Philosophy, dialogue, and education – GUILHERME; MORGAN (B-RED)

GUILHERME Alexandre Anselmo Guilherme ucsclay ucr br Dialogue
Alexandre Anselmo Guilherme. ucsclay.ucr.br

GUILHERME e MORGAN Philosophy dialogue and education DialogueGUILHERME, Alexandre Anselmo; MORGAN, W. John. Philosophy, dialogue, and education. Nine Modern European Philosophers [Filosofia, diálogo e educação: nove filósofos europeus modernos]. London: Routledge, 2018. 190 p. Resenha de: CHERON, Cibele. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.15 n.2 São Paulo Apr./June 2020.

O que é o diálogo, na compreensão de nove dos mais importantes filósofos modernos europeus? Quais são as implicações dessa compreensão do diálogo para o campo da Educação? É desse duplo questionamento que Alexandre Anselmo Guilherme e W. John Morgan partem para, ao longo de Philosophy, Dialogue, and Education, discutir as ideias de Martin Buber, Mikhail Bakhtin, Lev Vygotsky, Hannah Arendt, Emmanuel Levinas, Maurice Merleau-Ponty, Simone Weil, Michael Oakeshott e Jürgen Habermas.

A intersecção entre o diálogo e o campo educacional se faz presente na trajetória dos autores, ambos expoentes da Filosofia da Educação. W. John Morgan é professor emérito da School of Education [Faculdade de Educação] da University of Nottingham, onde presidiu a Cátedra UNESCO de Economia Política da Educação. Ele também é professor honorário da School of Social Sciences [Faculdade de Ciência Sociais] e do Wales Institute of Social and Economic Research, Data, and Methods [Instituto Wales de Pesquisa, Dados e Métodos Sociais e Econômicos] na Cardiff University, e bolsista emérito do Leverhulme Trust, realizando estudos sobre economia política comparativa da educação (especialmente Rússia e China), sociedade civil e antropologia do conhecimento, bem como educação para a paz. Alexandre Anselmo Guilherme é professor adjunto da Escola de Humanidades, Departamento de Educação, e coordenador do Grupo de Pesquisa Educação e Violência – GruPEV da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil, atuando principalmente nos temas educação e violência, educação e diálogo, imigrantes e refugiados, e Psicologia da Educação.

Guilherme e Morgan indicam a relevância dos questionamentos que embasam Philosophy, Dialogue, and Education: o diálogo é comumente entendido como conversação, intercâmbio de perguntas e respostas entre dois ou mais sujeitos, e, simultaneamente, tem sido objeto privilegiado nas pesquisas em Filosofia da Educação. Todavia, a maioria das investigações nessa área costuma concentrar-se em apenas verificar a ocorrência de intercâmbio comunicativo, resultando em “modos simplistas e reducionistas de compreender o diálogo, os quais não consideram as relações envolvidas no diálogo” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.3)1. Em oposição ao reducionismo rejeitado pelos autores, é destacada a “gama de complexidades, dinâmicas e efeitos resultantes e causados pelo diálogo, que a simples percepção de um processo de perguntas e respostas não captura com êxito” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.4)2.

A escolha dos filósofos abordados enfatiza o caráter polissêmico, multifacetado e complexo do diálogo. Philosophy, Dialogue, and Education reflete sobre as complexidades inerentes ao diálogo, situando as perspectivas sociopolíticas dos pensadores na tradição europeia da filosofia dialógica. Cada filósofo é tratado num capítulo específico, cujo título sintetiza o conceito de diálogo desenvolvido. Após uma breve apresentação, seguida dos principais eventos da vida e carreira, o leitor é conduzido a um panorama consistente e detalhado sobre como o diálogo é conceituado e relacionado à educação.

No primeiro capítulo, Martin Buber: dialogue as the inclusion of the other [Martin Buber: diálogo como a inclusão do outro], o diálogo é referido como uma relação simétrica, inclusiva do outro, despida de preconceitos e expectativas, na qual simplesmente se aceita o outro como ele é. A relação dialógica assume a forma ‘Eu-Tu’ e está, assim, em contraste com as relações ‘Eu-Isso’, baseadas na objetificação do outro e na ausência de diálogo. ‘Eu-Tu’ e ‘Eu-Isso’ são as ‘palavras básicas’ indicativas da qualidade da experiência contida na relação que elas descrevem. À leitura filosófica da obra de Buber (cf. Buber, 2007 e 2001, entre outros) é acrescida uma apreciação teológica, fundada em suas raízes judaicas hassídicas. Essa apreciação ilustra a atenção às conexões entre o pensamento, as experiências, o pertencimento e a subjetividade dos filósofos observados, elementares em Philosophy, Dialogue, and Education. Em Buber, o hassidismo é o mote para ressaltar a convergência de todas as relações genuínas para o eterno, a partir da qual os seres humanos se relacionam com Deus. No campo da Filosofia da Educação, a teoria de Buber é enfocada para defender a importância das relações vivas, horizontais e inclusivas entre professores e alunos, fundadas em diálogo genuíno, de forma a impactar positivamente a motivação e a capacidade de colaboração.

A interpretação de Guilherme e Morgan sobre as ideias de Buber, no Capítulo Um, articula-se ao Capítulo Cinco, Emmanuel Levinas  dialogue as an ethical demand of the other [Emmanuel Levinas: diálogo como uma exigência ética do outro] Para Levinas (cf. Levinas, 1988a1988b2005, entre outros), em contraposição a Buber, a noção ética de diálogo compreende uma relação assimétrica e preconcebida, estabelecida para satisfazer as demandas do outro. O encontro com o outro, nominado por Levinas como “rosto”, implica uma exigência ética, instando o sujeito, de cima para baixo, a responder ao outro. Todavia, essa assimetria não deve ser depreendida como uma hierarquia das relações humanas, uma vez que é recíproca: o sujeito é instado a responder ao mesmo tempo em que demanda uma resposta ética do outro. A assimetria bilateral do encontro com o “rosto” caracteriza-se, ainda, pela presença de uma “terceira parte”, na medida em que toda a humanidade encara o sujeito através dos olhos do outro. Assim, enquanto para Buber o diálogo se dá desde o reconhecimento do outro como um par, por conta da igualdade com o sujeito, para Levinas, o diálogo existe porque o sujeito reconhece a alteridade absoluta do outro. A influência de Levinas para a Educação também se ancora na alteridade, no reconhecimento ético do encontro com um outro que é diferente do sujeito, causando-lhe inquietude, questionamento e inovação.

O outro também é central no Capítulo Seis, Maurice Merleau-Ponty – dialogue as being present to the other [Maurice Merleau-Ponty – diálogo como estar presente para o outro]. O capítulo discute a compreensão existencialista e fenomenológica de Merleau-Ponty (cf. Merleau-Ponty, 19962006, entre outros), para quem o diálogo configura um ‘estar presente’ para o outro. Ainda que guarde algumas afinidades com o pensamento de Buber e de Levinas, Merleau-Ponty apoia-se em premissas distintas. O diálogo necessita do encontro com um outro corporificado, presente numa relação em que o sujeito também está presente. No diálogo, as demandas e intenções desse outro tornam-se compreensíveis para o sujeito, como se este o “habitasse”. Por essa perspectiva, subjetividade e objetividade se encontram no corpo. Também por meio dessa “teoria da incorporação” o fenômeno do aprendizado é explicado como um hábito adquirido pelo corpo, e a aquisição de um hábito corresponde à apreensão de um significado. Trata-se de um processo que envolve os movimentos espontâneos e intencionais em interconexão com as experiências que solidificam os hábitos.

No segundo e no terceiro capítulo, Guilherme e Morgan tratam de dois pensadores russos influenciados pelo marxismo. Mikhail Bakhtin é referido ao longo do Capítulo Dois, Mikhail Bakhtin – the dialogic imagination [Mikhail Bakhtin – a imaginação dialógica]. Os autores aludem à noção de “imaginação dialógica”3 para desvendar uma filosofia na qual se notam inspirações em Kant, marcada pela insistência na relação, necessária e reciprocamente enriquecedora, entre o pensamento e a ação, e em Nietzsche, visível no conceito de discurso que espelha a ideia de diálogo. O capítulo leva em conta as ambiguidades percebidas em Bakhtin, especialmente sobre a arquitetura do mundo real, a estética como ação ou processo, a ética da política e, finalmente, a ética da religião. Essas ambiguidades suscitam uma reflexão crítica, na qual o filósofo do ato (cf. Bakhtin, 2010), da dialogia (cf. Volóchinov, 2017Bakhtin, 20082016, entre outros) e do plurilinguismo, vindica “o diálogo e a participação polifônica de vozes diferentes no intercâmbio de ideias por meio da linguagem e da literatura” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p. 24)4 ao mesmo tempo em que propõe Bakhtin como um pensador ético. A “imaginação dialógica” de Bakhtin sublinha que a linguagem só adquire significado no diálogo, obrigatoriamente no contexto social e cultural do qual faz parte. O entendimento do self é construído nesse diapasão, num diálogo conformado pelas mútuas e contínuas interpretações do outro. Essa perspectiva contribui grandemente para a Filosofia e para a Educação, uma vez que Bakhtin incentiva os sujeitos ao protagonismo na busca pelo conhecimento, não aceitando as coisas como dadas.

Isso pode ser cotejado à compreensão de Lev Vygotsky, objeto do Capítulo Três, Lev S. Vygotsky – dialogue as mediation and inner speech [Lev Vygotsky – diálogo como mediação e discurso interior]. Como mediação (cf. Vygostsky, 1999 1998, entre outros), o diálogo diz respeito à relação entre indivíduo e sociedade, intermediada por objetos, sinais e linguagem, ferramentas proporcionadas pela cultura. Também diz respeito à interação de cunho mais psicológico do indivíduo consigo mesmo, crucial para o desenvolvimento cognitivo humano, que Guilherme e Morgan afirmam ser “uma alternativa poderosa tanto ao behaviorismo pavloviano como para a ênfase piagetiana à maturação biológica cognitiva” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.39)5. O impacto do pensamento de Vygotsky para a Educação é captado desde as interpretações que privilegiam a análise social, até as que buscam entender o surgimento da consciência, relegando as relações sociais ao pano de fundo.

O prisma político do diálogo é examinado no Capítulo Quatro, Hannah Arendt – dialogue as a public space [Hannah Arendt – diálogo como espaço público]. Guilherme e Morgan acentuam a defesa de Arendt da expressão autêntica da democracia, possível quando os cidadãos se reúnem num espaço público de deliberação e decisão acerca dos interesses coletivos (cf. Arendt, 20072012, entre outros). A separação entre as dimensões do “labor”, do “trabalho” e da “ação” precede a exigência do espaço público, contexto no qual as pessoas defrontam-se umas com as outras, na qualidade de membros de uma comunidade, e desvelam seus pontos de vista em discursos e ações, concordâncias e discordâncias. Essa relação com os outros é pré-condicionada por outro tipo de diálogo, fundante da capacidade de pensar, interno, através do qual o indivíduo confronta a si próprio. Nesse marco, a educação objetiva propiciar um ambiente seguro às crianças, preparando-as para participarem da esfera pública. Entretanto, Guilherme e Morgan cogitam que escolas e universidades não venham conectando o público ao privado, tal qual divisado por Arendt. Isso é tributado a obstáculos enfrentados, como os processos de mercantilização, que transformam os cidadãos em consumidores, e o espaço público em mercado.

Igualmente, no Capítulo Sete, Simone Weil – dialogue as an instrument of power [Simone Weil – diálogo como instrumento de poder], o espaço público tem notada relevância. O diálogo é pensado por Weil em relações de poder dimensionadas, no espaço público, pela linguagem e pelas palavras (cf. Weil, 19912001a2001b, entre outros). O dinamismo da realidade é a fonte dos conflitos potenciais, porquanto os sujeitos leem o mundo utilizando uma linguagem imperfeita, não obstante expressiva de atitudes e práticas. O diálogo configura uma relação de poder que se presta à crueldade, mas também à justiça e à bondade. Esse instrumento é crucial para a Educação, assim como a atenção (a vontade de receber) e o silêncio (a reflexão sem recebimentos do mundo externo), pois o processo de conhecimento só pode ser atingido num percurso crítico que envolve desejo de saber, comprometimento, esforço e amadurecimento. Assim, é imperativo que a Educação propicie ao indivíduo o discernimento das ideias, o poder da escrita e do discurso, e seu uso não para a conquista e aniquilação do outro, mas para a justiça, particularmente para a justiça social.

O posicionamento de Weil pode ser comparado ao de Michael Oaekshott, sobre o qual Guilherme e Morgan discorrem no Capítulo Oito, Michael Oakeshott – dialogue as conversation [Michael Oakeshott – diálogo como conversação]. O diálogo é, aqui, visto como uma forma de conversa, imprescindível para o desenvolvimento da civilização (cf. Oakeshott, 1989, entre outros). Os valores civilizados estão radicados na capacidade das pessoas, pela conversa, adentrarem o diálogo, o que é fomentado por uma educação liberal. É indispensável que a experiência humana seja vivida, compreendida e refletida na forma de uma conversa do sujeito com seus pares, seres humanos. As vozes que tomam parte dessa conversa são as diferentes formas da experiência, de ver o mundo, históricas e práticas. Oakeshott considera a conversa como um diálogo aberto e polifônico, um intercâmbio entre as diversas funções e condições em que a humanidade se desenvolve – e aí reside sua importância para a Educação. O indivíduo aprende a ser humano enquanto participa dessa conversa, assimilando os múltiplos significados e propósitos que também a integram.

O nono e último capítulo, Jürgen Habermas – dialogue as communicative rationality [Jürgen Habermas – diálogo como racionalidade comunicativa] dedica-se ao conceito de diálogo como racionalidade comunicativa, depreendido da extensa obra do filósofo alemão (cf. Habermas, 19841987, entre outros). Guilherme e Morgan sublinham a crítica habermasiana ao cientificismo e às decorrentes abordagens positivistas, burocráticas e autoritárias predominantes nos estudos sobre as questões da esfera pública, o que resulta na “marginalização do diálogo público e do debate” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.141)6. O déficit democrático consequente é enfrentado, segundo Habermas, por duas formas distintas e interdependentes de ação: (i) instrumental, mensurada quantitativamente e percebida no trabalho e na construção material; (ii) comunicativa, aferida qualitativamente e percebida por meio da interação e do diálogo sociais. A racionalidade comunicativa é a chave para a ação, e o ato da comunicação, em si, já inicia um diálogo entre pares, parceiros abertos às possibilidades de acordo e ação social. A contribuição de Habermas para a Educação é defendida no que Guilherme e Morgan detectam como alinhamento à Pedagogia Crítica, segundo a qual o despertar de consciência dos sujeitos, dialeticamente, leva à ação social democrática e emancipatória. A responsabilidade dos educadores é criar condições para que essa ação ocorra, circunstanciando o ensino e o aprendizado como atos políticos e, no mesmo sentido, a não neutralidade do conhecimento.

Philosophy, Dialogue, and Education é uma obra densa, na qual os autores promovem uma reflexão teoricamente consistente e sofisticada, sem, contudo, sacrificar a leitura e a inteligibilidade. As concepções de diálogo são discutidas de forma articulada entre os pensadores, concatenadas aos aportes de outros teóricos e de comentadores, o que fornece um horizonte interpretativo rico e fundamentado.

Nesse contexto complexo, Guilherme e Morgan trabalham o diálogo permeado por relações de poder, pela história e pela cultura, por valores normativos e pela necessidade de um espaço comum. Os potenciais e os dilemas do diálogo, especialmente na Educação, são temas de renovado interesse, ainda maior quando os recentes eventos e as dinâmicas sociais colocam em xeque a capacidade de dialogar. Como apontam (2018, p.4), “o diálogo não é simples de obter; pelo contrário, depende da disposição e da situação e é frequentemente difícil de iniciar, ainda mais de sustentar”7. Cultivar essa disposição é, portanto, o desafio ético do tempo presente, ao qual a Filosofia da Educação não se furta.

1Traduzido livremente do original: “simplistic and reductionist ways of understanding dialogue which do not consider the relations involved in the dialogue”.

2Traduzido livremente do original: “range of complexities, dynamics, and effects implied and caused by dialogue that the simple notice of a process of questioning and answering does not capture successfully”.

3A expressão é claramente uma referência à coletânea de ensaios de Mikhail Bakhtin publicada em inglês com o título The Dialogic Imagination (BAKHTIN, 1981). Dela constam os ensaios (i) Epic and Novel: toward a Methodology for the Study of the Novel, traduzida em português como Epos e o romance (sobre a metodologia do estudo do romance) (1993, p.397-428) ou O romance como gênero literário (2019, p.65-111); (ii) From the Prehistory of Novelistic Discourse – em português, Da pré-história do discurso romanesco (1993, p.363-396) ou Sobre a pré-história do discurso romanesco (2019, p.11-63); (iii) Forms of Time and of the Chronotope in the Novel: Notes toward a Historical Poetics – em português Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica) (1993, p.211-362) ou As formas do tempo e do cronotopo no romance (2018, p.11-237); (iv) Discourse in the Novel – O discurso no romance (1993, p.71-210; 2015, p.19-242).

4Traduzido livremente do original: “dialogue and the polyphonic participation of different voices in the exchange of ideas through language and literature”.

5Traduzido livremente do original “provided a powerful alternative to both Pavlovian behaviourism and the Piagetian focus on cognitive biological maturation”.

6Traduzido livremente do original “marginalization of public dialogue and debate”.

7Traduzido livremente do original “dialogue is not simple to achieve; rather, it is dependent on disposition and on situation and is often difficult to initiate, let alone sustain”.

Referências

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Cibele Cheron – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; PNPD/CAPES; [email protected]

 

Glória Carneio do AMARAL, Navette Literária França-Brasil – A crítica de Roger Bastide, São Paulo, EDUSP, Maria Luiza Guarnieri Atik, Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso

Corporação dos Enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798 – VALIM (Topoi)

VALIM, Patrícia. Corporação dos Enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798. Salvador: EDUFBA, 2018. 327p.p. Resenha de: CHAUVIN, Jean Pierre. Bastidores da Conjuração Baiana de 1798. Topoi v.20 n.42 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2019.

Nos cursos de Letras, quando topamos com periodizações relativas às partes do Brasil entre os séculos XVI e XVIII, costumamos aprender que o “Barroco” baiano durou 167 anos, de 1601 a 1768. Imediatamente após aquele “movimento artístico”, tido por rebuscado, serpenteante e obtuso, teríamos vivenciado 20 ou 30 anos de “Arcadismo”, iniciado muito precisamente em 1768 (ano em que saíram as Obras do desembargador, minerador, escravista e poeta Cláudio Manuel da Costa) e encerrado em data um tanto vaga, após a devassa, a prisão e a execução de um dos chamados “inconfidentes”. A solução que os manuais encontraram para preencher a distância geográfica e o intervalo temporal até a chegada e violenta instalação da Corte no Rio de Janeiro consistiu em fixar e nomear o período que vai de 1792 a 1808 (ou o 7 de setembro de 1822, ou o 2 de julho de 1823) como era “de transição”. Sugere-se que migramos do estatuto “colonial” português para o império da jovem nação brasileira – ainda que sob a tutela inglesa -, mediante os caprichos de um irrequieto d. Pedro I que projetava suas ambições dinásticas no filho: o “conciliador” Pedro II. Supõe-se, também, que a chama “pré-romântica”, com seu pendão protonativista, estivesse embutida no movimento “árcade” e se extinguisse no mesmo cadafalso que recebera o alferes Tiradentes. Em acordo com essa concepção escolar, que ainda vislumbra “espírito cívico” e “patriotismo brasileiro”, décadas antes de o país vir a sê-lo, a prisão dos conjurados também encerraria o brevíssimo e anacrônico “neoclassicismo” greco-latino, redivido no lamaçal de eiras e beiras setecentistas.

Desse modo, a já nem tão reluzente capitania mineira, embalada por “sentimentos antilusitanos” e candidatos a heróis da “pátria”, viveria um período de decadência socioeconômica e cultural, em que quase nada de relevante teria acontecido naquele território ultramarino – exceção feita às denúncias de crimes de lesa-majestade, punidos com a chibata em público, o degredo para possessões na África e, em alguns casos, a forca e o esquartejamento, previstos nas Ordenações do Reino para os mais pobres. Tudo isso para deleite de uma ansiosa tribuna ciosa por tonificar sua moral, ordem e civilidade – devidamente apinhada em torno do patíbulo instalado no Rio de Janeiro. Esquece-se, providencialmente, que as capitanias do Estado do Brasil atuavam pragmaticamente e de modo mais ou menos coordenado, pelo menos naquele tempo. Isso impediria negligenciar o habitual privilégio dos magistrados, o arbítrio das leis, os movimentos de sedição contra diferentes governos e mesmo as variadas representações artísticas – dentre elas, as práticas letradas produzidas por cortesãos sedentos de distinção entre os “homens bons”. Para além dos eventos transcorridos entre 1789 e 1792, nas Minas, haveria que se prestar detida atenção à Conjuração Baiana de 1798, transcorrida em Salvador, apenas seis anos após a execução de Tiradentes no Rio de Janeiro.

Salvo engano, é essa grande lacuna que este livro de Patrícia Valimvem preencher. Dividido em três seções, o estudo parece dialogar com a célebre disposição que Euclides da Cunha estendeu a Os sertões. A estrutura tripartite – anunciada no subtítulo (“Tensão”, “Contestação” e “Negociação política”) – projeta-se desde a capa, cujas cores se aproximam em muito do bleau, blanc, rouge que tingia os ideais republicanos e embalavam a Revolução Francesa, iniciada em 1789. Por sinal, a Conjuração Baiana de 1798 quase reproduzia os três pilares de além-mar: “liberdade, república e revolução” (p. 22). Antes de passar à matéria principal, a pesquisadora revisita a extensa tradição historiográfica produzida sobre a colonização portuguesa, dentro e fora do país (Inácio Accioli, John Armitage, Francisco Adolfo de Varnhagen, Fernandes Pinheiro, Francisco Borges de Barros, Braz do Amaral, Caio Prado Júnior, Affonso Ruy, Fernando ­Novais, István Jancsó, Carlos Guilherme Mota, ­Florestan Fernandes, Kenneth Maxwell, etc.) e restabelece a importância dos estudos de Kátia Mattoso e Valentim Alexandre, entre muitos outros que reorientaram os trabalhos, especialmente em torno da chamada “Conjuração Baiana de 1798”.

Como a historiadora adverte, em “Alguma explicação”, Salvador exercia a “capitalidade” no Estado do Brasil, concomitantemente à nova sede do vice-reino (Rio de Janeiro), desde o século anterior. Com dezenas de milhares de habitantes, em 1780, a capitania da Bahia tinha população, estrutura e poder consideravelmente maiores e tão complexos quanto aqueles das Minas, para onde se transferia a atenção da Coroa, interessada em fomentar a exploração dos escravos, com vistas a ampliar divisas da Metrópole, graças ao escoamento de ouro e outras mercadorias pelo porto do Rio – principalmente aquelas que sobrassem do sabido contrabando local, sob as desordens dos “principais do lugar”, a atuar em nome de Deus, da Lei e do pretenso racionalismo das Luzes. Em funcionamento análogo ao das vilas mineiras, “[…] a cidade [Salvador] foi o centro administrativo da colônia e do único vice-reinado no mundo atlântico até 1763, sede da única Relação do Brasil até 1751, sede do único bispado até 1676 e, depois, do arcebispado do Brasil” (p. 66). Além de recorrer a diversos documentos, localizados em numerosos acervos dentro e fora do país, Patrícia Valim dialoga com Arno Wehling, para quem: […] os inúmeros conflitos ocorridos entre vice-reis, governadores e demais autoridades, sobretudo no final do século XVIII […] caracterizavam a natureza intrinsecamente conflitual das relações de poder na colônia – que, antes de significar ausência de racionalidade, era a própria filosofia administrativa da Coroa Portuguesa (p. 77). O que se entendia por “Corporação de Enteados” – ponto de partida para a tese de Valim? De acordo com as cartas e relatos de Luís dos Santos Vilhena, professor régio que atuou em Salvador no final do século XVIII, tratava-se de homens poderosos e sem escrúpulos, a ocupar postos estratégicos no governo da Bahia, que emprestaram feição aparentemente legítima a práticas de enriquecimento pessoal, na proporção direta com que negligenciavam a enorme população de miseráveis, condenada a sobre-existir naquela capitania:

[…] por um lado a Coroa portuguesa tentava recrudescer a fiscalização de todas as variáveis envolvidas no comércio para exportação com a criação das Mesas de Inspeção, das Juntas da Fazenda e do Celeiro Público (…) por outro, ela se colocava em uma situação delicada na medida em que alguns dos principais comerciantes traficantes de escravos, financiadores da economia exportadora e não raras vezes acusados de praticarem contrabando, eram recrutados a ocupar os postos dos órgãos da administração local (p. 82).

No primeiro capítulo, destacam-se os muitos papéis e atribuições do Secretário de Estado José Pires de Carvalho e Albuquerque, célebre pela vasta memória arquivística e por encontrar contínuas brechas na legislação vigente, a reforçar a vantajosa parceria com d. Fernando José de Portugal e Castro, governador da Bahia entre 1788 e 1801. No quadro geral, para além da escravidão – o principal eixo da economia baiana -, as “clivagens políticas das elites governativas” (p. 52) aproximam decisivamente os eventos transcorridos em Salvador com os de outras cercanias. Também havia contrabando na Bahia e, a exemplo do que sucedeu nas capitanias de Minas Gerais, Espírito Santo, Maranhão, etc., a troca de influências entre o governo e a justiça (e entre representantes da administração reinol e do clero) resultaram em uma complexa rede de benefícios escusos, restritos aos “principais do lugar”, convenientemente acobertados pela Coroa – mais preocupada em perpetuar o tráfico negreiro e o sistema exploratório do tabaco, do açúcar, do couro e de outras mercadorias: “[…] as falhas dos magistrados eram compensadas pelas funções políticas que eles acabam desempenhando” (p. 125). Dado o aumento do volume de correspondências contendo denúncias a emissários do reino, em Lisboa, e das representações à Vereança, assinadas por comerciantes e políticos locais, a Coroa fechou os olhos aos desmandos; alinhou-se de outras formas com o governo da capitania e passou a remunerar melhor as milícias da guarda real. Daí o relevante testemunho recuperado pela historiadora: “Vilhena associa a queda e a ausência de seus pagamentos à substituição das patentes dos agregados que havia nos corpos de milícias, pois parte dos provimentos do subsídio literário foi usada para a despesa com fardas e patentes que, a seu ver, ‘para nada lhes ficavam servindo’.” (p. 119). Após apresentar o complexo tabuleiro das relações institucionais, orientadas pelo personalismo e a administração irregular do dinheiro, em que sobressaem as imposturas do governador d. Fernando José Portugal de ­Castro e do secretário José Pires de Carvalho e ­Albuquerque, Patrícia Valim concentra-se na análise de conjuntura da época, na figura de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, Secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos e do Erário Régio “entre 1796 e 1803” (p. 154). Das numerosas contendas entre os secretários, uma das mais impressionantes envolve a tentativa de se extinguir “o fim dos morgadios” (p. 164), processo que se arrastou durante anos e facultou a José Pires de Carvalho e Albuquerque, em vitória pessoal contra d. Coutinho, acumular impressionantes “348 propriedades” (p. 172), muitas delas surrupiadas a partir de causas alheias. Evidencia-se que d. Rodrigo chocava-se constantemente com o outro Secretário, José Pires de Carvalho Albuquerque, que costumava ser defendido pelo governador d. Fernando, decerto porque as concepções econômicas de d. ­Rodrigo se aproximavam das medidas adotadas pelo Marquês de Pombal, braço direito do rei d. José I até 1777: “D. Rodrigo de Sousa ­Coutinho fundamenta-se sobre dois princípios: unidade política e dependência econômica (…)”, por acreditar “na centralidade da mineração na vida econômica da capitania e pujança da monarquia” (p. 155 e 159).

À medida que avançamos no livro, o ano de 1796 assoma como marco temporal decisivo para compreendermos as motivações que levaram, não apenas as camadas populares, ao movimento de sedição, dois anos depois. Com o passar do tempo, d. Rodrigo passou a contar com um aliado fundamental – o provedor José Venâncio de Seixas. Até 1796, a capitania não recorrera a empréstimos que não pudesse saldar. Daí em diante, a situação se inverteu, o que levou o provedor Seixas a implementar a cobrança de novas taxas e impostos, entre outras medidas que desfavoreceram os colonos e comerciantes locais. As constantes intrigas entre os partidários de d. Rodrigo de Sousa Coutinho e o séquito do governador d. Fernando José de Portugal e Castro aumentaram em muito os processos judiciais, especialmente entre membros da própria elite escravista, dentre os quais, destaca-se o “negociante português Antônio José Ferreira (…), obrigado a desistir da prorrogação do contrato do dízimo em razão da pressão exercida pelos negociantes soteropolitanos, com apoio da Junta da Fazenda, do governador da capitania da Bahia e do posterior reconhecimento de D. João VI” (p. 192).

Se o cenário era de tensão constante entre os poderosos, adeptos de posições antagônicas, pode-se imaginar a reverberação das contendas em outros setores e camadas médias e mais populares, o que terá colaborado na publicação de “dez boletins manuscritos” em “12 de agosto de 1798” (p. 195), cuja autoria era ignorada. De acordo com os documentos da época, o levante teria reunido “676 adeptos”, dentre os quais “513 pessoas pertenciam a corporações militares” (p. 196). Vale lembrar que, para além das divergências na cúpula do poder local, o sangrento conflito contrapunha multiproprietários e um exército de despossuídos. A desigualdade estava na base dos conflitos. No bando de lá, brilhavam “o secretário de Estado e Governo e seus parentes (…) [como] os maiores proprietários de engenhos da capitania a Bahia no início do século XIX” (p. 208). Deflagrado o movimento, rápida e barbaramente sufocado pelas forças do governo, que contavam com o aval da Coroa, cumpria identificar e apontar os cabeças do movimento: “O caminho duvidoso escolhido por D. Fernando foi o exame de várias petições antigas que se encontravam na Secretaria de Estado e Governo do Brasil, sob o comando de José Pires de Carvalho e Albuquerque. O objetivo era confrontar as letras dos documentos oficiais com as letras dos ‘pasquins sediciosos’.” (p. 222). Logo começaram a aparecer os bodes expiatórios. A esse respeito, Patrícia Valim notou que: “[…] em 1798, havia uma fluida relação de homens provenientes de vários setores, mas especialmente entre os senhores de escravos e de terras, escravos urbanos e os milicianos das tropas urbanas” (p. 231). A condição dos homens mantidos em cárcere era emblemática: “Em meados de 1799, já eram nove presos – pois um deles, Antônio José, morrera na prisão (…). Dos escravos indiciados nos autos, quase todos eram pardos e nascidos na Bahia” (p. 225). O governo recorria a todos os métodos, em diferentes graus de ilicitude, para punir os “sentenciados”. Outro exemplo de desfecho trágico contava com os conflitos entre os “pardos livres” e “escravos” (p. 228): “Do total de 13 testemunhas que formularam culpa sobre Luiz Gonzaga das Virgens e, depois, em outra devassa, sobre mais três pardos, o poder local aproveitou-se da animosidade existente entre pardos livres e escravos para convocar que estes últimos despusessem sobre o que eles sabiam acerca da ‘revolução projetada’.” (p. 238).

Amparada por extensa bibliografia e documentação, encontrada em arquivos e acervos bibliográficos, Patrícia Valim explicita os mecanismos de favorecimento pessoal, enriquecimento ilícito e a prática quase regularizada do contrabando e da apropriação indébita de recursos do erário real, sob os olhos semicerrados da Coroa – mais interessada em manter e ampliar os empréstimos e favores prestados pela capitania da Bahia. Como os denunciados eram tratados, enquanto aguardavam pela sentença? “[…] o padrão presente no interrogatório dos escravos é o mesmo dos depoimentos e da acareação de Domingos da Silva Lisboa, homem pardo. Encerravam-se as perguntas no momento em que os nomes dos ‘principais’ eram citados e retomava-se o processo um ou dois dias depois, sem que se verificasse a procedência das informações” (p. 248). Conformadas ao sistema de acobertamento, aplicado pela Coroa sobre as numerosas denúncias de corrupção e mau uso do dinheiro na capitania, as instituições continuavam a validar as denúncias, muitas vezes sem qualquer comprovação material. A pesquisadora salienta que, “Embora as autoridades locais não averiguassem as informações fornecidas pelos cativos e milicianos, ao longo de mais de um ano de investigação, as denúncias sobre a participação de ‘homens colocados entre os povos’ chegaram a Lisboa e medidas foram tomadas” (p. 255). Assim como a murmuração mística, pertinente ao Tribunal do Santo Ofício, no plano terreno “o ‘ouvir dizer’ foi mais do que suficiente para a acusação dos quatro milicianos pardos por participarem de reuniões de conteúdo sedicioso e serem os autores dos boletins manuscritos” (p. 257). Avancemos. Eis que se aproxima o momento do castigo exemplar a ser aplicado aos perigosíssimos homens pobres e pardos da capitania: “No dia 18 de outubro de 1799, foram definidos os critérios para as sentenças e o termo de conclusão da devassa instaurada para averiguar a “projectada revolução” (…) dos infelices e desgraçados RR [réus]” (p. 265 – respeitada a grafia original). Os lamentáveis episódios transcorridos em Salvador culminaram com a morte direta de quatro participantes do movimento, cujo procedimento permitiria evocar o que sucedeu ao alferes Tiradentes, em 1792, no Rio de Janeiro:

À execução dos outros dois réus [Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga e João de Deus do Nascimento], seguiu-se o esquartejamento dos corpos. A cabeça de Lucas Dantas foi degolada, assim como a dos outros três, e depois espetada em um poste no Dique do Desterro. Os outros pedaços dos corpos dos réus foram expostos no caminho do Largo de São Francisco, onde Lucas Dantas residiu (p. 272).

Mas, afinal, o que teria acontecido à corporação dos enteados, que mandava e desmandava na capitania da Bahia? O que costumava suceder aos “homens de bem” daquele território: “Após o enforcamento e esquartejamento dos réus da Conjuração Baiana de 1798, a corporação dos enteados manteve-se como setor dominante da capitania da Bahia, voltando a ocupar, inclusive, cargos na Câmara Municipal de Salvador, afastados desde 1796” (p. 278). Estas linhas dizem muito menos do que vai no livro de Patrícia Valim, estudo pioneiro nesta abrangente área de pesquisa. No que toca à famigerada Corporação dos Enteados, porventura, fosse oportuno discorrermos mais longamente sobre a fabricação de leis extravagantes ou sobre a emissão de alvarás que costumavam atender a demandas específicas, quase sempre benéficas àqueles com maior poder de barganha. Também poder-se-ia aventar a hipótese de que certas posturas e práticas, situadas entre os séculos XVIII e XIX, teriam deixado um legado pernicioso às instituições que ainda operam no país.

Talvez ainda haja aqueles que fingem crer na imparcialidade da justiça e, vez ou outra, sacralizem figuras que se propõem tão retas quanto heroicas. Em nosso tempo, estamos longe de assistir a revoluções, para além de assinaturas em petições on-line. Nem por isso, mudou-se o caráter arbitrário e excludente das leis; tampouco abrandou-se a pena com que uns são castigados sem medida e outros são poupados, esses, quase sempre por serem amigos do rei.

Referências

VALIM, Patrícia. Corporação dos Enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798. Salvador: EDUFBA, 2018, 327p. [ Links ]

Jean Pierre Chauvin – Professor da Universidade de São Paulo/Escola de Comunicações e Artes/Departamento de Jornalismo e Editoração, São Paulo/SP – Brasil. E-mail: [email protected].

 Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] – GONÇALVES (B-RED)

GONÇALVES, Jean Carlos. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019, 172p. Resenha de: FOMIN, Carolina Fernandes Rodrigues. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.14 n.3 São Paulo July/Sept. 2019.01

O livro Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] compõe a coleção Teatro, Série Pedagogia do Teatro, da Hucitec Editora, e traz um olhar investigativo que interliga diferentes campos do conhecimento: educação, teatro e estudos da linguagem. A obra valoriza o encontro e o diálogo dessas esferas, à medida que articula os conceitos advindos das formulações teórico-filosóficas do Círculo de Bakhtin sobre a linguagem com as vozes do teatro que ecoam na educação e as vozes da educação que ecoam no teatro.

O autor, Jean Carlos Gonçalves, é teatrólogo, diretor de teatro e professor de Práticas Teatrais na Universidade Federal do Paraná (UFPR), e vem traçando uma importante trajetória de reflexões acerca da linguagem, com base em pressupostos bakhtinianos. O livro, conforme o autor nos conta, foi concebido a partir de pesquisas anteriores: a tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR e revisões realizadas nos dois estágios de pós-doutoramento no Programa de Estudos Pós-Graduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (LAEL/PUC-SP). Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] corrobora a trajetória de reflexão de Gonçalves, que tem como pressuposto o dialogismo e não pretende categorizar ou engessar nenhum dos conceitos apresentados; ao contrário, o pesquisador busca aproximações e novas frentes de discussão.

A apresentação escrita por Beth Brait, supervisora dos Pós-Doutoramentos de Jean Carlos Gonçalves no PEPG em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da LAEL/PUC-SP, destaca o livro como uma forte contribuição à Análise Dialógica do Discurso (ADD) e como “uma encenação possível do texto referência, constituindo-se como única e irrepetível” (BRAIT, 2019, p.12). A expressão texto referência refere-se a “um universo vivo, movente, que não cessa de se expandir, exigindo dos que dele se aproximam (ou dos que são por ele atraídos…) muito estudo, muita dedicação, técnica, método, disciplina e, acima de tudo, uma excepcional capacidade de interpretação criativa” (BRAIT, 2019, p.11). Ao apresentar sua pesquisa, Gonçalves é protagonista dessa interpretação criativa, que se abre à vertente interdisciplinar do conhecimento ao mobilizar dialogicamente as vozes da cena e da pedagogia.

Sobre o referencial teórico da obra, Gonçalves convoca ao diálogo autores dos três campos disciplinares que se propõe a investigar em interconexão: linguagem, educação e teatro. As vozes são múltiplas e, especialmente no que se refere aos estudos da linguagem, o autor extrapola o âmbito dos textos de Bakhtin e do Círculo, evocando outros comentadores e pesquisadores dessa perspectiva teórica. O diálogo acontece também com outros autores da coleção Teatro, Série Pedagogia do Teatro, como Beatriz Cabral (2002), Flavio Desgranges (2006) e Gilberto Icle (2009).

Os enunciados objeto das análises – denominados memoriais – situam-se na esfera educacional e são produzidos por alunos-atores a partir dos processos de montagem de espetáculo, vivenciados durante sua formação como Bacharéis em Teatro-Interpretação da Universidade Regional de Blumenau (FURB). Tendo como fundamento a ADD, que Brait (2019) indica no livro ser “uma perspectiva teórica que se apresenta, principalmente no Brasil, como uma possibilidade de interpretação dos estudos filosóficos-artísticos-discursivos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin e o Círculo” (p.12), Gonçalves analisa como os alunos-atores se enunciam, a quem enunciam e quais vozes ecoam nesses enunciados. Ele lê as entrelinhas dos enunciados, as vozes discursivas, os embates valorativos, as posições dos sujeitos que apontam para um horizonte social mais próximo (o da sala de aula e o das relações aluno/professor) ou mais distante (educação e teatro), e suas análises remetem a imaginários sociais que circulam nesses espaços. Contudo, não é objetivo do livro classificar o aluno, o professor ou o diretor de teatro em modelos teatrais ou acadêmicos. O autor busca compreender as vozes que constituem os enunciados dos memoriais que analisa.

O livro está inserido em uma cadeia discursiva que dialoga com elos precedentes e posteriores das esferas que investiga, a cujos enunciados responde ativamente. Alguns desses enunciados estão explícitos e referenciados; outros, implícitos nas diferentes vozes e imaginários sociais presentes na sociedade em geral e nos memoriais analisados no livro. Lembrando Volóchinov (2017, p.219; itálicos no original) “um livro, ou seja, um discurso verbal impresso também é um elemento da comunicação discursiva” e está imerso em uma “discussão ideológica em grande escala: responde, refuta, ou confirma algo, antecipa as críticas possíveis, busca apoio e assim por diante”. E, para o pensador russo, a partir de uma determinada situação de um problema científico, “esse discurso verbal é inevitavelmente orientado para discursos anteriores tanto do próprio autor quanto de outros”.

Como um enunciado, elemento de uma comunicação discursiva, chama-nos a atenção a forma como Gonçalves apresenta e intitula cada uma das partes dessa obra. Primeiramente, destacamos o fato de que a introdução e a conclusão são nomeadas Ensaiando uma introdução e Ensaio aberto, respectivamente. Ao fazer analogia com os ensaios no teatro, Gonçalves aponta para o não acabamento e a não necessidade de se encerrar discussões. Tal qual um ensaio, a obra se coloca como diálogo aberto e aberta a diálogos.

Em Ensaiando uma introdução, Gonçalves nos aproxima do primeiro ensaio de uma apresentação cênica, em que vivências, objetivos e aproximações teóricas são postos em jogo, inaugurando caminhos. Nesse preâmbulo, o autor objetiva compreender o processo de criação teatral na universidade, assume que as relações entre teatro e universidade serão pensadas a partir da ADD e manifesta o diálogo com seu objeto, com o leitor, com os autores que leu e consigo mesmo.

A primeira parte do livro, em que Gonçalves situa as análises e faz acordos teóricos com o leitor, contém dois capítulos, intitulados Pesquisar o teatro feito na universidade e Pesquisar em perspectiva bakhtiniana, respectivamente. No primeiro, antes de trazer as vozes de outros autores, Gonçalves declara o seu lugar teórico e prático e se coloca como “um sujeito intérprete, que analisa seus dados a partir de sua visão única, de seu lugar no mundo, unindo os resultados da sua análise ao seu próprio gesto interpretativo” (p.29). Lembrando Bakhtin (2017, p.36), “não se pode separar interpretação e avaliação: elas são simultâneas e constituem um ato único integral. O intérprete enfoca a obra com sua visão de mundo já formada, de seu ponto de vista”. Consciente disso, além de apresentar um contexto maior, o da criação teatral na esfera acadêmica, Gonçalves conta seu percurso na universidade e assume que suas análises serão permeadas por posições valorativas, um pressuposto de análises em perspectiva bakhtiniana. O autor salienta a impossibilidade de categorizações ou caracterizações estritas para análises que têm como objeto o teatro ou o fazer teatral, pois, nas palavras de Gonçalves, “narrar, descrever o processo de criação teatral, é debruçar-se sobre ele de forma que se possa refletir sobre vivências” (p.31). Com isso, o próprio processo de análise se transforma em um enunciado.

Para o capítulo seguinte, Pesquisar em perspectiva bakhtiniana, Gonçalves faz um levantamento de autores que se dedicaram a essa aproximação entre as artes da cena e as formulações de Bakhtin, Volóchinov e Medviédev e afirma que a pesquisa dessa relação “parece ainda não ter tido seu momento de acontecimento. No Brasil, pouquíssimos pesquisadores têm-se dedicado com afinco a estudar as aproximações possíveis entre o pensamento bakhtiniano e as artes da cena” (p.45), motivo pelo qual essa obra se mostra tão importante. Dentre os principais conceitos apresentados nesse capítulo, estão: alteridade, interação, campo/esfera, vozes discursivas, multivocalidade, posições axiológicas e autoria. Esses conceitos são premissas e dão sustentação às análises que atravessam todo o livro.

A segunda parte da obra também se divide em dois capítulos: Vozes da educação no teatro e Vozes do teatro na educação. Neles, Gonçalves instiga o leitor a refletir sobre o jogo de vozes e a multivocalidade presentes nas esferas que se propõe a analisar a partir da perspectiva dialógica: educação e teatro.

Em Vozes da educação no teatro, o primeiro tópico está relacionado aos imaginários sociais referentes ao professor enquanto condutor de práticas teatrais na universidade. “Seria ele um professor-diretor?” é a pergunta que instiga a discussão. O próximo tópico vai ao encontro de questões relacionadas à autoridade docente. Por meio da pergunta “quem decide?”, o autor discute a heteroglossia, o encontro sociocultural de vozes sociais e os jogos dialógicos de dizeres que se cruzam. A questão da avaliação em teatro é provocada pela pergunta “Vai ter nota?” e o capítulo se encerra com a problematização do espaço físico da sala de aula como espaço de ensaios. Novamente, chama a atenção a forma de apresentação dos enunciados, pois cada um desses subitens, ao invés de nomear conceitos ou categorias de análises, são, na verdade, perguntas pelas quais o autor busca provocar o leitor e mobilizar discussões. Ou seja, perguntas que convocam o leitor ao diálogo.

Em Vozes do teatro na educação, segundo capítulo da Parte II, os subitens seguem apresentados em forma de perguntas. Primeiro, Gonçalves questiona se os processos de criação cênica a partir do modelo de processos colaborativos seriam uma utopia, distinguindo conceitos como coletividade e processos colaborativos. Na sequência, aborda a autoria nos memoriais analisados e a “multivocalidade constituinte dos sujeitos e seus enunciados” (p.127). Já no segundo tópico, debate o modelo de encenação teatral (ou se haveria um modelo) e as acepções da figura do diretor teatral. Nesse ponto, o autor ressalta as principais diferenças entre ensaiador, encenador e diretor teatral, bem como a figura do professor. Os memoriais analisados apontam para os imaginários sociais, uma vez que “as vozes estão imbricadas, sobrepostas, gerando outros sentidos, outras possibilidades de significação na própria situação comunicativo-discursiva” (p.143). No último subitem, a partir da noção de teatro de grupo correlata à formação em teatro na universidade, Gonçalves destaca o conceito de forças enunciativas centrípetas (que tendem a centralizar o poder) e centrífugas (que resistem a um poder imposto). Antes de finalizar o capítulo, entretanto, ainda discorre sobre o conceito de alteridade.

Percebemos que a distinção entre vozes do teatro na educação e vozes da educação no teatro tem caráter didático e necessário, mas uma voz não poderia ser analisada sem a outra, pois, como indica o autor, há uma “amálgama de vozes” (p.125) e os enunciados (os memoriais analisados) apontam para vozes “conversando entre si, se reconhecendo num mesmo espaço dialógico” (p.125).

A conclusão do livro é intitulada Ensaio aberto, referindo-se a prática de grupos de teatro de convidar pessoas para assistir a um ensaio, antes da estreia, e, nesse ensaio, o público é convidado à interlocução. Ao escolher esse título para as considerações finais do livro, o autor explicita que seu olhar é um dentre outros possíveis e convida o leitor a novas proposições para a criação teatral a partir da perspectiva dialógica de Bakhtin e do Círculo. Em perspectiva dialógica, “um texto, assim como uma voz, é algo que sempre chama outros, que sempre faz com que outras vozes cheguem, seja por intenção, seja por efeito. […] as vozes são múltiplas e múltiplos são os momentos e os modos em que elas se fazem ouvir” (AMORIM, 2004, p.155). O autor, à vista disso, dialogicamente convida o leitor a ouvir e se fazer ouvir do primeiro ao último ensaio do livro, da introdução às considerações finais.

Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] é uma importante contribuição aos pesquisadores interessados tanto nas Artes Cênicas (e Artes do Corpo), como em Educação e Linguagem. Essa obra, enquanto enunciado, modifica as pesquisas nessas esferas e incita novas reflexões a respeito dos campos disciplinares que propõe investigar por meio do objeto de análise: os memoriais dos alunos em formação em teatro. Ao apresentar um estudo que articula e inter-relaciona esses campos de estudo, Gonçalves nos instiga a perceber que as fronteiras entre teatro, educação e linguagem não são absolutas, mas, ao contrário, estão em diálogo – e as vozes de um campo atravessam as do outro, refletindo e refratando outras vozes discursivas.

Referências

AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Editora, 2004. [ Links ]

BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017, p.21-56. [ Links ]

BRAIT, B. Entre a cena e a pedagogia, o dialogismo. In: GONÇALVES, J. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019, p.11-15. [ Links ]

CABRAL, B. Avaliação em teatro: implicações, problemas e possibilidades. Revista Sala Preta, n.2, p.213-220, 2002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57093/60081. Acesso em: 28/02/2019. [ Links ]

DESGRANGES, F. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006. [ Links ]

ICLE, G. Pedagogia teatral como cuidado de si. São Paulo: Hucitec, 2009. [ Links ]

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório deSheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [ Links ]

Carolina Fernandes Rodrigues Fomin – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP), Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, SP, Brasil; CAPES PROSUC, Proc. 88887.314270/2019-00; https://orcid.org/0000-0001-5120-049X; [email protected].

 

Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso – MOERBECK (Topoi)

MOERBECK, Guilherme. Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso. Curitiba: Prismas, 2017. Resenha de: SILVA, Uiran Gebara. Conflito social, política e culto na Atenas de Eurípedes. Topoi v.20 n.41 Rio de Janeiro May/Aug. 2019.

O livro Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso é um importante trabalho sobre a relação da tragédia com a dimensão política e religiosa da sociedade ateniense do V a.C. Há no Brasil uma grande quantidade de estudos dedicados à poética da tragédia, mas poucos voltados para a investigação histórica por meio das tragédias, não sendo incomum que muitos dos estudantes só possam recorrer ao clássico conjunto de estudos sobre essa intersecção de Jean Pierre Venant e Pierre Vidal-Naquet.1 O autor do livro, Guilherme Moerbeck, já tem um conjunto respeitável de estudos que lida com a intersecção entre política e tragédia na Grécia Antiga. Esse conjunto de investigações se expressa em vários artigos e no livro Guerra, política e tragédia na Atenas Clássica.2 Enquanto no trabalho anterior o propósito foi perseguir a hipótese de que a relação entre política, guerra e a tragédia seria mais bem compreendida por meio da noção de “gerações”, nesta nova obra há um estudo mais interessado em Eurípedes, que põe no centro de suas preocupações a hipótese de que a dinâmica da participação política em Atenas no século V a.C. pode ser entendida como a configuração de um campo político, noção tomada de Pierre Bourdieu.

Para desenvolver essa ideia, na primeira parte do livro Moerbeck articula de maneira bastante competente uma série de questões teóricas. No primeiro capítulo, “Poder simbólico e habitus: aproximações teóricas para a análise das tragédias nas Grandes Dioni síacas”, o autor apresenta e delimita o emprego que faz da teoria dos campos (pensando a distribuição de bens simbólicos, distinções sociais e poder simbólico) e da noção de habitus (produção e reprodução e práticas no interior dos campos), ambas de Bourdieu. Seu ponto de partida é o teatro ateniense como uma prática engastada ou incrustada (seguindo a terminologia de Moses Finley), isto é, uma prática social integrada em outras práticas sociais. Como o teatro está incrustrado tanto na política quanto na religião, no segundo capítulo, “Espaço, ritual e performance na cidade das Grandes Dionisíacas”, o autor busca, por um lado, compreender a dimensão ritual do teatro em sua espacialidade na cidade de Atenas na sua relação com o festival das Grandes Dionisíacas, e, por outro, apreender as conexões com o desenvolvimento das práticas políticas atenienses entre a sua constituição democrática e sua vocação imperial. Isso resulta em intuições significativas no que diz respeito à hipótese da formação de um campo político (e talvez até mesmo de um campo artístico, associado) na Atenas do século V a.C. e ao papel do conflito social como elemento constitutivo da formação desse campo. A contraparte dessa perspectiva atenta à existência integrada das práticas sociais está nas dificuldades oferecidas pelas práticas religiosas na Antiguidade para com as interpretações modernas. O instrumental intelectual desencantado da modernidade3 tem muita dificuldade em compreender adequadamente o lugar do conflito dentro das práticas religiosas (em geral pensadas como homogeneizantes), em lidar com o grau de integração da religião com outras práticas sociais, e em pensar a força do religioso em relação ao político.

Na segunda parte do livro, Moerbeck analisa de modo sistemático duas tragédias de Eurípedes, As suplicantes e As fenícias. Aqui, ao se observar a relação do teatro ora com o campo político, ora com as práticas religiosas (um campo? O autor não o articula nesses termos), aquelas dificuldades se fazem presentes. No terceiro capítulo, “Política, posição social e guerra em As suplicantes de Eurípedes”, o autor demonstra como a recriação de Eurípedes do episódio mítico em que Teseu interfere no ciclo tebano se articula com temáticas políticas e religiosas prementes para a Atenas do V a.C. Do ponto de vista das relações da tragédia com a política, a interferência remete ao próprio debate ateniense sobre a guerra contra a Liga do Peloponeso, ainda em sua primeira fase. Aqui Moerbeck dá destaque aos significados da representação dramática do caráter democrático do governo de Teseu, com especial destaque para a configuração de um discurso de oposição à tirania e para a elaboração da voz do camponês como o representante do bom senso do conjunto dos cidadãos. Já ao observar a relação da tragédia com as práticas religiosas, a análise de Moerbeck adentra o território dos costumes enraizados em um passado distante, o pressuposto religioso por trás do tabu desrespeitado por Creonte ao não permitir o sepultamento devido dos invasores mortos no conflito entre Etéocles e Polinices. Há um conflito de contornos religiosos servindo de motivação para a ação de Atenas em Tebas, uma vez que o estatuto de Atenas e seu rei como responsáveis por zelar por esse costume na Ática é um dos elementos que entram no debate na assembleia presente na tragédia

Já no quarto capítulo, “Ambição, poder e política em As fenícias”, a tragédia que é analisada tem como conteúdo mítico episódios cronologicamente anteriores, mas foi composta posteriormente a As suplicantes. Aqui, Moerbeck reflete sobre como o conflito aristocrático entre Polinices e Etéocles, nela representado, também pode ser articulado com temáticas políticas e religiosas associadas a uma fase tardia da Guerra do Peloponeso. Por um lado, o das conexões com as temáticas políticas, o debate sobre a rotatividade de governantes e a invasão de Tebas por estrangeiros é remetido aos conflitos entre os legisladores e estrategos atenienses da última década do século V, com um papel de destaque para Alcebíades. Essa operação ilumina a dimensão sofística e demagógica dos discursos de Etéocles em favor da tirania na tragédia. Por outro, no que diz respeito às relações da tragédia com as práticas religiosas, o contexto de guerra e o imperialismo ateniense colocam em relevo os vários juramentos quebrados em As fenícias, que Moerbeck remete à problemática da recente destruição de Melos pelos atenienses e a justificativa do poder pelo poder.

Ao abordar nesses dois últimos capítulos a articulação entre esses três conjuntos de práticas sociais, Moerbeck se preocupa em não reduzir uma coisa à outra, buscando integrar da melhor maneira possível tanto as posições de Julian Gallego4 quanto as de Christiane Sorvinou-Inwood.5 O resultado da sua investigação não é transformar a tragédia em metáfora da política, nem reduzi-la a uma forma racionalizada de rituais dionisíacos, mas mostrar como essa tríplice articulação permite ver a formação do campo político em Atenas. E, por isso, o conflito social tem um papel muito importante na sua economia argumentativa. É, porém, exatamente essa centralidade do conflito social que nos reenvia às previamente mencionadas dificuldades da interpretação moderna no que tange às práticas religiosas.

Quando se trata de analisar o conflito social em termos políticos, as ciências humanas têm um instrumental teórico bastante apurado. A História, em particular, uma vez que a observação do conflito social sempre está associada às temáticas da permanência e da transformação de uma sociedade. Na investigação de Guilherme Moerbeck o conflito social com contornos políticos é, sem nenhuma surpresa, definido de várias maneiras em relação às cidades, à polis: há conflito dentro das cidades, fora das cidades, entre cidades. Nesse sentido, na análise de Moerbeck das relações entre o teatro e o campo político em formação, adentra-se numa esfera de observações que a hermenêutica moderna tende a ver como mais dinâmico no que diz respeito à observação dos conflitos sociais. Enquanto o autor busca resguardar a autonomia relativa da prática dramática, há também um esforço de interpretação da relação e do desvelamento das conexões com o conflito. Há uma dificuldade de fundo que se apresenta a interpretações desse tipo, que é o estatuto do mito recriado em cada tragédia específica, de modo que a investigação pode resultar em leituras redutoras que tratam o mito como metáfora ou alegoria do conflito social, da história. A solução de Moerbeck é pensar a própria historicidade da produção do mito (recusando tacitamente visões unitaristas do mito), preocupando-se em incluir na sua análise a diversidade de interpretações concorrentes e as reescritas do mito. Isto é feito por meio da análise tanto intra quanto extradiscursiva das duas tragédias de Eurípedes, principalmente no que diz respeito à observação dos contextos de encenação e as ambiguidades do conceito de performance (e suas implicações em termos de reprodução e criação do mito e das próprias tragédias). Assim, o conflito não é encontrado na metáfora, mas no contrapelo do texto.

A relação do teatro com as práticas religiosas cria dificuldades diferentes, pois, como já dissemos, aquela hermenêutica moderna configura o religioso como um campo mais estático: os ritos são primariamente pensados como tradição e permanência (uma derivação teórica persistente da atenção durkheimiana para com a coesão social). Aqui o risco é a redução do teatro à alegoria moral do costume tradicional, agora como rito que encena o costume. Nesse contexto interpretativo, a associação das tragédias de Eurípedes com uma moralidade pan-helênica pode levar a uma visão a-histórica dessa moralidade, ou tornar certas passagens incompreensíveis, como é o caso da nossa dificuldade em decifrar o sentido do ritual que leva ao sacrifício de Meneceu. A solução de Moerbeck é novamente pensar a produção histórica dos fenômenos, isto é, historicizar o rito.6 O tratamento dado pelo autor à dimensão espacial da produção e reprodução das relações sociais das Grandes Dionisíacas na Atenas do século V a.C. tem como resultado explicitar a interpenetração do político, do econômico e do religioso nos festivais. Outro importante resultado é que aquela moralidade pan-helênica com a qual as tragédias dialogam é vista como algo que é criado, transformado, que se consolida ou se enfraquece, isto é, em termos propriamente históricos. As tragédias de Eurípedes se revelam como um território de observação da contestação constante que se ofereceu a essa moralidade no contexto da Guerra do Peloponeso.

O lugar do religioso em meio às guerras contra os persas e à Guerra do Peloponeso remete necessariamente às regras de comportamento entre as cidades gregas nesse contexto belicoso. Do mesmo modo, a efetividade dessas regras conecta-se à efetividade da dimensão religiosa que lhes dá suporte. A análise de Moerbeck demonstra que tanto as tragédias de Eurípedes quanto a narrativa histórica tucidideana (como no caso de Mitilene e Melos) denunciam a falha sistemática em se cumprir tais regras. E, nesse sentido, uma das poucas lacunas que se pode apontar ao trabalho de Moerbeck é a de não ter explorado mais o quanto sua abordagem de historicizar essa moralidade permite colocar em questão a homogeneidade da identidade pan-helênica, uma homogeneidade que até pouco tempo era tida como consolidada nesse momento da história das cidades da Grécia. Ainda assim, seu estudo é um excelente ponto de partida para os futuros pesquisadores interessados em desenvolver essa linha de investigação.

1 VERNANT, Jean-Pierre, & VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 2005.

2 MOERBECK, GuilhermeGuerra, política e tragédia na Atenas Clássica. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.

3Cf. PIERUCCI, Antônio FlávioO desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2013.

4 GALEGO, Julian. La democracia em tiempos de tragédia: asamblea ateniense y subjetividad política. Buenos Aires: Miño y Davila, 2005.

5 SOURVINOU-INWOOD. ChristianeTragedy and Athenian religion. Lanham, MD: Lexington Books, 2003.

6Para uma colocação precisa destes problemas, cf. VERSNELL, H. S.Inconsistencies in Greek and roman Religion 2. Transition and Reversal in Myth & Ritual. Leiden: Brill, 1994.

Referências

GALEGO, Julian. La democracia em tiempos de tragédia: asamblea ateniense y subjetividad política. Buenos Aires: Miño y Davila, 2005. [ Links ]

MOERBECK, Guilherme. Guerra, política e tragédia na Atenas Clássica. Jundiaí: Paco Editorial, 2014. [ Links ]

MOERBECK, Guilherme. Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso. Curitiba: Prismas, 2017. [ Links ]

PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2013. [ Links ]

SOURVINOU-INWOOD. Christiane. Tragedy and Athenian religion. Lanham, MD: Lexington Books, 2003. [ Links ]

VERNANT, Jean-Pierre, & VIDALNAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 2005. [ Links ]

VERSNELL, H. S. Inconsistencies in Greek and roman Religion 2. Transition and Reversal in Myth & Ritual. Leiden: Brill, 1994. [ Links ]

Uiran Gebara da Silva – Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco/Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História, Recife/PE – Brasil. E-mail: [email protected].

Teoria do romance II – BAKHTIN (B-RED)

BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo. São Paulo: Editora 34, 2018. 272pp. Tradução de Paulo Bezerra, Serguei Botcharov, Vadim Kójinov. Resenha de: QUEIJO, Maria Elizabeth da Silva. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.14 n.2, São Paulo, Apr./June 2019.

O lançamento de Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo dá sequência à publicação da obra Teoria do romance (Teória romana) de Mikhail Bakhtin (1895-1975). No Brasil, a coletânea de ensaios vertida por Paulo Bezerra e publicada pela Editora 34 foi dividida em três tomos1. O primeiro volume, intitulado Teoria do romance I: A estilística, inaugura a série de publicações e encontra-se disponível ao leitor desde 20152.

O segundo volume, como indica o subtítulo, se destina à introdução e ao desenvolvimento do conceito de cronotopo literário, compreendido como espaço-tempo real assimilado pela literatura no decorrer da história. Nas palavras do autor, “o cronotopo determina a unidade artística de uma obra literária em sua relação com a autêntica realidade” (p.217). O texto, que se dedica ao gênero romance europeu, é ainda fundamental como precedente à tese de Bakhtin acerca da obra de François Rabelais, conforme anuncia Bakhtin, ele mesmo, ao final do oitavo capítulo (p.191) e na nota de rodapé 59 (p.210).

O ensaio foi escrito originalmente entre 1937 e 1939, em Saviólovo, durante os expurgos stalinistas que levaram Bakhtin ao exílio. Em 1973, dois anos antes de morrer e já em Moscou, Bakhtin dedicou-se à revisão do manuscrito. Parte desse esforço resultou no acréscimo do Capítulo 10, intitulado “Observações finais” – como bem situa a “Nota à edição brasileira”, que abre o livro, relembrada pela nota de rodapé 64 (p.217), referente ao título do capítulo. E, embora um fragmento em que trata do tempo e do espaço no romance tenha se tornado público em 1974, na então União Soviética, por meio do terceiro número do periódico Questões de literatura (Voprosy literatury), a primeira publicação do texto integral ocorreu somente alguns meses após o falecimento do autor, em 1975, pela editora Khudozhestvennaia literature, junto aos demais ensaios de a Teoria do romance.

A versão de 1975 já é conhecida pelo leitor brasileiro através da tradução direta do russo para o português de Aurora Fornoni Bernardini e outros quatro tradutores, sob o título Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (Voprosy literatury i estetichi), publicada pela Unesp/Hucitec em 1988. O tempo e a reconhecida importância dada ao texto no Brasil desde a valorosa tradução anterior justificam uma resenha cujas linhas se atenham ao cotejamento das duas versões, compreendidas por nós como acontecimentos, e, principalmente, às contribuições dadas pela nova tradução.

Assim, embora igualmente vertida diretamente do russo, a tradução realizada por Paulo Bezerra parte da edição crítica publicada na Rússia em 2012, pela editora Iazyki Slaviánskikh Kultúry. O texto integral, que incorpora correções realizadas por Bakhtin nos manuscritos e cópias datiloscritas, compõe o conjunto de Obras reunidas – organizado por Botcharov e Vadim Kójinov (1930-2001) em sete tomos, cujo primeiro foi publicado em 1997.

Das novidades proporcionadas pela recente tradução, ressaltamos o acréscimo de “Folhas esparsas para As formas do tempo e do cronotopo“, conjunto de anotações sobre ideias desenvolvidas no décimo capítulo do livro, inéditas em português, encontradas no arquivo do autor. Material precioso, no qual podemos observar facetas do processo de reflexão e construção do texto bakhtiniano em seu trabalho de revisão, trinta anos após o primeiro texto.

De tal modo, a partir da obra publicada, ainda que revisada e acrescida do décimo capítulo e das ideias esboçadas nas dez folhas de rascunhos, parece possível pensar, por exemplo, a respeito de questões que envolvem movimentos e percursos do e no pensamento bakhtiniano. Pequenas pistas de como o autor reflete acerca de seus primeiros escritos, rastreáveis no corpo do texto preparado para publicação e que emergem das anotações em trechos como este, no qual Bakhtin afirma que seu trabalho trata “do cronotopo do universo representado no romance, dos acontecimentos representados”, mas que “ainda há o cronotopo representador do autor […], e o cronotopo do ouvinte ou leitor, os cronotopos dos acontecimentos da representação e da audição-leitura” (p.238).

Ou quanto ao fragmento: “É necessário distinguir o tempo arquitetônico (o cronotopo) e o tempo composicional da narração ou da representação” (p.241), que permite pensar a discussão no conjunto da obra bakhtiniana. A relação entre a noção de arquitetônica, pensada pelo jovem Bakhtin, e a ideia de cronotopo é retomada por Paulo Bezerra no posfácio do livro. Nas palavras do pesquisador: “é aí que a antiga arquitetônica dá lugar a essa categoria como um amalgama de ‘espaço-tempo'” (p.253).

A respeito do novo sumário, destacamos a supressão do texto entre parênteses, precisamente “(Ensaios de poética histórica)” (BAKHTIN, 2002), após o título “Formas de Tempo e de Cronotopo no Romance” – “As formas do tempo e do cronotopo no romance”, na versão mais recente. No texto introdutório de Bakhtin, no entanto, “poética histórica” está presente nos subtítulos de ambas versões. A diferença fica pelo uso do plural na publicação anterior, “Ensaios de poética histórica” (BAKHTIN, 2002, p.211), em comparação ao uso do singular, “Um ensaio de poética histórica” (p.11), na publicação mais recente. De qualquer forma, a supressão no sumário não diminui a importância da poética histórica de Bakhtin para o tradutor, que a discute em “A poética histórica” (p.261), parte de seu posfácio.

A respeito da diferença entre os títulos dos capítulos, no título do Capítulo 6, onde se lia “trapaceiro” agora se lê “pícaro”, assim como no decorrer do texto. O título do Capítulo 7 difere, de “O cronotopo de Rabelais” para “O cronotopo rabelaisiano”; “de Rabelais” é igualmente substituído por “rabelaisiano” no título do Capítulo 8. No texto, nota-se também a estabilização de alguns termos que, mais que palavras, operam como conceitos-chave no pensamento bakhtiniano. É o caso da substituição de “autor em pessoa” (BAKHTIN, 2002, p.276 – na versão anterior) por “autor pessoa” (p.111 – na mais recente).

Em relação às notas de rodapé, a tradução anterior conta com oitenta e oito – entre notas de rodapé do autor, do tradutor, do editor e notas não especificadas. Sobre essas últimas, veja-se, por exemplo, os créditos à primeira nota constante nas duas traduções (BAKHTIN, 2002, p.211 – na versão anterior; p.11 – na mais recente), referentes ambas a uma palestra ministrada por Aleksei Ukhtómski sobre cronotopo na biologia e sobre questões de estética. Na versão anterior, não há qualquer indicação a respeito do autor da nota como há, por exemplo, na nota de rodapé 61 dessa mesma versão (BAKHTIN, 2002, p.316). Através da nova tradução, tornou-se possível identificá-la como nota do autor, tendo sido ainda complementada por uma esclarecedora nota do tradutor a respeito do palestrante. Ao mesmo tempo, a opção pela unificação da numeração referente às notas de rodapé, que antes era feita por capítulos, facilita a leitura e possíveis retomadas que se façam necessárias. Assim, embora o texto principal da presente tradução apresente menos notas de rodapé, ao todo setenta e cinco notas, destaca-se a forma como estão organizadas.

Além da primeira nota já mencionada (dividida entre autor e tradutor), há outras quatorze notas do autor e sessenta notas do tradutor. As notas de rodapé do tradutor vão além de explicações sobre o emprego de uma palavra ou de outra, ou sobre a tradução utilizada como fonte, oferecendo subsídios primorosos que contextualizam e detalham diversos aspectos da obra.

Os cuidados do tradutor, cujos conhecimentos não deixam de fora a teoria bakhtiniana, longe de serem meros preciosismos, visam assegurar que o texto vertido esteja em consonância com a perspectiva dialógica. Nesse sentido, um ganho importante da nova tradução diz respeito aos trechos de outros autores citados por Bakhtin no decorrer do livro, sobretudo os que compõem sua análise3. A começar pelas eventuais adaptações em relação às traduções em língua portuguesa consultadas – conforme a nota de rodapé 33 (p.125), referente ao Gargântua e Pantagruel de François Rabelais, por exemplo, bem como a nota 13 (p.56), referente ao Asno de ouro de Apuleio. Na nota referente à obra de Apuleio, o tradutor acrescenta que tais modificações visam acomodar a análise proposta por Bakhtin, adequando e atendo o texto citado aos propósitos do autor russo, sem com isso deturpá-lo de seus sentidos originais.

Quanto à análise de Gargântua e Pantagruel, aqueles que já leram Questões de literatura e de estética: a teoria do romance devem notar que em Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo, os trechos da obra de Rabelais encontram-se não mais em francês, mas em português, o que torna o texto mais acessível ao público brasileiro, em especial aos que não dominam a língua francesa. Além disso, as diferenças em relação às citações abrem uma porta de diálogo entre os próprios trechos citados, isto é, entre os conservados no original e os recolhidos por Paulo Bezerra na versão traduzida diretamente do francês para o português4.

No prefácio da edição revista de Problemas da Poética de Dostoiévski, outra importante obra de Bakhtin também vertida por Paulo Bezerra, o tradutor discute implicações para a compreensão do pensamento bakhtiniano decorrentes de excertos de Dostoiévski retirados de traduções indiretas do russo. Nesse sentido, as traduções indiretas deram margem a equívocos e imprecisões, justificando a necessidade de substituí-las na ocasião de revisão. Paulo Bezerra ainda afirma nesse prefácio que a tradução direta permite “recriar o espírito da obra na linguagem mais próxima possível do original”, ao mesmo tempo que possibilita “uma compreensão muitíssimo mais ampla e profunda das peculiaridades da teoria bakhtiniana” (BEZERRA, 2010, p.VI). Assim, o rigoroso trabalho empreendido pelo tradutor nos garante uma melhor compreensão da teoria bakhtiniana, agora também através de Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo.

Ao final do volume, acrescenta-se valioso posfácio já referido, intitulado “Uma teoria antropológica da literatura”, em que Paulo Bezerra nos oferece quinze páginas nas quais emoldura o texto que as precede. O título do posfácio, per se, instiga o leitor a pensar sobre o texto que acaba de ler (ou que pretende ler, nos casos em que o leitor folheia as páginas do volume antes de mergulhar no texto).

Bezerra, em sua discussão, nos recorda as influências de Einstein e Kant para o conceito de cronotopo bakhtiniano, mas também dá os devidos créditos ao biólogo russo Aleksei Ukhtómski – aquele palestrante mencionado pelo próprio Bakhtin em sua primeira nota (p.11) – pela aproximação da noção de cronotopo às questões de estética. Na primeira parte, intitulada “A construção de um conceito”, o tradutor nos brinda com a citação traduzida de um trecho transcrito da palestra do biólogo e aponta as diferenças entre os pensamentos desenvolvidos por Bakhtin e Ukhtómski.

Paulo Bezerra, ainda na primeira parte, situa a ideia de cronotopo no conjunto da obra bakhtiniana anterior e posterior às reflexões constitutivas de tal conceito, como a referida relação entre a noção de cronotopo e de arquitetônica, enquanto na segunda parte do posfácio, “Lapidando o conceito: ‘Observações finais'”, discute o décimo capítulo da obra. Na também já aludida terceira parte do estudo posfacial, “A poética histórica”, o autor trata das mudanças do tempo num determinado espaço, retomando outra noção cara a Bakhtin, a de grande tempo, a partir da qual podemos refletir sobre “a evolução, as mudanças e alternâncias dos diversos cronotopos à luz das novas realidades históricas e culturais que se alternam nos diferentes enredos literários” (p.262), sem que tais passagens signifiquem mera sequencialidade, linearidade ou progressismo.

A quarta e última parte, intitulada “O cronotopo além da literatura”, ressalta as diferentes áreas que hoje mobilizam o conceito bakhtiniano de cronotopo na Rússia, demonstrando a riqueza do conceito. Nas orelhas do livro, Samuel Titan Júnior, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo – USP, além de nos proporcionar uma bela metáfora fluvial a respeito da obra, reitera a ideia de estarmos diante de “um livro absolutamente singular, que ultrapassa qualquer categoria predefinida”.

Paulo Bezerra, além de tradutor, é docente, pesquisador e crítico. Em sua carreira foi professor na Universidade de São Paulo – USP, Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Universidade Federal Fluminense – UFF, instituição na qual se aposentou e onde ainda hoje leciona como professor de teoria literária. Seu vasto trabalho de tradução compreende mais de quarenta obras em diferentes campos das ciências humanas, incluindo respeitáveis traduções de títulos como Crime e Castigo e Irmãos Karamázov de Dostoiévski, igualmente publicados pela Editora 34.

De Bakhtin, verteu os já apontados Problemas da Poética de Dostoiévski e Teoria do romance I: A estilística, bem como Estética da criação verbalOs gêneros do discurso e Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Além de O freudismo: um esboço crítico, publicado no Brasil sob a assinatura de Bakhtin, mas cuja autoria é atribuída a Volochínov. Assim, o leitor de Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo conta com um trabalho cujo tradutor é, além de professor de teoria literária e profundo conhecedor da cultura e língua russa, um pesquisador comprometido com a teoria bakhtiniana.

Desde 2013, a Editora 34 – que vem desempenhando papel fundamental no campo editorial, contribuindo muito aos estudos bakhtinianos – já publicou outras cinco obras do Círculo com o mesmo rigor com que apresenta o volume em questão. A atualidade das traduções, consonantes com as discussões internacionais, tornam cada nova obra uma necessária referência. Além disso, muitos autores mobilizados por Bakhtin, inclusive nos seus estudos acerca do cronotopo, são dados a conhecer ou melhor conhecidos pelo público brasileiro através da Coleção Leste. Da mesma editora, a coleção reúne obras traduzidas diretamente do russo de escritores como Dostoiévski, Gógol, Tolstói, Púchkin, Turguêniev e Tchekhov, vertidos para o português por tradutores renomados como Paulo Bezerra, mas também Boris Schnaiderman.

Quando se trata do Círculo, e em especial desse volume em que Bakhtin se dedica ao conceito de cronotopo, não podemos ignorar todos os espaços-tempos reais envolvidos nos anos e lugares que separam o escrito original das diferentes versões e publicações na antiga União Soviética e, mais recentemente, na Rússia. Tampouco desconsiderar as questões espaço-temporais compreendidas pelas duas traduções brasileiras, que diferem nos textos utilizados como fontes e escolhas tradutórias, entre outros aspectos. Pensamos, assim (e ao menos), nos diferentes contextos de produção e recepção, bem como nos anos, quilômetros, limitações, possibilidades, processos históricos e culturas que separam cada um dos diferentes textos.

Além de todos esses aspectos, buscamos não perder de vista as tantas mudanças desses espaços no decorrer do tempo, bem como tudo o que se conheceu e produziu a respeito de Bakhtin e do Círculo nas últimas décadas – quando se trata das traduções brasileiras, estamos falando de um intervalo de exatos trinta anos entre a versão coordenada por Aurora Fornoni Bernardini e a de Paulo Bezerra. Afinal, como discute Bakhtin, “a nós se apresenta um texto, que ocupa um lugar definido no espaço, ou seja, é localizado, mas a sua criação, o conhecimento que adquirimos dele fluem no tempo” (p.229-230), pois ele é aberto, voltado para o exterior. Portanto, “o material da obra não é morto, mas falante, significante (ou sígnico), não só o vemos e tateamos como sempre ouvimos vozes nele” (p.229).

Nesse sentido, a publicação de Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo é, sem dúvida, um acontecimento, indispensável nesse diálogo alçado ao grande tempo. No mais, acreditamos que muitas são as contribuições a partir das distâncias e aproximações entre versões, o que, se bem conduzido, enriquece dialogicamente o próprio campo de estudos bakhtinianos, sobretudo se as diferentes traduções disponíveis ao público brasileiro forem postas em relação como em um metafórico encontro e sob diferentes pontos de vista.

1Em razão de uma decisão editorial e de tradução, com anuência de Serguei Botcharov (1929), herdeiro vivo dos direitos autorais de Bakhtin.

2Sobre o primeiro volume, ver a resenha de Adriana Pucci Penteado de Faria e Silva (2015).

3Cabe realçar que a preferência pelo uso de traduções diretas do original para o português em relação aos trechos citados por Bakhtin vai além das obras analisadas, como é o caso das linhas referentes à Cursos de estética de Hegel, retiradas da tradução feita diretamente do alemão para o português.

4Ou ainda, diferenças quanto aos trechos citados que independem da língua. A título de exemplo, em comparação com a versão coordenada por Aurora Fornoni Bernardini, a tradução de Paulo Bezerra inclui um trecho que expande a citação sobre o espancamento dado pelo monge Jean (frei Jean, na versão anterior).

Referências

BAKHTIN, M. Formas de tempo e de cronotopo no romance (ensaios de poética histórica). In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernadini et al. São Paulo: Hucitec; Annablume, 2002, p.211-362. [ Links ]

BEZERRA, P. Prefácio. In: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução por Paulo Bezerra. 5. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. [ Links ]

FARIA E SILVA, A. BAKHTIN, M. Teoria do romance I. A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. 256p. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, v.11, n.1, p.234-239, Jan./Abr. 2016. Disponível em: [http://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/24424/18223]. Acesso em: 05 dez. 2018. [ Links ]

Maria Elizabeth da Silva Queijo – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem – LAEL, São Paulo, SP, Brasil; CNPq n. 168996/2018-9; https://orcid.org/0000-0002-7459-0360; [email protected].

Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930) – ABREU (Tempo)

ABREU, Martha. Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930). Campinas: Editora Unicamp, 2017. 462 p.p. (Coleção Históri@ Ilustrada). Resenha de: SOUZA, Sívia Cristina Martins. Canções escravas, trânsitos musicais atlânticos e racismo nas Américas. Tempo, v.25 n.1 Niterói jan./abr. 2019.

Os estudos sobre escravidão no Brasil passaram por transformações significativas a partir dos anos 1980, fruto do diálogo travado com uma historiografia internacional renovada, mas também impulsionados pelo fortalecimento dos movimentos negros; pelas ações públicas de combate ao racismo; pela compreensão sobre as lutas políticas, sociais e raciais; e pela disseminação das noções de diversidade cultural e racial. Essa historiografia desde então tem investido no enfrentamento de alguns desafios, entre uma série de outros: o de mostrar que os debates sobre as expressões culturais não podem prescindir de entender os embates sobre a questão racial nelas contidos, bem como a necessidade de denunciar as falácias contidas em mitos, visões e modelos interpretativos que por muito tempo deram o tom dos trabalhos nesta área.

Se os anos 1980 são referenciais para os estudos sobre escravidão, os anos 2000 marcam a emergência dos estudos sobre o pós-abolição e a constituição de um campo historiográfico que apresenta peculiaridades, apesar de sua íntima e reconhecida relação com a história social da escravidão e do processo de abolição.

Os diálogos travados entre a historiografia norte-americana e a brasileira sobre a escravidão e o pós-abolição não são recentes, mas tomaram rumos diferentes nas últimas décadas, em decorrência de algumas constatações. Entre elas destaca-se o reconhecimento de que, a despeito das especificidades dos sistemas escravistas e dos processos de abolição nos Estados Unidos e no Brasil, existem conflitos e experiências dos escravizados e libertos nas Américas que podem ser aproximados, desde que utilizadas metodologias e fontes adequadas, o que significa admitir a impossibilidade de pensar a diáspora africana a partir de histórias isoladas ou desconectadas.

Tal percepção tem ensejado um retorno às abordagens comparativas que já haviam alimentado alguns debates sobre instituições, culturas e organizações sociais nos anos 1940 e 1970, mas foram negligenciadas com a rejeição dos estudos dessa natureza pela historiografia norte-americana e, na historiografia latino-americana, pela concentração em estudos locais (Klein, 2012, p. 95).

A busca por novos procedimentos de análise para pensar problemas, definição de objetos de pesquisa e modos narrativos tem levado os historiadores a questionar a eficiência da própria História Comparada no seu projeto de superação dos limites da perspectiva nacionalista. A necessidade de considerar a nação mais um (e não o mais importante) fenômeno a ser elucidado, e as comparações entre nações mais como temas do que como métodos, tornou-se um objetivo perseguido em trabalhos desenvolvidos em diferentes perspectivas, tais como as Histórias Atlânticas, as Histórias Globais, as Histórias Conectadas, as Histórias Cruzadas e as Histórias Transnacionais (Barros, 2014, p. 280).

Analisar as identidades negras culturalmente híbridas e dinâmicas da diáspora, construídas a partir da memória do trauma original da escravidão e dos desdobramentos do pós-abolição com suas vivências de violência racial e racismo, é o objeto do trabalho referencial de Paul Gilroy intitulado O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência (2001). No prefácio à edição brasileira dessa obra, Gilroy sugere que o conceito de Atlântico Negro muito teria a ganhar se a ele fossem incorporados o Atlântico Sul e suas múltiplas configurações culturais (Gilroy, 2001, p. 16).

Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930), o mais recente livro de Martha Abreu, é uma resposta muito bem-sucedida a esse desafio. Trata-se de um trabalho que abre novas possibilidades para os estudos das culturas e identidades negras no Brasil, em diálogo com os Estados Unidos, e insere o nome de sua autora de maneira definitiva numa historiografia de perspectiva atlântica ao lado de nomes como Micol Seigel, Denis-Constant Martin, Robin Moore, Sarah Merr, David Guss, Astrid Kusser e Kazadi wa Mukuna, entre outros.

O livro de Martha Abreu é um dos frutos dos caminhos trilhados por uma historiadora que elegeu as manifestações culturais populares como seu local de sondagem do mundo. Suas escolhas a conduziram por uma trajetória que, em suas próprias palavras, a transformou de “uma historiadora da festa e da cultura popular em uma historiadora do legado da canção escrava, do racismo no campo musical e cultural e dos caminhos construídos pelos músicos e artistas negros para enfrentá-lo e subvertê-lo”. Nesse percurso, Da senzala ao palco emerge como um ponto alto na produção de uma intelectual que tem contribuído com perspectivas inovadoras aos debates sobre a dinâmica das culturas e identidades negras atlânticas tanto na academia, como professora e pesquisadora, quanto na História Pública, nos projetos e ações relacionados a comunidades quilombolas e jongueiras e na transformação de suas memórias do cativeiro e da liberdade em luta contra o racismo, pelo direito à terra, pela igualdade e pela justiça.

O livro é o terceiro volume da Coleção Históri@ Ilustrada, publicada pela Editora Unicamp, fruto do trabalho de pesquisadores vinculados ao Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (IFCH/Unicamp), do qual Martha Abreu participa desde a criação. O texto encontra-se disponível em dois formatos digitais: ePUB3 (com links internos para acesso a imagens, áudio e vídeo) e ePUB2 (com links internos para acesso a imagens e externos para áudio e vídeo). Com isso, Da senzala ao palco não apenas atinge um público amplo como também seus leitores têm a oportunidade de acessar 200 imagens, quase 50 fonogramas e 5 vídeos. Paralelamente ao livro, foi produzido um vídeo de 10 minutos intitulado Canções escravas e racismo nas Américas, que com ele dialoga, ajuda a divulgá-lo e pode ser utilizado por professores nas escolas e no ensino de História.1

Utilizando-se de um rico corpus documental e de uma vasta bibliografia especializada, a autora enfrenta basicamente quatro grandes questões ao longo de seu texto: os trânsitos internacionais, as canções escravas no mundo do entretenimento, as ações dos músicos negros e as construções do racismo no campo musical.

O objetivo central do livro é elaborar uma análise que aproxime as experiências de músicos negros e diferentes produtores e divulgadores das canções escravas nos Estados Unidos e no Brasil, no período que abrange de 1870 a 1930, a partir de problemas e fontes comuns e equivalentes. Sua intenção é, contudo, menos a de reforçar as evidentes diferenças entre os dois países, e mais destacar diálogos e aproximações nas formulações e experiências dos músicos negros e sobre música negra nas Américas. Trata-se, como se pode perceber, de uma história das expressões musicais da cultura negra escrita numa perspectiva atlântica que amplia os estudos sobre o pós-abolição ao sul do equador.

Cultura negra é um conceito central para a obra, embora não seja pensado ou utilizado pela autora como fechado e definitivo, mas enfrentado no seu próprio fazer historiográfico, através do uso das fontes e da metodologia. Ele remete às expressões culturais protagonizadas por afrodescendentes nas Américas e contém em seu âmago as noções de diáspora e desterritorialização por meio de estruturas transnacionais criadas e desenvolvidas na modernidade e marcadas por um sistema de comunicações permeado por fluxos e trocas culturais. Cultura negra é, portanto, um conceito que possibilita colocar em campo diferentes sujeitos sociais e diversas expressões e representações artísticas numa arena de conflitos. Ele indica, também, a intenção de questionar os estudos culturais marcados por perspectivas etnocêntricas e uma oposição à noção de que a cultura sempre flui em padrões que correspondem às fronteiras do Estado-nação.

Canções escravas ou “sons do cativeiro”, termos tomados de empréstimo a Shane e Graham White (White e White, 2005, p. ?), são expressões que não devem levar à falsa impressão de que a obra se dedica à escuta da sonoridade ou das formas musicais e estilísticas africanas presentes nas Américas, como esclarece Martha Abreu já nas páginas iniciais do livro. Entendidos como resultado da combinação de música, verso e dança, Canções escravas ou “sons do cativeiro” são termos alternadamente utilizados no livro para nomear as invenções musicais dos descendentes de africanos trazidos como escravos para o continente americano, as quais ganharam visibilidade e aceitação por meio da ação de músicos negros e de uma complexa rede de agentes que alimentou um cobiçado mercado musical que movimentava negócios de impressão e venda de partituras, espetáculos teatrais e indústria fonográfica. Vistas a partir desse ângulo, as canções escravas são decorrência de trânsitos e interações, tanto nacionais quanto transnacionais, e abrangem diferentes atores sociais, ainda que protagonizadas por músicos e atores negros.

Entre as principais fontes utilizadas por Martha Abreu, destacam-se textos de intelectuais que se preocuparam em entender e avaliar as “influências” dos africanos nas músicas e danças populares e nacionais, gravações fonográficas e, sobretudo, partituras musicais comercializadas em lojas de vendas de partituras, pianos, fonógrafos e discos, impressas pelas muitas editoras musicais existentes na ocasião. É digna de nota, nesse sentido, a análise minuciosa e instigante da autora sobre um extenso e significativo conjunto de capas de partituras cujas temáticas, títulos, gêneros, formas musicais e/ou ilustrações apresentam referências que remetem ao passado e às memórias do cativeiro, bem como a estereótipos e cenas racistas identificados com a população afro-americana no pós-abolição.

O livro organiza-se em nove capítulos abundantemente documentados – alguns deles anteriormente publicados em revistas especializadas (os de número 7, 8 e 9), mas modificados para essa publicação -, nos quais a autora aborda uma ampla pauta de questões. Entre elas encontram-se as experiências de músicos negros e destes com diferentes sujeitos envolvidos na produção e divulgação das canções escravas que alimentaram os trânsitos atlânticos no sentido Norte-Sul e vice-versa; as apropriações de gêneros, ritmos e formas musicais relacionados com africanos por músicos de formação erudita; as dimensões políticas das expressões musicais ligadas ao passado escravista; as experiências sociais e vivências de diferentes formas de racismo que aproximam as culturas negras e seus agentes; os significados das canções escravas para diferentes sujeitos negros, como os artistas Eduardo das Neves e Bert Williams e intelectuais acadêmicos como Coelho Netto e Du Bois; as aproximações entre as figuras de personagens como Pai João, Uncle Tom, Uncle Remus e Sambo, presentes na indústria fonográfica e na literatura popular, bem como as conexões transnacionais de gêneros musicais identificados e protagonizados por músicos negros, como o maxixe, que foi rapidamente assimilado nos Estados Unidos em função das suas proximidades com o cakewalk.

A leitura não é operação desprovida de sentido, pois quem lê busca significados, recorre a significantes, ritmos e formas e, nesse movimento, influenciam-se os modos de sentir, pensar e agir. Ao terminar a leitura do livro de Martha Abreu, o leitor provavelmente terá a sensação de ver abaladas determinadas certezas a respeito de algumas interpretações tradicionais sobre nosso passado musical ao constatar que elas não dão conta de um quadro muito mais rico e complexo.

São consideráveis, por exemplo, as contribuições do livro para se repensar determinadas versões sobre a história da música no Brasil, construídas com base nos marcos nacionalistas dos anos 1920 e 1930 ou na política cultural dos governos Vargas. E isso porque as discussões sobre as canções escravas nele presentes evidenciam quanto as manifestações musicais ditas nacionais só se sustentam e legitimam em contatos transnacionais por meio dos quais dialogam em termos referenciais, de elementos humanos e obtêm reconhecimento cultural. Nesse sentido, pode-se dizer que o livro de Martha Abreu nos mostra o tanto de transnacional que contém a noção de música nacional.

O leitor também perceberá quanto o campo musical foi um espaço minado, poroso e permeado por tensões e conflitos nos quais se travaram disputas em torno das representações dos descendentes de africanos e de seu patrimônio cultural e de como eles foram sujeitos ativos nesse processo. Coube a eles ampliar e redefinir discussões acerca das culturas nacionais, dos gêneros musicais, do legado da escravidão e das experiências do racismo que se reconstruíam em diferentes campos da indústria cultural no pós-abolição.

Por fim, mas não em último lugar, o livro oferece argumentos bastante consistentes para questionar visões que tradicionalmente polarizaram as relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos entre mestiçagem, de um lado, e segregacionismo, de outro. Martha nos mostra como existem variantes, mediações e matizes que não podem ser desconsiderados em análises que objetivem romper com interpretações dicotômicas e generalizantes, que pouco contribuem para melhor conhecer um fenômeno bastante complexo, tanto para o Atlântico Norte, quanto para o Sul.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, José D’Assunção. Histórias cruzadas: considerações sobre uma nova modalidade baseada nos procedimentos relacionais. Anos 90 (Porto Alegre), v. 21, n. 40, dez. 2014. [ Links ]

GILROY, Paul.O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001. [ Links ]

KLEIN, Herbert S. A experiência afro-americana numa perspectiva comparativa: situação atual do debate sobre a escravidão nas Américas. Revista Afro-Ásia (Salvador), n. 45, 2012. [ Links ]

WHITE, Shane; WHITE, Graham. The sounds of slavery: discovering African American history through songs, sermons and speech. Boston: Beacon Press, 2005. [ Links ]

1 O vídeo pode ser acessado em: <https://www.youtube.com/watch?v=agZPb-uEVto>

Sílvia Cristina Martins Souza – Universidade Estadual de Londrina – Londrina(PR) – Brasil. E-mail: [email protected].

 

Calibã e a bruxa – FEDERICI (Topoi)

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax, São Paulo: Elefante, 2017. I Tomo, Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017, 194p.p. Resenha de: REIS, Marcus. A normatização dos corpos e a regulação dos gêneros no processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Topoi v.19 n.39 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018.

Calibã e a bruxa não é um livro que foge aos debates atuais envolvendo o movimento feminista. O fato de a tradução desta obra para o português ter sido encabeçada justamente por um “Coletivo”, o Sycorax, demonstra o alcance desse trabalho para além do contexto estadunidense. A proposta de Silvia Federicié clara ainda na introdução de sua obra, afirmando seu desejo em “esboçar a história das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo” como modo de explicar a relação entre essa história e a exploração decorrente desse processo. Por outro lado, não se desvincula dos primeiros momentos em que o feminismo se posicionou contrariamente ao status quo, ainda que a publicação original seja de 2004.

Não há, ressalte-se, um apego ao anacronismo por parte de Silvia Federici, como se o conceito de gênero fosse utilizado para enxergar as raízes do feminismo na Época Moderna. A originalidade de sua obra consiste em se preocupar não apenas com a multiplicidade que o conceito de mulher possui, mas principalmente com os espaços sociais distintos e atrelados ao fenômeno sobre o qual a autora se debruça. É nesse sentido que Federici parte para o uso em plural da ideia de mulher, assumindo, no âmbito de seu trabalho, o entendimento de que as práticas capitalistas são essenciais para perceber como as relações sociais em que as mulheres se inseriram estiveram marcadas por um contexto de exploração (p. 27).

Há, também, a preocupação em discutir os conceitos de caráter marxista antes mesmo de operacionalizá-los, como a noção de acumulação primitiva. Ao tratar dessa noção, a autora a articula ao objetivo central de sua obra, a “caça às bruxas”, afirmando que esse fenômeno, seja no mundo europeu ou no Novo Mundo, “foi tão importante para o desenvolvimento do capitalismo quanto a colonização e a expropriação do campesinato europeu de suas terras” (p. 26). É nesse objetivo que, aliás, Federici destaca seu distanciamento das análises de Marx na medida em que o autor, a seu ver, negligenciou a participação das mulheres no contexto da acumulação primitiva. Se Marx “tivesse olhado sua história {do capitalismo} do ponto de vista das mulheres” (p. 27), não teria afirmado que o capitalismo prepararia o caminho para a libertação do proletariado. É, portanto, na tentativa de ampliar a ótica marxista ao atrelá-la à categoria de gênero que seu trabalho se insere, dividindo-se em cinco capítulos.

Seu primeiro capítulo, intitulado “O mundo precisa de uma sacudida”, parte essencialmente da discussão voltada ao surgimento dos Estados Absolutistas, iniciando o debate ainda no contexto da Baixa Idade Média, caracterizada pelas relações de servidão e seus conflitos. No campo das relações de gênero, a contribuição da autora reside no interesse em atrelar o surgimento desses Estados a uma forte política de regulação dos sexos, dos papéis sociais que homens e mulheres deveriam cumprir, apontando para o forte revés sofrido pelas mulheres por conta da legalização do estupro. O resultado disso, para além da degradação da honra feminina, foi o fato de que essa legalização “insensibilizou a população frente à violência contra as mulheres, preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período” (p. 104).

“A acumulação do trabalho e a degradação das mulheres” confere título ao segundo capítulo da obra de Federici, acompanhando a lógica que finalizou o capítulo anterior, atrelando a emergência dos Estados Absolutistas à maior degradação social das mulheres e à emergência de uma nova feminilidade. É nesse espaço de discussões que, por exemplo, a autora retoma o conceito de acumulação primitiva. Ao defender a hipótese de que esse conceito não diz respeito apenas a uma “acumulação e concentração de trabalhadores exploráveis e de capital”, a autora o entendeu como contexto de reformulação das relações de trabalho a partir da sujeição das mulheres. No entender de Federici, esse contexto contribuiu para o processo de ressignificação das funções sociais prescritas às mulheres, que teria atingido seu auge no século XIX “com a criação da dona de casa em tempo integral”, na medida em que à figura feminina coube exclusivamente o papel de reprodutora, distanciando-a da vida pública por conta da nova divisão sexual do trabalho.1

É também nesse segundo capítulo que a autora passa a apresentar com mais clareza sua hipótese central de trabalho: o fenômeno de caça às bruxas corresponderia à maior derrota sofrida pelas mulheres na medida em que teria culminado no surgimento de um novo modelo de feminilidade. As mulheres seriam, assim, destituídas do universo público, relegadas ao papel de reprodutoras, esposas, viúvas ou prostitutas, ficando, por fim, distantes das “relações coletivas e {dos} sistemas de conhecimento que haviam sido a base do poder das mulheres na Europa pré-capitalista” (p. 187). Desse modo, até finais do século XVII o que predominou foi um novo “cânone cultural”, encarando as mulheres como “selvagens, mentalmente débeis, de desejos insaciáveis, rebeldes, insubordinadas, incapazes de se controlarem”.

Seu terceiro capítulo, “O grande calibã”, analisa como esse processo de disciplinamento dos corpos direcionado às mulheres foi colocado em prática ao longo da Época Moderna, já que, no capítulo anterior, a autora discutiu as bases que permitiram o avanço dessa estrutura normativa. Esse novo contexto foi caracterizado pela dicotomia da “Razão e as Paixões do Corpo”. Como pano de fundo desse binômio, enxergou a emergência de uma “engenharia social” interessada em reinterpretar as funções do corpo e inseri-lo numa nova lógica em que este foi encarado como fonte de todos os males. Sob a filosofia mecanicista, interessada amplamente em destrinchar as funções corporais, Federici percebeu como o controle da classe dominante sobre o mundo natural se deu progressivamente até culminar no “controle sobre a natureza humana”. Como consequência, ocorreu a morte do conceito de corpo enquanto receptáculo de forças mágicas, amplamente difundido ao longo do Medievo. Aqui, sentimos falta de uma reflexão mais atenta à diversidade documental do período. Nesse sentido, em que medida essa morte de fato teria ocorrido nos séculos XVI e XVII se tomássemos por base as narrativas presentes nos processos dos diversos tribunais do Santo Ofício, e não somente os tratados da época?

Outro argumento empregado por Federici baseia-se no crescente interesse da burguesia em desclassificar a magia, encarando-a como principal entrave para o disciplinamento social e, por consequência, do trabalho. Esse ataque aos indivíduos que se valiam do sobrenatural como forma de resposta às demandas cotidianas, foi, inclusive, um dos principais alicerces para que os Estados investissem na perseguição contra a magia, resultando no fenômeno que é base do trabalho da autora. Disciplinar o corpo esteve, portanto, diretamente relacionado à desconstrução da magia, ambas tornando-se “laboratório no qual tomou forma e sentido a disciplina social” (p. 261).

Seu penúltimo capítulo, “A grande caça às bruxas na Europa”, busca, em sua essência, confirmar que o fenômeno da caça às bruxas foi resultado de um processo planejado e encabeçado pelas diversas estruturas de poder, maiormente Igreja e Estados, a fim de levar adiante um disciplinamento social em que as mulheres foram subjugadas.2 Foi, portanto, “iniciativa política”,3 com forte atuação da Igreja Católica por fornecer o “arcabouço metafísico e ideológico” que sustentou as perseguições a partir do século XVI. Além disso, tais perseguições devem ser vistas como uma reação à resistência das mulheres contra as relações capitalistas que ressignificaram a feminilidade. Por fim, esse fenômeno foi instrumento de construção de uma ordem patriarcal que criou modelos de feminilidade prescritos às mulheres, tornando seu “trabalho, seus poderes sexuais e reprodutivos” a serem controlados pelos Estados, segundo a forma de força de trabalho defendida pela burguesia. Se pensarmos numa síntese do que foi esse fenômeno, segundo Federici, poderíamos dizer que a caça às bruxas foi “uma guerra contra as mulheres; {…} uma tentativa coordenada de degradá-las, demonizá-las e destruir seu poder social {…} onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade” (p. 334).

O derradeiro capítulo, “Colonização e cristianização”, se debruça na extensão que o fenômeno da caça às bruxas adquiriu no Novo Mundo. A autora defende que a abrangência desse fenômeno para além do espaço europeu foi motivada pelo interesse das autoridades em utilizá-lo como ferramenta capaz de minar a “resistência anticolonial e anticapitalista” e levar adiante o interesse exploratório. Seu foco se direcionou basicamente ao contexto da América espanhola, percebendo similaridades com o processo de definição da bruxaria no âmbito europeu, como no perfil das mulheres que foram acusadas por esse delito no espaço americano: “as mulheres se converteram nas principais inimigas do domínio colonial, negando-se a ir à missa, a batizar seus filhos, ou a qualquer tipo de cooperação com as autoridades coloniais e os sacerdotes” (p. 402). Tal qual na Europa, a perseguição se direcionou ao combate de práticas e crenças heterodoxas ao catolicismo bem como às revoltas contra o sistema dominante, neste caso, colonialista.

Ao conferir protagonismo a um “sistema em que a vida está subordinada à produção de lucro” (p. 35), o que implica na imposição da violência, a autora acaba por privilegiar sua análise a partir de uma estrutura hegemônica. E, talvez, seja no excessivo olhar estruturante de sua obra que as análises empreendidas por Federici perdem força, principalmente em relação a outros campos de discussões associados ao fenômeno estudado.4 Perde-se a avaliação precisa do peso das práticas encabeçadas pelas mulheres como resultado da própria crença dessas mulheres na sua capacidade de dialogar com o sobrenatural. Ao enxergar nas práticas heréticas protagonizadas por elas ao longo da Baixa Idade Média como exemplos claros de uma verdadeira “revolução sexual”, a autora cai no risco de desconsiderar que, por vezes, essas mesmas mulheres, ao ingressarem no universo do sobrenatural, almejavam apenas a manutenção de seus casamentos, sem que a estrutura normativa fosse colocada em xeque.5

Mesmo ao chamar o “Novo Mundo” para o debate, relacionando-o ao contexto de perseguição à feitiçaria, a autora não se descola de um olhar homogeneizante, como ao considerar o período de 1580 a 1630 como ápice da “caça às bruxas”. Se partirmos para a América portuguesa, espaço que é negligenciado em sua obra, é possível perceber que, mesmo no século XVIII, os índices de denúncias e processos promovidos pela Inquisição portuguesa por esse delito são elevados, até maiores que os números relativos ao século XVI.6

Mesmo nesse século, as realidades são diversas quando comparamos regiões distantes, ainda que seja possível identificar algumas coerências nos argumentos da autora. No contexto inglês, Federici enxerga uma relação intrínseca entre o elevado número de acusações contra supostas feiticeiras em Essex e a grande quantidade de terras cercadas nessa região. O mesmo vale quando a autora, concordando com Henry Kamen, estabelece um paralelo entre as graves crises econômicas e o avanço da perseguição à bruxaria, já que muitas mulheres participaram das revoltas como protagonistas. No entanto, a imprecisão existe quando outros contextos são comparados, como em Portugal, em que a realidade é outra. Conforme apontou Francisco Bethencourt, nesse espaço, a figura da mulher, pobre e marginalizada socialmente, pouco apareceu nos processos da Inquisição lusitana.7

Por fim, outro importante debate historiográfico no qual se insere Calibã e a bruxa diz respeito ao entendimento da autora de que a misoginia, juntamente com o conceito de acumulação primitiva, contribuiu decisivamente para que a “caça às bruxas” se sustentasse como importante ferramenta de submissão das mulheres aos mecanismos de poder marcadamente masculinos. Trabalhos como o apresentado por Silvia Federici demarcam, assim, uma diferença visível em relação a outro viés analítico defendido, por exemplo, por Stuart Clark, no qual o peso da misoginia é relativizado.

Em Pensando com demônios, o conceito de contrariedade é tomado como base para refutar a ideia de que a misoginia foi o grande pilar que sustentou a demonologia e a “caça às bruxas”. Clark parte do entendimento de que a modernidade europeia sustentou suas visões de mundo e interpretações a partir de um “extremismo cognitivo”, do qual a figura da “bruxa” foi resultado direto. Bem e Mal se tornaram conceitos essenciais para tais sociedades.8 Esse novo “idioma” foi recorrente não apenas nos corredores eclesiásticos, mas também no modo como a religiosidade foi vivenciada, fazendo com que a alma do indivíduo fosse objeto de disputas. Assim, a misoginia perde força como categoria explicativa, na medida em que a contrariedade se tornou o elemento capaz de explicar os motivos das mulheres terem sido relacionadas à bruxaria.9

Por isso, ao perceber a pouca ocorrência de tratados que se interessaram exclusivamente em injuriar as mulheres e tendo em vista que os trabalhos da época pouco se direcionaram a “explorar o fundamento da bruxaria no gênero”,10 o autor defendeu a necessidade de se relativizar o uso da noção de misoginia. No entanto, ao afirmar que havia uma conexão óbvia para os estudiosos entre a presença das mulheres e a sua predisposição às influências diabólicas, a ponto de fazerem com que tais autores não sentissem “a menor necessidade de elaborar sobre ela ou apelar para o ódio às mulheres em seu respaldo”, Stuart Clark acabou por abrir uma aresta nos seus pressupostos, o que faz com que trabalhos como o de Silvia Federici seja um importante contraponto a esse viés.

Essa relativização por parte do autor a respeito da misoginia foi sustentada por outras duas interpretações. Clark percebeu que na maioria das vezes os tratados demonológicos não se interessaram exclusivamente em injuriar as mulheres – elemento que, a seu ver, sustenta a ideia de misoginia. Além disso, os tratados interessados em discutir sobre o fenômeno da bruxaria “mostraram pouco interesse tanto em explorar o fundamento da bruxaria no gênero quanto em usá-la para denegrir as mulheres”. Assim, as obras que foram amplamente difundidas pela historiografia como exemplo da misoginia presente nas perseguições à bruxaria, como o Malleus Maleficarum e os tratados de Jean Bodin e Martin del Rio, foram encaradas sob uma leitura isolada que pouco ou quase nada se preocupou com a justificativa da presença de mulheres no fenômeno da bruxaria. Todavia, os argumentos de Stuart Clark também são passiveis de críticas.

Se há uma obviedade na conexão entre a figura das mulheres e a presença do Diabo, conforme aponta o autor,11 não é na identificação desse caráter que reside a chave para a compreensão de todo o fenômeno de “caça às bruxas”. Em Calibã e a bruxa , o aspecto central para responder à problemática levantada consistiu justamente em conferir peso à misoginia como instrumento que sustentou a conexão citada, sem perder de vista que a história das mulheres em meio ao contexto de “caça às bruxas” é uma história eivada de trajetórias por vezes silenciadas, inclusive pelos próprios historiadores que negligenciaram o peso das estruturas de poder na normatização dos corpos, na definição dos gêneros e na sustentação de uma heterossexualidade compulsória. Um dos méritos da obra de Federici consiste justamente em perceber como o consenso entre as autoridades religiosas e civis produziu uma série de mecanismos de vigilância e normatização interessados na manutenção do binarismo masculino/feminino. Vide exemplo apontado pela autora nos discursos que se produziram a respeito do pacto diabólico, em que, mesmo ao defenderem a existência de rituais em que as mulheres negavam o catolicismo, se relacionavam com os diabos e consolidavam sua posição de “feiticeiras”, prevalecia a supremacia masculina: “as mulheres tinham que ser retratadas como subservientes a um homem {o Diabo} e o ponto culminante de sua rebelião – o famoso pacto com o diabo – devia ser representado como um contrato de casamento pervertido” (p. 343).

Calibã e a bruxa é uma obra que merece uma leitura atenta por se preocupar em compreender os longos séculos de associação das mulheres à figura do Diabo, à predisposição ao delito da feitiçaria, ou bruxaria, sem isolar as trajetórias dessas mulheres dos motivos que sustentaram essa associação. Por isso a relevância de sua obra: reafirmar a necessidade de se compreender passado e presente sem negligenciar o peso das relações de gênero e dos papéis sociais atribuídos aos homens e mulheres. Além disso, se levarmos em consideração não apenas a temática em que a autora se debruça, mas também o recorte temporal escolhido, percebemos o quão necessário são as publicações interessadas em articular religiosidade e relações de gênero na Época Moderna, tornando-se exemplos da diversidade de interpretações resultantes dessa interação. Para o contexto brasileiro, que tem acesso relativamente tardio à publicação em português deCalibã e a bruxa , tais aspectos estão igualmente presentes (talvez até com maior peso). Eles nos permitem entender que o estudo da bruxaria está longe de se esgotar quando o conceito de gênero é operacionalizado.

Referências

FEDERICI, Silvia; Calibã e a bruxa . Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. Tomo I: Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. 194p. [ Links ]

1É nesse contexto de disciplinamento dos corpos e de normatização das mulheres, atrelando-as ao papel reprodutivo, que a autora enxerga um forte paralelo com o aumento dos processos envolvendo os delitos de infanticídio e bruxaria (p. 157).

2Um dos argumentos mais sólidos que a autora construiu referente à submissão feminina no âmbito da caça às bruxas diz respeito à mudança de status adquirida pela figura do Diabo a partir do século XVI, deixando de ser escravo e servo das mulheres, tornando-se figura abominável, “seu dono e senhor, cafetão e marido”. Tanto é que o pacto diabólico, considerado pelos demonólogos como auge dos rituais empreendidos pelas mulheres com a figura do Diabo, evocava a supremacia masculina através de tal personagem, para a qual as mulheres deveriam prestar juramento (p. 338).

3A autora chega a afirmar que a “caça às bruxas foi o primeiro terreno de unidade na política dos novos Estados-nação europeus”, muito por conta de protestantes e católicos terem compartilhado do mesmo interesse em coibir a presença da bruxaria entre seus fiéis (p. 303).

4Como, por exemplo, a possibilidade de promover estudos mais aprofundados das crenças, das práticas, da possibilidade de se compreender o universo mágico-religioso e suas relações entre os indivíduos a partir do entendimento de que havia ali uma coerência interna distanciada do materialismo.

5No contexto da Coimbra Seiscentista, José Pedro Paiva identificou a predominância das mulheres casadas como as maiores interessadas em contar com a ajuda das feiticeiras para a manutenção de seus casamentos. Cf.: PAIVA, José Pedro. O papel dos mágicos nas estratégias do casamento e na vida conjugal na diocese de Coimbra (1650-1730). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990, p. 168-169; 180-182.

6MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício no Grão-Pará pombalino. 1750-1774. Jundiaí: Paco Editorial, 2012.

7BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia. Feiticeiras, adivinhos, curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 371. Destaque-se ainda, entre os denunciantes, a multiplicidade de classes sociais interessadas em denunciar o delito da feitiçaria.

8CLARK, Stuart. Pensando com demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna. Trad. de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p. 87.

9Ibidem, p. 187.

10Ibidem, p. 166.

11“Os autores sobre bruxaria evidentemente davam como certo uma maior propensão das mulheres ao demonismo, e tudo em seu ambiente cultural os encorajava a isso. A conexão era tão óbvia para eles, tão profundamente enraizada em suas crenças e comportamento, que não sentiam a menor necessidade de elaborar sobre ela ou apelar para o ódio às mulheres em seu respaldo.” Cf.: Ibidem, p. 168.

Marcus Reis – Doutorando da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem – VOLÓCHINOV (B-RED)

VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017, 373p. Resenha de: PISTORI, Maria Helena. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.13 n.2 São Paulo May/Aug. 2018.

Poucos duvidam que há muito precisávamos da tradução de Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (MFL), feita diretamente do original russo. E é suficiente a observação da referência bibliográfica completa, registrada acima, para constatar estarmos diante de um importante e competente trabalho, e não apenas de uma nova tradução daquela que é, possivelmente, a mais conhecida obra do Círculo de Bakhtin entre nós, brasileiros. Aliás, uma tradução realizada por pesquisadoras brasileiras comprometidas com o pensamento bakhtiniano, conhecidas e reconhecidas na área dos estudos do discurso.

O texto que temos agora responde ampla e muito especialmente a nosso tempo-espaço: são 39 anos depois da primeira edição de MFL, pouco mais de 40 anos que nós, brasileiros, temos contato com a obra do Círculo (Cf. Brait, 2012, p.219). E isso nos deu tempo para buscar compreendê-la em maior profundidade, estudá-la, buscar-lhe a contextualização, dialogar com pesquisadores daqui e de outros espaços que dela também se ocuparam, dialogar mais detidamente com ela e com algumas traduções dela no Ocidente. Tudo isso nos permite afirmar que a recepção de MFL, hoje, é bem diferente daquela da década de 70: não há mais a novidade e a surpresa, ou o impacto causado pelas obras do Círculo que aos poucos foram sendo descobertas pelos primeiros estudiosos brasileiros. Em nossa academia, há muitos pesquisadores que fundamentam seus estudos da linguagem e da literatura, ou mesmo de educação e em outras ciências humanas, no pensamento haurido em fontes bakhtinianas; diferentes grupos de pesquisa que estudam Bakhtin e o Círculo, de norte ao sul do país. Na área dos estudos da linguagem, a Análise Dialógica do Discurso/ADD (Cf. Brait, 2010, p.9-31), de inspiração no pensamento do Círculo, alcança muitos estudiosos, ajudando-nos a compreender o discurso responsivamente. Mais ainda: temos, aqui no Brasil, um periódico acadêmico, bilíngue, cujo foco são os estudos bakhtinianos, de forma específica e em seu diálogo com outras áreas do conhecimento: Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. Nosso tempo-espaço é outro, e esta tradução responde a muitas das questões que, ao longo dos anos, foram levantadas pela anterior. Não é possível tratar de tudo isso neste texto: escolhemos partir dos dados da referência bibliográfica e fazer algumas comparações entre esta e a anterior. Ao final, trataremos brevemente do Ensaio introdutório, de Sheila Grillo, sem dúvida um texto brilhante e alentado que emoldura1 esta tradução e, por meio dele, permite novas leituras de MFL.

Autoria. Várias questões nos chamam a atenção na referência. Em primeiro lugar, a autoria da obra. Se, na conhecida versão brasileira do francês para o português, cuja primeira edição é de 1979, constava a autoria de Mikhail Bakhtin (V. N. Volochínov), agora temos VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). As tradutoras nos esclarecem: nos originais russos que foram a fonte da tradução (primeira edição de 1929 e segunda de 1930), a autoria é de Valentin Nikoláievtch Volóchinov. Nos parênteses, o Círculo de Bakhtin sinaliza ao leitor o âmbito em que foi produzida a obra, o que ainda nos remete aos variados debates acerca da autoria, sobretudo no Ocidente, desde que os trabalhos bakhtinianos começaram a ser conhecidos na Europa e Américas. Aliás, muito contribuíram para esse debate os textos de Roman Jakobson (e de Marina Yaguello), autores do Prefácio e da Apresentação daquela primeira edição, especialmente a conhecida frase de Jakobson: “Acabou-se descobrindo que o livro em questão e várias outras obras … foram na verdade escritos por Bakhtin…” (1981, p.9). Atualmente conhecemos várias das obras e ensaios de Volóchinov, respeitado linguista do grupo, com quem Bakhtin, Medviédev e outros membros certamente dialogaram. A autoria de MFL, colocada dessa forma, parece fazer jus à realidade daquele momento. No final do livro, consta ainda um “Sobre o autor”, com dados biográficos de Volóchinov (1895-1936), que possibilitam ao leitor conhecer um pouco de sua trajetória de vida, na Universidade de Leningrado (atualmente Universidade Estatal de São Petersburgo), no Instituto de História Comparada das Literaturas e Línguas do Ocidente e do Oriente (ILIAZV) e no Círculo de Bakhtin, como linguista, crítico de música, de arte e literatura.

Tradução. Voltando à referência inicial, observamos que a tradução, notas e glossário são de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Caso o leitor não as conheça, o livro traz, ao final, um “Sobre as tradutoras”. A primeira – Sheila Grillo, doutora em Linguística pela USP, professora associada da FFLH/USP, tendo realizado pesquisas em diferentes universidades francesas, no Instituto Górki da Literatura Mundial (Moscou), em arquivos de Valentín Volóchinov em São Petesbrugo e na Biblioteca Lenin (Moscou); é ela a autora do primoroso Ensaio introdutório. A segunda – Ekaterina Vólkova Américo, também é doutora pela USP, em Língua e Literatura Russa e professora da Universidade Federal Fluminense/UFF. Além das publicações individuais, ambas assinam a tradução de outros trabalhos do Círculo: O método formal nos estudos literários, de Pável Medviédev, e Questões de estilística no ensino da língua, de Mikhail Bakhtin. Na realidade, conhecem profundamente o pensamento bakhtiniano, não apenas a língua russa; e o leitor brasileiro, do qual são parte. Em relação a ele, em artigo que comentam o trabalho de traduções brasileiras de autores do Círculo, Grillo e Américo (2014) reconhecem a tensão entre a fidelidade ao texto russo e o contexto de recepção na língua portuguesa e afirmam:

Temos em mente um leitor estudioso da obra do Círculo de Bakhtin, isto é, um leitor ávido por compreender conceitos produzidos em um contexto intelectual preciso, em um tempo e em uma cultura distantes” (p.82).

Pretendem, assim, uma tradução que evite a “aproximação indevida da teoria do autor com correntes semióticas ocidentais […]” (p.81), mas que esteja atenta ao distanciamento temporal e cultural da produção de MFL. Nessa busca, no cap.2 O problema da relação entre a base e a superestrutura, já observamos muito maior clareza em relação à questão dos gêneros discursivos, preocupação dos membros do Círculo desde a década de 20 e pouco explicitada na tradução anterior, o que se tornou alvo de críticas recorrentes. Se temos ali “A psicologia do corpo social é justamente o meio ambiente inicial dos ‘atos de fala‘ de toda espécie […]” (1981, p.42), na nova tradução temos “[…] a psicologia social é justamente aquele universo de discursos verbais multiformes que abarca todas as formas […]” (2017, p.107). E adiante: “A psicologia do corpo social se manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos da ‘enunciação’ sob a forma de diferentes modos de discurso, sejam eles interiores ou exteriores” (1981, p.42). Na nova tradução: “Na maioria das vezes a psicologia social se realiza nas mais diversas formas de enunciados, sob o modo de pequenos gêneros discursivos, sejam eles internos ou externos, que até o presente momento não foram estudados em absoluto” (2017, p.107). Ou, ainda, o título do capítulo A interação verbal (1981, p.110) é substituído por A interação discursiva, com a justificativa de estar ali presente o mesmo adjetivo russo do famoso texto de Bakhtin – Os gêneros do discurso (2017, p.201). Todos esses cuidados, porém, também respondem a críticas e debates que se seguiram e continuam surgindo em relação aos textos e conceitos elaborados pelos membros do Círculo. Assim, se num primeiro momento, num contexto francês (e depois brasileiro), a obra respondeu às teorias linguísticas daquele momento, com elas dialogando, aquiescendo, complementando, concordando, discordando, agora o diálogo continua, sob novas bases. Como afirma Brait, na orelha da nova tradução, reiterando sua importância e pertinência:

No estágio atual dos estudos bakhtintinianos, as (re)traduções , no Brasil e no exterior, devem-se à consciência de que o pensamento dialógico exige o conhecimento dos contextos de produção e de reprodução, para melhor situar os trabalhos, sua originalidade, seu diálogo polêmico ou não com outras vertentes do conhecimento. Nessa busca, a acessibilidade das fontes russas, arquivos e bibliotecas, possibilita a descoberta de primeiras edições, trabalhos não publicados, esboços preparatórios, documentos que atestam a vida profissional e acadêmica dos autores. […] os (re)tradutores são especialistas que se debruçam sobre as fontes primárias não apenas para divulgar obras e autores, mas para esclarecer a gênese e o alcance do pensamento. E as leituras se ampliam, enveredando por novos caminhos.

Notas. As notas representam, a meu ver, um ganho precioso para o leitor. Fiéis aos originais consultados, são em número bem maior do que aquelas que conhecíamos na primeira tradução: na atual tradução, 163: 107 do autor e 56 das tradutoras; na tradução anterior, 107: 96 notas do autor, 05 trazidas do tradutor do russo para o francês e 06 dos tradutores do francês para o português. No Prólogo na versão anterior, tínhamos apenas uma explicação da tradutora para o francês do que seria o “Skaz”, a partir da tradução francesa de La poétique de Dostoïevski; na correspondente Introdução atual, temos a oportunidade de um rico diálogo com Volóchinov nos comentários que ele mesmo adiciona ao texto principal. Assim, conta-nos que MFL é o “único trabalho marxista sobre a linguagem” que havia até então (1929), na nota de rodapé 1 (p.83); ou nos conta como os “fundadores do marxismo definiram o lugar que a ideologia ocupa na unidade da vida social”, na nota de rodapé 2 (p.84); apresenta sua visão acerca do positivismo e “o culto do ‘fato’ […] como algo inabalável e firme” (p.84), na nota de rodapé 3; ou destaca a pertinência do estudo que propõe na terceira parte – “o problema do enunciado alheio”- como um diálogo com os teóricos da literatura, nota de rodapé 10 (p.88).

As notas de rodapé são ainda um lugar privilegiado de diálogo com as tradutoras, que nos fornecem informações valiosas à compreensão do texto, ora por meio de notas históricas: “Aqui o autor se refere à abolição da servidão que, apesar de ocorrida em 1861, expressa um processo em curso desde o final da primeira metade do séc. XIX […]” (nota de rodapé 8, p.105); literárias, como a nota 7 (p.104), sobre a personagem principal de um romance de Turguêniev, ou a nota 66, sobre a obra de Dostoiévski, na tradução em português, “Pequenos retratos” em Diário de um escritor (1873): meia carta de um sujeito […] (p.235), entre outras. Ainda há aquelas que justificam a escolha de termos para a tradução, como a nota de rodapé 12 (p.117), a respeito do debatido/controvertido termo russo perejivánie, “tradução da palavra alemã Erlebnis, que pode significar ‘vivência’ ou ‘experiência'”. Nesse sentido, importante ressaltar um princípio que guiou as tradutoras, em contraposição às opções anteriores de diferentes traduções, expresso por Grillo e Américo: “As escolhas dos tradutores [das versões em francês – dialectologie sociale, e inglês – behavioral speech genres da expressão rietchevye jiznennye jánry] parecem revelar que eles estavam menos preocupados com os termos empregados em russo, do que em encontrar paralelos com o contexto intelectual da época em que realizaram as traduções” (2014, p.80). Princípio que, sem dúvida, responde a críticas realizadas ao longo dos anos a noções como intertextualidade, gêneros do discurso e outras, que tiveram seu entendimento prejudicado em virtude de traduções anteriores que obliteraram o sentido do termo em russo. Bem interessantes para nós, estudiosos da linguagem, são as notas de n.28 e 29 (p.166-7), em que as tradutoras comentam as “dificuldades” de Volóchinov na tradução dos termos saussureanos, já que o Curso de linguística geral foi traduzido na Rússia apenas em 1933, depois da publicação de MFL, portanto. É sempre o respeito ao leitor, a resposta antecipada a questões correntes entre os estudiosos, e a contextualização cuidadosa de termos, noções e obras.

Glossário. Considerando a ampla divulgação do pensamento bakhtiniano, o fato de que suas obras não foram conhecidas do público na ordem em que foram produzidas ou mesmo traduzidas nas várias línguas, o glossário é precioso, além de preciso e redigido por pesquisadoras que conhecem o conjunto das obras do Círculo. Nas palavras de Grillo e Américo (2014, p.81), sua elaboração: “[…] nos auxiliará na manutenção de uma coerência na tradução dos conceitos bem como na compreensão do núcleo conceitual de MFL pelo leitor brasileiro”. Assim, os verbetes primeiramente são apresentados no original russo (em transliteração), com as páginas em que apareceram na presente edição; a seguir, as autoras não só o definem, mas colocam em diálogo o conceito com a própria obra em questão, por vezes com o todo do Círculo e ainda com o contexto de sua produção. Três exemplos:

Ato discursivo individual e criativo ou ato individual de fala, ou ato discursivo (individuálno-tvórtcheski akt riétchi ou individuálni ákt govoriénia, p.140, 148, 153, 200, 225, ou retchevói akt, p. 200) – conceito que se origina na obra de Humboldt e é posteriormente desenvolvido na de Potebniá. A língua é um processo constante de criação individual por meio dos atos discursivos dos seus falantes, diferentemente da sua concepção como conjunto de regras gramaticais e de seu léxico, ideia que Humboldt associa ao resultado do trabalho do linguista. Em Marxismo e filosofia da linguagem (MFL), o enunciado ora é equiparado ao ato discursivo ora é concebido como um produto deste (p.200) (p.353).

Fundo de apercepção (appertseptívni fon, p.254) – também traduzido por “fundo aperceptivo”, termo proveniente da psicologia e da filosofia. O termo aparece em trabalhos posteriores de Bakhtin como O discurso no romance (Teoria do romance I) e Os gêneros do discurso, e compreende as vivências interiores em que o discurso alheio é percebido (p.359).

Signo ou signo ideológico (znak, p.91, ou ideologuítcheski znak, pp.92-4) – dividem-se em signo interior (vnútrenni znak) e signo exterior (vniéchni znak), sem traçar um limite preciso entre ambos. O signo interior é a vivência no contexto de um psiquismo individual, determinado por fatores biológicos e biográficos. O signo exterior existe em um sistema ideológico coletivo e surge no processo de interação entre indivíduos socialmente organizados. Suas formas são condicionadas pela organização social desses indivíduos, pelas condições mais próximas da sua interação, do horizonte social da época e de dado grupo social: ou seja, a existência determina e refrata-se no signo. O signo é a realidade material da ideologia. Os objetos que chamam a atenção da sociedade entram no mundo da ideologia, se formam e se fixam nele, tornando-se signos ideológicos ao adquirirem uma ênfase social. A realidade que se torna objeto do signo constitui o seu tema. Uma vez que as diferentes classes sociais compartilham os mesmos signos, neles se cruzam ênfases multidirecionadas e portanto um signo se torna o palco da luta de classes. O signo pode tanto refletir quanto distorcer a realidade (p.366-7).

Anexo. O trabalho de tradução revela não apenas os estudos profundos das tradutoras como também a pesquisa nos arquivos originais, sobretudo no arquivo pessoal de Valentin Nikoláievitch Volóchinov, preservado no Arquivo Estatal da Federação Russa, em Moscou. É assim que o leitor é brindado com um Anexo, não expresso na Referência bibliográfica, que apresenta o Plano de trabalho de Volóchinov para a elaboração de MFL, constituído pelo terceiro relatório que produziu no ILIAZV, entre janeiro de 1927 e maio de 1928. São 27 páginas valiosas, em que podemos verificar como foi projetada a escritura de MFL, comparar o projeto com sua realização, conferir alterações (poucas), etc., observar o método de trabalho investigativo/produtivo do autor.

Ensaio introdutório. É o derradeiro texto que emoldura esta tradução. Sem dúvida, o texto de uma pesquisadora séria e competente (admirável!), Sheila Grillo, o ensaio nos mostra que a obra é uma “resposta à ciência da linguagem do séc. XIX e início do século XX” na Rússia. Como o prefácio de Patrick Sériot3, que também acrescenta um profundo estudo à tradução francesa mais recente de MFL4, o ensaio destaca a importância de ler no contexto original da obra, mas não se detém na questão da existência ou não do Círculo de Bakhtin, foco daquele prefácio. Aqui, a autora vai reconstruir a “biblioteca virtual” de Volochínov, por meio dos textos citados por ele em MFL, com o generoso objetivo de dar “acesso a novas camadas de sentido” (GRILLO, 2017, p.8) ao leitor brasileiro. Para compreender a posição teórica que ocuparam aquele tempo-espaço da linguística russa, a autora envereda por dois caminhos: (1) a leitura de manuais de linguística e de história da linguística contemporâneos russos (como os linguistas russos interpretam o período); (2) a observação do diálogo entre tais autores, os textos citados em MFL e a posição de Volóchinov. Desse modo, só podemos lhe agradecer por ter ajudado a nós, brasileiros, a preencher a lacuna que tínhamos em relação àquele fecundo período da linguística russa. É um texto obrigatório para todos aqueles que desejam se aprofundar nos estudos bakhtinianos.

Enfim, esta resenha não pôde disfarçar o tom apreciativo entusiasmado e altamente positivo em relação à nova (e tão esperada, necessária) tradução. Nós, os leitores, certamente acrescentaremos novas “contrapalavras” (1981, p.132) em nosso diálogo com o enunciado concreto que temos em mãos; ou buscaremos “antipalavras” (2017, p.232) às palavras da nova tradução. No grande tempo que nos separa da época da(s) primeira(s) publicação(s) – 1929/1979, ainda que não tão grande, os sentidos renascem e se renovam5, no novo cronotopo, este espaço-tempo que é o Brasil do início do séc. XXI.

1Compreendemos o texto-moldura “como parte constituinte de um enunciado concreto, no sentido bakhtiniano, o que implica, para a produção de sentidos, tanto o texto principal quanto o conjunto de textos que o apresentam, que o cercam verbal e/ou visualmente” (BRAIT; PISTORI, 2016, s.p).

2Grillo utiliza a tradução para o português nas citações de Saussure (tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein, São Paulo: Cultrix).

3Recentemente traduzido para o português: SÉRIOT, P. Vološinov e a filosofia da linguagem. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. Sobre o Prefácio, cf. SOBRAL. A.; Giacomelli, K. MFL em contexto: algumas questões, in: Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. São Paulo, 11 (3), p.154-173, Set./Dez. 2016.

4SÉRIOT, P. Préface. In: VOLOSINOV (Vološinov) Valentin Nikolaevic. Marxisme et philosophie du langage. Les problèmes fondamentaux de la méthode sociologique dans la science du langage. Édition bilingue traduite du russe par Patrick Sériot et Inna Tylkowkski-Ageeva. Limoges: Lambert-Lucas, 2010.

5BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas / Mikhail Bakhtin; organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo Editora 34, 2017.

Referências

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BRAIT, B. Orelha. In: VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [ Links ]

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BRAIT, B. & PISTORI, M. H. C. Recepção de Bakhtin e o Círculo: modos de ler. Comunicação oral em Encontro Anual Nacional GT/ANPOLL/Estudos Bakhtinianos – XI Jornada do Grupo de Pesquisa/PUC-SP/CNPq Linguagem, Identidade e Memória. 29 de junho a 01 de julho de 2016. Universidade de Campinas/UNICAMP. [ Links ]

GRILLO, S. V. Ensaio Introdutório. In: VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017, p.7-80. [ Links ]

GRILLO, S. V. C.; AMÉRICO, E. V. As traduções brasileiras de Bakhtin, Medviédev e Volóchinov. In: BRAIT, B. MAGALHÃES, A. S. Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota Editora, 2014, p.-89. [ Links ]

JAKOBSON, R. Prefácio. In: BAKHTIN, M. (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Prefácio de Roman Jakobson. Apresentação de Marina Yaguello. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira com a colaboração de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1981, p.9-10. [ Links ]

Maria Helena Cruz Pistori – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo, São Paulo; Brasil. Editora Associada de Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso; [email protected].

Os gêneros do discurso – BAKHTIN (B-RED)

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Paulo Bezerra (Organização, Tradução, Posfácio e Notas); Notas da edição russa: Seguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016. 164p. Resenha de: BRAIT, Beth. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.2 São Paulo May./Aug. 2017.

Por que determinados textos, literários ou não, comportam mais de uma boa tradução, dentro de uma língua, sem que a ordem de aparecimento desqualifique a anterior? E se pensarmos num mesmo tradutor, o que justificaria a (re)tradução? Evidente que as respostas são muitas e vão depender, necessariamente, da maneira como se considera a passagem de um texto de uma língua a outra. Se, por exemplo, compreendermos a tradução como uma relação singular, estabelecida entre um texto de partida e um contexto de chegada, implicando modos de ler/reler uma obra e seu autor, será possível considerar não somente as idiossincrasias do tradutor criterioso que se volta mais de uma vez para um mesmo texto, e que com sua lupa persegue as minúcias estilístico-significativas do diálogo aí estabelecido entre duas línguas, duas consciências produtivas e em tensão, mas também, a possibilidade de reconhecer singularidades do tempo-espaço em que as traduções e (re)traduções acontecem. O novo contexto de recepção envolve, ao mesmo tempo, uma tradição temporal e espacial de estudos a respeito do autor/obra/tradução e a possiblidade de conferir ao novo trabalho do tradutor, ao texto de origem e à (re)tradução um estatuto diferenciado das manifestações anteriores.

Assim deve ser compreendido Mikhail Bakhtin: os gêneros do discurso, livro que chegou ao leitor em 2016, representando ganhos e significados especiais para os estudos bakhtinianos no Brasil. O crítico, ensaísta, professor e pesquisador Paulo Bezerra, reconhecido por suas importantes traduções literárias e por ser um dos responsáveis pela existência de Mikhail Bakhtin em língua portuguesa, retoma dois textos por ele traduzidos diretamente do russo e publicados em 2003 na coletânea Estética da criação verbal – “Os gêneros do discurso” e “O problema do texto na linguística e nas outras ciências humanas: uma experiência de análise filosófica”, este último renomeado como “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica” – e a eles acrescenta dois inéditos – “Diálogo I. A questão do discurso dialógico e Diálogo II”, publicados pela primeira vez na Rússia em 1997.

Sem dúvida, esse evento tradutório, que interliga versões pontualmente modificadas de dois textos que, juntamente com outros do pensador russo, são centrais para a compreensão dos conceitos de gênero discursivoenunciado, texto, cadeia comunicativa, cadeia da comunicação discursiva, campos da comunicação cultural, cadeia histórica da cultura, deixa os estudiosos entusiasmados por ao menos duas razões. Pela estética das traduções de Paulo Bezerra, produto do reconhecido rigor acadêmico-científico, pautado na ética da pesquisa, sempre atento ao estado da arte de suas traduções e ao estado atual do conhecimento dos escritos do autor de Problemas da poética de Dostoiévski, notadamente na Rússia, onde vai buscar e conferir fontes. E pela chegada de dois novos escritos, voltados para diálogo, outra grandeza essencial na reflexão teórico-filosófica bakhtiniana que, como afirma Bezerra, “mesmo sendo textos preparatórios de ‘Os gêneros do discurso’, discutem questões congêneres não contempladas nessa obra e trazem rascunhos de projetos teóricos que o mestre pretendia desenvolver, revelando sua permanente preocupação com o aprofundamento e uma maior abrangência de sua teoria do discurso em vários campos das humanidades” (p.151).

Portanto, o gesto que implica (re)tradução acrescida de tradução de inéditos acontece a partir de um retorno do tradutor-pesquisador às fontes russas, aí consideradas a edição de Estética da criação verbal (Moscou, Iskusstvo,1979, organização e notas de Serguei Botcharov) e o tomo 5 das Obras reunidas de M. M. Bakhtin, (Moscou, 1997, volume organizado por Botcharov e Liudmila Gogotichvíli). A consequência imediata, altamente positiva para o leitor brasileiro e para o conhecimento do pensamento bakhtiniano, é uma decisão editorial que repensa a natureza dos textos reunidos em Estética da criação verbal, obra publicada na Rússia após a morte do autor.

Bastante conhecida no Brasil, essa coletânea, que teve uma primeira tradução feita a partir da edição francesa (Maria Ermantina Galvão G. Pereira, 1992), tem desde 2003 tradução feita por Paulo Bezerra, diretamente do russo. E é nela que se encontram os textos “Os gêneros do discurso”, “O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: uma experiência de análise filosófica”, assim como diversos outros trabalhos produzidos em diferentes momentos por Mikhail Bakhtin. Como afirma Paulo Bezerra, “não é um livro tematicamente uniforme; são três livros em um, todos diferentes entre si pelos objetos de análise e reflexão, além de dois textos sobre Dostoiévski e outros quatro sobre diferentes temas de ciências humanas” (p.151). Ou seja, trata-se de um conjunto que, de fato, poderia, por um critério de relação e coerência entre obras, ser desmembrado e, com isso, oferecer ao leitor de hoje um panorama mais esclarecedor da maneira como alguns constructos do pensamento bakhtiniano foram aparecendo, sendo trabalhados e retrabalhados, evidenciando seu papel, função e participação na edificação da arquitetônica que rege e abriga o conjunto desse forte pensamento sobre linguagem.

E é justamente essa perspectiva que, considerando a possibilidade de agrupamentos coerentes dos trabalhos presentes em Estética da criação verbal, apresenta Os gêneros do discurso como o primeiro de quatro volumes previstos. Nesse sentido, o leitor se pergunta: “E qual é a coerência temática que dá conta, nesse primeiro volume, dos dois trabalhos conhecidos somados aos dois inéditos?”.

Os estudiosos interessados em alguns dos fios condutores do pensamento bakhtiniano têm procurado estabelecer, dentre outras coisas, a relação existente entre os conceitos de enunciado (por vezes enunciado concreto ou mesmo enunciação em algumas traduções), textodiscurso, gênero do discurso, cadeia da comunicação discursiva, campos ou esferas da comunicação cultural, sem dúvida pilares da construção reflexiva bakhtiniana, voltada para a linguagem nas artes e nas ciências humanas e, especialmente, a maneira como esses elementos constituem unidades e elos para a compreensão do processo vivo da comunicação humana, das cadeias discursivas.

Essa busca leva, necessariamente, aos dois trabalhos produzidos por Mikhail Bakhtin nas décadas de 50 e início de 60, do século passado, aproximados de forma muito pertinente nesse volume: “Os gêneros do discurso” (1952 – 53) e “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica” (1959-61). Neles, os conceitos mencionados são apresentados, tematizados, discutidos e inseridos na construção de uma perspectiva dialógica de concepção e abordagem da linguagem, bem como interligados numa interdependência que evoca outros escritos de Bakhtin, caso de “O discurso no romance” (texto iniciado em 1929 e concluído entre 1934 e 1936, publicado pela primeira vez na União Soviética em 1972).

A tentativa constante de compreensão do significado desses constructos fundamentais para a perspectiva dialógica da linguagem, caso de gênero do discursoenunciado, texto fica facilitada pela organização desse primeiro volume do desmembramento de Estética da criação verbal, justamente pela forma como discurso, gênero e enunciado se articulam em relação a texto e vice-versa.

Em “Os gêneros do discurso” encontra-se um momento da concepção bakhtiniana de linguagem que sistematiza a importância da noção gênero para a compreensão da língua em movimento, plena de vida e de mobilidade, flagrada no diz-que-diz do burburinho da vida e da cultura, da vida na cultura, quer artística ou científica, do enunciado como unidade dialógica de tensão entre um/outro, entre ao menos duas consciências, entre identidades/alteridades, entre a língua/unidade, preservada a duras penas pelas forças centrípetas, e a língua/plural, multifacetada, plenamente realizada pelas forças centrífugas provocadoras do plurilinguismo. E é precisamente por essa dualidade – unidade/unicidade – que em “Os gêneros do discurso” encontra-se a importante discussão sobre as realidades representadas pela oração, enquanto unidade/modelo do conjunto de possiblidades de um sistema, e o enunciado, oral ou escrito, proferido de forma concreta e única, por integrantes das diferentes esferas da atividade humana.

Se gênero do discurso é um tema que acompanha o pensador russo ao longo de toda a sua vida, podendo essa presença ser vivenciada em Problemas da poética de Dostoiévski e em O discurso no romance, por exemplo, a concepção de texto como unidade semiótico ideológica também se reitera ao longo do conjunto da obra, ganhando discussão específica em “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica”, no qual se pode ler: “[…] por trás de cada texto está o sistema da linguagem. […]. Concomitantemente, porém, cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido […]. Esse segundo elemento (polo) é inerente ao próprio texto, mas só se revela numa situação e na cadeia dos textos (na comunicação discursiva de dado campo)” (p.74-75).

O trecho em destaque indica duas dimensões implicadas, como também se pode observar em Os gêneros do discurso, que são evocadas como condição de existência de um texto: a materialidade sígnica ou dimensão semiótica, que o constitui e o faz participante de um sistema; a singularidade que lhe é conferida a partir de sua participação ativa e efetiva na cadeia da comunicação discursiva da vida em sociedade. Essa combinatória constitutiva de elementos dados (sistema) e elementos criados (linguagem em uso) possibilita a um texto ser reconhecido como pertencente a um sistema (linguístico, pictórico, musical, etc.), e, ao mesmo tempo, como portador de valores, de posições que garantem a produção de sentidos, sempre em confronto com outras posições e valores presentes numa sociedade, numa cultura. De acordo com Bakhtin, “Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento” (p.71).

Os dois inéditos, por sua vez, tem um sabor muito especial. O título evoca uma das peças-chave da teoria bakhtiniana, que é o diálogo, concebido como constitutivo da linguagem humana e não apenas como estrutura de conversa. Escritos antes da versão definitiva de “Os gêneros do discurso”, “Diálogo I” (1950) e “Diálogo II” (1952), publicados em 1997 no volume 5 das Obras de Bakhtin (Editora Rússkie Slovarí), certamente surpreendem, conforme afirma Bezerra:

À primeira vista são rascunhos do que viria a ser o texto final de “Os gêneros do discurso”, porém, uma leitura atenta mostra que Bakhtin vai além do livro projetado. […] Em toda a concepção bakhtiniana a linguagem humana é vista sob um prisma dialógico, mas nesses “diálogos” atribui-se à própria língua uma natureza dialógica, o que, a meu ver, é uma novidade na teoria linguística de Bakhtin (p.111).

A esse coerente conjunto, Paulo Bezerra ainda acrescenta um posfácio, a bem da verdade um substancioso ensaio de quase vinte páginas, sugestivamente intitulado “No limiar de várias ciências”, por meio do qual caracteriza a coerência do quarteto, enquanto composição teórica interligada por uma das unidades temáticas própria do pensamento bakhtiniano, relacionando-a com outros trabalhos do autor, discutindo a importância desse conjunto e auxiliando, neste momento dos estudos bakhtinianos, a compreensão dos complexos meandros de “Os gêneros do discurso”, trabalho nem sempre pensado em suas reais especificidades, em consonância com outros trabalhos de Mikhail Bakhtin. E aí a (re)tradução se justifica, ganhando corpo e lugar na cultura brasileira.

Beth Brait – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP, São Paulo, Brasil; CNPq-PQ nº. 303643/2014-5; [email protected].

Parodie et analyse du discours (I. L. Machado)

MACHADO, Ida Lúcia. Parodie et analyse du discours. Paris: L’Harmattan, 2013. 134 p. Resenha de PESSOA, Sônia Caldas. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2017.

O livro Parodie et analyse du discours [Paródia e análise do discurso] de Ida Lucia Machado, publicado pela editora francesa L’Harmattan, convida o leitor para um passeio teórico-metodológico a respeito da paródia. Com um roteiro leve e reflexivo, a leitura nos propõe alguns questionamentos importantes acerca da problemática do tema, sob a ótica da Análise do Discurso.

Ida Lucia Machado é uma das precursoras da Análise do Discurso no Brasil e uma das principais interlocutoras brasileiras nas relações entre o Brasil e a França em pesquisas fundamentadas na Teoria Semiolinguística desenvolvida por Patrick Charaudeau, parceiro teórico da autora em diversos eventos acadêmicos, pesquisas e publicações.

O prefácio de Parodie et analyse du discours é assinado por Charaudeau, que aborda dois aspectos principais. O primeiro diz respeito à temática do livro, ou seja, a paródia propriamente dita. E o segundo à importância teórica da obra de Ida Lucia Machado, uma vez que a autora revela como os instrumentos da Análise do Discurso podem contribuir para definições e categorizações da paródia. Ele ressalta o fato de a autora reunir um conjunto de teorias do discurso e apresentar, de maneira original, o seu próprio instrumental teórico.

Parodie et analyse du discours é dividido em cinco capítulos, brevemente apresentados aqui, e uma conclusão. No primeiro, La Parodie: premières approches [A paródia: os primeiros enfoques], a autora apresenta um percurso das principais teorias que trataram a paródia como objeto, dialogando com Quintiliano, Cícero, Tynianov, Genette, Barthes e Bakhtin, além de outros autores brasileiros e franceses, com o objetivo de contextualizar o quadro teórico traçado por ela.

No segundo capítulo, Parodie et semiolinguistique [Paródia e semiolinguística], a autora enfoca a Teoria Semiolinguística, concebida por Patrick Charaudeau, afirmando que garante liberdade ao pesquisador para se dedicar à análise e interpretação de diferentes conjuntos de textos. Machado ressalta a importância das inúmeras possibilidades de realizar a análise de interpretações eventuais de discursos sociais, independentemente de suas origens.

Com o título La Parodie: essai de classification [A paródia: tentativa de classificação], o terceiro capítulo, possivelmente o mais importante da obra, se propõe a classificar a paródia. Essa é uma das principais contribuições da pesquisadora sobre a temática. Aqui é detalhada uma das problemáticas centrais do livro: a paródia é um gênero ou os efeitos de gênero a incluem em um gênero maior? Afinal, o que é a paródia, esse objeto tão delicado? Em um trabalho de pesquisa minucioso, Machado discute a noção de gênero do discurso, retomando conceitos de pensadores como Jean Peytard, que foi seu diretor de tese de doutorado em Bensançon, na França, e de Bakhtin. A partir da noção de gênero, a autora analisa a construção da transgressão na paródia em duas dimensões.

É nesse momento que Machado retoma a definição de gênero transgressivo, que integra há anos os seus trabalhos. Para a autora, um gênero é transgressivo quando ‘ousa’ combinar em si diferentes tipos de discurso que tinham objetivos diferenciados, em suas origens, daqueles que adquirem quando se tornam um amálgama. Essa reunião pode se tornar insólita, para usar as palavras de Machado, sendo necessário considerar que a aliança que consolida esse encontro de gêneros será representada pela intenção de ironizar alguém ou alguma coisa. A paródia torna possível rir do que é sério, zombar do preconcebido; em suma, ela contém o mesmo movimento que gera a sua criação, a origem da transgressão genérica.

Machado se apoia em Bakhtin ao concluir que a paródia é um discurso carnavalizado, um fenômeno sócio-ritualizado no qual a essência pode ser transposta em um discurso oral ou escrito. A problemática da recepção da paródia e suas duas faces possíveis – mais evidente e mais sutil – são tratadas no quarto capítulo do livro intitulado Parodie: mise en forme et reception [Paródia: forma e recepção]. Já o último capítulo Parodie & Argumentation [Paródia & argumentação], ela apresenta uma rápida visão da paródia como fenômeno argumentativo, explorando a perspectiva de visadas e dimensões argumentativas.

A originalidade da pesquisa de Machado sobre a paródia é reconhecida há alguns anos na França. Em 2002 o professor e teórico francês Dominique Maingueneau chamava a atenção para o trabalho da autora no verbete “captation”, do Dictionnaire D’Analyse du Discours, ao mencionar a importância de pensar a captação do leitor sob o viés da paródia. O autor chama a atenção para uma reflexão de Machado sobre a posição ambígua do sujeito parodiador em relação ao sujeito parodiado, que estaria entre a fidelidade e a infidelidade, a proximidade e o afastamento.

Essa ambiguidade entre os sujeitos parodiador e parodiado, que Maingueneau discutiu baseado em Machado, está presente em grande parte da obra da autora, que considera a paródia um fenômeno linguageiro, um gênero transgressivo, que teria aparecido para transgredir uma ordem estável, como a desarrumar algo que já tivesse sido dito, escrito ou mostrado e mais ou menos aceito por uma comunidade de ouvintes, leitores ou espectadores.

Ouso dizer que a publicação, que tem 134 páginas em francês e ainda não tem tradução para o português, é uma síntese comprovação de parte da pesquisa e do conteúdo de disciplinas lecionadas pela autora no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e de seus inúmeros trabalhos no Brasil e na França.

O livro integra a coleção Langue et Parole: Recherches en Sciences du langage, dirigida por Henri Boyer, da Université de Montpellier 3. Entre os objetivos da coleção está a publicação de trabalhos coletivos e individuais realizados no campo teórico e metodológico das Ciências da Linguagem, especialmente aqueles que fomentam debate e polêmica.

Concordamos, enfim, com Charaudeau, para quem Ida Lucia Machado fez uma obra criativa que aponta um primeiro elemento, importante, que nos instiga a buscar respostas para a questão elaborada pela própria autora: vivemos em um universo cultural que tende a se parodiar ao infinito? E, se isso é verdade, por que precisamos da paródia? A leitura pode ser uma pista interessante para responder essa questão. E se a autora afirma que não se trata de uma questão fechada, espera-se um segundo livro dela sobre a temática.

Sônia Caldas Pessoa – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; [email protected].

História sociopolítica da língua portuguesa – FARACO (B-RED)

FARACO, Carlos Alberto. História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo: Parábola Editorial, 2016, 400 p. Resenha de: FIORIN, José Luiz. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2017.

Carlos Alberto Faraco, professor da Universidade Federal do Paraná, é um respeitado especialista em linguística histórica. É autor de um dos mais usados manuais dessa disciplina, Linguística histórica: introdução ao estudo da história das línguas, publicado inicialmente pela Editora Ática e atualmente pela Parábola Editorial. É também um dos maiores especialistas brasileiros na obra de Mikhail Bakhtin. Vem agora a lume sua alentada História sociopolítica do português.

Tradicionalmente a linguística histórica divide-se em linguística interna e linguística externa. Saussure, por exemplo, consagra, em seu Curso de linguística geral, um capítulo, intitulado Elementos internos e elementos externos da língua, a essa distinção. A linguística interna dedica-se unicamente a mudanças na estrutura de uma língua; ela faz dessas mudanças seu estudo exclusivo, observando o funcionamento do sistema linguístico, seu “mecanismo”. Na linguística externa a língua é examinada em sua relação com fenômenos sociais, geográficos, econômicos, políticos, culturais, etc. A linguística histórica, considerando, como dizia Saussure, que “a língua é um sistema que conhece somente sua própria ordem” (2006, p.31)1, sempre deu prioridade à linguística interna, tida como a linguística por excelência, relegando a linguística externa a um papel secundário. Na maioria das vezes, enquanto a linguística interna era objeto de minuciosas e aprofundadas análises, a linguística externa não passava de uma coleção de dados anedóticos. No entanto, o aparecimento de outras concepções de língua, como a utilizada pela sociolinguística, dá um papel de relevo ao que era chamado história externa da língua.

Faraco filia-se a essa nova corrente, partindo do ponto de vista de que “as línguas estão intimamente atadas às dinâmicas histórico-políticas e às construções imaginário-ideológicas das sociedades em que são faladas. Em outros termos, as línguas não existem em si e por si; elas não são entidades autônomas – as línguas são elas e seus falantes; elas e as sociedades que as falam” (p.9). Por isso, ele deixa claro que não pretende descrever as mudanças nos diversos subsistemas (fonológico, mórfico, sintático, lexical) que compõem a organização estrutural do português, isto é, não pretende ocupar-se do que foi chamado linguística interna, mas deseja estudar a intrincada rede de fenômenos sociais, econômicos, políticos, culturais que conformou o idioma chamado português, falado por diferentes povos em diversos continentes (p.9-10).

Poder-se-ia imaginar que se trata de mais uma história da formação e da difusão do português. Entretanto, a obra que Faraco nos apresenta não é mais uma história do português, mas é uma história apresentada sob perspectivas novas, porque recusa interpretações anacrônicas, abdica do “tópos do orgulho” (p.10), submete ao crivo impiedoso da documentação certas ideias longamente aceitas, destrói mitos sobre a expansão do português, desvenda ideologemas que estão na base do que é apresentado como natural ou científico.

O livro é dividido em dois longos capítulos, que concentram a exposição da matéria, e um breve terceiro capítulo, cujo conteúdo poderia ser considerado as conclusões. No primeiro, intitulado História, o autor fala da formação e da difusão do que viria, mais tarde, a ser denominado português. A língua que hoje chamamos português desenvolve-se a partir dos falares românicos que se constituíram após a dissolução do Império Romano do Ocidente na região abrangida pela Galícia, região autônoma da Espanha, e pelo norte de Portugal, isto é, na Gallaecia Magna dos romanos. Primeiramente, o autor vai mostrar os eventos sócio-históricos que levaram à expansão desses falares do noroeste ibérico até o Algarve, fazendo com que a faixa ocidental se destacasse claramente do restante da Península Ibérica.

Quando discute a expansão do português, o autor começa a recusar anacronismos (“a interpretação do passado pelo presente”) e o triunfalismo (“a interpretação […] que se pauta pela celebração do sucesso”). Começa por refutar a afirmação de historiadores da história de Portugal e do português de que D. Dinis transformou, em 1296, a língua “portuguesa” em língua “oficial” do reino (p.23). Na verdade, “o que aconteceu no reinado de D. Dinis foi que o uso da língua românica vernácula na documentação produzida pela Chancelaria Real se tornou sistemático e suplantou o uso do latim” (p.23). A interpretação da oficialização da língua é rejeitada, porque não se pode confundir a produção de documentos na Chancelaria Real com oficialização da língua, pois, no seu sentido moderno, língua oficial quer dizer “língua de uso obrigatório em todas as instâncias públicas” (p.24). Basta lembrar que o ensino “continuou a ser feito primordialmente em latim até o século XVIII” e os médicos prosseguiram receitando em latim pelo menos até o século XVII (p.24). Da mesma forma, não se pode falar em língua nacional nesse período, uma vez que o processo de construção nacional, no sentido moderno do termo, ocorre somente a partir do século XVIII.

O autor faz uma alentada discussão do nome da língua, já que “o recorte e a nominação de uma língua histórica (ou seja, o recorte de determinado conjunto de variedades linguísticas agrupadas sob um nome singular – português, galego, inglês, chinês, etc.) são fenômenos fundamentalmente socioculturais e políticos” (p.47), o que significa que uma língua histórica é muito mais uma instituição sociocultural do que uma entidade puramente linguística. Durante boa parte da Idade Média, a referência às variedades românicas não era feita por nomes específicos que as individualizassem. Nos textos dessa época, ocorrem apenas designações genéricas como vulgar, romanço/romance, linguagem, nossa linguagem. “A nominação da língua românica de Portugal como português ou linguagem/língua portuguesa teve de esperar, ao que tudo indica, o século XV, tornando-se definitivamente corrente a partir do século XVI” (p.48).

Em seguida, o autor vai estudar a expansão do português pelo mundo, a partir do século XV, na esteira do que foi denominado as grandes navegações, bem como suas consequências linguísticas, como, por exemplo, o surgimento de um pidgin de base portuguesa, e o aparecimento de línguas crioulas.

Ao apresentar a situação linguística em Goa, o autor vai discutir as razões do estímulo aos casamentos mistos, demolindo mais um dos mitos criados pelos ideólogos do colonialismo português de que a colonização portuguesa era tolerante e aberta à miscigenação com os nativos (p.73). Ao mostrar que, em 1974, só uma ínfima parcela da população dos territórios colonizados era alfabetizada e tivera acesso à educação básica, desvela a falácia do discurso da “missão civilizadora” com que o colonialismo europeu justificava suas ações em África e em Ásia (p.80).

A política linguística pombalina consubstanciada no Diretório de 1757 merece uma análise minuciosa. Refutando o lugar comum de que essa política foi um sucesso, pois foi ela que levou à expansão do português por todo o território nacional, o autor mostra que, na verdade, ela foi um fracasso (p.114). O português expandiu-se, no território em que se falava a língua geral amazônica, devido a profundas mudanças demográficas e econômicas que ocorreram na região (p.103). Mostra-se, assim, que a disseminação de uma língua não acontece por medidas voluntaristas, mas por uma intrincada teia de fatores econômicos e sociais.

As línguas gerais são analisadas como efeito da colonização (p.120). “A intervenção colonial europeia no Brasil, como na América em geral, redundou na desestruturação econômica, social e cultural das populações autóctones, em especial das que viviam no litoral ou em sua proximidade, submetendo-as à lógica da exploração colonial” (p.121). Isso ocasionou um novo quadro de relações sociointeracionais que afetou profundamente as línguas nela envolvidas, “fazendo, de um lado, emergir as chamadas línguas gerais (paulista e amazônica) e, de outro, traçando as primeiras grandes linhas que resultaram no modo polarizado pela qual se deu a disseminação da língua portuguesa no Brasil” (p.121).

A língua portuguesa torna-se hegemônica no Brasil, vindo a ser L1 da maioria absoluta da população, por uma complexa trama de acontecimentos ocorridos, no século XVIII, com a progressiva unificação territorial ocasionada pela descoberta do ouro em Minas Gerais: “o deslocamento de grandes contingentes populacionais para a região aurífera; a vinda maciça de portugueses metropolitanos”; a criação de redes comerciais para o abastecimento das Minas Gerais, “unindo o Centro, o Nordeste, o Sul, São Paulo e o Rio de Janeiro e, assim, favorecendo o trânsito inter-regional da língua portuguesa”; “o estabelecimento de uma sociedade urbana em grau até então nunca visto, nos espaços coloniais (o que fez surgir e crescer um segmento socioeconômico médio e letrado praticamente inexistente nos séculos anteriores)” (p.148). Assim, é somente no século XVIII que o português vai tornar-se língua de uso geral no Brasil.

Ao expor todo o processo de longa duração, determinado por fatores socioeconômicos, que faz o português suplantar as línguas gerais amazônica e paulista, o autor demole mais um dos ideologemas presentes nas histórias sociais das línguas, aquele que afirma que a vitória de uma língua sobre outra se deve à superioridade da língua vencedora. Entre nós, por exemplo, Serafim da Silva Neto é um dos difusores dessa ideia. Ele afirma: “A vitória do português não se deveu à imposição violenta da classe dominante. Ela explica-se pelo seu prestígio superior, que forçava os indivíduos ao uso da língua que exprimia a melhor forma de civilização” (p.142).

O autor debruça-se sobre a clivagem sociolinguística do português, para explicar sua gênese. Depois de estudar o que ocorreu com as línguas africanas no Brasil, conclui que a polarização sociolinguística do Brasil resulta do contato entre línguas e da adoção do português como L2 de aloglotas escravizados, bem como da posterior nativização desse modelo defectivo e da recusa dessas variedades pela elite (p.148). Ao mesmo tempo, sucedeu uma “‘lusofonização por cima’ da sociedade brasileira, garantindo, por seu turno, a relativa uniformidade do português brasileiro culto” (p.148). Assim, “não se pode falar de uma história sociopolítica única da língua portuguesa no Brasil. Numa sociedade socioeconomicamente polarizada desde o início da colonização, a língua caminhou, de fato, por duas grandes trilhas paralelas, cada qual com sua própria dinâmica” (p.150). Explanam-se, em seguida, as mudanças socioeconômicas ocorridas em especial durante o século XX que produzem uma dialética de interpenetração dessas duas trilhas, com o consequente redesenho do perfil sociolinguístico do Brasil. “Esse processo dialético é lento e complexo, mas constante e irreversível” (p.150). Embora a polarização sociolinguística e as atitudes discriminatórias continuem presentes, “são perceptíveis os muitos efeitos sobre a realidade sociolinguística do país”, “que apontam para a emergência de um certo nivelamento linguístico da sociedade brasileira” (p.150). A questão da língua dos imigrantes é analisada, mostrando que “não temos ainda muitos estudos sistemáticos das eventuais influências das línguas dos imigrantes sobre o português do Brasil” (p.159). Como se vê, o autor estuda, em toda a sua complexidade, a questão da implantação do português no Brasil e de sua heterogênea configuração.

O problema do nome da língua no Brasil merece especial atenção, pois, em nosso país, sempre se teve clara a ideia de que não se falava o português tal qual era falado na Europa, algumas vezes para exaltar essa variedade distinta da variedade europeia, muitas vezes para condená-la.

As variedades não nativas, ou seja, aquelas que emergiram “em sociedades coloniais quando a língua europeia foi apropriada basicamente como língua segunda por populações originárias do território ou para ele transpostas”, merecem análise, para mostrar que, se Portugal foi esquecido como o lugar da língua “verdadeira”, “certa”, “legítima”, “pura”, continua presente o imaginário de que essa língua mora no “território etéreo”, que “atende pelo nome” de Gramática ou de Norma Culta (p.174). Por isso, Faraco estuda detidamente o processo de construção da língua imaginária, “aquela idealização uniformizadora que paira sobre a diversidade concreta e fluida” (p.176-177). Começa analisando os “elogios” à língua portuguesa, como os escritos por João de Barros e Pero Magalhães de Gândavo, que buscavam demonstrar a “excelência” da língua portuguesa, por ser ela a mais próxima do latim, como já afirmara Camões em Os Lusíadas (I, 33), e mostrar sua superioridade em relação ao castelhano (p.178). Examina a dicionarização do português; estuda a questão da ortografia considerando desde os tratados sobre a matéria, cuja produção nos séculos XVII e XVIII foi relativamente copiosa, e as vicissitudes das reformas ortográficas em Portugal e no Brasil até o Acordo Ortográfico de 1990, em vigor apesar de todos os percalços. Finalmente, apresenta uma história da gramatização do português em Portugal e no Brasil, apontando que “o discurso gramatical se constituiu historicamente […] justamente para estatuir, em meio à variação e à mudança (que são inerentes a qualquer língua), a língua ‘verdadeira’, ‘legítima’, ‘certa’, ‘pura'” (p.200), adotando para isso ora critérios retórico-literários, ora critérios lógicos, ora critérios sociais (p.200-201). O autor termina esse capítulo perguntando “se não é chegada a hora de elaborar, na senda programática do trabalho de Celso Cunha & Lindley Cintra (1985), uma gramática ecumênica da língua portuguesa, tendo em conta a realidade do português como língua internacional e pluricêntrica” (p.225).

No segundo capítulo, denominado Rumo à lusofonia, examina-se essa entidade denominada lusofonia. A ideia de um Portugal maior que Portugal circula de diferentes maneiras desde que os portugueses saíram das fronteiras europeias ao conquistar Ceuta em 1415 (p.228). Se nos momentos de grandeza de Portugal, havia uma cultura imperial, no momento de crise e de decadência, elaboram-se ideias de grandezas futuras.

Momento fértil para o profetismo desabrido; tempo próprio para se fabular um maravilhoso Quinto Império: […] os tempos de provação estarão encerrados e o grande Império de Cristo e dos cristãos estará implantado, sob a liderança dos portugueses, cumprindo-se o destino manifesto do país, anunciado já no ‘milagre’ de Ourique (quando, antes da vitoriosa batalha contra os mouros em 1139, o próprio Cristo teria aparecido a Afonso Henriques) (p.230).

O grande ideólogo do Quinto Império foi o Padre Vieira. Fernando Pessoa formula a tese de que o Quinto Império será “um império encarnado na língua, porque não há de ser um Império material, mas cultural” (p.235). Como não há império sem imperador, Pessoa vai erigir Vieira em “Imperador da língua portuguesa”. O tópos do orgulho perpassa as formulações pessoanas, pois ele considera o português a mais rica e complexa das línguas românicas (p.239). O poeta chega a uma afirmação que virou lugar comum: “Minha pátria é a língua portuguesa”. O intelectual português Agostinho da Silva dará nova expressão a esse ideologema imperial. Foi ele o grande inspirador intelectual da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).

O pensamento de Agostinho da Silva aliava, de certa forma, a nostalgia (certa imagem idealizada do passado medieval de Portugal) e a esperança mística (de um futuro de paz, fraternidade, liberdade e abundância para toda a humanidade a ser alcançado pela liderança dos povos de língua portuguesa na concretização da Era do Espírito Santo) (p.244).

Isso não seria, no entanto, tarefa do Portugal europeu, mas do Portugal maior do que Portugal, o dos cinco continentes. Reatualiza-se a ideia do Quinto Império, um Império da língua portuguesa que “só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como Nação, apenas for um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa” (p.246). A língua portuguesa é, na obra de Agostinho da Silva, “portadora exclusiva de uma determinada cosmovisão redentora da humanidade enraizada na experiência medieval da sociedade portuguesa” (p.248). A CPLP “pode, então, ser entendida como o ponto de confluência dos dois grandes ideologemas imperiais que atravessaram a história de Portugal desde o século XVI: o político-econômico e o linguístico-cultural” (p.249).

Analisa-se a “teoria” de Gilberto Freyre sobre o lusotropicalismo. Embora reconheça que Freyre, com a perspectiva culturalista de sua obra, leva-nos a reconhecer a contribuição dos negros e dos índios para a formação da sociedade e da cultura brasileira e a repensar positivamente a questão da mestiçagem, o autor demonstra a fragilidade das teses lusotropicalistas. Na verdade, não passa de mito a ideia de que o colonialismo português foi diferente dos demais colonialismos europeus, por ter sido benigno e até amoroso, porque ele praticava uma “doce assimilação”. Para o sociólogo pernambucano,

[…] o colonialismo português criou uma grande ‘unidade de sentimento e cultura’, um grande complexo lusotropical que nasceu da miscigenação racial e cultural, um todo transnacional ou supranacional compreendendo Portugal e todas as áreas colonizadas pelos portugueses na América, África e Ásia (p.254).

Freyre, sem nenhum fundamento empírico, glamouriza o colonialismo português e mesmo a escravidão. De fato, o colonialismo português, como os outros colonialismos, funda-se na

[…] dominação das terras e povos para a espoliação de suas riquezas naturais e agrícolas com base na exploração da força de trabalho da população dominada – autóctone ou transposta, o que pressupõe necessariamente uma inferiorização (de base racial) dessas populações, seja no plano ideológico (a justificar, pelo discurso, a exploração), seja no plano das ações concretas (as próprias práticas de discriminação e exploração) (p.251).

Essa ideia de que os povos lusotropicais constituem uma grande comunidade é o germe do discurso da lusofonia e das justificativas para a criação da CPLP.

Já no que diz respeito à língua portuguesa, Gilberto Freyre “antecipa questões hoje presentes nos debates políticos sobre a língua, no plano nacional e internacional” (p.262), ao afirmar que o português é uma língua policêntrica. Por isso, opunha-se a qualquer purismo linguístico, defendendo a existência de uma pluralidade de normas, não dando a Portugal o privilégio de detentor da língua “verdadeira”.

Analisam-se, detidamente, as políticas (em geral, frustradas) que buscam aproximar, desde 1822, Portugal e o Brasil e que desaguam na criação da CPLP. Os oito países de língua oficial portuguesa, “apelando aos aspectos históricos, culturais e linguísticos, decidem congregar-se numa organização internacional voltada para o cumprimento de três grandes objetivos: a concertação político-diplomática, a cooperação em todos os domínios e a promoção e difusão da língua portuguesa” (p.303). A CPLP foi um projeto estratégico eminentemente português, nunca foi prioridade da política externa brasileira nem foi vista com entusiasmo pelos demais países de língua oficial portuguesa. Por isso, “não são muito alentadoras as possibilidades de a CPLP se firmar como um organismo internacional para além da retórica sentimental” (p.308). A CPLP, em quase 20 anos de existência, não passou de “uma rêverie geopolítica ou político-cultural de duvidoso sucesso” (p.311).

Chega-se então à questão da lusofonia, conceito que serviria de base, para congregar Portugal e suas ex-colônias. Esse projeto interessa primordialmente à antiga metrópole. “Seria um projeto político pós-colonial/neocolonial, uma tentativa de instauração de um poder ‘soft’, uma estratégia de continuidade de redes de dominação com outra roupagem, um espaço imaginário da nostalgia imperial” (p.327). Ele é visto com indiferença no Brasil e com suspeita nos outros países de língua oficial portuguesa. Há, no discurso da lusofonia, “uma ênfase ao papel que a língua exerce, em tese, como elemento aglutinador dos povos que a falam e daquilo que haveria de chão comum, dado pelo colonizador português, em suas respectivas culturas” (p.316). Analisam-se os diferentes conceitos, projetos e interesses a que essa palavra remete. Mostra-se que a lusofonia, ao contrário da francofonia, não se materializou como projeto político-econômico e, por isso, pretende-se um projeto linguístico-cultural. No entanto, mesmo a concepção de unidade cultural apresenta dificuldades, porque supõe uma homogeneidade dificilmente encontrável. Fala-se em traços culturais comuns, que nunca são especificados, mas são dados como evidência. O que se exalta são valores abstratos. Talvez o único ponto em que se pudesse falar de uma ação conjunta da CPLP seria a promoção da língua portuguesa. No entanto, essa promoção é totalmente divergente. Ademais, “por lhe faltar uma visão estratégica da língua e da cultura, o Brasil não assumiu até agora papel de maior protagonismo na gestão e promoção da língua, optando antes por certo imobilismo” (p.347).

Entretanto, o autor não é totalmente pessimista em relação à cooperação entre os países de língua oficial portuguesa. No breve terceiro capítulo, intitulado Alguma esperança para o mundo da língua portuguesa?, Faraco, depois de expor a situação do português no mundo e os problemas que os países de língua portuguesa têm no que se refere à questão do idioma, esboça um “programa” para a ação conjunta dos países de língua oficial portuguesa na implementação de uma política mais aguerrida de difusão do português. O livro termina com o seguinte parágrafo:

O efetivo destaque internacional futuro da língua portuguesa na galáxia das línguas dependerá de as sociedades que a falam melhorarem substancialmente seus índices socioeconômicos e culturais; sofisticarem suas economias; desenvolverem seus recursos de “reserva gráfica” (no sentido de Houaiss, 1985: 149-150 – um grande dicionário comum, os glossários científicos e técnicos, um vocabulário ortográfico comum, a literatura estética e a bibliografia geral); e, por fim, se projetarem como referência política internacional de um conjunto de valores fundamentais da Humanidade tais como a paz, a democracia, a justiça, a distribuição equitativa da riqueza e o equilíbrio ambiental. Afinal, uma língua não adquire peso e prestígio no vazio (p.367).

Como se nota por essa exposição dos conteúdos tratados na História sociopolítica da língua portuguesa, trata-se de uma obra fundamental não só para os que se dedicam aos estudos da língua portuguesa ou se interessam pelas questões da linguagem, mas também para todos os estudiosos das ciências humanas, pois ela não examina apenas questões relativas à constituição e difusão da língua, mas aborda também o problema da colonização portuguesa, as relações entre a ex-metrópole e as ex-colônias, o papel das línguas nas relações internacionais de poder e assim sucessivamente. O autor mobiliza uma vasta bibliografia para tratar de todos esses temas de uma maneira bastante singular, pois se propõe desconstruir mitos e ideologemas, corrigir interpretações errôneas, demolir lugares-comuns, desfazer conclusões ufanistas, retificar explicações anacrônicas. E cumpre o que promete. Por isso, essa obra vai ocupar um lugar especial na bibliografia das ciências humanas do Brasil em geral e dos estudos linguísticos em particular. Cabe destacar ainda que seu alcance vai muito além da matéria tratada, pois a obra de Faraco tem uma dimensão teórica não negligenciável para o tratamento da história das línguas. Por tudo isso, é uma obra indispensável e imperdível.

1SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Org. Charles Bally, Albert Secheyaye; com a colaboração de Albert Riedlinger. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes, Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2006.

José Luiz Fiorin – Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, São Paulo, Brasil; [email protected].

Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas (C. E. Jordão et. al)

JORDÃO, Carlos Eduardo; MACHADO JR., Rubens; VEDDA, Miguel (Orgs.). Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas. São Paulo: Editora Unesp, 2015. 472 p. Resenha de: REBELLO, Hélio; MIOTO, Júlio César. História v.36  Franca  2017. Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas (T)

No já extenso leque da difusão da obra de Walter Benjamin nas edições brasileiras, e de seus comentadores, especialmente os brasileiros, o livro que temos em mãos, de fato contribui para a assimilação cultural da obra. Por se tratar de uma coletânea, com 472 páginas contendo 34 artigos distribuídos em cinco seções, o livro oferece, além de diversidade temática, uma gama de perspectivas vindas de pesquisas realizadas em diversos países. A coletânea é sistematização de textos apresentados, em grande parte, em um evento que ocorreu na cidade de Buenos Aires, no ano de 2010, sobre a questão da memória, embora não esteja muito claro, na apresentação, quais foram os textos escritos nesse contexto. Traz textos mais domésticos de pós-graduandos, gente de iniciação científica, em treinamento, e textos de receptores consagrados.

Os artigos têm vários níveis de elaboração, mas esse fato não denota uma correspondência exata com a graduação acadêmica de cada um dos colaboradores. Alguns dos autores são consagrados como pesquisadores da obra de Benjamin no Brasil; outros, como por exemplo Edmurt Wizisla, diretor do Arquivo-Benjamin em Berlim, cujo texto mostra forte proximidade filológica com os manuscritos, dão a conhecer, entre nós brasileiros, um trabalho já consolidado. A mesma proximidade com os manuscritos tem o professor Bolle, que trabalha no Brasil há anos, dedicando-se ao projeto da obra das Passagens. Nesse sentido, há textos absolutamente originais, por conta do trabalho filológico experiente, e, por outro lado, textos com tratamento mais conhecido, mas não menos sério, dedicados a temas já bastante estudados.

Diante dessa diversidade, o leitor pode se beneficiar com uma leitura integral desta coletânea, graças ao caráter de peça acabada dos artigos. Naturalmente, este aproveitamento dependerá do grau de conhecimento do leitor com relação aos estudos benjaminianos. Com efeito, o leitor a ser beneficiado pela leitura da coletânea pode ser classificado em três amplos estratos, não necessariamente autoexcludentes: aquele que procura aprofundar-se no pensamento do Autor; o que procura conhecer novos temas da obra benjaminiana, que é extensíssima; e, por fim, aquele que visa reconhecer novos olhares sobre temas mais conhecidos.

Como a tônica da coletânea é sua bem-vinda heterogeneidade temática, autoral e de estilo, é interessante fornecer uma amostra concreta dos graus de aproveitamento da coletânea, o que propomos, com o intuito destacar as virtualidades do texto e sem respeitar a apresentação linear da coletânea.

O tema recorrente do fetiche da mercadoria é tratado em artigos centrais bem iluminadores, com ênfase na compreensão do modo capitalista de produção que lhe é correspondente, a fim de dar destaque aos registros históricos do século XIX feitos por Benjamin, os quais poderiam passar despercebidos para o leitor atual. Identificar esse e outros núcleos temáticos depende da percepção histórico-crítica, mesmo da inspiração, da compreensão das estruturas históricas baseadas no modo de produção e dos fatos históricos a partir dos quais a crônica é feita.

O método benjaminiano de citação é tratado, muitas vezes, conectado a essa percepção histórico-crítica. Por exemplo, em um dos últimos textos desta coletânea – textos que serão descritos individualmente adiante – fica claro o que seria “imagem dialética”, seu efeito desalienante e como ela está relacionada com a citação. Segundo tal autor, Oehler discorre sobre uma “quase identidade” entre a montagem de citações e a imagem dialética. Essa identificação tem um espírito bem exato, o leitor pode ser esclarecido por meio dela quanto ao “agora de cognoscibilidade” tematizado nas Passagens e em Sobre conceito de história. Da mesma forma, pode intuir sobre o que é o fragmento e a sua relação com a verdade para Benjamin, tema do autor desde a obra filosófica anterior. Sem nos estender sobre a tendência ao fragmentar na obra de Benjamin, o importante é a noção da humanidade redimida, que torna o passado inteiramente citável.

Essa amostra acerca de dois núcleos da coletânea, ou seja, as referências históricas de Benjamin e o método de citação benjaminiano, evidencia uma virtude do livro em apreço, embora tais núcleos sejam restritos e limitados a alguns artigos, eles têm um efeito irradiador sobre o conjunto.

De forma diversa desse reforço de questões irradiadoras da obra do Autor, foco da coletânea, alguns dos temas fogem à pesquisa benjaminiana mais estrita. Isso se deve ao que podemos chamar da assimilação cultural já concretizada, de modo que os conceitos de Benjamin, reconfigurados, servem a usos não habituais. Essa constatação se aplica mais aos últimos textos da coletânea, que são sobre cinema.

Há, ainda, o que podemos chamar de temas benjaminianos sobredeterminados, em razão de sua recorrência. Mas, mesmo nestes casos, a maior parte dos artigos apresenta algo novo ao leitor que se situa na fronteira entre o interessado e o especialista em Benjamin. Por exemplo, a imagem biográfica de um Walter Benjamin isolado se desfaz quando fica muito claro nos artigos centrais o reconhecimento que Benjamin teve dos seus pares, como ele compunha uma intelectualidade que recepcionava o que se produzia por pares numa Europa em que havia a oportunidade histórica do socialismo (veja a esse respeito os artigos sobre Benjamin e Adorno, Benjamin e Bloch, Benjamin e Lukács). Sobre Benjamin e Lukács, os artigos tratam do tema do conto de fadas, do problema da situação do romance, do tema da morte do narrador, que exigiam uma política. Estes artigos, por si só, mostram a inserção de Benjamin no debate internacional de comunistas na Europa. Igualmente, a crítica da noção de progresso na história de Ernst Bloch e de Benjamin é observada por um artigo – Bloch, com sua noção de “matéria da história”, determinou questões de filosofia da história, em uma peculiar física relativista da história. No artigo, o pensamento histórico de Ernst Bloch é relacionado aos conceitos de Benjamin, de modo que a rica interlocução dos dois autores é recuperada.

Essa amostragem procura dar ao leitor uma visão das virtualidades da coletânea, visto que uma apreciação dos 34 artigos seria excessiva para este espaço. No entanto, há um interesse informativo em se apresentar uma descrição sumária desses artigos distribuídos em cinco seções.

A primeira seção do livro se denomina “Das imagens da memória ao fetiche e suas fantasmagorias”, com seis artigos. O livro se abre com o texto de Gagnebin, que vê no Brasil um trauma da memória. Ela discute os conceitos de memória em Benjamin, a crítica ao historicismo, em relação aos traumas nacionais, evidenciando que, no Brasil, falta uma política da memória. O segundo artigo é, justamente, do diretor do Arquivo-Benjamin, Wizisla, que comenta o método de Benjamin associado às suas estratégias de publicação de um ensaio, “Um Instituto alemão de pesquisa livre” sobre o Instituto de Frankfurt. O terceiro é de um professor de Constança, Stiegler, cujo tema é o artigo “A pequena história da fotografia” e outros textos de Benjamin conexos. O quarto artigo é de Alambert, professor da USP, sobre a forma mercadoria da arte. O quinto artigo é de Grespan, também professor da USP, o qual vê em Benjamin um crítico do fetiche da mercadoria, faz uma análise instigante da visão de Benjamin acerca do modo capitalista no século XIX – sistema que é ainda o vigente, com isso destacando-se atualidade do texto de Benjamin (as considerações tecidas por Grespan atualizam a crítica de caráter marxista de Benjamin). O sexto artigo é de um pós-graduando da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Assis-SP, Dias Durães, sobre as Exposições Universais. As fantasmagorias (ou imagens) do século XIX são mostradas a partir da obra das Passagens, e se intui bem a opressão rente aos fetiches, o que também havia sido notado por Grespan, como pulsão de morte, pulsão para o inorgânico.

A segunda seção – “Passagens, Teoria da História e Revolução” – contém sete artigos. O primeiro artigo desta seção, ou seja, o sétimo da coletânea, é de autoria de Löwy, benjaminiano que dispensa apresentação e trata do tema do enfrentamento de classes em Paris no século XIX (barricadas, Haussmanização, Comuna de 1871). O oitavo artigo é de Bolle, já referido, e tem por brilhante tese que a categoria do hipertexto explica o plano da obra das Passagens. O artigo de Olgária Matos é sobre os interiores, as passagens e os pórticos, sobre a vontade de que a cidade fosse uma extensão confortável da vida privada, onirismo de uma sociedade que se sonha sem classes, que é a falsa representação que a sociedade burguesa capitalista faz de si mesma, expressão de sua falsa consciência. O décimo artigo, de Zimmer, professor em Girona, Espanha, compara as críticas ao progresso de Bloch e de Benjamin. O texto do organizador Jordão Machado compara muitos momentos da obra benjaminiana para associar montagem literária e tempo messiânico, levando o leitor a observar o contexto da inflação alemã pelos olhos de Benjamin. O décimo segundo artigo é de Chicote, de Buenos Aires, que compara os estilos de Benjamin e de Lukács, assim como observa a importância de História e Consciência de Classe para o marxismo ocidental. O décimo terceiro artigo é de uma professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), Pisani, que procura comparar o Marcuse tardio a Benjamin.

A terceira seção se intitula “Literatura, Música e Surrealismo” e traz seis artigos. O décimo quarto artigo, primeiro desta seção, tematiza algo muito interessante, a política de conto de fadas na Hungria, sob ordens de Lukács, e as diferenças entre Benjamin e Lukács quanto à função desse tipo de literatura para a infância em uma política socialista; o texto é de Gángó, um húngaro da Universidade de Budapeste. Tema semelhante ao do próximo artigo, de Vedda, de Buenos Aires, também organizador da coletânea, este mais focado em Benjamin, porém. Koval, também de Buenos Aires, trata da Teoria do Romance de Lukács e de sua recepção indireta por Benjamin. O décimo sétimo artigo, de dois professores de Buenos Aires, Orlante e Salinas, trata da clássica leitura de Benjamin da obra de Kafka. No sentido do significado brechtiano e benjaminiano da política da arte, o professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Bastos, defende a obra musical engajada de Eisler, colaborador de Brecht no teatro épico, em artigo brilhante, no qual ele discute a oposição entre a lógica imanente do material musical e o uso no teatro da música de vanguarda. O décimo nono artigo é de dois estudantes da Unesp de Assis, Azevedo e Franco, sobre o instantâneo do surrealismo na inteligência europeia segundo Benjamin.

O vigésimo artigo, que inicia a quarta seção da coletânea denominada “Melancolia, Brinquedo, Freud e Leituras”, com oito artigos, vem assinado por um docente da Universidade de Hildesheim, Alemanha, Tohlen, que trata da “negatividade” da arte considerada na teoria estética do ponto de vista da história natural em Adorno e em Benjamin, mostrando a influência de Benjamin em Adorno. Maria Rita Kehl é a próxima autora, e faz considerações sobre a depressão e melancolia nos diagnósticos contemporâneos, comparando o conceito de melancolia de Benjamin com a designação do diagnóstico de um tipo de mania por Freud. O artigo de número vinte e dois é do psicanalista Dionísio, professor na Unesp de Assis, que fala da pertinência do conceito de Benjamin de inconsciente ótico e da natureza do olhar e da escuta psicanalítica. O vigésimo terceiro artigo é de uma professora da Universidade de Buenos Aires, Castel, sobre a recepção de Freud por Benjamin, em um estudo detalhado das listas de leitura de Benjamin, assim como da apropriação de conceitos expressos da psicanálise, e também da crítica de Benjamin a Jung. O vigésimo quarto artigo, de outra professora de Buenos Aires, Belforte, trata da profunda questão da ética erótica no comentário e na crítica de Walter Benjamin ao romance As Afinidades Eletivas, de Goethe, em um artigo clássico da juventude de Benjamin, depois ela também escreve sobre a paixão de Benjamin por uma militante comunista e sobre como isso representou uma conversão existencial para Benjamin, manifesta no teor dos textos a partir de 1927. O vigésimo quinto artigo é sobre o modelo de reminiscência em Benjamin, da sua própria infância e sobre sua concepção do brinquedo e do brincar. O vigésimo sexto texto da coletânea é de um pós-doutorando da USP, Gonçalves, que tece consistente e ousada crítica à apropriação de Haroldo de Campos do conceito de tradução em Benjamin. O vigésimo sétimo é de autoria de três professoras de Faculdades de Educação do Estado de São Paulo, Barbosa (Unesp), Catani (USP) e Moraes (USP). Em um dos artigos mais longos, as autoras tecem um balanço, inclusive quantitativo – porém mais do ponto de vista do modo de apropriação -, da recepção e dos usos dos textos de Benjamin nas publicações sobre ensino e educação no Brasil.

O artigo de número vinte e oito, que inicia a quinta e última seção (composta por sete artigos) intitulada “Cinema, Alegorias e Imagens Urbanas”, escrito pelo consagrado crítico e professor de cinema da USP, Ismail Xavier, realiza leitura marcante acerca das alegorias do filme Metropolis, de Fritz Lang, um filme sempre clássico. É bem uma interpretação imanente do universo diegético de Metropolis, e, ao final do artigo, que é um dos mais longos da coletânea, a alegoria langiana é comparada à benjaminiana. Machado Jr., mais um organizador do livro, escreve o vigésimo nono artigo, sobre a experiência, mesmo marginal, de um tipo de cinema feito na década de 1970, no Brasil, que utilizava o Super-8 como instrumento audiovisual básico. É um tipo de cinema difícil de conhecer pela experiência marginal mesma que ele constituiu, mas no artigo há referências a filmes e a autores, assim como uma descrição da experiência, feita a partir de referenciais benjaminianos. O trigésimo artigo compara as visões de Benjamin e Kracauer sobre a situação do cinema na década de 1930 e sobre o que é próprio à sua natureza. O doutorando da Unesp, Sinaque Bez, autor do artigo, pretendeu realizar uma descrição breve, exemplar e histórica do cinema do terceiro mundo, observando as potencialidades descritas por estes autores na década de 1930. Uchôa, autor do trigésimo primeiro artigo, faz uma discussão entre Benjamin e Kracauer, do mesmo modo, mas com outro objetivo, trata-se da questão do ator no mundo de hoje. Zannato, no trigésimo segundo artigo, mostra as tensões políticas envolvidas nas tentativas de Paulo Emílio de exibir filmes soviéticos, na década de 1950, além de detalhar o trabalho deste cineasta, crítico, intelectual do desenvolvimento etc., ao longo de sua vida; o texto tem belo teor biográfico-histórico. O trigésimo terceiro artigo, de Almeida Leonel, já foi referido e trata da montagem, ou melhor, do conceito que tinha Chris Marker, cineasta francês, da montagem. O autor envolve o “agora de cognoscibilidade” à inteligibilidade histórica politizada que o seu cinema oferece, especialmente quanto aos eventos de 1968, na França. O último artigo é de uma docente da PUC-SP, Ana Amélia da Silva, sobre o filme-ensaio de Godard, Histoire (s) du cinema (1988-1998). Ela lança mão dos textos de Walter Benjamin para constituir um referencial filosófico e histórico que ajude a explicar o filme-ensaio, atendo-se às referências internas dele, mas com instrumental teórico dos frankfurtianos.

Realizado este cômputo, podemos dizer que, do ponto de vista do conjunto, o livro dividido em cinco seções possui delimitação mais ou menos artificial, visto que, para cada seção, pelo menos um artigo não apresenta clara vinculação com a unidade temática ou supomos poder se situar em outra seção. No entanto, essa incongruência chega a ser compreensível em uma coletânea tematicamente diversa, cujo conteúdo de cada artigo necessariamente extravasa os limites previstos em virtude da própria difusão conceitual da obra de Benjamin. Particularmente, a última seção, que é integrada por sete artigos sobre cinema, faz um uso mais livre dos textos de Benjamin.

Para uma história da recepção mundial da obra de Benjamin, o livro estaria inevitavelmente inserido no turbilhão de publicações da era do paper, mesmo que muitos dos seus autores, os quais fazem a pesquisa desde antes da era da internet e estão bem vivos, representem a recepção histórica nos diversos países e cederam texto à coletânea. Há, no conjunto, sobredeterminantes, quer dizer, reiteração temática, mas, pelo menos informativamente e formativamente, nenhum dos artigos deixa de valer a leitura. Não é o caso de que seriam os mais jovens recém-chegados simplesmente repetidores e de que os eruditos e exegetas mais experientes trariam a última palavra. Em suma, o livro-coletânea sintetiza o estado dinâmico e intenso dos estudos benjaminianos e ainda os promove e impulsiona. Além disso, como a maior parte dos autores é composta de brasileiros e brasileiras de diversas gerações, podemos reconhecer a edição como uma prova de que a recepção brasileira dos textos de Benjamin, iniciada mesmo antes de sua tradução para o português (PRESSLER, 2006), mantém uma tradição que permite aos acadêmicos benjaminianos brasileiros figurarem como interlocutores de seus congêneres estrangeiros, haja vista a comunidade multilíngue que o livro-coletânea em apreço reúne.

Referências

PRESSLER, G. K. Benjamin, Brasil: A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005: um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: Annablume, 2006. [ Links ]

Hélio Rebello CARDOSO JUNIOR. Professor Doutor – Prof. Adjunto de Filosofia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Av. Dom Antônio, 2100 – Parque Universitário, Assis – SP, 19806-900.

Júlio César Mioto – Professor Mestre – Mestrado em Filosofia. Universidade Estadual de Londrina, UEL, Brasil. Rodovia Celso Garcia Cid, Km 380, s/n – Campus Universitário, Londrina – PR, 86057-970.

Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning – HALL et. al. (B-RED)

HALL, J.; VITANOVA, G.; MARCHENKOVA, L. (Eds.). Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning: New Perspectives [Diálogos com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua ou de língua estrangeira: novas perspectivas]. Mahwah, New Jersey; London: Lawrence Erlbaum Associates, 2005. 241 p. Resenha de: MELO JÚNIOR, Orison Marden. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.2 São Paulo May./Aug. 2016.

A obra Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning: New Perspectives [Diálogo com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua e de língua estrangeira: novas perspectivas] – doravante Dialogue with Bakhtin – traz, em seu título, dois temas de grande interesse para os estudos da Linguística Aplicada: a abordagem dialógico-discursiva da linguagem apresentada e discutida pelo Círculo (de Bakhtin) e os estudos voltados ao processo de ensino-aprendizagem de uma segunda língua ou de uma língua estrangeira1. A preposição with [com] – Dialogue with Bakhtin – posiciona a obra dentro do escopo real de diálogo entre os temas, tendo em vista não haver, nos escritos do Círculo, um ensaio específico sobre o ensino de línguas estrangeiras, não permitindo que esse Dialogue with Bakhtin [Diálogo com Bakhtin] fosse apresentado como Bakhtin’s Dialogue [Diálogo de Bakhtin]. Essa observação torna, portanto, a obra, mesmo publicada em 2005, bastante relevante para as pesquisas no campo do discurso, em especial a Análise Dialógica do Discurso (ADD), por perceber a amplitude dos seus estudos, chegando ao campo do ensino de línguas, bem como para as pesquisas sobre o ensino de línguas (segunda e/ou estrangeira), por ser impactada pela concepção (dialógica) de linguagem do Círculo. É importante a lembrança, entretanto, de que Bakhtin discorre sobre questões de estilística no ensino de língua materna (russo) em um ensaio que, traduzido para o português por Sheila Grillo e Ekaterina Américo, foi publicado pela Editora 34 em 2013. Segundo Beth Brait, em sua apresentação à obra, “Bakhtin também se preocupava com um ensino [ensino da língua russa no ensino médio] que, tratando abstratamente a língua, não lograva de fato ensinar seu comportamento vivo aos alunos” (2013, p.9-10)2.

Dialogue with Bakhtin é organizado por Joan Kelly Hall, da Pennsylvania State University, Gergana Vitanova, da University of Central Florida, and Ludmila Marchenkova, da Ohio State University, ou seja, por três pesquisadoras de diferentes universidades que, em um encontro da American Association of Applied Linguistics [Associação Americana de Linguística Aplicada], em 2002, mostraram interesse em compartilhar os seus estudos sobre a filosofia de linguagem de Bakhtin e as implicações dessa concepção na aprendizagem de línguas. Ao ser publicada em 2005, a obra tornou-se, portanto, a primeira, nos Estados Unidos, a explorar a relevância dos estudos bakhtinianos para as pesquisas e as práticas pedagógicas voltadas à aprendizagem de segunda língua e/ou língua estrangeira.

Com 241 páginas, Dialogue with Bakhtin é dividido em dois blocos, sendo o primeiro o maior: enquanto a primeira parte do livro (p.9-169), intitulada Investigations into Contexts of Language Learning and Teaching [Investigações em contextos de aprendizagem e ensino de língua], é composta de sete capítulos, em que cada um apresenta um estudo de caso específico, a segunda parte (p.170-231), intitulada Implications for Theory and Practice [Implicações para a teoria e prática], traz três capítulos de discussão teórica (Capítulo 9: Language, Culture, and Self: The Bakhtin-Vygotsky Encounter [Língua, cultura e o indivíduo: um encontro entre Bakhtin e Vygotsky], Capítulo 10: Dialogical Imagination of (Inter)cultural Spaces: Rethinking the Semiotic Ecology of Second Language and Literacy Learning [Imaginação de espaços (inter)culturais: repensando a ecologia semiótica da aprendizagem de segunda língua e de letramento] e Capítulo 11: Japanese Business Telephone Conversations as Bakhtinian Speech Genre: Applications for Second Language Acquisition [Conversas de negócios ao telefone no Japão como gênero do discurso bakhtiniano: aplicação na aquisição de segunda língua]. É importante a menção, no entanto, de que o livro abre com um capítulo introdutório, escrito pelas organizadoras. Intitulado Introduction: Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning [Introdução: diálogo com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua e de língua estrangeira], o texto se inicia com uma discussão sobre os estudos voltados à aprendizagem de língua e sobre a influência que a visão formalista exerceu sobre essa área do conhecimento. Diante das limitações impostas por essa perspectiva teórica no campo da linguagem (o que inclui o ensino de línguas estrangeiras), as autoras apresentam a contribuição de Bakhtin para a compreensão de um novo conceito de linguagem, que, deixando de ser entendida como um conjunto de sistemas fechados de formas normativas, é apresentada como “constelações dinâmicas de recursos socioculturais que estão fundamentalmente vinculados aos seus contextos sociais e históricos” (p.2)3. Com base nessa concepção de linguagem, apresentam, ainda que rapidamente, os conceitos de enunciado, gênero do discurso e dialogismo, e apontam para duas implicações da assunção dessa perspectiva para o entendimento do processo de ensino-aprendizagem de uma segunda língua e/ou língua estrangeira, ou seja, a compreensão (por professores e alunos) de que (1) a língua é viva e de que (2) a aprendizagem acontece na interação social (e não na cognição individual do aluno).

Por ser uma obra voltada às implicações da teoria dialógica no campo do ensino de segunda língua e língua estrangeira, Hall, Vitanova e Marchenkova compilam sete pesquisas empíricas na primeira parte do livro. Como não há uma explicação sobre a ordenação dos capítulos, faremos a sua breve apresentação segundo a própria distinção entre ensino de segunda língua e de língua estrangeira, reconhecendo que outros critérios poderiam ser adotados, como o nível de escolaridade dos alunos-sujeitos de pesquisa ou os conceitos da ADD utilizados. Quase todas as pesquisas estão relacionadas com o ensino de inglês, quer como segunda língua (English as a Second Language – ESL) quer como língua estrangeira (English as a Foreign Language – EFL). Apenas uma voltou-se ao estudo de suaíle em uma universidade americana, ou seja, ao suaíle como língua estrangeira (Swahili as a Foreign Language – SFL).

Os capítulos relacionados a ESL são os capítulos 2, 3, 4, e 8. O capítulo 2, intitulado Mastering Academic English: International Graduate Students’ Use of Dialogue and Speech Genres to Meet the Writing Demands of Graduate School [O domínio do inglês acadêmico: o uso do diálogo e dos gêneros do discurso por alunos estrangeiros de pós-graduação a fim de suprir as exigências da escrita acadêmica em cursos de pós-graduação], é o resultado de uma pesquisa feita por Karen Braxley da University of Georgia. Concentrando-se, em especial, nos conceitos de dialogismo e gêneros do discurso, ela busca ajudar cinco alunas de pós-graduação a apropriar-se dos gêneros acadêmicos escritos.

No capítulo 3, intitulado Multimodal Representations of Self and Meaning for Second Language Learners in English-dominant Classrooms [Representações multimodais do ser e do significado para aprendizes de segunda língua em salas de aula em Língua Inglesa], Ana Christina DaSilva Iddings da Vanderbilt University, John Haught e Ruth Devlin, ambos da University of Nevada, analisam, apoiados no conceito de dialogismo e na sua relação com o heterodiscurso e a noção de sentido, as relações entre signo, significado e língua estabelecidas por duas alunas estrangeiras, uma da Tailândia e a outra de Cuba, recém-chegadas aos EUA, em uma sala de aula do terceiro ano do ensino fundamental. Escolhemos usar o termo heterodiscurso (em vez de plurilinguismo ou heteroglossia) conforme apresentado por Paulo Bezerra em sua tradução do ensaio de Bakhtin O discurso no romance. Para Bezerra (2015), o termo heterodiscurso “traduz a estratificação interna da língua e abrange a diversidade de todas as vozes socioculturais em sua dimensão histórico-antropológica” (p.247)4.

O capítulo 4, Dialogic Investigations: Cultural Artifacts in ESOL Composition Classes [Investigações dialógicas: artefatos culturais em aulas de redação de inglês como segunda língua], apresenta a pesquisa de Jeffery Lee Orr da University of Georgia feita com cinco alunos estrangeiros no primeiro ano de curso universitário. Com base no conceito de dialogismo e na sua relação com significado e ideologia, o pesquisador busca demonstrar a seus alunos a natureza dialógica da língua, contribuindo dessa forma para o seu desenvolvimento ideológico.

No capítulo 8, Authoring the Self in a Non-Native Language: A Dialogical Approach to Agency and Subjectivity [Ter autoria de uma língua não nativa: uma abordagem dialógica aos conceitos de agente e subjetividade], Gergana Vitanova, da University of Central Florida, busca analisar, a partir de conceitos de agência e autoria, como cinco imigrantes do leste europeu nos EUA podem ter autoria dos seus discursos em uma segunda língua e como podem exercer um papel de agente. Essa pesquisa é apresentada de forma completa na obra Authoring the Dialogic Self [Dando autoria ao ser dialógico], publicada em 20105.

Os capítulos relacionados à língua estrangeira são o 5, 6 e 7, sendo o 5 e 6 a EFL (inglês como língua estrangeira) e o 7, a SFL (suaíle como língua estrangeira). No capítulo 5, intitulado Local Creativity in the Face of Global Domination: Insights of Bakhtin for Teaching English for Dialogic Communication [Criatividade local em face da dominação global: insights de Bakhtin no ensino de inglês para a comunicação dialógica], Angel M. Y. Lin, da City University of Hong Kong, e Jasmine C. M. Luk, da Hong Kong Institute of Education, a partir do conceito de dialogismo e da sua relação com o heterodiscurso e a criatividade linguística, investigam como a prática do ensino de língua inglesa reflete e refrata a hegemonização da língua no país e como os professores podem recriar a sua ação pedagógica a fim de auxiliar os alunos a por em diálogo a língua inglesa e os estilos e as variações linguísticas do seu idioma local e a usar a própria criatividade linguística deles. O texto, muito mais reflexivo do que empírico (apesar da amostragem do trabalho feito com 40 alunos do ensino médio em Hong Kong), chama a atenção para os currículos escolares que necessitam promover o acesso dos alunos ao heterodiscurso social, dando-lhes espaço para tornar o inglês “uma língua própria ao povoá-la com seus significados e vozes” (p.95)6, permitindo, dessa forma, “o enriquecimento do processo de ensino-aprendizagem do inglês como uma língua para a comunicação globalizada e para o questionamento de temas locais e globais que concernem os diferentes papéis e posições das diferentes formas de uso do inglês no mundo” (p.96)7. Esse posicionamento das pesquisadoras, na contramão de posições hegemônicas da língua inglesa e de seu ensino, remete ao conceito de World English [inglês mundial], apresentado por Kanavillil Rajagopalan, em seu artigo The Concept of ‘World English’ and its Implications for ELT [O conceito de inglês mundial e suas implicações no ensino de língua inglesa]8. Para o autor, “falar inglês é simplesmente outra maneira de chamar a atenção ao fato de que ele [o World English] é uma arena onde interesses e ideologias conflitantes estão constantemente em jogo” (p.113)9.

O capítulo 6, ainda no campo de EFL, é intitulado Metalinguistic Awareness in Dialogue: Bakhtinian Considerations [Consciência metalinguística em diálogos: considerações bakhtinianas]. O texto apresenta a pesquisa feita por Hannele Dufva e Riikka Alanen, da University of Jyvaskyla, com 20 crianças entre 7 e 12 anos em uma escola de ensino fundamental na Finlândia. As pesquisadoras, com base nos conceitos de dialogismo de Bakhtin e de mediação de Vygotsky, visam a investigar a consciência metalinguística (na ação) de alunos e a sua relação com a aprendizagem de língua estrangeira.

No último capítulo a ser apresentado, o 7º., intitulado “Uh uh no hapana”: Intersubjectivity, Meaning, and the Self [“Uh uh no hapana”: intersubjetividade, significado e o ser], Elizabeth Platt, da Florida State University, investiga, com base no conceito de dialogismo e da sua relação com intersubjetividade e a noção de sentido, como duas alunas estrangeiras em um curso de pós-graduação produzem sentido a partir do conhecimento limitado que tinham do suaíle (SLE), língua-alvo das aulas, e como construiriam a sua própria identidade de aprendizes dessa língua.

Dialogue with Bakhtin [Diálogo com Bakhtin] é, portanto, não apenas um diálogo com a concepção de linguagem proposta pelo Círculo (de Bakhtin), mas um diálogo entre pesquisas e pesquisadores de diferentes universidades em diferentes partes do mundo que, ao se apropriarem total ou parcialmente do aporte teórico do Círculo ou ao promoverem um encontro de Bakhtin com outros autores, refletem sobre o ensino de segunda língua ou língua estrangeira. A riqueza da obra fica estabelecida pelo fato de ela trazer não uma “aplicação” dos conceitos para a área do ensino de línguas, mas de promover um diálogo entre as duas áreas, permitindo que o ensino seja impactado por essa concepção de linguagem, que vê a interação verbal como a sua realidade fundamental (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010, p.127)10.

Por conseguinte, o conceito de dialogismo, ou de concepção dialógica da linguagem, foi bastante recorrente entre os pesquisadores. No entanto, ao trazerem Volochínov para o centro de suas discussões por meio da obra Marxismo e filosofia da linguagem (2010), apenas Dufva e Alanen, no capítulo 6, na seção Discussion [Discussão], apontam para o fato de o autor russo ter ventilado a questão da aprendizagem/assimilação de língua, que, para ele, só acontece quando os indivíduos “penetram na corrente da comunicação verbal” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010, p.111)11. Entretanto, em nenhum momento, nem Dufva e Alanen, nem os outros pesquisadores apresentam a discussão que Volochínov desenvolve sobre a diferença entre sinal e signo, sendo sinal o conteúdo imutável, abstraído do domínio da ideologia, e a relação desses conceitos com a aprendizagem de línguas. Segundo Volochínov (2010, p.97), quando a assimilação de uma língua estrangeira se encontra no nível da sinalidade (como sinal), do mero reconhecimento, “a língua ainda não se tornou língua. A assimilação ideal de uma língua dá-se quando o sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão”12. O próprio Volochínov traz uma nota de rodapé em que discorre, de forma abreviada, sobre métodos eficazes de ensino de línguas vivas estrangeiras e assevera que “um método eficaz e correto de ensino prático exige que a forma seja assimilada não no sistema abstrato da língua […], mas na estrutura concreta da enunciação, como um signo flexível e variável” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010, p.98)13. Acreditamos que essa discussão enriqueceria a obra, pois permitiria que seus leitores compreendessem que, apesar de não haver um ensaio específico sobre o ensino de línguas (estrangeiras), o tema não passou despercebido do Círculo, chegando a ser formalmente discutido por Bakhtin (2013)14 e de forma mais abreviada por Volochínov (2010)15.

Por fim, Dialogue with Bakhtin [Diálogo com Bakhtin] é uma grande contribuição para a Linguística Aplicada no que tange ao diálogo feito com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua ou de língua estrangeira. Esperamos, portanto, que a obra seja mais divulgada em nosso país, tendo em vista o crescimento do número de pesquisadores da área de ensino de línguas estrangeiras que passam a adotar a perspectiva dialógica da linguagem nas suas práticas pedagógicas, bem como de analistas do discurso que ampliam o seu escopo de pesquisa para discursos voltados ao ensino de línguas.

1É necessário se estabelecer a diferença entre a aprendizagem de segunda língua e de língua estrangeira. Segundo o Longman Dictionary of Language Teaching & Applied Linguistics (2010), apesar de aprendizagem segunda língua ser um termo mais genérico, ao ser contrastado com o de língua estrangeira, passa a ter um sentido mais específico: diferentemente da aprendizagem de língua estrangeira, a aprendizagem de segunda língua acontece em um espaço onde essa língua exerce um papel importante de comunicação, comércio, escolaridade, etc. Como exemplo dessa definição, poderíamos citar as seguintes situações: ao fazermos, como falantes do português brasileiro, um curso de inglês em uma universidade estadunidense, o inglês é estudado (e abordado) como segunda língua. Entretanto, se estudarmos inglês em uma escola de idiomas ou em um curso de Letras-Inglês no Brasil, como o oferecido pela UFRN, o inglês é estudado (e abordado) como língua estrangeira. [RICHARDS, J.; SCHMIDT, R. Longman Dictionary of Language Teaching & Applied Linguistics. 4.ed. Harlow, England: Pearson Education, 2010.]

2BAKHTIN, M. Questões de estilística no ensino de língua. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Américo. São Paulo: Editora 34, 2013.

3No original: “dynamic constellations of sociocultural resources that are fundamentally tied to their social and historical contexts”.

4BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015.

5VITANOVA, G. Authoring the Dialogic Self: Gender, Agency and Language Practices. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins Publishing Co., 2010.

6Texto no original: “a language of their own by populating it with their own meanings and voices”.

7Texto no original: “to enrich the learning of English as a language for globalized communication and for interrogating both local and global cultural issues revolving around the differential roles and statuses of different ways of using English in our world”.

8RAJAGOPALAN, K. The Concept of ‘World English’ and Its Implications for ELT. ELT Journal, vol. 58, n. 2, p.111-117, 2004. Disponível em: [http://eltj.oxfordjournals.org/content/58/2/111.full.pdf+html]. Acesso em: 27 fev. 2016.

9Texto no original: “to speak of English as a world language is simply another way of drawing attention to the fact that it is an arena where conflicting interests and ideologies are constantly at play”.

10BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. 14. ed. São Paulo: HUCITEC, 2010.

11Para referência, ver nota de rodapé 10.

12Para referência, ver nota de rodapé 10.

13Para referência, ver nota de rodapé 10.

14Para referência, ver nota de rodapé 2.

15Para referência, ver nota de rodapé 10.

Orison Marden Bandeira de Melo Júnior – Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Natal, RN, Brasil; [email protected]

Teoria do romance I: a estilística – BAKHTIN (B-RED)

BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. 256p. Resenha de: FARIA E SILVA, Adriana Pucci Penteado de. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2016.

Serguei Botcharov (1929) e Vadim Kójinov (1930-2001) herdaram os direitos autorais da obra de Bakhtin. No início da década de 1960, quando ainda eram jovens estudantes em Moscou, foram responsáveis, com outro colega, Géorgui Gachev, pelo fenômeno da redescoberta de Bakhtin. Isso se deveu ao empenho dos jovens em editar os trabalhos do autor, cujos textos conheceram em seminários da pós-graduação.

A redescoberta, de certa forma, continua até hoje. Empenhado em recuperar os originais de Bakhtin, Botcharov foi um dos protagonistas do projeto da nova edição russa de suas Obras reunidas1. Dentre os resultados desse projeto, há uma nova edição do trabalho A teoria do romance, escrito por Bakhtin nos anos 1930. Essa edição corresponde ao terceiro tomo das Obras reunidas e foi publicada na Rússia apenas em 2012, mas tanto Kójinov como Botcharov trabalharam em sua organização.

Em relação à edição anterior, de 1975, intitulada Vopróssi literaturi e estétiki, traduzida no Brasil como Questões de literatura e de estética. A teoria do romance2, em primeira edição de 1988, há significativas diferenças no volume publicado em russo, em 2012.

Uma alteração visível apenas por via da comparação dos sumários é a supressão do ensaio que constitui o capítulo inicial de Questões de literatura e de estética, ou seja, O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária, de 1924. Tal ensaio, nas Obras reunidas em russo, está no Tomo 1, de 2003, que reúne trabalhos sobre filosofia e estética publicados majoritariamente na década de 1920.

Mais significativa diferença, porém, reside na base do novo volume, que é o original datilografado por Bakhtin, recuperado pelos já citados organizadores. A nova edição russa incorpora, como notas de rodapé, todas as anotações feitas à mão pelo pensador russo, além de trazer também, com clara distinção sobre a natureza de cada inserção, as notas do texto original que já eram conhecidas dos leitores da publicação anterior.

Ao leitor brasileiro ainda cabe o privilégio de ter mais uma tradução diretamente do russo da obra bakhtiniana Teoria do romance. Nosso Questões de literatura e de estética. A teoria do romance3 também veio de forma direta da língua russa e sua tradução foi realizada por uma equipe liderada pela pesquisadora Aurora Fornoni Bernardini. É um trabalho de qualidade incontestável, que ganha, em 2015, a possibilidade do diálogo com a tradução de Paulo Bezerra, nome de destaque no cenário da recepção das obras de Bakhtin no Brasil.

Paulo Bezerra, de fato, é um dos expoentes dos estudos bakhtinianos no Brasil. Sua carreira docente estendeu-se pela Universidade de São Paulo/USP, onde defendeu a livre-docência, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UFRJ e pela Universidade Federal Fluminense/UFF, na qual, já aposentado, continua a atuar como professor de crítica literária. Na página 253 de Teoria do romance I: a estilística, a seção identificada como Sobre o tradutor traz mais detalhes de sua carreira, além de listar algumas das mais de quarenta obras que Paulo já traduziu do russo, com destaque para títulos assinados por Dostoiévski.

Paulo Bezerra é também responsável pelas edições traduzidas diretamente do russo de importantes obras de Bakhtin, como Estética da criação verbal4 e Problemas da poética de Dostoiévski5. Seu conhecimento profundo do horizonte cultural da Rússia e seu empenho por sua divulgação foram reconhecidos pelo governo daquele país, que lhe concedeu, em 2012, a Medalha Púchkin. É, portanto, o mediador ideal para que o leitor brasileiro estabeleça um diálogo com a voz de Bakhtin em Teoria do romance I. A estilística.

As badanas do livro trazem uma apresentação de Cristóvão Tezza, que ressalta, como leitor apaixonado, a importância do trabalho de Bakhtin que o leitor tem em mão.

No prefácio, Bezerra contextualiza a nova tradução, explica algumas decisões dos organizadores e narra a gestação do trabalho Teoria do romance por Bakhtin. Também apresenta a decisão, que atribui a si e à editora, de publicar no Brasil a nova e definitiva versão de Teoria do romance em três volumes. Na última subseção, intitulada Esta tradução, Bezerra aponta, com elegância, para lacunas ou incoerências que afetam algumas edições em português da obra de Bakhtin e questiona as consequências que elas podem gerar na apreensão do pensamento bakhtiniano. Um destaque nesta discussão é a justificativa de sua escolha pelo termo heterodiscurso para o conceito anteriormente traduzido como heteroglossia ouplurilinguismo.

No corpo do texto, nesse primeiro volume, apresenta-se, em comparação com a tradução anterior, apenas o capítulo O discurso no Romance. Estão ausentes, portanto, capítulos nomeados em Questões de literatura e de estética como Formas de Tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica) e suas subdivisões, bem como Da pré-história do discurso romanesco; Epos e romance (sobre a metodologia do estudo do romance) e Rabelais e Gógol (Arte do discurso e cultura cômica popular).

O leitor que conhece Questões de literatura e de estética: a teoria do romancenotará, ainda, a inclusão de um subtítulo para a introdução do único capítulo presente na nova tradução: As questões da estilística do romance. Na edição anterior, apenas dois parágrafos, reunidos em uma única página, (p.71, na edição de 1993), constituíam tal introdução. Na edição nova, além de ganhar um subtítulo, a introdução, de nove parágrafos divididos em três páginas e meia, tem acréscimos importantes de considerações de Bakhtin sobre os desafios de se elaborar um estudo sobre a linguagem do romance “à luz das ideias do realismo socialista” (BAKHTIN, 2015, p.19).

Nos demais subtítulos do capítulo O discurso no romance, há importantes alterações, já que na edição anterior as anotações manuscritas de Bakhtin haviam sido ora suprimidas, ora inclusas no corpo do texto, e não como notas de rodapé.

Veja-se, por exemplo, a nota que indica uma anotação manuscrita de Bakhtin na página 42 de Teoria do romance I: a estilística: “A comunhão de cada enunciado com um ‘língua única’ […] e, ao mesmo tempo, com o heterodiscurso social e histórico (forças centrífugas, estratificadoras)”. Em Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, essa nota foi incorporada ao texto, fechando o segundo parágrafo que se inicia na página 82 (edição de 1993).

O mesmo se observa em diversos outros pontos, como a nota correspondente a um trecho manuscrito de Bakhtin na página 137 da nova tradução, sobre a palavra autoritária: “A zona do contexto moldurador também deve ser distante, aí, o contato familiar é impossível O descendente distante percebe e interpreta; a discussão é impossível”. Tal nota, na edição anterior, estava incorporada ao texto, aparecendo no terceiro parágrafo da página 144 (edição de 1993).

Perceber o que estava à margem, como reflexão ainda não incorporada ao texto, leva o leitor a compreender que, por vezes, o que pode parecer uma ideia truncada ou circular não estava, na verdade, inserido por Bakhtin no fio de seu discurso. Essa é uma das grandes contribuições da nova edição russa e do novo trabalho de tradução de Bezerra.

Voltando às diferenças no sumário, os subtítulos do capítulo O discurso no romance, na tradução anterior, eram os seguintes: I A estilística contemporânea e o romance; II O discurso na poesia e o discurso no romance; III O plurilinguismo no romance; IV A pessoa que fala no romance e V Duas linhas estilísticas do romance europeu. Na nova tradução, encontramos: 1. A estilística atual e o romance; 2. O discurso na poesia e o discurso no romance; 3. O heterodiscurso no romance; 4. O falante no romance e 5. As duas linhas estilísticas do romance europeu.

Notas do tradutor explicam a maioria das escolhas que acarretaram as mudanças mais significativas em termos lexicais. O leitor ainda tem à disposição, no final do livro, a seção Breve glossário de alguns conceitos-chave, em que Bezerra traz muitos termos no original russo, em alfabeto cirílico, sua transliteração para o alfabeto latino, uma breve explanação do conceito e a justificativa das escolhas de tradução.

A obra Teoria do romance I: a estilística é o inicio de um novo diálogo com um dos textos de Bakhtin mais conhecidos pelos pesquisadores brasileiros. Conhecer uma forma que se aproxima mais do original datilografado não poderia deixar de ser, para bakhtinianos, a entrada num novo mundo de sentidos e de conteúdos por essa forma gerados.

Haverá, talvez, a concorrência de termos advindos de traduções diferentes para tratar de mesmos conceitos. É difícil prever se o termo heterodiscurso, talvez contaminado pela forma que remete a questões de gênero em embate com a heteronorma, substituirá o já consagrado termo plurilinguismo nos trabalhos dos pesquisadores brasileiros que se debruçam sobre o pensamento bakhtiniano, ou se a expressão “a pessoa que fala no romance” será naturalmente substituída por “o falante no romance”. Esses termos estiveram à nossa disposição por vinte e dois anos e povoam uma infinidade de publicações sobre os mais diversos tópicos de pesquisa à luz dos estudos bakhtinianos.

No entanto, a contribuição da nova tradução não pode, de maneira nenhuma, ser reduzida a uma maior precisão terminológica. Trata-se de um texto que se aproxima da voz de seu autor, do próprio acabamento estético que Bakhtin deu à sua obra. E contemplar esse trabalho na companhia de Paulo Bezerra é, indubitavelmente, um grande privilégio.

1Sobre essa edição, ver a resenha de Sheila Grillo em Bakhtiniana, São Paulo, v. 1, n. 1, p.170-174, 1º sem. 2009. A autora gentilmente nos cedeu as seguintes informações: o projeto inicial previa a publicação dos sete tomos citados na resenha, mas o sétimo, que traria as obras de autoria disputada, não será realizado. Os demais tomos foram publicados e o projeto está concluído.

2BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. 5 ed. São Paulo: Editora da UNESP e HUCITEC, 1993.

3Ver nota anterior para referências.

4BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

5BAKHTIN, M.M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010.

6Ver nota 2.

Adriana Pucci Penteado de Faria e Silva – Universidade Federal da Bahia – UFBA, Salvador, Bahia, Brasil; [email protected].

Cardenio entre Cervantès et Shakespeare: Histoire d’une pièce perdue – CHARTIER (Topoi)

CHARTIER, Roger. Cardenio entre Cervantès et Shakespeare. Histoire d’une pièce perdue. Paris: Gallimard, 2011. Resenha de: SOBRAL, Luís Felipe. “Ler um texto que não existe”. Topoi v.17 n.32 Rio de Janeiro Jan./June 2016.

O problema parece extraído de um conto de Borges. Em duas ocasiões, datadas de 20 de maio e 9 de julho de 1613, o registro de contas do Tesoureiro da Câmara de James I, rei da Inglaterra, assinalou pagamentos a John Heminges, um dos atores e proprietários dos King’s Men, chamados oficialmente de Grooms of the Chamber, pelas representações recentes de uma peça teatral intitulada Cardenno ou Cardenna. Sabe-se que o foco de tal peça é Cardenio, personagem cujo drama amoroso é narrado intermitentemente no primeiro livro do Quixote; mas o seu conteúdo exato é desconhecido, uma vez que ela nunca foi impressa, o que era então comum, e nenhum manuscrito seu jamais sobreviveu. Ao contrário dos contos de Borges, repletos de títulos e autores apócrifos, o problema tratado aqui não se circunscreve à proliferação de obras, mas a sua própria carência; no entanto, o desafio enfrentado pelo historiador Roger Chartier se aparenta, pelo seu caráter insólito, aquele que se propunha frequentemente o escritor argentino, pois seu objetivo não é outro senão, de acordo com o título de sua introdução, ler esse texto que não existe ou, mais precisamente, que pereceu no escoamento do tempo. A rigor, o conteúdo estrito da peça encenada pelos King’s Men é inapreensível, e assim permanecerá, a menos que surja algum manuscrito inédito capaz de reverter a situação. Mas o problema proposto pelo autor não se refere a uma leitura literal; na verdade, como ele já havia anunciado pelo menos desde sua aula inaugural no Collège de France, onde dedicou, na cadeira nomeada “Escrita e culturas na Europa moderna”, seus dois primeiros cursos a Cardenio, seu interesse maior reside no próprio fundamento da leitura e da autoria, interpelado através das noções de circulação, de apropriação e de prática cultural.1

Ainda que o texto da peça seja hoje efetivamente desconhecido, pode-se recorrer, no intuito de realizar uma leitura indireta, a uma série diversificada de fontes, a começar pelo próprio romance de Cervantes, no qual Cardenio aparece a partir do capítulo XXIII do primeiro livro.2 Dom Quixote e Sancho Pança encontram Cardenio na Sierra Morena, região inóspita na qual se escondem logo após terem libertado, com consequências desastrosas, um grupo de prisioneiros condenados às galés. Tal encontro é precedido pelo rápido vislumbre de um homem de aspecto roto saltando “de pedra em pedra e de moita em moita com estranha ligeireza”.3 Um velho cabreiro que aí vive alega desconhecer os motivos que o levaram a essa situação, mas ele conta que o roto encontra-se em um estado de penúria tanto física, apresentando-se faminto e esfarrapado, como mental, oscilando entre uma lucidez melancólica e rompantes violentos de delírio. Em um desses momentos lúcidos, o próprio roto, que não é outro senão Cardenio, surge e relata sua história desgraçada. Ele amava Luscinda e pretendia se casar com ela, mas foi vítima do golpe traiçoeiro de D. Fernando, seu próprio amigo. Enquanto Cardenio encontrava-se ausente a serviço de Fernando, este aproveitou para pedir a mão de Luscinda a seu pai, que aceitou com ganância o pedido vindo do filho de um duque. Ao tomar conhecimento disso através de uma carta de Luscinda, Cardenio dirigiu-se imediatamente à casa da amada, conseguindo se infiltrar secretamente aí quando o casamento estava prestes a começar; do vão de uma janela, ele assistiu impotente à cerimônia, que se encerrou com o desmaio de Luscinda e a descoberta em seu peito de um papel fechado, que Fernando tomou para ler. Amargurado por seu infortúnio, Cardenio vagou sem rumo, alcançando enfim a Sierra Morena, onde perdeu o juízo e conheceu a miséria. Este não é contudo o fim dessa história, cujos demais personagens surgem para contá-la de sua própria perspectiva e acabam se misturando às aventuras do protagonista do romance: por exemplo, Dorotea, amada de Fernando, participa do estratagema, arquitetado pelo padre e pelo barbeiro, amigos do cavaleiro errante, para levar este de volta a sua aldeia, resgatando-o assim de seu desatino; ela torna-se então a princesa Micomicona, cujo reino D. Quixote promete livrar de um gigante usurpador.4

Qualquer que tenha sido o conteúdo da peça encenada pelos King’s Men, ele se alimentou, ao menos em sua orientação dramática inicial, da história narrada por Cervantes, o que pressupõe necessariamente a precedência do Quixote na Inglaterra. A primeira tradução do primeiro livro do romance de Cervantes foi justamente a inglesa, realizada por Thomas Shelton e publicada em 1612 por Edward Blount, um dos livreiros londrinos que seriam mais tarde responsáveis pela impressão do primeiro fólio de Shakespeare, a primeira coletânea de peças do bardo. No entanto, várias referências ao Quixote precederam na Inglaterra essa tradução, pois tal romance conhecera até então nada menos que nove edições e treze mil e quinhentos exemplares, alcançando uma ampla circulação que ultrapassava a península ibérica e a América espanhola; os ingleses contavam com dicionários, manuais e gramáticas dedicados à língua castelhana, publicados em Londres desde 1590, e a tradução de Shelton circulou em manuscrito antes de ser impressa. Ainda que houvesse uma forte tendência no teatro inglês a retratar comicamente os espanhóis, um efeito persistente das tentativas da coroa espanhola em derrubar a rainha Elizabeth nas décadas anteriores, a língua e a literatura castelhanas gozavam então de um imenso prestígio, que sem dúvida não se limitava à Inglaterra. No entanto, observa Chartier, a peça em questão não se foca em D. Quixote, protagonista do romance, mas em Cardenio.

O problema é formulado então da seguinte maneira:

Não saberemos sem dúvida jamais como o que Cervantes designa no inglês de Shelton como “so thwart, intricate, and desperate affaires” (“tan trabados y desesperados negocios” [“essas aventuras tão emaranhadas e tão desesperadas”]) foi levado à cena pelos atores do rei quando em 1612 ou 1613, por duas vezes, eles representaram Cardenio. Se a tradução de Shelton, fiel ao texto de Cervantes, propunha materiais imediatamente utilizáveis para uma peça de teatro, com momentos espetaculares (o casamento, a sedução, os reconhecimentos, as despedidas), diálogos dramáticos e monólogos interiores, o mesmo não ocorria com a própria construção da intriga. Como transformar de fato em uma narrativa linear o que estava dado em Dom Quixote como uma série de recapitulações na qual cada narração acrescentava episódios conhecidos somente por aquele ou aquela que convocava o passado em sua memória? E, mais difícil ainda, como tratar no teatro o enredamento das duas histórias que advém desde que Dorotea entra no papel da princesa Micomicona? O desafio não era pequeno, pois ele podia conduzir seja a representar os amores de Cardenio e Fernando sem ligá-los de nenhuma maneira às aventuras de Dom Quixote, seja a inventar uma fórmula que permitisse associar em cena o desatino cômico do cavaleiro errante e a novela sentimental dos amantes separados depois reunidos. Uma peça fundada sobre Dom Quixote podia ignorar seu herói principal? Ou bem devia ela, como a história publicada em 1605, jogar múltiplos efeitos que produz o encontro entre as loucuras de Dom Quixote e as de Cardenio?5

“Na ausência do Cardenio de 1613”, afirma Chartier, “apenas uma série de hipóteses pode dar conta da decisão que transforma em uma peça teatral essa história de amores contada por vários de seus protagonistas ao longo dos capítulos de Dom Quixote”.6 Mas essa série de hipóteses não é dirigida somente às fontes contemporâneas das encenações realizadas pelos King’s Men; ela estende-se no tempo e no espaço, rastreando as diversas apropriações e, portanto, também as transformações, sofridas pela história de Cardenio.

Logo após o romance de Cervantes ter vindo a público em 1605, o valenciano Guillén de Castro publicou uma peça em três atos intitulada Don Quijote de la Mancha que tratava na verdade da história de Cardenio, desta vez um camponês que se descobre filho de um duque. Os personagens do Quixote não saíam contudo das páginas do livro para entrar somente nas peças teatrais; na Espanha, eles disseminaram-se rapidamente também nas festas, fossem elas nobres ou populares, persistindo como figuras familiares entre um público numeroso e diversificado. Havia, porém, um contraste marcante entre as adaptações teatrais e festivas: se as primeiras interessavam-se sobretudo por Cardenio, este ausentava-se quase completamente das segundas em benefício de D. Quixote e dos demais personagens da trama principal. “A história escrita por Cervantes”, explica o autor, “permitia as duas apropriações porque ela propunha, em um mesmo livro, figuras cômicas que podiam ser destacadas da trama de suas aventuras, começando com o próprio D. Quixote; e uma intriga dramática, inicialmente trágica e afortunadamente desatada, que fornecia peripécias, surpresas e disfarces bons para a cena”,7 ou seja, o drama de Cardenio. Desde a publicação de seu primeiro livro, o Quixote não era visto somente como uma paródia dos romances de cavalaria; ele apresentava-se também como uma antologia de novelas, de histórias dentro da história, entre elas a de Cardenio, particularmente propícias, devido as suas reviravoltas inesperadas, à encenação teatral.8 É assim que, ainda no continente, encontram-se em Paris, na primeira metade do século XVII, momento em que a língua e a literatura castelhana eram muito populares entre a elite, estimulando, portanto, a circulação do Quixote, outras adaptações teatrais do infortúnio de Cardenio, uma delas mais libertina que a de Guillén de Castro e atribuída a Pichou, um autor do qual não se sabe quase nada.

Chartier reencontra novamente Cardenio em Londres, em 9 de setembro de 1653. Nessa data, consta na Stationers’ Company, comunidade londrina dos comerciantes e impressores de livros, o registro do livreiro Humphrey Moseley reivindicando o direito exclusivo de reprodução (“right in copy”) de quarenta e uma peças teatrais, entre as quais “The History of Cardenio, by M. Fletcher. & Shakespeare”.9 Quarenta anos após sua encenação pelos King’s Men, a peça perdida e anônima sobre Cardenio foi atribuída a John Fletcher e William Shakespeare. Ainda que essa atribuição seja verossímil, uma vez que os dois dramaturgos haviam colaborado antes, há incerteza, pois Moseley também vinculou ao bardo obras que não lhe são reconhecidas; além disso, a peça nunca entrou nas edições das obras de nenhum desses autores. Se John Heminges e Henry Condell, editores em 1623 do primeiro fólio, possuíam um manuscrito de The History of Cardenio, eles não a incluíram aí provavelmente porque a julgaram escrita a quatro mãos; a peça tampouco encontra-se nas edições seguintes do fólio. Segundo o autor, “A razão é simples: a peça não foi jamais impressa, enquanto aquelas que entram pela primeira vez no corpus shakespeareano […] foram todas publicadas em edições in-quarto no começo do século XVIII”.10 Tal afirmação revela um aspecto decisivo do problema, assinalando uma transformação histórica profunda: se a produção teatral na Inglaterra quinhentista e seiscentista pautava-se na colaboração entre os dramaturgos, a publicação do fólio assinalou, por meio da “monumentalização de Shakespeare”,11 a nova tendência da singularidade autoral, que se consolidaria nos séculos subsequentes.

O livro avança dessa maneira, rastreando a circulação e as diversas apropriações da história de Cardenio no intuito de discutir, através dessas fontes indiretas, as hipóteses sobre o conteúdo da peça desaparecida. Assim fazendo, Chartier chega até a Inglaterra e os Estados Unidos atuais, onde o interesse pela peça ultrapassou o circuito erudito, tornando-se, segundo suas próprias palavras, “uma febre”12 que resultou em novas encenações teatrais e tornou-se o tema dos registros mais variados, incluindo por exemplo o romance policial, sem dúvida um efeito duradouro do imenso renome de Shakespeare. Seria é claro despropositado reconstruir aqui todo esse percurso; convém, todavia, apresentar um último exemplo, particularmente propício para mostrar, primeiro, como mais uma vez o autor elabora suas hipóteses, segundo, como o problema exige não apenas a leitura de textos, mas também de imagens.

No sexto capítulo, Chartier examina as ilustrações que acompanhavam o texto espanhol do Quixote e, em seguida, aquelas presentes nas edições inglesas, uma provável fonte de inspiração para a redação da peça. Entre as últimas, encontra-se uma das seis estampas que William Hogarth preparou, sendo afinal recusadas ou retiradas por ele mesmo, para a luxuosa edição do romance de Cervantes financiada por lorde Carteret e publicada em 1738 pelos Tonson, uma importante família de editores; ela retrata o primeiro encontro entre Cardenio e D. Quixote, com o cabreiro e Sancho Pança à direita (fig. 1). Diante dessa estampa, o autor escreve:

Distanciando-se da descrição de Cervantes que retrata Cardenio com “uma barba negra e espessa, cabelos frondosos e amarrados”, mas respeitando as indicações quanto aos pés nus do jovem homem e as suas culotes rasgadas, Hogarth torna visível o parentesco dos dois habitantes da Sierra Morena, que faz que o fidalgo abrace Cardenio desde seu primeiro encontro como se ele o conhecesse de longa data. Cardenio é como um duplo de Dom Quixote e ambos oscilam entre entendimento e desvario, entre urbanidade e violência. Ambos tomam a realidade por seus desejos, ou suas obsessões, pois as loucuras de Cardenio fazem-no assaltar os cabreiros identificados ao pérfido Fernando; ambos compartilham leituras e loucuras. Dom Quixote reconhece-o de imediato, assim como Hogarth e, antes dele, Guillén de Castro. Fletcher e Shakespeare em The History of Cardenio privaram-se de um recurso dramático tão poderoso?13

Essa questão não pode realmente ser respondida na ausência do texto da peça; mas ela não visa de fato uma resposta: sua finalidade consiste, na verdade, em elaborar uma hipótese, balizada pelas apropriações feitas por outrem a respeito da história de Cardenio, sobre o que poderá ter sido a peça perdida. O limite assim definido por uma lacuna nas fontes não se apresenta, portanto, como um beco sem saída, um empecilho incontornável diante da vontade de ler a peça, mas como um ponto de partida que se revela afinal bastante promissor para uma discussão sobre a circulação e as apropriações de textos, e consequentemente também sobre a autoria, na Europa do início da Idade Moderna. É a própria ausência da peça, de um texto original ao qual deveriam se remeter todas as suas variantes, que possibilita, e mesmo estimula, as inúmeras revisões, adaptações e reescritas rastreadas por Chartier ao longo de quatro séculos. Mas a multiplicação textual da história de Cardenio, um sinal inequívoco da mobilidade extrema e da instabilidade dos textos, é impensável apartada da estabilização da autoria; isso porque a peça não somente foi atribuída a Shakespeare, um autor de imenso prestígio, como suas apropriações subsequentes remetiam sempre ao bardo, obliterando assim o nome de Fletcher. O autor reconhece nesse caso o problema do anacronismo, designado por ele como “discordância de tempo”, que fornece, entre a encenação da peça pelos King’s Men e hoje, uma continuidade à noção de literatura quando na verdade lida-se com uma dupla descontinuidade: de um lado, uma vez que a literatura não coincidia ainda com as belas-letras, ela não nomeava as obras que hoje reconhecemos como literárias, mas os trabalhos dos eruditos; de outro, a ideia vigente de autoria, pautada na unidade e na coerência de uma obra dependente da singularidade de um autor com direito de propriedade e de responsabilidade sobre seus escritos, surgiu apenas na Inglaterra setecentista. Conforme a história de Cardenio circula e se transforma, as categorias de entendimento aí em jogo também mudam; para apreendê-las em suas respectivas espessuras históricas, é necessário considerar “as relações estabelecidas entre os dispositivos do teatro, a composição do público e as categorias mentais que organizam a possível apropriação do texto”.14 A despeito das diferenças entre todas as suas variantes, a história de Cardenio é sempre reconhecível, apontando um paradoxo que Chartier descreve como “a permanência das obras e a pluralidade dos textos”:15 ainda que se desconheça o texto da peça perdida, sabe-se, ou melhor, supõe-se quem é seu autor, o que lhe confere uma estabilidade capaz de estimular inúmeras apropriações.

Banco de imágenes del Quijote 1605 1915 Dialogue

Fonte: Banco de imágenes del Quijote, 1605-1915 (www.qbi2005.com), acessado em 26 de novembro de 2015

1. WilliamHogarth, D. Quixote e Sancho Pança encontram Cardenio, 1726-1738, estampa, 228 × 174 mm, Londres

Trata-se enfim de um problema historiográfico formidável, cujo interesse não cabe, contudo, apenas aos historiadores nem tampouco aqueles que lidam, em maior ou menor medida, com fenômenos do passado. Uma das questões fundamentais que todo pesquisador das ciências humanas enfrenta circunscreve-se à tensão entre o que ele se propõe discutir e o que o material empírico permite de fato ser discutido; uma concordância exata entre esses dois extremos é muito improvável e, francamente, desestimulante da perspectiva intelectual; na prática, inúmeros ajustes são necessários, transformando aos poucos a proposta de pesquisa original em outra coisa. Nesse percurso, as lacunas são particularmente desafiadoras, impondo uma reformulação do problema inicial e colocando a pesquisa em movimento. Ao rastrear as transformações da história de Cardenio, Chartier mostra o quanto uma lacuna pode ser estimulante e produtiva, desde que a pergunta certa lhe seja dirigida.

1Cf. CHARTIER, Roger. Écouter les morts avec les yeux. Paris: Collège de France / Fayard, 2008, p. 62-71 especialmente. Ambos os cursos, oferecidos respectivamente em 2007-2008 e 2008-2009, podem ser ouvidos no site do Collège de France (www.college-de-france.fr).

2Essa numeração refere-se à edição definitiva: ver Miguel de Cervantes Saavedra, O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. Primeiro Livro, tr. de Sérgio Molina. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 305-320. Na edição original de 1605, impressa em Madri por Juan de la Cuesta e dividida em quatro partes, trata-se do capítulo IX do Terceiro Livro; o segundo livro foi publicado apenas em 1615.

3Ibidem, p. 312.

4O leitor interessado na história completa de Cardenio segundo a versão de Cervantes pode consultar, sobretudo, ibidem, p. 324-329, 374-388, 394-408. Vale observar que tal história conclui-se no capítulo XXXVI, mas seus personagens só saem efetivamente de cena no capítulo XLVII.

5CHARTIER, Roger. Cardenio entre Cervantès et Shakespeare, op. cit., p. 53-54. Salvo indicação contrária, todas as traduções são minhas.

6Ibidem, p. 37.

7Ibidem, p. 68-69.

8No primeiro livro, encontram-se, por exemplo, também a história do curioso impertinente, entre os capítulos XXXIII e XXXV, e a história do cativo, entre os capítulos XXXIX e XLI (cf. M. de Cervantes, O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, op. cit., p. 461-521 e 557-611 respectivamente).

9CHARTIER, Roger. Cardenio entre Cervantès et Shakespeare, op. cit., p. 117.

10Ibidem, p. 141.

11Ibidem, p. 120.

12Ibidem, p. 265-284.

13Ibidem, p. 200.

14Ibidem, p. 288.

15Ibidem, p. 285-289.

Luís Felipe Sobral – Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-Doutorando em Antropologia Social na Universidade de São Paulo, São paulo, SP, Brasil e bolsista da Fapesp. E-mail: [email protected].

Literatura e racismo: uma análise intercultural – MELO JR (B-RED)

MELO JR., Orison Marden Bandeira de. Literatura e racismo: uma análise intercultural. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013. 111 p. [Coleção Étnico-racial]. Resenha de: SANTOS, Rubens Pereira. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.10 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2015.

Literatura e racismo: uma análise intercultural, de Orison Marden Bandeira Jr., é um livro atraente. Resultado de uma pesquisa de mestrado, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o autor transita pelos mais variados setores da cultura: filosofia, história, antropologia, literatura, e realiza uma rigorosa análise de duas obras escritas no século XIX: O mulato (1881), de Aluísio Azevedo e The house behind the cedars (1900), do escritor americano Charles Chesnutt. Ambas são ambientadas na década de 1870 e a proposta do autor, para a análise literária, foi a de utilizar-se dos estudos bakhtinianos na intenção de apontar a existência de um discurso marcadamente racista, em especial, na fala do narrador. Como apoio para suas argumentações, Orison investiga obras anteriores, comprovando a presença de ecos de um discurso preconceituoso em relação ao negro e também ao mulato. Dos autores brasileiros, o autor demonstra que em Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida, As vítimas algozes: quadros da escravidão (1869), de Joaquim Manuel de Macedo, O tronco do ipê (1871), de José de Alencar, A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães e Iaiá Garcia (1871), de Machado de Assis, há muitas situações em que o discurso empregado pelo narrador resvala para o preconceito. A mesma comprovação é feita no romance americano A Cabana do Pai Tomás (1852), da escritora Harriet B. Stowe. Publicado em 2013, pela Editora Universitária (UFPE), o livro faz parte de uma coleção comemorativa aos dez anos da lei 10639/2003, projeto da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Pernambuco.

Composto por uma breve Introdução, dez capítulos e as Considerações Finais, o autor envereda por questões da mais alta importância para os estudos literários: ancorado em Bakhtin, Volochínov, Fiorin, dentre outros, estabelece as bases para a sua análise, explorando narrativas que, potencialmente, apontam para a existência do discurso racista. No capítulo 1, encontram-se os pressupostos da pesquisa. O título, bastante significativo, indica o que vai ser discutido: “Uma análise literária intercultural a partir dos conceitos de palavra, enunciado, dialogismo e compreensão” (MELO Jr., 2013, p.17). O método utilizado pelo autor é claramente bakhtiniano, baseado na Análise Dialógica do Discurso. Apoia-se, inicialmente, em estudiosos da temática, como Beth Brait (Análise e teoria do discurso), José Luiz Fiorin (Introdução ao pensamento de Bakhtin), para depois ir à fonte com Volochínov (Marxismo e filosofia da linguagem) e Os gêneros do discurso, de Bakhtin. Todos os autores têm a mesma visão sobre o texto literário e sobre a conceituação da palavra [“signo ideológico por excelência, possuindo duas dimensões: a dimensão semiótica (materialidade) e a dimensão ideológica (metalinguagem)” (MELO Jr., 2013, p.18)].

Municiado pela concepção de linguagem de Mikhail Bakhtin (o enunciado e/ou a palavra é perpassada pelo diálogo do outro), Orison trabalha o capítulo 2, apresentando teóricos do racismo que defendiam a inferioridade da raça negra, como o zoólogo suíço Agassiz. Em Voyage au Brésil (1867), escrito em parceria com a mulher, ele relata o encontro que teve com uma “população inferior”, composta por negros, mulatos e índios. Vejamos, por exemplo, o que diz o suíço a respeito das suas ideias sobre os negros, quando fala sobre a educação da mulher no Brasil: “[…] é a consequência do contato incessante com os criados pretos e mais ainda com os negrinhos que existem sempre em quantidade nas casas. Que baixeza habitual e os vícios dos pretos sejam ou não efeitos da escravidão, o certo é que existem” (AGASSIZ; AGASSIZ, 2000, p.26)1.

As ideias raciais de Agassiz encontraram espaço nos Estados Unidos e também no Brasil. Sílvio Romero, em História da literatura brasileira, concordou com a doutrina de superioridade da raça branca, creditando ao português o galardão, por ser o principal agente da cultura brasileira. Romero falava do “embranquecimento” da população brasileira, vaticínio que não prosperou. Na esteira do teórico brasileiro há nomes importantíssimos da “intelligentsia” nacional, como o abolicionista Joaquim Nabuco e Nina Rodrigues. Interessante é o caso de Nabuco, por ser um veemente abolicionista: estranha-se sua posição sobre a superioridade da raça branca, chegando a afirmar que o negro exercia uma influência negativa em relação ao branco.

No capítulo 3, o autor discute essas teorias racistas e os possíveis ecos do discurso racial em obras brasileiras. Memórias de um sargento de milíciasAs vítimas algozes: quadros da escravidão, O tronco do ipêA escrava Isaura e Iaiá Garcia foram os romances selecionados para rápidas análises. Em todas elas o narrador utiliza palavras ou frases que determinam a existência de preconceito racial. De fato, o leitor verificará que, mesmo naquelas obras que tenham o cunho de defender o negro, há referências a um discurso racialista. Macedo, em As vítimas algozes, por exemplo, coloca na voz do narrador a necessidade da abolição da escravatura porque “os escravos são perniciosos ao convívio dos brancos, seus senhores” (MELO Jr., 2013, p.34), assegurando que “nunca em parte alguma do mundo houve senhores mais humanos e complacentes que no Brasil” (MACEDO, 1991, p.62)2. Na obra macediana, o escravo é descrito como “imoral”, “ignóbil”, “perverso”, “violento”. Ressalte-se que o leitor terá ao final do capítulo um resumo do que foi exposto. Por exemplo, em Memórias de um sargento de milícias encontramos o estereótipo do “escravo desprezível”, em As vítimas algozes encontram-se os estereótipos do “escravo demônio”, do “escravo desprezível” e do “escravo imoral”. Em A escrava Isaura e Iaiá Garcia destaque para o estereótipo do “escravo nobre”.

O capítulo 4 traz ao leitor uma análise d’O mulato. O autor faz uma breve introdução sobre a recepção da obra em São Luiz do Maranhão. Raimundo Menezes, em sua biografia sobre Aluízio, diz que a repercussão não foi boa, pois os moradores da cidade viam nos personagens do romance uma crítica a si mesmos. Apesar de o romance apresentar uma crítica feroz ao preconceito, denunciando os maltratos sofridos pelos negros escravos, explicitando a perversidade dos senhores, há momentos em que, contraditoriamente, o leitor encontra ao longo da narrativa “descrições preconceituosas de personagens negras secundárias” (MELO Jr., 2013, p.45). Como exemplo, pode-se citar a descrição que o narrador faz sobre os negros fugidos: “escravos fugidos com suas mulheres e seus filhos, formando uma grande família de malfeitores” (AZEVEDO, 1992, p.48)3, ou essa outra caracterização sobre a falta de asseio dos escravos: “à insuficiente claridade de uma lanterna suja, o sinal gorduroso das mãos dos escravos” (AZEVEDO, 1992, p.132)4. São sinais evidentes do discurso racista, e o narrador “deixou várias marcas subjacentes deste preconceito na sua fala, através de palavras e frases de cunho preconceituoso […]” (MELO Jr., 2013, p.50). Para o autor, existe “uma representação estereotipada do elemento negro na narrativa e há a descrição do herói afrodescendente com características de heróis brancos” (MELO Jr., 2013, p.50). Um outro ponto a destacar no capítulo é uma comparação que o narrador faz sobre Benedito, uma criança escrava “um pretinho seco, retinto, muito levado dos diabos… (…) atravessou a sala com uma agilidade de macaco” (AZEVEDO, 1992, p.63)5. Citando Bakhtin, que em Questões de literatura e de estética (2002) afirma que “uma linguagem particular no romance representa sempre um ponto de vista particular sobre o mundo, que aspira a uma significação social” (MELO Jr., 2013, p.135)6, Orison reafirma, com muita propriedade, que o “símile do escravo com o macaco não pode passar despercebido, já que essa linguagem encontra uma significação particular no mundo científico do século XIX” (MELO Jr., 2013, p.49). Nos dias atuais esta relação adquiriu foros de realidade, em função dos atos de preconceito perpetrados por uma minoria racista em todo o mundo.

Do capítulo 5 ao capítulo 8, o foco é o romance de Charles Chesnutt The house behind the cedars. Diferentemente do que acontecia no Brasil, nos Estados Unidos havia leis que definiam se o cidadão era negro ou branco. Se ele tivesse 1/8 de sangue negro era considerado negro, lei criada em 1705, na Virgínia, e já no século XIX (entre 1830 e 1840, houve um arrochamento da lei com a criação da regra one-drop (uma gota). A regra determinava que pessoas, mesmo que não tivessem quaisquer traços negroides – mas se tivessem apenas uma gota de sangue negro, estavam proibidas de se casarem com pessoas brancas. Isso está explícito no romance de Chesnutt, quando o juiz Straight declara que “uma gota de sangue negro torna todo o homem negro” (CHESNUTT, 1993, p.113)7. O autor realiza o mesmo procedimento que fez com O Mulato: antes de analisar The house behind the cedars, buscou elementos de preconceito racial no romance A cabana do Pai Tomás, de Harriet B. Stowe. Tomás, o protagonista, é descrito como um homem conformado com o seu destino, nega-se – inclusive – a fugir para não deixar o seu senhor em má situação. Mudando de senhor, mantinha-se fiel como um cão. Apesar do grande sucesso alcançado pelo romance que era visto como antiescravista, estudiosos afirmam o contrário: a narrativa apresenta uma visão romântica do escravo, o protagonista é o estereótipo do “escravo fiel”, humilde, resignado, cuja passividade é comparada à do burro de carga. A discussão sobre a color line (linha de cor) é esclarecedora para a compreensão do romance chesnuttiano. Algumas regras segregacionistas foram estabelecidas e todos deviam obedecê-las, por exemplo, “o homem negro não podia cumprimentar um homem branco com aperto de mãos; os negros não podiam mostrar afeição entre si em público; os negros sempre eram apresentados aos brancos, nunca o inverso” (PILGRIM, 2000)8.

O capítulo 8 apresenta a análise dos elementos discursivos em The house behind the cedars. O contexto social era de segregação racial, portanto a fala do narrador vai por esse caminho. A casa atrás dos cedros constituía-se no ambiente segregado, negros e mulatos viviam afastados da pequena cidade de Patesville, na Carolina do Norte. A heroína é Rena, filha de Mis’ Molly Walden, “uma afrodescendente livre, filha de pais livres e legalmente casados” (MELO Jr., 2013, p.52). O pai de Rena era um homem branco e rico, apesar de sua ascendência negra sua tez não denunciava isto, podia passar-se por branca, desde que saísse da “casa atrás dos cedros”, da cidade e do estado. Se quisesse pertencer ao “mundo dos brancos” teria que ultrapassar a linha de cor. Foi para Clarence (Carolina do Sul), acompanhando o irmão, e para anular de vez a sua origem mudou até de nome, passando a chamar-se Rowena Warwick. Rena apaixonou-se por um amigo de seu irmão, George, e estavam prestes a marcar a data do casamento. Mas um imprevisto mudou completamente a vida de Rena. Tendo que voltar à cidade natal em virtude da doença da mãe, a sua origem foi descoberta, por acaso, pelo noivo. George viu-a sair de um consultório e soube pelo médico que ela era mestiça. Apesar de manter segredo sobre a situação de Rena e de seu irmão, recusou-se a casar com ela. Rena, abatida e triste, voltou a casa atrás dos cedros e lá morreu. Franz Fanon, em Pele negra máscaras brancas, dizia que a mulher negra tinha um objetivo: “tornar-se branca; a mestiça, por outro lado, não queria apenas tornar-se mais branca; queria não voltar a escurecer” (MELO Jr., 2013, p.75). Rena sentia-se superior aos outros afrodescendentes porque era “embranquecida”, mas para os brancos ela era inferior. Assim como fez em O mulato, o autor coloca um quadro com as palavras e frases encontradas na fala do narrador nas descrições de personagens, semelhantes às dos estereótipos, pontuados por Brookshaw: “escravo fiel” (fidelidade, devoção, senhor, fiel, fatalismo passivo), “escravo nobre” (superiores em sangue, qualidade superior, autoridade natural, movimentos graciosos, elegância discreta). Rena incorpora o estereótipo do “escravo nobre”, mas também foi objeto de adoração do negro, por ter a pele “embranquecida” é superior aos demais afrodescendentes.

Por fim, os capítulos 9 e 10. Neles, o leitor encontrará os traços comuns entre os dois romances (capítulo 9) e as especificidades de cada romance (capítulo 10). Após um rápido olhar sobre a literatura comparada, o autor enumera os traços comuns encontrados: as cidades escolhidas (pequenas, pobres, cheias de preconceito); eventos históricos (Guerra Franco-Prussiana, O mulato e pouco depois da Guerra Civil, The house behind the cedars); narrador onisciente; palavras preconceituosas nas falas do narrador; protagonistas embranquecidos; a morte (incapacidade do mestiço em sobreviver à lei da selva) e conflito de relacionamento.

Os traços individuais de cada romance são dois, de acordo com o autor: ângulo de visão e consciência ou não da ascendência negra. A primeira é bastante nítida, porque em O mulato a narrativa é sobre o mundo dos brancos, com a introdução do elemento afrodescendente; já no romance chesnuttiano a narrativa é sobre o mundo dos negros, no qual um elemento afrodescendente insere-se no mundo dos brancos. A segunda diferença também é clara, pois Raimundo desconhecia totalmente a sua condição até o momento da revelação, enquanto Rena tinha plena consciência de sua situação desde a infância. O capítulo termina com uma afirmação de Orison, com a qual concordamos inteiramente: a de que se pode chegar à conclusão de que os romances apresentam dois elementos fundamentais para a pesquisa. Estes elementos são o verbal (palavra) de cunho preconceituoso e o elemento discursivo, representado na fala de seus narradores. A escolha de “heróis embranquecidos” se deu num momento em que a comunidade científica branca de ambos os países clamava pelo “embranquecimento de sua raça como solução para a presença do elemento negro, considerado inferior na sua sociedade” (MELO Jr., 2013, p.97).

A contradição apresentada pelo narrador em ambos os romances (o combate ao preconceito com o uso de palavras e frases preconceituosas) corrobora a concepção bakhtiniana a respeito do discurso dialógico. Como bem diz Fiorin, citado na página 20, “todo discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado, pelo discurso alheio”. Foi o que o autor constatou nas análises feitas. Com a publicação do livro, a Editora Universitária (UFPE) revela a preocupação que os acadêmicos pernambucanos têm com os problemas étnico-raciais brasileiros. A obra é um ótimo exemplo do empenho na divulgação dessas questões, que são de grande utilidade para nossas reflexões. Espera-se que o excelente trabalho de Orison Marden Bandeira tenha continuidade, pois a presente edição é uma boa mostra do compromisso do autor com as questões que afligem a sociedade brasileira.

1AGASSIZ, L.; AGASSIZ, E. C. Viagem ao Brasil. Trad. Edgar Süssekind de Mendonça. Brasília: Conselho Editorial, 2000. [Coleção O Brasil Visto por Estrangeiros]

2MACEDO, J. M. As vítimas algozes: quadros da escravidão. 3.ed. São Paulo: Scipione, 1991.

3AZEVEDO, A. O mulato. 11.ed. São Paulo: Ática, 1992. [Série Bom Livro]

4Ver nota de rodapé 3.

5Ver nota de rodapé 3.

6BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. 5 ed. São Paulo: Hucitec: Annablume, 2002. p.71-210.

7CHESNUTT, C. W. The House behind the Cedars. New York: Penguin Classics, 1993.

8PILGRIM, D. What was Jim Crow? Big Rapids, MI, Jim Crow Museum of Racist Memorabilia, 2000. Disponível em <http://www.ferris.edu/htmls/news/jimcrow/what.htm>. Acesso em: 18 maio 2013.

Rubens Pereira dos Santos – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquista Filho” – UNESP, Assis, SP, Brasil; [email protected].

Questões de estilística no ensino da língua – BAKHTIN (B-RED)

BAKHTIN, Mikhail. Questões de estilística no ensino da línguaTradução, posfácio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2013. 120 p. Resenha de: ANDRADE, Augusto Baptista de Andrade. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.9 n.2, São Paulo July/Dec. 2014.

A obra aqui apresentada tem como cerne a tradução do artigo intitulado Questões de estilística nas aulas de língua russa no ensino médio, assinado por Mikhail M. Bakhtin, com notas de Liudmila Gogotichvíli e colaboração de Svetlana Savtchuk. O texto foi traduzido por Sheilla Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, diretamente do russo.

As tradutoras, ao perceberem a relevância da obra para o estudo de qualquer língua, optaram por transpor para a versão brasileira como Questões de estilística no ensino da língua. Dessa forma, proporcionam à comunidade acadêmica mais um relevante trabalho desenvolvido por Bakhtin, abordando uma faceta pouco discutida no Brasil: seu lado docente. Não apenas o docente voltado para as discussões sobre estratégias de ensino ou sobre desenvolvimento de conteúdo, mas, principalmente, o professor/pesquisador/professor, que observa o desempenho dos estudantes, analisa as suas produções e, sustentando-se em aspectos teóricos, leva à sua prática diária o que se tem chamado de práxis: uma educação criativa e autocrítica, na qual o homem produz (cria) e transforma o conhecimento para uma constituição real da aprendizagem. É esse docente que se pode observar no artigo traduzido, pois representa a ação direta do professor do Ensino Médio, função exercida por Bakhtin em duas escolas no interior da Rússia entre 1937 e 1945.

Trata-se, pois, de um texto indispensável, não apenas para pesquisadores da área de Língua e Linguística, mas para professores do Ensino Fundamental e Médio que há tanto tempo ouvem sobre uma Educação Linguística que passa pelos mesmos problemas discutidos por Bakhtin.

Algumas questões importantes despontaram durante a leitura. A primeira relacionada diretamente ao universo de significações que a publicação proporciona. É possível perceber com clareza a noção de dialogia defendida por Bakhtin e seu Círculo, pois ela irrompe em todo o artigo e na própria construção estrutural da obra pelo entrelaçamento das vozes de Grillo, Américo, Faraco, Brait e Gogotichvíli.

Outro aspecto a destacar é que a obra é sui generis, pois não é uma organização formal de capítulos como se vê normalmente em livros e em coletâneas. Na realidade, são alguns especialistas que refletem sobre o artigo de Bakhtin e oferecem, mesmo em pequenas notas, importantes contribuições que complementam nosso olhar sobre ele. As partes que compõem a obra – orelha, apresentação, artigo, notas da edição russa e posfácio das tradutoras – conversam de forma fina entre si e dão a complementaridade necessária para que os leitores possam perceber as nuances do trabalho realizado pelo filósofo/docente da linguagem.

Se o artigo, que é o objeto de reflexão em todas as partes do livro, impressiona, tendo em vista as discussões muito próximas à contemporaneidade, os demais textos oferecem outras vozes, que aguçam os olhos e os ouvidos do leitor para a importância da compreensão que Bakhtin dá à Estilística no ensino de língua.

Dessa maneira, pretende-se apenas apresentar nesta resenha algumas considerações que ressaltam a qualidade da obra em pauta, ainda que aqui não haja uma ordem sequencial de apresentação da estrutura do livro. Assim, a proposta é unir as vozes que falam sobre o artigo de Bakhtin em uma imagem caleidoscópica, que possibilite mostrar um dos caminhos para que o professor de língua possa experienciar, criando duas possibilidades igualmente importantes para o ensino: a de observar reais mudanças na expressividade textual de seus alunos e conhecer (além de elaborar) estratégias que ofereçam subsídios para uma leitura e produção textual eficientes, a partir de um estudo de Gramática que observe a língua viva.

Com essa intenção, já na orelha da obra, Faraco pontua que o artigo traduzido mostra que o foco do autor não está em discussões teóricas, mas no fazer pedagógico do docente que deveria proporcionar o gosto e o amor por efeitos estilísticos diferenciados, tendo em vista o que se pretende dizer em cada contexto de produção. Em seu artigo, a partir de uma articulação metodológica, Bakhtin apresenta e demonstra como observar os efeitos de sentido do período composto por subordinação sem conjunção e, como caminho de construção para essa trajetória, escolhe o diálogo com seus alunos, procurando evitar uma linguagem livresca e impessoal, tal qual observa Faraco.

Saltando para o posfácio, Baktin, Vinográdov e a estilística, observar-se as tradutoras discorrerem sobre como encontraram Serguei Gueórguevitch Botcharov para solicitar autorização formal para a tradução do artigo e como foram recebidas prontamente após informarem que Bakhtin era uma referência em documentos oficiais da educação básica no Brasil. Passam, posteriormente, a discorrer sobre a questão estilística apontando que Bakhtin procura demonstrar a importância de se refletir sobre uma estilística da língua que não está preocupada apenas com a caracterização de autores e correntes literárias, ao explicitar a estilística do discurso. Para tanto, as tradutoras retomam o que foi apontado por Vinográdov sobre a estilística da língua, estrutural e do discurso, como diferentes tipos e atos de uso, explicitando que a estilística da língua ocupa-se das “inter-relações e interações dos grandes estilos de uma língua em conexão com as funções interativa, comunicativa e persuasiva da linguagem” (p. 103), para, posteriormente, refletir sobre a do discurso, mostrando a importância de Vinográdov nas discussões sobre o tema. Grillo e Américo retomam os conceitos de Estilo e Estilística, argumentando que na Rússia, apesar da influência constante da Estilística europeia, as reflexões/discussões adquirem certa particularidade. Para tanto, tecem um rápido contexto histórico dessas proposições, a fim de apresentar tais nuances, salientando a importância da interlocução com Viktor Vinográdov que, apesar de ter sido opositor constante de Bakhtin, foi várias vezes citado em Problemas da poética de Dostoiévski.

Na apresentação, Lições de gramática do professor Mikhail M. Bakhtin, Brait retoma a importância de se discutir o ensino de língua materna, salientando que o texto de Bakhtin, ora traduzido, demonstra que todas as preocupações em torno de uma Educação Linguística de qualidade parecem perdurar no tempo, pois já era para o filósofo/professor um problema a ser tratado. Tal problema persiste no Brasil, sem sinais de evolução, e pode ser constatado pelos resultados de avaliações nacionais amplamente divulgados. O que nos parece ser fundamental, já apontado na apresentação, é que os autores do Círculo tiveram a preocupação de estabelecer uma relação entre procedimentos metodológicos de ensino/aprendizagem, interligando Gramática, leitura, produção de sentidos e autoria. Brait afirma que sua apresentação não pretende roubar do leitor o prazer da leitura surpreendente e gratificante do livro como um todo; no entanto, sem os resgates desenvolvidos em seu texto, o contexto da obra perderia uma voz importante para a plena compreensão do que se deseja enfatizar, principalmente o reforço que se dá à atenção que Bakhtin oferecia ao contexto escolar, pois, se há uma crise do ensino de língua em curso desde o início do século XX, faz-se necessário continuar a procura de novas possibilidades para reverter tal situação.

A presente publicação, em específico, cumpre esse papel, ou seja, propõe uma revisão do ensino de Gramática praticado nas escolas. Nesse sentido, observa-se no artigo de Bakhtin uma orientação sobre procedimentos didáticos que envolvem a interação docente/discente na parceria necessária para a consecução de uma aprendizagem real, pautada nas questões de produção textual e tendo como suporte a Estilística.

Se não bastassem as notas apresentadas, as tradutoras incluíram outros apontamentos que estavam na edição russa, registrados por Liudmila Gogotichvíli, Sobre o texto de Bakhtin. Observa-se, nessa seção, uma série de comentários de grande relevância para a compreensão geral do texto do professor/filósofo da linguagem. As discussões sobre inter-relação entre Gramática e Estilística são retomadas no âmbito escolar, perpassando aspectos discutidos pelo Círculo, no que se refere aos gêneros do discurso, a fim de que seja compreendida a concepção bakhtiniana das relações entretidas entre Gramática e Estilística. Há referência a alguns autores que trabalharam com a questão, dentre eles estudiosos europeus. Entre tantas discussões que poderiam ser aqui apontadas, para não extrapolarmos o objetivo desta resenha, frisa-se a indicação de que, apesar de certas mudanças científico-metodológicas entre 1921 e 1922 que fundamentavam o ensino de língua russa, especialmente na defesa da separação da Gramática de outros aspectos da língua, para Bakhtin tal proposição era equivocada, pois o teórico considerava que enquanto a Gramática levasse o estudante ao conhecimento sobre a língua, a estilística o conduziria à prática.

O artigo, propriamente dito, apresenta as considerações desse pensador em relação ao ensino de língua e demonstra sua grande preocupação com o que se fazia na Rússia. Coerente com sua concepção dialógica da linguagem, o texto sustenta a necessidade de se observar os estudos das formas gramaticais em consonância com os aspectos semânticos e estilísticos da língua, o que não é tarefa fácil, pois como o autor alerta, raramente o professor dá ou sabe explicitar tais relações.

Em caráter de exemplificação, para que se possa compreender a que o artigo se propõe, destaca-se a possibilidade do modo como a oração subordinada adjetiva poderia ser ou não transformada em particípio. Exercícios dessa natureza são realizados com frequência, no entanto, comumente o aluno fica sem compreender o objetivo da realização de tal atividade, dado que o aspecto puramente gramatical, sem a percepção estilística, não oferece a clareza necessária para a mudança. Nas palavras do mestre, ao citar o exemplo: A notícia que eu ouvi hoje me interessou muito e A notícia ouvida por mim hoje me interessou muito, o professor deveria explicitar, como aponta Bakhtin, que “[…] ao transformar uma oração subordinada desenvolvida em uma reduzida de particípio, diminuímos a natureza verbal dessa frase, realçamos o caráter secundário da ação, expresso pelo verbo ouvir, assim como diminuímos a importância da palavra indicativa de circunstância hoje. Por outro lado, essa alteração provoca uma concentração de sentido e de ênfase no protagonista dessa frase, na palavra notícia, ao mesmo tempo em que se obtém uma grande concisão expressiva” (p.25-26). Fica explicitado, dessa maneira, que alterações gramaticais podem produzir efeitos de sentidos variados, por isso a importância de se trabalhar a Gramática e a Estilística em conjunto, razão pela qual em toda sua extensão o artigo continua laborando essa perspectiva.

Deve-se, sem dúvida, parabenizar a iniciativa da tradução da obra, bem como a reunião de pesquisadores, cujo trabalho tem se voltado, no Brasil, à chamada Análise Dialógica do Discurso. De modo que a importância de sua leitura é aqui reafirmada, tanto para pesquisadores que se dedicam ao estudo da língua/linguagem, quanto para professores dos diversos níveis educacionais, pois a presente publicação traduz para o universo da Educação Linguística reflexões fundamentais para o exercício consciente da docência.

É importante dizer ainda que a presente resenha não teve a pretensão de propor um percurso para a leitura da obra. Cabe a cada leitor buscar seu caminho e dialogar com os profissionais que se dedicaram à tradução, à elaboração do livro e às discussões apresentadas.

Carlos Augusto Baptista de Andrade – Universidade Cruzeiro do Sul – UNICSUL, São Paulo, São Paulo, Brasil; [email protected].

História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história – ZANDWAIS (B-RED)

ZANDWAIS, Ana (org.). História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história. Passo Fundo-RS: Editora Universidade de Passo Fundo, 2012. 312p. Resenha de: DRESCH, Márcia. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.8 n.1 São Paulo Jan./June 2013.

História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história é uma coletânea de 12 textos escritos por linguistas e analistas do discurso e tem na linguagem sua matriz. O que caracteriza a obra é, de um lado, a expansão da reflexão para os campos da história, da filosofia, da linguística e do discurso, e, de outro, a reunião de textos que tematizam os estudos linguísticos na Rússia e na União Soviética do final do século XIX até meados do século XX, ou que se debruçam sobre noções e fundamentos teóricos da obra de Bakhtin e Voloshinov.

Nesta resenha, divido a coletânea em três blocos, que, ainda que não reflitam a sequência proposta pela organizadora, em muito dela se aproxima.

No primeiro bloco estão os textos de Patrick Sériot (Universidade de Lausanne, Suíça), Craig Brandist (Universidade de Sheffield, Inglaterra), Mika Lähteenmäki (Universidade de Jyväskylä, Finlândia), EkaterinaVelmezova (Universidade de Lausanne, Suíça) e Vladimir Alpatov (Instituto de Estudos Orientais, Moscou). Esses textos permitem tomar contato com teorias e discussões acerca da linguagem que acompanharam o final do século XIX, o advento da revolução russa e seus desdobramentos ao longo do século XX e, sobretudo, com o contexto em que essas teorias e discussões se desenvolveram. Grandes momentos de ruptura política são acontecimentos históricos e discursivos que instauram um intenso trabalho de dizer o mundo de outra forma. Mais do que a história dos estudos russos e eslavos sobre a linguagem, esses textos situam pontualmente o papel da língua naquele processo revolucionário, que se tornou, pela própria conformação da URSS – diversidade étnica, alto índice de analfabetismo e pobreza –, primeira pauta do socialismo soviético.

No texto de Patrick Sériot, o autor assinala que, de 1920 a 1930, quando a União Soviética passa por um processo de organização e consolidação do novo regime, por trás de ações que buscavam erradicar o analfabetismo e normalizar línguas de literalização recentes, havia um projeto de caráter antropológico. Trata-se de período de questionamento sobre a relação entre língua e sociedade, língua e espaço político, bem como sobre o poder das instituições linguísticas. Ele salienta o movimento de representações que se desloca em direção à unidade e à homogeneidade, justamente numa sociedade com camadas temporais que coexistiam – antigas classes, antigos modos de produção, novas forças produtivas. Ou seja, para se fundar, o socialismo tinha de apagar as diferenças.

Craig Brandist sustenta em seu texto que a revolução bolchevique trouxe condições para o desenvolvimento de uma forma insipiente de sociolinguística na Rússia, muito antes de estudos similares no Ocidente. Alega que a fusão dos estudos linguísticos e literários numa mesma disciplina de filologia permitiu que linguistas estivessem atentos às dimensões sociais da linguagem. Seu texto permite compreender como a linguística soviética se desenredou da psicologia, dando lugar a uma visão sociológica da linguagem. Ele analisa os estudos linguísticos na Rússia desde o século XIX, quando sob influência da psicologia, até chegar ao outro extremo, a teoria dialógica de Bakhtin.

Em seu texto, Mika Lähteenmäki distingue temporalmente as produções de Voloshinov, no final da década de 20 e início da de 30, e de Bakhtin, no início dos anos 30 até o início dos anos 50. Marxismo e filosofia da linguagem, publicado na Rússia em 1929, foi relegado ao esquecimento após sua publicação e retomado apenas quarenta anos depois, já fora do contexto original de sua produção. A obra foi escrita antes do marrismo se estabelecer como doutrina linguística oficial e numa época em que ainda se debatia o que é uma linguística marxista. Prevaleceu, porém, a partir de uma compreensão equivocada das ideias de Voloshinov, uma visão marxista vulgar, sustentada pela postura teórica determinista apoiada por Marr. Lähteenmäki discute, a partir da noção de ideologia, a concepção dialógica da linguagem, a questão da interação e do signo linguístico em Voloshinov.

O trabalho de Nikolai Jakovlevitch Marr (1865-1934), principal linguista da União Soviética dos anos 20 e 30, cujas teorias foram muito contestadas por seus colegas contemporâneos, é abordado especificamente em dois textos da obra em análise. No primeiro texto, Ekaterina Velmezova reconhece a crítica feita a Marr, todavia afirma que sua teoria tem de ser estudada como qualquer outra. Em seu artigo, propõe-se a analisar as noções de povos e línguas eslavas na Nova teoria da linguagem, de Marr, e a responder por que Stalin interviu contra o marrismo. O outro texto é de Vladimir Alpatov, que se pergunta por que razão de tempos em tempos retorna o interesse pelos estudos de Nicolai Marr na Rússia. Ele identifica a revitalização do autor entre 1950 e 1980 mais como contestação à política stalinista do que a uma questão teórica linguística. E, se na década de 90 ele aponta o ostracismo de Marr, ultimamente, afirma, cresce o interesse entre linguistas jovens pelo autor. Implacável, Alpatov diz que, por sua personalidade e sua formação, Marr poderia ter sido profeta, revolucionário, menos intelectual. As perguntas que ficam são do próprio autor: O alvo continuaria sendo Stalin? Seria sua luta contra a ciência positivista? Ou a volta de Marr é decorrência da instalação de uma crise das ciências humanas na Rússia?

Ao começar o segundo bloco, rompo com a sequência original do livro, e passo ao texto de Beth Brait (PUC de São Paulo/Universidade de São Paulo), que aproxima o primeiro grupo de textos, de teóricos estrangeiros, e os demais textos brasileiros que formam a coletânea. Esse texto reconstitui a chegada do pensamento de Bakhtin ao Brasil no final dos anos 60 e nos anos 70, quando pesquisadores, professores, estudantes de pós-graduação, poetas e tradutores ligados à área de Letras e Linguística começam a ter contato com as obras de Bakhtin e dos demais membros do Círculo. A singularidade do texto está na tomada de depoimentos daqueles que participaram ativamente dessa história, seja como alunos, no caso de Carlos Alberto Faraco, que viria a ser um dos maiores estudiosos brasileiros da obra de Bakhtin, Sírio Possenti e Wanderley Geraldi; seja como professor no curso de Pós-Graduação da Unicamp, no caso de Carlos Vogt. Tanto a fala da autora quanto os depoimentos que compõem o texto sugerem que El signo ideológico y la filosofia del lenguaje – edição argentina, traduzida do inglês, que chegou ao Brasil em 1976 – para além da descoberta de perspectiva linguística que incluísse o social, o sujeito e a ideologia, representou também uma forma de resistência à arbitrariedade do regime militar.

Neste bloco, encontram-se os textos de Amanda Eloina Scherer (Universidade Federal de Santa Maria, RS) e de Ana Zandwais (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que discutem a questão da homogeneidade da língua; e ainda os de Maria Cristina Hennes Sampaio (Universidade Federal de Pernambuco) e de Maria do Socorro Aguiar de Oliveira Cavalcante (Universidade Federal de Alagoas), que discorrem sobre as ideias que fundam a filosofia da obra de Bakhtin-Voloshinov.

Scherer, que se coloca nos campos teóricos da análise do discurso e da história das ideias linguísticas, analisa três instrumentos de ensino de língua implantados em diferentes épocas – Basic English, na Inglaterra, 1923-1927; Français élémentaire, na França, 1949-1960; e Português fundamental do Brasil, final de 1960-início de 1970. A autora se pergunta de que maneira tais instrumentos apontam para as formas de constituição, institucionalização e circulação de políticas linguísticas em diferentes momentos sócio-históricos. As reflexões que faz ao longo do texto sobre as designações para língua (universal, internacional, artificial, etc.) sustentam sua análise sobre esses instrumentos que, entre outras coisas, buscam fugir da babelização e estão à procura da língua transparente, controlada, descritível e universal. Em seu artigo, Zandwais discute a utopia indispensável da homogeneidade da língua em diferentes formas de organização humana. O texto retoma o ideal da Antiguidade, de uma língua homogênea e universal, cuja origem pode ser vista na narrativa bíblica sobre o “sonho de Babel” e, aprofundando a questão, estabelece analogia entre a organização tribal primitiva e a chegada ao Estado de Direito do século XIX. Salienta que, quando o Estado transforma o pluri em monolinguismo, o que só se faz por meio de uma língua de cultura inacessível à maioria, formam-se contingentes de falantes linguisticamente desaparelhados. A reflexão se fundamenta nas noções de monoglossia, heteroglossia e refração de Bakhtin-Voloshinov.

Maria Cristina Sampaio, por sua vez, estabelece um diálogo entre as filosofias de Bakhtin, Heidegger e Lévinas. A questão que ocupa a autora são os fundamentos do pensamento ético, por isso retoma questões comuns a esses filósofos e Bakhtin: relações ser-ente, homem-existência, humanismo, ser-autoridade-responsabilidade. Na análise dessas questões, a ética só pode ser pensada por meio de um ato individual e único em relação a um sujeito pesquisador, em relação de alteridade com outros pensamentos e contextos. Ainda no campo da filosofia, o texto assinado por Maria do Socorro Cavalcante desenvolve a relação entre o materialismo histórico e noções centrais na análise do discurso de orientação pecheutiana. Além de Pêcheux, o texto dialoga com Lukács, Bakhtin e Leontiev, teóricos que fornecem contribuições para pensar a língua a ideologia e o sujeito. Com Lukács e Leontiev, a autora elabora a questão da consciência. Entendo que o texto toca em um ponto que pode embaraçar uma fatia da AD francesa: esse sujeito sobredeterminado ideologicamente é, portanto, absolutamente previsível e desprovido de liberdade? A essa questão, a autora responde com Bakhtin e Lukács: o sujeito faz escolhas e se marca subjetivamente frente à realidade objetiva tal qual se apresenta a ele.

No terceiro bloco, reuni os textos de Maria Inês Batista Campos (Universidade de São Paulo) e Carme Regina Schons (Universidade de Passo Fundo, RS), que têm em comum o fato de apresentarem importante trabalho analítico.

A partir do texto O autor e a personagem na atividade estética, escrito por Bakhtin na década de 20, Campos analisa as noções de proximidadedistância e excedente de visão estética nos dois epitáfios do romance Macunaíma, de Mário de Andrade. Em discussão estaria a questão da relação autor-personagem no processo de criação estética. Após explorar as noções teóricas, a autora passa à análise dos epitáfios, desvelando o trabalho de pesquisa de Mário de Andrade, realizado a partir de textos de viajantes estrangeiros, mitos, lendas e aspectos do folclore brasileiro. O resultado da obra é um personagem-herói que, no olhar distanciado, se aproxima do povo brasileiro.

O texto que apresento ao final desta resenha, de Carme Shons, vai se debruçar sobre a formação e organização da classe operária, especialmente dos sindicatos no Brasil da primeira metade do século XX – 1ª e 2ª Repúblicas. A partir da análise do discurso, fundada por Michel Pêcheux, a autora analisa a designação sindicato desde seu surgimento, buscando no interior do que denomina de formação discursiva jurídica (constituição e leis do período), como sindicato é predicado nas regulamentações. O texto acompanha o percurso de formação do movimento sindical que, na Primeira República, é pautado em práticas anarquistas e anarcossindicalistas e associado a uma imagem de enfrentamento e luta, e, no Estado Novo, no confronto com a formação discursiva jurídica, passa a um modelo corporativista, tornando-se mero instrumento de reivindicação de melhorias econômicas.

Resenhar uma coletânea traz a dificuldade de falar de um objeto uno, cuja composição por natureza é heterogênea. No entanto, o que está a se olhar são histórias de ideias que fundaram várias das áreas que hoje se agrupam em torno dos estudos do texto e do discurso, com especial destaque às concepções de língua, sujeito e sentido. Refiro-me em parte aos preceitos teóricos do Círculo de Bakhtin, mas também aos acontecimentos históricos e discursivos que foram o advento do marxismo e da Revolução Russa de 1917. História das ideias dá a dimensão da importância desses dois eventos no plano do conhecimento, à medida que ecoa discussões e desdobramentos que passaram o século XX e ainda mobilizam intelectuais, para, longe do ceticismo e da perplexidade diante do século XXI, pensar as ideias que movem a vida dos seres humanos.

Márcia Dresch – Professora da Universidade Federal de Pelotas – UFP/RS -Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil; [email protected].

Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica – BAKHTIN (B-RED)

BAKHTIN, M. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011. 184p. Resenha de: CASTRO, Gilberto de. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.7 n.1, São Paulo Jan./June 2012.

De todos os capítulos presentes em Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (daqui em diante MFL), editado no Brasil pela primeira vez em 1981, os menos lidos certamente são os últimos quatro, cujo tema central são os processos de citação (discurso citado) no interior da narrativa literária. Não são poucos os leitores, principalmente aqueles que estão nos seus primeiros contatos com a obra bakhtiniana, que afirmam ter sentido certa estranheza ao ler esses capítulos, assim como os que leram MFL somente até o capítulo 7. À primeira vista, parece que esses capítulos não deveriam fazer parte de MFL. Penso, entretanto, que essa deva ser apenas a impressão do leitor ainda não estudioso do pensamento bakhtiniano, já que uma leitura horizontal dos escritos mostra que o tema do encontro vocal dentro das obras do Círculo é fulcral na construção de todo o seu arcabouço teórico sobre a linguagem e a cultura, de toda a sua concepção alteritária de mundo.

O tema do discurso citado, enfim, do discurso no discurso, da palavra na palavra, da voz na voz, é recorrentemente discutido. Bakhtin recorrerá a ele em sua discussão sobre Dostoiévski, na belíssima teoria do romance e também em alguns momentos de seu texto sobre os gêneros do discurso. Apesar dessa presença constante nas obras dos autores do Círculo, não seria exagero dizer que o tema da citação ainda não é o carro chefe da curiosidade acadêmica e das pesquisas no Brasil que, entre tantos outros, às vezes tem preferido alguns já bem batidos, como demonstra o exagero bibliográfico das discussões sobre os gêneros do discurso.

Nesse sentido, é muito bem vinda a publicação de Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação, realizada pela Pedro & João Editores, que tem se caracterizado pelo esforço editorial em traduzir e publicar obras sobre o universo bakhtiniano – vale lembrar que é da mesma editora a tradução de Para uma filosofia do ato responsável (2010), texto que demorou bastante para ser vertido para o português. O livro publicado agora contém dois capítulos, sendo que o segundo, que também dá o título à obra, é uma nova tradução dos quatro últimos capítulos de MFL de Voloshinov. Como introdução há um inédito de Augusto Ponzio, intitulado Problemas de sintaxe para uma linguística da escuta. E, como apêndice, a primeira versão para o português brasileiro do texto A palavra na vida e na poesia. Introdução aos problemas da poética sociológica, de Voloshinov, que aliás também aparece como parte do título na capa do livro.

A iniciativa de publicar esse texto de Voloshinov também é muito boa. Trata-se de um texto fundamental dentro do arcabouço bakhtiniano, em que o autor, na intenção de delimitar um método sociológico para os estudos literários, empreende um esforço intelectual no sentido de mostrar as raízes intrinsecamente sociológicas da obra literária, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Para isso, aborda um evento interativo extremamente simples do cotidiano de dois interlocutores (o já antológico – para quem conhece – exemplo da neve pela janela!) para discutir a dinâmica da interação socioverbal, mostrando o quanto a existência da linguagem só é possível na sua relação intrínseca com o mundo extraverbal. A partir desse exemplo, decorrem as considerações sobre o fato de que o texto literário, respeitadas as proporções e suas complexidades, contém os elementos próprios de qualquer ato interlocutivo, contemplando, nos moldes do enunciados cotidianos, um evento, um herói, um interlocutor. Já tinha passado a hora de traduzir esse texto para o português, visto que nele, além da ousadia e da simplicidade da abordagem sobre a construção literária e da revisitação muito clara de temas bakhtinianos, fica patente a expressão do intenso diálogo estabelecido entre Bakhtin e Voloshinov sobre a linguagem e a literatura.

Problemas de sintaxe para uma linguística da escuta, de Augusto Ponzio, também faz uma reflexão sobre o tema do encontro vocal nas obras bakhtinianas, o que dá uma tonalidade especial ao livro, singularizando a edição na direção da importância do debate sobre os problemas relativos ao encontro de vozes. Ponzio, que é seguramente um dos mais lúcidos e expressivos estudiosos do pensamento bakhtiniano no mundo, aproxima as discussões que Bakhtin faz sobre a palavra em Dostoiévski à reflexão realizada por Voloshinov sobre o discurso citado, com destaque para uma abordagem do discurso indireto livre. É particularmente interessante, na sua argumentação, a reprodução do que diz Pasolini sobre o discurso indireto livre, para quem esse tipo de citação representaria “o espião de uma ideologia” (p.39). De quebra, ao final do seu texto, Ponzio faz, revisitando informações biobibliográficas sobre o Círculo, uma justa reflexão sobre o significado dos termos “bakhtiniano” e “círculo de Bakhtin”. Ele vai destacar a “intensa e afinada colaboração, em clima de amizade, em pesquisas comuns, a partir de interesses e competências diferentes” (p. 46) que se efetivou entre Bakhtin e seus interlocutores mais próximos como Medevedev e Voloshinov, lembrando que eles seriam, “[…] junto a Bakhtin, as vozes. […] de forma ‘igualitária’.” (p.49).

Sobre a nova tradução do texto de Voloshinov, anteriormente publicado no final de MFL, e que agora faz parte do título deste livro da Pedro & João, valem algumas considerações. Em primeiro lugar, dizer que ela foi realizada a partir de uma tradução do italiano que se baseou no original russo de Voloshinov e que, comparando-a à tradução brasileira anterior, realizada a partir da tradução francesa, não apresenta praticamente nenhuma coincidência verbal. Apesar disso, vê-se claramente que se trata do mesmo texto, das mesmas ideias, das mesmas propostas, com exatamente as mesmas dificuldades de leitura impostas pela tradução anterior que são, diga-se de passagem, próprias mais à inovação e à natureza do tema discutido por Voloshinov que outra coisa. Enfim, a comparação entre as duas traduções tem lá o seu quê de pedagógico sobre o tema da tradução na medida em que expõe ao leitor variedades de formas de dizer e construir sentidos. Assim, não dá pra dizer que o teor textual de uma tradução é melhor que o da outra, nem mesmo quando focamos na comparação de pequenas partes, pois elas ora tendem positivamente para a tradução antiga, ora para esta de agora.

Mas a nova tradução do texto de Voloshinov supera a anterior na forma de apresentação. Além da nova edição apresentar um sumário detalhado, facilitando imensamente o trabalho do leitor na busca de um determinado tópico e/ou discussão, o texto foi enriquecido nas suas notas de rodapé, a partir de complementações feitas pelo tradutor e/ou organizador, que trazem novas e importantes informações sobre os autores citados e as ideias apresentadas. Porém, ao contrário da tradução anterior, a atual não tem todas as citações de excertos de literatura traduzidos, o que pode dificultar a leitura para alguns estudiosos.

Embora, como já ressaltei antes, seja extremamente positivo o fato de termos o texto de Voloshinov reeditado num livro à parte, juntamente com o trabalho de Ponzio, em que o tema do discurso citado ganha evidência central, creio que também haja alguma desvantagem nessa nova conformação. Refiro-me aqui basicamente ao fato de que, mesmo que seja um pouco difícil para muitos leitores pensarem a inclusão dos quatro últimos capítulos de MFL dentro daquele livro, prevalece o fato de que todo o fundamento teórico utilizado neles está desenvolvido nos capítulos anteriores do livro, o que evidentemente não ocorre na presente edição que, para compensar essa falta, se apoia em algumas notas de rodapé. Mas, quando Voloshinov, na última parte do seu texto, discute o discurso indireto livre em francês, alemão e russo, ao fazer alusão aos estudiosos que discutiram o tema teoricamente, ele os vincula às duas grandes correntes de estudos de linguagem (objetivismo abstrato e subjetivismo idealista) estudadas e criticadas por ele nos capítulos 4, 5 e 6 do MFL. Como as nominações empregadas por Voloshinov abarcam uma densa e complexa visão crítica e teórica sobre a linguagem, saber do que ele está falando é fundamental para uma compreensão mais completa da crítica que ele faz aos estudiosos do discurso indireto livre que se fundamentaram ora no objetivismo abstrato, ora no subjetivismo idealista.

Outro aspecto que, creio, ainda precisará ser mais bem avaliado, o que deve ocorrer na medida em que forem acontecendo leituras dessa nova tradução, diz respeito à mudança de terminologia empregada nela para descrever o que até hoje conhecíamos como “discurso citado”. Embora nossa cultura de estudos linguísticos tenha firmado certa nomenclatura em relação ao tema da citação, utilizando-se farta e recorrentemente da palavra “discurso” para encabeçar cada uma das denominações genéricas das formas de descrição do discurso citado, conhecidas como “discurso direto”, “discurso indireto” e “discurso indireto livre”, não foi essa a opção dos tradutores desse novo texto. Assim, fique atento o leitor para o fato de que, onde está escrito nos últimos capítulos de MFL “discurso citado”, leia-se, na nova tradução, “palavra outra”. Imagino que a opção dos tradutores veio na esteira das opções feitas por Ponzio no texto que inicia o livro; mas pensando em tradução, em que a consolidação de um sentido cultural e de sua ressonância em leitores concretos tem sempre lá o seu peso, fico na dúvida se a opção escolhida foi mesmo a melhor. Se serve de consolo para o leitor, outra coisa boa que esta nova tradução apresenta é a supressão daquele palavrão presente na tradução do MFL: “outrem”, que praticamente ninguém falava e escrevia no Brasil.

Uma última consideração diz respeito ao fato de apenas o nome de Mikhail Bakhtin aparecer na capa do livro (em desacordo com a ficha catalográfica). Depois de tudo que já se especulou e se sabe sobre a autoria dos textos do Círculo de Bakhtin, causa estranhamento ver que o nome de Voloshinov não aparece na capa de uma obra que traz dois textos assinados por ele. Observe-se, ainda, que a reflexão feita por Ponzio demostra que os chamados membros do Círculo eram todos impactados pela intensidade de um diálogo amigável e especulativo, embora preservando suas individualidades teóricas e autorais.

Enfim, traduzir é sempre um risco e uma ponderação de sentidos em progressão de interlocução. São sempre muitas vozes falando ao mesmo tempo a indicar e a reivindicar os seus sentidos. A oferta da linguagem é quase infinita e a decisão pelo sentido nem sempre é fácil. Do conjunto do trabalho apresentado nesta nova tradução, reitero o peso ideológico e teórico da iniciativa, que ajuda na evidenciação do tema do encontro vocal no Círculo de Bakhtin, o que para mim suplanta até mesmo as opções de sentido que eventualmente podem não agradar tanto assim.

Gilberto de Castro – Professor da Universidade Federal do Paraná – UFPR, Curitiba, Paraná, Brasil; [email protected] 270.

Ideias de história: tradição e inovação de Maquiavel a Herder – LOPES (HH)

LOPES, Marcos Antônio (org.). Ideias de história: tradição e inovação de Maquiavel a Herder. Londrina: Eduel, 2007, 336pp. Resenha de: BENTIVOGLIO, Julio. História dos modernos, vocação pelos antigos: sentidos do passado no alvorecer da modernidade. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.320-326, março 2010.

Ao tratar do sentido da história na modernidade, dirá Koselleck que novas formas da experiência histórica foram acompanhadas por um conceito moderno de história. Para ele, entre os séculos XVI e XVIII, observou-se “uma temporalização da história, em cujo fim se encontra uma forma peculiar de aceleração que caracteriza a nossa modernidade” (Koselleck, 2006, p.23). Cada vez mais crescia a suspeita de que a história humana não tinha uma meta definida a atingir, embora o conhecimento do passado continuasse sendo útil para governos e governados. Constituía-se, portanto, uma consciência histórica que afastava o presente do passado, aproximando-o do futuro. Este é panorama em que os diferentes ensaios de Ideias de História – tradição e inovação de Maquiavel a Herder se inserem, analisando concepções de história no pensamento de Maquiavel, Guicciardini, Bodin, Bossuet, Vico, Voltaire, Hume, Montesquieu, Rousseau, Gibbon e Herder. A presença marcante da história, com seus usos e significados, é constante nestes clássicos do Renascimento e do Iluminismo, revelando uma transformação do conceito e da prática histórica em relação aos antigos, algo que na França ficou conhecido como a querela dos antigos e modernos, que tomou de assalto a Academia Francesa em 1687 (DeJean, 2005, 75).

Trata-se de um tipo de publicação ainda incipiente no Brasil, visto serem raras as coletâneas de história da historiografia, sobretudo em se tratando de história universal. Seu organizador, Marcos Antônio Lopes, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina, autor de obras e coletâneas consagradas como Grandes nomes da história intelectual, Para ler os clássicos do pensamento político e Fernand Braudel – tempo e história, reuniu neste livro um conjunto expressivo de renomados pesquisadores que nos brindam com a essência da obra daqueles pensadores modernos.

Marcos Lopes indica logo na apresentação que durante o Renascimento e o Iluminismo os pensadores sempre recorriam aos estudos dos antigos e ao passado como referências, procurando indicar o lugar em que se colocavam em relação à tradição e à experiência histórica percorrida. A rigor, entre os séculos XVI, XVII e XVIII a história era ferramenta preciosa em quaisquer campos de reflexão, fossem sistemas filosóficos, estudos literários, morais ou ensaios políticos. No campo efetivamente histórico, revela o organizador, a querela dos antigos e modernos marcaria uma autêntica escalada do historicismo que progressivamente solapa uma perspectiva ahistórica de tempo. Não obstante, vejo que a história guardava cada vez mais proximidade com o que depois se convencionou chamar de filosofia da história, ou seja, articulando em torno de um sentido a relação passado-presente-futuro, sentido este que poderia ser alcançado pelo entendimento humano, como atestam o pensamento de Voltaire e Rousseau, por exemplo. Esse caráter especulativo e filosófico que dá o tom da coletânea revela seu débito com a abordagem collingwoodiana.

O livro aparece antes da existência de uma síntese similar sobre a história da história na Antiguidade, ou seja, das ideias de história entre os antigos. Assim, na ausência de uma coletânea que trate de Heródoto, Tucídides, Políbio, Cícero ou Tácito, dentre outros, Ideias de História ocupa um lugar de destaque ao apresentar uma discussão aprofundada sobre algumas concepções modernas de história. No entanto, como em toda coletânea, podem ser sentidas ausências, como as de Hobbes, Mabillon, Kant, Commynes, Condorcet e Bolingbroke.

Isso não tira, absolutamente, o mérito da obra com seus estudos pontuais e sistemáticos, que informam e esclarecem a complicada trama pela qual o estudo do passado se efetuava a partir do século XVI no pensamento de alguns importantes pensadores. Trata-se de um momento em que o conceito e o próprio estudo do passado sofriam uma sensível mutação, deixando de ser entendido apenas como magistra vitae, ou como a descrição de narrativas de reis e imperadores, assumindo um status cada vez maior de ciência (Koselleck, 2006, 21s).

Das especificidades da história dos antigos limitadas aos feitos de seus povos, emergia uma preocupação de integrar as diferentes histórias em uma mesma história. Espelhando-se nos antigos, dos quais preservam inúmeros pontos de concordância, tais como o do caráter exemplar, da repetição, da importância da esfera política dentre outros; os modernos rompem com o olhar tradicional sobre a relação entre o passado, sua narrativa e o presente ao ampliar a assimilação crítica do tempo e dos clássicos greco-romanos. Embora ainda fossem modelares, não eram mais vistos como fonte exclusiva de autoridade.

Os ensaios também indicam que aqueles autores subsumiam a história e seu estudo à reflexão filosófica, pois se colocava à história uma tarefa que não tivera na agenda dos antigos: crônicas, anais e memórias careciam de um sentido universal como desejava a razão moderna em sua ânsia por crítica e erudição. O passado não perdia seu caráter pedagógico, pelo menos no todo, mas se ampliava a convicção de uma história entendida como aperfeiçoamento e progresso. Concomitantemente, o estudo do passado adquiria um caráter bem mais sistemático e rigoroso, do que então tivera, no qual o método ganhava enlevo, muito embora a história continuasse sendo um ramo atrelado ora à filosofia, ora às belas letras (Gervinus, 2010, 28), como um gênero narrativo menor.

Ao contrário dos antigos nos quais a urdidura dos eventos ou sua narrativa eram a dimensão mais importante fazendo com que o elemento cronológico superasse, muitas vezes, a importância dos julgamentos; entre os modernos a ênfase recaía sobre a crítica, de modo que a história iluminava a compreensão de determinados temas, diluindo-se a importância dos eventos e ampliando-se o valor dos temas e das fontes tratados. Outro aspecto notável é o futuro assumir uma dimensão fundamental, minando a possibilidade do presente ser experimentado como algo fixo e imutável. Novas perspectivas passaram a pautar a relação sujeito-objeto do saber e, independentemente do modo como o passado era percebido, seja para romper com generalizações, seja para encontrar regras gerais, a história continuava, entretanto, a oferecer exemplos para a vida. Patenteia-se nos autores clássicos reunidos nesta coletânea a convicção de que a história “pode conduzir ao relativo aperfeiçoamento moral e intelectual de seus contemporâneos […] cujas histórias são instrumentos recorrentes apropriados para comprovar doutrinas morais, teológicas, jurídicas ou políticas” (Koselleck, 2006, p.43).

Daí o esforço dos pesquisadores desta coletânea em compreender e localizar as idéias de história e o momento em que foram concebidas, suas tradições, embates e assimilações. Eis o sentido que alimenta o espírito da obra, pois, os colaboradores revelam que muito mais do que apropriação ou crítica, havia inovações naqueles pensadores, que ao fazerem parte do desenvolvimento de uma nova concepção de história estavam dotados de grande originalidade teórica e metodológica. Em seu conjunto, todos os textos que compõem o livro são tributários de Idéia de História publicado em 1946 por Robin G. Collingwood, que inaugurou um novo capítulo na história da historiografia com sua abordagem historicista e filosófica (1952).

Para os modernos não se tratava apenas de narrar feitos humanos notáveis, evitando-se o esquecimento, ou ainda apenas registrar eventos singulares, mas, sobretudo, de pensá-los dentro de um contexto, como um processo. Encontrar conexões, tal era o desafio, algo que já havia sido proposto por Chladenius. Este pensador germânico havia indicado ainda que, além das conexões, era também fundamental deixar claro para os leitores o ponto de vista (Sehepunkt) adotado pelo autor (Chlandenius, 1752, 36s).

No primeiro capítulo, José Luiz Ames dedica-se a dissecar o pensamento de Maquiavel e revela como o florentino adotava a história como um conhecimento inestimável para se compreender as regras gerais da ação política.

Para ele a história era o resultado das ações humanas e Roma um modelo útil para se compreendê-las e se estabelecer comparações com o presente. Mas, embora o passado fosse louvável, isso não significaria, absolutamente, que devesse ser imitável. A história deveria ser pensada sob o prisma da identidade, dos desejos e humores humanos e da diferença dos acontecimentos históricos.

Embora eventos políticos pudessem se repetir, isso não implicaria numa história imutável. Ou seja, a noção maquiaveliana de imitação, nas palavras de Ames, “está longe de ser a repetição mecânica” (p.29). Mesmo quando apelava para um modelo de tipo circular, utilizava-se de uma noção de prognóstico (Koselleck, 2006, 35).

Em seguida Sylvia Ewel Lenz analisa Guicciardini, que, se nos reportássemos ao modo como Gervinus pensa a narrativa histórica, teria feito a transição da narrativa cronológica para a memorialística. Curiosamente, o autor mantém a presença do fatalismo medieval, dos sinais, da fortuna. Muito embora tenha incorrido em pecados capitais em relação ao método, como já apontara Ranke (1824), ao deixar-se impressionar por superstições e preconceitos correntes de seu tempo, Guicciardini fez uma história do tempo presente com um zelo documental sem precedentes (p.48).

No terceiro capítulo, Marcos Antônio Lopes discute a obra de Bodin que tomava a história com uma preocupação política, para compreender as ações humanas em sua relação com as formas de governo, mas ao contrário de Maquiavel, não perdeu de vista as diferenças de escala da política antiga para a política do presente. Ele incorpora o espírito da histoire accomplie, ou seja de uma história perfeita, que busca o rigor metodológico, a crítica documental, evitando ser mera descrição de transições dinásticas ou um romance de reis. E separou “a história sacra, a história humana e a história natural” revelando que a “história humana não tem qualquer meta a atingir; ela é o campo aberto da inteligência humana” (Koselleck, 2006, 28-9).

Bossuet foi também analisado por Marcos Lopes no quarto capítulo, ele que em sua obra representou o esforço de reunir histórias particulares em uma mesma história, acreditando que o conhecimento histórico daria enorme impulso à hermenêutica bíblica além de ser um dos veículos mais apropriados para a educação dos príncipes. Providência e história seguiam uma ordem universal e Deus se encarregaria de corrigir as distorções provocadas pelos príncipes, pois como Santo Agostinho – sua grande influência – já havia sugerido, os Estados terrenos e a cidade de Deus não eram pólos opostos.

João Antônio de Paula analisa o pensamento de Vico no capítulo seguinte, cuja Ciência Nova representou uma verdadeira revolução no pensamento e uma das compreensões mais originais da história. Para Paul Hazard, Vico ilustra perfeitamente um momento decisivo da crise da consciência européia, inaugurando “uma nova maneira de pensar ao mesmo tempo inovadora, em seu conteúdo, e desconcertantemente original, em sua forma” (p.116). Karl Löwith encarou o italiano como precursor de Herder, Dilthey, Hegel, Splenger e Niebuhr, dentre outros; cujas idéias adormecidas aguardariam pelo advento do romantismo, do idealismo e do historicismo, para despertarem com força absoluta, visto colocarem a história como o base de todo conhecimento. Atribuise a Vico a elaboração da primeira filosofia da história.

No sexto capítulo Renato Moscateli toma Montesquieu, “escritor que ganhou renome de grande pensador político por ter estabelecido princípios que fundamentariam as constituições de inúmeros Estados modernos” (p.151) que em uma de suas primeiras obras Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e sua decadência, de 1734, demonstrava a importância do exame de diferentes causas e personagens, de sua interpretação e não meramente de sua narração. Sua análise revela que os eventos se reúnem numa teia de causas essenciais, dotadas de sentido, pois, para ele “não é a fortuna que domina o mundo, mas ações concretas, físicas, morais, humanas. Em O espírito das leis Montesquieu parte do jusnaturalismo e da política para, embasado no terreno da história edificar uma das mais importantes obras do pensamento ocidental moderno que não se limita à classificação ou à descrição de sistemas jurídicos ou da arquitetura das leis, mas procura localizar sua essência cunhando conceitos, tipos ideais e introduzindo uma nova perspectiva de análise que parte das virtudes políticas e morais como molas para a compreensão dos fenômenos humanos.

Voltaire é alvo do ensaio de Estevão de Rezende Martins no capítulo seguinte, paladino da tolerância, da liberdade e divulgador par excellence do racionalismo inglês e do pensamento iluminista francês. Segundo Estevão, para Voltaire, quanto mais esclarecido os homens, mais livres serão, pois, “apostava na espontaneidade da razão (do são entendimento), que haveria de encontrar sempre a boa solução” (p.185) e seguiu Locke “na exigência de fundamentar empiricamente a filosofia e a ciência, e de não aceitar qualquer conhecimento que não esteja exclusivamente baseado em observações” (p.190). No Ensaio sobre os costumes, Voltaire indica a necessidade de um novo tipo de história, que encontre o sentido do tempo e o espírito humano, que seja mais científica e crítica, evitando especulações teo-teleológicas (p.201).

No oitavo capítulo a professora Sara Albieri da USP analisa o pensamento de David Hume, autor da História da Inglaterra do período romano até a revolução de 1688, causando espécie ao publicar volumes seguindo uma inversão cronológica. “Hume julgara ter escrito uma narrativa histórica imparcial […] acima do conflito das interpretações partidárias, esperando persuadir as partes em disputa e atrair o consenso das opiniões” (p.206). Hume evidencia a máxima de Voltaire de que somente os filósofos deveriam escrever a história. Sara percebe em Hume a sensível mutação ocorrida da história narrativa, para uma história mais filosófica com maior preocupação metodológica e científica, cujo estilo foi obscurecido pela historiografia romântica posterior, salvo no destaque conferido à imaginação.

Em seguida Renato Moscateli se debruça sobre Rousseau, para o qual a história preserva o caráter de exempla, pois persegue o princípio da perfectibilidade humana perdida e que deve ser reconquistada; “há em seu pensamento histórico uma verdadeira argumentação dialética que liga o processo de aprimoramento da razão humana “a demonstração da corrupção que o acompanha passo a passo” (p.237).

No penúltimo capítulo Gibbon é alvo da análise de José Antonio Dabdab Trabulsi que revela o gênio do inglês em sua démarche histórica interpretativa, marcada pela erudição clássica, pelo interesse na diferença e pela subjetividade da narrativa. Mais que historiador, seria também um philosophe (p.264) em sua tentativa de fazer uma história natural da religião à semelhança de Hume em sua clássica História do declínio e queda do Império Romano.

Herder é o último pensador, analisado por Astor Diehl, fecha a coletânea, expressão dos desafios que, na encruzilhada do Iluminismo e do Romantismo, forjou os alicerces sob os quais se desenvolveria o historicismo alemão.

Como se vê, a Ideias de História realiza uma síntese louvável para se compreender a trajetória do conhecimento histórico e suas expressões em alguns pensadores clássicos da era moderna, descrevendo algumas representações do passado e sua compreensão, revelando a complexidade dos relatos historiográficos na modernidade e o caráter perturbador de novas leituras do mundo e das experiências do tempo. Como revela Hans-Ulrich Gumbrecht,

No interior do tempo histórico, não se pode imaginar que quaisquer fenômenos estão livres de mudança e isso leva à aceitação geral da premissa de que períodos históricos diferentes não podem ser comparados por quaisquer padrões de qualidade meta-histórica (GUMBRECHT, 1998: 15).

A partir daquele período, nenhum indivíduo, grupo ou momento histórico poderia ser visto como a repetição de fenômenos antecedentes, cada presente era experimentado como uma possibilidade de mudança pelo seu futuro, colocando a temporalidade e seu cronótopo como uma categoria estrutural de investigação histórica. Não por acaso apareceriam então as filosofias da história como fonte de modelos narrativos, procurando encontrar padrões para a experiência do passado, reveladoras da essência das ações humanas.

Referências

CHLADENIUS, Johann Martin. Allgemeine geschichtswissenchaft. (Ciência histórica geral – trad. Sara Baldus 2009). Leipzig : Friedrich Landisches Erben, 1752.

COLLINGWOOD, R. G. Ideia de la historia. México: Fondo de Cultura Economica, 1952.

DEJEAN, Joan. Antigos contra modernos: guerras culturais e construção de um fin de siècle. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

FUETER, Eduard. Histoire de l´historiographie moderne. Paris: Librairie Félix Alcan, 1914.

GERVINUS, Georg G. Fundamentos de teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2010 (no prelo).

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.

HAZARD, Paul. Crise da consciência européia (1680-1715). Lisboa: Cosmos, 1948.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.

LÖWITH, Karl. Meaning in History. Chicago: University of Chicago Press, 1984.

Julio Bentivoglio Professor Adjunto Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) [email protected] Av. Fernando Ferrari, 514 Vitória – ES 29069-900 Brasil.

Caio Prado Júnior: o sentido da revolução – SECCO (HH)

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SECCO Paulicéia Caio Prado Júnior POST DialogueLincoln Secco. Foto: Francisco Emolo

SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. MONTALVÃO, Sergio.[1] Biografia intelectual como exercício de escrita da história. História da Historiografia, Ouro Preto, n.4, p.306-313, mar. 2010.

Ensina-nos Ítalo Calvino que os clássicos são livros acerca dos quais não se costuma dizer: “estou lendo”. E sim: “estou relendo”. Desde a sua publicação, nas décadas de 1930 e 1940, a obra histórica de Caio Prado Júnior foi lida de diferentes maneiras, suscitando aplausos e críticas, de acordo com o próprio deslocamento da historiografia, mantendo vivo, no entanto, o interesse dos leitores. Chegado o ano de 2008, pouco depois de completar-se o centenário de nascimento do autor de Evolução Política do Brasil (1933) e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), a sua biografia, feita por Lincoln Secco em Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, da editora paulistana Boitempo, apresenta não apenas o intelectual dedicado à interpretação do Brasil, mas o ativista e parlamentar de esquerda, o publisher da editora Brasiliense. Voltado para o grande público, esse estudo não perde, em nenhum momento, o rigor analítico, tendo o mérito de reunir o pensador e o homem de ação, de traçar um retrato de corpo inteiro de um dos mais formidáveis historiadores do século XX.

O livro de Lincoln Secco se beneficiou da voga de estudos caiopradianos que se sucederam a partir da segunda metade da década de 1990 (IUMATTI, 1998 e 2007; MARTINEZ, 1998; RICUPERO, 2000, GNERRE, 2001 e SANTOS, 2001). A abertura dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS/SP) e a descoberta dos cadernos políticos de Caio Prado Júnior – parcialmente apresentados na tese de Paulo Iumatti, que elegeu as anotações sobre o ano de 1945, o último do Estado Novo de Vargas –, hoje abertos à consulta pública no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), abriram um campo sobre o qual historiadores e cientistas sociais puderam descortinar as suas relações políticas e pessoais.

A nova ordem documental levou à mudança de foco, da historiografia ao historiador. Este movimento acompanhou as possibilidades de pesquisa atuais, que permitem maior variação nos jogos de escala. Parte evidente do regime de historicidade do século XIX, a biografia, depois de impactada pela história estrutural, renasceu a partir do final da década de 1960, em pesquisas que tiveram como objetivo revelar o cotidiano e a cultura dos “excluídos da história” (LORIGA, 1998). A partir de então teve início um movimento de revisão da história social, até então seduzida pelos expedientes de quantificação da chamada história serial. A crise do “paradigma galilaico” implicou na saturação da ideia de se levar a história ao limite de uma ciência em construção (GRENIER, 1998). A fortuna da biografia, porém, não se limitou apenas à história social, mas teve acolhida e espaço crescentes na história política renovada, que se dispôs a refletir sobre a ação dos indivíduos na esfera pública e de poder, recusando não somente a abordagem heróica, que fazia com que poucos personagens do passado gozassem de dignidade pessoal, mas também a abordagem totalizante, prefigurada em concepções teleológicas, que negavam o valor da experiência e do vivido.

A arte de tornar pública a sua opinião, criação, interpretação ou tese, que caracteriza os intelectuais e o seu relacionamento com a pólis, se inicia como atividade solitária e permanece associada ao autor ou à autora dos diferentes de obras e intervenções. Mesmo no caso dos “intelectuais orgânicos”, conforme o conceito gramsciniano, o empenho em servir a uma classe social depende de esforço próprio, que não pode ser delegado a terceiros. Na política, o intelectual está constantemente envolvido com processos e escolhas, nem sempre coerentes, de um lado e de outro. As suas escolhas políticas se fazem em meio a processos e acontecimentos históricos. Guerras, revoluções, torturas, genocídios, injustiças e desrespeito ao que consideram direitos individuais ou coletivos marcaram a entrada dos intelectuais na arena pública. Denúncias, acusações de desvios ou exacerbações daqueles que eles próprios apoiaram em um primeiro momento, levaram-nos à contestação ou ao silêncio. Se sujeito a tantas singularidades e idiossincrasias, haveria como tratar o intelectual além da biografia? Este me parece o desafio do livro de Lincoln Secco: tornar a biografia de Caio Prado Júnior um exercício de história política e, ao mesmo tempo, um exercício de história da historiografia.

O livro resenhado divide-se em cinco partes: “Os anos de formação”, “O parlamentar”, “O revolucionário”, “O historiador” e a “Questão agrária”. É interessante acompanhar esta divisão e, a partir dela, ver a atualidade e a originalidade dos enfoques utilizados. A origem familiar de Caio Prado Júnior, nascido do casamento de Caio da Silva Prado com Antonieta Penteado da Silva Prado, remete de imediato à elite paulistana, tendo Lincoln Secco ressaltado a importância do ramo materno, geralmente esquecido, ao escrever que “uma parcela importante da fortuna de seus pais provinha da família Penteado, que enriqueceu com a fabricação de sacos de juta demandados pela comercialização do café” (SECCO, 2008, pp. 19-20). Assim, a educação escolar e o convívio com os hábitos e a cultura da alta burguesia levaram Caio Prado Júnior a seguir os padrões típicos de sua classe social, identificáveis na frequência à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, pela qual recebeu o título de bacharel em 1928, e no casamento com Hermínia Cerquino, em 1929, no Mosteiro de São Bento.

A participação política do historiador teve início no movimento de cisão da oligarquia paulista, sintomaticamente demonstrada pela criação do Partido Democrático em 1926, do qual participou ativamente, inclusive na campanha presidencial de Getúlio Vargas e João Pessoa para as eleições de 1930. A revisão da sociedade oligárquica e a ânsia pela sua democratização formam o emblema político de Caio Prado Júnior. O fracasso da Revolução de 1930 em desarmar o pêndulo que, para o historiador, a fez retroceder mais do que avançar no sentido da autêntica superação do mando tradicional, ancorado na permanência da estrutura colonial e dependente da economia brasileira, o fez procurar, entre as opções da época,[2] a forma mais pertinente de expandir o radicalismo de suas ideias.

O comunismo dos anos 1930 foi vivido por Caio Prado Júnior como a experiência mais autêntica e radical de democratização e modernização aceleradas, conhecida pessoalmente por ele em sua viagem à União Soviética, depois defendida em sua possível aplicação ao Brasil, pelo que demonstram seus artigos na imprensa, escritos no tempo da Aliança Nacional Libertadora (ANL), da qual foi vice-presidente da regional de São Paulo. A crença nas ideias do marxismo soviético[3] e a imobilidade dessa crença no decorrer da sua vida levaram Caio Prado Júnior a se engajar numa “quase religião laica”. A expressão foi retirada por Lincoln Secco da autobiografia de Eric Hobsbawm e expõe, muito elucidativamente, o sentimento de dois intelectuais e historiadores marxistas de grande expressão em face daquilo que conformou as suas respectivas identidades públicas. Passar à esquerda comunista significava fazer parte de uma comunidade doutrinária, com regras e direcionamentos de difícil questionamento, e aceitar o modelo soviético como exemplo incontestável de sucesso político. Os posicionamentos de Caio Prado Júnior sempre revelaram a sua retidão em relação aos cânones da era stalinista, não passando por revisões e autocríticas devido a comportamentos heréticos, como outros intelectuais do partido, entre os quais podemos citar Astrojildo Pereira, Heitor Ferreira Lima e Octávio Brandão. A prisão em 1935 e o exílio na Europa nos primeiros anos da ditadura varguista tornaram-no um exemplo da inteligência engajada.

Mesmo sem negligenciar a importância desses anos de formação, nos quais Caio Prado Júnior escreveu os dois livros mais importantes de sua bibliografia, Lincoln Secco destaca a sua experiência parlamentar, no final da década de 1940, durante o pequeno intervalo de legalidade do Partido Comunista do Brasil (PCB). Depois de não ter apoiado a causa da “constituinte com Getúlio”, preferindo uma aliança tática dos comunistas com a União Democrática Nacional (UDN), o historiador e proprietário da Editora Brasiliense,[4] lançou-se candidato a deputado estadual pelo PCB, foi eleito e compôs a bancada comunista com mais dez deputados. Os Anais da Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) o apresentam em debates nos quais demonstrou o trato polido e a fina ironia das suas colocações. Segundo Lincoln Secco, o ápice da sua presença no parlamento foi o projeto destinado à criação de uma fundação de amparo à pesquisa científica, concessora de bolsas e incentivos a estudantes e professores universitários.

A cassação do registro eleitoral do PCB causou novamente a prisão de Caio Prado Júnior e o fez ingressar, nos anos 1950 e 1960, em ativa “luta cultural”, entrincheirado na Revista Brasiliense. Foi nesta publicação que o historiador avaliou o tempo presente e discutiu o tema da revolução brasileira.

Sabe-se que Caio Prado Júnior olhava com desconfiança o governo João Goulart (1961-1964) e toda a agitação em torno da sua persona. O personalismo da política brasileira, germe do populismo e de toda a desgraça da esquerda que havia entendido a política de massas, induzida a partir dele, como a antecâmara da política revolucionária, chegava ao clímax em 1963, após o plebiscito de 6 de janeiro, que encerrou o período parlamentarista iniciado dois anos antes e devolveu a Goulart a inteireza dos poderes presidenciais. Reforma agrária na lei ou “na marra”, superação dos “resquícios feudais”, “dispositivo militar”, “burguesia nacional-progressista” e a máxima de Luís Carlos Prestes dizendo-se próximo ao poder, na visão de Caio Prado Júnior, pouco acrescentavam à revolução brasileira, que representava a passagem da colônia à nação e não ocorreria de maneira explosiva, no tempo curto dos acontecimentos políticos.

A entrada do historiador no debate político teve a retaguarda do filósofo.

Neste ponto, é muito interessante a contribuição de Lincoln Secco, pois a filosofia de Caio Prado Júnior pouco tem sido investigada e quando inquirida se apresenta com outras matrizes teóricas que não o marxismo. Encontra-se nela a recepção do positivismo lógico de Bertrand Russel e do Círculo de Viena, a partir da qual Caio construiu uma apreciação da história em que só há processos e relações, sem um sentido encontrado de antemão. Essa observação já havia sido feita por Jacob Gorender (1989, p.261), mas ganhou um destaque especial na biografia aqui comentada, pois é apresentada como fundamento lógico-teórico das análises políticas do historiador, sempre avessas a esquemas classificatórios feitos a priori.

As páginas sobre a circulação das ideias de Caio Prado Júnior acerca do tema da revolução brasileira, da maneira pouco entusiasmada como foram recebidas entre a intelectualidade de esquerda à sua consagração, materializada pela entrega do prêmio Juca Pato, de intelectual do ano de 1966, demonstram o conhecimento de Lincoln Secco sobre a história do marxismo no Brasil. É o que se pode notar pela seguinte passagem da biografia: Independentemente da opinião que temos sobre aquele livro [A revolução brasileira, 1966], ele enfim fez com que Caio Prado Júnior deixasse de ser apenas um comunista politicamente marginal no interior do partido para se situar no centro de uma polêmica sobre as razões da derrota da esquerda.

Isso porque sua leitura do Brasil agora encontrava um novo ambiente cultural e o próprio marxismo cedia lugar a uma era de vários marxismos, como já vimos. Caio Prado Júnior se tornou o novo paradigma das leituras críticas da nossa história e passou da condição de herege à do mais brilhante e modelar pensador marxista brasileiro. (SECCO, Op. Cit. pp. 117-118).

Enquanto a consagração de Caio Prado Júnior como intelectual de esquerda teve que aguardar a derrota da sua vanguarda política, o mesmo não aconteceu com o historiador que utilizou o materialismo histórico como método de investigação. A quarta parte de O sentido da revolução se inicia com a frase: “A história estava no alfa e ômega do seu pensamento” (Idem, p. 153). A história e não o marxismo. Mesmo que tenha sido reverenciado como o primeiro a retirar os frutos advindos dos conceitos de Marx para entender os cinco séculos da História do Brasil e sua relação com o capitalismo na Idade Moderna e Contemporânea, Caio Prado Júnior cultivou, em toda a sua trajetória de pesquisador, o melhor dos hábitos tradicionais de leitura e interpretação das fontes históricas. No entanto, não se pode deixar de incluí-lo no sopro de renovação dos estudos históricos e sociais da década de 1930. A intenção de Evolução Política do Brasil foi superar a tradicional historiografia do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e, ao mesmo tempo, contestar os devaneios acerca da presença do feudalismo em nossa formação social, presente numa incipiente produção de autores marxistas. O capítulo sobre o período regencial expõe o ímpeto revisionista da historiografia caiopradiana. Nele se encontra a primeira tentativa de se chegar ao solo dos conflitos políticos do século XIX, colocando o povo em cena. Organizado como síntese, o livro traça um roteiro das revoltas acontecidas na década de 1830, revelando personagens como os irmãos Antônio e Francisco Vinagre, que lideraram os cabanos do Pará, e o escravo Cosme, fundador de um quilombo no Maranhão durante a Balaiada. A entrada do povo na política não foi vista com ingenuidade. Francisco Vinagre, após se insurgir contra o governo de Félix Clemente Malcher e controlar o poder, buscou se aproximar do governo imperial e negociou um acordo (PRADO JÚNIOR, 1991 [1933], pp. 75-76). O escravo Cosme, logo intitulado “imperador, tutor e defensor de todo o Brasil”, “vendia a seus companheiros títulos e honrarias” (Idem, p. 80).

A interpretação histórica do Brasil feita por Caio Prado Júnior encontra a sua metodologia mais definida em Formação do Brasil Contemporâneo e História Econômica do Brasil.[5] Ambos obtiveram apreciável aceitação crítica, estando na raiz da história econômica praticada na Universidade de São Paulo (USP), como se observa da leitura de Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, de Fernando Novais. Críticas a essa interpretação e, em especial, aos excessos relativos à determinação externa da economia brasileira e à falta de acumulação interna de capitais viriam mais de três décadas depois. Ao apresentar essa polêmica, Secco defendeu o biografado contra as acusações da sua obra marxista ter-se apoiado mais nos aspectos da circulação de capitais (movimentos do mercado mundial capitalista da era moderna) do que nos aspectos da produção, mais especificamente do modo de produção predominante na colônia, apresentado como escravista.[6] Escreveu que os críticos: não atentaram para o fato de que, na periferia, o estudo da esfera da distribuição é que conduz à totalidade. Isso porque o dinamismo do modo de produção está no centro do sistema e é este que dita a lógica da reprodução global sistêmica ou, nas palavras de Caio Prado Júnior, dá o ’sentido da colonização’ (SECCO, Op. Cit. p. 177).

O capítulo final, Questão agrária, tratou também da atualidade de Caio Prado Júnior. Foi este um ponto de atrito entre o intelectual e o partido no início dos anos 1960, quando, em artigos da Revista Brasiliense, Caio defendeu a introdução da legislação trabalhista no campo e criticou as propostas do agrarismo pecebista. A especificidade do trabalhador rural, sujeito a relações capitalistas e à nossa herança rural, leia-se patriarcal e autoritária, levaram o historiador a bater-se pela cidadania daqueles que então eram a maior parte da população nacional. O problema segue até hoje e mostra a complexidade de tempos históricos embutidos na modernidade brasileira.

Para finalizar, é importante destacar a qualidade do projeto gráfico do livro, o caderno de fotos que revela os hábitos sociais do biografado e, sobretudo, os documentos anexados à edição. Entre estes documentos, a carta enviada a Carlos Nelson Coutinho comentando um escrito acerca da revolução baiana de 1798 diz muito sobre a concepção de história de Caio Prado Júnior. Não vou comentá-la aqui, preferindo deixar a curiosidade aos leitores que tiverem a oportunidade de ler esse valioso estudo sobre um dos fundadores de nossa moderna historiografia.

Bibliografia

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

CÂNDIDO, Antônio. “A revolução de 30 e a cultura”. Novos Estudos CEBRAP, vol. 2, São Paulo: 1984, pp. 27-36.

GNERRE, Maria Lúcia Abaurre. A Forma e a Nação: Estilo Historiográfico em Formação do Brasil Contemporâneo. Campinas: Universidade Estadual de Campinas (Dissertação de Mestrado em História), 2001.

GORENDER, Jacob. “Do pecado original ao desastre de 1964”. In. D’INCAO, Maria Ângela. História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior. São Paulo: Brasiliense/UNESP, 1989, pp. 259-269.

__________. Escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1988.

GRENIER, Jean Yves. “A história quantitativa ainda é necessária?” In. BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique. Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1998.

IUMATTI, Paulo Teixeira. Diários políticos de Caio Prado Júnior. São Paulo: Brasiliense, 1998.

__________. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual. São Paulo: Brasiliense, 2007.

LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In. REVEL, Jacques (Org.) Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1998.

MARTINEZ, Paulo Henrique. A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Júnior (1928-1935). São Paulo: Universidade de São Paulo (Tese de Doutorado em História), 1998.

NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), 8ª edição. São Paulo: Hucitec, 2006.

PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil, 19ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1991.

RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Júnior e a nacionalização do marxismo.

São Paulo: Editora 34, 2000.

SANTOS, Raimundo. Caio Prado Júnior na cultura política brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

[1] Doutorando Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) [email protected] Praia de Botafogo, 190/14º andar Rio de Janeiro – RJ 22250-900 Brasil.

[2] Escrevendo sobre a Revolução de 1930 e a cultura, Antônio Cândido tratou das diversas formas de radicalização do período, decorrentes do “convívio íntimo entre a literatura e as ideologias políticas e religiosas” (1984, p. 30), que levaram os intelectuais a vivenciar experiências radicais no catolicismo, no fascismo e no comunismo.

[3] Aqui penso o marxismo soviético enquanto ideologia e razão de Estado, não enquanto interpretação histórica das sociedades.

[4] Fundada em 1943, a Editora Brasiliense teve como demais sócios: Arthur Neves, Caio da Silva Prado e Leandro Dupré.

[5] Este livro retoma em grande parte as teses do livro anterior, sobretudo em relação ao período colonial.

[6] 5 A tese do modo de produção escravista colonial foi defendida por Jacob Gorender em um estudo que procurou encontrar sua lógica interna, descrita em leis específicas de reprodução histórica.

Um iluminismo português? A Reforma da Universidade de Coimbra (1772) – CARVALHO (HH)

CARVALHO, Flávio Rey de. Um iluminismo português? A Reforma da Universidade de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008, 135 pp. Resenha de: SILVA, Ana Rosa Cloclet da. As “luzes” de um “reino cadaveroso”: entre a polêmica e a tradição. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 03. p.174-180 setembro 2009.

Como pensar a singularidade ibérica e, particularmente, portuguesa no contexto da intensa transformação mental e cultural da época moderna? Como conceber a via trilhada pela modernidade lusa, desde meados do século XVIII, no âmbito de fenômenos que, a despeito de repercutirem em todo o ocidente europeu e nas colônias americanas, rejeitaram sempre definições precisas, seja pelas suas origens esparsas, seja pelas especificidades das circunstâncias históricas que a viram nascer, ou pelas profundas divisões que separaram aqueles que se definiam filósofos, num mesmo espaço cultural? Como situar-se em relação a enfoques que, tradicionalmente, consolidaram conceitos e noções sobre o fenômeno ilustrado luso, pautados na polaridade entre seu suposto atraso e palidez frente às “luzes européias”? São estes alguns dos desafios enfrentados pelo jovem historiador Flávio Rey de Carvalho, no livro recentemente publicado pela editora Annablume – Um iluminismo português? A Reforma da Universidade de Coimbra (1772) –, cujo título já denuncia o teor das questões que instigaram sua pesquisa.

Neste trabalho – resultado de sua dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de História da Universidade de Brasília, em 2007, sob orientação da Profa. Dra. Tereza Cristina Kirschner -, o autor persegue questão de inestimável relevo e que, há muito, demandava estudo mais verticalizado: a problematização do fenômeno das Luzes em Portugal, pautada no esforço em romper com dois vieses interpretativos que, articulados, desdobraram-se na produção historiográfica portuguesa do século XX. Por um lado, a interpretação cristalizada por historiadores inspirados na produção literária portuguesa de finais do XIX, tendentes a realçar as idéias de atraso e decadência presentes nos discursos dos primeiros reformadores do Reino, derivando desta leitura uma “ênfase exagerada e unilateral atribuída aos estigmas da diferença e da eterna defasagem” da ilustração portuguesa, associada ao monopólio ideológico eclesiástico (pp.

25-28). Por outro, o que o autor identifica como sintoma mais geral entre historiadores de diferentes nacionalidades: “a adoção indiscriminada de certa noção de Iluminismo”, como conjunto de idéias harmoniosas, autônomas e descarnadas de seus contextos políticos e culturais de elaboração que, trazendo no cerne a crença na razão transformadora, na crítica universal, na busca da felicidade, teriam inspirado, a partir da França, um ambicioso programa de secularização, humanidade, cosmopolitismo e liberdade (pp. 28-33). Uma concepção que, vale frisar, embora endossada por determinadas abordagens ainda hoje influentes, é aqui atribuída um tanto quanto indiscriminadamente às clássicas formulações de Peter Gay, Ernst Cassirer, Paul Hazard, intelectuais cujas contribuições, além de cunhadas em momentos muito distintos, inseremse em áreas específicas do campo disciplinar e teórico, só passíveis de nivelamento mediante rigorosas ponderações.[1]

Instigado pelas controvérsias interpretativas suscitadas por ambas as tendências e pautando-se numa recente produção intelectual que tende a romper com os ‘modelos” e estigmas mencionados, o autor deriva seu percurso investigativo, tomando por objeto central as reformas pombalinas da Universidade de Coimbra, implementadas a partir de 1772. Assim, perquirindo os motivos imediatos e a concepção predominante entre os reformadores da Universidade, privilegia a análise de três documentos principais: o Compêndio histórico da Universidade de Coimbra (1771) – elaborado pela Junta de Providência Literária, criada em 23 de Dezembro de 1770 com o objetivo de examinar o estado da Universidade -; os Novos Estatutos – que em 28 de agosto de 1772 recebiam licença para serem implementados em substituição aos velhos, em vigor deste 1598 – e a Relação geral do estado da Universidade, elaborada por Francisco Lemos em 1777.

Embora bastante revisitado pela historiografia luso-brasileira, o recorte temático e o corpo documental eleito recebem, na presente obra, um tratamento apurado, verticalizado a partir do esforço de identificação dos principais vetores que estruturaram o discurso antijesuítico, seu conteúdo político e ideológico, bem como as congruências do ambiente intelectual luso com as “Luzes do século”. Além do detalhamento dos conteúdos programáticos formulados pelo âmbito estatal, a opção pela sistemática metodológica de contrapor estas fontes com algumas obras representativas do pensamento iluminista francês – dentre as quais os próprios verbetes da Encyclopédie –, examinando seus traços comuns, algumas adaptações, bem como a simultaneidade da produção do pensamento ilustrado no reino e no além-pirineus, permite ao autor desconstruir as noções de atraso, decadência, isolamento e estrangeiramento das Luzes em Portugal – a partir das quais concebeu-se tradicionalmente a suposta “crise mental” do século XVIII português -, bem como o próprio conceito de Iluminismo, tal qual divulgado pelas sínteses históricas do século XX.

Guiado por tais propósitos, a narrativa desdobra-se em quatro capítulos. No primeiro, alinhando-se a versões contemporâneas da historiografia portuguesa, bem como da produção intelectual – sobretudo anglo-saxônica – sobre o Iluminismo,[2] o autor problematiza o suposto impasse existente entre Portugal e a modernidade européia, tomada por aquilo que situa como herança dos intelectuais inseridos no movimento romântico luso: segundo ele, uma noção de “história da humanidade”, sob os signos de superioridade, exemplaridade e universalidade (p.27), por ele identificados à denominada “geração de 1870”, mas que, a rigor, já se inscrevem numa tendência prérealista e naturalista, como é o caso dos textos de Antero de Quental, de 1871, tomados pelo autor como referência paradigmática de tal tendência. Empenhado na historicização dos fenômenos em causa e compartilhando das perspectivas recentes, que tomam o Iluminismo como fenômeno plural, perpassado por especificidades, debates, diferenças e tensões internas, o autor analisa algumas expressões cunhadas por intelectuais portugueses frente ao reconhecimento de peculiariedades do caso luso no contexto das Luzes setecentistas. É assim que conceitos como “iluminismo católico” – cunhado pelo historiador português Luis Cabral Moncada e generalizado como mera contraposição à suposta tendência anticlerical do Iluminismo (pp. 34-36) -; “ecletismo” – presente nos textos de filosofia e história do século XX, com destaque para José Sebastião da Silva Dias, tomado como atitude filosófica de mera contemporização com as idéias do século (pp. 36-40) -; “ilustração de compromisso” – proposto pelo historiador português Norberto Ferreira da Cunha, para designar uma forma de compatibilizar a incorporação das novidades, com a tradição lusa pós-tridentina (pp. 40-41) -, a despeito da intenção inicial de seus formuladores, acabaram, segundo o autor, por reforçar a visão pejorativa imputada à ilustração portuguesa, recrudescendo sua contraposição à “culta Europa”.

Em qualquer dos casos, conclui que tais tendências não se apresentam como “anomalias” do caso luso, mas reprisaram-se em diferentes contextos, não justificando os estigmas do atraso, decadência e isolamento intelectual do país que, segundo o autor, também não corresponderiam às impressões dos próprios reformadores setecentistas. Este último, a meu ver, argumento merecedor de estudo mais detido, pautado tanto num alargamento das fontes quanto no diálogo com uma produção historiográfica recente que, longe de constituir-se por abordagens generalistas, com tendência à mera “repetição umas das outras” (p. 19) – julgamento precipitado um tanto generalista do autor, que tende a desqualificar outras possibilidades de verticalização a partir da documentação analisada – têm demonstrado não serem os diagnósticos do atraso e da decadência “exceção de uns poucos estrangeirados” (p. 48), constituindo, a despeito de seu conteúdo político e ideológico, vetores estruturantes dos diagnósticos e das reformas implementadas pelo Marquês de Pombal, ele próprio um “estrangeirado”.[3]

No segundo capítulo, é examinada a situação do ensino universitário português e a proposta de reforma da Universidade, à luz de duas fontes principais: o Compêndio histórico e os novos Estatutos. Argumentando que a “decadência do ensino estendia-se à maioria das universidades européias no período” (p. 43), ainda presas ao modelo de instrução escolástico, o autor infere que o saber nestas ministrado não poderia constituir contraponto ao suposto atraso português, além de explicar “porque a ciência moderna se desenvolveu exteriormente ao ambiente universitário” (p. 46). Afirmações no mínimo instigantes de uma análise mais retida às instâncias e veículos de informação por meio dos quais os “estrangeirados” lusos vislumbraram comparativamente a situação de Portugal, emitindo seus diagnósticos. De outro modo: se no âmbito das Universidades de Évora e Coimbra não se impunham diferenças significativas em relação à situação universitária geral européia, como era o ambiente fora da instância do ensino superior? Quais os espaços de diálogo e troca de experiências freqüentados por estes primeiros reformadores lusos, que franqueavam os elementos para a elaboração de raciocínios comparativos? Indagações cuja pertinência é reforçada pela própria constatação do autor – segundo o qual os “reformadores de Coimbra tinham consciência de que os conhecimentos filosófico-científicos (…) aperfeiçoavam-se e enriqueciam-se, cada vez mais, com os novos descobrimentos feitos fora da esfera ortodoxa das universidades” (p. 108) – e que vêm sendo incontornavelmente associadas pela recente produção historiográfica luso-brasileira a duas instâncias fundamentais: a diplomacia e as academias científicas criadas no âmbito da República das Letras.[4]

Como contribuição definitiva do capítulo – e em boa medida inédita, no que concerne ao tratamento da documentação -, Flávio de Carvalho averigua o cerne da crítica pombalina à Companhia de Jesus, concluindo que o mesmo residia na “metodologia escolástica”: um método essencialmente especulativo, assentado na “prevalência da filosofia peripatética”; no “descaso ao estudo do grego e latim”; na “desordem do conteúdo ensinado nas cadeiras universitárias”; na “falta de disciplinas subsidiárias e na fragmentação do conhecimento”, assim como na “ausência do ecletismo” (p. 52). A partir destas críticas, reclamavam uma orientação prática aos estudantes, pautada tanto na erudição – requisito para a interpretação dos textos antigos – quanto na experimentação e, portanto, no empiricismo das Luzes, esgarçando uma concepção de método perfeitamente alinhada àquela preconizada pelos literatos franceses, reforçando seu argumento de que a crítica dos reformadores lusos à atividade dos jesuítas constituiu antes “manobra política, de cariz ideológico” (p. 61), que sintomas de atraso e isolamento cultural do Reino.

No terceiro e quarto capítulos, o autor analisa as reformas que melhor representaram o renovado programa de instrução, apresentado pelos Estatutos de 1772: segundo ele, a reestruturação das Faculdades de Leis e a criação da Faculdade de Filosofia, ambas em consonância aos objetivos de fortalecimento e centralização do poder régio – o qual não podia prescindir, sob o ponto de vista jurídico, do esforço de “formalização” e “uniformização” das leis, submetido, desde então, aos preceitos do jusnaturalismo racionalista – e revigoramento da economia do Reino “por meio do estímulo à pesquisa dos recursos naturais rentáveis em todo o império” (p. 64).

No primeiro caso, segundo o autor, pautadas nos “princípios iluministas e apresentando feições regalistas”, as reformas na prática jurídica encaminhadas por Pombal visaram desfazer as bases plurais e fragmentárias de uma “prática jurisprudencial tida como incerta”, empenhando-se no sentido da racionalização e uniformização do direito (pp. 68-74). Objetivo que seria galgado através de dois marcos interligados das reformas pombalinas: a Lei da “Boa Razão”, de 18 de 1769, e a reforma dos Cursos Jurídicos da Universidade de Coimbra. A primeira, envolvida pelo espírito jurídico cunhado no âmbito da ilustração européia, fundava uma prática jurisprudencial de caráter racionalista e disciplinador submetida, no caso português, à interpretação exclusiva do Supremo Senado da Casa de Suplicação, que circunscrevia o uso legítimo do direito canônico ao poder temporal, além de estabelecer punições “aos juristas que insistissem na manutenção de usos e práticas vetados”, impondo uma nova noção de direito fundada no “voluntarismo régio” e nos condicionantes morais da “boa razão”.

Estas, segundo Flávio de Carvalho, as disposições norteadoras das críticas apresentadas no Compêndio às jurisprudências canônica e civil ministradas na Universidade de Coimbra, bem como da reforma estatuária da Faculdade de Leis, a qual destacou-se pelo esforço de ordenamento e articulação entre saber prático e teórico, pela delimitação clara das esferas de atuação dos direitos canônico e civil, pela valorização do direito pátrio e das pesquisas históricofilológicas, pela adoção do método “sintético-demonstrativo-compendiário” e pela criação do direito natural e uso da “boa razão”, formando desse modo juristas habilitados ao cumprimento “claro, uniforme e preciso das leis” (pp.100).

No concernente à criação da Faculdade de Filosofia, as reformas pombalinas coadunam-se a uma concepção de filosofia cunhada no âmbito da República das Letras, a qual era alçada à condição de verdadeiro “meio universal” de elaboração, desenvolvimento e consolidação dos diversos campos do conhecimento, submetida ao método empírico e experimentalista aplicado, privilegiadamente, aos fenômenos passíveis de serem apreendidos no “mundo natural sensível” (pp. 102-104). Desse modo, a análise dos novos Estatutos da Universidade de Coimbra denuncia o esforço de implementação dos estudos filosóficos em nível do ensino superior, os quais, englobando privilegiadamente as áreas de medicina, matemática e filosofia natural – nestes dois últimos casos, procedendo-se à criação das respectivas Faculdades de Matemática e Filosofia – , fecundavam uma noção de filosofia comprometida com a transmissão de princípios sólidos e úteis, formando “filósofos dignos das Luzes do século” e oferecendo “lições subsidiárias aos alunos das demais faculdades coimbrãs”.

Neste sentido, a criação desta última Faculdade teria representado um marco fundamental na assimilação e divulgação da metodologia empírico-experimental em Portugal (p. 104), institucionalizando o conhecimento científico moderno, coadunando-se à necessidade de reelaboração dos mecanismos de exploração dos recursos naturais do império ultramarino, num momento em que evidenciavam-se os primeiros sintomas de sua crise.

Em qualquer dos âmbitos das reformas assinaladas, o estudo de Flávio Rey de Carvalho desvenda o profundo comprometimento dos reformadores portugueses com o ideário do século – e, particularmente, com a assimilação de princípios metodológicos e epistemológicos divulgados no âmbito da “República das Letras” -, orientado para o atendimento dos desígnios da monarquia lusa e articulados aos dogmas do catolicismo. Um fenômeno que, longe de desqualificar o ambiente intelectual luso setecentista, esgarça dimensões que estiveram no bojo de todo o movimento filosófico e científico em curso em outros países, corroborando a pertinência de tomá-lo como uma das expressões de um movimento intelectual que só pode ser compreendido na sua pluralidade, justificando a expressão empregada pelo autor: um “Iluminismo português”.

Um trabalho digno de mérito, que atende plenamente aos objetivos propostos e, inevitavelmente, incita algumas ponderações – fruto da própria natureza polêmica do objeto eleito -, bem como convida a desdobramentos futuros, os quais devem vir necessariamente pautados no diálogo mais afinado com a historiografia, no alargamento do núcleo documental e do recorte cronológico ora considerados, bem como no aprofundamento de algumas dimensões norteadoras do conteúdo programático analisado, por ora apenas tangenciadas. Particularmente, ocorre-me a enriquecedora articulação das reformas com a questão imperial e com a criação do aparato humano necessário à fecundação dos projetos políticos elaborados, impondo um perfil de homem público capaz de reunir os qualificativos intelectuais, administrativos e morais,[5] supostamente adequados ao exercício da difícil tarefa de equilibrar inovação e conservação, no enfrentamento dos desafios impostos pelos tempos modernos.

Referências

FALCON, Francisco (1993). A Época Pombalina. 2a. ed., São Paulo: Ática.

SILVA, Ana Rosa Cloclet da (2006). Inventando a Nação. Intelectuais Ilustrados e Estadistas luso-brasileiros (1750-1822). São Paulo: Hucitec

CLUNY, Isabel (1999). D. Luís da Cunha e a idéia de diplomacia em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte.

SILVA, Júlio Costa Rodrigues da (1998). Ideário Político de uma Elite de Estado. Corpo Diplomático (1777/1793). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2 vols. (Tese de Doutoramento).

KANTOR, Íris (2004). Esquecidos e Renascidos. Historiografia Acadêmica Luso-Americana (1724-1759). São Paulo: Hucitec.

FILHO, Oswaldo Munteal. Uma Sinfonia para o Novo Mundo. A Academia Real das Ciências de Lisboa e os caminhos da Ilustração luso-brasileira na crise do Antigo Sistema Colonial. Rio de Janeiro: UFRJ, 2 vols. (Tese de Doutoramento).

[1] Na intenção de salientar algumas destas especificidades, devemos lembrar que enquanto Peter Gay é um historiador consagrado pelos estudos no campo da história social das idéias – o que, em boa medida, já problematiza o tratamento supostamente “descarnado” por ele emprestado ao Iluminismo – e que elabora seus estudos sobre o Iluminismo na década de 1970, o filósofo judeu-alemão Ernst Cassirer especializou-se no campo da filosofia cultural de tendência neokantiana, nos anos de 1920-40, enquanto o historiador francês Paul Hazard tornou-se um especialista em História da literatura comparada entre as décadas de 1920-40, especialidade que seguramente permeia seu clássico A crise da consciência européia, de 1935.

[2] 2 No caso da historiografia portuguesa contemporânea, o autor dialoga mais diretamente com as abordagens de Sebastião da Silva Dias, Jorge Borges de Macedo, Francisco Domingos Contente e Pedro Calafate. Para o debate atual sobre o Iluminismo, baseia-se nas abordagens de Dorinda Outram, Jonathan Israel, Robert Darnton, dentre outros.

[3] Apenas a título de ilustração, merecem destaque as questões pioneiramente propostas por FALCON (1993), as quais vêm sendo desdobradas por sucessivas gerações de historiadores, dentre as quais incluo minha pesquisa de doutoramento SILVA (2006).

[4] Dentre estas, vale menção os trabalhos de CLUNY (1999); SILVA (1998); KANTOR (2004); FILHO (1998).

[5] 5 Ocorrem-me as importantes reflexões do historiador K. Maxwell ao desvendar esta dimensão das práticas pombalinas, em sua obra Marquês de Pombal. Paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz Terra, 1996.

Ana Rosa Cloclet da Silva – Professora Pontifícia  Universidade  Católica  de  Campinas  (PUC-Campinas) [email protected]. Rodovia  D.  Pedro  I,  km  136  –  Parque  das  Universidades, Campinas – SP, 13086-900 Brasil.

A Global History of Modern Historiography – IGGERS et. al. (HH)

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IGGERS A global history of modern Dialogue

IGGERS, Georg G.; WANG, Q. Edward; MUKHERJEE, Supriya. A Global History of Modern Historiography. London: Pearson-Longman, 2008, 436 pp. Resenha de: MALERBA, Jurandir.[1] História da Historiografia, Ouro Preto, n.3, p.1167-173, set 2009.

Há uma longa tradição histórias da historiografia, cujo início remonta, pelo menos, ao século XIX. Como qualquer outro campo do conhecimento histórico, cada época propõe problemas e abordagens, investiga e narra a história (da historiografia, neste caso) à sua maneira. O mais recente livro do emérito Professor Georg Iggers e Q. Edward Wang (com a contribuição de S. Mukherjee), traz uma contribuição sem precedentes aos estudos históricos. Sua excelente análise das linhas de força da historiografia contemporânea é francamente amparada numa abordagem de Global History, ou seja, de que vivemos numa época de globalização e essa marca de nosso tempo está cravada nos modos contemporâneos de se escrever história. Mais que isso, que esse processo de globalização é fortemente marcado por outro paralelo de ocidentalização dos modos de se pensar e produzir história. Sua análise propõe-se enfaticamente comparativa, mais do que um mero recitativo ou catalogação de historiografias regionais ou nacionais.

O método escolhido impõe aos autores tratar a história da historiografia dentro de um período que permita essa abordagem global e comparativa, portanto, desde finais do século XVIII (quando as várias tradições historiográficas ocidentais e orientais começam a interagir) até os dias de hoje. O foco da obra incide precipuamente nas interações de diversas tradições historiográficas ocidentais e não-ocidentais num contexto global. Se no início do período estudado as trocas transculturais são poucas, elas se intensificam vertiginosamente a partir do final do século XIX no sentido do que os autores entendem como processos (no plural!) de ocidentalização das historiografias não-ocidentais, pois que esses processos são múltiplos, diversos, compreendendo desde a difusão dos paradigmas racionalistas e normativos ocidentais no Oriente até suas mais diversas formas de filtragem e resistência cultural (SATO 2006). Outro pressuposto importante é o de que os modelos ocidentais de pensamento não são tomados, na obra, como intrinsecamente positivos ou normativos, mas contextualizados conforme os diversos momentos e cenários. O “Ocidente”, entendem os autores, não se refere a uma unidade orgânica, mas a algo muito complexo, heterogêneo, a tal ponto marcado por fissuras políticas e intelectuais que melhor se pode falar de “influências” ocidentais (no plural), mas nunca de um único Ocidente se irradiando de forma imperialista pelo globo.

Outra marca forte da obra é sua sensibilidade para tratar “historiografia” num sentido mais amplo do que meramente o stock de obras produzidas pelos historiadores, a produção acadêmica, mas percebendo essa tradição acadêmica dentro de processos mais amplos de constituição de culturas históricas.[2] Basta lembrar que toda produção acadêmica desde Ranke, quando a história surgiu como disciplina acadêmica na Alemanha e logo por todo Ocidente e imediatamente no Japão Meiji, foi concebida sobre os ideais da objetividade científica, da neutralidade axiológica, do método crítico, do amparo às fontes – quando na prática toda essa mesma produção decimonónica foi artilharia letal na guerra de construção dos mitos nacionais. (MALERBA, prelo).

A consideração do conceito de cultura histórica é um pilar da obra. Evitando restringirem-se à análise textual da bibliografia histórica, os autores trabalham sim com os textos e seus autores, mas sem descurar que estes permanecem imersos em climas de opinião maiores, dentro de suas culturas originárias, o que induz os autores a examinarem, para além dos textos, os cenários institucionais, políticos e intelectuais dentro dos quais se inserem as diversas historiografias. Por exemplo, a formação das cátedras universitárias e a respectiva profissionalização dos historiadores, o apoio governamental, o peso dos estudos históricos no cenário político mais amplo no momento da construção das nações-estado e seu impacto vertiginoso na opinião pública da classe média e os efeitos da difusão das discussões científicas (como o darwinismo social, por exemplo) no século XIX e início do XX foram cuidadosamente levados em conta na análise da escrita histórica do mesmo período.

Para tratar da história da escrita e do pensamento históricos no período mais recente da era moderna, quando se incrementam os intercâmbios culturais em escala global, o livro se ampara em outro conceito básico, além do de globalização: no conceito de modernização. Grande parte da teoria social desde o iluminismo foi construída a partir do pressuposto de que a história moderna equivale ao processo acelerado de modernização do Ocidente. Por modernização, via de regra, subentende-se uma ruptura com as instituições e os paradigmas tradicionais de pensamento, seja na religião, na economia, na política, ruptura essa ancorada em três pontos: o surgimento da ciência moderna (rompendo com o senso comum e o pensamento dogmático) (SANTOS, 1995), as revoluções liberais do longo século XIX (HOBSBAWM 1999ª) e o processo de industrialização capitalista (COLEMAN 1992; HARTWELL 1970; HOBSBAWM 1999b). Desde os economistas clássicos (Smith, Ferguson, Condorcet) até a década de 1960 aproximadamente, entendia-se modernização como um processo uniforme que caminhava (herança da idéia de progresso da ilustração) com as descobertas científicas, a consolidação do mercado capitalista mundial e das sociedades civis e o estabelecimento de democracias liberais pelo mundo afora. Por suposto que a crítica à idéia de modernização é tão antiga quanto a própria, tendo se sofisticado imenso ao longo do século XX, particularmente pelo pensamento de base marxista.[3] Globalização e modernização não se confundem, embora sejam indelevelmente conectados. A globalização, como demonstrou Felipe Fernández- Armesto num livro fascinante, é tão velha quanto a humanidade (FERNÁNDEZARMESTO 2009).[4] Mas a modernização a que se referem nossos autores refere-se à época mais recente, tendo uma primeira fase entre os séculos XVI e XVIII, uma segunda coincidente com a fase dourada do imperialismo europeu no globo e uma terceira, posterior à segunda guerra mundial. Cada um desses momentos, de acordo com os autores, impactou de forma decisiva a consciência histórica e o pensamento e a escrita da história. O corpo da obra foi desenhado para demonstrar como esses processos da história do pensamento histórico e as diversas fases da globalização moderna se entrelaçam. De modo que a meta dos autores é demonstrar os desdobramentos no pensamento e na escrita histórica em seus contextos intelectuais, sociais e econômicos mais amplos, desde o século XVIII ao início do século XXI, abordando as interações entre culturas histórica ocidentais e não-ocidentais, numa exposição estrategicamente narrativa.

O livro começa com uma panorâmica de diversas tradições historiográficas pelo mundo afora, com ênfase no Ocidente, Oriente Médio, Extremo Oriente, Sudoeste da Ásia e Índia ao longo do século XVIII, para, em seguida, passar à discussão das transformações das práticas historiográficas na era moderna com o advento do nacionalismo, desde o Ocidente se espraiando pelo globo.

Esse processo se caracteriza pelo surgimento da história acadêmica, com a fundação da primeira cátedra universitária de história por Ranke e a respectiva profissionalização da atividade historiadora (IGGERS 1998, ORTEGA Y MEDINA 1980). Não obstante sua força, o historicismo alemão sofreu um golpe letal no início do século XX, particularmente no período entre guerras. Seu efeito foi uma reorientação no pensamento histórico ocidental, com o advento da história científica e estrutural tal como propugnada pelo Annales, que deitou profunda influência no exercício da escrita da história ao longo do século XX.

Nos universos não-ocidentais, a sedução da história nacionalista persistiu por mais tempo, por todo século XX, muito embora, conforme demonstram os autores (cap. 5), críticas contundentes ao paradigma nacionalista pulularam em vários países orientais, como a Índia e o Japão, principalmente no período pós-guerra. Tais críticas ganharam força com o advento do pós-modernismo e sua crítica ao recitativo da historiografia moderna no Ocidente do pós-guerra, quando se assiste ao esforço, deflagrado pelos Annales braudelianos e reverberado pelo historiadores e cientistas sociais anglo-americanos e ingleses, no sentido de expandir as fronteiras do campo de conhecimento da história para além do paradigma nacionalista. Essa crítica ganhou força com as críticas pós-coloniais oriundas dos chamados Subaltern Studies propostos por autores indianos (NANDY 1995) e pelo Orientalismo (SAID 1990) de Said nos anos 1970 e 80. Paralelamente, outras forças, de caráter político e religioso, que impactaram na escrita da história no Oriente Médio e na Ásia no último quartel do século XX foram a eclosão do Islamismo e a queda do marxismo.

Após essa discussão, os autores abordam as mudanças recentes na prática historiográfica mundo afora sob a força da globalização, elencando cinco tendências importantes no mapa historiográfico atual que, provavelmente, estarão presente num futuro próximo: a continuidade do “giro cultural e historiográfico” que deu originou a “nova história cultural” (CLIFFORD 1986); a expansão ainda maior da história feminista e de gênero (SCOTT 1988; HARAWAY 1988, EPPLE 2006); a nova convergência entre os estudos históricos e as ciências sociais na construção da crítica à pós-modernidade; os desafios à historiografia nacional associados aos estudos pós-coloniais; e, finalmente, a emergência e disseminação da world history e da global history, já muito fortes no mundo anglo-americano, mas praticamente ignoradas no Brasil.

Como todo bom estudo historiográfico, as análises e conjeturas dos autores desta A Global History of Modern Historiography possuem caráter heurístico, apontam para tendências, reclamam novos estudos. Seus grandes diferenciais são, por um lado, a aberta rejeição do eurocentrismo e, por outro, a defesa veemente da investigação racional, esta diretamente dirigida contra boa parcela da crítica pós-moderna à herança intelectual da Ilustração, que sustenta que um estudo objetivo da história não é possível porque o passado não se apóia na realidade objetiva, não passando de um construto da mente ou de uma linguagem não-referencial, de acordo com o qual todo estudo histórico inevitavelmente derivaria para uma forma de literatura imaginativa, carente de critérios objetivos para o estabelecimento da distinção entre verdade e falsidade nos estudos históricos (MALERBA 2008; ZAGORIN 1998; DRAY 1989). A proposta desta obra de fôlego vai nos antípodas das posturas radicais pós-modernas.

Numa obra com a envergadura desta, que busca analisar em chave comparativa a história do pensamento histórico em perspectiva global na época moderna, seria inevitável diferenças de ênfase e profundidade na análise. Uma crítica que não poderia passar em branco volta-se às inevitáveis lacunas e àquelas diferenças, para nós evidentes no tratamento dado, por exemplo, à análise da historiografia latino-americana (“Da Teoria da Dependência aos Estudos Subalternos”), tratada em cinco páginas e amparada em oito referências bibliográficas, todas elas em inglês.[5] Não causará espanto que especialistas acusem a mesma generalidade no que tange às análises do livro voltadas às tradições historiográficas de outras partes do globo.

Essa observação, porém, não compromete o mérito dessa grande obra de síntese, interpretativa, estruturada a partir de pressupostos claros e construída por autores que trazem vasto conhecimento das culturas históricas de sua proveniência. Uma obra destinada a ser referência para as novas histórias da historiografia.

Bibliografia citada

CLIFFORD, James. Introduction: Partial Truths. In: Clifford, J.; G. Marcus (ed.). Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986.

COLEMAN, D.C. Myth, History and the Industrial Revolution. London & Rio Grande: Hambledon P, 1992.

DIEHL, Astor. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc, 2002.

DRAY, William. On the Nature and Role of Narrative in History. In: ____ On History and Philosophers of History. Leiden/Nova York: E. J. Brill, 1989.

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FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Os desbravadores. Uma história mundial da exploração da Terra. Tradução de Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

HARAWAY, D. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective. Feminist Studies.Vol. 14, No. 3, 575- 599, 1988.

HARTWELL, R.M. (ed.). The Industrial Revolution. New York: Barnes & Noble/ Oxford: Basil Blackwell, 1970.

HOBSBAWM, Eric. The age of Revolution: Europe 1789-1848. London: Peter Smith, 1999a.

____. Industry and Empire: The Birth of the Industrial Revolution. New York: The New Press, 1999b.

____. A Era Dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

IGGERS, G. The german conception of History: the national tradition of historical thought from Herder to the present. London: Wesleyan University Press, 1988.

MALERBA, Jurandir. A história na América Latina: ensaio de crítica historiográfica. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

_____. La historia y los discursos. Una contribución al debate sobre el realismo histórico. Contrahistorias, v. 9, p. 63-80, 2008.

_____. (Org.). Lições de história. A construção da ciência no longo século XIX. (no prelo).

NANDY, Ashis. History’s Forgotten Doubles. History and Theory. Volume 34, Issue 2, Theme Issue 34: World Historians and Their Critics (May, 1995), 44-66.

ORTEGA Y MEDINA, Juan A. Teoría y crítica de la istoriografía científicoidealista alemana (Guillermo de Humboldt- Leopoldo von Ranke). México: UNAM, 1980.

SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente.São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

SANTOS, Boaventura de S. Toward a new common sense. Londres/Nova York: Routledge, 1995.

SATO, Masayuki. Historia normativa e história cognitiva. In: Malerba, J. A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006.

SCOTT, J. Gender: A Useful Category of Historical Analysis. In: ____. Gender and the Politics of History. New York: Columbia University Press, 1988.

WEBER, Max. Economía y Sociedad: teoria de la organizacion social. México: Fondo de Cultura Económica, 1977. (3ª reimpressão).

ZAGORIN, Perez. History, the Referent, and Narrative: Reflections on Postmodernism Now. History and Theory, 38(1):1-24, fev1998.

[1] Professor Adjunto Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUC-RS) [email protected] Avenida Ipiranga, 668 – Partenon Porto Alegre – RS 90619-900 Brasil.

[2] 1 No sentido proposto por Jörn Rüsen e divulgado no Brasil por Astor Diehl (2002).

[3] 2 Mas igualmente por outras vertentes de pensamento, dentre as quais destaca-se a obra de Weber (1977).

[4] 3 Para uma abordagem que enfatiza o caráter recente do fenômeno, cf. HOBSBAWN (2005).

[5] 4 Para uma análise recente das tendências majoritárias na historiografia da América Latina desde a década de 1960, cf. Malerba (2009).

Historiografia alemã pós-muro: experiências e perspectivas – GERTZ; CORREA (HH)

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GERTZ Historiografia alemã pós muro DialogueRené Gertz /ucsplay.ucs.br

GERTZ, René E.; CORREA, Sílvio Marcus de S. (orgs). Historiografia alemã pós-muro: experiências e perspectivas. Santa Cruz do Sul/Passo Fundo: Edunisc/Editora UPF, 2007, 245pp. Resenha de: MATA, Sérgio da.[1] História da Historiografia, Ouro Preto, n. 2, mar. 2009.

Poucas pessoas fizeram tanto pela divulgação, no Brasil, da historiografia alemã quanto René Gertz. Há 22 anos atrás, em conjunto com Abílio Baeta Neves, ele publicava sua excelente coletânea A nova historiografia alemã, ocasião em que, salvo engano, autores como Klaus Tenfelde, Jürgen Kocka e Jörn Rüsen se tornaram pela primeira vez acessíveis em português. O volume era na verdade uma excelente introdução ao que alguns dos mais importantes historiadores alemães do pós-guerra pesquisava e, sobretudo, como pesquisava. A revista “História e Sociedade” (Geschichte und Gesellschaft) transformara-se numa nova Meca, e autores como Hans-Ulrich Wehler e Wolfgang Mommsen desfrutavam de enorme influência.

Duas décadas depois, a situação dá mostras de ter mudado, e de forma surpreendente, tanto no Brasil quanto na Alemanha. Rüsen e Koselleck se tornaram referências obrigatórias mesmo entre nossos estudantes de graduação. Clássicos do pensamento histórico como Droysen, Ranke e Burckhardt têm sido revisitados e, aos poucos, contemplados com novas traduções. Até mesmo um interesse crescente pelo aprendizado da língua alemã pode ser diagnosticado por toda a parte. Em suma, um quadro impensável em 1987.

A publicação de Historiografia alemã pós-muro: experiências e perspectivas, livro composto de textos selecionados e traduzidos pelo mesmo Gertz e por Marcus Correa, mostra a que ponto a situação na Alemanha alterou-se significativamente. A referência no título do livro à reunificação tem toda a razão de ser, pois, grosso modo, até então seria correto falar em duas historiografias alemãs: a ocidental e a oriental. Em que pese a subserviência político-ideológica da maioria dos historiadores da Alemanha Oriental, como apontou há pouco Estevão Martins (Martins, 2007, p. 62), estudos como o de Middel (2005) mostram que a partir da década de 1950 homens como Walter Markov e Manfred Kossok desenvolviam ali sofisticados estudos de história comparada – na boa tradição da Universidade de Leipzig, cujas origens sabidamente remontam a Karl Lamprecht. A reunificação, em 1989, significou uma pá de cal sobre esta incipiente historiografia marxista renovada. Bem poucos sobreviveram no mundo acadêmico “pós-muro”.

No plano propriamente teórico, a influência da Escola de Frankfurt refluiu a olhos vistos. A morte de Niklas Luhmann e a desgastante polêmica mantida entre Habermas e Peter Sloterdijk, ambos fatos ocorridos em fins da década de 1990, pareciam assinalar o eminente declínio das teorias de longo alcance nas ciências sociais alemãs e, por conseguinte, nos meios historiográficos. À “escola de Bielefeld” restou a crítica às novas perspectivas advindas de outras comunidades historiográficas, tais como a história cultural, a história do cotidiano e a micro-história. Em que pese o muito de acertado que há nessas críticas (cf.

Wehler, 2002), percebe-se que setores do mainstream se enclausuraram nos cânones da ciência social histórica. Neste sentido, mais que um retrato da novíssima historiografia alemã, a coletânea de Gertz e Correa oferece-nos uma espécie de índice de uma comunidade historiográfica em plena crise de redefinição de paradigmas. Uma crise, diga-se de passagem, que parece ter nos aproximado.

Percebe-se que o que lá se pratica não é, hoje, muito distinto do que os historiadores brasileiros fazem – ou faziam, na década de 1990. Sente-se também que aquele plus de originalidade da “história social” e da “história da sociedade” – com seu alto rigor analítico e sofisticação teórica – se perdeu.

Os ensaios coligidos por Gertz e Correa não têm a pretensão de oferecer uma contribuição original aos dilemas teórico-metodológicos da historiografia “pós-muro”. Trata-se, em sua maior parte, de balanços historiográficos e de discussões de caráter introdutório, o que em todo o caso tem a vantagem de proporcionar um painel útil e didático a todo aquele que pretende se familiarizar com uma tradição que só conhecemos ainda muito epidermicamente. A seguir, nos limitaremos a fazer alguns apontamentos mais gerais, e a uma ou outra observação crítica sobre os pontos de vista dos autores.

Willibald Steinmetz abre o volume com uma exposição abrangente, intitulada “Da história da sociedade à ‘nova história cultural’”. Acompanhando o pensamento de Otto G. Oexle, Steinmetz tende inicialmente a superestimar o pioneirismo alemão no que se refere à Kulturgeschichte, minimizando, assim, a originalidade das abordagens surgidas na segunda metade do século XX. Mas reconhece que projetos editoriais inovadores como o Léxico de conceitos histórico-políticos de Brunner, Conze e Koselleck surgiram concomitantemente a desenvolvimentos aparentados no mundo anglo-saxão, no bojo do assim chamado linguistic turn. Steinmetz defende a história cultural da crítica de Wehler segundo a qual estaríamos passando por uma despolitização do discurso histórico. Os historiadores culturais, ao contrário, estariam se dedicando também “a áreas consideradas centrais pelos representantes da história social política” (p. 34). O que é sem dúvida correto. Mas ao sustentar que “os espaços de ação constituem-se na e por meio da linguagem” (p. 38), vê-se o quanto a tendência a se autonomizar a esfera da linguagem, a torná-la o a priori de toda análise histórico-social, encontra eco em Steinmetz. O uso do conceito de “comunicação” mostrar-se-ia quiçá mais profícuo, posto que evoca explicitamente a importância da interação entre os sujeitos na construção e reconstrução do sentido subjetivo de suas ações, bem como do mundo social como um todo. Todo agir comunicativo pressupõe ainda a existência de regras previamente estabelecidas (poderíamos chamá-las proto-instituições). Sem o “programa” por elas proporcionado, o indivíduo enfrentaria grande dificuldade para resolver seus problemas concretos de comunicação, seja ao manter uma simples conversa telefônica, seja ao redigir uma resenha acadêmica. Desatento a estas outras possibilidades analíticas, é natural que Steinmetz caia no beco sem saída do relativismo, tão comum àqueles que cedem à tentação do essencialismo culturalista. Partindo do princípio que “toda a realidade […] é simbolicamente construída” (p. 41), ele enreda-se no falso dilema que é o de se perguntar sobre o que vem a ser efetivamente “real” ou “fictício” nesta “multiplicidade de construções paralelas, mas, em princípio, equivalentes, da realidade” (p. 42, grifo nosso). Trata-se, a nosso ver, ora de construções primárias da realidade, ora de construções secundárias. Às primeiras, surgidas da interação social imediata e veículos de um saber pré-teórico, cabe o que Luckmann chama de “prioridade ontológica”, mas de forma alguma o estatuto de o “verdadeiro” por excelência. Todas as construções sociais da realidade são “verdadeiras”, o que não significa que se situam num mesmo plano e que não haja, entre elas, alguma hierarquia constitutiva.

O ensaio seguinte, de Ute Daniel, prossegue o debate sobre a história cultural. Diferentemente de Steinmetz, Daniel parte da Kulturgeschichte alemã de princípios do século passado apenas para mostrar que as referências atuais afastam-se radicalmente do pendor nomológico e monista de alguns dos nomes daquela geração. Na Alemanha, como por toda a parte, a ênfase tornou-se decididamente hermenêutica nas últimas décadas. Embora a autora acredite que “até o final do século XIX somente […] Jacob Burckhardt […] lidava com história cultural” no meio acadêmico de língua alemã (p. 54), o que cremos ser inexato, ela reconhece a importância de historiadores como Eberhard Gothein (sucessor de Max Weber em Heidelberg e futuro orientador de Ernst Kantorowicz), além de Kurt Breysig e Lamprecht. A respeito da famosa polêmica suscitada por este último, Daniel a reduz a um conflito entre historicismo/história política de um lado e evolucionismo/história cultural do outro, sem, porém, atentar para um inegável pano de fundo institucional do embate: o que também estava em jogo era a preeminência de Berlim como principal centro historiográfico de língua alemã. A intempestiva reação de Meinecke (barrando o acesso de Lamprecht à Historische Zeitschrift) e dos demais neo-rankeanos, bem como os reiterados ataques a todo e qualquer impulso renovador advindo das universidades de Basel, Heidelberg e Leipzig, tudo isso mostra a que ponto uma visão “culturalista” da história da historiografia esbarra em limitações mais ou menos sérias.

O que segue é um panorama convencional da pluralização crescente do mercado de idéias historiográficas na Alemanha após a década de 1960, um processo não muito distinto do ocorrido no Brasil, inclusive pelas resistências a ele impostas: lá, pela história social da “escola de Bielefeld”, aqui, pela história social de extração marxista. A mesma sensação de déjà vu acomete o leitor ao percorrer as páginas do texto de Wolfgang Hartwig, “História cultural política do entreguerras”. Uma discussão incomparavelmente mais densa e propositiva sobre a história cultural da política, feita por Thomas Mergel (2003) e inclusive já vertida por Gertz ao português, possivelmente teria sido uma opção mais interessante que o ensaio de Hartwig, cujo único ponto positivo é o de oferecer uma longa e atualizada bibliografia dos novos estudos desenvolvidos sobre o entreguerras alemão.

Já Johannes Fried dedica um extenso ensaio ao tema “História e cérebro: desafios à ciência histórica através da crítica à memória” (p. 97-141). Poderíamos resumi-lo à seguinte proposição: a memória, esta modalidade de relação com o passado situada numa encruzilhada entre o biológico e o cultural, não pode servir a uma historiografia entendida como ciência do passado. Se a memória é um fenômeno mais “coletivo” (Halbwachs) que “cultural” (Assmann), se se pode reduzi-la fenomenologicamente a estruturas da consciência (Ricoeur) ou associá-la à materialidade de monumentos e espaços específicos (Nora), é algo que não chega a interessar diretamente a Fried em sua discussão. Tem-se, a princípio, a impressão que o autor promoverá alguma espécie de diálogo com a neurociência. O que poderia ter sido estimulante, mas que, todavia, não se confirma. Ele parte de um famoso episódio: as conversas entre Niels Bohr e Werner Eisenberg no outono de 1941, em Copenhague, a respeito da utilização militar da fissão nuclear, descoberta pouco antes do início da II Guerra. Nos anos seguintes, Bohr e Eisenberg nunca entrariam em acordo sobre o local e o teor exato destas conversas. Depois de uma tentativa de reconstituição deste interessante episódio, Fries subitamente adota um ponto de vista “naturalista” estrito sobre a memória, e dispara: “uma história derivada exclusivamente da lembrança cerebral é algo cheio de erros, uma construção irreal” (p. 114). Daí serem “suspeitos todos os depoimentos produzidos pela capacidade de memória” (p. 115) Simplesmente “não se pode confiar em tais reproduções e construções” (p. 116). Ele lista, com a minúcia de um relojoeiro suíço, as quinze características que definem e circunscrevem os processos mnemônicos (p. 122- 123), e constata: “uma testemunha que recorda […] não descreve aquilo que realmente aconteceu; antes, fornece uma abstração que vai se afastando dos fatos”. Para quem imaginava que essa modalidade de realismo ingênuo sofrera um golpe de morte no país de Dilthey e Gadamer, é sem dúvida decepcionante.

Felizmente, os organizadores contrabalançaram o efeito potencialmente devastador do ensaio de Fried com aquele que pensamos ser um o melhor ensaio do livro: “A caminho da ‘história das vivências’? História oral na Alemanha” (p. 142-172), da historiadora e jornalista Babett Bauer. Ao mostrar as grandes dificuldades lá enfrentadas pela oral history, Bauer ajuda-nos a perceber que nem tudo são flores para os representantes da novíssima historiografia alemã.

Pesquisadores como Alexander von Plato e Lutz Niethammer preferem falar em “história das vivências” (Erfahrungsgeschichte), algo certamente mais interessante e matizado que aferrar todo um campo de pesquisa a um método.

Não obstante, são muitos os que insistem em “encarar com ceticismo a realização de pesquisas com base em fontes orais” (p. 145-146). O papel de porta-voz da tradição coube mais uma vez a Wehler, para quem os que se valem da história oral não passam de “historiadores descalços”.1 Mesmo sob fogo cerrado, alguns projetos inovadores, norteados por aquilo que se difundiu sob a designação de historiografia democrática, surgiram ao longo da década de 1980. É o caso das “oficinas de história”, grupos formados por historiadores profissionais e leigos interessados na reconstituição da história regional e local, aos quais se juntaram iniciativas semelhantes realizadas com o apoio dos sindicatos alemães. A nova perspectiva revelou-se especialmente profícua no estudo da história da Alemanha Oriental. Como a quase totalidade dos registros escritos estavam submetidos ao ferrenho controle do serviço secreto e das forças desegurança do regime, somente a “história das vivências” permitiu visualizar os “elementos crescentes de dissenso” e o “declínio do conformismo entre a população” (p. 153) nos últimos anos da ditadura. Na segunda parte de sua exposição, Bauer discorre longa e sofisticadamente sobre as possibilidades e dificuldades teóricas da Erfahrungsgeschichte.

Os dois últimos ensaios, de Peer Schmidt (“Da história universal à história mundial”) e Reinhard Wendt (“O olhar para além das fronteiras continentais: história extra-européia na recente historiografia de língua alemã”) tratam do desafio da superação daquilo que os autores acreditam ser a demasiada autocentralidade da produção historiográfica de seu país. Para o latinoamericanista Schmidt, trata-se agora de buscar uma “história mundial de novo tipo”, afastada das “elaborações eurocêntricas de uma história universal que saiu de moda” (p. 187). Wendt mostra, de forma oportuna, que Lamprecht já havia insistido na necessidade de a história incorporar o estudo dos povos “sem história”. Impulsos semelhantes, observa ele, partiam também da geografia. De fato, Friedrich Ratzel publicara em 1904 um longo artigo na Historische Zeitschrift em que critica Eduard Meyer por deixar de fora de sua História da Antiguidade os chamados “povos naturais”. A abordagem de Wendt, mais completa e minuciosa que a de Schmitt, mostra o que tem sido feito pelos que pretendem superar a história “meramente” nacional sem cair nos mesmos erros de Hegel e Ranke. A que ponto tal perspectiva efetivamente se difundiu, isso já é outra coisa. Basta mencionar o projeto, em pleno andamento, de edição de uma História Mundial pela prestigiosa Enciclopédia Brockhaus. Segundo apuramos com um dos autores envolvidos, dos vinte volumes planejados, apenas um será dedicado à Ásia, enquanto que um outro terá de ser dividido entre América e África…

A discussão sobre o que deve ser uma nova história mundial, universal ou – como preferem alguns – “transnacional”, encontra-se de toda forma bastante amadurecida na Alemanha. Se Historiografia alemã pós-muro revela um campo no qual temos muito ainda o que avançar, é certamente este. A retomada dos pontos de vista de Voltaire, Ratzel, Spengler, Jaspers e outros se expressa em revistas já estabelecidas como Saeculum, Comparativ e Zeitschrift für Weltgeschichte; enquanto que nomes como o já citado Matthias Middel assumem a condição de porta-vozes desta história universal renovada. Impulsos análogos se façam notar no campo da história da historiografia, como demonstram os esforços de Rüsen (2002) em incrementar o “debate intercultural”, e até mesmo na história social (Kocka, 2003).

A cultura historiográfica alemã já não é “tão estranha assim” para o público brasileiro, observa com acerto Astor Diehl em seu posfácio ao livro.

Concordamos com ele que para isso tem concorrido o afluxo crescente de jovens historiadores às universidades e centro de pesquisa alemães. Mas um papel não menos importante foi e continua a ser desempenhado por René Gertz, o que demonstra a que ponto o esforço de tradução é decisivo na economia da troca – ainda tão incipiente – entre os mercados historiográficos dos dois países.

Resta-nos deixar uma sugestão para iniciativas similares no futuro: um estudo acurado sobre os novos canais de circulação de conhecimento histórico que são os portais eletrônicos (H-Soz-u-Kult, Clio-on-Line, Sehepunkte), e que permitem acompanhar com enorme agilidade o estado das discussões, os debates e as novas tendências da historiografia alemã.

Referências

KOCKA, Jürgen. Losses, Gains and Opportunities: Social History Today. Journal of Social History, v. 37, p. 21-28, 2003.

MARTINS, Estevão de Resende. Historiografia alemã no século XX: encontros e desencontros. In: MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos A. (orgs.) Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru: Edusc, 2007.

MERGEL, Thomas. Algumas considerações a favor de uma história cultural da política. História Unisinos, v. 7, n. 8, p. 11-55, 2003.

MIDDEL, Matthias. Weltgeschichtsschreibung im Zeitalter der Verfachlichung und Professionalisierung. Leipzig: Akademie Verlagsanstalt, 2005.

RÜSEN, Jörn. Western Historical Thinking: an intercultural debate. New York: Berghahn, 2002.

WEHLER, Hans-Ulrich. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts. Göttingen: Wallstein, 2002.

[1] Professor Adjunto Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) [email protected] Rua do Seminário, s/n – Centro Mariana – MG 35420-000

Identidade nacional e modernidade brasileira – SOUZA (HH)

FREYRE saopauloreview com br Dialogue

SOUZA Identidade nacional e modernidade POST 1 DialogueGilberto Freyre / saopauloreview.com.br

SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade nacional e modernidade brasileira: o diálogo entre Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, 232 pp. Resenha de: LOWANDE, Walter Francisco Figueiredo.[1] História da Historiografia. Ouro Preto, n.2 mar. 2009.

Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Identidade nacional, Modernidade brasileira, Interpretações do Brasil

Fruto da Tese de Doutorado defendida por Ricardo Luiz de Souza, em 2006, no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais e sob orientação de José Carlos Reis, percebe-se que o livro Identidade nacional e modernidade brasileira parte da mesma premissa que guiou a feitura de Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC (Reis, 2007). Trata-se de compreender um conjunto de obras preocupadas em fornecer grandes interpretações do Brasil, esforço que possibilitaria o desvendamento da lógica que as perpassa. Se, no caso de José Carlos Reis, podemos depreender que tal lógica refere-se, grosso modo, a um posicionamento a favor ou contra a colonização portuguesa, o livro ora resenhado é o diálogo “indireto” entre Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, em torno de conceitos como identidade nacional, modernidade e tradição, que enlaça as clássicas obras desses autores.

Ao se atribuir um sentido a um conjunto de obras que as perpassa e que vai além do significado individual, “imanente” a cada uma delas, dotando-lhes, assim, de uma linha comum que as atravessa e que nos permite supor uma evolução discursiva da qual participam os autores selecionados, corre-se o risco de simplificar uma realidade de produção textual mais complexa. Com tal afirmação, não pretendo negar a importância deste tipo de análise, sem a qual não se pode conhecer o conjunto dos efeitos que podem ser produzidos pela linguagem escrita numa configuração sócio-histórico-cultural específica. No entanto, num esforço de análise assim conduzido, deve haver um especial cuidado a fim de não se subjugar o que uma obra tem de peculiar. Um exemplo disso é o já citado trabalho de José Carlos Reis, no qual este autor se preocupa mais com o enquadramento de Gilberto Freyre numa tradição de “elogio da colonização portuguesa” do que com a realização de uma análise mais aprofundada do conjunto de sua obra. Isso o leva, a meu ver, a enfatizar a idéia de que o ensaísta pernambucano teria construído uma imagem idílica da colonização portuguesa, interpretação que não pode ser estendida a toda sua obra. Como já foi notado por alguns autores (Viana, 2001; Rocha, 2001; Paoli, 2003; Araújo, 1994; Souza, 2000), Casa-Grande & Senzala dispõe de vários elementos que mostram justamente o contrário, ou seja, mostra uma dominação por vezes cruel do senhor sobre seus escravos, uma proximidade que não se dá, no geral, de forma afável.

A opção de Ricardo Luiz de Souza, no entanto, encontra-se fortemente embasada por uma perspectiva que analisa cada autor e cada obra em seus mais amplos aspectos: são tratados os traços psicológicos e biográficos, os contextos histórico, social, econômico e cultural e as relações intelectuais e institucionais, sendo as obras tomadas de maneira bastante ampla, o que permite que Souza relativize as eventuais simplificações. As influências são devidamente pesadas e o diálogo entre os autores não se dá de forma mecânica: talvez o maior laço entre eles, além da temática abordada, seja a veia ensaística. Enfim, em Identidade nacional e modernidade brasileira, os debates acerca da construção da identidade nacional e da modernidade a partir dos autores escolhidos são tratados com grande responsabilidade.

No capítulo introdutório, Souza demonstra um esmerado cuidado na definição dos conceitos que nortearão seu trabalho e na escolha do método, que possibilitará a compreensão dos autores através do diálogo que eles travam entre si. Cada obra merecerá um capítulo específico adiante, no qual os conceitos bem definidos da introdução servirão como ponto de partida para suas análises.

Para Souza, as identidades nacionais são construídas. Um “povo”, conceito que “sinaliza a existência de um substrato comum, entre os membros de determinadas populações, que tende a ganhar força simbólica e discursiva com base na representação de identidades nacionais prenhes de significados comuns” (pp. 23-24), buscaria uma estabilização através da construção de uma identidade nacional. Esta, que fique bem entendido, não é a mesma coisa que o citado “substrato comum”, algo que parece existir, a partir do que se depreende do argumento do autor, de forma dispersa, levemente sentida, ou seja, um fenômeno do qual ainda não se tomou coletivamente consciência, mas que proporciona uma certa ligação entre os indivíduos. Desta forma, a identidade, uma espécie de construto a posteriori, não reflete “de forma mecânica e integral”, segundo o autor, os indivíduos que discursivamente representa; nasce de interesses advindos dos setores dominantes; é moldada em interação à alteridade, não existindo um “outro” absoluto e homogêneo; obscurece heterogeneidades e conflitos; não é estática; e, por fim, é uma construção discursiva, que nasce “de uma imagem construída, não-verificável e não empiricamente demonstrável” (p. 25).

Esta “identidade nacional”, inspirada em Norbert Elias e no conceito de “memória coletiva” de Maurice Halbwachs, seria estruturada pela tradição. De acordo com Souza, a tradição é corporificada em símbolos, que são coisas retiradas da “esfera mundana” e, assim, re-significadas. A tradição surge então não como algo apenas situado estaticamente no passado, mas como conjunto de símbolos disputados por diversos grupos na construção de uma noção de identidade hegemônica. A tradição também estaria intrinsecamente ligada ao conceito de modernidade. Esta última é entendida como anseio de um grupo por um futuro cuja busca se dá a partir da tradição. O presente se torna assim transitório, o futuro cada vez mais distante e o passado desejado como recuperação da estabilidade perdida em tal busca. Desta forma, segundo o autor, embora tendam a ser classificadas dicotomicamente em escalas valorativas ligadas às idéias de “bem” e “mal”, modernidade e tradição interagem constantemente, a modernidade atuando com base nas tradições que a determinam, e, por outro lado, a tradição sendo continuamente alterada sob os impactos da modernidade, constantemente modificada em função dos diferentes grupos que a disputam.

A perspectiva adotada por Ricardo Luiz de Souza nos permite então perceber em que medida espaço de experiências e horizonte de expectativas, categorias que tomo de empréstimo de Reinhart Koselleck (2006), se articulam nas interpretações do Brasil. Nas tentativas de definição de uma identidade nacional, a relação entre tradição e modernidade adquire formatos diversos, em consonância com cada ideal de futuro discursivamente construído.

O primeiro autor a ser assim compreendido é Sílvio Romero. Ele constata o atraso brasileiro em relação às nações européias e busca suas causas numa identidade nacional, naturalmente, socialmente e racialmente determinada.

Romero inaugura uma análise identitária que passa pela miscigenação e inclui o negro como fator explicativo central. As condições socioeconômicas mostrarse- iam insuficientes para explicar o que ele considera uma aversão do brasileiro ao capitalismo. O problema, para Romero, é como modernizar um país possuidor de uma população mestiça e, portanto, segundo ele, racialmente inferior. A conclusão a que chega é que as elites deveriam conduzir esta população mestiça num processo de “branqueamento”. Por outro lado, é na cultura popular, produzida por esta população mestiça, que residem as verdadeiras características de uma identidade nacional, tradição com base na qual as elites construiriam uma nação moderna. Um crescente pessimismo e “provincianismo” de sua parte (termo este não tomado num sentido pejorativo, mas relativo ao seu orgulho regional) permeariam estas idéias e, além disso, para Souza, elas corresponderiam a um reordenamento social, em que suas teorias raciais justificariam uma “nova desigualdade a ser implementada” (p. 69).

A identidade nacional é, por sua vez, encontrada por Euclides da Cunha numa dicotomia que seu olhar, tanto de engenheiro como de literato, descobre no Brasil a partir da observação de Canudos: a dicotomia que existe entre litoral e sertão, entre civilização e barbárie (ou, mais tarde, entre civilização e atraso). Se, a princípio, em Os sertões, o sertanejo é um bárbaro, posteriormente Cunha constatará que seu isolamento em relação à civilização proporcionou, na verdade, a conservação da identidade nacional em seu estado embrionário.

Este sertanejo se torna, também, um exemplo de como a raça superior portuguesa conseguiria suplantar o meio adverso e prevalecer numa combinação gênica na qual preponderaria. O desafio seria conciliar a premente modernidade à Nação. A modernização do país seria produzida, portanto, tomando como base a identidade nacional descoberta nos caracteres do sertanejo. Contudo, o alheamento das elites estaria produzindo o massacre destes indivíduos portadores da “fórmula da nacionalidade”.

Também na obra de Câmara Cascudo se faz presente a dicotomia entre sertão e cidade, ou entre província e centro urbano: os primeiros termos da dualidade são os lugares da tradição e, os últimos, os da modernidade. Contudo, Cascudo não pretende conciliá-los, mas preservar a cultura popular, a partir da qual se poderia entrever a identidade nacional. O estudo do folclore serviria, então, como ferramenta para tal empreitada. Pretende ele “resgatar elementos milenares no que é contemporâneo, demonstrando a universalidade de crenças e costumes que se escondem sob o manto do regional” (p. 147). A miscigenação seria também fator preponderante para a compreensão dessa cultura popular, na qual o elemento português ocuparia, mais uma vez, posição privilegiada.

Na análise que faz da obra de Gilberto Freyre, Ricardo Luiz de Souza toma a acertada decisão de incluir sua produção pós-1960, pois é nela que a identidade nacional, densamente pesquisada em Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos entre outras obras escritas, sobretudo, na década de 1930, encontrará o caminho para o mundo “além do apenas moderno”. Tal caminho será iluminado pelo conceito de lusotropicalidade. Souza destaca que o otimismo freyreano em relação ao futuro assenta-se na apologia que faz da mestiçagem, pois ela, que define a identidade nacional brasileira, possibilitaria uma vantagem num mundo pós-moderno. Da automação decorreria um tempo livre para o qual a vivência hispânica do tempo estaria mais preparada. Ao contrário dos outros autores, em Freyre a modernidade é superada, pois se trata de um momento histórico no qual uma série de valores urbanos entraria em conflito com um sistema rural no qual os contrários se equilibrariam.

Ao retratar as significações e re-significações que os conceitos de “identidade nacional”, “modernidade” e “tradição” sofreram nas obras selecionadas, cuja relevância da análise é por sinal muito bem fundamentada, Souza encara, deste modo, a produção discursiva de maneira muito acertada. Não há, conforme se depreende desta leitura, um discurso unitário, absolutamente hegemônico, sobre o que viria a ser a identidade do brasileiro. O que se verifica, em contraposição, é uma constante disputa por definições, cada uma delas compondo de maneira específica e em variados graus de sucesso um “estoque” disponível para as mais variadas interiorizações individuais. Desta forma, embora constantemente se afirme que o poder público impôs uma unificação cultural por intermédio de uma definição específica do que fosse a identidade nacional, podemos perceber que esta realidade discursiva é muito mais complexa e não deve ser encarada como um único discurso vencedor.

Por fim, o que aqui expus sucintamente pretende-se uma apresentação de um trabalho sem dúvida mais rico do que esta resenha pode abarcar. Não obstante, em alguns momentos, pode ser sentido um sub-aproveitamento dos fatores propriamente lingüísticos frente aos extra-lingüísticos (não é discutido, por exemplo, de que modo as “ideias” dos autores atuam no mundo social enquanto textos, ou melhor, enquanto “atos de fala”),[2] Ricardo Luiz de Souza tem o mérito de tratar de uma considerável amplitude de fatores relacionados aos conceitos que coloca em relevo. Seu estilo, marcado por uma análise que privilegia um grande número de aspectos, colocados em relativamente curtos e abundantes parágrafos, possibilita tal feito, além de tornar o texto mais interessante pela ampla erudição que demonstra, e não por uma prolixidade que rejeita.

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Ricado Benzaquen de. Guerra e paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. 2ª ed. – São Paulo: Contexto, 2006.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Puc-Rio, 2006.

PAOLI, Maria Célia. “Movimentos sociais, movimentos republicanos?” In SILVA, Fernando Teixeira da et al. (Org.). República, liberalismo, Cidadania. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2003.

POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.

REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9ª ed.

ampl. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

ROCHA, João César de Castro. “Notas para uma futura pesquisa: Gilberto Freyre e a escola paulista”. In FALCÃO, J. e ARAÚJO, R. M. B. de. [orgs.]. O Imperador das idéias: Gilberto Freyre em questão. Rio de Janeiro: Colégio do Brasil/ UniverCidade/ Fundação Roberto Marinho/ Topbooks, 2001.

SOUZA, Jessé. A Modernização seletiva: uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília: Unb, 2000.

VIANNA, Hermano. “A meta mitológica da democracia racial”. In FALCÃO, J. e ARAÚJO, R. M. B. de. (Orgs.). O Imperador das idéias: Gilberto Freyre em questão. Rio de Janeiro: Colégio do Brasil/ UniverCidade/ Fundação Roberto Marinho/ Topbooks, 2001.

[1] Mestrando em História Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) [email protected] Rua Salomão de Vasconcelos, 96 – Chácara Mariana – MG 35420-000 Palavras-chave Modernidade; Tradição; Identidade nacional.

[2] 1 Cf. o verbete “Ato de fala” escrito por Catherine Kebrat-Orecchioni, traduzido por Maria do Rosário Gregolin (Charaudeau; Manguenau, 2006). Conferir também o debate travado por John Pocock (2003) com a “Escola de Cambridge”.

Why developing countries need tariffs? How to nama negotiations could deny developing coutries’ right to a future – HÁ-JOON CHANG (BGG)

CHANG, Há-Joon. Why developing countries need tariffs? How to nama negotiations could deny developing coutries’ right to a future. Geneva: South Centre, 2005, p. 113. Resenha de: SANTOS, Leandro Bruno. Boletim Goiano de Geografia. v. 29 n. 1  jan./jun., 2009.

O autor do livro, Ha-Joon Chang, é coreano e professor na University of Cambridge, onde é dire­tor-assistente de estudos sobre o desenvolvimento. Chang foi consultor de diversas organizações inter­nacionais (UNCTAD, Wider, Banco Mundial etc.) e recebeu inúmeros prêmios por publicações e por seu trabalho voltado à compreensão dos principais problemas enfrentados pelos países pobres em suas trajetórias de desenvolvimento. O leitor brasilei­ro já teve a oportunidade de conhecer um de seus trabalhos mais importantes, Chutando a escada: A estratégia do desenvolvimento em perspectiva histó­rica, publicado pela Editora Unesp, em 2004.  É importante salientar que a divulgação do presente livro não teve finalidade comercial, mas o objetivo de contribuir para o debate sobre os aspectos que fazem parte da Rodada Doha, patrocinada pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A publicação é de responsabilidade da South Centre, uma organização intergovernamental dos países em desenvolvimen­to, responsável pela solidariedade do Sul, pela cooperação Sul-Sul, entre outras ações, e pela Oxfam International, uma confederação de doze orga­nizações que visam trabalhar juntas para encontrar soluções duradouras no combate à pobreza e à injustiça social.  A ideia imanente à obra é que o tipo de cortes tarifários propostos nas ne­gociações atuais de Acesso ao Mercado Não-Agrícola (Non-Agricultural Market Access – NAMA), no âmbito da OMC, danificará o desenvolvimento futuro dos países em desenvolvimento, condenando-os ao eterno subdesenvolvimento e à eterna pobreza. Por isso, os países em desenvolvimento precisam combater as propostas do NAMA como se o futuro dependesse disso. O livro, de mais de 100 páginas, conta com uma rica bibliografia em inglês (livros, capítulos de livros, artigos em revistas especializadas) e está dividido em 5 partes.

Na primeira parte, Introdução: NAMA – O perigo subestimado, destaca que as negociações de NAMA terão maior impacto que as trocas agrícolas e, por­tanto, os países em desenvolvimento devem estar conscientes do perigo poten­cial para o desenvolvimento futuro. A nova rodada de diminuição das tarifas in­dustriais ganha relevância porque: i) os cortes principais serão feitos por países em desenvolvimento de renda média; ii) a ampla gama de ferramentas políticas diminuiu nos últimos vinte anos, aumentando a importância relativa das tarifas como uma ferramenta política; iii) as tarifas industriais deverão ser cortadas acentuadamente, ao passo que a redução das tarifas agrícolas será menos draco­niana; iv) os cortes propostos não têm precedentes históricos (relembrando os dias de colonialismo e de tratamentos desiguais) e as tarifas já são bem menores que as que prevaleceram nos países desenvolvidos até os anos 1970.  Na segunda parte, Tarifa e teoria do desenvolvimento econômico, de­fende que as “indústrias nascentes”, em vez de subsídios, restringidos pela falta de recursos e pela OMC, necessitam de proteção tarifária “até que elas passem por um período de ‘aprender’ e tornem-se capazes de competir com os produtores dos países mais avançados” (p. 11). Até a Segunda Guerra Mundial, em função dos recursos orçamentários apertados, das limitações nas decisões de investimentos, da ausência de regulação industrial e de um Banco Central, as tarifas foram um instrumento importante ao desenvolvi­mento industrial para os países desenvolvidos de hoje.  As tarifas tornaram-se menos importantes para os países desenvolvidos de­pois da Segunda Guerra Mundial “porque uma gama muito ampla de ferramentas políticas tornou-se disponível e porque houve maior espaço político para usá-las, comparado aos períodos anteriores e posteriores” (p. 21). Durante os anos 1980, com a ascensão da ideologia monetarista e neoliberal, os países desenvolvidos forçam os países em desenvolvimento a cortar subsídios, a privatizar as empresas industriais, de modo que “as tarifas são agora a única principal ferramenta de proteção industrial que restou aos países em desenvolvimento” (p. 24).  A teoria comercial padrão que dá base ao NAMA está baseada em suposições irrealistas de mercados perfeitos e do livre comércio. Os cortes tarifários propostos no NAMA podem danificar o desenvolvimento econô­mico dos países em desenvolvimento e, ao mesmo tempo, trarão poucos be­nefícios, possivelmente de 0,1% a não mais que 1% da renda mundial.  Em Tarifa e desenvolvimento econômico – evidência, terceira parte, fundamentado em evidências históricas e contemporâneas, desmonta o discurso que relaciona laissez-faire e desenvolvimento econômico dos pa­íses desenvolvidos, ao mostrar que Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Suécia, Japão, entre outros, utilizaram inúmeras medidas visando à indus­trialização que hoje eles pregam como “ruins” para os países em desenvol­vimento, dentre elas as imposições tarifárias, as restrições comerciais, os subsídios à exportação, a restituição tarifária sobre insumos intermediários e a constituição de empresas público-privadas. É incisivo ao afirmar que os países desenvolvidos  nunca praticaram o que eles agora pregam aos países em desenvolvimento em termos de política comercial. Nos primeiros dias de suas industrializações, es­ses países usaram inúmeras medidas protecionistas e intervencionistas (espe­cialmente tarifas) para promover suas indústrias (p. 34).  Apesar da falta de articulação entre desenvolvimento e subdesenvolvi­mento como oriundos de um mesmo processo, destaca três fases perseguidas pelos países em desenvolvimento. Na primeira, quando da condição de colô­nias, sob a prevalência do imperialismo e de tratados desiguais, o crescimento econômico e da renda foi irrisório. Na segunda, depois da Segunda Guerra Mundial, momento de autonomia política e do Estado atuando como demiur­go na industrialização, os países em desenvolvimento conseguiram os maiores percentuais de crescimento do PIB e da renda. Finalmente, a partir dos anos 1980, com a crise econômica e a ascensão dos ideais neoliberais, os países em desenvolvimento foram forçados, pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetá­rio Internacional (FMI), a adotar políticas de liberalização econômica e de pri­vatização que culminaram num retrocesso aos avanços dos anos de proteção estatal. Com isso, defende a rejeição da suposição que dá base às negociações do NAMA, “que afirma que as tarifas e outras formas de proteção comercial são más para o crescimento dos países em desenvolvimento” (p. 89).  Na quarta parte, De volta ao NAMA: Os princípios atrás do NAMA (e da OMC) e por que eles estão errados, examina criticamente os princípios que governam o processo de negociações do NAMA. O primeiro dos princípios, o campo de batalha nivelado, corresponde à remoção das “vantagens injustas” dos países em desenvolvimento vis-à-vis países desenvolvidos, como altas tarifas, proteção mais fraca aos direitos de propriedade intelectual e maiores restrições aos investimentos diretos. Porém, argumenta que não é possível nivelar jogadores desiguais. O segundo princípio, tratamento diferencial e especial, é criticado porque, em vez de especiais, as altas tarifas e outros meios de proteção são “apenas tratamentos diferentes para países com ne­cessidades e capacidades diferentes” (p. 93). O terceiro, reciprocidade menos que completa, argumento de que aos países em desenvolvimento será permitido cortes menores de tarifas, é enganoso pelo fato dos cortes proporcio­nais e os impactos serem maiores vis-à-vis países desenvolvidos. O quarto e último princípio, flexibilidade, é a idéia que alguns setores chaves poderão ser removidos dos compromissos de abertura no NAMA. Porém, o perigo é que, para os setores liberalizados, não haverá mais volta como no passado.  Finalmente, na quinta parte, intitulada Conclusão: O direito a um fu­turo, diante da possibilidade de os cortes tarifários propostos no NAMA da­nificarem o futuro dos países em desenvolvimento, afirmar que “se os países desenvolvidos têm o direito de proteger seus passados através de subsídios e da proteção agrícola, os países em desenvolvimento têm o direito de cons­truir um novo futuro através de subsídios e proteção industrial” (p. 102).  Os argumentos contra o uso da proteção e dos subsídios “podem ser compreendidos como uma outra arma no arsenal dos países ricos para ‘chutar a escada’ dos países em desenvolvimento” (p. 103). A fim de evitar um apro­fundamento do abismo entre os que têm e os que não têm, advoga em favor da necessidade de maiores espaços políticos para os países em desenvolvimento para que eles possam conseguir o que é bom para eles e, em sua opinião, uma suspensão imediata das negociações do NAMA seria um bom começo.  Essa obra é de fácil leitura e contém muitas informações e evidências históricas sobre as políticas pró-desenvolvimento de países desenvolvidos e em desenvolvimento. O autor desvenda os reais interesses dos países desen­volvidos nas rodadas da OMC visando à redução das barreiras comerciais e mostra a importância de não ceder ao NAMA. Num momento de incertezas e de forte pressão para, em vez de aumento das restrições tarifárias, uma liberalização comercial com o fito de amenizar as consequências da crise financeira, geógrafos, economistas, cientistas políticos, dentre outros, preci­sam alertar sobre os riscos da maior abertura econômica, sobre os prováveis interesses dos países desenvolvidos e sobre a falta de relação entre o discur­so liberal e os fatos históricos.

Leandro Bruno Santos – Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista.