Albert Camus, de la transfiguration – pour une expérimentation vitale de l’immanence – BOVE (CE)

BOVE, Laurent. Albert Camus, de la transfiguration – pour une expérimentation vitale de l’immanence, 2014. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.33, Jul./Dez., 2015

Publicado em 2014, “Albert Camus, de la transfiguration”, constitui, ao lado de “Vauvenargues ou le séditieux”, de 2010, mais um esforço realizado por Laurent Bove no sentido de valorizar o tema pascaliano da “segunda natureza” através de um ponto de vista espinosista. Por aí se vê que Bove é consequente ao se distanciar tanto do tema da “filosofia do absurdo”, reiteradas vezes associada à obra de Camus pela interpretação hegemônica que dele se faz, quanto da imagem de um moralista, associada a Camus através de Sartre. Ainda que Bove percorra grande parte da obra Camus, podemos afirmar sem grandes embaraços que os personagens merecedores de maior consideração são Meursault e o Cristo das pinturas de Piero della Francesca, tal como descrito nas Noces 1. Através da identificação do tema de uma filosofia do corpo, Bove sustenta que Camus prepara, nas suas primeiras obras, notadamente em O estrangeiro e nas Noces, a questão da transfiguração, a qual será pos – teriormente desdobrada nos seus aspectos políticos e históricos, em O homem revoltado, por aí se articulam as duas partes da obra de Bove 2.

Camus não pode, portanto, segundo a análise de Bove, ser com – pletamente identificado ao tema do absurdo, desenvolvido em O mito de Sísifo, nem à saída moralista dele derivada. Em 1960, logo após a morte de Camus, Sartre escreve um artigo a respeito do autor de O estrangeiro : “Camus representava neste século, e contra a História, o herdeiro atual desta longa linhagem de moralistas cujas obras constituem possivelmente aquilo que de mais original existe nas letras francesas. Seu humanismo empedernido, estreito e puro, austero e sensual, travava um combate duvidoso contra os eventos massivos e disformes deste tempo. Mas, inversamente, pela tenacidade de sua recusa, ele reafirmava, no coração da nossa época, contra os maquiavelianos, contra o bezerro de ouro do realismo, a existência do fato moral” (sartre, 1964, p. 127). No lugar de articular o absurdo à revolta, como a interpretação de Sartre sugere, Bove procura mostrar a articulação entre o pensamento da imanência, aquiescente ao mundo, com a revolta. Por essa via, a revolta não aparece como efeito de um fato moral, como se fosse algo de externo à aquiescência ao mundo de que se trata, e o mundo mesmo procede em cada indivíduo pela determinação dos problemas e dos casos necessários de solução 3 . Nesse sentido, a revolta é tanto um fato interno à ordem do comum, tanto um fato do mundo quanto um fato da comunidade humana – em nenhum caso ela é um fato externo ao comum.

O conceito de transfiguração aparece logo na introdução da obra de Bove, onde ele é imediatamente remetido a certa potência de ruptura vis-à-vis as diversas formas de niilismo impostas pela transcendência da História, potência esta que é indissociável da própria afirmação do plano imanente do agir (p. 15). Mas, uma vez que o conceito de transfiguração é articulado por Bove à imagem de Cristo, notadamente tal como este aparece nos quadros de Piero della Francesca, cabe a referência à ocorrência deste termo no texto bíblico. O termo aparece no Evangelho, onde é relatada a transfiguração de Cristo, no alto de um monte, diante de Pedro, João e Tiago: “e foi transfigurado diante deles; o seu rosto resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz” (Mt 17:2) 4 . Este episódio deve, todavia, ser compreendido em associação com a ressurreição de Cristo, pois, após a transfiguração, Mateus relata que “descendo eles [Pedro, João e Tiago] do monte, Jesus lhes ordenou, dizendo: a ninguém conteis a visão, até que o Filho do homem seja ressuscitado dentre os mortos’” (Mt. 17: 9). Se bem que o tema da transfiguração – e o da ressurreição a ele associado – se apresente numa perspectiva transcendente, é possível valorizar, por detrás da questão teológica, a descrição de uma mutação radical que se exprime na sua corporeidade essencial; é precisamente esta corporeidade, o aspecto sensual da filosofia de Camus, que nos permite perceber a centralidade da referência a Piero della Francesca, numa espécie de revalorização da “segunda natureza” pascaliana, não como signo de decaimento, mas como espaço de expressão e desenvolvimento da humanidade.

Lida sob o signo da imanência, a transfiguração envolve uma ontologia da potência enquanto “atividade superabundante”; expressão através da qual Bove evoca o estudo das filosofias neoplatônicas realizado por Camus quando da redação da sua monografia na universidade de Argel 5 . Submetido a uma lógica imanentista, o elemento neoplatônico deve ser interpretado à luz de um “excesso de presença”, que fratura o ser a partir da sua própria potência. Nesse sentido, cabe-nos a referência a esta fórmula de Camus, extraída por Bove de L’homme revolté : “a revolta […] fratura o ser e o ajuda a transbordar. Ela libera ondas que, estagnadas, tornam-se furiosas” (p. 117). A transfiguração designa um processo imanente de afirmação do real, o qual não pode ser compreendido sob o signo da identidade, pois a ênfase recai, antes, sobre a produção de uma diferença radical interna à segunda natureza, sem qualquer recurso à transcendência.

Ao mesmo tempo, a passagem da filosofia do corpo, tal como tematizada na primeira parte do livro de Bove, à resistência, tal como. analisada na segunda parte, não deve ser compreendida como análoga à transição clássica entre passividade e atividade, ou entre pura aquiescência (“sim”) e puro dissentimento (“não”). Muito embora a abertura de Meursault ao mundo seja indicativa da sua passividade, Bove enfatiza de que modo esta passividade é índice mesmo da potência de Meursault. Em Meursault, a passividade é virtude (p. 46). E é virtude porque ela envolve também atividade . A concepção do agir encontrada por Bove em Camus não pode ser compreendida à luz do niilismo do “individua – lismo possessivo” 6, mas remete, pelo contrário, à mesma ontologia dinâmica que ele já havia encontrado em Vauvenargues, o qual “identifica o ser com a potência, a potência, com a ação, e sustenta uma necessidade imanente de produtividade da natureza, produtividade que se dá, especialmente em e pelo homem” (bove, 2015, p. 2) 7 . Da filosofia do corpo à revolta, o que se vê é o esquadrinhamento de uma mesma ontologia dinâmica com fortes acentos vauvenargueanos, a qual, analisada na sua corporeidade essencial na primeira parte da obra, passa a ser investigada em articulação com elementos histórico-políticos na segunda parte do livro de Bove.

Embora Bove não o diga diretamente, podemos deduzir da sua interpretação de Camus, uma estrutura organizada em torno de dois conceitos: forma e figura, de onde resultam duas estratégias ético-políticas (e filosóficas), quais sejam, a transformação e a transfiguração. A figura remete a uma “concepção do agir de singulares inter-dependentes inscritos sobre um plano de imanência da potência comum da vida” (p. 156), é o corolário mesmo de um pensamento da medida, o qual é “suscitado pelo conhecimento desta inter-dependência ontológica que impõe suas exigências imanentes e a dinâmica afirmativa dos seus equilíbrios, dos seus conflitos e dos seus ritmos profundos” (p. 141). A forma, por sua vez, pode ser conectada a “uma deriva dialética do pensamento da identidade dos contrários e da sua superação (a Aufhebung hegeliana) numa síntese totalizadora” (p. 141). É, pois, sob a lógica da forma que os homens são erigidos em “sujeitos”.

Eis que o binômio forma/figura nos conduz, na obra de Bove, a uma das máximas de Vauvenargues: “nada existe em si ou à parte” (Máxima 201), e à filosofia do corpo que dela se deduz. Semelhante filosofia impõe o desafio de criação de uma vida propriamente humana, em comunicação com o mundo, bem como com os demais corpos humanos. O mundo humano somente se realiza por meio de uma aquiescência à presença imanente dos corpos, que constitui a base de uma nova socialidade constitutiva do comum. Nesse sentido, a valorização do quadro de Piero della Francesca A ressureição, representa a própria transfiguração do niilismo e da História moderna. Ao mesmo tempo, sob a ideia de figura, percebemos uma rejeição análoga da ideologia da gênese com forte acento althusserianos. Com efeito, em sua correspondência com Diatkine, Althusser rechaça os conceitos de origem e gênese, considerando a ambos como conceitos transcendentes. Althusser sustenta, nesse senti – do, que, de acordo com a ideologia da gênese, as mudanças são sempre apreendidas à luz de uma substância imutável, na forma de acidentes que se desenvolvem a partir de uma origem, na qual este desenvolvimento já se encontrava, de algum modo, pressuposto, isto é, de algum modo, já existente (althusser, 1993, p. 56) .

Através de Camus, Bove conecta a figura ao “desejo sem objeto”, que extrai o homem de uma humanidade agitada pela esperança e permanentemente aprisionada por objetos. Trata-se, então, de um abandono, de uma passividade desinteressada, mas é pela via do seu próprio desinteresse que este abandono ultrapassa os limites da passividade ordinária, constituindo, na verdade, o corolário mesmo de uma ontologia dinâmica, tal como mencionamos acima. Nesse sentido, o “desejo sem objeto” constitui o contrário da lógica da eficácia, um processo plenamente afirmativo, irredutível quer à finalidade quer à falta. À figura pertence o tempo próprio ao desejo sem objeto (nem origem nem fim), o tempo da res gestae, no seu antagonismo à História, a Historia rerum gestarum, que atribui objetos ao desejo, e, dessa forma, impõe um telos ao tempo. A abertura ao tempo do desejo sem objeto é constitui uma subversão radical da História e, ao mesmo tempo, funda a possibilidade de uma história antropológica, isto é, de uma antropogênese. O tempo deixa de ser uma realidade imposta, correlato a uma natureza estagnada sob uma forma, mas passa a ser efetivamente vivido, o que permite a concepção de uma natureza humana enquanto algo permanentemente em construção, num processo que se nutre da tensão com o desejo sem objeto.

A revolta, enquanto corolário do paradigma da figura, implica não a realização da lógica niilista de uma indignação concebida segundo a imagem do “individualismo possessivo”, mas, antes, a constituição e, ao mesmo tempo, a pressuposição, da comunidade humana imanente, que destrói todas as formas, isto é, todas as ilusões que lhe impõem uma ideologia totalitária. Bove toma o cuidado de mostrar que a revolta não deve ser concebida à luz da negação da negação; pelo contrário, a revolta associada à presença do corpo, constitui o único fundamento verdadeiro da comunidade humana. A revolta se dirige contra a transformação dos homens em sujeitos, contra a submissão do desejo a objetos, contra a imposição de um telos ao tempo. Mas todo dissenso inerente à revolta decorre do fato de que ela exprime uma ontologia dinâmica. Em Camus, Bove enxerga mais um ponto por onde ele emaranha um estranho fio que, passando por Espinosa, enlaçara Vauvenargues, após passar por Pascal. No final das contas, ao valorizar as afinidades de Camus com Vauvenargues, este “moralista” do começo do século XVIII, parece que, então, as palavras de Sartre a respeito de Camus poderiam ser verdadeiras. Mas, após tudo o que vimos, é preciso reconhecer que se trataria de uma estranha moral, de uma moral imanente ao corpo, uma moral que é ela mesma transfigurada em ética. Eis, então, que a referência a Vauvenargues talvez tenha como efeito reverso, lida diante dos ecos de Sartre, tencionar vivamente esta estranha categoria das letras e do espírito franceses, isto é, os moralistas.

Notas

1 Noces (Núpcias) é um conjunto de quatro ensaios escritos por Camus entre 1936 e 1937 com caráter biográfico. A obra de Piero della Francesca é analisada por Camus no ensaio O deserto, onde o autor conta suas impressões a respeito da viagem que fez pela Toscana.

2 A primeira parte se intitula “Meursault au cœur du monde: corps puissant/corps christique”, e a segunda parte, «La transfiguration libertaire : le temps de la résistance et l’Histoire».

3 O leitor encontrará em La stratégie du conatus : affirmation et résistance chez Spinoza, a chave para compreensão desta questão. Remetemos o leitor à seguinte formulação: “(…) contrariamente à ilusão da consciência, os problemas não se põem por si mesmos e nem nascem, propriamente falando, do obstáculo com o qual costumeiramente se confundem. O problema não é um “dado” encontrado na experiência. É um produto da potência mesma de afirmação de um ser qualquer (indivíduo ou sociedade) na sua articulação dinâmica complexa ao real. O corpo é capaz e simultaneamente a ideia desta afecção, pela qual esse corpo é afirmado e o problema, posto. É então na natureza mesma da afirmação – que, compreendida necessariamente num complexo de relações de forças, é também a atividade constitutiva de uma resistência –, de problematizar o real, isto é, de constituí-lo como problema e, num mesmo gesto, de produzir o caso de solução correspondente a esta posição. Tal é o movimento real do real numa afirmação singular, ou a dinâmica estratégica e hermenêutica do conatus ” (Bove, 1996, p. 308).

4 Além do Evangelho de Mateus, encontramos a descrição do mesmo episódio em Marcos (Mc 9:2) e Lucas (Lc 9:29).

5  Este texto, escrito em 1936, foi publicado sob o título Métaphysique chrétienne et néoplatonisme nos dois volumes da Pléiade dedicados a suas obras completas.

6  A referência, sem dúvida, é a obra de MacPherson: “A teoria política do individualismo possessivo”.

7 Cabe, aqui, uma referência a Vauvenargues: “o fogo, o ar, o espírito, a luz, tudo vive pela ação; daí a comunicação e a aliança de todos os seres; daí a unidade e a harmonia no universo” (Máxima 198).

Referências

ALTHUSSER, l . (1993) “Lettre à D… (nº 2)». In:______. Écrits sur la psychanalyse. Paris: Stock/IMEC, 1993.

BOVE, l . (1996) La stratégie du conatus – Affirmation et résistance chez Spinoza. Paris: Vrin, 1996.

BOVE, l . (2015). Vauvenargues ou le séditieux – Entre Pascal et Spinoza. Une philosophie pour la seconde nature . Paris: Honoré Champion, 2015.

SARTRE, j.-p. (1964) “Albert Camus”. In: Situations IV, Paris: Gallimard, 1964.

Bernardo Bianchi – Doutorando, Université Paris 1- Panthéon Sorbonne, Paris, França. E-mail: [email protected]

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