do comum”, que ganharam vida: anseios, vinganças e frustrações motivaram sua efetiva participação política, perspectiva muito diversa das “massas de manobra”, por vezes denunciadas sob a falsa aparência de criticidade; 4) por fim, convidava-se a uma imersão no conjunto de documentos produzidos dentro e fora da esfera estatal: códices, caixas e latas conviveriam agora com jornais e folhetos, tomados como novos ingredientes de uma política cujo aprendizado se dava também em praça pública.

Pesquisador atento a tais ensinamentos, André Machado os tomou como balizas para a sua pesquisa, sem, contudo, ater-se a receitas prontas, já aplicadas ao estudo de outras províncias. De maneira autônoma, com sólida discussão bibliográfica e conjunto documental, propôs uma história das possibilidades políticas abertas desde a “adesão” do Grão-Pará à Revolução do Porto até o Reconhecimento da Independência.

Tal recorte poderia sugerir uma “História da Independência desde a Revolução do Porto”, perspectiva teleológica e tradicional que encadeou episodicamente esses dois momentos, dando-lhes inteligibilidade. Em direção diametralmente oposta, o autor reserva à Independência – palavra evitada ao longo do texto e substituída pela noção de “novo alinhamento” – um papel absolutamente secundário ante as disputas suscitadas pelas possibilidades advindas do constitucionalismo português. A seu modo, todos eram portugueses, pressuposto que inviabiliza a perspectiva de “projetos nacionais” emersos com o “7 de setembro”, ou, no caso do Grão-Pará, com o “15 de agosto de 1823”.

Essa é a tônica da primeira parte do livro, dividida em três capítulos. Desde as primeiras linhas, o autor compartilha a narrativa com seus personagens, perscrutando as incertezas e a provisoriedade das posições políticas assumidas ao sabor das circunstâncias. A “quebra da mola real das sociedades bem constituídas” – expressão de autoria do bispo do Pará, inspiração para o título do livro e norte para a noção de “instabilidade” construída pelo autor ao longo da narrativa – provocara um dissenso heterogêneo, múltiplo em suas razões e frágil em sua capacidade de construir acordos duradouros.

Tais questões são acompanhadas de uma análise que articula os estratos dominantes da província às relações de poder expressas nos “partidos” que então se organizavam. Sem recorrer a relações mecânicas de classe / partido, conclui que os proprietários de fortuna acumulada recentemente tendiam a ser “mais constitucionais”, forma de atingir postos até então ocupados por figuras ligadas ao ancien régime português. Para o autor, esses grupos “mais constitucionais” se demonstraram, gradativamente, propensos ao “alinhamento” com o Rio de Janeiro, na medida em que seus projetos políticos foram inviabilizados internamente.

Outras razões são apresentadas na explicação para o “alinhamento”, mas seguramente a mais original é a noção de “bloco regional”, rede composta por sólidos laços econômicos e políticos que aproximavam as províncias do Grão-Pará, Maranhão, Goiás e Mato Grosso.

Construída a partir de certa leitura de Benedict Anderson (Nação e consciência nacional) – autor comumente evocado pela historiografia brasileira nos debates sobre nações como “comunidades imaginadas” –, a noção serve ao autor como mais um importante contraponto ao clássico “Brasil versus Portugal”.

Sem transformar o “alinhamento” do Grão-Pará em mero reflexo dos interesses do “bloco regional”, estabelece conexões entre a inviabilidade de sua manutenção, por exemplo, a partir do “alinhamento” do Maranhão1, em 28 de julho de 1823, decisão seguida pelo Grão- Pará, poucos dias depois.

Destaque-se ainda a alternativa que o autor oferece às explicações pautadas na centralidade das pressões militares para o “alinhamento”, corporificadas na atuação de John Grenfell, inglês que chegou ao Pará em agosto de 1823 e assumiu a incumbência de comandar as forças navais a serviço de D. Pedro I. Trilhando outros caminhos, tangencia o debate sobre o papel das tropas externas: seu foco são as condições “internas” (dinâmica política provincial e interesses do “bloco regional”) que viabilizaram o “alinhamento” da penúltima província da América portuguesa ao Império nascente.

Na segunda parte do livro, composta por dois capítulos, o autor persegue os conflitos que tiveram continuidade com o “alinhamento”, forte indício de que a questão principal não estava aí, mas nas disputas abertas com a “quebra da mola real”. Se projetos políticos “préalinhamento” persistiam, novidades como a Confederação do Equador – também tomada como proposta de um “bloco regional” – traziam novos ingredientes para o campo da política.

Somem-se a esse quadro de instabilidade a crescente participação política de negros e tapuios, grupos que muitas vezes compartilhavam projetos de futuro distintos daqueles levados a cabo pelos “partidos” da província, e a partida de Grenfell, em março de 1824, uma das poucas autoridades minimamente reconhecidas entre os grupos em litígio.

Gradativamente, constrói a “solução brasileira”, tomando como referência a inviabilização de pelo menos dois importantes projetos: a alternativa republicano-regional, fracassada com a derrota da Confederação do Equador, e o realinhamento a Portugal, prejudicado pelo Tratado de Reconhecimento da Independência, assinado em meados de 1825. Paralelamente, apresenta-nos os sucessos obtidos pela junta de Santarém, representação composta majoritariamente por proprietários e comerciantes, que a partir dos primeiros meses de 1824 acumulou vitórias políticas e militares, recompondo os estratos dirigentes da província ante o “perigo maior” de uma nova São Domingos.

Por fim, vale-se de uma apropriada metáfora de Immanuel Wallerstein (Capitalismo histórico & civilização capitalista) para sintetizar as preocupações que o acompanharam por toda a pesquisa. Para o autor citado, crises sistêmicas se assemelham à experiência de passar por vários pontos de bifurcação, que obrigam a sucessivas escolhas e alimentam incertezas na busca pela estabilidade perdida. Os homens do Grão-Pará, em tempos de crise, não escaparam a essa máxima. Já nós, historiadores, talvez sejamos eternos “homens em tempos de crise”: para o nosso conforto, textos como esse demonstram que é possível, diante de cada bifurcação, aprimorar a caminhada.

Marcelo Cheche Galves – UEMA. E-mail: [email protected].


MACHADO, André Roberto de A. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-1825). São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2010. 321 p. Resenha de: MACHADO, André Roberto de A. Outros Tempos, São Luís, v.7, n.10, p.292-205, dez. 2010. Acessar publicação original. [IF].

Mulheres, Mães e Médicos: discurso maternalista no Brasil / Maria Martha L. Freire

Este livro Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil (2009) é resultado da tese de doutorado de Martha Freire e obteve uma premiação de publicação pela Associação Nacional dos Professores de História, edição Rio de Janeiro em 2008, com o objetivo de apresentar esta produção a um público mais amplo.

A autora possui uma escrita leve e inteligente conseguindo realizar abordagens que caracterizam a mulher sob seu aspecto social de esposa e mãe, mas com um diferencial que é a percepção de “melhorar” estes atributos naturais a partir de uma posição científica, é então que entra a figura dos médicos enquanto auxiliadores científicos das mães.

Mas, de que mães esta autora fala? Como seu foco de pesquisa foi convergido em revistas voltadas para um público feminino, ela basicamente se atém às mulheres de classe media e alta, pois eram as maiores consumidoras destes serviços e claramente alvo das propostas de médicos e higienistas nos artigos publicados.

O livro destaca o papel essencial das revistas no processo de divulgação do que era considerado uma maternidade saudável, científica e correta na década de 1920, e ao realizar esta análise sobre a mulher em uma maternidade. A autora também oferece uma análise acerca da situação social feminina na cidade do Rio de Janeiro, uma vez que as revistas também são um interessante suporte no sentido de compreender o papel desempenhado por mulheres-mães no ambiente social, perpassando também pela compreensão do “ser” mulher no mesmo contexto mais amplo da cidade e relações de convivência, trabalho, cidadania e mesmo feminismo.

As duas principais revistas que vão compor este estudo são: Vida Doméstica (1920-1963) cujo editor foi Jesus Gonçalves, ele tinha mais interesse no ramo empresarial que a revista proporcionaria, e Revista Feminina (1914 – 1936) fundada por Virgilina de Souza Salles, cujos objetivos eram claramente voltados para a valorização da mulher brasileira em seus atributos. Estas revistas foram escolhidas em razão da declarada intenção de ensinar a mulher a “ser mulher”.

A autora parte do ideal republicano de papel da mulher na figura de mãe para perceber como médicos e o discurso cientificista entraram nos lares de classe média e alta ampliando os saberes femininos sobre cuidado com as crianças, tendo em vista que estas representavam o futuro da nação e deveriam ser bem assistidas desde a tenra infância.

A autora atenta-se para a demarcação de exigência de uma educação para o exercício da maternidade, a necessidade da elite em oferecer um parto e infância higiênicos.

Na virada do século XIX para o XX, a maternidade ocupou papel central nas formulações teóricas e práticas reivindicatórias dos primeiros movimentos feministas ocidentais, dos mais aos menos radicais, que reclamavam o reconhecimento público da maternidade como função social. (FREIRE, 2009, p.23) Ela defende que a busca pela legitimidade da maternidade por alguns movimentos feministas estavam atreladas às tentativas de regaste da valorização feminina retirando apenas o caráter natural de ser mãe e buscando com isso destinar mais poder às mulheres – através da própria iniciativa e participação. Isso porque, ao promover o deslocamento dos “valores femininos” do espaço doméstico para a esfera pública, descortinou para as mulheres, tornando-as simultaneamente sujeitos e objetos de públicas de proteção.

Assim, a partir das revistas voltadas para um público feminino e a destinação de ser mãe, havia uma convergência de interesses em regenerar a família como uma estratégia para alcançar a ordem e o progresso na nação. Como ciência principal para o desenvolvimento dessa noção de maternidade, infância e família estava a “descoberta” e aplicação de conhecimentos médicos, higiênicos e eugênicos.

A organização do livro se dá através de quatro (4) capítulos, em que seguem a seguinte abordagem: O primeiro capítulo tem como título As múltiplas faces da mulher moderna: descrição do cenário geral da década de 1920, onde a autora realiza uma breve das duas maiores fontes de pesquisa para seu trabalho as revistas Vida Doméstica e Revista Feminina, neste capítulo a autora analisa as implicações de ser mulher moderna para estes veículos de comunicação e como uma constante temática está o feminismo e emancipação da mulher.

No segundo capítulo, intitulado Maternidade: a aliança entre mulheres e médicos, Martha Freire edita com clareza as principais concepções acerca de maternidade associando esta função feminina tanto ao instinto natural de todas as mulheres como também às técnicas implementadas por médicos e a higiene. Na intenção de normatizar mulheres, os novos padrões científicos das ciências aplicadas eram divulgados nas revistas como a fomentação para a mulher enquanto “cientista do lar”. É abordada ainda a saída feminina do lar a partir da profissionalização.

Já no terceiro capítulo, cujo título é Higienizando corpos, mentes e lares, a autora aborda em sua pesquisa como a atividade maternal se tornou um debate em favor do sanitário, onde os princípios científicos associados a práticas femininas se constituíram em uma aliança entre médicos e mães.

O pressuposto que fundamentava esse consenso era que as mulheres – tanto as das classes mais elevadas quanto as operárias – não estavam preparadas para o desempenho adequado de suas funções primordiais de esposa e mãe. As soluções propostas, entretanto, variavam conforme os distintos matizes políticos e ideológicos de cada revista ou de seus articulistas, embora, na defesa de suas idéias, seguissem a mesma polarização da imagem feminina. (p.108) Para alcance destes objetivos foram organizados também reformas educacionais que priorizavam a intelectualização da mulher para melhor desempenho de suas funções sociais.

Por fim, o quarto capítulo, Robustos e sadios: a alimentação dos filhos salienta todas as características de formação de uma maternidade científica e descreve diversas situações que médicos influenciaram diretamente posturas femininas de maternidade social.

Notas

1 Sobre a autora: Maria Martha de Luna Freire é médica e mestre em saúde da mulher e da criança e doutora em história da ciência e da saúde pelo Casa Oswaldo Cruz – Fiocruz. Atualmente é professora da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora no campo da história materno-infantil no Brasil.

Tatiane da Silva Sales – Mestranda em História pela UFBA


FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, Mães e Médicos: discurso maternalista no Brasil. Rio de Janeiro: editora FGV, 2009. Resenha de: SALES, Tatiane da Silva. Outros Tempos, São Luís, v.6, n.8, p.169-171, 2009. Acessar publicação original. [IF].

História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque / Fernando Báez

Quando criança, o escritor Fernando Báez, em virtude de seus pais trabalharem fora, passava grande parte de seu tempo enfurnado na biblioteca pública de São Félix, na região de Guayana, na Venezuela. Lá, em meio a imensas estantes, tinha nos livros seus únicos amigos. Até o dia em que a cheia de um rio inundou a pequena cidade onde morava, destruindo todo o acervo da biblioteca. De acordo com suas lembranças, aquela foi a primeira vez que vira um livro destruído: “Nunca me recuperei dessa terrível experiência (…) Consciente ou inconscientemente, o tema chegou a me obcecar”.

Creio ser, justamente, esta a expressão que melhor defina História universal da destruição dos livros, publicado no Brasil, em 2006. Isto porque Báez é um sujeito simplesmente obcecado por quaisquer fatos que envolvam o tema, atravessando de modo vertiginoso séculos de história, diferentes culturas e civilizações. Não é à toa o subtítulo de seu livro: “Das tábuas sumérias à guerra do Iraque”.

Sua viagem começa na Mesopotâmia, com os registros em argila, datados de aproximadamente 5.300 anos, quando os sumérios acreditavam na origem sobrenatural dos livros, atribuindo sua invenção à Nidaba, deusa dos cereais.

Ficamos sabendo que, na Grécia Antiga, o livro era chamado de biblos, em homenagem à cidade fenícia de mesmo nome – e que a venda de livros era conhecida como bibliothekai.

Báez mescla fatos popularmente sabidos, como o controle imposto pela Inquisição e o Bibliocausto Nazista, a exemplos pitorescos, como a mesquinharia de Isaac Newton ao plagiar e depois queimar trabalhos do astrônomo John Flamsteed, ou ainda a costumeira utilização de livros-bomba por grupos terroristas – que teriam como destinatário preferido a Casa Branca.

Entretanto, o que poderia ser o grande trunfo do venezuelano, produzindo uma obra de fôlego sobre o assunto, torna-se justamente seu ponto de maior fragilidade. Historia universal da destruição dos livros é, indiscutivelmente, resultado de uma pesquisa intensa e exaustiva, com uma impressionante riqueza de detalhes quanto a locais, nomes, descobertas, formas de escrita e técnicas de arquivamento.

O problema é que Báez faz com que o leitor saia igualmente exausto dessa experiência, imerso em uma avalanche de dados que muitas vezes denotam muito mais um preciosismo do autor do que a consistência de uma análise. Tome-se como exemplo um capítulo inteiro dedicado aos “Inimigos naturais dos livros”, em que nos deparamos com trechos como este: Em primeiro lugar, devemos mencionar os Thysanura (tisanuros), que incluem o Lepisma saccharina (traça cinza-prateada) que se distingue por sua cobertura de escamas. Tem um corpo fusiforme que culmina em três finos e compridos filamentos. De hábitos noturnos, come papel, cola, couro ou têxteis (BÁEZ, 2006, p.308).

Se por um lado há a comprovação do rigor do processo investigativo, por outro é patente o descuido em transformar o livro mais em um compêndio do que em trazer uma discussão realmente consistente. A impressão é que Báez acumulou uma tonelada de informações, sem contudo saber o que fazer com elas. O que falta em problematização sobra em enciclopedismo.

Um alento até parece surgir quando ele afirma que, na busca por uma teoria sobre a destruição de livros, descobrira como são fartos, em todas as culturas, os mitos que relatam cataclismos cósmicos para explicar a origem de tudo ou anunciar o fim do mundo, sendo recorrentes explicações permeadas pela idéia do eterno retorno.

O escritor venezuelano exemplifica isto citando várias divindades, afirmando, contudo, que, mesmo em épocas que se vangloriam pela sua racionalidade, há o emprego desse substrato para dar conta de algumas ações destrutivas, promovidas pelo homem: a exemplo da noção de instinto, que se inscreveria justamente num mito de libertação característico do homem – seu intento de se livrar da responsabilidade direta sobre sua atividade destrutiva.

Ao destruir, o homem reivindica o ritual de permanência, purificação e consagração; ao destruir, atualiza uma conduta movida a partir do mais profundo de sua personalidade, em busca de restituir um arquétipo de equilíbrio, poder ou transcendência (BÁEZ, 2006, p.23).

É aí que Báez revela, então, aquele que seria o alicerce teórico de seu trabalho: a intenção subjacente à destruição de um livro é aniquilar a memória que encerra, o seu patrimônio de idéias. O que há é a “destruição contra o que se considera ameaça direta ou indireta a um valor considerado superior” (p.24).

Considerações que não deixam de decepcionar, pelo que guardam de absoluto lugar comum. Afinal, o que há de surpreendente e inovador na idéia de que os livros não são destruídos meramente enquanto objetos físicos, e sim pelo que representam em termos de discordância e contestação aos ideais de seus detratores? A explicação de Báez é quase tão cheia de novidade quanto os papiros e tábuas de argila sobre os quais tão apaixonadamente se debruça.

Fabio Henrique Gonçalves Sousa – Graduado em História pela UEMA e em Comunicação Social (Habilitação Jornalismo) pela UFMA. e-mail: [email protected].


BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. Resenha de: SOUZA, Fabio Henrique Gonçalves. Outros Tempos, São Luís, v.5, n.5, p.191-193, jun./2008. Acessar publicação original. [IF].

Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX / João J. Reis

De africano escravizado a liberto na Bahia. Senhor de escravos e chefe de junta de alforria. Sacerdote de candomblé, sendo afamado babalaô, e homem católico, membro de irmandade negra. Essas são algumas facetas da vida de Domingos Sodré, narradas pelo historiador João José Reis, conhecido especialista da escravidão. Se a Bahia já possuía tradição em estudos sobre o candomblé, o livro de João Reis apresenta uma nova perspectiva.

Amparado em ampla pesquisa documental e utilizando a metodologia micro-histórica, o autor descortina a vida desse personagem, ao mesmo tempo em que analisa a formação do Candomblé na Bahia do século XIX.

No capítulo inicial, “A polícia e os candomblés no tempo de Domingos”, Reis apresenta ao leitor o aparato policial da Bahia oitocentista, responsável por reprimir as práticas culturais dos africanos, em especial os batuques e principalmente o candomblé, visto pelas elites como um obstáculo à civilização almejada na província. Mas o perigo representado pelo candomblé e sua supressão não era ponto pacífico entre as autoridades. As políticas de repressão e permissão em relação às praticas religiosas de matriz africana foram pontos delicados. Como mostra o autor, “as autoridades policiais com frequência se desentendiam” (p. 25), e subdelegados eram amiúde acusados de permissividade em relação aos candomblés que batiam alto sob seus olhos e ouvidos.

Entretanto, outras autoridades estavam especialmente decididas a extinguir tais práticas do seio da população, adotando uma linha dura contra os candomblés. Temos como exemplos o chefe de polícia Antônio de Freitas Henriques e o subdelegado da freguesia de São Pedro, Pompílio Manoel de Castro, responsáveis pela prisão de Domingos Sodré em 25 de junho de 1862. Mas a despeito da repressão mais ferrenha de alguns personagens em particular, o candomblé conseguiu sobreviver na Bahia oitocentista. Como explica João Reis, “a tolerância constituía um movimento discreto entre os envolvidos com o candomblé e as autoridades diretamente responsáveis pelo policiamento nos diversos distritos da cidade, fossem subdelegados ou inspetores de quarteirão” (p. 52), isto é, gente que lidava mais diretamente com os “sacerdotes, devotos e clientes”.

No capítulo seguinte, “De africano em Onim a escravo na Bahia”, João Reis narra as aventuras e desventuras de Domingos entre as duas margens do Atlântico, desde seu nascimento no final do século XVIII na cidade de Onim (atual Lagos, Nigéria), passando pelo conflito que envolveu os meio-irmãos Osinlokun e Adele pelo trono de Lagos, em 1823, até seu desembarque na Bahia. Domingos foi adquirido pelo coronel de milícias Francisco Maria Sodré Pereira, vivendo durante esse período em escravidão no engenho Trindade, no Recôncavo baiano, ao lado de uma maioria de escravos que, como ele, eram nagôs, o nome étnico dado aos africanos falantes de iorubá, convivendo ainda com escravos de outras nações africanas. Embora não tenha encontrado informações sobre essa época da vida do africano, o autor utiliza informações referentes a outros escravos que trabalhavam nesse engenho para recriar a atmosfera em que vivia Domingos – recurso frequentemente utilizado pelo autor, como mostrarei adiante.

A alforria de Domingos data de 1836, concedida após a morte de seu senhor. E como liberto, Domingos teria agora de se adaptar mais uma vez às novas condições. A paranóia que se seguiu ao levantes dos malês (1835) tornou a vida dos africanos libertos – e dos nagôs, em particular – ainda mais difícil, com o recrudescimento de medidas de controle, como a repressão aos festejos e comemorações africanas, os chamados batuques. Diante de toda essa legislação anti-africana, o autor conclui que “quando se tratava de africano, uma linha tênue dividia a condição de escravo daquela de liberto” (p. 92).

Domingos conseguiu negociar alguns espaços de autonomia na sociedade escravista, o que lhe permitia atuar como adivinho. Esse é o tema do capítulo seguinte. No quilombo de Domingos – foi assim que as forças policiais descreveram as moradias coletivas de africanos – as autoridades policiais encontraram “diversos objetos de feitiçaria”. O autor descreve os objetos rituais encontrados na casa de Domingos – roupas, jóias, panos-da-costa etc. -, mas presta especial atenção aos objetos de culto e seus significados. Esse, aliás, é um ponto alto do livro. A desenvoltura com que o autor navega na bibliografia africanista – e mais especificamente naquela referente à religião tradicional dos orixás, o èsin ibílè – é realmente notável. Graças a esse conhecimento e sensibilidade etnográfica, foi possível a João Reis imaginar – ou em seus próprios termos, “adivinhar” – o significado dos objetos rituais, a exemplo dos búzios, contas e “santos de pau”.

Domingos atuava principalmente como adivinho, “babalaô”, um sacerdote de Ifá, divindade da adivinhação, sendo provavelmente um maioral entre eles, um “papai”, como se referia o jornal O Alabama aos líderes dos candomblés. Ele sem dúvida adaptou e inovou certos procedimentos rituais na diáspora, embora mantivesse certas regras de adivinhação, que trouxe da África. Sua competência como babalaô seria testada pelos seus parentes de nação, os nagôs, “acostumados com estavam a consultar constantemente adivinhos em suas próprias terras” (p. 136).

Domingos Sodré foi preso por sua prática de adivinhação e suposta feitiçaria, cuja relação é analisada no capítulo 4. O Código Criminal do Império não tinha uma legislação específica sobre essas práticas, vistas como “superstições” no discurso desqualificador da época. Além disso, candomblé e feitiçaria era uma combinação perigosa, pois através de sortilégios os escravos adquiriam remédios para “amansar senhor” e promoviam a alforria à revelia senhorial – a principal chave na qual aparentemente atuava Domingos.

Após sua prisão, Domingos teve de assinar um termo de obrigação no qual se comprometia a “mudar de vida”, abandonando a vida de “candomblé e feitiçaria”, sob pena de ser expulso para a África, dispositivo utilizado pelas autoridades para punir os africanos envolvidos em candomblé, sobretudo seus líderes. Alguns tiveram esse destino, como Grato e Gonçalo Paraíso. A liberta nagô Constança do Nascimento também foi deportada para a África, mas não sem antes protestar bastante, levando o caso até o ministro da Justiça. Apesar dessa ferrenha repressão, o candomblé conseguiu resistir, entre outras razões, graças ao recrutamento de gente poderosa, branca e “engravatada”.

Em “Feitiçaria e alforria”, João Reis examina, através do processo movido por Domingos Sodré contra Elias Seixas, a atuação do papai enquanto chefe de uma junta de alforria, organização de crédito que visava a libertar africanos escravizados. Era provavelmente baseada no esusu, instituição de crédito iorubá. Sua atuação como chefe de junta de alforria é exemplo do respeito e importância enquanto líder religioso que Domingos usufruía entre outros africanos. Mas as atividades de Domingos, seja como adivinho ou como chefe de junta interferia num domínio exclusivo dos senhores, a alforria, expediente fundamental da política de controle paternalista, algo que preocupava as autoridades baianas.

Na introdução do livro, João Reis afirma que “o leitor perceberá que nosso personagem sai frequentemente de cena para dar lugar ao seu mundo e a outros personagens que o povoam, através dos quais sua história é em grande medida contada” (p. 16). É exatamente o que acontece no sexto capítulo, “Uns amigos de Domingos”. Nele, o autor narra a história de três africanos libertos, também envolvidos com candomblé: Manoel Joaquim Ricardo, haussá, envolvido com o tráfico de escravos enquanto ainda era ele mesmo um cativo, tornando-se mais tarde um próspero comerciante e um dos libertos mais ricos da época; Cipriano Pinto, também haussá, que teve seu candomblé invadido em 1853 e terminou sendo levado para o Aljube e posteriormente deportado para a África. Por fim, Antão Pereira, liberto bem sucedido, mas que terminou preso no final de 1872 sob a acusação de estupro, embora pesasse sobre ele também a fama de candomblezeiro. Terminou seguindo a sina de outros líderes de candomblé: a deportação para a África.

Os três casos reforçam a ideia de que os libertos lideravam o candomblé oitocentista, talvez em virtude da mobilidade e capacidade de levantar recursos. Ademais, demonstram como as fronteiras étnicas não impediam o contato entre as lideranças, com a circulação de pais e mães-de-santo de diferentes grupos étnicos, como Domingos, nagô, Joaquim Ricardo e Cipriano Pinto, haussás, Mariquinhas Velludinho, jeje, e tantos outros.

O capítulo final, “Domingos Sodré, africano ladino e homem de bens”, destrincha outras passagens da vida do liberto, como sua experiência no grêmio católico, embora não abandonasse sua atividade como sacerdote do candomblé. Domingos tinha as religiões como complementares, e não como sincréticas. Embora nascido na outra margem do Atlântico, Domingos lutava para legitimar-se membro da nação brasileira, como se comprova pelo ato de vestir uma farda de veterano da independência no momento de sua prisão. E assim como outros libertos, africanos ou não, Domingos também era senhor de escravos, embora fosse um pequeno escravista. Suas escravas eram todas nagôs como ele, tendência comum entre os libertos, que escravizavam gente da mesma nação. Mas Reis questiona se realmente essas escravas eram “sua própria gente”, isto é, se ele escravizou gente vinda de Lagos ou não. Caso sim, ele abandonou certas regras africanas de escravização.

Com o fim do tráfico transatlântico de escravos, Domingos buscou novas atividades para investir, como os bens imóveis. Mas na década de 1880, já velho e provavelmente doente, o liberto depositou certa quantia na Caixa Econômica, instituição financeira privada.

Entretanto, ao morrer em 1887, com estimados noventa anos, não deixou muito para sua esposa Delfina, presa com ele em 1862. Ela morreria em agosto de 1888, na miséria, após anos auxiliando seu marido, quem sabe até ritualmente.

Em sua conclusão, João Reis faz uma crítica ao conceito de crioulização, que poderia ser utilizado para definir a vida de Domingos Sodré. Ele poderia ser ainda definido como “crioulo atlântico”, outro termo consagrado na bibliografia internacional. Para substituí-los, João prefere o uso da noção de ladinização. Na sociedade escravista, o ladino era o africano que já tinha aprendido a língua e os costumes dos brancos, sem esquecer necessariamente seus valores da África. Nesse sentido, o uso de ladinização serve para “todas as gerações de africanos natos que […] tiveram com o tempo de adaptar, reinventar e criar de novo seus valores e práticas culturais, além de assimilar muitos dos costumes locais, sob as novas circunstâncias e sob a pressão da escravidão deste lado do Atlântico” (p. 317). E por sua grande capacidade de adaptar elementos culturais do mundo dos brancos às práticas que trouxe da África, negociando posições e cultivando relações dentro e fora da comunidade africana, Domingos era um mediador cultural, “um perfeito ladino” (p. 319).

Depois de ler essa obra e escrever essa resenha, posso afirmar que estamos diante de um trabalho cuidadoso, na melhor tradição da história social, onde personagens se cruzam todo o tempo no universo social e cultural de Domingos Sodré. O leitor encontrará profundidade analítica, num texto que realça as conexões entre África e Brasil – uma tendência nos estudos sobre a escravidão -, sobretudo para os libertos como Domingos. Há de acentuar também o trabalho etnográfico desenvolvido nesse livro, que buscou interpretar os significados dos objetos de culto relacionados ao biografado, bem como aos outros líderes do candomblé na Bahia oitocentista. Aliado a esses aspectos, o texto apresenta uma narrativa leve e fluida, característica presente em outros trabalhos de João Reis. Enfim, só nos resta agora aguardar e tentar adivinhar qual a próxima surpresa o autor terá a nos oferecer.

Carlos Francisco da Silva Jr. – Mestrando em História (UFBA). E-mail: [email protected].


REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 2008. 463 p. Resenha de: SILVA JR., Carlos Francisco da Silva. Outros Tempos, São Luís, v.7, n.10, p.287-291, 2010. Acessar publicação original. [IF].

História da América: ensino, poder e identidade / Maria de Fátima Sabino

No momento em que a ANPUH (Associação Nacional de História) elege como tema para a edição nº 48/2004 a “Produção e divulgação dos saberes históricos e pedagógicos” e a ANPHLAC (Associação Nacional de Pesquisadores de História Latino-Americana e Caribenha) dedica a edição nº 4/ 2005 de sua revista à questão do ensino de História da América, o livro organizado por Maria de Fátima Sabino Dias oferece uma relevante discussão sobre o ensino de História e, particularmente, o ensino de História da América Latina.

O livro é o resultado de pesquisas realizadas a partir do intercâmbio de professores e alunos da Universidade Federal de Santa Catarina/Colégio de Aplicação e da Universidad Nacional de Córdoba/ Escola Superior de Comércio Manuel Belgrano, no âmbito de um acordo de cooperação Brasil-Argentina.

Com apresentação de Maria Lígia Coelho Prado, os sete artigos apresentados discutem, a partir da ótica de professores brasileiros e argentinos, temáticas que tomam como pano de fundo a maneira como nos olhamos e, ao mesmo tempo, representamos o outro.

Preocupados com as discussões acerca das “semelhanças e diferenças” entre o ensino de História da América Latina no Brasil e na Argentina, os autores entrecruzam temáticas como material didático e organização curricular nos dois países; intercâmbio discente; Mercosul; formas da história nacional ser contada e o processo de militarização presente na história recente dos dois países.

As semelhanças observadas pelos autores, entretanto, não nos une, pelo contrário, contribuem de maneira decisiva para o nosso distanciamento. Uma delas é a nossa dificuldade em nos reconhecermos como latino-americanos.

No artigo “Trilhando caminhos diferentes…”, Maria Sílvia Cristofoli toma como base a historiografia argentina que discute o sentimento “pouco americanista” do argentino, uma identidade nacional construída a partir de Buenos Aires e que remonta a imagens forjadas anteriormente à criação do Estado Nacional. Juan Batista Alberdi, membro da geração de 1837, definia os argentinos como “europeus nascidos na América”. Num segundo momento, ao entrevistar professores argentinos, a autora descobre que, para pelo menos um deles, o latinoamericano é o índio. Para o mesmo professor, a maioria da população (com a qual ele se identifica) de Córdoba é composta por italianos vindos do Piemonte.

Essa Argentina branca, européia e civilizada, nos moldes imaginados pelo presidente Domingos Sarmiento no século XIX, tem implicações diretas sobre a forma como o argentino se vê e, a partir daí, se diferencia. No artigo intitulado “ Inclusiones y exclusiones em modos de contar la historia da Argentina”, Sílvia Finocchio salienta as narrativas didático-nacionais que negam a história de índios, afrodescendentes, mulheres e outros grupos marginalizados. Ao discutir a permanência da auto-imagem do “mais europeu entre os americanos”, também observa as mudanças advindas do final do regime militar, dentre elas, a descentralização dos currículos escolares que, segundo a autora, permitiu uma ampliação, ainda que tímida, das temáticas e abordagens, rumo à diversidade.

No caso do Brasil, o artigo “Nacionalismo e estereótipos”, de Maria de Fátima Sabino Dias, nos dá conta das semelhanças que nos distanciam. Analisando a História da América nos livros didáticos brasileiros dos anos 50, momento de inserção da História da América na estrutura curricular, a autora identificou, nas histórias contadas, as Guerras do Prata como o momento de nossa maior proximidade. Proximidade tensa, fruto dos “desvarios imperialistas de Solano Lopez” e de interesses comuns momentâneos. Sobra um passado précolonial comum, proveniente de uma visão eurocêntrica que elegeu Maias, Incas e Astecas como os povos mais importantes deste passado, e alguns heróis como Simon Bolívar e Francisco Miranda, representantes de um tempo de glória, porém morto.

Paralelamente a este olhar em direção aos latino-americanos, segundo Maria de Fátima Sabino Dias, construiu-se a idéia de americano como sinônimo de estadunidense. No desejo de incorporar-se rapidamente à marcha do progresso, “(…) o Brasil não reconheceu as outras nações latino-americanas como referência para a construção de uma auto-imagem positiva” (p.59).

Este não reconhecimento pode ser analisado a partir da experiência no ensino de História da América Latina, o que faz Ivonete da Silva Souza, no artigo “Estudos latino americanos”. O encontro professor-aluno ocorre em meio a experiências e idéias cristalizadas no senso comum (e na própria escola). A autora, também professora, ao narrar sua experiência na docência de História da América, no Ensino Básico, nos relata a dificuldade dos alunos em criar um “raciocínio específico” para a disciplina. Ainda segundo a professora, os alunos carregam o pré-concebimento de uma história que se equilibra entre o reflexo da Europa, e/ou, “a mesma coisa que história do Brasil, só que em outro lugar”.

Outra possibilidade viabilizada pelo livro a respeito da maneira como nos vemos, é a forma como nos estranhamos. No artigo “Interculturalismo e educação”, Maria José Reis recolheu depoimentos de alunos intercambistas brasileiros e argentinos. Chama a atenção, mais do que os relatos da experiência e as eventuais queixas, as surpresas positivas, já que elas se fundamentam numa expectativa que diverge do ocorrido.

Para alguns alunos argentinos, a surpresa foi perceber “que aqui é tudo normal”: “(…) Eu gostei do intercâmbio porque eu pensava que no Brasil não tinha nada sério” (p.83).

Esta imagem carnavalizada sobre o Brasil, “terra de samba, praia e futebol”, lugar de democracia racial, onde as pessoas trabalham pouco e são felizes, se contrapõe à surpresa dos alunos brasileiros ao constatarem “que os argentinos são amigáveis” (p.81-82).

Estas expectativas mutuamente estereotipadas guardam uma relação direta com tensões militares do passado (o Brasil como grande ameaça imperialista) e rivalidades esportivas do presente, mas também com a busca histórica por um referencial externo a nós, capaz de nos afastar da pecha de “latino-americanos”.

Quanto à história recente dos dois países, o período de militarização/desmilitarização é compreendido como ponto de aproximação para compreendermos as relações mantidas com o capital internacional, as reações aos regimes e a ação das políticas de repressão sobre o ensino de história.

Embora não seja possível mensurar a barbárie apenas pelo número de mortes que ela deixa, é possível afirmar que a ditadura na Argentina deixou marcas mais profundas na sociedade. O número de mortos e desaparecidos, a força das Mães da Plaza de Mayo, a Guerra das Malvinas e as sucessivas crises econômicas, sem precedentes na história nacional, compõem um ambiente de mobilização nacional recorrente. Este “patriotismo” foi observado por alunos brasileiros e discutido no artigo já citado sobre “Interculturalismo e educação”: “(…) Outro aspecto lindo é que é (o povo argentino) um povo que luta pelos seus direitos. Claro, aqui nós também fizemos passeatas e manifestações, mas lá é diferente. Sinceramente, não sei bem o que me faz ter essa impressão” (p. 82) No artigo “Ensenanza de História de América”, Nancy Aquino, Dante Bertone e Susana Ferreyra observam a recorrência daquilo que foi denominado como “nova história política” nos currículos das escolas argentinas após 1985. Esta nova postura permitiu uma aproximação em relação aos países vizinhos, que sofreram agruras similares, e uma espécie de identidade construída a partir do sofrimento. Ainda que esta visão de “veias abertas” possa ser criticada como passiva e redutora de uma realidade dinâmica, neste caso ela permite o reconhecimento como latino-americano a partir de uma postura identitária articulada à noção de independência política e econômica, com raízes compartilhadas por um passado diverso em sua dinâmica, mas com similitudes políticas, culturais e econômicas.

Ainda em relação aos militares, o artigo “América Latina – Ensino e Poder”, de Marise da Silveira Veríssimo, toma como base documentos expedidos por governos militares no Brasil e na Argentina com o intuito de intervir no ensino de História.

Documentos nacionais, como o que tornou o ensino de Educação Moral e Cívica obrigatório ou o Decreto Lei 660 de 30/06/1969 que aprovou a Convenção sobre o ensino de História, são articulados à documentos interamericanos, como o Estatuto do Instituto para o Ensino de História das Repúblicas Americanas, com o propósito de discutir uma preocupação transnacional em relação à forma como a história deveria ser ensinada. O Instituto tinha como função primeira, segundo o artigo 1º, “Efetuar a revisão dos textos adotados para o ensino em seus respectivos, a fim de depurá-los de tudo quanto possa excitar, no ânimo desprevenido da juventude, a aversão a qualquer povo americano” (p.104). A autora enfatiza ainda a dimensão interamericana do documento que “(…) propõe ensinar aos alunos americanos que, apesar de suas identidades nacionais, eles fazem parte de um grande continente no qual está arraigada a paz, o reconhecimento e o respeito à alteridade..” (p.112) Estas preocupações das ditaduras argentina e brasileira com relação ao ensino de História dão a dimensão de sua potencialidade, em regimes de exceção ou não. Entretanto, a partir destas considerações, Marise da Silveira Veríssimo força um paralelo entre “interamericanismo militar para a educação” e as formas de integração educacional, no contexto do Mercosul.

A partir do documento “O Ensino de História e Geografia no Contexto do Mercosul” (1997), a autora discute as formas diversas em que, em tempos também diversos, essa integração pode ocorrer. Contudo, seria melhor evitarmos comparações que coloquem num mesmo espectro o militarismo brasileiro e argentino e períodos posteriores, ainda que estes sejam passíveis de duras críticas.

Por fim, é importante frisar que as discussões que perpassam o livro articulam-se à construção do Mercosul, já que uma área de livre comércio pode/deve ser uma área de livre circulação de pessoas, espaço de aproximação, reconhecimento e formulação de uma identidade regional a partir do que nos une.

Marcelo Cheche Galves – Mestre em História Social pela Universidade Estadual Paulista. Professor Assistente do Departamento de História e Geografia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) [email protected].


DIAS, Maria de Fátima Sabino (org). História da América: ensino, poder e identidade. Florianópolis: Editora Letras Contemporâneas, 2004. 126p. Resenha de: Outros Tempos, São Luís, v.3, p.229-233, 2006. Acessar publicação original. [IF].

Mare nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos / Fauzi Arap

Dramaturgo, diretor e ator de teatro a partir dos anos 1960 (nasceu em 1938 e morreu em 2013), o paulistano Fauzi Arap publicou em 1998 seu livro autobiográfico Mare nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos,um relato livre sobre a “verdade” encontrada pelo artista após seu primeiro contato com o LSD. “Por uma temporada me transformei num tagarela que só falava sobre seu assunto favorito, o ácido lisérgico, e não percebia o enorme escândalo que ia provocando”, relata Arap [2], que diz posteriormente ter passado a suspeitar que viveuuma possessão “por uma espécie de arquétipo messiânico” naquela época, em que agia com uma “compulsão de pregador” proveniente da “euforia vinda do sentimento de libertação que eu experimentara, e que fazia o desejo de repartir irresistível”.

Deslumbrado com o que via como possibilidades revolucionárias e transformadoras da experiência com LSD, Arap queria compartilhar as boas novas com o mundo, tornando-se o que o sociólogo Lewis Yablonsky [3] qualifica como “high priest” em seu livro The hippie trip, em um trocadilho com o duplo sentido da palavra “high” nesse contexto, podendo ter tanto o sentido de “grandes” ou “principais” quanto de “chapados” na qualificação da palavra “priest”, pregador.

Acontecia com Arap o mesmo que com outros integrantes de sua geração que se identificavam com a contracultura nos anos 1960 e 1970, sendo os estadunidenses Ken Kesey e Timothy Leary,provavelmente,os representantes mais famosos desse tipo de pregador do ácido lisérgico e da psicodelia. Com meios diferentes, tinham os mesmos princípios e fins: transformar os males de um mundo à beira da catástrofe atômica com a “abertura da mente” das pessoas através do uso de psicodélicos. Os livros Flashbacks,autobiografia de Leary, e O teste do ácido do refresco elétrico, de Tom Wolfe sobre Kesey e seus seguidores, sublinham bem tanto as diferenças quanto as conexões entre vida e obras de ambos.

Yablonsky tinha 43 anos e era professor universitário quando decidiu percorrer comunidades e eventos hippies no fim dos anos 1960, e o resultado está no livro já mencionado, que foi publicado pela primeira vez em 1968. O autor faz um interessante panorama do momento e do movimento contracultural, com entrevistas de diversos ativistas e moradores de comunidades e também com reflexões pessoais sobre as próprias transformações ocorridas durante essas viagens e encontros. Com abagagem de diversas idas a comunidades e de centenas de entrevistas gravadas, além de outras centenas feitas por questionário, de forma quantitativa, Yablonsky,em dado momento [4],afirma que todasas experiências e eventos que ouviu ou com as quais se relacionou durante sua pesquisa tiveram, de alguma maneira, conexões com o “fenômeno do LSD”.

Mesma ênfase dada por David Farber [5], para quem o uso de drogas ilícitas pelos jovens nos Estados Unidos,neste momento,significou uma “rebelião cultural” e uma “nova orientação cultural”.

Também no Brasil, seja no momento ou em análises posteriores, houve quem relacionasse diretamente a contracultura com o consumo de drogas, sobretudo maconha e LSD. Após apresentar uma citação do poeta Chacal, para quem “cada ácido que a gente tomava era parte de uma busca”, Lucy Dias [6] afirma que a contracultura brasileira “criou um novo modo de pensar o mundo”, dentro do qual a“experimentação com os psicotrópicos era elemento fundamental das descobertas estéticas e políticas empreendidas por esse movimento”. Estes consumos e experiências estariam “integrados a uma nova atitude, naqual a experimentação se ligava à expansão das possibilidades da consciência e ao exercício de novas formas de sensibilidade”. Opinião alinhada ao jornalista Luiz Carlos Maciel [7] –ele também certamente um “high priest” brasileiro –,em seu livro As quatroestações, no qual escreve que “as drogas alucinógenas foram privilegiadas pelos hippies porque ajudavam a vislumbrar a nova realidade”. Maciel[8] qualifica como “fundamental” a presença das drogas, “drogas alucinógenas –bem entendido –, do LSD ao ayahuasca”, para a “expansão dessa consciência, em lugar da constrição intelectual”.

O encontro de Fauzi Arap com o LSDdeu-se, portanto, dentro docontexto em que a substância começava a ser conhecida e difundida dentro e fora do Brasil, vista como possível chavepara abrir a porta de um outro presente e futuro, e que não seria reprimida antes de 1970. Assim como em outros casos que venho identificando e analisando para minha pesquisa de Doutorado, sobre drogas e contracultura no Brasil nos anos 1960 e 1970, ocorridos principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, o primeiro acesso do dramaturgo à experiência lisérgica deu-sepor vias médicas. A partir de então, entrou de cabeça nessa busca de autoconhecimento e novas perspectivas, chegando a ser visto e tratado como louco por seus colegas e amigos.

Sintetizado pela primeira vez em 1938 pelo químico suíço Albert Hoffman, o LSD só voltou a receber atenção de seu “descobridor” em 1943, data do famoso passeio de bicicleta posterior a uma ingestão acidental, através da pele, da substância no laboratório. A partir daí a empresa Sandoz, para quem Hoffman trabalhava, passou a buscar utilidades medicinais para o ácido lisérgico a fim de viabilizar sua comercialização em escala internacional. Em troca dos dados resultantesdas experiências, a substância era fornecida gratuitamente para médicos de diversos países –Arap inclusive relata ter tido contato com folhetos de divulgação produzidos pelos suíços. Após sua introdução nos Estados Unidos, no último ano da década de 1940através de doações da Sandoz, o LSD foi bem recebido pela comunidade científica, e no final dos anos 1950 mais de mil artigos científicos haviam sido produzidos, com o número de pacientes envolvidos aproximando-sedos 40 mil [9].

Pelo que pude observar em minhas pesquisas, dois médicos foram fundamentais nesse processo de pioneirismo experimental lisérgico no Brasil durante a década de 1960: Cesário Morey Hossri e Murilo Pereira Gomes. Ambos experimentaram a substância em si mesmos e em seus pacientes, combinando a viagem psicodélica com procedimentos e reflexões provenientes da psiquiatria, da psicologia e, no caso de Hossri, inclusive da parapsicologia.

Em seu livro Prática do treinamento autógeno & LSD, Hossri [10] afirma que a Regional Santo André da Associação Paulista de Medicina criou em 1965 uma seção de “Lisergismo e Parapsicologia”, formada por 32 médicos das cidades de Santo André, Santos e São Paulo com o objetivo de “estudar a fenomenologia lisérgica”. Os resultados das pesquisas teriam revelado que oLSD permite uma “nova abordagem” para o estudo da personalidade humana e pode ser considerado “a droga mais poderosa conhecida hoje como meio ‘revelador do inconsciente’(individual e coletivo) tendo a peculiar propriedade de manter o indivíduo ‘consciente e lúcido’”. Hossri coordenou cursos sobre o uso terapêutico do LSD e também publicou diversos artigos científicos e na imprensa sobre o tema, como uma série de seis artigos escritos na Folha de São Pauloa partir de 12 de maio de 1965, sob o título de “Ácido lisérgico e lucidez”.

Já Murilo Pereira Gomes teve seus primeiros contatos com o LSD em setembro de 1962, como atesta uma reportagem do projeto de jornalismo multimídia Ultraalice [11], naqualé citada uma intervenção dele no XV Congresso Nacional de Medicina. Ali Gomes relata ter experimentado a substância pela primeira vez em setembro de 1962, “atendendo ao convite de um colega”: “Percebi que se abriam de par em par as portas de um campo inteiramente novo e promissor que oferecia a possibilidade de compreender o modo de vivenciar o mundo e a sua patologia”, afirmou então.

Fauzi Arap relata em Mare Nostrumque seu contato com o Dr. Murilo Gomes foi incentivado e mediado por uma “jovem atriz” com quem ele contracenava em uma peça de teatro em 1963, no Rio de Janeiro. Foi ela quem lhe contou a “grande novidade” de que havia “um novo tipo de terapia que se valia de um novo tipo de substância”. “Poucos, na época, saberiam dizer o que era o tal de ácido lisérgico. Em minha ignorância, imaginei tratar-se de algum tipo de remédio muito eficaz, e não mais que isso”, prossegue Arap, apontando que o que conhecia sobre o assunto no momento baseava-sena leitura de alguns artigos publicados pelo escritor Paulo Mendes Campos na revista Mancheteepelos livros de Aldous Huxley.

Segundo seu relato, no momento havia “uma série de artistas plásticos paulistas que vinham se submetendo à experiência para terapia e experiências visuais”, e no Rio de Janeiro quem conduzia esse tipo de procedimento era o médico Murilo Pereira Gomes. Sua amiga informou-lheque o tratamento acontecia com sessões a cada quinze dias e que além delas havia também entrevistas preparatórias e de avaliação. Em seu primeiro encontro com Gomes, o médico teria prometido a Arap [12] que este encontraria “sua essência” no uso terapêutico do LSD –que se dava num consultório, com ingestão através de injeção muscular.

O relato dessa primeira experiência ocupa sete páginas de Mare Nostrum e inclui gargalhadas, medos, um passeio de carro até um parque com o médico, uma experiência de regressão até o útero materno e a sensação final de importantes descobertas, de ter atingido uma “dimensão mágica”: “Uma superconsciência, um self, um si mesmo, tanto faz. E o LSD me propiciara a oportunidade de descobrir que essa consciência preexistia, quem sabe desde o momento da fecundação”, descreve.

Murilo Pereira Gomes também foi quem conduziu a primeira experiência do escritor Paulo Mendes Campos. Publicada na revista Manchete e depois no livro Cisne de feltros [13],a série de textos “Experiência com LSD” narra que o interesse do escritor pelo tema também surgiu através da leitura das obras de Huxley sobre a mescalina. Nesse caso,a ingestão deu-sepor “bolinhas coloridas” na sala do apartamento do médico, e os efeitos surpreenderam o escritor sobretudo por conta de uma mudança na percepção do tempo: “o tempo não está interessado em nós e portanto não podemos nós estar interessados nele”. “Certo ou errado, o primeiro contato com o ácido lisérgico me deu a impressão muito razoável de se tratar de um elemento útil à pesquisa da natureza humana”, concluiu.

Segundo Arap, o Dr. Murilo Gomes conduziu outras experiências com escritores e artistas, e inclusive Clarice Lispector teria participado. Relata também que foi apresentado em 1965 pelaatriz Maria Alice Vergueiro a um psiquiatra que atendia num consultório na Avenida Paulista e também trabalhava com LSD –neste caso o uso também se dava por comprimidos. O diretor de teatro não seguiu a relação com este médico, mas vemos por esse depoimento que havia diversos médicos trabalhando com a substância no Rio e em São Paulo.

“Foi com o uso do LSD, no ano de 1963, que eu vi descortinar-se toda uma realidade paralela que eu estava acostumado a ignorar em meu cotidiano”, afirma Arap na introdução [14] de Mare Nostrum. Posteriormente [15], ele aponta que o LSD passou a lhe servir de “reaferidor de minha consciência, e até mesmo de apoio para que eu conseguisse reconhecer meus limites”. “Ele vinha sendo o veículo que me facultava o aprofundamento necessário para fazer leituras da realidade descondicionadas do senso comum”, complementa.

Céu ou inferno, o LSD evidencia a natureza subjetiva de nossa viagem. No fundo a ética do viajante acaba refletida na experiência. Ninguém escapa de si mesmo através de uma viagem lisérgica. E até por isso não existe vício. O desejo de repetir a experiência, quando acontece, é mais um anseio natural por completá-la ou aprofundá-la, o mesmo desejo que leva alguns a estenderem suas sessões de análise por oito ou dez anos. Nem porisso psicanalistas são acusados de serem o vício de seus pacientes. É claro que pode acontecer uma crise, a exemplo do que acontece na Psicanálise, pela desorganização temporária dos valores e da racionalidade do sujeito. Mas isso é fatal em qualquer transformação profunda [16].

Instruído por seu “guia”, o Dr. Murilo Gomes, o dramaturgo diz ter descoberto “um sentido subjacente à vida, muito mais abrangente que qualquer ideologia materialista ou teoria científica, e um sentido surpreendente para a palavra cura, que converge para a mesma ideia difundida por seitas que acreditam no milagre como caminho”. “Ao lado de Murilo, descobri um patamar não-físico de existência, no qual a palavra doença perde totalmente o sentido, diante da possibilidade de sua transmutação alquímica na compreensão do que seria sua concreção”, escreveu na introdução do livro [17].

Arap frequentou o consultório de Gomes entre 1963 e 1965, prosseguindo por conta própria em suas experiências posteriores –em algumas ocasiões, passou a exercer ele mesmo com amigos o papel de “guia”. Ocupa espaço importante no livro o relato de uma casual e talvez mística conversa entre o dramaturgo e o artista plástico Mário Gruber, na qual este lhe conta sobre a morte de Gomes, de quem também era discípulo –isso ocorreu logo depois, em 1966. Em paralelo ao crescimento profissional, no meio teatral, o livro mostra a evolução espiritual de Arap, que agregou a seu “barômetro espiritual”, como disse Baudelaire, uma série de outros elementos e experiências provenientes do espiritismo, da astrologia, da ayahuasca, da meditação, do candomblé etc.

Além disso, o livro rememora o trabalho do artista comNise da Silveira, psiquiatra que se tornaria referência para o posterior movimento antimanicomial brasileiro.

Escrito de forma pouco formal e bastante fluida, Mare Nostrum é a descrição das descobertas decorrentes dabusca espiritual do autore das buscas decorrentes de sua descoberta do LSD. Reflexões filosóficas e místicas são entremeadas por relatos de alguns eventos e momentos da vida do jovem ator no contexto de efervescência política e cultural dos anos 1960 e 1970 no Brasil. Em sua trajetória tão única, Arap repetiu os passos de tantos outros integrantes de sua geração, ávidos por mudanças no mundo, na família, no cotidiano, em si mesmos. Em meio a tantos outros relatos e livros de artistas que viveram os anos contraculturais como ele, o texto de Arap é único em sua forma e conteúdo, sendo uma leitura tão interessante quanto prazerosa.

Notas

  1. Resenha submetida à avaliação em junho de 2017 e aprovada para publicação em novembro de 2017.
  2. ARAP, Fauzi. Mare Nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos.São Paulo: Senac, 1998. p. 45.
  3. YABLONSKY,Lewis. The hippie trip. Califórnia: toExcel, 2000.
  4. YABLONSKY, op. cit., p. 224.
  5. FARBER, David. The intoxicated state/ Illegal nation: drugs in the sixties counterculture.In:BRAUNSTEIN, Peter;DOYLE, Michael William. Imagine nation: the American Counterculture of the 1960s and 70s. Nova York, London: 2002. p.18
  6. DIAS, Lucy. Anos 70: enquanto corria a barca. São Paulo: Senac, 2003.p.97.
  7. MACIEL, Luiz Carlos. As quatro estações. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.p. 40.
  8. Ibid., p. 154.
  9. LEE, Martin A.;SHLAIN, Bruce. Acid dreams: the complete social history of LSD. NovaYork: Grove Press, 1992.
  10. HOSSRI, Cesário Morey. Prática do treinamento autógeno & LSD.São Paulo: Martin Claret, 1984.p. 161.
  11. MAC CORD, Ciro. Um resgate da pesquisa psicodélica no Brasil. Ultralice: projeto de conclusão de curso em Design Gráfico,2009. Disponível em http://projetoultralice.blogspot.com.br/2009/05/materias-um-resgate-da-pesquisa.html.
  12. ARAP, op. cit., p. 30.
  13. CAMPOS, Paulo Mendes. Cisne de feltro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.p. 113.
  14. ARAP, op. cit. p.25.
  15. Ibid.p.207.
  16. ARAP, op. cit., p. 271
  17. Ibid., p.26.

Júlio Delmanto – Doutorando em História Social. Universidade de São Paulo (USP). [email protected].


ARAP, Fauzi. Mare nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos. São Paulo: Senac SP, 1998. Resenha de: DELMANTO, Júlio. O LSD dentro da busca espiritual de Fauzi Arap. Outros Tempos, São Luís, v.14, n.24, p.273-278, 2017. Acessar publicação original. [IF].