As múltiplas facetas da alimentação na história / História e Cultura / 2020

Ao falarmos de estudos sobre a alimentação, do que estamos tratando? Ou melhor, do que é possível tratar? O presente dossiê traz algumas respostas. Mas, de antemão, é possível afirmar que a amplitude de espaços, estruturas, roupagens e significados da alimentação é enorme na historiografia dos últimos trinta anos. Vários objetos de interesse, recortes temporais, focos que se cruzam ou superpõem, temas que privilegiam tangencialmente questões do comer ou investigações integralmente dedicadas a ele. Os estudos podem se atentar aos alimentos em si, sua produção, aquisição, circulação, consumo, carência, representações, funções cotidianas, etc.; à nutrição, à dieta, aos modelos e sistemas alimentares, à culinária (a cuisine, a “cozinha” propriamente dita); aos hábitos à mesa, às práticas de comensalidade, aos espaços e equipamentos, contextos e agentes, aos próprios comensais; à fisiologia ou à dimensão cultural do gosto; podem se debruçar também sobre a educação, a segurança e as políticas alimentares, enfim. Essa amplitude, entre outros fatores, tem conferido fôlego aos estudos sobre a alimentação nas Ciências Humanas, evidenciando também a consolidação do caráter multidisciplinar desses estudos, do qual a História não se exime.

Comer conjuga natureza e cultura (MONTANARI, 2008; ROSSI, 2014, p. 29-33). É necessidade biológica evidente, mas os variados níveis de manipulação dos alimentos, assim como a eleição daquilo que se come, a partir de uma série de critérios possíveis, são condicionados por repertórios de práticas e pactos socialmente construídos e partilhados. A dimensão cultural da alimentação é, pois, fundamental. Assim, uma porção de perspectivas e abordagens se faz possível para pensar as estruturas, os costumes e as significações em torno do comer (POULAIN; PROENÇA, 2003, p. 365-386). A produção, o preparo e a utilização dos alimentos são considerados os mais antigos processos econômicos, ligados ao trabalho da terra e às trocas de gêneros essenciais como mercadorias. Foi da atenção dada à cultura material no âmbito da História Econômica que apareceram estudos dedicados aos espaços, equipamentos e utensílios associados à alimentação (BRAUDEL, 2005). Posteriormente, a percepção de que as formas de preparo e de consumo dos alimentos seriam manifestações de sentidos, valores, mentalidades, memórias, identidades, etc., também ampliou o leque de interesses e de questões elencadas a respeito do comer nas sociedades do passado. Atualmente, vê-se a articulação de noções biológicas às análises sociológicas, antropológicas e históricas – ainda que essas noções tenham fundamentações do nosso tempo presente, como as propriedades nutritivas dos alimentos, tornando sua mera projeção a recortes passados um problema metodológico. Vê-se também indagações de cunho filosófico sobre os aspectos e o valor do prazer em comer e beber, as virtudes morais da temperança e do excesso (COVENEY, 2006), a ética da alimentação, que inclui o respeito à vida animal enquanto fonte de alimento, a moralidade das modernas biotecnologias, entre outras questões (WOLFF, 2018).

No Brasil, pode-se afirmar que o “campo”, permitindo-nos assim chamá-lo, encontrase consolidado. Na esteira de esforços e incentivos nacionais por mais de duas décadas, o ano de 2020 assistiu à publicação do monumental História e Alimentação: Brasil, séculos XVI-XXI, livro organizado pelas professoras Leila Mezan Algranti e Sidiana Ferreira de Macêdo, contando com a participação de 33 pesquisadores de universidades de todo o país, autores de 29 textos que compõem uma amostragem robusta do estado da produção historiográfica sobre o tema. Também em 2020, a despeito dos obstáculos impostos pela pandemia de covid-19, o DIAITA – Patrimônio Alimentar da Lusofonia, grupo que une importantes pesquisadores do Brasil e de Portugal, e o Alere – Grupo de Pesquisa da História do Abastecimento e da Alimentação na Amazônia, da Universidade Federal do Pará, realizaram virtualmente seus sétimo e quarto colóquios, respectivamente, fomentando debates e reafirmando a disseminação e a consolidação dos estudos sobre a alimentação no país.

Sendo assim, neste dossiê, preterimos a postura de manifesto incentivo, comum a iniciativas similares em anos anteriores, preferindo tomá-lo também como amostragem e como avanço no que cremos ser uma fase de amadurecimento dessas pesquisas no Brasil: multidisciplinares, que lançam mão de ferramentas e procedimentos variados, interessadas em múltiplos objetos, conduzidas por historiadores de quase todas as regiões, em diferentes níveis de formação. Dada a abrangência da proposta e dos textos em resposta aqui reunidos, optamos por dispô-los cronologicamente, de modo a facilitar a leitores interessados em períodos e recortes específicos a consulta direta ao sumário. Contudo, nesta apresentação, trataremos, como dito, do conjunto de artigos como uma amostragem que reúne temas e perspectivas relevantes, e apontaremos diálogos possíveis entre eles, elucidando algumas das tais variadas facetas da alimentação que dão amplitude e sentido ao dossiê ora apresentado. Os temas e abordagens anunciados, por vezes, confundem-se – como é o caso da memória –, e não são as únicas possibilidades de agrupamento e coesão entre os textos coligidos. O leitor perceberá que alguns artigos são multifocais, e que também tangenciam assuntos comuns, atentos a questões similares, mas empregando abordagens variadas.

Acreditamos que a possibilidade de se pensar diversos temas, em diferentes períodos, tendo como ponto de partida e de diálogo o entendimento da alimentação como campo de construção e de disputa de memórias, assim como de tensões sociais, seja uma das particularidades do campo. Algumas das reflexões aqui reunidas sublinham a ligação fundamental entre alimentação e memória, uma vez que os gostos alimentares são construídos em um processo que envolve a memória afetiva e a memória social, enquanto outras tomam a(s) memória(s) como caminho para tratar de questões sobre o comer. Em Gente, meio e grupo: desvelando o espaço social alimentar de Milho Verde, 1950-1995, Vítor Sousa Dittz desenvolve reflexões sobre o sistema alimentar local a partir de uma abordagem etnográfica. O estudo, realizado com base na observação participante e na condução de entrevistas, tem como foco a memória alimentar dos moradores do bairro rural de Milho Verde, no município de Serro, em Minas Gerais. Dialogando com a concepção de “espaço social alimentar” de Jean-Pierre Poulain, Dittz sublinha as imbricações entre memória, matizes sociais e o acesso a determinados alimentos, como a carne e gêneros alimentícios não produzidos localmente. Ana Paula Benetti Machado e Éder da Silva Silveira, em Sobre sonhos e galinhadas: narrativas sobre comida e memória social, também se valem da memória social para refletir sobre a preservação e / ou o reconhecimento dos patrimônios gastronômicos locais em duas cidades gaúchas, a partir da análise de dois casos: os sonhos de Rio Pardo e a galinhada de Venâncio Aires. A pesquisa deriva de um projeto maior, intitulado Nossa culinária, nosso patrimônio, desenvolvido na disciplina de História da Alimentação: cultura e sociedade, do Curso Superior Tecnológico de Gastronomia da Universidade de Santa Cruz do Sul, e tem entre seus objetivos a produção, por parte dos alunos, de documentação audiovisual sobre patrimônios gastronômicos locais. A partir dessas mídias, produzidas entre 2015 e 2018, os autores refletem sobre a capacidade comunicativa da comida, ou seja, a habilidade de construir e transmitir narrativas, e discutem as contribuições das fontes audiovisuais e da memória social para a história da alimentação. Já Amanda Teixeira da Silva, em Almoçando entre os romeiros de Padre Cícero: memórias do escultor Agostinho Balmes Odísio sobre práticas alimentares no interior do Ceará (1934- 1935), analisa aspectos da alimentação sertaneja e suas representações através do olhar estrangeiro, considerando, além das diferenças culturais, as tensões sociais que enviesaram esse olhar. Tomando as memórias do italiano Agostinho Odísio como meio para tratar da alimentação, o texto inquire o estranhamento por parte do escultor frente ao novo paradigma alimentar com o qual se deparou ao mudar-se para Juazeiro do Norte, um estranhamento em boa parte marcado por anseios de distinguir-se dos demais habitantes daquelas paragens interioranas, que indicia também os parâmetros e valores tidos por Odísio como preferíveis, que são, de certo modo, memoriais.

O comer – o que se come, como se come, com quem se come – nos situa dentro de uma gama específica de lugares sociais e identidades possíveis (GOODY, 1995; MONTANARI, 2009). Isso não significa, entretanto, uma determinação fechada da relação entre comida e identidade: da mesma forma que um alimento pode assumir diversos significados através das formas de preparo e de consumo, as identidades também são repensadas e ressignificadas a partir de sua relação com os saberes e fazeres culinários. Em A invenção da gastronomia “típica alemã” na mídia impressa contemporânea do Vale Dos Sinos, RS, Brasil, Fátima Vitória Canha Blum e Ricardo Willy Rieth analisam a forma como a gastronomia rotulada “típica alemã” foi representada através da imprensa no Vale dos Sinos, entre 2015 e 2016, investigando a produção de sentidos e a ressignificação de identidades por meio da culinária. Atentam-se aos discursos textuais e imagéticos dos jornais para analisar o que se pensa e o que se propaga quanto ao que é tido como “ser alemão” na região sul, pondo em questão algumas noções homogeneizantes. Tomam o jornal como uma forma de “pedagogia cultural”, que ensina e convida à adesão aos modos identitários germânicos, enquanto discorrem também sobre processos de adaptação e hibridismo quanto a esses elementos veiculados como típicos. Partindo também de elementos da cultura alimentar local atrelada a noções identitárias, Marcus Pierre de Carvalho Baptista, Alcebíades Costa Filho e Francisco de Assis de Sousa Nascimento analisam a comida como marcador social no artigo Questões de identidade e distinção social através do consumo de caranguejo, peixe e caju no litoral piauiense na primeira metade do século XX. Lançando mão de jornais, livros de memória, documentos do poder executivo e crônicas de viajantes, os autores evidenciam os processos afetivos que ligam a comida a noções de pertencimento, destacando as tensões sociais e as disputas de poder enredadas na construção de identidades. A trajetória do consumo do caranguejo é particularmente ilustrativa, pois os autores traçam as modificações nos discursos sobre o alimento, do seu consumo entre os povos indígenas no período colonial até a sua associação com ideias de sofisticação e modernidade no início de século XX, veiculadas na imprensa piauiense. As tensões entre identidade e patrimônio também são expostas através da análise da trajetória de consumo da cajuína, que, assim como o caranguejo, teve suas origens ressignificadas de modo a atender a demandas identitárias específicas.

Questões relativas à disponibilidade e ao abastecimento de comida são privilegiadas há tempos pelos estudos sobre a alimentação. As investigações têm transposto questões econômicas por meio de indagações pertinentes a respeito da configuração social dos agentes e das estruturas envolvidas no aprovisionamento de espaços e públicos específicos, extraindo daí, também, respostas de cunho social e cultural. Em Cozinha mineira e abastecimento alimentar nos campos de Vila Rica de Ouro Preto nos séculos XVIII e início do século XIX, Maria do Carmo Pires analisa documentação administrativa variada para tratar do cotidiano da produção e do fornecimento de alimentos na região de Vila Rica de Ouro Preto, nas Minas Gerais, entre os últimos decênios do século XVIII e início do XIX. Atenta aos aspectos de construção do que atualmente é tido como culinária tradicional mineira – vemos novamente o interesse pela tradição e a identidade –, a autora observa as estruturas, os gêneros, os agentes e as regulamentações que permearam o desenvolvimento da rede de provisões que funcionava no entorno da vila, constatando também a longevidade de muitos alimentos da cozinha mineira, hoje considerados típicos na região. Similarmente interessados na organização e na importância das redes de abastecimento, Josenildo Américo Paulino e Bruno Augusto Dornelas Câmara tratam do fornecimento de gêneros de primeira necessidade na cidade do Recife, entre 1825 e 1835, a partir, principalmente, dos anúncios em jornais. No artigo A cidade do Recife e o abastecimento de gêneros de primeira necessidade (1825-1835), os autores contemplam a importância da entrada portuária de víveres como a farinha de mandioca e o charque, além de outros produtos importados, concomitante à vitalidade das roças e sítios circunvizinhos ou no interior da província de Pernambuco, fornecedores de complementação vegetal e láctea, para a subsistência dos recifenses. Um circuito composto, fundamental para a cidade. Everton Luiz Simon e Eliane Cristina Deckmann Fleck, em Territórios e saberes da alimentação: a produção e o consumo de cereais no Rio Grande do Sul oitocentista, debruçam-se sobre os relatos de quatro viajantes, Nicolau Dreys, Auguste de Saint-Hilaire, Carl Seidler e Robert AvéLallemant, que passaram pela província sul-rio-grandense entre os anos de 1817 e 1858. O texto exibe marcado interesse agrícola, sem deixar, todavia, de contemplar os costumes observados em torno dos gêneros tratados pelos autores. Simon e Fleck elencam as descrições das condições propícias do clima e da localização geográfica da província, onde cresceriam bem tanto itens locais quanto aclimatados, dos quais citam trigo, milho, arroz, centeio, cevada, aveia e trigo sarraceno. Entre o histórico dos cultivos e processamentos de cada tipo de grão, sua reputação e simbologia entre os grupos sociais da região, e os entraves de abastecimento em função dos diferentes direcionamentos das forças produtivas, o artigo ainda indica os princípios basilares e as adaptações culinárias dos agrupamentos de imigrantes alemães em torno de alguns desses cereais.

Além da importância das estruturas e redes estáticas e estáveis de aprovisionamento, aguça-se a necessidade do manejo adequado de alimentos em situações instáveis, de crise, como as guerras. O abastecimento de combatentes e civis em períodos e locais comprometidos pelos conflitos, nos quais as carências básicas costumam ser acentuadas, também tem recebido atenção dos estudiosos. Sergio William de Castro Oliveira Filho e Luana Costa Pierre de Messias, em “Se as glórias militares matassem a fome”: a alimentação na marinha imperial brasileira durante a Guerra da Tríplice Aliança, tratam dos meandros do fornecimento de víveres aos combatentes na chamada Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870. A partir de relatórios, cartas, diários, memórias, ofícios e Ordens Gerais produzidos por oficiais engajados na contenda, os autores discorrem sobre os diferentes momentos e entraves do fornecimento de alimento aos marinheiros e soldados das forças brasileiras combatendo nas redes fluviais fronteiriças, sem esquecer das variedades mais comuns e das mais faltantes àqueles homens em campanha. Angela Bernadete Lima, enquanto isso, se preocupa com a parcela civil afetada por outro confronto, e se debruça sobre os espaços urbanos de cultivo de alimentos em Berlim, entre o ocaso e os anos seguintes à Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Lançando mão de documentação governamental, como normativas, portarias, folhetos e até livros de receitas oficiais, associados a jornais e fotografias, a autora destaca como a reorganização desses espaços, grosso modo, jardins e hortas, previamente cultivados e tidos como áreas verdes, de lazer e de provimento, em contraste ao cenário urbano fabril, foram fundamentais para a sobrevivência dos berlinenses durante e depois daquele conflito, graças às iniciativas locais da população e aos incentivos estatais.

Ao lado das redes e estruturas de abastecimento, podemos citar também as ordenações, regimentos, políticas e medidas pensadas e praticadas a fim de normatizar aquilo que se come, a forma como se come, os espaços em que se come, entre outras questões. Em Aspectos da história da alimentação escolar na Primeira República brasileira, Francine Nogueira Lamy Garcia Pinho e Silvia Alicia Martínez tratam dos debates a respeito da alimentação no ambiente escolar, dos esforços da sociedade civil no provimento dessa suplementação aos educandos e do entendimento e da extensão da participação estatal nessas iniciativas, nas primeiras décadas do século XX. Partindo de textos jornalísticos, relatórios governamentais e legislação da época, as autoras iluminam as discussões coetâneas sobre a importância da alimentação escolar, como forma de assistência aos alunos pobres que garantia frequência e permanência nas instituições de ensino, atreladas à concepção – permeada por ideais higienistas – da escola como um dos principais motores de transformação da sociedade, fundamental na superação dos atrasos econômicos, sociais e culturais da então jovem república. Já Vitória Diniz de Souza se debruça sobre a educação de mulheres na Escola Doméstica, instituição ímpar no Brasil, fundada em Natal, no Rio Grande do Norte, em 1914. A Escola, que também publicava sua própria revista, cujos textos são os principais documentos analisados pela autora, operava similarmente sob diretrizes de cunho higienista e mirava a formação de novas sensibilidades em suas educandas, pretendendo, com isso, incentivar a adoção de hábitos alimentares tidos então como apropriados. A autora nota o reforço dos papeis de gênero através da educação feminina e do entendimento do lar e, mais especificamente, da cozinha como o espaço de atuação privilegiado da mulher, a partir do qual, através da instrução doméstica adequada, ela poderia contribuir para o bem estar da sociedade, exercendo seu papel de “dona de casa cidadã”. Em Panelas sem tampas: apontamentos sobre a questão alimentar e a experiência dos africanos no espaço urbano de Luanda (1950-1970), Karina Helena Ramos observa o impacto das transformações da capital angolana e o espaço de ação da população nativa quanto ao que se comia e como se comia. Em um contexto de implementação industrial e de mobilização estatal portuguesa em meio a um impulso regulador e modernizante de suas colônias, políticas alimentares foram pensadas por instituições governamentais a partir de dados captados por centros de pesquisas e comissões, como a Provincial de Nutrição de Angola, em detrimento dos costumes da população. Essa dinâmica é o pano de fundo da análise da autora a respeito da experiência dos angolanos, que recorriam, por tradição, limitação financeira e resistência às políticas portuguesas, aos seus alimentos locais.

Acompanhando a educação e a legislação dos costumes, ordenamentos de outras naturezas também previam diretrizes alimentares – assim como a aplicabilidade dos alimentos a outras esferas do cotidiano. É o que nos mostra Vitória Maria Rodarte em Alimentação e saúde nos mosteiros cistercienses portugueses, ao tratar das prescrições e dos hábitos alimentares dos beneditinos da Ordem de Cister, a partir de livros de regras e usos monásticos, estatutos e ordenamentos que regravam a vida daqueles homens. A autora privilegia o mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, no século XV. Esses espaços de devoção e recolhimento também eram parada de acolhimento e assistência de doentes, onde os alimentos desempenhavam múltiplos papeis, do sustento dos monges à recuperação dos enfermos e à purificação das almas pecadoras, à luz da indissociabilidade da saúde do espírito da do corpo.

Um texto que conjuga várias questões e perspectivas, ilustrando a opacidade dos limites entre temas e abordagens que tratamos até aqui, é Práticas alimentares, hospedagem e peregrinação em duas cantigas de Alfonso X, o sábio, de Guilherme Antunes Junior, dedicado à alimentação dos peregrinos em Castela e Leão, no século XIII. O autor analisa as cantigas e também as iluminuras que as acompanham nos manuscritos, tendo em conta seu contexto de produção, sua dedicatória santa e os parâmetros comuns, na época, àqueles gêneros documentais, possibilitando uma série de reflexões acerca da correspondência entre o escrito e o ilustrado, entre a representação da palavra, da imagem e o tido como real na Península Ibérica baixo-medieval, e as perspectivas religiosas sobre os alimentos e as refeições. Ainda assim, o texto vai além, e tece um quadro em que os espaços e as disponibilidades alimentares na rota a caminho do santuário de Notre-Dame de Rocamadour, juntamente com os utensílios e os costumes à mesa, contemplam o que o autor declara uma “tríplice temática”, que une a peregrinação, a hospedagem e a materialidade das práticas alimentares.

Diante da variedade de temas e abordagens aqui evidenciados, da amplitude temporal e espacial contemplada pelos textos – do século XIII ao XXI, de Castela e Leão a Luanda, passando pelo Piauí, por Minas Gerais e pelo Rio Grande do Sul –, cremos que este dossiê elucide a robustez do campo de estudos sobre a alimentação no Brasil, reunindo também uma amostragem considerável das múltiplas facetas da alimentação na história. Desejamos, assim, uma boa e produtiva leitura!

Referência

ALGRANTI, Leila Mezan; MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de (org.). História e Alimentação. Brasil, séculos XVI-XXI. Belém: Paka-Tatu, 2020.

BELASCO, Warren. Food: the key concepts. Oxford-UK; New York City-USA: Berg, 2008.

BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo. Séculos XV-XVIII. Volume I: As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

COVENEY, John. Food, morals and meaning: the pleasure and anxiety of eating. Second edition. London-UK; New York City-USA: Routledge, 2006.

GOODY, Jack. Cocina, cuisine y classe. Barcelona: Gedisa editorial, 1995.

MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.

_____ (org.). O mundo na cozinha: História, identidade, trocas. São Paulo: Estação Liberdade; Senac, 2009.

POULAIN, Jean-Pierre; PROENÇA, Rossana Pacheco da Costa. Reflexões metodológicas para o estudo das práticas alimentares. Revista de Nutrição, Campinas-SP, vol. 16, n. 4, out. / dez. 2003, p. 365-386.

ROSSI, Paolo. Comer: necessidade, desejo, obsessão. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

WOLFF, Francis. Três utopias contemporâneas. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

Elisielly Falasqui da Silva – Professora Mestre (IFCH-Unicamp)

Gabriel Ferreira Gurian – Professor Mestre (FCHS-UNESP Franca)


SILVA, Elisielly Falasqui da; GURIAN, Gabriel Ferreira. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.9, n. 2, 2020. Acessar publicação original

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