Entre servidão e liberdade – SANTIAGO (CE)

SANTIAGO Homero1 Liberdade
Homero Silveira Santiago. 16 set. 2020. https://www.youtube.com/.

SANTIAGO H Entre servidao e liberdade LiberdadeSANTIAGO, H. Entre servidão e liberdade. São Paulo: Politeia, 2019. Resenha de: OLIVA, Luis César. Entre servidão e liberdade de Homero Santiago. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.42, jan./jun., 2020.

O caminho de um jovem professor e pesquisador depois de seu período de formação (supondo abstratamente que a formação termine com a conclusão das teses de mestrado e doutorado, o que é sabida – mente falso) é sempre sinuoso. Depois de anos regido por um projeto de pesquisa e “vigiado” por agências de fomento, ele se vê dividido em múltiplas tarefas didáticas, administrativas e intelectuais (algumas feitas de bom grado, outras nem tanto) que produzem, na sua obra publicada, uma inevitável impressão de dispersão. De certo modo, é esse percurso fragmentado que Homero Santiago nos traz em Entre Servidão e Liberdade (2019).

Depois de seu mestrado e doutorado sobre Espinosa, ambos revelando um historiador da filosofia de boa cepa, capaz de abordar temas circunscritos e pouco explorados pela tradição interpretativa, mesclando coerentemente rigorosas análises de texto com eruditas considerações históricas, eis que o autor agora deve dividir-se em escritos dos mais diferentes formatos: artigos especializados e para o público geral, traduções, prefácios, resenhas, entrevistas, etc. Ao reunir boa parte deles neste livro, Santiago não esconde a multiplicidade de formas nem a variedade de ocasiões que os motivaram. Porém, se a forma talvez denuncie a dispersão do percurso, o conteúdo a nega, atestando a admirável unidade de pensamento de um filósofo que usou as mais variadas vias de expressão para discutir uma única e fundamental questão: a transição (infelizmente nem sempre de mão única) da servidão à liberdade.

Dividido em cinco partes (e uma introdução que mencionaremos mais tarde), o livro se abre com um notável capítulo sobre a superstição em Espinosa, no qual o autor apresenta uma das mais completas e detalhadas análises já feitas sobre o famoso apêndice da parte I da Ética . Mais do que mostrar a renitência do historiador da filosofia meticuloso, este longo capítulo tem a função de revelar o ponto de vista com o qual Santiago pretende abordar os diversos assuntos presentes no livro. É com lentes espinosanas que o fará, e com atenção específica para o aspecto que talvez afaste Espinosa do outro filósofo que mais marcou o percurso de Santiago e é quase onipresente na etapa final do livro: Antonio Negri. Enquanto Negri, também inspirado em Espinosa, deixa-se levar pelo otimismo dos movimentos multitudinários e dá todo o destaque para a liberdade, Santiago ancora-se na análise espinosana da superstição para dar conta da inegável servidão que nos assola. Ao final do livro, quando Santiago explicitar suas críticas (que não impedem a enorme admiração) a Negri, o leitor perceberá plenamente o quanto era significativo ter no apêndice seu ponto de partida.

O mergulho na servidão, porém, não ocorre sem uma visão da praia. Embora as decepções com o sistema de crenças da superstição não apontem, na letra do apêndice, para uma saída, elas abrem ao menos uma possibilidade, que não será explorada neste texto, mas que remete Santiago a outro de Espinosa, o Tratado da Emenda do Intelecto, onde as decepções com os valores da vida comum nos levam à necessidade de começar a filosofar, ou pelo menos, como dirá o segundo capítulo,

já que os valores são necessários, tratemos nós de forjá-los em vista da alegria e do benefício à vida. Poder fazê-lo talvez seja o mais difícil, mas precisamos fazê-lo. Se não o fizermos, se nos restringirmos ao mais fácil, o preconceito, a tristeza, a superstição e os seus lugares-tenentes o farão por nós (SANTIAGO, 2019, pág. 118).

De um lado, esta surpreendente conclusão nos remete à introdução do livro, onde Santiago usa, também surpreendentemente, Pascal para pensar a transição entre servidão e liberdade. É no interior do determinismo da teologia jansenista da graça que Pascal inventa um sentido para a apologia: é preciso crer que estamos entre os eleitos, assim como os homens que nos cercam, por mais ímpios que sejam, enquanto lhes restar um momento de vida. Para Santiago, ao fazê-lo, Pascal está criando um possível no seio do necessário, e aí se encontra a surpreendente afinidade entre os dois pensadores.

De outro lado, o trecho citado nos remete a outro capítulo funda – mental, em que o que é apenas intuído na teologia de Pascal ganhará clareza conceitual para aplicar-se a Espinosa. A partir de uma engenhosa interpretação do papel da ignorância nas definições de contingente e possível, Santiago encontra para este último um lugar fundamental na ética e na política espinosanas:

o ponto de vista do possível ignora a causa, mas a ignora sobre – tudo porque a considera, ou seja, toma a coisa como tendo causa (…). Com efeito, se possível é aquilo cuja causa é indeterminada, possível é igualmente aquilo cuja causa pode ser determinada; sobre a qual, em suma, pode-se agir, pois o indivíduo se enxerga (correta ou incorretamente) como agente possível de um acontecimento (SANTIAGO, 2019, p. 153).

Sem desconsiderar o fato de que, ontologicamente, só há o necessário, Santiago dá ao possível a realidade de uma tarefa cujo cumprimento é imperioso para o uso da vida. Este capítulo, assim, fecha o bloco mais estritamente espinosano do livro, apresentando tanto a realidade da servidão, quanto a possível porta aberta para a liberdade. Como passar por ela? Eis a pergunta que o restante do livro tentará responder das mais variadas maneiras; nenhuma delas, porém, definitiva. Já chegando à terceira parte do livro, é curioso que o primeiro texto explicitamente dedicado ao pensamento de Negri seja antecedido por um capítulo dedicado a outra notória espinosana, Marilena Chaui. A despeito das diferenças interpretativas dos dois filósofos sobre a obra de Espinosa, a contiguidade dos dois capítulos acaba destacando algo de comum entre eles, e que remete à influência marxista que ambos compartilham: a importância dada à luta de classes. Olhar para os conflitos no interior da sociedade, e não só para a história do Estado, como se este fosse um ente transcendente e causa de si próprio, é uma tônica de vários textos de Chaui. Em Negri, é a partir da análise das lutas operárias que se desenvolverá a apropriação particular que o italiano faz do conceito espinosano de multidão, central em sua filosofia (e também na de Santiago, que com ele pensará, dentre outros temas, junho de 2013). Mas a atenção aos conflitos sociais e a recusa Espinosana da transcendência, comuns a ambos, levarão Chaui e Negri a caminhos diversos. Para Chaui, nas palavras de Santiago, “se a tirania persiste é porque se enraíza na vida social, dela emergindo como efeito que decorre de uma causa e envolve, de alguma maneira, todo o corpo social” (SANTIAGO, 2019, pág. 192). Daí surgirão as reflexões de Chaui sobre Brasil como sociedade autoritária. Seria o lado amargo da multidão? Para Negri, a multidão é o sujeito da práxis coletiva que brota do desejo primordial de libertação, subjacente a todas as carências particulares que aparecem nas lutas sociais. Como explica Santiago:

a noção restritiva de classe sai de cena em benefício de uma noção bem mais ampla, que permite pensar a unidade de todos os explorados em sua própria diferença, sem recurso à tradicional subsunção dessas diferenças à identidade do operário industrial, isto é, o operário-massa. Em segundo lugar, a luta de classes passa a ser considerada como possuindo seu motor no desejo. É a articulação dessas duas inovações que, nitidamente, vai nos direcionando para o conceito de multidão, que ao fim e ao cabo se revelará o único capaz de nomear essa nova classe (SANTIAGO, 2019, p. 212).

Aqui decerto não há lado amargo, mas a lente crítica de Santiago não se furtará ao questionamento óbvio (aliás retomando, por outro viés, o problema da passagem da servidão à liberdade): como pode este conceito fazer-se acontecimento?

A filosofia de Negri será retomada mais à frente, em detalhe. Antes disso, porém, a quarta parte do livro dará lugar a três preciosos ensaios sobre temas recorrentes em nossa realidade social: a polícia e seu pendor à violenta obediência abstrata; o Estado e seu escopo; e final – mente o dinheiro e a liberdade. Todos têm por ponto de partida objetos empíricos particulares, como o colaboracionismo da polícia francesa durante a segunda guerra ou as transformações sociais decorrentes do Bolsa-Família, mas a questão teórica de fundo é a mesma: os conceitos de servidão e liberdade. Ademais, depois da passagem por Chaui e Negri, não poderiam ser mais claras as razões de Santiago para voltar-se para os acontecimentos sociais. As conclusões, porém, são sempre teóricas, e tão surpreendentes quanto (para um leitor atento) coerentes com as bases conceituais estabelecidas nos capítulos anteriores.

Sem entrar em mais detalhes, inclusive para não entregar todas as voltas e reviravoltas ao leitor, cabe destacar mais uma vez a importância deste trabalho nos dias que correm. Útil tanto para especialistas (em Espinosa, Negri, Chaui e até mesmo Pascal e Nietzsche) quanto para o público geral, o livro traz reflexões particularmente vivas quando espasmos autoritários nos ameaçam de longe ou de perto. Embora seja o retrato do percurso intelectual singular de Homero Santiago, Entre Servidão e Liberdade alcança, se não a universalidade, pelo menos a comunidade dos bens que podem ser partilhados.

Referências

SANTIAGO, H. Entre servidão e liberdade. São Paulo: Politeia, 2019.

Luis César Oliva – Professor Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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O mais natural dos regimes Espinosa e a Democracia – AURÉLIO (CE)

Aurélio, D. P. (2014). O mais natural dos regimes. Espinosa e a Democracia. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores. Resenha de: BRAGA, Luiz Carlos Montans. Uma tese radical: Espinosa e a Democracia. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.40, jan./jun., 2019

O termo radical, tal como ética, democracia, política, e tantos outros, pelo excesso de uso e vulgarização demasiada, ao ser trazido à discussão, merece ser precisado, para que, em meio ao caos semântico, inimigo maior da filosofia, signifique algo claro e distinto. De fato, certo senso comum associa a palavra radical àquele que é fundamentalista em algo; em geral, o indivíduo contrário à boa ordem social, aos bons costumes. Porém, o que a expressão deve significar nesta resenha tem a ver com seu sentido etimológico. Ou seja, radical é o que vai à raiz, ao fundamento.

E por que a tese espinosana acerca da democracia, tema protagonista do livro ora resenhado, é radical? Porque ousa ir à raiz ontológica da política, como o belo ensaio de Diogo Pires Aurélio mostra com cuidado demandado por uma filosofia que, durante aproximadamente três séculos, esteve sob a sombra de uma imagem equivocada que dela se produziu. De panteísta que nega a liberdade do homem a pensador maior da política e do direito – em tempos recentes –, o caminho das teses e textos espinosanos é um labirinto cujas primeiras saídas foram encontradas pelos estudos fundamentais de Antonio Negri (1998) 1 e Alexandre Ma – theron (1988) 2, os quais foram aprofundados por outros comentadores de peso, posteriormente, entre os quais, em terras brasileiras, Marilena Chaui (1999, 2003, 2016). Aurélio, é preciso salientar, compõe esta linhagem.

Uma, entre outras muitas, imagem equivocada que sombreou a compreensão das teses espinosanas está condensada no influente verbete Spinoza, de autoria de Pierre Bayle (1696). No verbete, as teses espinosanas são descritas como as de um panteísta e ateu de sistema, filosofia diabólica precisamente por ser de difícil refutação, dada sua costura com as linhas de aço da geometria. A tradição posterior, raciocinando a partir de premissas exteriores às da filosofia espinosana, só poderia, em uma filosofia em que tudo é necessário, encontrar absurdos e contradições insolúveis. De fato, se há apenas uma substância – Deus ou a natureza –, na qual os homens são modos finitos, isto é, intensidades de potência expressas pela substância em sua causalidade imanente e necessária, onde encontrar a liberdade do homem? Em que fissura da causalidade da substância haveria espaço para a ação livre, para o campo da ética e da política? Pois um dos paradoxos quase insolúveis que a tradição de leituras exponenciaria aos comentadores até muito recentemente 3 seria exatamente este: de que fio puxar a ética e a política em uma filosofia da necessidade? Em uma palavra: se tudo é determinado, resta saber qual a liberdade possível. Ou, de outro ponto de vista, como passar do infinito positivo da substância eterna aos modos finitos das existências dos homens sem compreender estes últimos como meros epifenômenos de Deus? Estas imagens acerca do autor influenciaram, por exemplo, Voltaire, passando por Hegel e, em paragens brasileiras, chegaram a Machado de Assis (2009, p. 242) em seu poema dedicado a Espinosa – e tiveram ainda fôlego largo durante o século 20. Quanto a Machado de Assis, o Espinosa que tinha em mente seria, eis uma hipótese, o do verbete de Bayle, a saber, o panteísta.

O que o belo ensaio de um dos mais eruditos e eminentes estudiosos contemporâneos de Espinosa mostra é precisamente a ligação radical entre ontologia e política. Daí, talvez, a importância maior de Espinosa em tempos opacos como os que se desenham. Se a ciência política de corte formal não diz muito sobre a política atual, talvez seja porque não tenha lentes para tanto. E Espinosa bem pode ser, tantos séculos depois, se bem desvendado e comentado, uma dessas lentes. Permite, por exemplo, para ir ao título do ensaio que ora se resenha, que se possa dizer, acerca da democracia, que não é o “menos mau dos regimes”, mas “o mais natural” (Aurélio, 2014, p. 9). Mudança aparentemente banal, mas que traz à cena algo esquecido das discussões políticas que mais têm mídia, a saber, a natureza humana. Espinosa, pela pena de Aurélio, é trazido à cena para que mostre exatamente sua inovação fundamental no campo da filosofia política, isto é, declarar, a partir de um ponto de visto ontológico, o encaixe preciso entre a natureza humana e este regime político, tão celebrado nos belos discursos de retórica vazia quanto aviltado em seu exercício. A democracia que se proclama como tal em discursos pomposos, com seus formalismos vazios e malandros – pois fintam o conceito para lhe retirar o que tem de substantivo –, não ousa ser radical como a proposta por Espinosa. Não ousa ser ontologicamente fundada.

O livro é uma reunião de ensaios – uns já publicados outros agora republicados com acréscimos e, ainda, alguns inéditos, apresentados, até o momento, apenas sob a forma de conferências –, os quais formam, segundo o autor, não um conjunto esparso de textos, mas um todo coerente, alinhavado (Aurélio, 2014, p. 11). São três as partes do livro, somadas a uma “Introdução”, cujo título aguça a curiosidade: Espinosa, Marx e a democracia . O que haveria de comum entre Marx e Espinosa? Muita coisa, como o leitor poderá ver, e das quais esta resenha adianta uma apenas: a tese de Marx, que ecoa ideias espinosanas, e projeta a democracia “para além da tradicional questão dos regimes políticos” (Aurélio, 2014, p. 34), para afirmá-la como “horizonte de refundação permanente do demos, quer fazendo alastrar o princípio da soberania popular a todas as esferas da sociedade, quer resistindo à tendência do poder para se impor como fecho absoluto e se tomar pela totalidade social” (Aurélio, 2014, p. 34). Eis a iguaria fina que o autor serve ao leitor como entrada ao livro. A primeira das três partes que seguem, por sua vez, é baseada na “Introdução” de Aurélio ao Tratado teológico-político (TTP), por ele traduzido e publicado no Brasil pela editora Martins Fontes (2003). Intitula-se TTP : Genealogia do Poder . Nesta parte, os temas próprios ao TTP são trabalhados com a minúcia de quem estuda Espinosa há muitos anos. Ou seja, a questão da profecia, das leis, do fundamento do Estado, do direito natural e sua permanência no estado civil, da liberdade de expressão como um dos pilares de uma república bem constituída, etc. A segunda parte tem como título “O império das paixões”, composta por Capítulos que tratam de temas especificamente políticos em Espinosa. Uma das teses de Aurélio nesta parte, muito recente e atual, analisada em filigrana, é a da relação imbricada entre afetos e política. A terceira e última parte, nomeada “ TP : Da multidão ao poder”, sistematiza esses temas políticos e lhes dá acabamento. Tal parte foi originalmente publicada como “Introdução”, escrita por Aurélio, à sua tradução do Tratado político (TP) 4, no Brasil publicada também pela editora Martins Fontes (Espinosa, 2009).

O livro traz como questão mais aguda a democracia em Espinosa, isto é, a inovadora visão do filósofo acerca do tema. Curiosamente, ainda que já explícito no TTP como o mais natural dos regimes, por ser aquele que mais satisfaz a natureza humana de potência para perseverar no ser, não pôde ser desdobrado no TP, Capítulo XI, dedicado precisamente à democracia e não concluído pelo autor em razão de sua morte. A questão a democracia em Espinosa, na verdade, ainda é um problema a ser investigado pelos comentadores. Tal problema é levantado por Aurélio no momento em que indaga como seria este regime quanto às instituições. É possível dizer que o essencial da democracia já estaria nos demais textos de Espinosa? Uma passagem do “Prefácio” do livro dá pistas do projeto espinosano quanto ao tema:

Entre governantes e governados há sempre uma brecha, uma feri – da permanente […]. O que distingue a democracia dos outros regimes é o facto de, por definição, ela contrariar a cicatrização dessa ferida, evitar que a desigualdade se instale como natural, mantendo acesa, […] a ideia de um querer da totalidade, que está na origem e é fundamento de todo o poder. Reside aí o projeto de Espinosa. Reside aí, porventura, a sua atualidade (AURÉLIO, 2014, p. 10)

O livro de Aurélio cuidará de desdobrar este projeto, não obstante o não findo Capítulo XI do TP – aliás, quanto a este tema, o autor expõe sua posição, bem como a de outros comentadores, como Antonio Negri (1985) 5 e Étienne Balibar (1985), os quais igualmente transitaram pela questão. Mas onde está, mais precisa e analiticamente, a radicalidade de Espinosa, apontada no início desta resenha? Aurélio a desdobra, e ela consiste no seguinte: a rigor, não há seres isolados, indivíduos – humanos ou não–, isolados. Quanto aos homens, são indivíduos constituídos por outros indivíduos, formando uma totalidade complexa. Nas palavras do autor: “O indivíduo é sempre um ser coletivo e complexo, um aglomerado de partes cujas naturezas se conjugam momentaneamente num todo em que as forças de sinal positivo, que tendem a preservá-lo na existência, são superiores às de sinal negativo, que tendem a desagregá-lo.” (AURÉLIO, 2014, p. 36). Tais indivíduos, humanos ou não, são modificações finitas da substância absolutamente infinita, a qual é o ponto fundante da ontologia espinosana. O que vem a seguir é que amarra a política, que lida com o poder, à ontologia espinosana. Escreve Aurélio, para concluir o desenho da tese que será protagonista de muitas páginas do ensaio: “É esta a ontologia, desenvolvida nas duas primeiras partes da Ética [cujos temas são, respectivamente, De Deus e Da natureza e origem da mente ], que serve de fundamento à antropologia e à política de Espinosa.” (AURÉLIO, 2014, p. 34). Ontologia uma vez que os homens, como modificações da substância única (Deus, ou seja, a natureza), modos finitos do pensamento e da extensão, intensidades parciais de potência advindas da potência absoluta, apenas se constituem como tal em razão e como partes desta potência fundante do real, eterna e infinita, causa sui (causa de si). Tese magistral, com desdobramentos em campos vários, ao amarrar uma teoria do ser à política, à ética e ao direito, sem olvidar as variações de potência próprias aos humanos, a saber, os afetos, derivando daí o fundamento dos corpos políticos e a tese relevante e inovadora do direito natural como prevalecente no estado civil, o qual é criado para preservá-lo. Vários conceitos se apresentarão como importantes à compreensão do mecanismo da política, desvelando e desenvolvendo a tese inicial da democracia como o mais natural dos regimes uma vez que, potência que são, os homens desejam governar e não ser governados.

Em vez de analisar cada passo da longa cadeia argumentativa do autor em cada parte do livro, o que tornaria esta resenha muito longa e talvez enfadonha, opta-se por analisar, a seguir, dois ou três fios que se ligam à tese geral do livro, explicitada nas linhas acima. No interior do tema geral Aurélio introduz uma série de autores cujos conceitos são postos a dialogar com os espinosanos, a se afastar ou se aproximar deles. Eis alguns desses movimentos, a seguir.

Maquiavel é um autor com o qual Espinosa dialoga explicitamente. Chama-o agudíssimo no TP (ESPINOSA, 2009, TP, v, 7, p. 46) 6 e o pressupõe em várias passagens. Este é um tema que Aurélio desdobra com maestria, a saber, o Maquiavel latente, bem como o explícito, que há nas análises da filosofia política espinosana. Há várias e elucidativas páginas acerca das semelhanças e diferenças entre os autores. Dentre as semelhanças, Aurélio chama a atenção para o fato de que ambos dão à multidão uma importância política significativa. Maquiavel teria sido o primeiro autor da filosofia política, e durante séculos o único, a pôr “em causa a imagem negativa vulgarmente associada à multidão” (AURÉLIO, 2014, p. 370). E, ademais, ela é capaz de ser politicamente mais sábia e estável que o príncipe, tese de Maquiavel presente nos Discorsi (MAQUIAVEL, 2007 D, I 58, pp. 66-172) 7 e n’ O Príncipe (MAQUIAVEL, 2017, p. IX, pp. 147-151) 8 . Para Espinosa, por seu turno, a liberdade política dos súditos-cidadãos, no estado civil, para dizer de modo sumário, tem como fiadora a multidão, tese presente em vários momentos do TP.

O Maquiavel dos Discorsi – bem como o de O Príncipe –, afirma Aurélio, explicita a tese da positividade da multidão e Espinosa a recupera e endossa, ao seu modo (AURÉLIO, 2014, p. 370 e seguintes). Não casualmente a multidão terá papel fundamental na argumentação exposta no TP, e o termo aparecerá várias vezes no correr do texto. Ela é o fundamento de uma república bem instituída e, nesse sentido, é a protagonista maior da política.

Há outro ponto de encontro entre os autores, a seguir apenas indicado, o qual é analisado por Aurélio:

Considerar, pois, a natureza como horizonte inultrapassável do político significa integrar o político num horizonte de conflitualidade e contingência, onde não obstante os homens se unem de forma mais ou menos duradoira, consoante os afetos comuns que estabilizam e predominam em dado momento. É aí, nesse preciso horizonte, que Espinosa se encontra com Maquiavel (AURÉLIO, 2014, p. 381).

Não aparece no livro ora resenhado, mas em outro estudo de Aurélio, uma diferença entre ambos que é digna de nota. Trata-se do fato de que em Maquiavel predominam os exemplos históricos que levam às teses políticas, ao passo que em Espinosa existe uma ontologia de fundo que informa e dá sustentação aos conceitos políticos. Tal tema se apresenta quando o autor analisa o conceito de virtude em ambos.Afirma Aurélio:

[…] as ocorrências do termo ‘virtude’ no TP adquirem um alcance completamente diferente do que possuiriam quando encaradas apenas como um reflexo da leitura de Maquiavel. À superfície, haverá, com certeza, alguma coincidência: […]. Tanto Maquiavel como Espinosa rejeitam a tese ciceroniana, geralmente aceite, segundo a qual a conveniência ou utilidade e a rectidão moral seriam inseparáveis [Cícero, De Officiis, II, III, 9, ed. The Loeb Clasical Library, 1970, p. 176 ]. Mas o primeiro chega a essa conclusão com base apenas num cotejo da experiência e da história, chamando a atenção para aqueles a quem a glória bafejou no passado, apesar de se lhe imputarem actos criminosos. […] Espinosa, raciocinando embora a partir de idêntica integração do indivíduo na trama de relações em que os seus actos ganham significado e podem ser valorizados, transfere, no entanto, o problema para a sistematicidade de uma ordem ontológica onde o confronto entre razão moral e razão política é subsumido (AURÉLIO, 2000, pp. 84 – 85).

Outro autor que surge no ensaio, em muitos momentos como contraponto às teses espinosanas, é Hobbes. Espinosa possuía um exemplar do De Cive em sua biblioteca pessoal, e Hobbes é um autor cujas ideias foram amplamente debatidas no período maduro de Espinosa. Espinosa o leu, é certo, e na famosa Carta 50 afirma o que o diferenciaria do autor Inglês. Esse é um mote fortíssimo, muito bem analisado por Aurélio precisamente para desdobrar as diferenças entre ambos. Uma hipótese que aqui se levanta é: os conceitos contidos e pressupostos na filosofia política hobbesiana podem ser considerados vencedores na história das ideias, ao passo que os espinosanos ficaram nas sombras por muito tempo. Por exemplo, Aurélio desenvolve muito bem o tema da representação em Hobbes, bem como o do contrato, para mostrar como Espinosa propõe algo muito diverso. Em muitas passagens do ensaio, ambos são comparados para que se possa ver com maior clareza e distinção o que os une – temas comuns – e, especialmente, o muito que os separa.

O Capítulo VIII, constituinte da Segunda Parte do livro, pode dar margem a sadias polêmicas. Nele, Aurélio propõe uma aproximação entre Kelsen e Espinosa, especialmente quanto aos temas da norma jurídica e do Estado. Entre outras passagens ricas e ousadas, o autor escreve: “Se o analisarmos a partir desse seu caráter de absoluta imanência, não é difícil ver no Estado kelseniano um eco do imperium espinosano.” (AURÉLIO, 2014, p. 283). Tese tão ousada quanto, ao ver deste resenhista, de difícil sustentação. Pois se Espinosa propõe uma explicação da política fundada em redes de afetos e de potência – procurando, no limite, a sustentação real do direito natural de cada súdito-cidadão no estado civil –, Kelsen está muito mais preocupado com a fundação de uma ciência do direito que seja autônoma – ao menos é este o projeto de sua Teoria Pura do Direito (1998), obra na qual estão condensadas muitas de suas principais teses acerca do direito. E se é certo, como afirma Aurélio, que Kelsen é um crítico das doutrinas clássicas do jusnaturalismo – o mesmo se poderia dizer de Espinosa –, em nenhum momento, salvo melhor juízo, argumenta a favor de um direito que se identifique a potência. Ao invés, está sempre na chave do direito como dever-ser e na proposta de um direito que possa ser objeto de ciência autônoma, com objeto próprio, a saber, as normas validamente postas e constituintes do ordenamento jurídico. Espinosa parece estar em trilhos muito diversos. Veja-se sua tese da identificação do direito à potência, bem como a de que o direito do Estado tem seu fundamento na potência da multidão – conceito este, o de multidão, em que o tema dos afetos se apresenta como um dos pilares explicativos de sua constituição. Ora, esses temas não são objeto dos textos de Kelsen. Porém, o brilho do ensaísta está precisamente em desenvolver uma argumentação tão cerrada e tão convincente que faz o leitor pensar à revelia de suas convicções, a contrapelo de si mesmo – tarefa da filosofia. Eis um ponto a ser ressaltado, neste e em outros Capítulos: Aurélio ousa levar sua pena e seu talento ensaístico a territórios pouco frequentados.

A discordância acima indicada é bastante pontual e lateral. Com efeito, o fio principal do texto – e as análises de Aurélio – pode ser resumido como um brilhante e erudito ensaio acerca do mais natural dos regimes, a democracia, a tese radical de Espinosa. Neste ensaio de Aurélio, Espinosa é apresentado como filósofo num dos sentidos originais da ex – pressão, ou seja, o que leva à verdade como alétheia [ αλήθεια ], isto é, desvelamento ou desocultamento. Na filosofia política que propõe o autor holandês, e que Aurélio apresenta tão bem, há reviravoltas conceituais que levam à constituição de lentes polidas com extrema precisão. Espinosa faz o leitor que se apropria de seus conceitos enxergar o que antes era opa – cidade. E Aurélio é excelente mapa para o território da filosofia política espinosana – antes que escureça! Uma resenha deve insinuar coisas interessantes sem mostrar o essencial. Espera-se que o intento tenha sido alcançado, ou seja, que este texto seja convite ao leitor para palmilhar com a velocidade lenta da filosofia a bela geografia conceitual criada por Aurélio.

Notas

1 A primeira edição de L’anomalia selvaggia : potere e potenza in Baruch Spinoza é de 1981 .

2 Que é uma reimpressão do texto de 1969 (Matheron, 1988, p. I).

3 Como indicado acima, uma das primeiras leituras que rompe com este estado de coisas é a de Matheron, de 1969 (Matheron,1988), e depois a de Negri, publicada pela primeira vez em 1981 (Negri, 1998) .

4 Agraciada, em 2009, com o prêmio de Tradução Científica e Técnica em Língua Portuguesa, atribuído pela União Latina em parceria com a Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal.

5 Traduzido no Brasil em: Negri, A. (2016). Espinosa subversivo e outros escritos. Tradução de Herivelto Pereira de Souza. São Paulo: Autêntica, pp. 46 – 85.

6 Em romano o capítulo, em arábico o parágrafo -Espinosa, 2009.

7 Em romano o Livro, em arábico o Capítulo – Maquiavel, 2007.

8 Em romano o Capítulo – Maquiavel, 2017

Referências

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_______. (2014) O mais natural dos regimes. Espinosa e a Democracia. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores.

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BAYLE, P . (1696) Dictionnaire historique et critique. Article Spinoza . Disponível em: < http://www.spinozaetnous.org/telechargements/Commentaires/ Bayle/Bayle_Spinoza.pdf >. Acesso: 15 dez. 2017.

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_______. (2003) Política em Espinosa . São Paulo: Companhia das Letras.

_______. (2016) A nervura do real : Imanência e liberdade em Espinosa. Vol. II : Liberdade São Paulo: Companhia das Letras.

ESPINOSA, (2003) Tratado teológico-político .Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes.

_______. (2009) Tratado político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes.

KELSEN, H. (1998) Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes.

MAQUIAVEL, (2007) Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio . Tradução MF . São Paulo: Martins Fontes.

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_______. (1985) Reliquia desiderantur: congettura per una de fi nizione del concetto di democrazia nell’ultimo Spinoza. In: Studia Spinozana I, n. 8, pp. 143-181.

Luiz Carlos Montans Braga – Professor Universidade Estadual de Feira de Santana. E-mail: [email protected]

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Spinoza como educador – RABENORT (CE)

RABENORT, William. Spinoza como educador. Pref. Juliana Merçon; introd. Trad. Bras. Fernando Bonadia de Oliveira; tradução para o português GT Benedictus de Spinoza; coordenação Emanuel Angelo da Rocha Fragoso/Francisca Juliana Barros Sousa Lima. – 1.Ed. – Fortaleza: EdUECE, 2016. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.38, jan./jun., 2018.

O mesmo interesse pedagógico despertado pela filosofia de Espinosa na primeira década do século passado, período em que William Louis Rabenort publica “ Espinosa como educador ”(Spinoza as educator), reaparece aqui no Brasil no presente momento. A tradução realizada pelo Coletivo GT Benedictus de Spinoza, sob a coordenação do Prof. Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e da Profa. Francisca Juliana Barros Sousa Lima, tem como objetivo reconstituir esse primeiro encontro das ideias de Espinosa com o campo da educação. É bem verdade que o filósofo do “infinito atual” ou do Deus sive Natura desperta um interesse mais pela profundidade e rigor de sua ontologia e a agudeza de sua análise política, do que propriamente de sua relação com a pedagogia ou escritos sobre a educação. Entretanto, é a própria filosofia de Espinosa que nos faz perceber que essas divisões de ciências ou saberes, na verdade, não se põem. Tudo o que existe, existe necessariamente e todas as relações existentes se conectam e se interconectam umas às outras, num turbilhão de causalidade que tem como único fundamento a substância absolutamente infinita. Sendo assim, se a educação não pode ser pensada sem relacioná-la à política, por que não pensar estes campos do conhecimento imersos numa ontologia do necessário? A maestria com que Rabenort conduz o leitor, interconectando a ontologia, a política e a educação em Espinosa, faz do seu livro uma obra necessária para os professores de filosofia e pedagogos repensarem os caminhos da educação. A tradução de Rabenort que vem a lume, e que tem como objetivo essencial contribuir para a elaboração de uma teoria da educação em Espinosa, talvez seja o início da percepção da importância da sua filosofia também para os educadores.

Em seu primeiro capítulo, intitulado “A possibilidade da Educação”, Rabenort confessa que em suas obras Espinosa não se preocupou explicitamente nem com a educação nem com as crianças. Entretanto, Rabenort chama a atenção para o fato de que a educação precisa ser pensada num âmbito maior que aquele circunscrito pela infância: “A educação é mais ampla do que a infância e o interesse de Espinosa deve ter sido pelos adultos.” (Rabenort, 2016, p.65 66). Não seria mais coerente educar os adultos para que posteriormente houvesse a possibilidade de os adultos educarem as crianças e jovens? Apesar de afirmar a incapacidade do vulgo para questões filosóficas, Rabenort nos convence de que Espinosa atesta a possibilidade de educação pela relação que manteve com seus amigos e correspondentes. É através da atitude pessoal do filósofo que podemos perceber a importância da educação implicada em seu sistema filosófico, já que Espinosa não deu um tratamento sistemático ou explícito para a educação.

Na filosofia de Espinosa os conceitos de necessidade e impossibilidade têm um significado universal, pois eles se aplicam a Deus e ao todo da natureza na qual o homem é apenas uma partícula. Sendo assim, é através dos conceitos de possibilidade e contingência, que possuem significado apenas para a existência humana, que devemos pensar a possibilidade de educação do homem numa doutrina construída a partir da ideia de necessidade: “A educação, até agora, está posta além da interferência humana. O professor deve ir com a maré, cujo fluxo é determinado pela configuração do universo” (Rabenort, 2016, p. 79). Visto que a capacidade de conhecimento do homem é limitada, o conhecimento absoluto e eterno é contrário à natureza humana.

No segundo capítulo, intitulado “Os elementos da Natureza Hu mana”, Rabenort introduz o leitor aos principais conceitos de Espinosa em relação ao lugar dos seres humanos como parte da Natureza sujeitos às leis de causa e efeito. Ele esclarece como são definidos os conceitos de essência, existência, causalidade, substância, atributos, a relação entre a mente e o corpo, além de enfatizar a importância que o corpo possui na filosofia espinosana destacando sua concepção de imaginação, memória e modos de conhecimento. Diferentemente de toda a tradição filosófica, para Espinosa não há abismo entre a mente e o corpo: ambos são a expressão de atributos que são diferentes mas que constituem a essência de uma mesma substância, isto é, Deus.

No terceiro capítulo, intitulado “A supremacia do intelecto”, Rabenort realiza o estudo da atividade natural do pensamento, a maneira como ele opera e a relação do pensamento com o seu objeto e conteúdo. A complexa teoria do conhecimento em Espinosa é analisada em sua distinção entre ideias adequadas (razão/intuição) e as ideias inadequadas (imaginação). O pedagogo enfatiza a importância da formação das noções comuns em Espinosa como base do raciocínio de todos os homens, visto que tais noções integram dentro de seu sistema o limiar entre imaginação e razão. Sem dúvida, na filosofia de Espinosa há uma semelhança entre raciocínio e causalidade, pois “nomear uma causa é oferecer uma razão” (RABENORT, 2016, p. 136) . A experiência nos fornece o conhecimento das coisas finitas existentes enquanto a razão faz perceber as coisas sub quadam species eternitatis .

O quarto capítulo é dedicado a pensar “As complicações de personalidade” que, segundo Rabenort, constituem a base da teoria política de Espinosa. Como bem analisa em seu livro, as diferenças de personalidade entre os homens são causadas por causas externas, as quais modificam seus respectivos desejos, já que estes são a essência do homem. Assim, a composição das forças externas que moldam a afetividade e que causam as diferenças de personalidade e disputas entre os homens prejudicam a possibilidade de sua união. Entretanto, Espinosa concorda com a definição de que o homem é um ser social, visto que a teoria educacional implícita na obra de Espinosa nos conduz à percepção de que nada é mais útil ao homem do que outro homem. Tanto a política quando a educação devem nos conduzir a essa compreensão: “o homem é um Deus para o homem”.

É apenas no último capítulo, “Os critérios da educação”, que Rabenort analisa de fato o problema da educação na filosofia de Espinosa. Pelo fato do homem ser um membro da sociedade, ele não existe isoladamente, mas em cooperação e harmonia com outros como ele. Rabenort propõe a tese de que Espinosa foi verdadeiramente tanto um professor quanto filósofo. É através da distinção entre experiência e razão, como duas formas de consciência, que podemos classificar o processo educacional em Espinosa. A base do currículo seria composta pela prioridade que Espinosa outorga aos dois itens da experiência: as relações sociais e a preservação da vida e da saúde. A habilidade política é entendida como o primeiro desejo que a educação deveria estimular. Porém, o curriculum, propriamente dito, é o próprio professor, pois ele tem a aptidão em auxiliar os homens para o exercício de seu poder racional: “O professor é a pessoa a quem é delegada, em razão da aptidão especial para a tarefa, a função da sociedade, que consiste em ajudar os homens a exercerem o seu poder de forma racional” (Rabenort, 2016, p. 186 – 187) . Apenas o conhecimento da experiência não é suficiente para tornar o homem consciente de si, será necessário conduzir os homens ao entendimento da união que existe entre a mente e a natureza inteira. Como vimos, o homem possui naturalmente a predisposição para a sociabilidade e desenvolvimento da razão; sendo assim, o professor deve apenas desenvolver o fortalecimento que a certeza racional pode proporcionar. Rabenort alerta que tanto a razão quanto a intuição (insight), embora também envolvam cooperação, devem ser o exercício da energia humana autoiniciada e autocontrolada: “A educação, para merecer esse nome, deve ser autoeducação (self-education).” (Rabenort, 2016, p. 201) . Portanto, o obra de Espinosa contempla a atividade essencial da educação que nada mais é do que o ensinar e o aprender entre homens que se dedicam ao conhecimento da Natureza. Numa sociedade em que os homens cada vez mais desenvolvem aversão à política e a desvalorização dos professores, esta obra torna-se fundamental.

Referências

RABENORT, William (2016). Spinoza como educador. Pref. Juliana Merçon; introd. Trad. Bras. Fernando Bonadia de Oliveira; tradução para o português Coletivo GT Benedictus de Spinoza; coordenação Emanuel Angelo da Rocha Fragoso/Francisca Juliana Barros Sousa Lima. – 1. Ed. – Fortaleza: Eduece, 2016.

Juarez Lopes Rodrigues – Doutorando Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa, volume 2 – CHAUI (CE)

CHAUI, Marilena. A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa, volume 2. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: OLIVA, Luís César; LACERDA, Tessa Moura. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.36, Jan./Jun. 2017.

O lançamento do segundo volume de A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa, de Marilena Chaui, conclui um processo de análise e exposição sistemática da filosofia de Baruch de Espinosa, em especial de sua obra maior, a Ética, processo que se confunde com a própria trajetória da Marilena Chaui como docente do Departamento de Filosofia da USP e uma das mais importantes intelectuais brasileiras das últimas décadas. Dedicando-se à pesquisa sobre Espinosa desde os anos 60, Chaui defendeu sua livre-docência, em 1977, já com o título de A nervura do real, um calhamaço em dois volumes que representava, naquele momento, o principal trabalho sobre Espinosa feito em língua portuguesa. Chaui, no entanto, não a publicou de imediato, apesar dos insistentes apelos dos colegas e alunos. Para a autora, faltava ao “tijolo” uma reflexão mais detalhada sobre o quadro amplo da história da filosofia diante do qual a revolução espinosana ficaria mais evidente e compreensível, além de uma análise mais detida da parte i da Ética, que contém os fundamentos ontológicos do sistema.

O que para outros intérpretes poderia ser uma curta introdução histórica transformou-se em um novo livro, de quase mil páginas, reconstruindo não só as referências históricas de Espinosa, mas todo o percurso do espinosismo depois da morte de seu autor. Ao final, coroava o livro uma análise linha a linha da parte I da Ética, cuja solidez e densidade não tem paralelo na literatura internacional. Foi o primeiro volume da Nervura do real, dedicado à imanência, e publicado em 1999. O longo intervalo de 22 anos entre a tese de livre-docência e esta publicação foi marcado por inúmeros outros livros, especialmente sobre o Brasil, mas a reflexão espinosana em curso sempre norteou os escritos de Marilena Chaui, em temas tão variados quanto ideologia ou repressão sexual, o combate à ditadura civil-militar ou o ensino de filosofia. Em todas estas obras, o leitor atento pode encontrar A nervura do real em gestação, ou melhor, em operação.

Feito esse imenso trabalho, a própria autora acreditava que o segundo volume previsto sairia mais rapidamente, até por ser uma retomada da tese de livre-docência, dedicada sobretudo à liberdade. Todavia, aos 22 anos de espera pelo primeiro volume, somaram-se outros 17 para o segundo. A conclusão da obra não aproveitou praticamente nada da antiga livre-docência, integralmente reescrita. Nem poderia ser diferente, considerando que 39 anos de reflexão espinosana, vivência em sala de aula e muitas lutas políticas separam a antiga tese deste novo volume que recentemente chegou a nossas mãos. Os leitores não perceberão apenas o avanço interpretativo em relação à tese original, mas também uma expressiva mudança de tom em comparação com o próprio primeiro volume. Enquanto naquele Marilena Chaui antepunha à apresentação de cada noção espinosana uma larga reconstituição histórico-conceitual, em uma empreitada de imensa erudição, no segundo volume a autora permite-se uma análise mais circunscrita ao texto de Espinosa. Parafraseando a própria autora, enquanto o primeiro volume foi uma discussão com toda a história da filosofia, o segundo volume é uma conversa entre ela e Espinosa. Isto dá ao livro uma fluência que o torna acessível a uma ampla gama de leitores, incluindo aqueles que tenham pouco contato prévio com a filosofia espinosana. No fluxo desta conversa, densa mas extremamente agradável, Chaui conduz o leitor pela integralidade das partes II, III, IV e v da Ética, considerando-se que a parte I já fora sufi – cientemente destrinchada no primeiro volume. Os atuais e antigos alunos reencontrarão nesta escrita muito do ritmo cativante – e ao mesmo tempo conceitualmente rigoroso – das aulas de Marilena Chaui dadas na USP e em outras universidades do Brasil e do mundo.

A fluência do texto, porém, não nos deve enganar. Os desafios propostos pelo livro são de monta e implicam discussões conceituais de extrema sofisticação, frequentemente em oposição à quase totalidade da crítica especializada. Talvez o principal destes desafios já se apresente na primeira parte do livro: a imensa tarefa de demonstrar, contra uma longa tradição de interpretação, a existência de seres singulares na filosofia da substância imanente espinosana. Contra essa tradição interpretativa que remonta ao século XVII, e que a autora denominara, no primeiro volume, “a imagem do espinosismo”, cabe a Marilena Chaui desmontar a falsa aporia que diz ser impossível o singular em uma filosofia na qual só há uma substância.

Esse trabalho é um trabalho espinosano: como Espinosa, Marilena desconstrói o discurso cristalizado e, ressignificando as palavras, mostra como a existência de seres singulares é efeito de uma dupla causalidade, a causalidade da substância e a causalidade da Natureza naturada. Como efeitos determinados em uma complexa rede causal, os seres singulares não existem necessariamente por sua própria essência, mas sua existência é necessária pela causa.

Ora, uma vez afirmada essa necessidade da existência do suingular, coloca-se a segunda questão do Nervura II: é preciso demonstrar como necessidade não se opõe a liberdade. Ser livre, para Espinosa, é ser uma causa não passivamente determinada pelo exterior, mas internamente disposta. É tomar parte na atividade do todo. A concepção que relaciona liberdade e livre-arbítrio é uma concepção imaginária da liberdade. Para demonstrar a existência de coisas singulares que podem ser causas livres, Marilena Chaui inicialmente percorre as obras de Espinosa para mostrar a presença do singular em todas elas. No Tratado da emenda do intelecto, Espinosa afirma que, diferente da razão, a imaginação lida com coisas singulares corporais, e o intelecto lida com as essências das coisas singulares. A imaginação organiza essas coisas singulares como ideias obscuras ou universais abstratos. Mas o intelecto é capaz de conhecer a essência particular afirmativa e, por meio dela, a coisa particular .

Essas afirmações do Tratado da emenda operam em outras obras. No Tratado político, Espinosa afirma que os regimes políticos distinguem- se não da maneira clássica pelo número de governantes, mas porque são essências particulares determinadas: sua causa é o direito natural particularizado pelas relações de força e potência da multitudo (agente político). No Tratado teológico-político, Espinosa trata da essência particular do Estado hebraico, um regime político existente na duração, unindo geometria e um método histórico. O Estado hebraico é uma coisa singular . Sua essência é uma singularidade historicamente determinada. E a Bíblia, por sua vez, é uma singularidade que existe como efeito de uma causa singular, a  sociedade hebraica. Essa análise do Tratado político e do Tratado teológico-político permite, a Marilena Chaui, distinguir no interior da obra de Espinosa essência particular e essência de coisa singular : a  essentia particularis é “o momento em que uma ideia apreende a conexão lógica entre uma essência e suas determinações ou propriedades” (Chaui, 2016, p.32) e a essentia rei singularis é “empregada para assinalar a relação interna entre uma essência e sua existência” (Chaui, 2016, p.32). Essa distinção existe também na Ética: na parte i, os modos da substância são coisas particulares ; na parte II a mente, modo do atributo pensamento, é uma coisa singular, o corpo, modo do atributo extensão, é uma coisa singular . A coisa singular é um modo singular .

As partes I e II da Ética, nas palavras de Marilena Chaui, são um díptico. Assim, a parte I demonstra a existência do que é necessário por sua própria essência, a Natureza naturante e a Natureza naturada. A parte I I, como segundo pano do díptico, concentra-se na Natureza naturada para deduzir a existência dos modos finitos, necessário não por sua própria essência, mas pela sua causa. Por isso, na parte I, por meio da causa de si, Espinosa demonstra a identidade entre essência e existência em Deus; na parte I I, por sua vez, é afirmada a inseparabilidade entre essência e existência nos modos finitos. A essência do modo finito humano não envolve existência necessária, mas são necessários pela sua causa, jamais contingentes ou possíveis (cf. Chaui, 2016, cap.2).

O modo finito é definido, na parte I a Ética, como modo que está em outro e é concebido por outro; a parte II da Ética sublinha a singularidade de um modo que exprime a essência do ser absoluto.

O modo finito humano é deduzido na parte II como corpo e mente que se relacionam. Essa relação pode se dar de forma inadequada (por meio da imaginação) ou de forma adequada (por meio da razão e da intuição). A perspectiva determinante na parte II da Ética é, portanto, a perspectiva epistemológica, mas também a dimensão causal da coisa singular é enfatizada e, ganha ainda mais espaço na parte III, quando Espinosa demonstra que a coisa singular pode ser causa adequada ou inadequada, porque finita; dessa finitude trata a parte IV, e a parte v mostra como a mente pode ser causa adequada e chegar à felicidade.

O singular é uma existência determinada e uma atividade causal, é um indivíduo complexo. Marilena Chaui mostra essa construção da singularidade na Ética de Espinosa. O singular é singular porque é uma determinação finita no interior da complexa rede causal da Natureza. E é finito porque não existe como causa de si, mas é também causa.

Ser parte, em Espinosa, é saber-se parte de um todo e, então, tomar parte na atividade do todo. Cabe ao final da Ética, bem como ao final da Nervura II, mostrar como este tomar parte no todo é um tomar parte na eternidade. Este conceito, na primeira parte da Ética, parecia restrito à existência própria da substância, que segue necessariamente de sua essência. Às coisas singulares, como modos finitos, não caberia mais que a duração, numa contraposição insuperável. Uma das principais novidades de Chaui é explicitar como a Ética, no seu desenvolvimento, vai ampliando o sentido de eternidade, de modo que alcance as próprias coisas singulares enquanto são em Deus. Trata-se de uma eternidade dada desde sempre, pela imanência das coisas a Deus e de Deus às coisas, mas simultaneamente de uma eternidade conquistada pela adequação do conhecimento. Não há contradição nisso porque tal conquista não implica passagem nem transformação radical. O tomar parte no todo significa tornar-se aquilo que já se é. Nas palavras de Chaui, “a eternidade da mente não implica uma transformação de seu ser ou de sua essência; o que muda é o objeto do qual ela é ideia: passa das afecções do corpo na duração à ideia da essência do corpo, essência contida e compreendida como singularidade no atributo extensão e cuja ideia, simultaneamente, está contida e compreendida no atributo pensamento” (Chaui, 2016, p. 571). Em suma, a mente não se torna eterna, ela passa a conhecer que é eterna, e não apenas como se conhece a um objeto externo. Mais que isso, como diz a célebre expressão de Espinosa, nós sentimos e experimentamos que somos eternos.

Ao terminar a leitura do livro de Chaui, podemos olhar para trás e ver com toda a clareza o processo de concretização do que havia sido demonstrado nas primeiras páginas. Não só a singularidade não é incompatível com a imanência, mas só se realiza plenamente como liberdade quando percebe esta imanência por meio da participação ativa nela. Esse processo de concretização de si como ser autônomo, livre e feliz não é um processo meramente cognitivo, mas simultaneamente afetivo. Por isso, também com afeto olhamos para a tese de livre-docência, de 77, ou para os primeiros estudos espinosanos de Chaui, nos anos 60. Tudo já estava lá. Como já estava no mestrado Merleau-Pontyano, no debate sobre a democracia nos anos 70, na criação do PT em 80, etc. Mas agora, com a publicação do segundo volume da Nervura do Real, tudo isto ganha um sentido que não podia ser completamente transparente naqueles momentos. Trata-se de uma única Obra, que se confunde com a maneira de viver e de filosofar de Marilena, inseparáveis entre si e in – separáveis do pensamento de Espinosa.

Referências

CHAUI, Marilena (2016). A nervura do real II. Imanência e liberdade em Espinosa . São Paulo: Companhia das Letras.

Luís César Oliva – Professor Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Tessa Moura Lacerda – Professora Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Spinoza and Medieval Jewish Philosophy – NADLER (CE)

NADLER, Steven (Ed.). Spinoza and Medieval Jewish Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. Resenha de: DAVID, Antônio. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.35, Jul./Dez., 2016.

Vem em boa hora a coletânea de artigos editada pelo renomado historiador da filosofia Steven Nadler e publicada pela Cambridge University Press . Não porque se trate de empreendimento novo – e aqui convém reconhecer o mérito da historiografia da filosofia de língua inglesa, que tem se dedicado ao assunto com grande afinco. O próprio organizador, especialista em filósofos da chamada primeira época moderna, é autor de outros títulos dedicados à relação entre a filosofia judaica e Espinosa.

É exatamente o estatuto dessa relação que precisa ser examinado, razão pela qual Spinoza and Medieval Jewish Philosophy merece ser lido. Ainda que as respostas oferecidas no livro sejam questionáveis, é meritório o esforço em pensar sobre uma relação que, sob todos os ângulos, é tensa.

Espinosa pode ser considerado um “filósofo judeu”? Nadler é taxativo:

Não se pode negar que textos, história e pensamento judaicos continuam a cumprir um papel importante no pensamento de Espinosa – de tal forma que Espinosa pode com justiça ser considerado um filósofo judeu, seja porque suas ideias revelam um forte compromisso com a filosofia judaica que o precedeu, seja porque em suas principais obras ele filosofou sobre judaísmo (Nadler, 2014, p. 3-4).

Não obstante as duas razões oferecidas por Nadler procedam, elas não parecem ser suficientes para encerrar a questão. Aliás, a questão pouco nos interessa. Mais interessante e profícuo do que perguntar sobre a identidade judaica da filosofia de Espinosa – questão que nunca cessará de gerar polêmica, uma vez que envolve a identidade judaica do próprio Espinosa –, é perguntar sobre a maneira específica pela qual a filosofia deste autor lida com conceitos e ideias próprios da ou assimilados pela filosofia judaica e, consequentemente, do judaísmo, para forjar sua própria filosofia.

Nesse sentido, a coletânea traz uma grande contribuição. Ela ajuda a ampliar o escopo de interpretação da obra de um dos mais importantes nomes da filosofia, interpretação essa que tem sido bastante exitosa em estabelecer os laços que unem Espinosa à modernidade (são inúmeros os trabalhos que comparam Espinosa com Maquiavel, Hobbes, Descartes e Leibniz) e que já deu passos importantes no estabelecimento da crítica de Espinosa às tradições antigas e cristãs, tanto medievais como modernas1

Que Espinosa tenha debruçado-se sobre o judaísmo, não é novidade. Estabelecida no Tratado teológico-político, essa leitura contém teses e argumentos que lhe renderam severas acusações, em particular talvez a tese de que a natureza dos hebreus amparava-se pela piedade para com a própria pátria e no ódio para com outras nações (Spinosa, 1997, p. 371) . Poliakov, por exemplo, dirá que a obra de Espinosa expressaria um “anti- semitismo virulento” (Poliakov, 1996, p. 23) .

Em contrapartida, o forte compromisso para com a filosofia judaica é menos evidente à primeira vista, inclusive por estar como que disseminado na obra, presente não só naquelas passagens em que Espinosa examina práticas e história judaicas. É notório e belo o exemplo de uma das últimas proposições que fecham sua mais importante obra, e também a mais conhecida: “Disso inteligimos claramente em que coisa consiste nossa salvação ou felicidade ou Liberdade: no Amor constante e eterno a Deus, ou seja, no Amor de Deus aos homens. E não é sem razão que este Amor ou felicidade é chamado Glória nos códices Sagrados” (Espinosa, 2015, e v, p 37 . Esc.) 2 .

A obra de Espinosa está impregnada de filosofia judaica – o que não necessariamente significa estar ela impregnada de filosofia exclusivamente judaica, uma vez que, como dissemos anteriormente, os conceitos, teses e argumentos transitaram na rica interlocução entre diferentes tradições. Os autores foram felizes em expressar esse diálogo, sobretudo em se tratando de filósofos judeus e árabes, com especial destaque para os excelentes artigos de Charles Manekin e Julie R. Klein.

O livro possui muitos méritos, dos quais o maior mérito reside no exame dos conceitos e sua “passagem” entre Espinosa e seus interlocutores judeus. Só pela enorme quantidade de citações da Ética demonstra-se que a presença do judaísmo em Espinosa transborda e muito o escopo do Tratado teológico-político, chegando ao núcleo de sua filosofia.

Vemos dois pontos francos no resultado final da proposta, sendo um na coletânea e outro nos artigos. A coletânea concentrou-se demasiadamente, quase exclusivamente, na recepção de determinados filósofos na obra de Espinosa, como Gersonides, Crescas e, com especial ênfase, Maimônides – o que é reconhecido pelo organizador, na Introdução. Com isso, ela deixou de lado dois campos de interlocução extremamente importantes para a compreensão da obra de Espinosa: de um lado, seus contemporâneos na comunidade de Amsterdam; de outro, as tradições místicas judaicas.

Em relação aos artigos, a despeito de seu mérito, percebemos certa inclinação nos autores em procurar estabelecer débitos demasiado diretos e mecânicos de Espinosa para com este ou aquele filósofo. Jacob Adler, por exemplo, após constatar a similaridade entre certa tese de Espinosa e Alexandre de Afrodísias, conclui: “tal pormenor fornece a mais forte evidência de que Espinosa estava seguindo Alexandre” (ibidem, p. 25) . T. M. Rudavsky, por sua vez, argumenta que Espinosa “segue a sugestão de Ibn Ezra’s de que Moisés não teria escrito toda a Torá” (ibidem, p. 86). Já Warren Zev Harvey, numa controversa interpretação de Espinosa, conclui: “ao atribuir alegria e amor intelectual a Deus, Espinosa faz companhia a Maimônides, e segue Avicena e Gersonides”. Na sequência, este mesmo autor afirma: “ao sustentar que o autoconhecimento de Deus implica em Seu conhecimento de todas as coisas, Espinosa segue a interpretação de Aristóteles do Timeu, presente em Metafísica, XII 7 e 9” (ibidem, p. 114 – 115). Fiquemos nestes três exemplos.

Em certo sentido, todo filósofo segue outros que o precederam. Mas este é um sentido fraco, que designa apenas e tão somente o fato de haver interlocução entre os filósofos. Os autores, no entanto, procuraram muitas vezes estabelecer laços fortes entre Espinosa e seus interlocutores, como se certo conceito, certa tese ou certo argumento presente na obra de Espinosa já figurasse nesse ou naquele autor. Ao proceder dessa forma, o intérprete corre o risco de perder de vista o sentido da presença do conceito, da tese ou do argumento no interior da obra daquele que a recebeu. Ao se estabelecer recepções e linhagens, há que se tomar cuidado.

Quanto a isso, estamos de acordo com Nadler, quando este afirma que a filosofia de  Espinosa “assimila, transforma e subverte um projeto antigo e religioso” (ibidem, p.2). A este projeto, acrescentaríamos outras tradições e correntes, como a filosofia de Aristóteles, o estoicismo e as filosofias de Hobbes e Descartes. Espinosa segue Gersonides, Maimônides, Crescas e outros, tanto quanto Hobbes, Descartes e Maquiavel, mas sob o preço de subvertê-los.

A despeito destes dois pontos, ressaltamos que o conjunto da coletânea compreende artigos escritos com rigor e erudição. Esperamos que sua publicação encoraje os espinosistas fora do mundo anglófono a engajar-se mais no estudo da presença da filosofia judaica em Espinosa.

Notas

1 A coletânea contém dez artigos. Para um resumo de cada um dos artigos, cf. Nadler, 2014, p.8-12.

2 Essa passagem foi abordada na coletânea por Warren Zev Harvey (Nadler, 2014, p.115), Kenneth Seeskin (Ibidem, p.122) e Julie R. Klein (Ibidem, p.210).

Referências

NADLER, s. (Ed.) (2014), Spinoza and Medieval Jewish Philosophy, Cambridge: Cambridge University Press.

POLIAKOV, l . (1996) De Maomé aos Marranos. História do Anti-semitismo II, São Paulo: Perspectiva.

SPINOSA, b . (1997) Tratado teológico-político, Barcelona: Altaya.

ESPINOSA, b . (2015) Ética, São Paulo: Edusp, 2015.

Antônio David – Doutorando Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Hobbes on legal authority and political obligation – VENEZIA (CE)

VENEZIA, Luciano. Hobbes on legal authority and political obligation., 2015. Resenha de: HIRATA, Celi. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.34, Jan./Jun. 2016

Em seu livro, publicado no ano passado, Luciano Venezia pretende fundamentar uma leitura deontológica da obrigação política em Hobbes. Trata-se de um comentário que se opõe à leitura mais difundida, leitura segundo a qual o principal traço da lei seria a coerção, de forma que os súditos seriam obrigados a obedecer à lei porque o seu cumprimento constituiria a melhor maneira de promover os seus interesses e não porque a lei obrigaria por si mesma. Venezia, em contraste, pretende argumentar que os súditos estão moralmente obrigados a obedecer à lei na medida em que as promessas e contratos possuem a força de obrigar por si mesmas, independentemente dos interesses do agente, sendo que há casos nos quais a ordem legal requer que os súditos ajam de um modo diferente do que o interesse racional ordenaria. A marca característica da lei seria, pois, a autoridade e não a coerção. Para o autor, o que está em questão é a defensabilidade mesma da teoria política de Hobbes, na medida em que uma interpretação que enfoca no caráter coercitivo da lei e no interesse próprio comprometeriam a relevância teorética de sua filosofia política e legal pelas seguintes razões: em primeiro lugar, porque teorias que fazem da coerção a característica fundamental da lei não são hodiernamente populares; em segundo, como H. Hart argumenta, a teoria hobbesiana da lei, de acordo com essa interpretação predominante, não daria conta de uma certa variedade de leis — como aquelas que conferem poderes ao invés de imporem obrigações — bem como da persistência das leis ao longo de diferentes gerações de legisladores; por fim, como S. Shapiro defende, um regime no qual as sanções de não-cumprimento constituíssem a única razão para a obediência seria logicamente impossível pela simples razão de que há um limite para as ameaças e sanções.

A interpretação de Venezia é fundamentada em três sub-teses, como o próprio autor formula nas considerações finais: em primeiro lugar, Venezia defende que as diretivas legais introduzem razões autorizadas para a ação, que, como tais, excluem e tomam o lugar de outros tipos de razão, como as razões de teor prudencial; em segundo, o autor argumenta que os súditos são moralmente obrigados a obedecer a quase tudo que é ordenado pelo soberano, mesmo quando o cumprimento da ordem é desvantajoso para a sua autoconservação; em terceiro, Venezia sustenta que a teoria contratual de Hobbes fundamenta as obrigações políticas de modo independente dos estados motivacionais dos súditos, sendo que as suas obrigações podem ir para além da promoção de seus interesses racionais.

Quanto ao primeiro ponto, Venezia argumenta que a noção de autoridade ocupa um lugar de destaque na filosofia legal e política de Hobbes e que ela se distingue normativamente de outras razões que influenciam o comportamento humano, como a persuasão e o poder: enquanto as diretivas coercitivas influenciam as ações pelo seu conteúdo (na medida em que um agente as segue para evitar um mal maior ou alcançar um bem maior), as diretivas autorizadas influenciam o raciocínio prático pela sua origem, sendo que um agente a segue porque uma pessoa ou instituição exige que ele aja assim, independentemente de seu conteúdo, mesmo quando o agente não acredita que o seu cumprimento seja vantajoso (incluindo no cálculo as sanções que podem advir de seu não-cumprimento). A distinção que está na base dessa diferenciação é aquela que Hobbes realiza no capítulo XXVI do Leviatã entre conselhos (counsels) e ordens (commands): enquanto os primeiros fornecem uma razão para agir em virtude de seu conteúdo, as segundas o fornecem em função de sua origem. A lei, na medida em que motiva a ação pela sua origem, tem, segundo Venezia, o propósito de interromper a deliberação prática e fornecer a razão relevante para a obediência. É nesse sentido que Hobbes de fi ne nos Elementos da Lei que uma ordem é uma lei quando “a ordem é uma razão suficiente para mover a ação” (EL, XIII, 6). É também nesse sentido que a sentença do árbitro exclui e substitui a avaliação pessoal, tornando-se a razão definitiva para agir. Sendo assim, as sanções pelo não-cumprimento não desempenham um papel central na concepção hobbesiana da lei, mas são apenas coadjuvantes. Venezia opõe-se, assim, à leitura analítica predominante sobre a obrigação, leituras como as de D. Gauthier, G. Kavka, J. Hampton, K. Hoekstra, que sustentam que o papel do soberano consiste em resolver o dilema do prisioneiro, superando a in fluência das paixões e aliando o interesse privado com o interesse comum por meio das sanções.

O argumento de que as leis seriam um tipo diferente de razão por meio da distinção entre ordens e conselhos, entre motivação pela origem e motivação pelo conteúdo é bastante convincente. Entretanto, fica a questão de se seria possível algo assim como interromper a deliberação para Hobbes. A alternância das imagens das consequências boas ou más de uma dada ação na mente ou dos apetites e aversões parece ser descrito por Hobbes como um processo universal, que se dá em todos os corpos animados. Este argumento deveria, pois, ser fundamentado não apenas na natureza da lei, isto é, no terreno político e legal, mas também no terreno antropológico.

Outro argumento que Venezia apresenta para defender que as sanções não são centrais na filosofia legal de Hobbes é que mesmo agentes que, por suposição, fossem perfeitamente racionais e morais, precisariam de autoridade para regular as suas ações, mesmo na ausência de sanções. A guerra no estado de natureza se daria, segundo a interpretação de Venezia, porque os homens discordam em suas interpretações particulares do que é válido ou razoável, isto é, devido à ausência de padrões do que é bom ou ruim e das ações que devem ser realizadas. A explicação do conflito não seria moral ou psicológica, mas residiria na falta de definições autorizadas de noções morais. Essa explicação do conflito abre espaço para uma filosofia política e legal que enfatiza a autoridade como o traço característico da lei. Embora toda lei envolva penalidade e as sanções sejam uma parte constitutiva da lei, trata-se mais de uma questão empírica do que conceitual, sendo que a ordem do soberano fornece por si mesma a razão para agir e as sanções introduzem apenas uma razão adicional para o cumprimento da lei, minimizando o risco de abuso e não-cumprimento. A coerção não seria, deste modo, indispensável na regulação das leis.

A despeito de centralizar na noção de autoridade, afirmando que é ela que caracteriza a lei e não a coerção, o autor não analisa a noção de autorização e de representação tal qual Hobbes a apresenta no Leviatã. A justificativa que ele indica é dupla: em primeiro lugar, o autor alega que a autorização não acrescenta nada de significativo para a obrigação contratual de obediência às diretivas do soberano; em segundo, ele afirma, seguindo nisto o comentário de P. Martinich, que a fundamentação da obediência na autorização e na alienação do direito natural são incompatíveis, na medida em que, quando uma pessoa autoriza uma outra, esta última apenas a representa, de modo que a primeira possui autoridade e permanece superior em relação à segunda, em contraste com a alienação. Ora, seria importante mostrar isso de forma mais fundamentada, já que não é essa a consequência que Hobbes parece extrair do ato de autorização. Uma vez que a noção de autoridade é central para a argumentação de Venezia, seria preciso, parece-nos, dar mais atenção a essa noção tal como ela é apresentada no texto de Hobbes.

Quanto ao segundo ponto, Venezia argumenta que se a tese de que a obediência se fundamenta no auto-interesse dos súditos fosse correta, os agentes poderiam legitimamente desobedecer à lei quando ela não o promovesse, o que não é afirmado por Hobbes. Pelo contrário, a desvantagem da obediência da lei não legitima a desobediência. A desobediência em relação às leis só é justificada nos casos nos quais os súditos não se obrigaram a obedecer ou a não resistir. Deste modo, mesmo a liberdade para desobedecer é normativa, segundo Venezia.

Além disso, a teoria de Hobbes introduziria, segundo Venezia, as duas notas características das razões morais, tais como elas são descritas contemporaneamente por Stephen Everson. Segundo este, as razões morais são aquelas que, em primeiro lugar, motivam o agente a agir pelo interesse de outro além do interesse próprio e que, em segundo, são categóricas, sendo que a sua força normativa não depende das motivações do agente. Ora, Venezia argumenta que Hobbes introduz a análise de determinadas paixões, como piedade, caridade, benevolência, etc., pelas quais os homens podem ser motivados apenas pela ideia de promoverem o interesse de outros. Quanto ao segundo ponto, o comentador argumenta que, a partir da definição hobbesiana de justiça, os homens justos não são motivados pelo benefício próprio, mas exclusivamente por considerações morais, sendo que aquele que cumpre a lei não pela lei, mas pelo medo da sanção, é injusto (Do Cidadão, IV, 21). Ora, a partir do parágrafo referido, no qual Hobbes afirma que a lei de natureza compete à consciência, não se pode fundamentar a tese de que essas leis sejam imperativos categóricos, e consequentemente razões morais no sentido descrito por Everson. No Leviatã, Hobbes, pela contraposição entre foro interno e foro externo, afirma que a obrigação em consciência das leis de natureza só obrigam de fato quando há segurança no seu cumprimento. Ou seja, trata-se de um imperativo hipotético e não categórico, já que a obrigação se fundamenta na obtenção da paz e vale apenas com a condição de que os outros a cumpram 1 .  Elas tornam impositivo o desejo de as colocar em prática, mas nem sempre obrigam porque dependem de circunstâncias exteriores ao agente. Há, neste ponto, uma grande distância entre a filosofia de Hobbes e aquela de Kant. A perspectiva acaba sendo até mesmo inversa: para Hobbes, aquele que agisse incondicionalmente de acordo com as leis de natureza, aplicando- as mesmo na ausência de garantias de que os outros a cumprissem, agiria contrariamente ao fundamento mesmo das leis de natureza, invalidando a sua aplicação futura.

Enfim, quanto ao terceiro ponto, Venezia sustenta que Hobbes analisa as obrigações contratuais numa maneira deontológica, na medida em que depois de renunciar pelo contrato à parte de seus direitos naturais, os agentes adquirem obrigações que são independentes de seus estados motivacionais contingentes. A obrigação tem como fundamento

a promessa, sendo que a penalidade constitui uma motivação meramente adicional. Nesse sentido, a razão para contrair a obrigação distingue-se da razão para cumpri-la: enquanto a primeira é prudencial, baseada no auto-interesse, a segunda não o é. A obrigação política não se fundamenta na possibilidade de sanções em caso de não cumprimento, mas em atos voluntários que expressam consentimento.

Por fim, Venezia critica esse fundamento mesmo da obrigação política em Hobbes, a saber, a tese de que as ações realizadas sob coerção são completamente voluntárias. O comentador argumenta que as ações cometidas sob coerção não são voluntárias porque as condições sob as quais os agentes coagidos fazem as suas escolhas não refletem a sua vontade real, considerando-se a afirmação de Hobbes de que “o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos” (Leviatã, XIV, p. 115). Os agentes não realizariam as ações em questão se elas tivessem oportunidade de agir de outro modo, sendo que a escolha em questão não expressa o arbítrio próprio do agente, mas a escolha é de outro, que deliberadamente reduz as opções possíveis. As suas decisões não refletiriam a sua verdadeira vontade, mas eles seriam o mero instrumento de outros agentes. Ora, tal crítica se opõe à definição mesma de voluntaridade em Hobbes, definição segundo a qual é voluntário todo ato que provém da vontade, a qual consiste, por sua vez, no último momento da deliberação do qual se segue imediatamente a ação, independentemente de como e em quais circunstâncias foi determinada. É justamente nesse sentido que Hobbes reavalia o exemplo de ação dado por Aristóteles na Ética a Nicômaco, a saber, a de um capitão que joga a carga de sua embarcação no mar pelo medo de seu navio afundar, exemplo que é mencionado por Venezia. Enquanto para o estagirita essa ação constitui o exemplo de uma ação mista, nem voluntária e nem contra-voluntária, visto que a ação não seria desejada por si mesma, ainda que o princípio da ação resida no agente, para Hobbes se trata de uma ação perfeitamente voluntária porque procedente da vontade. Essa redefinição e simplificação do que é a vontade e do que é voluntário é absolutamente central na filosofia hobbesiana. Afirmar, pois, que o que Hobbes de fi ne como voluntário nem sempre o é, na medida em que as ações realizadas sob coação não seriam desejadas em si mesmas, é rejeitar a definição de Hobbes e endossar o que o autor já refutara. Mas como o próprio Hobbes defende, se a definição é compreendida e não admitida, a controvérsia se encerra (De Corpore, VI, § 1 5) .

Por fim, nas considerações finais, Venezia dirige críticas a diversos pontos da filosofia política de Hobbes. Em primeiro lugar, Hobbes erraria no ponto de partida de sua teoria política ao colocar o desacordo humano e a guerra civil no mesmo patamar, ponto de partida que resultaria numa teoria política extremamente autoritária. Os filósofos políticos contemporâneos, como J. Rawls, mostraram que o conflito e a diversidade de opiniões são constitutivas das sociedades democráticas. Outro ponto a ser criticado, tal como Hume já o fizera, é que apenas um número muito limitado de súditos obrigaram-se, tanto pelo consentimento tácito como explícito, a obedecer à lei. Além disso, Venezia critica o fato de que o direito do soberano de governar não é apenas o resultado da transferência dos direitos pelos súditos, mas está fundamentado em seu direito natural, o que seria inapropriado, pois deste modo não se distinguiria o soberano enquanto um indivíduo privado e enquanto portador de um cargo oficial. Por fim, além daquela crítica concernente à voluntariedade das ações feitas sob coação, Venezia endossa a crítica dos filósofos liberais, notadamente, J. Locke, de que não se pode ter obrigações políticas em relação a um governo absoluto por não possuirmos o direito de nos escravizar. À exceção da segunda crítica, que diz respeito ao número dos que pactuaram e que parece ter validade mesmo pressupondo a filosofia hobbesiana, as demais críticas são exteriores à filosofia de Hobbes e só podem ser realizadas a partir de pressupostos completamente estranhos ao filósofo. Se, por um lado, é louvável o esforço de trazer a filosofia de Hobbes para os debates contemporâneos, por outro, medi-lo a partir dos parâmetros da filosofia política atual faz o seu sistema filosófico perder o seu sentido.

De toda forma, o livro de Luciano Venezia constitui uma contribuição importante para os estudos da filosofia hobbesiana, uma vez que apresenta bons argumentos em favor de uma leitura diferente daquela predominante sobre a obrigação política, a natureza da lei e do contrato na filosofia de Hobbes, além de ser extremamente claro e objetivo. O que nesta resenha se apresentou como sendo problemático decorre em grande medida da discrepância entre dois métodos e tradições de interpretação distintos, a saber, entre o método estrutural de leitura e o método analítico, que é o método adotado pelo autor do livro.

Nota

1 “(…) Aquele que fosse modesto e tratável, e cumprisse todas as suas promessas numa é poca e lugar em que ninguém mais assim fizesse, torna-se-ia presa fácil para os outros, e inevitavelmente provocaria a sua própria ruína, contrariamente ao fundamento de todas as leis de natureza, que tendem para a preservação da natureza ” (Hobbes, 2014, p. 136).

Referência

HOBBES, Thomas. (2 0 1 4). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes.

Celi Hirata – Professora Universidade Federal de São Carlos. E-mail: [email protected]

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Albert Camus, de la transfiguration – pour une expérimentation vitale de l’immanence – BOVE (CE)

BOVE, Laurent. Albert Camus, de la transfiguration – pour une expérimentation vitale de l’immanence, 2014. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.33, Jul./Dez., 2015

Publicado em 2014, “Albert Camus, de la transfiguration”, constitui, ao lado de “Vauvenargues ou le séditieux”, de 2010, mais um esforço realizado por Laurent Bove no sentido de valorizar o tema pascaliano da “segunda natureza” através de um ponto de vista espinosista. Por aí se vê que Bove é consequente ao se distanciar tanto do tema da “filosofia do absurdo”, reiteradas vezes associada à obra de Camus pela interpretação hegemônica que dele se faz, quanto da imagem de um moralista, associada a Camus através de Sartre. Ainda que Bove percorra grande parte da obra Camus, podemos afirmar sem grandes embaraços que os personagens merecedores de maior consideração são Meursault e o Cristo das pinturas de Piero della Francesca, tal como descrito nas Noces 1. Através da identificação do tema de uma filosofia do corpo, Bove sustenta que Camus prepara, nas suas primeiras obras, notadamente em O estrangeiro e nas Noces, a questão da transfiguração, a qual será pos – teriormente desdobrada nos seus aspectos políticos e históricos, em O homem revoltado, por aí se articulam as duas partes da obra de Bove 2.

Camus não pode, portanto, segundo a análise de Bove, ser com – pletamente identificado ao tema do absurdo, desenvolvido em O mito de Sísifo, nem à saída moralista dele derivada. Em 1960, logo após a morte de Camus, Sartre escreve um artigo a respeito do autor de O estrangeiro : “Camus representava neste século, e contra a História, o herdeiro atual desta longa linhagem de moralistas cujas obras constituem possivelmente aquilo que de mais original existe nas letras francesas. Seu humanismo empedernido, estreito e puro, austero e sensual, travava um combate duvidoso contra os eventos massivos e disformes deste tempo. Mas, inversamente, pela tenacidade de sua recusa, ele reafirmava, no coração da nossa época, contra os maquiavelianos, contra o bezerro de ouro do realismo, a existência do fato moral” (sartre, 1964, p. 127). No lugar de articular o absurdo à revolta, como a interpretação de Sartre sugere, Bove procura mostrar a articulação entre o pensamento da imanência, aquiescente ao mundo, com a revolta. Por essa via, a revolta não aparece como efeito de um fato moral, como se fosse algo de externo à aquiescência ao mundo de que se trata, e o mundo mesmo procede em cada indivíduo pela determinação dos problemas e dos casos necessários de solução 3 . Nesse sentido, a revolta é tanto um fato interno à ordem do comum, tanto um fato do mundo quanto um fato da comunidade humana – em nenhum caso ela é um fato externo ao comum.

O conceito de transfiguração aparece logo na introdução da obra de Bove, onde ele é imediatamente remetido a certa potência de ruptura vis-à-vis as diversas formas de niilismo impostas pela transcendência da História, potência esta que é indissociável da própria afirmação do plano imanente do agir (p. 15). Mas, uma vez que o conceito de transfiguração é articulado por Bove à imagem de Cristo, notadamente tal como este aparece nos quadros de Piero della Francesca, cabe a referência à ocorrência deste termo no texto bíblico. O termo aparece no Evangelho, onde é relatada a transfiguração de Cristo, no alto de um monte, diante de Pedro, João e Tiago: “e foi transfigurado diante deles; o seu rosto resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz” (Mt 17:2) 4 . Este episódio deve, todavia, ser compreendido em associação com a ressurreição de Cristo, pois, após a transfiguração, Mateus relata que “descendo eles [Pedro, João e Tiago] do monte, Jesus lhes ordenou, dizendo: a ninguém conteis a visão, até que o Filho do homem seja ressuscitado dentre os mortos’” (Mt. 17: 9). Se bem que o tema da transfiguração – e o da ressurreição a ele associado – se apresente numa perspectiva transcendente, é possível valorizar, por detrás da questão teológica, a descrição de uma mutação radical que se exprime na sua corporeidade essencial; é precisamente esta corporeidade, o aspecto sensual da filosofia de Camus, que nos permite perceber a centralidade da referência a Piero della Francesca, numa espécie de revalorização da “segunda natureza” pascaliana, não como signo de decaimento, mas como espaço de expressão e desenvolvimento da humanidade.

Lida sob o signo da imanência, a transfiguração envolve uma ontologia da potência enquanto “atividade superabundante”; expressão através da qual Bove evoca o estudo das filosofias neoplatônicas realizado por Camus quando da redação da sua monografia na universidade de Argel 5 . Submetido a uma lógica imanentista, o elemento neoplatônico deve ser interpretado à luz de um “excesso de presença”, que fratura o ser a partir da sua própria potência. Nesse sentido, cabe-nos a referência a esta fórmula de Camus, extraída por Bove de L’homme revolté : “a revolta […] fratura o ser e o ajuda a transbordar. Ela libera ondas que, estagnadas, tornam-se furiosas” (p. 117). A transfiguração designa um processo imanente de afirmação do real, o qual não pode ser compreendido sob o signo da identidade, pois a ênfase recai, antes, sobre a produção de uma diferença radical interna à segunda natureza, sem qualquer recurso à transcendência.

Ao mesmo tempo, a passagem da filosofia do corpo, tal como tematizada na primeira parte do livro de Bove, à resistência, tal como. analisada na segunda parte, não deve ser compreendida como análoga à transição clássica entre passividade e atividade, ou entre pura aquiescência (“sim”) e puro dissentimento (“não”). Muito embora a abertura de Meursault ao mundo seja indicativa da sua passividade, Bove enfatiza de que modo esta passividade é índice mesmo da potência de Meursault. Em Meursault, a passividade é virtude (p. 46). E é virtude porque ela envolve também atividade . A concepção do agir encontrada por Bove em Camus não pode ser compreendida à luz do niilismo do “individua – lismo possessivo” 6, mas remete, pelo contrário, à mesma ontologia dinâmica que ele já havia encontrado em Vauvenargues, o qual “identifica o ser com a potência, a potência, com a ação, e sustenta uma necessidade imanente de produtividade da natureza, produtividade que se dá, especialmente em e pelo homem” (bove, 2015, p. 2) 7 . Da filosofia do corpo à revolta, o que se vê é o esquadrinhamento de uma mesma ontologia dinâmica com fortes acentos vauvenargueanos, a qual, analisada na sua corporeidade essencial na primeira parte da obra, passa a ser investigada em articulação com elementos histórico-políticos na segunda parte do livro de Bove.

Embora Bove não o diga diretamente, podemos deduzir da sua interpretação de Camus, uma estrutura organizada em torno de dois conceitos: forma e figura, de onde resultam duas estratégias ético-políticas (e filosóficas), quais sejam, a transformação e a transfiguração. A figura remete a uma “concepção do agir de singulares inter-dependentes inscritos sobre um plano de imanência da potência comum da vida” (p. 156), é o corolário mesmo de um pensamento da medida, o qual é “suscitado pelo conhecimento desta inter-dependência ontológica que impõe suas exigências imanentes e a dinâmica afirmativa dos seus equilíbrios, dos seus conflitos e dos seus ritmos profundos” (p. 141). A forma, por sua vez, pode ser conectada a “uma deriva dialética do pensamento da identidade dos contrários e da sua superação (a Aufhebung hegeliana) numa síntese totalizadora” (p. 141). É, pois, sob a lógica da forma que os homens são erigidos em “sujeitos”.

Eis que o binômio forma/figura nos conduz, na obra de Bove, a uma das máximas de Vauvenargues: “nada existe em si ou à parte” (Máxima 201), e à filosofia do corpo que dela se deduz. Semelhante filosofia impõe o desafio de criação de uma vida propriamente humana, em comunicação com o mundo, bem como com os demais corpos humanos. O mundo humano somente se realiza por meio de uma aquiescência à presença imanente dos corpos, que constitui a base de uma nova socialidade constitutiva do comum. Nesse sentido, a valorização do quadro de Piero della Francesca A ressureição, representa a própria transfiguração do niilismo e da História moderna. Ao mesmo tempo, sob a ideia de figura, percebemos uma rejeição análoga da ideologia da gênese com forte acento althusserianos. Com efeito, em sua correspondência com Diatkine, Althusser rechaça os conceitos de origem e gênese, considerando a ambos como conceitos transcendentes. Althusser sustenta, nesse senti – do, que, de acordo com a ideologia da gênese, as mudanças são sempre apreendidas à luz de uma substância imutável, na forma de acidentes que se desenvolvem a partir de uma origem, na qual este desenvolvimento já se encontrava, de algum modo, pressuposto, isto é, de algum modo, já existente (althusser, 1993, p. 56) .

Através de Camus, Bove conecta a figura ao “desejo sem objeto”, que extrai o homem de uma humanidade agitada pela esperança e permanentemente aprisionada por objetos. Trata-se, então, de um abandono, de uma passividade desinteressada, mas é pela via do seu próprio desinteresse que este abandono ultrapassa os limites da passividade ordinária, constituindo, na verdade, o corolário mesmo de uma ontologia dinâmica, tal como mencionamos acima. Nesse sentido, o “desejo sem objeto” constitui o contrário da lógica da eficácia, um processo plenamente afirmativo, irredutível quer à finalidade quer à falta. À figura pertence o tempo próprio ao desejo sem objeto (nem origem nem fim), o tempo da res gestae, no seu antagonismo à História, a Historia rerum gestarum, que atribui objetos ao desejo, e, dessa forma, impõe um telos ao tempo. A abertura ao tempo do desejo sem objeto é constitui uma subversão radical da História e, ao mesmo tempo, funda a possibilidade de uma história antropológica, isto é, de uma antropogênese. O tempo deixa de ser uma realidade imposta, correlato a uma natureza estagnada sob uma forma, mas passa a ser efetivamente vivido, o que permite a concepção de uma natureza humana enquanto algo permanentemente em construção, num processo que se nutre da tensão com o desejo sem objeto.

A revolta, enquanto corolário do paradigma da figura, implica não a realização da lógica niilista de uma indignação concebida segundo a imagem do “individualismo possessivo”, mas, antes, a constituição e, ao mesmo tempo, a pressuposição, da comunidade humana imanente, que destrói todas as formas, isto é, todas as ilusões que lhe impõem uma ideologia totalitária. Bove toma o cuidado de mostrar que a revolta não deve ser concebida à luz da negação da negação; pelo contrário, a revolta associada à presença do corpo, constitui o único fundamento verdadeiro da comunidade humana. A revolta se dirige contra a transformação dos homens em sujeitos, contra a submissão do desejo a objetos, contra a imposição de um telos ao tempo. Mas todo dissenso inerente à revolta decorre do fato de que ela exprime uma ontologia dinâmica. Em Camus, Bove enxerga mais um ponto por onde ele emaranha um estranho fio que, passando por Espinosa, enlaçara Vauvenargues, após passar por Pascal. No final das contas, ao valorizar as afinidades de Camus com Vauvenargues, este “moralista” do começo do século XVIII, parece que, então, as palavras de Sartre a respeito de Camus poderiam ser verdadeiras. Mas, após tudo o que vimos, é preciso reconhecer que se trataria de uma estranha moral, de uma moral imanente ao corpo, uma moral que é ela mesma transfigurada em ética. Eis, então, que a referência a Vauvenargues talvez tenha como efeito reverso, lida diante dos ecos de Sartre, tencionar vivamente esta estranha categoria das letras e do espírito franceses, isto é, os moralistas.

Notas

1 Noces (Núpcias) é um conjunto de quatro ensaios escritos por Camus entre 1936 e 1937 com caráter biográfico. A obra de Piero della Francesca é analisada por Camus no ensaio O deserto, onde o autor conta suas impressões a respeito da viagem que fez pela Toscana.

2 A primeira parte se intitula “Meursault au cœur du monde: corps puissant/corps christique”, e a segunda parte, «La transfiguration libertaire : le temps de la résistance et l’Histoire».

3 O leitor encontrará em La stratégie du conatus : affirmation et résistance chez Spinoza, a chave para compreensão desta questão. Remetemos o leitor à seguinte formulação: “(…) contrariamente à ilusão da consciência, os problemas não se põem por si mesmos e nem nascem, propriamente falando, do obstáculo com o qual costumeiramente se confundem. O problema não é um “dado” encontrado na experiência. É um produto da potência mesma de afirmação de um ser qualquer (indivíduo ou sociedade) na sua articulação dinâmica complexa ao real. O corpo é capaz e simultaneamente a ideia desta afecção, pela qual esse corpo é afirmado e o problema, posto. É então na natureza mesma da afirmação – que, compreendida necessariamente num complexo de relações de forças, é também a atividade constitutiva de uma resistência –, de problematizar o real, isto é, de constituí-lo como problema e, num mesmo gesto, de produzir o caso de solução correspondente a esta posição. Tal é o movimento real do real numa afirmação singular, ou a dinâmica estratégica e hermenêutica do conatus ” (Bove, 1996, p. 308).

4 Além do Evangelho de Mateus, encontramos a descrição do mesmo episódio em Marcos (Mc 9:2) e Lucas (Lc 9:29).

5  Este texto, escrito em 1936, foi publicado sob o título Métaphysique chrétienne et néoplatonisme nos dois volumes da Pléiade dedicados a suas obras completas.

6  A referência, sem dúvida, é a obra de MacPherson: “A teoria política do individualismo possessivo”.

7 Cabe, aqui, uma referência a Vauvenargues: “o fogo, o ar, o espírito, a luz, tudo vive pela ação; daí a comunicação e a aliança de todos os seres; daí a unidade e a harmonia no universo” (Máxima 198).

Referências

ALTHUSSER, l . (1993) “Lettre à D… (nº 2)». In:______. Écrits sur la psychanalyse. Paris: Stock/IMEC, 1993.

BOVE, l . (1996) La stratégie du conatus – Affirmation et résistance chez Spinoza. Paris: Vrin, 1996.

BOVE, l . (2015). Vauvenargues ou le séditieux – Entre Pascal et Spinoza. Une philosophie pour la seconde nature . Paris: Honoré Champion, 2015.

SARTRE, j.-p. (1964) “Albert Camus”. In: Situations IV, Paris: Gallimard, 1964.

Bernardo Bianchi – Doutorando, Université Paris 1- Panthéon Sorbonne, Paris, França. E-mail: [email protected]

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Le Travail de l’œuvre Machiavel – LEFORT (CE)

LEFORT, Claude. Le Travail de l’œuvre Machiavel. Paris: Gallimard, 1972. Resenha de: RAMOS, Silvana de Souza. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.32, Jan./Jun., 2015.

A leitura feita por Claude Lefort da obra de Nicolau Maquiavel – publicada em Le Travail de l’œuvre Machiavel – abre uma direção inédita de interpretação ao trazer para o primeiro plano de análise o campo de pensamento instaurado pelo autor de textos clássicos da filosofia política, tais como os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e o famoso livro de aconselhamento dedicado a Lorenzo de Médici, O Príncipe . A ideia de obra é central para Lefort: trata-se de compreender que o pensamento de Maquiavel institui um horizonte de reflexão sobre o político, de forma que a compreensão deste pensamento exige que nos reportemos ao trabalho crítico despertado por ele, uma vez que a obra não se encerra sobre si mesma. Noutros termos, Lefort pretende mostrar que as diferentes interpretações de Maquiavel estão vinculadas ao campo de questão aberto pela obra, de modo que aquelas aparecem como desdobramentos desta. Por isso, Lefort investiga esse campo onde o trabalho da obra se faz e se refaz no intuito de nos colocar em contato com o imenso volume de reflexões que reverberam a presença da obra maquiaveliana no pensamento e na experiência política moderna.

Isso não o impede, porém, de arriscar uma interpretação original, fruto do enfrentamento do próprio texto de Maquiavel e do contexto em que este se inscreve. Neste ponto, a contribuição crítica da leitura empreendida por Lefort pode ser medida por diversos fatores. Em primeiro lugar, destaca-se a análise do poder enquanto fenômeno. Trata-se de mostrar que, para além da discussão sobre a moralidade ou a imoralidade das ações do príncipe, Maquiavel foi capaz de compreender, contra os humanistas de seu tempo, que a política se desenrola no campo das aparências e que, por consequência, o sentido dessas ações desenha a figura do príncipe e a possível aprovação deste por parte dos que estão sob o seu poder. Noutros termos, o ser do príncipe é exterior – é o resultado do sentido que suas ações ganham na relação deste com os governados. Logo, não há por que julgar o príncipe segundo valores morais absolutos já que a manutenção do poder depende da virtù do governante para lidar com a rede de significações que delineiam sua própria figura segundo as circunstâncias impostas pela fortuna .

Em segundo lugar, trata-se, ainda de acordo com a leitura de Lefort, de mostrar que toda cidade é atravessada pelo conflito entre os grandes, ou os que desejam dominar, e o povo, isto é, os que desejam não ser dominados. Quer dizer, podemos ler Maquiavel como um pensador da liberdade ligada ao funcionamento do desejo no interior do campo político, pois a liberdade de todos depende da força do desejo de não dominação para resistir à investida dos grandes. Ora, ao atribuir aos grandes um desejo insaciável de dominação, Maquiavel dissolve a associação entre nobreza e moderação, feita por aqueles que argumentavam em favor do governo aristocrático e por isso sustentavam a ideia de que quem tem mais se contenta com aquilo que tem, ao passo que o povo seria incapaz de moderação. Entra em jogo aqui não apenas o questionamento das virtudes atribuídas à nobreza, mas também a rejeição da representação tradicional do povo, cujo comportamento volúvel e anárquico seria determinado principalmente pelo desejo de prazer – o que o tornaria fonte de tumulto na cidade –, para apresentá-lo como o verdadeiro promotor de leis aptas a salvaguardar a liberdade republicana. Assim, ciente da divisão entre os dois humores que atravessam a cidade, o governo equilibrado não deverá contar com a pretensa virtude e sabedoria dos nobres, mas sim com o contrapeso institucionalizado que ao desejo de dominação dos grandes opõe o desejo de liberdade do povo. Nestes termos, Lefort oferece uma resposta fecunda a um dos principais problemas que cercam a obra de Maquiavel. Afinal, como compatibilizar a figura paradoxal do autor florentino (de um lado, confesso amante da liberdade republicana e, de outro, conselheiro de um tirano)? De acordo com a perspectiva lefortiana, essas duas faces encontram um ponto de convergência quando compreendemos que para Maquiavel o desejo de não ser dominado ou oprimido – desejo negativo, que não pode de fato ocupar o poder – é, na verdade, um impulso para a liberdade, tanto nos principados quanto nas repúblicas. Tal desejo abre campo, nos principados, à busca por uma vida segura sob a proteção de um príncipe cuja figura não comporte a feição de um déspota ou de um tirano, e, nas repúblicas, à busca pelo bom ordenamento de leis com vistas à guarda da liberdade de todos.

Em terceiro lugar, a interpretação de Lefort permite a incorporação da obra de Maquiavel à reflexão sobre a democracia. Seguindo, neste ponto, os passos dados anteriormente por Espinosa, um dos raros autores a buscar em Maquiavel, já no século XVII, uma fonte para o pensamento democrático, Lefort mostra que a obra do florentino se constrói a partir de uma reflexão sobre o papel da indeterminação e do conflito no interior da experiência política. A defesa do caráter negativo do desejo de liberdade – desejo que se caracteriza pela recusa à opressão – e a ideia segundo a qual a ordem instituída no horizonte da cidade livre não abole o conflito entre os dois humores que a atravessam exigem, ambos, o abandono da imagem da boa sociedade e do bom governo. Ora, uma vez que não há comunidade livre e, ao mesmo tempo, trans – parente, absolutamente virtuosa e sem conflitos, desfaz-se a possiblidade de que esta produza uma imagem identitária de si mesma. Por isso, a comunidade – ou a sociedade, em termos modernos – se caracteriza pela ausência de determinação definitiva. Por um lado, uma vez que é atravessada pelo conflito e dinamizada pelo movimento de resistência à opressão, a comunidade tem de lidar com sua própria indeterminação. Essa desincorporação da sociedade será trazida à tona quando a força do número – expressa pela exigência do sufrágio universal enquanto direito – se tornar uma das marcas instituintes da democracia moderna. Por outro lado, o fenômeno do poder permanece sem o respaldo de uma boa figura, pretensamente definitiva, ancorada na natureza ou na história, uma vez que a dinâmica do desejo de liberdade resiste à tentativa daqueles que pretendem incorporá-lo de maneira absolutamente fundada. O poder permanece infundado e só encontra respaldo contingente no jogo das aparências e das opiniões, com os quais tem de dialogar constantemente. Apoiada nesses dois elementos, a obra de Lefort desdobra o pensamento de Maquiavel no intuito de decifrar o sentido da invenção democrática.

Referências

LEFORT, Claude. (1972). Le Travail de l’œuvre Machiavel. Paris: Gallimard

Silvana de Souza Ramos – Professora Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal – VINCIGUERRA(CE)

VINCIGUERRA, Lucien. La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 2013. Resenha de: KONTIC, Sacha Zilber Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.31, jul./dez., 2014.

O estudo do estatuto da representação nos filósofos seiscentistas é um ponto recorrente em toda a fortuna crítica que aborda a filosofia da época e, deste ponto de vista, a obra de Lucien Vinciguerra retoma um tema clássico. Entretanto, ao invés de se colocar de partida no interior do discurso filosófico, o autor se propõe a analisar o problema da representação nos filósofos em questão a partir de operações e dispositivos que não são ele s mesmo s filosófico s. É o caso da s equações cartesianas das curvas e de seu regime de diferenças, de metáforas, como a do cego da dióptrica de Descartes, do sonho de Teodoro na Teodiceia de Leibniz, do espelho e da anamorfose como modelo das ideias confusas em Locke, da figura do hexagrama místico e da interpretação da bíblia em Pascal.

Por este procedimento, Vinciguerra visa estabelecer um debate direto com As palavras e as coisas de Foucault. Enquanto Foucault se propunha a fazer uma história filosófica das transformações da cultura na era clássica buscando o fundamental destas transformações no exterior da própria filosofia, ou seja, uma arqueologia do pensamento e não uma história da filosofia, Vinciguerra busca na arqueologia foucaltiana um ponto de partida para se voltar à história da filosofia.Ao romper as continuidades aparentes entre as filosofias clássicas e as modernas a partir de conhecimentos estrangeiros à própria filosofia, Foucault demonstra haver entre elas familiaridades enganosas, levantando problemas que a história da filosofia não possuía métodos para trazer à superfície. Ao mesmo tempo, a importância das diferenças entre as diversas filosofias são minimizadas em favor de um elemento que resta implicitamente comum a elas. A arqueologia do saber dissolve assim o trabalho do historiador da filosofia em favor de uma história mais ampla do pensamento.

A mudança do regime representativo dos signos, que é a marca da episteme clássica, leva Foucault a privilegiar a análise da linguagem no discurso filosófico e na produção do saber, mas, observa Vinciguerra, deixa de lado a relação deste regime dos signos com a matemática. É partindo da relação entre a matemática e a linguagem que o autor vai interrogar os filósofos em questão para tentar elaborar como, apesar das diferenças radicais em suas concepções representação, os quatro filósofos podem compartilhar de uma mesma episteme. Ela mostrará que o regime dos signos no saber clássico aponta – talvez contra a intenção dos pensadores em questão – para uma concepção de representação na qual o signo se anula enquanto signo e traz em si a presença mesma daquilo que é representado. Em outras palavras, a representação excede – se a si mesma.

Ordem de exposição escolhida por Vinciguerra já evidencia o tipo de história da filosofia que é proposto neste livro: não se trata de um estudo cronológico ou genético de um conceito, mas sim a tentativa de encontrar dispositivos que evidenciem um elemento comum na concepção de representação entre os quatro filósofos. O exame se inicia com a descrição do sonho de Teodoro, alegoria narrada por Leibniz nas últimas páginas da Teodiceia na qual, guiado por Palas, Teodoro é levado à pirâmide de infinitas salas, cada uma representando um mundo possível, e nas quais se encontram os livros, cujas páginas contém o destino de cada pessoa de cada mundo possível. Basta que ele passe as mãos sobre as letras deste s livros para que lhe seja representado visivelmente, como que em uma olhadela, o que é dito pelas palavras escritas, assim como o destino destas pessoas, tudo aquilo que elas fazem, percebem, pensam, suas posteridades. O mundo representado pelas letras de desdobra em um mundo visível, em uma presença ilimitada que é representada por aqueles caracteres presentes no livro.

O que interessa o autor nesta alegoria é menos a sua importância como parte da teoria leibniziana dos mundos possíveis ou de sua noção d e representação como expressão do que o caráter “exemplar” que o signo toma no seu interior. Ao ser lido, ele nos leva a uma presença que está além dele mesmo, uma presença que é em si ilimitada. É esse mote de um “signo excessivo” que guia a sua busca por uma episteme comum entre a filosofia da representação destes quatro filósofos. Mas aquilo que pode ser facilmente identificado em Leibniz como uma consequência de seu sistema filosófico, e principalmente de sua concepção de expressão, é visivelmente mais difícil encontrar nos demais, e principalmente no caso de Descartes.

Não é, portanto, por acaso que a análise da questão da representação em Descartes ocupe a maior parte do livro.

Ao mesmo tempo em que ela é fundamental para sua tese, considerando o papel evidentemente fundamental que Descartes possui na filosofia seiscentista, essa noção de uma representação excessiva não pode ser encontrada no local onde a questão da representação aparece de forma mais clara, a saber, na sua teoria da ideia. A ideia para Descartes é representativa justamente por ser como a coisa mesma no intelecto. Ela não é um signo, mas sim a realidade objetiva da coisa tal como se encontra em nossa mente.

Consciente desta limitação, Vinci guerra busca inicialmente na equação das curvas da Geometria e, em seguida, na descrição da linguagem e d a percepção sensível no Mundo, na Dióptrica e na regra XII das Regulae o mesmo princípio que regra a concepção de signo e de representação que encontra no sonho de Teodoro de Leibniz. Na equação da curva, a sua decomposição em curvas cada vez mais simples permite com que, no final da série, a curva mais complexa seja reencontrada e descrita de um modo claro e distinto. A série em sua totalidade de curvas mais simples representa a curva mais complexa sem, entretanto, contê – la em sua totalidade. É por este mesmo paradigma que o autor passa à interpretação do papel das diferenças nas impressões sensíveis tal como descritas por Descartes, para quem toda a representação sensível não é a representação de uma diversidade, mas que em si não possui relação com o objeto percebido.

É assim que na regra XII das Regulae as diversidades das cores podem ser comparadas às diversidades das figuras. O que percebemos é apenas a codificação desta diversidade, tal como ela se relaciona com nós, e não as coisas mesmas. O mesmo princípio é explorado pelo autor a partir da metáfora cartesiana do cego com sua bengala, presente no primeiro e quarto discurso da Dióptrica . O cego, ao tocar o solo com sua bengala, reconhece pela vibração transmitida pela bengala até a sua mão a diferença entre o solo duro, a terra e a areia. É de forma análoga, diz Descartes, que recebemos a diversidade de coisas que afetam nossos olhos, como simples vibrações que em nada de assemelham à coisa percebida. Para considerar as sensações na filosofia cartesiana como signos legíveis tais como as letras dos livros do sonho de Teodoro, Vinciguerra centra a sua análise na possibilidade de encontrar n essa diversidade a leitura de um signo que, decifrado, nos remeta à verdade das coisas, mesmo que confusamente. De fato, Descartes afirma que há uma instituição da natureza – que diz respeito sobretudo à vida prática – pela qual nos guiamos pelo mundo sensivelmente percebido. Face, nas palavras do autor, a essa “metalinguagem desconhecida”, cabe descobrir se há um espaço na filosofia cartesiana pelo qual possamos dizer que é possível reencontrar essa metalinguagem e descobrir na diversidade presente na impressão sensível uma transparência tal como no sonho de Teodoro. Segundo o autor, podemos afirmar isso partindo da descrição de Descartes, feita no início do Mundo, entre as sensações e as palavras, cuja relação com as coisas significadas se dá unicamente pela instituição humana. Por mais que não haja semelhança, ao ouvir uma frase ou ler um texto podemos compreender o seu sentido por mais que não haja semelhança alguma entre o discurso percebido sensivelmente (seja pelo som, seja pela vista) e o seu significado. É claro que no caso de Descartes não se pode falar de uma interpretação – dado que para ele o entendimento é sempre passivo – mas, sim, defende Vinciguerra, de um apagamento do signo que desaparece enquanto coisa ao nos representar seu objeto . Diversos comentadores já notaram o caráter contraditório desta comparação entre a linguagem e a sensação em relação ao restante da filosofia cartesiana, em geral explicado pelo caráter mais físico do que metafísico do tratado. Vinciguerra assume ser, ao lado de Pierre Guénancia, um dos únicos a atribuir uma relação estreita tão entre a linguagem e a sensação. Isto permite com que o autor considere tanto as diferenças entre as sensações da regra XII quanto a metáfora da bengala do cego ao mesmo nível da linguagem no interior da filosofia cartesiana. O seu método de história da filosofia parece desobrigá – lo de analisar a coerência desta tese com o restante da filosofia cartesiana, o que certamente o levaria a considerar obra de Descartes contraditória ou, ao menos, defender uma posição bastante heterodoxa sobre o problema do conhecimento sensível .

Essa omissão o permite passar facilmente da comparação da linguagem com o sensível no Mundo para a consideração da sensibilidade em toda a obra cartesiana como o decifrar de um signo, cujo conteúdo representativo reconduziria a coisa representada. É também no conhecimento confuso que o autor encontra esta noção de signo e de representação em Locke, mas agora na metáfora da anamorfose e do espelho contida no capítulo 29 do livro II do Ensaio sobre o entendimento humano . Nela, as figuras deformadas que dependem de um espelho especial para serem vistas correspondem às ideias que, ao serem relacionadas com uma linguagem inadequada a elas, são confusas até que essas palavras sejam corrigidas. Aqui Vinciguerra encontra novamente a figura da representação que excede o signo na imagem anamórfica que Locke compara à ideia confusa e a possibilidade de encontrar nela a imagem realmente representativa.

No caso de Pascal, apesar de não possuir propriamente um questionamento filosófico sobre a representação, é o mesmo dispositivo matemático da anamorfose que o autor encontra em jogo na análise das secções do cone, a saber, a geometria projetiva inspirada por Desargues. Ela permite com que Pascal postule uma identidade entre figuras diferentes (por exemplo, entre o círculo e a parábola) através das relações que se conservam a partir de sua produção como secção do mesmo cone. Assim, uma mesma figura pode conter representativamente, a partir das relações invariantes, uma infinidade de figuras relacionadas. É o mesmo regime de representação que, segundo o autor, se encontra na concepção de Pascal da exegese bíblica, pela qual o movimento interpretativo permite encontrar o sentido imanente no interior das escrituras. Ao se propor a pensar o problema da representação na filosofia seiscentista a partir de uma reflexão foucaultiana, Vinciguerra faz um louvável exercíc io de repensar o papel e os métodos da história da filosofia. Entretanto, suas análises, ao buscarem em cada um dos autores tratados apenas o suficiente para encontrar a episteme que propõe para a época, não fornecem um aprofundamento da questão, assim com o não pensam o seu papel no interior do pensamento de cada filósofo. Também, ao deixar de lado a influência que cada um dos filósofos teve sobre o demais, assim como as críticas aos seus antecessores, Vinciguerra perde a oportunidade de analisar as por vez es singelas continuidades e rupturas presentes nas teorias da representação em questão. Para as quais Leibniz, mais do que fornecedor de uma “fantasia exemplar”, seria pela natureza dialógica de sua filosofia um campo de análise privilegiado.

Referência

VINCIGUERRA, Lucien. La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 2013. Resenha de: KONTIC, Sacha Zilber Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.31, Jul – dez 2014.

Sacha Zilber Kontic – Doutorando, Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar – SPINOZA (CE)

SPINOZA, B. de. Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. Resenha de: ROCHA, Mauricio. Notícia da edição brasileira do Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar, de B. de Spinoza. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 28, 2013.

Esta tradução do Breve Tratado é a primeira em “português- brasileiro” e a primeira em português tout court do Korte Verhandeling van God, de Mensch en deszelfs Welstand. É outro feito editorial que assinala o impulso crescente das atividades de estudos sobre Spinoza no Brasil, e que se fortaleceu após a tradução da Ética por Tomaz Tadeu, em 2007 e das versões brasileiras das traduções de Diogo Pires Aurélio feitas em Portugal (Tratado Teológico-Político, 2003 e Tratado Político, 2009). Cabe assinalar a necessidade de “versões” do português para o “brasileiro”, pois ainda que ambas sejam as “últimas flores do Lácio”, por vezes são notáveis as diferenças entre a matriz ibérica e as transformações impostas pelo esplendor tropical ao idioma de Camões e Fernando Pessoa.

A presente edição é mais um volume da Série Espinosana, que integra a coleção de Filosofia da Editora Autêntica (que já publicou a obra de Chantal Jaquet, A unidade do corpo e da mente – Afetos, ações e paixões em Espinosa, e lançará outros títulos sobre o filósofo). Esta versão do Breve Tratado é de responsabilidade de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Luis César Guimarães Oliva (tradução e notas) e Ericka Itokazu (que escreve a introdução com Emanuel Fragoso), e conta ainda com um prefácio de Marilena Chaui. E não por acaso. O primeiro é editor da revista Conatus, que desde 2007 reúne estudos sobre o filósofo, e os dois últimos constituem o Grupo de Estudos Espinosanos da USP, coordenado por M. Chaui, que dispensa apresentações.

Esta última brinda o leitor com o relato das aventuras do célebre “manuscrito da Ética em holandês”, como teria sido apresentado pelo filho do livreiro Rieuwertsz aos viajantes germânicos Stolle e Halmann em 1703, naquele episódio que dá início a uma trama que em tudo se assemelha à ficção, não fosse verdadeira. Como se sabe, a trama enreda vários  personagens  (Rieuwertsz-Stolle-Halmann;  Boehmer-Muller- Monnikhoff; Van Vloten-Bogaers; Monnikhoff-Van der Linden-Deurhoff etc.) durante um século e meio (1703-1865), sempre em torno do primeiro manuscrito – e de um segundo manuscrito, encontrado em 1851, também em holandês, que acrescentará mais enigmas ao enredo: as duas caligrafias dos manuscritos holandeses, as notas à margem, a indagação sobre um manuscrito original em latim extraviado, a autoria da tradução do original latino para o holandês.

Enigmas que o trabalho de Filippo Mignini ajudou a desfazer em parte, com sua edição crítica do KV em 1986. Conforme Mignini, o Breve Tratado expõe as ideias do jovem filósofo (por volta de 1660) sobre metafísica e ética, por solicitação de amigos e discípulos. Ele teria sido composto em latim e traduzido para o holandês (por tradutor ainda incerto) e teria recebido acréscimos posteriores à primeira redação (os diálogos, as notas, as referências internas etc.). E a edição brasileira segue de perto o trabalho incontornável de Mignini, um dos responsáveis pelo estabelecimento do texto, traduzido por Joël Ganault, que consta do volume Premiers écrits das Oeuvres editadas sob a direção de Pierre-François Moreau a partir de 1999.

Na introdução, os tradutores e editores brasileiros retomam o histórico da obra, sua descoberta, a polêmica sobre seu estatuto e lugar na evolução do pensamento de Spinoza e as conclusões, atualmente estabelecidas, sobre a autenticidade do KV e a autoria pelo filósofo polidor de lentes. A tradução acompanha a edição crítica de Mignini, mas recorreu à versão de Paul Janet (1878) e à inglesa de A. Wolf (de 1910, baseada em Sigwart, 1870). Além dessas, da outra versão em língua neolatina disponível, a espanhola de Atilano Dominguez (1990), são extraídas algumas lições sobre o estabelecimento e a divisão do texto em parágrafos (em particular no Capítulo XIX da Parte II do KV) – opções justificadas pela clareza e menor redundância.

Consta ainda da edição o Breve Compêndio (Korte Schetz) elaborado por Monnikhoff, a partir do original holandês encontrado por Boehmer tal como publicado na edição de Mignini em 1986, confrontado com a edição de Carl Gebhardt e cotejado com as versões de Atilano Domingues, Charles Appuhn, Madeleine Francês, e a mais recente de Mignini-Ganault. A edição brasileira contém uma extensa bibliografia e um glossário português-holandês da tradução.

Referências

SPINOZA, B. de. Breve tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva.

Mauricio Rocha – Professor do Departamento de Direito da PUC Rio. Coordenador do círculo de leitura Spinoza & a filosofia (Rio de Janeiro).

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Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na pintura – HORNÄK (CE)

HORNÄK, Sara. Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na pintura. São Paulo: Paulus, 2010. Resenha de: PAULA, Marcos Ferreira de. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.

Sobre arte, Espinosa nos fala muito pouco. O termo, com o sentido estético que costumamos lhe atribuir, ocorre poucas vezes em toda a sua obra. Não é por acaso. No século XVII arte ainda conserva o sentido de um ofício específico, embora, como se sabe, o conceito de já arte estivesse em transformação desde o Renascimento, quando então ela tornou-se definitivamente inseparável das noções de beleza, estilo e originalidade, caminhando cada vez mais, sobretudo a partir do século XVIII, em direção ao sentido estético contemporâneo que hoje conhecemos. A arte no tempo de Espinosa não está longe, portanto, dos valores da contemplação e dos prazeres estéticos, mas é certamente menos importante a presença seja do artista ou do expectador que se situam num campo artístico sem pretender avançar para além de seus limites propriamente estéticos. Espinosa, por exemplo, situa as ciências e as artes no rol de todas as atividades humanas (e coletivas) que são necessárias ao aperfeiçoamento da “natureza humana” e à conquista da “beatitude”. A arte não se separa, para ele, de sua utilidade ética, sem a qual ela talvez nem faça sentido. É o que parece nos indicar esta passagem do Tratado teológico-político :

[…] ninguém teria a força e o tempo necessário se fosse obrigado a lavrar, semear, ceifar, cozer, tecer, costurar e fazer sozinho tudo o mais que é preciso para o sustento, não falando já nas artes e ciências, que são também sumamente necessárias à perfeição da natureza humana e à sua beatitude (Espinosa 2, p. 85, grifos nossos) .

Fazer arte não é o mesmo que tecer e cozer, certamente, mas deve servir, em última análise, aos mesmos propósitos éticos. Se é assim, a arte, enquanto tal, não poderia servir à própria tarefa de compreensão filosófica do mundo, de si e da Natureza? De fato, sabemos que quando Espinosa fala em “perfeição da natureza humana” e “beatitude” devemos entender o exercício de uma mente humana na compreensão de si, da essência singular de seu corpo, das coisas singulares e da Natureza inteira, da qual mente e corpo são expressões modais imanentes; e se a arte pode ser útil nessa tarefa, é porque deve conservar algum poder de compreensão. Haveria, assim, entre arte e filosofia, uma ligação talvez mais íntima do que alguns comentadores ou leitores de Espinosa gostariam de ver – justamente aqueles leitores ou comentadores para os quais a arte, pertencendo ao campo do primeiro gênero de conhecimento, a imaginatio, não teria nenhuma importância na obra do filósofo holandês, não podendo sequer poderia ser tomada como via de compreensão de sua filosofia.

Não é este o caso, felizmente, de Sara Hornäk, autora de Espinosa e Vermeer: imanência na filosofia e na pintura, livro publicado na Alemanha em 2004 e que chegou até nós no final de 2010 pela editora Paulus. Trata- se de uma obra em que a arte é iluminada pela filosofia e a filosofia, pela arte; uma obra na qual vemos que um artista pode ser também filósofo, e um filósofo, artista. É que – Hornäk não hesitaria em afirmar – artista e filósofo habitam um mesmo mundo, um mesmo Universo, no sentido metafísico da palavra, de tal maneira que compartilham um mesmo “plano de imanência”, para utilizar, em sentido menos sério, a expressão deleuziana. A relação que Hornäk estabelece entre Espinosa e Vermeer (consequentemente, entre filosofia e arte), é de tal ordem que a noção de imanência ganha um destaque e uma relevância que escapam muitas vezes até mesmo aos leitores de Espinosa. A imanência, como sugere o título da obra, é o elemento pelo qual a autora constrói sua argumentação que une a arte de Vermeer à filosofia de Espinosa; mas é também o alvo do livro, cujo objetivo principal parece ser o de mostrar que uma experiência estética da imanência realizaria por outros meios o mesmo que uma filosofia da imanência proporcionaria por meio do trabalho do pensamento.

Para chegar a esse resultado, contudo, a autora seguiu um caminho um tanto longo, mas muito acertado e talvez quase inevitável. Ela primeiro expôs toda a filosofia de Espinosa contida na Ética . Essa exposição, que ocupa a primeira parte do livro, tem antes de tudo o mérito de oferecer ao leitor um verdadeiro trabalho de introdução ao pensamento de Espinosa. Aí estão presentes os principais conceitos espinosanos. Substância, atributos, modos, conatus, afetos, afecções, liberdade e eternidade, entre outros, são apresentados ao leitor com o cuidado de quem deseja introduzi-lo no universo dessa difícil filosofia da imanência.

Nesta primeira parte, que ocupa mais da metade do livro, o pensamento de Espinosa é apresentado com certa fidelidade e clareza. Há contudo um momento de sua exposição em que a autora parece trair tanto o “espírito” quanto a “letra” do texto espinosano. Ela traduz amor Dei intellectualis por “amor espiritual a Deus” (Hornäk 3, p. 246). E devemos frisar que não há erro na tradução para o português, realizada por Saulo Krieger e revisada por Rachel Gazolla: no original alemão, a expressão da autora é die geistige Liebe zu Gott (“amor espiritual a Deus”, grifo nosso). Trata-se sem dúvida de uma opção por “espiritual”, uma vez que uma das edições alemãs da Ética consultadas por Hornäk (elencadas no “Índice Bilbiográfico”) é justamente a Ethik de W. Bartschat, que traduziu corretamente o amor Dei intellectualis por Die intellektuelle Liebe zu Gott . Caberia, então, uma nota de rodapé da autora explicando tal opção, assim como seria útil ao leitor brasileiro uma nota explicativa por parte do tradutor ou da revisora. É que não estamos aqui diante de uma questão menor: “amor espiritual a Deus” é uma tradução inaceitável para todos aqueles que sabem o quanto o “amor intelecutal de Deus” de Espinosa está longe de receber o sentido espiritualista do “amor a Deus” das tradições religiosas e teológicas judaico-cristãs. Ademais, tal opção seria menos problemática, não fosse o fato de estarmos, aí, num momento conclusivo do percurso filosófico realizado por Espinosa e que Hornäk reproduz em seu livro: precisamente no ponto de chegada do caminho filosófico espinosano, no ápice da tarefa da Ética, o leitor desprevinido pode ser levado a confundir Espinosa justamente com aqueles aos quais ele se contrapôs ética e filosoficamente. Afora esse deslize – que pode ser pequeno ou grande, a depender de se o leitor de Hornäk é ou não também um leitor de Espinosa – não há problemas na exposição da autora, embora tampouco haja aí novidades interpretativas.

Realizando esse longo percurso pelo pensamento espinosano, na primeira parte do livro, a autora pôde se desincumbir, na terceira parte, de explicar cada conceito espinosano, ao tratar da relação entre a arte de Vermeer e a filosofia de Espinosa. Mas antes de chegar a ela, a autora também nos oferece uma segunda parte, espécie de intermezzo histórico no qual o leitor se vê às voltas com os problemas da imanência e da transcendência, num percurso que vai de Platão a Giordano Bruno, passando pelos neoplatônicos e Nicolau de Cusa, sem deixar de nos oferecer ainda, ao final, algumas considerações sobre o “plano de imanência” de Gilles Deleuze. Mas é sem dúvida a terceira parte do livro que concentra o que ele tem de melhor. Aí encontramos as teses principais da autora; aí vemos a filosofia juntar-se à crítica e à história da arte para se chegar a bons resultados, seja no que concerne à compreensão do pensamento espinosano, seja no que toca à interpretação das obras de Vermeer.

A ideia central de Sara Hornäk é que a imanência pode ser não apenas pensada, mas também mostrada . A imanência, para além de sua expressão recebida no trabalho de pensamento filosófico, se exprimiria também em outros campos do fazer humano – na arte, por exemplo, e Vermeer seria aqui exemplo privilegiado, particularmente A leiteira, obra sobre a qual se centram as interpretações da autora.

Na forma, na tecedura e combinação das cores, assim como no uso da luz, Vermeer deixaria ver ou daria visibilidade à mesma imanência de que nos fala Espinosa. Hornäk vê no tratamento de temas cotidianos precisamente uma recusa da transcendência em Vermeer. Não se trata de que nas obras do pintor encontraríamos a representação da imanência: dá- se antes que a própria imanência estaria aí presente, visível, expressa na tela mesma. Em Vermeer, assim como na teoria da mente da Ética, não haveria então a representação de ideias, motivos ou objetos; a própria imagem produziria seu sentido, assim como um sentido emerge no próprio texto da Ética – e Hornäk fala aqui em “autorreferencialidade”, em “estrutura de expressão horizontal”, para dar conta dessa potência expressiva imanente ao texto e à imagem (Hornäk 3, p. 329).

Arte e filosofia, entretanto, conservam esta potência expressiva de maneiras diferentes, cada uma a seu modo, em seu próprio campo e com seus próprios recursos. Hornäk não sonha estabelecer qualquer relação causal entre Vermeer e Espinosa. Ao mesmo tempo, ela vê no “conhecimento da imanência, que, segundo Espinosa, se dá intuitivamente” (Hornäk 3, p. 331), o elemento comum que os une. A intuição, que a autora corretamente vê, não como uma superação mística do racionalismo, mas como uma ampliação da própria razão, seria assim o meio pelo qual a imanência é inteligida e vivida, tanto em Espinosa quanto em Vermeer. Essa experiência intelectual e afetiva da imanência, que Espinosa exprime no conceito de amor intelectual de Deus, em Vermeer estaria presente na “quietude profunda” que Hornäk vê “expressa” em seus quadros, os quais permitiria uma certa “contemplação da eternidade”… (Hornäk 3, p. 331-333).

Mas de que forma, do ponto de vista da filosofia de Espinosa, tudo isso seria possível? A arte não é de fato uma atividade que se dá antes de tudo no campo da imaginação e portanto da ideia inadequada? Contudo, segundo Hornäk devemos superar a ideia de imaginatio como mero conhecimento inadequado. Lembremos que a imaginação, enquanto tal, está inscrita no rol das atividades dos modos finitos, o que significa que ela mesma é algo, é modo e constitui um modo de ser. Sabemos, ao mesmo tempo, onde está o problema teórico e prático da imaginatio : caímos no inadequado ao afirmarmos de um conteúdo imaginativo que ele é verdadeiro ou falso, bom ou mau, quando o próprio conteúdo não nos oferece tanto. Como estamos sempre no exercício do nosso conatus, é quase inevitável que a imaginação não venha acompanhada dessas afirmações ou negações. No entanto, o próprio conatus pode exercer-se de tal forma que a imaginação não seja um obstáculo, mas um reforço. A imaginação, muitas vezes, é antes uma potência, em vez de impotência e passividade. Flaubert e Machado de Assis nos dão a ver certas paixões humanas. Mas no ato mesmo em que escrevem, não são dominados por elas.

A imaginação no artista é, em casos como esses, um potente instrumento de criação, não de dominação daquele que imagina. Hornäk nos lembra que, na abertura do Breve Tratado, a forma de exposição é já artística; ademais, a própria forma de exposição geométrica da Ética é, para a autora, igualmente artística, pois faria emergir uma “estrutura complexa” em que definições, axiomas, proposições e demonstrações se mostrariam de tal forma interligados que, ao fim do texto, seríamos capazes de vê-lo todo, seríamos capazes de ver a simultaneidade da forma, assim como seríamos capazes de apreender a nossa essência singular inseparavelmente do Universo (o todo), da mesma maneira que a autorreferencialidade presente nos quadros de Vermeer nos dariam a ver o próprio real em sua simultaneidade.

Hornäk vê nos quadros de Vermeer a expressão do que ela chama de “força substancial” em meio às próprias coisas cotidianas. Os elementos cotidianos do pintor realizam a imanência pictoricamente. A arte pode tornar a imanência visível. Em Vermeer, mais do que em qualquer outro pintor do XVII, segundo Hornäk, dá-se justamente essa visibilidade da imanência. Para a autora, a imanência não é uma ideia puramente conceitual, e portanto não se trata de buscar na arte o sentido da imanência, mas sim de entender como ela se exprime na arte.

Vermeer retrata o cotidiano de tal forma que o que se exprime na tela é o singular (não o geral, isto é, não uma casa, um quarto, um vaso ou uma mulher, mas esta casa, este quarto, este vaso, esta mulher). Tomando sempre como referência A leiteira, Hornäk considera que o humano e o mundo estão igualmente presentes na tela de Vermeer, através da figuração plástica de uma mulher, um lugar e uma ação singulares. A singularidade do gesto da leiteira exprime-se em sua total concentração na realização do ato cotidiano de despejar o leite que sai de uma recipiente e entra em outro. Concentração e movimento, aqui, encerram a “quietude” que se exprime no gesto da leiteira. Para Hornäk, a apreensão intuitiva do “verter do leite” equivale a uma experiência da eternidade, uma vez que a Natureza se exprime nos modos e portanto também nos gestos mais cotidianos.

Para chegar a essas conclusões, Hornäk analisa o uso das cores, da luz e do que ela chama de “superfície de imagem e espaço de imagem”, em Vermeer. O trabalho de composição e combinação das cores mostra o quanto elas formam uma trama, uma tessitura, pela qual Vermeer “escreve” o “texto” da tela, de tal maneira que a imanência se faria presente no próprio ato criativo do pintor. Para Hornäk, entretanto, sem o uso específico que Vermeer faz da luz essa trama das cores seria impossível. Aqui, como muitos historiadores lembraram, o procedimento estético é o chiaroscuro . Hornäk lembra, porém, que o uso desse procedimento é de tal ordem que o chiaro não se opõe ao oscuro . Claro e escuro não são oposições irredutíveis. Em vez disso, eles formariam uma “unidade harmônica”. O homem não se opõe ao mundo; é dele um elemento discernível mas inseparável, componente intrínseco do todo. Mas de onde vem a luz, em A leiteira ? Segundo Hornäk, a luz intensa da parede não pode advir dos vidros da janela à esquerda da tela, porque eles estão demasiados embaçados para produzir uma tal luminosidade 1 . A luz da parede, intensa e profunda, seria produzida ali mesma, por ela mesma: ela seria, assim, figuração pictórica da causa imanens, da causa que não se separa do efeito após causá-lo. Certamente a importância que a autora dá ao papel da luz não é casual. Ela mesma nos lembra que para uma longa tradição de religiosos e pensadores a luz sempre foi considerada “símbolo do divino”. Mas a luz, em Vermeer, não seria o que remete a outra coisa, a algo fora da tela, ao transcendente: ela se dá e se constitui no cotidiano mesmo, alia onde as coisas estão, em meio a elas e por meio delas.

É contudo no momento em que analisa o problema da superfície e do espaço da imagem que a interpretação de Hornäk fica ao mesmo tempo mais interessante e mais controversa. Mais interessante porque aprofunda a interpretação da obra de Vermeer pela ótica da imanência espinosana; mais controversa porque, nesse aprofundamento, parece realizar uma leitura “piedosa”, “espiritualista” e um tanto mística da filosofia de Espinosa. E, realmente, a partir da análise de elementos formais de A leiteira, Hornäk identifica a figuração pictórica de temas como a “concentração” e a “quietude”. A mulher que no centro da tela faz jorrar o leite na vasilha sobre a mesa realiza esse ato com toda a atenção, compenetrada em seu gesto, a ponto de ela, sua ação, os objetos que a cercam, o próprio lugar, enfim, comporem uma “cena hermética” que exprime “concentração” plena e, por isso mesmo, certa “quietude”.

Nesta “cena hermética” encontra-se, porém, a abertura para todo o Universo, afirma Hornäk. A autora fala no “mundo sumamente próprio” e na “interiorização absoluta” que as telas de Vermeer deixariam ver. E, no entanto, precisamente aí encontraríamos “o atrelamento, tão difícil de apreender, entre finitude e infinitude” (Hornäk 3, p. 378). Haveria, então, uma espécie de “filosofia da imanência”, não dita, não escrita, mas figurada nas telas de Vermeer, particularmente em A leiteira ? As análises e interpretações de Hornäk parecem querer levar o leitor a essa conclusão. E de fato uma tal conclusão em Vermeer seria tanto mais possível quanto, segundo Hornäk, “o pintor suprime dualismos em teoria do conhecimento, como o que se tem entre imaginatio e ratio, corpo e alma, percepção e conhecimento” (Hornäk 3, idem).

Não é que autora desconheça o lugar da imaginatio na Ética de Espinosa. Sabe que na imaginação estamos sempre às voltas com o inadequado. Mas ela lembra que a conquista do adequado, em Espinosa, não se faz pela defesa “de um ponto de vista puramente racionalista”, já que Espinosa vai além da razão sem dispensá-la: a ciência intuitiva, o terceiro gênero de conhecimento, faz de Espinosa um racionalista sui generis no século XVII, pois com ela a própria razão se vê ampliada – não porque seja agora capaz de apreender mais generalidades, mas, ao contrário, porque capaz de captar singularidades, antes de tudo da essência singular do corpo de que esta mente intuitiva é a ideia. Contudo, precisamente a ciência intuitiva dá à imaginatio um outro estatuto: à imaginação não é mais dado o valor de verdade que era fonte de todo o erro (lembremos que a imaginação em si não é nem falsa nem verdadeira), mas antes um lugar na contemplação adequada de si que envolve uma outra imagem de si mesmo, das coisas e da Natureza (ou Deus), assim como da ligação necessária (eternidade) entre nós, as coisas e a Natureza.

A ciência intituitiva, portanto, envolve razão e imaginação, mas agora sob o aspecto da eternidade. Ora, precisamente esse conhecimento intuitivo corresponde, na arte, segundo Hornäk, à “uma atitude contemplativa, na qual o homem, mergulhado em si mesmo, assume um estado de interiorização”. Essa “interiorização” intuitiva estaria presente em A leiteira : “A criada parece espreitar a si mesma” (Hornäk 3, p. 382). Evidentemente, não estamos aqui diante de uma interiorização que nos faria cair num sopsismo sem saída de si, precisamente porque, realizando- se no campo da ciência intuitiva, ela é por isso a expressão da ligação que mente tem com a Natureza inteira, e, portanto, em vez de nos fechar em nós mesmos, ela é capaz de nos abrir a todas as coisas, ou, o que é o mesmo, de realizar uma abertura ao “múltiplo simultâneo”, para utilizar uma expressão de Marilena Chaui (Chaui 1, p. 103). É aqui que, para Hornäk, somos capazes de apreender o eterno no temporal, o infinito no finito, a Substância nos modos.

O que, entretanto, em A leiteira de Vermeer, revela-nos esse poder de apreensão intuitiva do real e de nós mesmo na Natureza? Aqui aparece com mais clareza aquele ponto controverso a que nos referimos acima. Para Hornäk, pode-se ver na ação da criada, em sua expressão, em seu gesto, uma atitude de “concentração”, “paciência” e “quietude”. E a autora chega mesmo a falar em “humildade”, dando-lhe outro sentido, que não é o de Espinosa: se para este a humildade é contemplação da própria impotência, para a autora ela é “dedicação plena de devoção”, que o gesto da criada deixaria entrever. Se, agora, reunirmos estes termos e expressões àquele “amor espiritual a Deus”, não poderíamos ver aí uma interpretação um tanto “piedosa”, isto é, religiosa, e espiritualista da filosofia de Espinosa, mas também das obras de Vermeer? Mas deixamos ao leitor um julgamento mais apurado e justo do livro. Em todo caso, é verdade que, por outro lado, o texto de Hornäk deixa entrever que humildade, paciência, quietude e concentração querem exprimir apenas um estado de alegria ativa, em que se fundem atividade e passividade, ação e contemplação, obra e expectador, texto e leitor. Para Hornäk, Vermeer desfaz de tal forma a oposição entre interioridade e exterioridade, que o observador pode tomar parte na atitude contemplativa da personagem figurada na tela.

Mas a conclusão talvez mais importante de Hornäk, nesse momento de seu percurso interpretativo, é a de que as figuras retratadas nos quadros de Vermeer não narram acontecimentos, mas exprimem a eternidade. Na concentração tem-se o elemento da atenção – e Hornäk não deixa de lembrar pelo menos um intérprete de Vermeer que tenha destacado o fato de que na arte holandesa do XVII ocorreu a representação do mais alto grau de atenção envolvido na atividade doméstica (Hornäk 3, p. 384). Concentração, atenção, presente. Para os zen-budistas, a beatitude não se faz fora do tempo presente, esse tempo que é o mais difícil de ser vivido, como dizia Jorge Luis Borges. E se não narra acontecimentos, nem por isso Vermeer figura naturezas mortas congeladas no tempo (como se tal fosse possível). Em vez disso, o pintor “dilata o passo temporalmente mensurado para uma duração que nos possibilita a eternidade” (Hornäk 3, p. 394), escreve Hornäk. E então compreendemos que o leite jorrado da leiteira “flui eternamente” (Hornäk 3, p. 396). O leite sendo derramado é um “transcurso”, é duração eterna ou um “demorado agora” no todo da eternidade.

Muitos intérpretes falaram do “enigma” na obra de Vermeer. Para Hornäk este enigma consiste em tornar visível o que é da ordem do invisível: a eternidade e a imanência. Mas não é isso o que precisamente Espinosa nos faz ver, sobretudo com sua Ética ? A diferença é que enquanto aí os “olhos da alma” são as demonstrações geométricas da mente, em Vermeer os “olhos da mente” são os próprios olhos do corpo diante da visibilidade de uma obra que mostra a imanência e eternidade dos gestos, das coisas, do homem. Hornäk não hesita em afirmar que “na obra de Vermeer se realiza a imanência”. E poderia ser diferente? Não seria correto dizer que, se todos os modos são modificações da Substância única que lhes é imanente, como eles a ela, a própria Substância está de algum modo em todas as coisas, em todos os gestos, em todos os homens, em todas as obras? Correto, mas, precisamente, ela se faz presente de maneiras diferentes. Há maneiras e maneiras de exprimir o Ser. Podemos fazê-los mais ou menos. Às vezes se está mais próximo de si mesmo; às vezes se está tão longe de si que é então a quase pura passividade o que impera. Neste último caso, um gesto, uma obra, uma ação exprimem apenas a exterioridade das relações e já não dizem quase nada, ou fazem muito pouco pela perfeição de nossa natureza e por nossa beatiude.

Sara Hornäk relembra uma passagem de O Olho e o espírito, na qual Merleau-Ponty afirma que na obra de Cézanne se “produz um cintilar do ser […] em todos os modos do espaço e também na forma” (Hornäk 3, p. 415-416). O mesmo, segundo Hornäk, se passa em Vermeer. Há nele a criação de uma “outra” realidade, sua obra remete a um “para além” do que se vê e se sente, mas ele o faz justamente no que se vê e se sente . “A segurança e capacidade com que a figura representada”, escreve Hornäk ainda sobre A leiteira, “realiza sua atividade permite que a cena apareça à luz da necessidade”. Eis, em Vermeer, a potência intrínseca da própria obra, a figuração do instante que se inscreve numa ontologia do necessário e que por isso mesmo torna visível a eternidade e imanência dos gestos, dos modos, dos acontecimentos. E, assim, por caminhos diferentes encontraríamos, em Vermeer como em Espinosa, uma mesma unidade de ser e agir, uma mesma afirmação da vida no presente, uma mesma potência de agir que se inscreve no seio da atividade eterna (sempre presente) dos atributos divinos que constituem a essência da Substância absolutamente infinita.

Deleuze amava dizer que a alegria espinosana realiza-se no mesmo ato de um bom encontro. Não se sabe se algum dia Espinosa encontrou-se com Vermeer, apesar de terem morado próximos um do outro, pelo menos durante os 17 anos em que Espinosa, mesmo tendo habitado diferentes cidades, não se afastou muito de Delft, a cidade de Vermeer. Mas Hornäk consegue realizar agora, para nós, esse bom encontro entre o filósofo e o pintor, entre a filosofia e arte, percorrendo o mesmo fio imanente que une um e outro, uma e outra, e todos nós. .

Notas

  1. Há um pequeno buraco, num dos vidros, que deixa ver o quanto eles estão embaçados, provavelmente pelo calor do ambiente interno em oposição ao frio do exterior

Referencias

  1. CHAUI, Marilena de S. “Ser Parte e Ter Parte: Servidão e na Ética IV”. In: Discurso, no. 22, 1993.
  2. ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  3. HORNÄK, Sara. Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na píntura. São Paulo: Paulus, 2010.

Marcos Ferreira de Paula – Professor de filosofia do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa – JAQUET (CE)

JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: D ’AMBROS, Bruno. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.

Lançado na França em 2004, o livro de Chantal Jaquet chega ao Brasil em 2011, publicado pela editora Autêntica. A tese da união entre mente e corpo de Espinosa tem despertado o interesse de neurobiologistas e psicomotricistas pelo filósofo holandês. Porém, como toda popularização implica quase sempre numa simplificação, surge o receio de que possa haver tal simplificação de Espinosa. É neste intuito que surge o livro de Chantal Jaquet, como precaução de eventuais abusos e simplificações extremas da filosofia de Espinosa e também como um estudo aprofundado das relações entre a mente e o corpo “sob o prisma dos afetos.” (JAQUET 1, p.17)

O livro se divide em cinco capítulos, cujos títulos são: “A natureza da união do corpo e da mente”, “A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”, “A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico-político e na Ética”, “A definição do afeto na Ética III”, “As variações do discurso misto.”

“A natureza da união do corpo e da mente”

Há muito tempo, desde Leibniz, os comentaristas de Espinosa sempre falaram na união psicofísica em termos de paralelismo entre o corpo e a mente. No entanto Chantal Jaquet sustenta que a doutrina do paralelismo não é adequada para compreender Espinosa.

A doutrina do paralelismo é nociva à compreensão da unidade psicofísica e não conduz à uma compreensão adequada do monismo de Espinosa porque “conduz a pensar a realidade com o modelo de uma série de linhas similares e concordantes que, por definição, não se encontram.” (JAQUET 1, p.25). A doutrina do paralelismo, ainda, supõe “homologias e correspondências biunívocas entre as ideias e as coisas, a mente e o corpo”; supõe que a natureza está “condenada à uma ecolalia sem fim, a uma perpétua repetição do mesmo em cada atributo”; supõe que a unidade é uniformidade; supõe  também “uma tradução sistemática dos estados corporais em estados mentais”; e, assim, que o paralelismo “mascára tanto a unidade quanto a diferença” da união psicofísica. (JAQUET 1, p.29 – 30).

Mais adequado do que a doutrina do paralelismo, para pensar Espinosa, é a doutrina da igualdade. O próprio Espinosa sustenta que há uma igualdade entre potência de pensar e de agir, tanto em Deus como no homem, usando o mesmo adjetivo latino æqualis, tanto para a potência de pensar e agir de Deus como para a do homem. Quando Espinosa diz ordo idearum ordo rerum ele quer dizer que a ideia de um sujeito é a expressão igual de alguma coisa externa, extensa, a este sujeito pensante. Portanto “a teoria da expressão em Espinosa é regida inteiramente pelo princípio da igualdade.” (JAQUET 1, p.32)

“A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”

Chantal Jaquet sustenta que Espinosa e Descartes não estariam tão distantes no que tange aos afetos, ambos têm alguns pontos de convergências. Podemos resumir as convergências entre Descartes e Espinosa em alguns pontos básicos, principalmente nas obras As paixões da alma e na Ética : em ambos há um esforço para superar o dualismo mente/ corpo, em ambos há uma abordagem física e mental dos afetos, ambos fazem uma abordagem dos afetos por um método físico-geométrico, em ambos há uma naturalização e racionalização dos afetos, para ambos as paixões são inerentes ao ser humano, para ambos há uma ordem causal por detrás da desordem das paixões, para os dois a mente tem poder sobre as ações e ambos fundam uma “ciência” dos afetos.

Mas, quanto às divergências sobre os afetos, elas se resumem a dois pontos: um concerne à causa das paixões; o outro, à “natureza do poder da mente sobre elas” (JAQUET 1, p.57). Descartes sustenta que a causa das paixões são as ações do corpo sobre a alma e da alma sobre o corpo, ou seja, para ele as paixões são movimentos ativos. Espinosa sustenta que a causa das paixões não está de forma alguma nas ações do corpo ou da alma, ou seja, para ele as paixões são movimentos passivos tanto do corpo quanto da alma, já que ambos são igualmente ativos ou passivos, conforme aquele “princípio de igualdade” das potências que nos fala Chantal. A proximidade entre Descartes e Espinosa, segundo Chantal, está em que ambos concebem corpo e mente em termos de relação psicofísica; mas a distância que os separa está em que Descartes, em última análise, atribui a causa das paixões a uma ação corpo (JAQUET 1, p.58), enquanto Espinosa a atribui à relação do corpo e da mente com a exterioridade, na qual as ideias na mente são determinados pelo exterior (ideias inadequadas). Mas, como lembra Chantal, esse diferente entre os dois filósofos acarreta uma outra, que concerne ao poder da alma sobre os afetos (JAQUET 1, p.60): Descartes acreditava num poder absoluto da alma sobre o corpo, já que ela era a detentora de uma vontade livre capaz de controlá-lo; Espinosa fala em moderação dos afetos a partir de seu conhecimento, isto é, a partir da formação de uma “ideia clara e distinta”, ou adequada, sobre o próprio afeto passivo que, então, deixa de ser passivo (JAQUET 1, p.63).

“A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico- político e na Ética”

Chantal Jaquet trata de uma diferença significativa em duas obras de Espinosa, uma da juventude, o Breve Tratado (1660), e a Ética (1677) . No primeiro, a percepção do corpo pela mente é um efeito do corpo ainda; assim, há uma “ação recíproca da alma sobre o corpo” e vice- versa que configuraria um parentesco com Descartes. Na última, a percepção do corpo pela mente é um efeito das ideias das afecções do corpo; aqui ele “exclui toda causalidade recíproca e toma a forma de uma equivalência e de uma correspondência entre modos e atributos diferentes” estabelecendo uma ruptura completa com Descartes.

A questão, portanto, para Jaquet, é “saber se as diferenças são o índice de uma simples mudança de pontos de vista compatíveis entre si ou se elas revelam divergências que atestam uma mutação do pensamento de Espinosa.” (JAQUET 1, p.73).

Para compreender esta questão Chantal Jaquet vai para uma obra intermediária de Espinosa, que fica entre o Breve Tratado e a Ética, o Tratado teológico-político (1670), que, por sua localização intermediária entre as duas obras iniciais mostra a evolução do pensamento de Espinosa em direção à Ética.

O Tratado teológico-político tem muitas diferenças em relação à Ética; as principais tangem aos afetos, que são diferentes dos apresentados na Ética. Uma distinção importante é que no Tratado teológico-político não há, ainda, a distinção entre afetos ativos e passivos. Ali os afetos são vistos como passivos sempre. Aquilo que mais tarde a Ética vai chamar de afetos ativos estão agrupados sob a categoria de fortitudo, subdivididos em animositas e generositas.

Outro ponto que é ressaltado por Jaquet é que no Tratado teológico-político o apetite e o desejo são opostos à razão. O Tratado teológico-político não tem a intenção de fazer uma teoria dos afetos, seu objeto é outro, por isso ele não contém explicitamente uma teoria dos afetos e quando cita os afetos, cita-os sempre como paixões, não mencionando que há afetos ativos. Já na Ética há uma virada em Espinosa. Nela o afeto é definido como fruto de uma causalidade adequada ou como fruto de uma causalidade inadequada: no primeiro caso o afeto é ativo, no segundo é passivo; ou seja, os afetos ativos são ações e os afetos passivos são paixões. Os três afetos básicos – desejo, alegria e tristeza – são decorrentes desta definição. A distinção entre afetos ativos e passivos é uma inovação da Ética. Na Ética há uma “razão apetitiva e um apetite racional.” (JAQUET 1, p.93). A Ética oferece assim “uma visão mais unificada do homem, o qual não é dotado senão de uma única natureza apetitiva que se declina seja sob um modo passivo, seja sob um modo ativo.” (JAQUET 1, p.93). Na Ética “a razão torna-se essa potência ativa capaz de engendrar afetos que coíbem as paixões tristes.” (JAQUET 1, p.94).

Portanto, há uma evolução do pensamento de Espinosa, em direção à Ética, que “confirma essa orientação do sistema rumo a uma concepção mais e mais dinâmica do potência de agir.” (JAQUET 1, p.96).

“A definição do afeto na Ética III”

Uma primeira questão que aparece na Ética é referente à palavra affectus. Chantal Jaquet aponta que, dentre as várias palavras latinas à disposição – emotio, passio, commotio – Espinosa utiliza a palavra affectus e que dentre as várias traduções – emoção, paixão ou sentimento – a mais adequada é afeto.

Quanto à definição de afeto, na parte III da Ética há duas definições, uma no início (SPINOZA 2, III, def.3) e outra no final (SPINOZA 2, III, def. geral). Na primeira o afeto é ativo e passivo. Na segunda o afeto é somente passivo. Esta segunda definição é a mais problemática, porque ela é uma definição geral dos afetos e, no entanto, restringe o afeto ao seu aspecto de passividade e mental.

O problema da segunda definição do afeto é que ela é uma definição geral (generalis) e está no final da parte III, o que induz a pensar que ela é uma definição genérica que tenta abranger todos os afetos. Porém ela foca só o aspecto mental e passivo dos afetos, excluindo os ativos. Chantal Jaquet diz que ela é uma definição generalis no sentido de gênero e não de genérico, por isso ela enfatiza o aspecto passivo e mental do afeto porque desta forma, prestando atenção às características genéricas das paixões, pode-se determinar sua força, sua utilidade, sua nocividade e a potência da mente para contrariá-las: “ela é dita geral pois remete todas as paixões a um só gênero, a ideia confusa, e permite em seguida compará-las em função de sua aptidão a aumentar ou diminuir a potência de agir do homem.” (JAQUET 1, p.115)

Espinosa diz que os afetos são afecções corporais que aumentam e ajudam ou  diminuem e contrariam a potência de ação deste corpo e também que os afetos são as ideias destas afecções do corpo (SPINOZA 2, III, Def.3, p.98). Nesta definição, o afeto é definido primeiro em relação ao corpo e depois em relação à mente.

A primeira questão que o aspecto corporal do afeto implica é sobre a distinção entre afeto e afecção. Todo afeto é uma afecção corporal mas nem toda afeção corporal é um afeto, portanto, o que distingue afetos de afecções? O critério de diferenciação é a potentia agendi do corpo, ou seja, “uma afecção é um afeto se e somente se tem um impacto sobre a potência de agir do corpo.” (JAQUET 1, p.129). Desta forma os afetos se diferenciam das afecções porque eles tem a capacidade de fazer variar a potentia agendi.

Tudo tem uma potentia agendi porque a potentia agendi é uma vis existendi. Portanto, devemos entender a potência de agir como força de existir e a verdadeira potência de agir é a que tem a ver com as ações, pois repousa sobre um conhecimento adequado, porque aumenta a potência como força de existência. As ações, isto é, aquilo que um sujeito ativo faz, é causa adequada dos efeitos corporais, aumentando a potentia agendi como vis existendi.

Há quatro tipos de afetos que impactam a potentia agendi : os que aumentam ou diminuem e os que ajudam ou coíbem. Chantal Jaquet sustenta que há uma diferença entre os que aumentam/diminuem e os que ajudam/coíbem, dizendo que o segundo grupo não é somente um recurso de insistência, mas que há uma diferença de grau e natureza entre eles. O segundo grupo, que ajuda/coíbe a potência, são afecções que não aumentam nem diminuem a potência de agir do corpo, mas que “só fazem neutralizar as forças contrárias ou favoráveis.” (JAQUET 1, p.142).

Então, Chantal Jaquet elenca cinco tipos de afecções que ajudam ou coíbem a potentia agendi: 1) ajuda ou coíbe o que se opõe à destruição do que se ama ou à conservação do que se execra; 2) ajuda ou coíbe que a imagem da alegria do que se ama seja vista como causada por nós; 3) ajuda ou coíbe sentimentos que mudam de hostis à amigáveis ou de amigáveis a hostis; 4) ajuda ou coíbe alguém que faz o bem ao outro ou não; 5) ajuda ou coíbe a concepção adequada ou inadequada da impotência humana.

O afeto também é definido em relação ao atributo pensamento, à mente. Os afetos são as afecções corporais, mas também são ao mesmo tempo (et simul) as ideias destas afecções corporais, e estas ideias são modos certos e determinados da atividade eterna e infinita do atributo pensamento.

Chantal Jaquet diz que há três maneiras de compreender o advérbio et simul, que se refere à simultaneidade das afecções corporais e mentais. Primeiro, et simul significa que os afetos são psicofísicos. Segundo, et simul significa que os afetos são psíquicos. Terceiro, que eles são físicos. Desta forma há três categorias de afetos, os psíquicos, os físicos e os psicofísicos.

“As variações do discurso misto”

Espinosa faz três divisões concernentes aos afetos: ações e paixões, primitivos e compostos e bons e maus. Desta forma ele não visa uma enumeração exaustiva dos afetos porque os afetos, de um modo geral, se reduzem à três, o desejo, a alegria e a tristeza. Os outros afetos compostos são decorrentes destes afetos primitivos.

Mas Chantal Jaquet estabelece três categorias de afetos, segundo a referência seja mais o corpo, a mente ou ambos, embora todo afeto conserve uma natureza psicofísica. Primeiro há os afetos que se referem ao corpo e à mente, simultaneamente: são os propriamente psicofísicos, que têm “uma realidade psicofísica, sendo objeto de um discurso misto exprimindo a mente e o corpo em paridade.” (JAQUET 1, p.168). Dentro dos psicofísicos, estão os três afetos originários – desejo, tristeza e alegria – e alguns derivados, como o orgulho, a humildade e o amor a Deus. Depois, há os afetos propriamente corporais e Espinosa põe a carícia, a hilaridade, a dor e melancolia como afetos corporais também porque eles “têm um impacto sobre a potência de agir e a fazem variar” (JAQUET 1, p.172). Além destes há também o fastio e o tédio. Por fim, há os afetos mentais. Chantal Jaquet elenca o amor intelectual de Deus, a glória, o arrependimento e a saudade como afetos propriamente mentais.

Diz Espinosa que “Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente.” (SPINOZA 2, III, prop.11). Desta forma, todo discurso sobre os afetos, sejam eles mentais ou corporais, é “de essência psicofísica.” (JAQUET 1, p.176). Apesar de a ordem das ideias ser a mesma que a ordem das coisas, nem todo afeto concerne à mente e ao corpo da mesma maneira. Isso remete à tese de Chantal Jaquet de que o monismo espinosano deve ser concebido como igualdade de potência e não paralelismo. “O corpo e a mente são apreendidos ao mesmo tempo sem ter necessariamente o mesmo tempo” (JAQUET 1, p.181, grifo da autora). Por isso o discurso sobre os afetos é sempre misto, nunca é só corporal nem só mental.

Desta forma Espinosa “convida a romper com uma concepção simplista da igualdade entre a potência de pensar e de agir que faria dela a resultante de uma atividade análoga no corpo e na mente ou o reflexo idêntico do que se passa em cada um dos objetos.” (JAQUET 1, p.183). Isto quer dizer, a título de conclusão, que a doutrina da expressão de Espinosa  não supõe paralelismo nem causalidade recíprocas, mas, sim, igualdade, que é antes de tudo uma igualdade de potência; e esta é a tese central de Chantal Jaquet. A mente tenta sempre ver paralelismo e causalidade recíproca entre o corpo e a mente, mas, na verdade, eles não existem, a não ser como pensamentos. A igualdade da potência de pensar e de agir não elimina, contudo, as desigualdades de expressão da mente e do corpo, porque eles exprimem atributos que são diferentes (pensamento e extensão, donde a desigualdade expressiva), mas que constituem a essência de uma mesma Substância (donde a igualdade de potência).

“Conclusão”

É importante ressaltar que o livro da filósofa francesa Chantal Jacquet está em diálogo com o livro do neurocientista português António Damásio Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos . Nesta sua obra, o neurocientista resgata o filósofo holandês para justificar a atualidade de seu monismo sobre o dualismo cartesiano dentro da neurociência contemporânea.

No entanto, ao ver de Chantal Jaquet, o neurocientista português “não está sempre à altura de seu modelo e carece às vezes de rigor, porque continua a falar de emergência da mente a partir do corpo, de passagem do neural ao mental.” (JAQUET 1, p.188). Esta crítica da filósofa francesa se confirma no trecho onde o próprio Damásio diz que “é preciso compreender que a mente emerge de um cérebro ou de um cérebro situado no corpo propriamente dito com o qual ela interage; que, devido à mediação do cérebro, a mente tem por fundamento o corpo propriamente dito.” (DAMÁSIO 3, p.91). Para Jaquet, Damásio tende a pensar a mente em termos de emergência a partir do corpo, quer dizer, do cérebro. Para Damásio o cérebro causaria a mente – a alma, a consciência, o pensamento – porque ele pensa a relação psicofísica em termos de paralelismo. António Damásio erra ao apresentar a unidade do corpo e da mente “sob a forma de um paralelismo.” (JAQUET 1, p.189). Do estudo dos afetos em Espinosa, Chantal Jaquet extrai duas lições. A primeira lição é “banir toda busca de interação, de influência ou de causalidade recíproca entre a mente e o corpo para pensar unicamente em termos de correspondência e de correlação.” (JAQUET 1, p.187). A segunda lição é que “o modelo espinosista da união psicofísica não repousa sobre um paralelismo, mas sobre uma igualdade.” (JAQUET 1, p.188). Dessas duas lições sobre o estudo dos afetos conclui-se que há uma identidade entre a ordem e a conexão das ideias e das coisas; mas que tal identidade não “deve mascarar a diferença de expressão própria aos modos de cada atributo.” (JAQUET 1, p.190).

Referências

  1. JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
  2. SPINOZA, Benedictus de. Ética . Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
  3. DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das letras, 2004.

Bruno D ’Ambros – Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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Le devenir actif chez Spinoza – SÉVÉRAC (CE)

SÉVÉRAC, Pascal. Le devenir actif chez Spinoza. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2005. Resenha de: PAULA Marcos Ferreira de. Como tornar-se livre e feliz. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 22, 2010.

Lançado na França há cinco anos, Le devenir actif chez Spinoza, de Pascal Sévérac, é uma dessas obras de comentário que se tornam “referência obrigatória” assim que são publicadas. O tema de que trata Sévérac toca o cerne da filosofia de Espinosa: como “tornar-se ativo”? Pergunta que, em Espinosa, pode ser perfeitamente reescrita assim: como afinal chegamos a ser livres e felizes? É por isso que devenir, aqui, é melhor traduzido por “tornar-se”, em vez de “devir”, já que o tema do livro não é outro senão o processo mesmo de conquista da felicidade e da liberdade. Há contudo, como veremos, um lugar da obra em que o termo pode ser traduzido como devir.

A importância das paixões alegres

Um pouco na esteira de Deleuze, Sévérac põe a “alegria passiva” no centro do problema do “torna-se ativo”. De fato, pergunta-se Sévérac, pode-se ser feliz, isto é, potente, em meio a uma passividade que é constitutiva, já que somos parte da Natureza em relação com outras partes? Como pensar a passividade ou impotência numa filosofia que propõe uma ontologia da afirmação absoluta? São problemas éticos e ontológicos que poderiam ser focalizados num só ponto: a existência de alegrias passivas. De um lado, elas mostram que não se pode identificar passividade e sofrimento; de outro, elas deixam ver há um paradoxo: enquanto alegria é aumento da potência, mas enquanto paixão é negação da potência; paradoxo que, porém, não chega a ser uma contradição, já que a alegria passiva não é ao mesmo tempo aumento e diminuição, mas aumento e negação que só podem ocorrer em momentos afetivos diversos, e por causas que não dizem respeito à alegria em si mesma. Como se poderia, com efeito, distinguir subjetivamente a alegria passiva da alegria ativa? A diferença objetiva, como bem lembra Sévérac, não é um problema: somos causa parcial do afeto de alegria, num caso, e causa total no outro. Mas se não há diferença, o que explica a passagem? Qualquer leitor de Espinosa sabe que não se trata de dever moral: não somos obrigados a buscar a felicidade, por uma determinação extrínseca à nossa própria experiência afetiva. A questão, portanto, não é o que se deve ou não fazer, mas o que se ganha e o que se perde ao se passar da alegria passiva à ativa. Assim, como indica a leitura atenta que Sévérac faz de Espinosa, é preciso perguntar como se explica o problema, considerando-se a realidade efetiva do desejo. E aqui questão do livro ganha toda a sua força e coerência, indo ao cerne do problema ético: como afinal chegamos a desejar, no interior mesmo da vida passiva, o tornar-se ativo? É assim que a abordagem do problema do “tornar-se ativo” ou da conquista da felicidade passa pela consideração, por um lado, daquilo que na própria vida passiva nos impede de ser ativos, mas, por outro lado, daquilo nela justamente nos leva a desejar o tornar-se ativo. Vê-se então que não saímos do campo das paixões ao explicar a passagem à atividade, porque é aí que o problema se explica.

A estrutura da passionalidade admirativa

E a explicação de Sévérac nos traz uma contribuição original, ao enfatizar o papel de um afeto em particular: a admiratio. A admiração é de fato um afeto bastante particular na teoria das paixões de Espinosa: ela mantém a mente fixada numa coisa através de uma “imaginação singular” (singularis imaginatio) que não tem nenhuma conexão com as outras coisas (Spinoza 2, Def. dos Afetos 4, p. 241). Dada assim a sua estrutura particular, a admiração é o afeto que, segundo Sévérac, oferece o maior obstáculo ao processo liberativo. O problema maior é que, afirma o autor, muitos afetos passivos não comportam a mesma estrutura da admiração, e é por isso que a esses afetos nós tendemos a aderir tenazmente, isto é, de forma obessiva (fixação afetiva).

A fixação e a obsessão nos distraem de outros bens que poderiam aumentar nossa capacidade de agir e pensar. Elas limitam nossa potência. Riqueza, libido e honras são assim, na leitura de Sévérac, bens que nos distraem (o termo de Spinoza é distrahitur), mas a distração não é ela mesma um sofrimento, uma tristeza – ou seja, uma diminuição da atividade de pensar: ela é um impedimento dessa atividade, um obstáculo, uma barreira. Nessa medida, escreve Sévérac: “ (…) a distractio, a qualquer bem que ela se reporte, não envolve nenhum sofrimento em si mesma. Ela consiste de fato em um impedimento para aceder ao verdadeiro bem, mas esse impedimento não é sentido como tal: ele não é sentido como um mal (Sévérac 1, p. 235). A admiração, portanto, impede a potência sem necessariamente entristecer. Eis por que os afetos que ocorrem sob a estrutura da admiração podem nos manter fixados e obsedados num determinado bem, numa determinada coisa ou alegria, limitando nossa capacidade de agir e pensar. Se o tornar-se ativo é a aptidão para o “múltiplo simultâneo”, para usar uma expressão de Chaui, então o maior problema é o pensamento ou afeto obsessivo. É portanto sob a estrutura da admiração que um afeto adere tenazmente. E o afeto tenaz é justamente o grande inimigo a ser combatido, na interpretação de Sévérac. As teorias da admiração, do afeto tenaz e da distração levam a uma outra: a “Teoria da ocupação da mente”, assunto de todo o capítulo IV do. Todas estas teorias estão intimamente interligadas, em Sévérac: a admiração é a estrutura afetiva que leva à fixação em certos afetos, aos afetos que aderem tenazmente; com isso, causando um desejo excessivo e nos fazendo admirá-los sem cessar, nós somos distraídos a tal ponto que não podemos pensar noutra coisa, e portanto não podemos pensar em outro modo de vida melhor, o que em Espinosa significa não pensar num “modelo de natureza humana”; assim, a mente então pode estar ocupada, ou com o que nos distrai, ou com o que nos permite pensar no novum institutum. É da distração, e da fixação num “modelo de natureza humana”, esses dois modos por excelência de ocupação da mente sob as paixões, que trata o capítulo IV.

A idéia de modelo é importante na argumentação de Sévérac. Trata-se de pensar, ainda no campo próprio das paixões, um novo modo de vida. É portanto ainda no campo do imaginário que o tornar-se ativo se impõe. Se tudo se passa no universo passional, ser salvo é ser salvo através do corpo: não podemos, só pela razão, abandonar nossas alegrias. É que a negação da potência não significa necessariamente tristeza, como o demonstra a alegria passiva, mas antes polarização dos afetos, fixação e obsessão afetiva. Mas justamente toda a dificuldade em tornar-se ativo está em que a conquista da felicidade deve ser realizada em meio à passividade alegre, em que o problema é, especificamente, o afeto tenaz. É sob o afeto tenaz que somos dominados pelas paixões, e é esse o maior obstáculo ao devir ativo. O pensamento de um “modelo de natureza humana”, tal como aparece no Tratado da Emenda do Intelecto e no prefácio da Parte IV da Ética, exemplifica a utilidade da imaginação. Para Sévérac, o devir ativo exige a substituição de um “imaginário da obsessão” por um “imaginário da salvação”.

Assim, as paixões que nos dominam devem ser combatidas no próprio campo da passividade: forjamos um “modelo de natureza humana” que é ele mesmo um objeto admirado e sobre o qual nos fixamos de algum modo. Há portanto, ainda no campo da imaginação, uma mudança de idéia, isto é, de afeto. Mas se toda obsessão se dá, como toda paixão, sob a estrutura da passionalidade admirativa; se todo imaginário fixo é “imaginário admirativo”, de que modo o imaginário do modelo não nos manteria fixos numa outra ilusão? A resposta está em como se opera uma tal mudança. E aqui Sévérac não hesita em nos remeter à idéia de que tudo se passa num campo de forças: não basta que uma idéia seja verdadeira para nos livrar de uma paixão, é preciso que ela nos seja um afeto mais forte e contrário aos afetos a serem combatidos. A própria racionalidade encontra então seus meios de se afirmar contra os amores excessivos, exclusivos e fixadores, pela constituição de um imaginário que a toma por objeto (Sévérac 1, p. 434).

o eterno devir ativo

O livro de Sévérac é extenso e sua análise é minuciosa. O leitor tem a impressão de que o autor tenta resolver todos os problemas que aparecem no desenrolar da argumentação, de que todas as questões devem ser enfrentadas sem economia (na medida do possível) de tempo e espaço. Não cabe aqui tratar de todas elas. Mas uma questão importante que Sévérac teve que enfrentar, evidentemente, é a do problema da eternidade em Espinosa. Aqui talvez o termo devenir possa ser melhor traduzido por devir. É o problema do “devenir actif éternel”: como se poderia falar de um devir ativo numa metafísica em que nossa participação no Real, na Natureza e na Substância é proclamada eterna? Ou seja, se somos já de algum modo eternos, como pensar um devir ativo, ou um vir-a-ser feliz? Em outras palavras, o problema da conquista da felicidade, o tornar-se ativo, se colocaria então em termos da conquista de nós mesmos, daquilo sempre fomos mas não sabíamos que éramos. É o assunto do último capítulo do livro.

A eternidade em Espinosa parece pôr em questão a possibilidade do tornar-se ativo como conquista através de um “supremo esforço”, summum conatus. A eternidade é uma descoberta ou uma revelação? Uma invenção ou uma produção? (Sévérac 1, p. 417). O escólio da proposição 34 da Parte V da Ética afirma que os homens têm consciência de sua eternidade, mas a confundem com a imortalidade. Para Sévérac, há duas maneiras possíveis de ler essa afirmação: ou bem há uma eternidade em si que não é por si (ela está lá, dada, mas não temos – a maior parte dos homens – consciência dela); ou bem a crença na imortalidade é uma consciência da eternidade, mesmo que seja uma idéia confusa, e neste caso não há eternidade que não seja ao mesmo tempo em si e para si. O escólio da proposição 23 da Parte V parece concordar com essa segunda interpretação, já que afirma que toda mente é em parte eterna, e, mais do que isso, afirma que nós “sentimos e experimentamos” ser eternos.

Mas o problema da eternidade, diante do tema do tornar-se ativo, aparecerá com toda clareza no escólio da proposição 31 do De libertate, onde Espinosa afirma que, embora só agora estejamos certos da eternidade da mente, consideraremos como se só a partir de então ela começasse a o ser, como se a eternidade da mente tivesse tido um começo no momento em que compreendemos que ela é eterna em parte. Por esse escólio Sévérac afirma que podemos diferenciar o fato de a mente ter uma parte eterna do fato de temos a certeza disso (Sévérac 1, p. 423). Para ele, é justamente porque nos tornamos eternos, porque começamos a experimentar o amor intelectual, que nós fazemos como secomeçássemos a ser eternos (Sévérac 1, p. 424). Contudo, assim como, para formar uma idéia verdadeira do círculo forjando o movimento de um semi-círculo em torno de seu centro, é preciso já ter uma idéia de círculo, assim também, para formar a idéia verdadeira de nossa eternidade é preciso forjar a idéia de seu começo. Porque, segundo o autor, é a ficção do devir eterno que engendra a certeza do devir eterno, da eternidade, com o que nos tornamos verdadeiramente mais e mais eternos:

“Os comentadores sem dúvida insistiram bastante sobre o fato de que nos é preciso ser eterno para em seguida tornarmos-nos certos dessa eternidade; é preciso quanto a nós insistir sobre o fato de que só podemos nos tornar certos de sermos eternos se engendramos a partir da ficção de um devir essa certeza, e portanto essa existência eterna” (Sévérac 1, p. 425).

É então a ficção do devir eterno que nos permite ter a certeza de nossa eternidade (Sévérac 1, p. 426), e é a idéia fictícia do devir ativo – o que ele chama de “ficção verdadeira” – que eliminará contudo a idéia de um engendramento da eternidade: “…a ficção do devir faz vir efetivamente o que retrospectivamente não pode mais ser concebido adequadamente em termos de devir” (Sévérac 1, p. 427). Assim a passagem à atividade é uma idéia fictícia que precisa ser forjada. Não há de fato passagem: o que há é um esforço que vai de uma atividade reduzida, porque limitada pelas potências exteriores, à uma atividade expandida, porque determinada antes de tudo pela atividade interna da mente na produção dos afetos.O devir ativo eterno não é portanto inexplicável. Ele se deixa apreender no momento mesmo em que se realiza. No ponto onde tudo pareceria problemático – de onde um devir eterno se já estamos necessariamente na eternidade? –, tudo se resolve, segundo Sévérac, pois no momento mesmo em que nos tornamos eternos, já não podemos mais nos pensar como não eternos (Sévérac 1, p. 435). Sévérac nos fala assim em processo eterno de engendramento da certeza da eternidade. Partindo da passividade, cabe-nos engendrar a atividade eterna, e é a isso que nos conduz nosso “supremo esforço”, que recorre à ficção de nosso “nascimento na beatitude”, mas essa ficção “faz advir o que retrospectivamente não pode mais ser concebido senão como eterno”. O devir ativo reabsorve todo o passado, que se torna ele mesmo eterno, sendo concebido em sua eternidade. Os estudiosos de Espinosa não deixarão de encontrar, nessas leituras de Sévérac, os motivos de um grande prazer intelectual.

Referencias

  1. SÉVÉRAC, Pascal. Le devenir actif chez Spinoza. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2005.
  2. SPINOZA, B. de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

Marcos Ferreira de Paula – Professor de filosofia do Departamento de Saúde, Educação e Trabalho da Unifesp-Santos.

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Espinosanos | USP | 1995

Cadernos Espinosanos1 Liberdade

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, nasceu em 1995. Ao longo deste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.

Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempre estiveram presentes a cada edição.

O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.

Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto.

Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento deste trabalho.*

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