A Global History of Modern Historiography – IGGERS et. al. (HH)

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IGGERS A global history of modern

IGGERS, Georg G.; WANG, Q. Edward; MUKHERJEE, Supriya. A Global History of Modern Historiography. London: Pearson-Longman, 2008, 436 pp. Resenha de: MALERBA, Jurandir.[1] História da Historiografia, Ouro Preto, n.3, p.1167-173, set 2009.

Há uma longa tradição histórias da historiografia, cujo início remonta, pelo menos, ao século XIX. Como qualquer outro campo do conhecimento histórico, cada época propõe problemas e abordagens, investiga e narra a história (da historiografia, neste caso) à sua maneira. O mais recente livro do emérito Professor Georg Iggers e Q. Edward Wang (com a contribuição de S. Mukherjee), traz uma contribuição sem precedentes aos estudos históricos. Sua excelente análise das linhas de força da historiografia contemporânea é francamente amparada numa abordagem de Global History, ou seja, de que vivemos numa época de globalização e essa marca de nosso tempo está cravada nos modos contemporâneos de se escrever história. Mais que isso, que esse processo de globalização é fortemente marcado por outro paralelo de ocidentalização dos modos de se pensar e produzir história. Sua análise propõe-se enfaticamente comparativa, mais do que um mero recitativo ou catalogação de historiografias regionais ou nacionais.

O método escolhido impõe aos autores tratar a história da historiografia dentro de um período que permita essa abordagem global e comparativa, portanto, desde finais do século XVIII (quando as várias tradições historiográficas ocidentais e orientais começam a interagir) até os dias de hoje. O foco da obra incide precipuamente nas interações de diversas tradições historiográficas ocidentais e não-ocidentais num contexto global. Se no início do período estudado as trocas transculturais são poucas, elas se intensificam vertiginosamente a partir do final do século XIX no sentido do que os autores entendem como processos (no plural!) de ocidentalização das historiografias não-ocidentais, pois que esses processos são múltiplos, diversos, compreendendo desde a difusão dos paradigmas racionalistas e normativos ocidentais no Oriente até suas mais diversas formas de filtragem e resistência cultural (SATO 2006). Outro pressuposto importante é o de que os modelos ocidentais de pensamento não são tomados, na obra, como intrinsecamente positivos ou normativos, mas contextualizados conforme os diversos momentos e cenários. O “Ocidente”, entendem os autores, não se refere a uma unidade orgânica, mas a algo muito complexo, heterogêneo, a tal ponto marcado por fissuras políticas e intelectuais que melhor se pode falar de “influências” ocidentais (no plural), mas nunca de um único Ocidente se irradiando de forma imperialista pelo globo.

Outra marca forte da obra é sua sensibilidade para tratar “historiografia” num sentido mais amplo do que meramente o stock de obras produzidas pelos historiadores, a produção acadêmica, mas percebendo essa tradição acadêmica dentro de processos mais amplos de constituição de culturas históricas.[2] Basta lembrar que toda produção acadêmica desde Ranke, quando a história surgiu como disciplina acadêmica na Alemanha e logo por todo Ocidente e imediatamente no Japão Meiji, foi concebida sobre os ideais da objetividade científica, da neutralidade axiológica, do método crítico, do amparo às fontes – quando na prática toda essa mesma produção decimonónica foi artilharia letal na guerra de construção dos mitos nacionais. (MALERBA, prelo).

A consideração do conceito de cultura histórica é um pilar da obra. Evitando restringirem-se à análise textual da bibliografia histórica, os autores trabalham sim com os textos e seus autores, mas sem descurar que estes permanecem imersos em climas de opinião maiores, dentro de suas culturas originárias, o que induz os autores a examinarem, para além dos textos, os cenários institucionais, políticos e intelectuais dentro dos quais se inserem as diversas historiografias. Por exemplo, a formação das cátedras universitárias e a respectiva profissionalização dos historiadores, o apoio governamental, o peso dos estudos históricos no cenário político mais amplo no momento da construção das nações-estado e seu impacto vertiginoso na opinião pública da classe média e os efeitos da difusão das discussões científicas (como o darwinismo social, por exemplo) no século XIX e início do XX foram cuidadosamente levados em conta na análise da escrita histórica do mesmo período.

Para tratar da história da escrita e do pensamento históricos no período mais recente da era moderna, quando se incrementam os intercâmbios culturais em escala global, o livro se ampara em outro conceito básico, além do de globalização: no conceito de modernização. Grande parte da teoria social desde o iluminismo foi construída a partir do pressuposto de que a história moderna equivale ao processo acelerado de modernização do Ocidente. Por modernização, via de regra, subentende-se uma ruptura com as instituições e os paradigmas tradicionais de pensamento, seja na religião, na economia, na política, ruptura essa ancorada em três pontos: o surgimento da ciência moderna (rompendo com o senso comum e o pensamento dogmático) (SANTOS, 1995), as revoluções liberais do longo século XIX (HOBSBAWM 1999ª) e o processo de industrialização capitalista (COLEMAN 1992; HARTWELL 1970; HOBSBAWM 1999b). Desde os economistas clássicos (Smith, Ferguson, Condorcet) até a década de 1960 aproximadamente, entendia-se modernização como um processo uniforme que caminhava (herança da idéia de progresso da ilustração) com as descobertas científicas, a consolidação do mercado capitalista mundial e das sociedades civis e o estabelecimento de democracias liberais pelo mundo afora. Por suposto que a crítica à idéia de modernização é tão antiga quanto a própria, tendo se sofisticado imenso ao longo do século XX, particularmente pelo pensamento de base marxista.[3] Globalização e modernização não se confundem, embora sejam indelevelmente conectados. A globalização, como demonstrou Felipe Fernández- Armesto num livro fascinante, é tão velha quanto a humanidade (FERNÁNDEZARMESTO 2009).[4] Mas a modernização a que se referem nossos autores refere-se à época mais recente, tendo uma primeira fase entre os séculos XVI e XVIII, uma segunda coincidente com a fase dourada do imperialismo europeu no globo e uma terceira, posterior à segunda guerra mundial. Cada um desses momentos, de acordo com os autores, impactou de forma decisiva a consciência histórica e o pensamento e a escrita da história. O corpo da obra foi desenhado para demonstrar como esses processos da história do pensamento histórico e as diversas fases da globalização moderna se entrelaçam. De modo que a meta dos autores é demonstrar os desdobramentos no pensamento e na escrita histórica em seus contextos intelectuais, sociais e econômicos mais amplos, desde o século XVIII ao início do século XXI, abordando as interações entre culturas histórica ocidentais e não-ocidentais, numa exposição estrategicamente narrativa.

O livro começa com uma panorâmica de diversas tradições historiográficas pelo mundo afora, com ênfase no Ocidente, Oriente Médio, Extremo Oriente, Sudoeste da Ásia e Índia ao longo do século XVIII, para, em seguida, passar à discussão das transformações das práticas historiográficas na era moderna com o advento do nacionalismo, desde o Ocidente se espraiando pelo globo.

Esse processo se caracteriza pelo surgimento da história acadêmica, com a fundação da primeira cátedra universitária de história por Ranke e a respectiva profissionalização da atividade historiadora (IGGERS 1998, ORTEGA Y MEDINA 1980). Não obstante sua força, o historicismo alemão sofreu um golpe letal no início do século XX, particularmente no período entre guerras. Seu efeito foi uma reorientação no pensamento histórico ocidental, com o advento da história científica e estrutural tal como propugnada pelo Annales, que deitou profunda influência no exercício da escrita da história ao longo do século XX.

Nos universos não-ocidentais, a sedução da história nacionalista persistiu por mais tempo, por todo século XX, muito embora, conforme demonstram os autores (cap. 5), críticas contundentes ao paradigma nacionalista pulularam em vários países orientais, como a Índia e o Japão, principalmente no período pós-guerra. Tais críticas ganharam força com o advento do pós-modernismo e sua crítica ao recitativo da historiografia moderna no Ocidente do pós-guerra, quando se assiste ao esforço, deflagrado pelos Annales braudelianos e reverberado pelo historiadores e cientistas sociais anglo-americanos e ingleses, no sentido de expandir as fronteiras do campo de conhecimento da história para além do paradigma nacionalista. Essa crítica ganhou força com as críticas pós-coloniais oriundas dos chamados Subaltern Studies propostos por autores indianos (NANDY 1995) e pelo Orientalismo (SAID 1990) de Said nos anos 1970 e 80. Paralelamente, outras forças, de caráter político e religioso, que impactaram na escrita da história no Oriente Médio e na Ásia no último quartel do século XX foram a eclosão do Islamismo e a queda do marxismo.

Após essa discussão, os autores abordam as mudanças recentes na prática historiográfica mundo afora sob a força da globalização, elencando cinco tendências importantes no mapa historiográfico atual que, provavelmente, estarão presente num futuro próximo: a continuidade do “giro cultural e historiográfico” que deu originou a “nova história cultural” (CLIFFORD 1986); a expansão ainda maior da história feminista e de gênero (SCOTT 1988; HARAWAY 1988, EPPLE 2006); a nova convergência entre os estudos históricos e as ciências sociais na construção da crítica à pós-modernidade; os desafios à historiografia nacional associados aos estudos pós-coloniais; e, finalmente, a emergência e disseminação da world history e da global history, já muito fortes no mundo anglo-americano, mas praticamente ignoradas no Brasil.

Como todo bom estudo historiográfico, as análises e conjeturas dos autores desta A Global History of Modern Historiography possuem caráter heurístico, apontam para tendências, reclamam novos estudos. Seus grandes diferenciais são, por um lado, a aberta rejeição do eurocentrismo e, por outro, a defesa veemente da investigação racional, esta diretamente dirigida contra boa parcela da crítica pós-moderna à herança intelectual da Ilustração, que sustenta que um estudo objetivo da história não é possível porque o passado não se apóia na realidade objetiva, não passando de um construto da mente ou de uma linguagem não-referencial, de acordo com o qual todo estudo histórico inevitavelmente derivaria para uma forma de literatura imaginativa, carente de critérios objetivos para o estabelecimento da distinção entre verdade e falsidade nos estudos históricos (MALERBA 2008; ZAGORIN 1998; DRAY 1989). A proposta desta obra de fôlego vai nos antípodas das posturas radicais pós-modernas.

Numa obra com a envergadura desta, que busca analisar em chave comparativa a história do pensamento histórico em perspectiva global na época moderna, seria inevitável diferenças de ênfase e profundidade na análise. Uma crítica que não poderia passar em branco volta-se às inevitáveis lacunas e àquelas diferenças, para nós evidentes no tratamento dado, por exemplo, à análise da historiografia latino-americana (“Da Teoria da Dependência aos Estudos Subalternos”), tratada em cinco páginas e amparada em oito referências bibliográficas, todas elas em inglês.[5] Não causará espanto que especialistas acusem a mesma generalidade no que tange às análises do livro voltadas às tradições historiográficas de outras partes do globo.

Essa observação, porém, não compromete o mérito dessa grande obra de síntese, interpretativa, estruturada a partir de pressupostos claros e construída por autores que trazem vasto conhecimento das culturas históricas de sua proveniência. Uma obra destinada a ser referência para as novas histórias da historiografia.

Bibliografia citada

CLIFFORD, James. Introduction: Partial Truths. In: Clifford, J.; G. Marcus (ed.). Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986.

COLEMAN, D.C. Myth, History and the Industrial Revolution. London & Rio Grande: Hambledon P, 1992.

DIEHL, Astor. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc, 2002.

DRAY, William. On the Nature and Role of Narrative in History. In: ____ On History and Philosophers of History. Leiden/Nova York: E. J. Brill, 1989.

EPPLE, Angelika. Gênero e a espécie da história: uma reconstrução da historiografia. In: Malerba, J. A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto: 2006.

FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Os desbravadores. Uma história mundial da exploração da Terra. Tradução de Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

HARAWAY, D. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective. Feminist Studies.Vol. 14, No. 3, 575- 599, 1988.

HARTWELL, R.M. (ed.). The Industrial Revolution. New York: Barnes & Noble/ Oxford: Basil Blackwell, 1970.

HOBSBAWM, Eric. The age of Revolution: Europe 1789-1848. London: Peter Smith, 1999a.

____. Industry and Empire: The Birth of the Industrial Revolution. New York: The New Press, 1999b.

____. A Era Dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

IGGERS, G. The german conception of History: the national tradition of historical thought from Herder to the present. London: Wesleyan University Press, 1988.

MALERBA, Jurandir. A história na América Latina: ensaio de crítica historiográfica. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

_____. La historia y los discursos. Una contribución al debate sobre el realismo histórico. Contrahistorias, v. 9, p. 63-80, 2008.

_____. (Org.). Lições de história. A construção da ciência no longo século XIX. (no prelo).

NANDY, Ashis. History’s Forgotten Doubles. History and Theory. Volume 34, Issue 2, Theme Issue 34: World Historians and Their Critics (May, 1995), 44-66.

ORTEGA Y MEDINA, Juan A. Teoría y crítica de la istoriografía científicoidealista alemana (Guillermo de Humboldt- Leopoldo von Ranke). México: UNAM, 1980.

SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente.São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

SANTOS, Boaventura de S. Toward a new common sense. Londres/Nova York: Routledge, 1995.

SATO, Masayuki. Historia normativa e história cognitiva. In: Malerba, J. A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006.

SCOTT, J. Gender: A Useful Category of Historical Analysis. In: ____. Gender and the Politics of History. New York: Columbia University Press, 1988.

WEBER, Max. Economía y Sociedad: teoria de la organizacion social. México: Fondo de Cultura Económica, 1977. (3ª reimpressão).

ZAGORIN, Perez. History, the Referent, and Narrative: Reflections on Postmodernism Now. History and Theory, 38(1):1-24, fev1998.

[1] Professor Adjunto Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUC-RS) [email protected] Avenida Ipiranga, 668 – Partenon Porto Alegre – RS 90619-900 Brasil.

[2] 1 No sentido proposto por Jörn Rüsen e divulgado no Brasil por Astor Diehl (2002).

[3] 2 Mas igualmente por outras vertentes de pensamento, dentre as quais destaca-se a obra de Weber (1977).

[4] 3 Para uma abordagem que enfatiza o caráter recente do fenômeno, cf. HOBSBAWN (2005).

[5] 4 Para uma análise recente das tendências majoritárias na historiografia da América Latina desde a década de 1960, cf. Malerba (2009).