História, arquivos e mulheres: perspectivas interdisciplinares | História e Cultura | 2022

Luiza Tavora e Virgilio Tavora na Hidreletrica de Paulo Afonso 1965 Imagem Historia da energia no Ceara Ary Bezerra LeiteFortaleza em Fotos
Luiza Távora e Virgílio Távora na Hidrelétrica de Paulo Afonso (1965) | Imagem: História da energia no Ceará (Ary Bezerra Leite)/Fortaleza em Fotos

Desde a década de 1970, historiadoras vêm apontando a ausência das mulheres nas narrativas da história tradicional. Como lembra Michelle Perrot, em seu hoje clássico texto “Práticas da Memória feminina”, “no teatro da memória as mulheres são sombras tênues”. As razões para isso estavam no fato da história privilegiar o espaço público, a política e a guerra, lugares sociais que foram durante muito tempo pouco acessíveis às mulheres, mas também à ausência de fontes para uma escrita da história das mulheres, o que Perrot denominou de “o silêncio dos arquivos”. A ausência das mulheres nas narrativas da história, contrapunha-se com o seu papel como guardiãs da memória. Se, como defendeu Perrot, “a memória feminina é verbo”, as fontes primeiras de uma história das mulheres que começou a ser escrita nas décadas de 1970 e 1980 foram os relatos orais, os diários e autobiografias.

Atualmente, como demonstra Joana Maria Pedro, é possível traçar uma historiografia da “história das mulheres” – de vocação interdisciplinar – e mapear um vocabulário específico que foi construído ao longo do tempo pelo uso de categorias como “mulher”, “mulheres”, “gênero” e “feminismo”, impactado mais recentemente por reflexões decoloniais. A proliferação desse campo de estudo a partir dos anos 2000 e a importância não só acadêmica, mas também política e cultural que ele adquiriu é patente e fica visível nos muitos artigos, publicações e eventos acadêmicos dedicados à área. A própria revista História e Cultura lançou dois dossiês sobre “História e Gênero”, em 2018 e 2019. Leia Mais

História e música na América Latina: interlocuções historiográficas | História e Cultura | 2021

A proposição do dossiê “História e Música na América Latina: interlocuções historiográficas” foi feita com o intuito de ampliar as oportunidades de publicação acadêmica nos estudos que articulam Música e História. Nesse quesito, a revista História e Cultura, da UNESP Franca, tornou-se uma importante parceira, proporcionando um novo espaço depois de ter lançado um dossiê semelhante em 2013.

Passados oito anos, inúmeras pesquisas no Brasil e no exterior dedicaram-se a aprofundar as diferentes dimensões da relação entre História e Música, sempre envolvida nas tensões entre as especificidades da linguagem musical e as características dos contextos históricos. Desde então, novas fontes, temas e abordagens ampliaram consideravelmente a ocupação desse território híbrido entre a musicologia e a historiografia. Leia Mais

Historiografia em tempos de urgência: do horizonte de expectativas ao fechamento das esperanças | História e Cultura | 2021

Durante uma entrevista concedida à Véronique Mortaigne em 2005, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss – então com 97 anos – quando perguntado sobre o futuro, respondeu:

Não me pergunte nada desse gênero. Estamos num mundo ao qual já não pertenço. O que conheci, o que amei, tinha 2,5 bilhões de habitantes. O mundo atual conta com 6 bilhões de seres humanos. Ele não é mais o meu. E o do amanhã, povoado por 9 bilhões de homens e mulheres – mesmo se for o pico de população, como nos asseguram para nos consolar -, proíbe-me qualquer previsão… (LEVI-STRAUSS, 2011, p. 57). Leia Mais

As múltiplas facetas da alimentação na história / História e Cultura / 2020

Ao falarmos de estudos sobre a alimentação, do que estamos tratando? Ou melhor, do que é possível tratar? O presente dossiê traz algumas respostas. Mas, de antemão, é possível afirmar que a amplitude de espaços, estruturas, roupagens e significados da alimentação é enorme na historiografia dos últimos trinta anos. Vários objetos de interesse, recortes temporais, focos que se cruzam ou superpõem, temas que privilegiam tangencialmente questões do comer ou investigações integralmente dedicadas a ele. Os estudos podem se atentar aos alimentos em si, sua produção, aquisição, circulação, consumo, carência, representações, funções cotidianas, etc.; à nutrição, à dieta, aos modelos e sistemas alimentares, à culinária (a cuisine, a “cozinha” propriamente dita); aos hábitos à mesa, às práticas de comensalidade, aos espaços e equipamentos, contextos e agentes, aos próprios comensais; à fisiologia ou à dimensão cultural do gosto; podem se debruçar também sobre a educação, a segurança e as políticas alimentares, enfim. Essa amplitude, entre outros fatores, tem conferido fôlego aos estudos sobre a alimentação nas Ciências Humanas, evidenciando também a consolidação do caráter multidisciplinar desses estudos, do qual a História não se exime.

Comer conjuga natureza e cultura (MONTANARI, 2008; ROSSI, 2014, p. 29-33). É necessidade biológica evidente, mas os variados níveis de manipulação dos alimentos, assim como a eleição daquilo que se come, a partir de uma série de critérios possíveis, são condicionados por repertórios de práticas e pactos socialmente construídos e partilhados. A dimensão cultural da alimentação é, pois, fundamental. Assim, uma porção de perspectivas e abordagens se faz possível para pensar as estruturas, os costumes e as significações em torno do comer (POULAIN; PROENÇA, 2003, p. 365-386). A produção, o preparo e a utilização dos alimentos são considerados os mais antigos processos econômicos, ligados ao trabalho da terra e às trocas de gêneros essenciais como mercadorias. Foi da atenção dada à cultura material no âmbito da História Econômica que apareceram estudos dedicados aos espaços, equipamentos e utensílios associados à alimentação (BRAUDEL, 2005). Posteriormente, a percepção de que as formas de preparo e de consumo dos alimentos seriam manifestações de sentidos, valores, mentalidades, memórias, identidades, etc., também ampliou o leque de interesses e de questões elencadas a respeito do comer nas sociedades do passado. Atualmente, vê-se a articulação de noções biológicas às análises sociológicas, antropológicas e históricas – ainda que essas noções tenham fundamentações do nosso tempo presente, como as propriedades nutritivas dos alimentos, tornando sua mera projeção a recortes passados um problema metodológico. Vê-se também indagações de cunho filosófico sobre os aspectos e o valor do prazer em comer e beber, as virtudes morais da temperança e do excesso (COVENEY, 2006), a ética da alimentação, que inclui o respeito à vida animal enquanto fonte de alimento, a moralidade das modernas biotecnologias, entre outras questões (WOLFF, 2018).

No Brasil, pode-se afirmar que o “campo”, permitindo-nos assim chamá-lo, encontrase consolidado. Na esteira de esforços e incentivos nacionais por mais de duas décadas, o ano de 2020 assistiu à publicação do monumental História e Alimentação: Brasil, séculos XVI-XXI, livro organizado pelas professoras Leila Mezan Algranti e Sidiana Ferreira de Macêdo, contando com a participação de 33 pesquisadores de universidades de todo o país, autores de 29 textos que compõem uma amostragem robusta do estado da produção historiográfica sobre o tema. Também em 2020, a despeito dos obstáculos impostos pela pandemia de covid-19, o DIAITA – Patrimônio Alimentar da Lusofonia, grupo que une importantes pesquisadores do Brasil e de Portugal, e o Alere – Grupo de Pesquisa da História do Abastecimento e da Alimentação na Amazônia, da Universidade Federal do Pará, realizaram virtualmente seus sétimo e quarto colóquios, respectivamente, fomentando debates e reafirmando a disseminação e a consolidação dos estudos sobre a alimentação no país.

Sendo assim, neste dossiê, preterimos a postura de manifesto incentivo, comum a iniciativas similares em anos anteriores, preferindo tomá-lo também como amostragem e como avanço no que cremos ser uma fase de amadurecimento dessas pesquisas no Brasil: multidisciplinares, que lançam mão de ferramentas e procedimentos variados, interessadas em múltiplos objetos, conduzidas por historiadores de quase todas as regiões, em diferentes níveis de formação. Dada a abrangência da proposta e dos textos em resposta aqui reunidos, optamos por dispô-los cronologicamente, de modo a facilitar a leitores interessados em períodos e recortes específicos a consulta direta ao sumário. Contudo, nesta apresentação, trataremos, como dito, do conjunto de artigos como uma amostragem que reúne temas e perspectivas relevantes, e apontaremos diálogos possíveis entre eles, elucidando algumas das tais variadas facetas da alimentação que dão amplitude e sentido ao dossiê ora apresentado. Os temas e abordagens anunciados, por vezes, confundem-se – como é o caso da memória –, e não são as únicas possibilidades de agrupamento e coesão entre os textos coligidos. O leitor perceberá que alguns artigos são multifocais, e que também tangenciam assuntos comuns, atentos a questões similares, mas empregando abordagens variadas.

Acreditamos que a possibilidade de se pensar diversos temas, em diferentes períodos, tendo como ponto de partida e de diálogo o entendimento da alimentação como campo de construção e de disputa de memórias, assim como de tensões sociais, seja uma das particularidades do campo. Algumas das reflexões aqui reunidas sublinham a ligação fundamental entre alimentação e memória, uma vez que os gostos alimentares são construídos em um processo que envolve a memória afetiva e a memória social, enquanto outras tomam a(s) memória(s) como caminho para tratar de questões sobre o comer. Em Gente, meio e grupo: desvelando o espaço social alimentar de Milho Verde, 1950-1995, Vítor Sousa Dittz desenvolve reflexões sobre o sistema alimentar local a partir de uma abordagem etnográfica. O estudo, realizado com base na observação participante e na condução de entrevistas, tem como foco a memória alimentar dos moradores do bairro rural de Milho Verde, no município de Serro, em Minas Gerais. Dialogando com a concepção de “espaço social alimentar” de Jean-Pierre Poulain, Dittz sublinha as imbricações entre memória, matizes sociais e o acesso a determinados alimentos, como a carne e gêneros alimentícios não produzidos localmente. Ana Paula Benetti Machado e Éder da Silva Silveira, em Sobre sonhos e galinhadas: narrativas sobre comida e memória social, também se valem da memória social para refletir sobre a preservação e / ou o reconhecimento dos patrimônios gastronômicos locais em duas cidades gaúchas, a partir da análise de dois casos: os sonhos de Rio Pardo e a galinhada de Venâncio Aires. A pesquisa deriva de um projeto maior, intitulado Nossa culinária, nosso patrimônio, desenvolvido na disciplina de História da Alimentação: cultura e sociedade, do Curso Superior Tecnológico de Gastronomia da Universidade de Santa Cruz do Sul, e tem entre seus objetivos a produção, por parte dos alunos, de documentação audiovisual sobre patrimônios gastronômicos locais. A partir dessas mídias, produzidas entre 2015 e 2018, os autores refletem sobre a capacidade comunicativa da comida, ou seja, a habilidade de construir e transmitir narrativas, e discutem as contribuições das fontes audiovisuais e da memória social para a história da alimentação. Já Amanda Teixeira da Silva, em Almoçando entre os romeiros de Padre Cícero: memórias do escultor Agostinho Balmes Odísio sobre práticas alimentares no interior do Ceará (1934- 1935), analisa aspectos da alimentação sertaneja e suas representações através do olhar estrangeiro, considerando, além das diferenças culturais, as tensões sociais que enviesaram esse olhar. Tomando as memórias do italiano Agostinho Odísio como meio para tratar da alimentação, o texto inquire o estranhamento por parte do escultor frente ao novo paradigma alimentar com o qual se deparou ao mudar-se para Juazeiro do Norte, um estranhamento em boa parte marcado por anseios de distinguir-se dos demais habitantes daquelas paragens interioranas, que indicia também os parâmetros e valores tidos por Odísio como preferíveis, que são, de certo modo, memoriais.

O comer – o que se come, como se come, com quem se come – nos situa dentro de uma gama específica de lugares sociais e identidades possíveis (GOODY, 1995; MONTANARI, 2009). Isso não significa, entretanto, uma determinação fechada da relação entre comida e identidade: da mesma forma que um alimento pode assumir diversos significados através das formas de preparo e de consumo, as identidades também são repensadas e ressignificadas a partir de sua relação com os saberes e fazeres culinários. Em A invenção da gastronomia “típica alemã” na mídia impressa contemporânea do Vale Dos Sinos, RS, Brasil, Fátima Vitória Canha Blum e Ricardo Willy Rieth analisam a forma como a gastronomia rotulada “típica alemã” foi representada através da imprensa no Vale dos Sinos, entre 2015 e 2016, investigando a produção de sentidos e a ressignificação de identidades por meio da culinária. Atentam-se aos discursos textuais e imagéticos dos jornais para analisar o que se pensa e o que se propaga quanto ao que é tido como “ser alemão” na região sul, pondo em questão algumas noções homogeneizantes. Tomam o jornal como uma forma de “pedagogia cultural”, que ensina e convida à adesão aos modos identitários germânicos, enquanto discorrem também sobre processos de adaptação e hibridismo quanto a esses elementos veiculados como típicos. Partindo também de elementos da cultura alimentar local atrelada a noções identitárias, Marcus Pierre de Carvalho Baptista, Alcebíades Costa Filho e Francisco de Assis de Sousa Nascimento analisam a comida como marcador social no artigo Questões de identidade e distinção social através do consumo de caranguejo, peixe e caju no litoral piauiense na primeira metade do século XX. Lançando mão de jornais, livros de memória, documentos do poder executivo e crônicas de viajantes, os autores evidenciam os processos afetivos que ligam a comida a noções de pertencimento, destacando as tensões sociais e as disputas de poder enredadas na construção de identidades. A trajetória do consumo do caranguejo é particularmente ilustrativa, pois os autores traçam as modificações nos discursos sobre o alimento, do seu consumo entre os povos indígenas no período colonial até a sua associação com ideias de sofisticação e modernidade no início de século XX, veiculadas na imprensa piauiense. As tensões entre identidade e patrimônio também são expostas através da análise da trajetória de consumo da cajuína, que, assim como o caranguejo, teve suas origens ressignificadas de modo a atender a demandas identitárias específicas.

Questões relativas à disponibilidade e ao abastecimento de comida são privilegiadas há tempos pelos estudos sobre a alimentação. As investigações têm transposto questões econômicas por meio de indagações pertinentes a respeito da configuração social dos agentes e das estruturas envolvidas no aprovisionamento de espaços e públicos específicos, extraindo daí, também, respostas de cunho social e cultural. Em Cozinha mineira e abastecimento alimentar nos campos de Vila Rica de Ouro Preto nos séculos XVIII e início do século XIX, Maria do Carmo Pires analisa documentação administrativa variada para tratar do cotidiano da produção e do fornecimento de alimentos na região de Vila Rica de Ouro Preto, nas Minas Gerais, entre os últimos decênios do século XVIII e início do XIX. Atenta aos aspectos de construção do que atualmente é tido como culinária tradicional mineira – vemos novamente o interesse pela tradição e a identidade –, a autora observa as estruturas, os gêneros, os agentes e as regulamentações que permearam o desenvolvimento da rede de provisões que funcionava no entorno da vila, constatando também a longevidade de muitos alimentos da cozinha mineira, hoje considerados típicos na região. Similarmente interessados na organização e na importância das redes de abastecimento, Josenildo Américo Paulino e Bruno Augusto Dornelas Câmara tratam do fornecimento de gêneros de primeira necessidade na cidade do Recife, entre 1825 e 1835, a partir, principalmente, dos anúncios em jornais. No artigo A cidade do Recife e o abastecimento de gêneros de primeira necessidade (1825-1835), os autores contemplam a importância da entrada portuária de víveres como a farinha de mandioca e o charque, além de outros produtos importados, concomitante à vitalidade das roças e sítios circunvizinhos ou no interior da província de Pernambuco, fornecedores de complementação vegetal e láctea, para a subsistência dos recifenses. Um circuito composto, fundamental para a cidade. Everton Luiz Simon e Eliane Cristina Deckmann Fleck, em Territórios e saberes da alimentação: a produção e o consumo de cereais no Rio Grande do Sul oitocentista, debruçam-se sobre os relatos de quatro viajantes, Nicolau Dreys, Auguste de Saint-Hilaire, Carl Seidler e Robert AvéLallemant, que passaram pela província sul-rio-grandense entre os anos de 1817 e 1858. O texto exibe marcado interesse agrícola, sem deixar, todavia, de contemplar os costumes observados em torno dos gêneros tratados pelos autores. Simon e Fleck elencam as descrições das condições propícias do clima e da localização geográfica da província, onde cresceriam bem tanto itens locais quanto aclimatados, dos quais citam trigo, milho, arroz, centeio, cevada, aveia e trigo sarraceno. Entre o histórico dos cultivos e processamentos de cada tipo de grão, sua reputação e simbologia entre os grupos sociais da região, e os entraves de abastecimento em função dos diferentes direcionamentos das forças produtivas, o artigo ainda indica os princípios basilares e as adaptações culinárias dos agrupamentos de imigrantes alemães em torno de alguns desses cereais.

Além da importância das estruturas e redes estáticas e estáveis de aprovisionamento, aguça-se a necessidade do manejo adequado de alimentos em situações instáveis, de crise, como as guerras. O abastecimento de combatentes e civis em períodos e locais comprometidos pelos conflitos, nos quais as carências básicas costumam ser acentuadas, também tem recebido atenção dos estudiosos. Sergio William de Castro Oliveira Filho e Luana Costa Pierre de Messias, em “Se as glórias militares matassem a fome”: a alimentação na marinha imperial brasileira durante a Guerra da Tríplice Aliança, tratam dos meandros do fornecimento de víveres aos combatentes na chamada Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870. A partir de relatórios, cartas, diários, memórias, ofícios e Ordens Gerais produzidos por oficiais engajados na contenda, os autores discorrem sobre os diferentes momentos e entraves do fornecimento de alimento aos marinheiros e soldados das forças brasileiras combatendo nas redes fluviais fronteiriças, sem esquecer das variedades mais comuns e das mais faltantes àqueles homens em campanha. Angela Bernadete Lima, enquanto isso, se preocupa com a parcela civil afetada por outro confronto, e se debruça sobre os espaços urbanos de cultivo de alimentos em Berlim, entre o ocaso e os anos seguintes à Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Lançando mão de documentação governamental, como normativas, portarias, folhetos e até livros de receitas oficiais, associados a jornais e fotografias, a autora destaca como a reorganização desses espaços, grosso modo, jardins e hortas, previamente cultivados e tidos como áreas verdes, de lazer e de provimento, em contraste ao cenário urbano fabril, foram fundamentais para a sobrevivência dos berlinenses durante e depois daquele conflito, graças às iniciativas locais da população e aos incentivos estatais.

Ao lado das redes e estruturas de abastecimento, podemos citar também as ordenações, regimentos, políticas e medidas pensadas e praticadas a fim de normatizar aquilo que se come, a forma como se come, os espaços em que se come, entre outras questões. Em Aspectos da história da alimentação escolar na Primeira República brasileira, Francine Nogueira Lamy Garcia Pinho e Silvia Alicia Martínez tratam dos debates a respeito da alimentação no ambiente escolar, dos esforços da sociedade civil no provimento dessa suplementação aos educandos e do entendimento e da extensão da participação estatal nessas iniciativas, nas primeiras décadas do século XX. Partindo de textos jornalísticos, relatórios governamentais e legislação da época, as autoras iluminam as discussões coetâneas sobre a importância da alimentação escolar, como forma de assistência aos alunos pobres que garantia frequência e permanência nas instituições de ensino, atreladas à concepção – permeada por ideais higienistas – da escola como um dos principais motores de transformação da sociedade, fundamental na superação dos atrasos econômicos, sociais e culturais da então jovem república. Já Vitória Diniz de Souza se debruça sobre a educação de mulheres na Escola Doméstica, instituição ímpar no Brasil, fundada em Natal, no Rio Grande do Norte, em 1914. A Escola, que também publicava sua própria revista, cujos textos são os principais documentos analisados pela autora, operava similarmente sob diretrizes de cunho higienista e mirava a formação de novas sensibilidades em suas educandas, pretendendo, com isso, incentivar a adoção de hábitos alimentares tidos então como apropriados. A autora nota o reforço dos papeis de gênero através da educação feminina e do entendimento do lar e, mais especificamente, da cozinha como o espaço de atuação privilegiado da mulher, a partir do qual, através da instrução doméstica adequada, ela poderia contribuir para o bem estar da sociedade, exercendo seu papel de “dona de casa cidadã”. Em Panelas sem tampas: apontamentos sobre a questão alimentar e a experiência dos africanos no espaço urbano de Luanda (1950-1970), Karina Helena Ramos observa o impacto das transformações da capital angolana e o espaço de ação da população nativa quanto ao que se comia e como se comia. Em um contexto de implementação industrial e de mobilização estatal portuguesa em meio a um impulso regulador e modernizante de suas colônias, políticas alimentares foram pensadas por instituições governamentais a partir de dados captados por centros de pesquisas e comissões, como a Provincial de Nutrição de Angola, em detrimento dos costumes da população. Essa dinâmica é o pano de fundo da análise da autora a respeito da experiência dos angolanos, que recorriam, por tradição, limitação financeira e resistência às políticas portuguesas, aos seus alimentos locais.

Acompanhando a educação e a legislação dos costumes, ordenamentos de outras naturezas também previam diretrizes alimentares – assim como a aplicabilidade dos alimentos a outras esferas do cotidiano. É o que nos mostra Vitória Maria Rodarte em Alimentação e saúde nos mosteiros cistercienses portugueses, ao tratar das prescrições e dos hábitos alimentares dos beneditinos da Ordem de Cister, a partir de livros de regras e usos monásticos, estatutos e ordenamentos que regravam a vida daqueles homens. A autora privilegia o mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, no século XV. Esses espaços de devoção e recolhimento também eram parada de acolhimento e assistência de doentes, onde os alimentos desempenhavam múltiplos papeis, do sustento dos monges à recuperação dos enfermos e à purificação das almas pecadoras, à luz da indissociabilidade da saúde do espírito da do corpo.

Um texto que conjuga várias questões e perspectivas, ilustrando a opacidade dos limites entre temas e abordagens que tratamos até aqui, é Práticas alimentares, hospedagem e peregrinação em duas cantigas de Alfonso X, o sábio, de Guilherme Antunes Junior, dedicado à alimentação dos peregrinos em Castela e Leão, no século XIII. O autor analisa as cantigas e também as iluminuras que as acompanham nos manuscritos, tendo em conta seu contexto de produção, sua dedicatória santa e os parâmetros comuns, na época, àqueles gêneros documentais, possibilitando uma série de reflexões acerca da correspondência entre o escrito e o ilustrado, entre a representação da palavra, da imagem e o tido como real na Península Ibérica baixo-medieval, e as perspectivas religiosas sobre os alimentos e as refeições. Ainda assim, o texto vai além, e tece um quadro em que os espaços e as disponibilidades alimentares na rota a caminho do santuário de Notre-Dame de Rocamadour, juntamente com os utensílios e os costumes à mesa, contemplam o que o autor declara uma “tríplice temática”, que une a peregrinação, a hospedagem e a materialidade das práticas alimentares.

Diante da variedade de temas e abordagens aqui evidenciados, da amplitude temporal e espacial contemplada pelos textos – do século XIII ao XXI, de Castela e Leão a Luanda, passando pelo Piauí, por Minas Gerais e pelo Rio Grande do Sul –, cremos que este dossiê elucide a robustez do campo de estudos sobre a alimentação no Brasil, reunindo também uma amostragem considerável das múltiplas facetas da alimentação na história. Desejamos, assim, uma boa e produtiva leitura!

Referência

ALGRANTI, Leila Mezan; MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de (org.). História e Alimentação. Brasil, séculos XVI-XXI. Belém: Paka-Tatu, 2020.

BELASCO, Warren. Food: the key concepts. Oxford-UK; New York City-USA: Berg, 2008.

BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo. Séculos XV-XVIII. Volume I: As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

COVENEY, John. Food, morals and meaning: the pleasure and anxiety of eating. Second edition. London-UK; New York City-USA: Routledge, 2006.

GOODY, Jack. Cocina, cuisine y classe. Barcelona: Gedisa editorial, 1995.

MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.

_____ (org.). O mundo na cozinha: História, identidade, trocas. São Paulo: Estação Liberdade; Senac, 2009.

POULAIN, Jean-Pierre; PROENÇA, Rossana Pacheco da Costa. Reflexões metodológicas para o estudo das práticas alimentares. Revista de Nutrição, Campinas-SP, vol. 16, n. 4, out. / dez. 2003, p. 365-386.

ROSSI, Paolo. Comer: necessidade, desejo, obsessão. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

WOLFF, Francis. Três utopias contemporâneas. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

Elisielly Falasqui da Silva – Professora Mestre (IFCH-Unicamp)

Gabriel Ferreira Gurian – Professor Mestre (FCHS-UNESP Franca)


SILVA, Elisielly Falasqui da; GURIAN, Gabriel Ferreira. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.9, n. 2, 2020. Acessar publicação original

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Por uma história dos sertões: novas perspectivas e temporalidades sobre o “Brasil profundo” / História e Cultura / 2020

Falar sobre sertões permite destacar e tensionar categorias como lugar, paisagem e território. Os sertões nos levam também a refletir sobre passados, presentes e futuros. Mais ainda, os sertões podem ser concebidos como um eixo que articula essas duas dimensões: tempo e espaço. Conforme já sugeriram Johannes Fabian (2013) e Marshall Sahlins (1990), os contatos e, muitas vezes, os embates entre culturas diferentes, inscritas em espacialidades diversas, podem estimular reformulações na ordem temporal das sociedades. Pensar os sertões como ponto de encontro entre tempos e espaços, permite enriquecer e adensar as leituras sobre esse objeto, sobre suas representações, sobre os índices que o qualificam e caracterizam, e também sobre os indivíduos que o habitam e constroem. Afinal, onde se inicia o sertão? Quais são os seus limites? Quem o ocupa? Como apreendê-lo e representá-lo?

O dossiê que ora apresentamos procura debater essas questões. O sertão, como conceito, temática ou representação é um objeto que não cessa de se impor ao conhecimento humano em seu máximo potencial interdisciplinar, percorrendo diversos saberes e, complementariamente, vinculando-se às artes. Seja na história social, na ciência política, na literatura ou no cinema, para ficarmos apenas entre alguns dos artigos que compõem o número, o sertão nunca deixou de ser pensado e tematizado. O dossiê oferece, assim, através de abordagens múltiplas, como história oral, social, intelectual, política e religiosa, novas leituras que não apenas refletem sobre os sertões, mas que propriamente o concebem como um objeto passível de ser continuamente examinado e reexaminado. Daí, por exemplo, a predominância, nesse dossiê, de textos e objetos que abordam o sertão a partir de um recorte contemporâneo. Temos, assim, um sertão presente, um sertão que, sem desconsiderar a historicidade que o caracteriza, se faz presente.

Os artigos publicados foram agrupados em quatro categorias: Representações dos e sobre os sertões, Sertões como indutor de abordagens técnico-científicas, Sertões nas suas interfaces religiosas e, por fim, Espaços múltiplos do sertão. As divisões procuram apenas organizar os textos de modo a, talvez, complexificar e enriquecer sua leitura e compreensão. As categorias, portanto, não são pensadas como exclusivas ou excludentes. Pelo contrário, como o leitor e a leitora poderão verificar, os segmentos se superpõem, dialogam entre si e atestam a diversidade do próprio objeto.

Na categoria Representações dos e sobre os sertões, temos o artigo de Marcelino Gomes dos Santos, intitulado “Dos ‘Confins do Brasil’ às passarelas: os sertões na moda”. O texto destaca “novas formas de ver e dizer os sertões na contemporaneidade” e, para isso, recupera uma coleção de vestuário que (re)cria e reapresenta a imagem do vaqueiro na atualidade. A formulação extraída da conclusão do artigo nos parece adequada para encetar os textos do dossiê: “os sertões estão na moda”.

As imagens do sertão também são debatidas por Fabiana Alves Dantas no artigo “Celestino Alves: um poeta sertanejo e o dilema das secas”. Ao analisar a poética de Alves, no livro O Nordeste e as Secas, de 1983, a autora identifica um sertão associado a registros variados, como um espaço de seca e de chuvas, de sofrimento e de alegria. As intempéries que caracterizam a região também produzem um efeito duplo: se tornam a vida difícil, também são responsáveis por dotar o habitante desse território, o sertanejo, de força e resistência.

O artigo de Juliana Rodrigues Morais, intitulado “Um hermeneuta da tradição sertaneja: Ariano Suassuna e o Romance d’A Pedra do Reino”, apresenta uma perspectiva semelhante. O projeto de Suassuna é precisamente, como informa Morais, “defender, com sua arte, a cultura sertaneja”. A defesa, elaborada na obra Romance d’A Pedra do Reino, de 1971, promove não apenas uma visão renovada do sertanejo, mas também uma leitura alternativa para a história do Brasil, fundada num ponto de vista local e construída a partir da mescla entre o real e o mágico.

Enquanto o escritor Suassuna, conforme argumenta Morais, rompe com a historiografia tradicional, os documentaristas Geraldo Sarno e Jorge Prelorán procuram retomar obras clássicas de interpretação do Brasil e da Argentina para representar, respectivamente, o sertão brasileiro e o deserto argentino. Esse argumento é construído por Ana Caroline Matias Alencar no texto “Entre São Saruê e Vales Vizinhos das Nuvens: um estudo sobre as figurações espaciais do Cariri e de Humauaca”. Assim, nos médias-metragens realizados entre 1969 e 1970, Sarno e Prelorán reatualizam “tópicas discursivas e procedimentos interpretativos presentes nas obras de intelectuais outros”, como Euclides da Cunha e Domingo Faustino Sarmiento, para figurar e registrar as regiões do Vale do Cariri e da Quebrada de Humauaca.

A visão do sertão, contudo, não é apenas registrada pelos filmes. Ela é esculpida também nas estátuas e monumentos. No texto de Daniel Barreto Lopes, “Sertão monumental: considerações sobre a atribuição de valor de testemunho histórico”, os habitantes do espaço sertanejo, como o vaqueiro, enfrentam o risco do desaparecimento. A resposta ao perigo do esquecimento é dada, segundo Lopes, pela “monumentalização do sertão”, ou seja, por uma produção histórica e cultural que registra a memória e a torna visível em outros tempos, não apenas no presente, mas também no futuro. A categoria Representações dos e sobre os sertões, enfim, reúne artigos que transformam o sertão num objeto de registros múltiplos, oriundos da moda, da poesia, da literatura, do documentário e da estatuaria. A partir do território do sertão, ainda, os tempos são diversos: o presente da moda, o passado da história e da memória, o futuro que por meio da estátua e do documentário resguarda o que poderia desaparecer.

A segunda categoria Sertões como indutor de abordagens técnico-científicas, compreende textos que concebem o sertão como um território tanto marcado por mazelas como a seca, quanto caracterizado como índice de brasilidade e, portanto, um espaço que enseja intervenções técnicas e investimentos intelectuais. No artigo “Do vazio incógnito a problema nacional: o Nordeste brasileiro sob o olhar Politécnico, 1877-1909”, Yuri Simonini demonstra como o fenômeno da seca produziu iniciativas que procuravam não apenas estudar as então chamadas “Províncias do Norte”, quanto propor medidas e soluções para a região. O sertão aqui é visto como um desafio, um problema a ser superado. Daí a proliferação de estudos e registros que tanto embasaram e subsidiaram as ações técnicas e políticas, quanto permitiram que o Brasil passasse a “entender melhor seu território”, como aponta Simonini.

Entre as ações concebidas, encontramos a criação dos campos de concentração no Ceará, objeto do texto “O controle do espaço do Sertão: os campos de concentração do Ceará na seca de 1932” de Leda Agnes Simões de Melo. Tratou-se de uma resposta às secas, mas também de uma intervenção sobre a população, tanto que o projeto dos campos implementados pela Inspetoria Federal de Obras Secas (IFOCS) dispunha de finalidades civilizadoras e voltava-se, como argumenta a autora, para o controle de “regiões, corpos e mentes”.

No entanto, o sertão não era visto apenas como um obstáculo. No artigo “Euclidianismo, agenda cívico-letrada e a categoria de sertão em trânsito: o caso do CCEC (meados do século XX)”, de autoria de Caroline Aparecida Guebert, o sertão também é o lócus ou o símbolo da nação e da “brasilidade”. O texto encerra a categoria sobre os esforços técnico-científicos e demonstra como os integrantes do Centro Cultural Euclides da Cunha (CCEC), instituição paranaense, mobilizaram leituras específicas do espaço sertanejo para pensar o “Brasil profundo”. Esse investimento concebia Euclides da Cunha, conforme afirma Guebert, “como modelo do intelectual brasileiro, uma vez que sua obra fala do país que é rural e sua biografia reforça a interdependência entre a figura social do escritor investida como herói e o esforço pela obra da construção nacional”.

Outro tema presente nos artigos aqui reunidos, se apresenta sob a categoria Sertões nas suas interfaces religiosas. A religiosidade ocupa um lugar proeminente quando se trata de investigar o modo de pensar e agir de determinadas sociedades e o estabelecimento de um universo mítico que cria e dá sentido às práticas cotidianas. A dispersão do catolicismo pelo mundo determina e reforça hábitos e crenças que, por sua vez, são vivenciados pelos seguidores de diferentes modos, inclusive estabelecendo novos sentidos e práticas. O artigo de Ruan Carlos Mendes, “Maria das Quengas: devoção e cruz ‘perfumada’ nas narrativas dos fiéis”, trata do que o autor nomeia como “devoções marginais”, ou seja, aspectos da religiosidade que se constroem às margens do catolicismo dito oficial. No caso narrado, através das entrevistas aos devotos de Maria das Quengas, são discutidos elementos que levaram à criação da devoção e às denominações de “santa” ou “milagreira”, onde é perceptível a atribuição de significados que escapam aos cânones católicos que regem o processo de santificação.

No artigo de Jefferson Evânio, intitulado “A politização do sagrado no Agreste pernambucano, 1960-1980”, surge a simultaneidade e disputas de espaços e discursos entre o referido catolicismo oficial e sua versão denominada de popular. O autor mostra os mecanismos criados por distintos atores sociais para definir o que é sagrado, em concomitância com sua visão de mundo. Para Evânio, “O sagrado, longe de ser um dado da natureza, foi na região sistematicamente objeto de disputas. Instituído politicamente por homens e mulheres, sacerdotes e rezadores, todos ‘unidos’ e separados em função da vivência de sua fé no sobrenatural”.

A categoria Espaços múltiplos do sertão apresenta o sertão primeiramente sob a ótica da ocupação do espaço e sua integração na formação de uma identidade nacional. Laryssa da Silva Machado e Lucas da Silva Machado, em “Desbravando os sertões capixabas: a colonização do Vale do Itapemirim”, utilizam os recursos do campo da micro-história para mostrar como a colonização da região só ocorreu tardiamente e esteve vinculada à ideia de que os sertões seriam um local a ser conquistado.

A questão da ocupação e delimitação de espaços sertanejos, aparece sob outra perspectiva em dois trabalhos que tratam da ocupação da região Norte. O primeiro deles, escrito por André José Santos Pompeu e Wania Alexandrino Viana, parte da ideia de que o sertão é um “ambiente complexo, multifacetado”. Intitulado “Sujeitos sertanejos na Amazônia Colonial (séculos XVII e XVIII)”, os autores exploram o sentido da palavra sertão para o espaço amazônico, levando em conta aspectos militares e econômicos, procurando entendê-lo por meio das relações que se estabeleceram entre a corte real portuguesa, a ocupação estrangeira e portuguesa, a defesa das fronteiras e o desenvolvimento de um comércio transatlântico de produtos como as drogas do sertão. Ao longo do texto, uma ideia importante pode ser destacada – a “nova visão” de sertão, não apenas como interior, como local isolado, mas como estabelecedora de uma rede distinta de relações entrelaçadas, especialmente, pelas questões econômicas e militares, exploradas pelo autor nas fontes do período.

Benedito Emílio da Silva Ribeiro, em “Território, poderes tutelares e agências indígenas: análises preliminares sobre trânsitos, trocas e r-existências na fronteira Brasil-Guiana Francesa (1930-1945)”, pondera sobre a construção de um espaço marcado pelos contatos entre brasileiros, franceses e grupos indígenas, explorando especialmente como os últimos se apropriaram e subverteram a lógica de agenciamento, de sedentarização e civilização “imposta” pelo Estado brasileiro por meio de seus órgãos oficiais para, assim, atingirem seus objetivos ligados à manutenção da territorialidade, das suas relações sociais e cosmológicas.

Em seguida, temos o trabalho de Auricharme Cardoso de Moura, “O sertão de Minas irrigado: modernização agrícola e mundo dos trabalhadores”, que narra como a seca caracteriza e marca certos espaços geográficos, ao mesmo tempo em que mobiliza discursos que apagam e submetem “as experiências dos sujeitos a valores e hábitos considerados civilizados”. O projeto de integração nacional, dos diferentes espaços, mascarava as intenções capitalistas e de domínio de determinados grupos sociais. A dicotomia atraso e modernidade, legitimava a ação dos grupos dominantes, que viam a si mesmos como os responsáveis pela inserção da população sertaneja no tempo do progresso.

Finalmente, o artigo “A Liça e as representações em torno do sertão do Cariri Cearense: por uma história intelectual dos sertões”, de Johnnys Jorge Gomes Alencar, trata das representações em torno do conceito de sertão e como foram mobilizadas para a “construção de uma identidade para o Cariri cearense, enquanto região”, buscando se opor às concepções tradicionais de sertão. O Crato surge, assim, como um “oásis do sertão” em oposição ao entorno que seria atrasado, bárbaro e primitivo. Cabe ressaltar ainda que este trabalho se insere na perspectiva de um campo em desenvolvimento – o de uma história intelectual do sertão – visto que o termo, atualmente, é atravessado por uma multiplicidade de sentidos.

Como dito acima, as categorias apresentadas não visam impor limites aos textos, mas, ao contrário, estimular a leitura a partir de eixos que se cruzam e sobrepõem de modo a, potencialmente, ressignificar e complexificar as contribuições desse dossiê. Pensamos, por fim, que talvez seja possível conceber o presente número como uma contribuição para a “História dos Sertões como área de concentração específica”. Conforme proposta formulada por Evandro dos Santos (2019, p. 450), a ideia permitiria “estimular a produção de uma historiografia sobre os sertões e, mais ainda, desde os sertões”. O dossiê reúne, nesse sentido, pesquisadores e pesquisadoras de variados espaços regionais e lugares institucionais que concebem o sertão como um objeto múltiplo e complexo, simultaneamente fonte de inspiração e de desafios. O quadro que emerge dos artigos é vibrante. Em conjunto, o leitor e a leitora encontrarão um amplo estudo sobre as apreensões e caracterizações dos sertões, o que apenas atesta e reitera a atualidade e a riqueza do objeto.

Referências

FABIAN, Johannes. O tempo e o outro: como a Antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

SAHLINS, Marshall David. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

SANTOS, Evandro dos. “Ensaio sobre diversidade historiográfica: como escrever (e reconhecer) histórias dos sertões a partir de novas e ‘velhas” epistemologias’. Sæculum – Revista de História, João Pessoa, v. 24, nº 41, p. 441-452, 2019.

Eliete Lúcia Tiburski – Professora Doutora (UFRGS)

Eduardo Wright Cardoso – Professor Doutor (Docente convidado – PUC-Rio)


TIBURSKI, Eliete Lúcia; CARDOSO, Eduardo Wright. [Por uma história dos sertões: novas perspectivas e temporalidades sobre o “Brasil profundo”]. História e Cultura. Franca, v.9, n. 1, 2020. Acessar publicação original [DR]

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História e gênero: novos debates / História e Cultura / 2019

Neste segundo dossiê sobre História e Gênero, reunimos pesquisas que discutem e analisam referenciais teóricos aplicados a estudos de caso, que denotam os anseios contemporâneos debruçados sobre as perspectivas de como o gênero transcende no cotidiano. Assim como no primeiro dossiê, as formas de representação narrativa dos sujeitos em seus contextos e campos sociais demonstram uma extensão de cada pensamento do indivíduo e de como ele intenciona ser compreendido dentro desses contextos. Nessa perspectiva, esse dossiê busca através da reunião de textos de especialistas perceber como temas gênero e História são desvelados e ressignificados por seus agentes sociais.

Assim cada pesquisa proposta, enaltece o propósito da ciência no do Brasil e no mundo, pois fortalece caminhos para o entendimento de gênero, não como uma categoria definitiva, mas que carece de estudos constantes, dentro de referenciais e conceitos tidos como definitivos.

Portanto, o dossiê apresenta artigos diversos que dialogam entre si por articularem debates sobre História e gênero. O primeiro artigo do dossiê traz a novela O exílio do tempo, da venezuelana Ana Teresa Torres, como tema. Essa novela apresenta a lembrança e a memória de uma saga familiar onde as vozes enunciativas são as mulheres e a sua vida privada dentro do lar, que transcorrem numa passagem de tempo durante o século XX, em uma sociedade masculina e uma relação de poder imposta.

Compreender o discurso da mídia empresarial na construção da mulher executiva na contemporaneidade, fez do segundo artigo do dossiê, uma proposta de discussão e sobre a liderança da mulher, o artigo debruçou-se em duas reportagens da revista empresarial HSM Management, o estudo aponta a relação competitiva entre o homem, a mulher, os novos papeis que se apresentam tendo como referencial análise do discurso em Michel Foucault.

Entender a contribuição que os impressos tiveram para a trajetória do comportamento feminino destacou o artigo evidenciando, a forma de ação das mulheres durante as décadas de 1920 e 1930 em Belo Horizonte, Minas Gerais. Tais publicações denotaram a normatização de comportamento para o feminino que não só eram estabelecidas, mas também como eram reconhecidas socialmente.

No artigo seguinte, podemos conhecer parte das relações estabelecidas entre as mulheres açorianas e seus descendentes na Vila Carrão em São Paulo, tendo como metodologia a história oral, o estudo apontou a importância e a sua ressignificação na gastronomia, nas festas, na religiosidade, nas atividades lúdico-recreativas da Casa dos Açores, e a importância de salvaguardar as tradições.

A película Boi Neon, destacada em outro artigo, tem por objetivo refletir as masculinidades no contexto nordestino destacando a principal contribuição de João Silvério Trevisan sobre a crise do masculino – (re)pensar performatividades criadas sobre o corpo masculino e a relação histórica entre “novos” padrões e a construção histórica das relações de gênero discutida, aqui, pela produção de Durval Muniz de Albuquerque Júnior sobre a “invenção” da virilidade do nordestino em torno de arquétipos violentos e rurais.

O sexto artigo apresenta as representações criadas por Francisco Brennand tanto no desenho quanto na pintura, e assinala todo o campo simbólico que se comunica dentro desses contextos que estão os gêneros e as sexualidades. Enquanto isso, outro artigo de nosso dossiê traz à cena a análise da tragédia, tendo o Teatro, uma das principais expressões artísticas e culturais na cidade grega de Atenas. Medeia escrita pelo poeta Eurípides que apresenta uma personagem feminina que se distancia do ideário comportamental desejado para uma mulher na época desafia propostas de ensino, no âmbito escolar a compreender a realidade multifacetada do gênero.

No Rio Grande do Sul, seis processos-crime da fronteira durante a Primeira República (1889-1930) em que mulheres agrediram outras mulheres, seus amásios, ex-amásios e policiais, desafiam ao nosso entendimento, as formas de manifestação feminina, entendidas como “adequadas” ou não, e principalmente o valor do papel social da mulher diante do homem, e a relação de poder estabelecida por uma sociedade patriarcal.

Novas tecnologias, novas relações, apegadas ainda a valores masculinizados, assim o artigo discute as disputas entre homens e mulheres, a divisão sexual no trabalho e tem como pano de fundo o filme Boi Neon. Ao encontro dessa discussão, outro artigo discutirá a importância do Iluminismo, e como esse movimento mudou a forma de pensar sobre antigos valores, que delimitavam os espaços de aprendizagem, culturais e a atuação feminina nesses espaços. E em contrapartida a esses dois artigos, entre o contemporâneo e a modernidade, observamos um panorama da presença das mulheres de classe média em seus espaços domésticos e sua interação com o espaço urbano de São Paulo em meados do século XX, momento em que a independência está na ocupação dos espaços urbanos, e isso não só como entretenimento mas como formação profissional e acadêmica.

Por fim, teremos um artigo que discute a violência na Paraíba, os raptos consentidos, datados entre as décadas de 1920 e 1940, onde foram analisados os cordéis, processos-crimes e música do mesmo período, reforçam a discussão da violência de gênero como um assunto ainda contemporâneo, e apesar de se consentido, ele demonstra a relação de poder e domínio, não de um indivíduo pelo outro, mas de valores sociais e familiares sobre o indivíduo. Cabe ressaltar, que os raptos consentidos ocorriam em outros lugares fora da Paraíba.

Gianne Zanella Atallah – Doutora em Memória Social e Patrimônio Cultural (PPGMP / ICH-UFPEL / RS -2018). Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural (PPGMP / ICH-UFPEL / RS – 2011). Especialista em Patrimônio Cultural: Conservação de Artefatos (ILA-UFPEL / RS-1997). Graduada em História – Licenciatura Plena (FURG / RS-1993). Dirigente do Núcleo de Patrimônio – SECULT / Prefeitura Municipal de Rio Grande / RS (Fototeca Municipal Ricardo Giovannini e Pinacoteca Municipal Matteo Tonietti). Docente em História da Rede Municipal – SMED / Prefeitura Municipal do Rio Grande / RS. E-mail: [email protected]

Júlia Silveira Matos – Pós-doutoranda em Educação UFPEL. Professora de História da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, coordenadora do Laboratório Independente de pesquisa em Ensino de Ciências Humanas – LABEC, formada em História Licenciatura pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2002), possui especialização em Teologia com habilitação para Ensino Religioso, mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005) e doutorado pelo Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2008). E-mail: [email protected]


ATALLAH, Gianne Zanella; MATOS, Júlia Silveira. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 8, n. 2, ago-nov, 2019. Acessar publicação original [DR]

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História e subúrbio / História e Cultura / 2019

O subúrbio como objeto de estudo

De acordo com José de Souza Martins, em sua obra Subúrbio, originalmente publicada em 1992, “até aqui a história de São Paulo tem sido escrita do centro para a periferia: a perspectiva elitista do centro domina a concepção que se tem do que foi o subúrbio no passado.”[1] Para apresentar um contraponto a essa perspectiva de análise, o autor procurou deslocar o olhar e se propôs a pensar sobre a especificidade da história do subúrbio, caracterizando-a como “circunstancial”, “fragmentada” e “residual”.

Quase três décadas se passaram desde a publicação do trabalho de José de Souza Martins e ainda hoje os estudiosos que se dedicam à história dos subúrbios, quer de São Paulo, quer do Rio de Janeiro ou de outra cidade brasileira, ainda são raros e, portanto, se defrontam com a dificuldade de diálogo para pensar a respeito desse objeto de estudo. Tanto no âmbito da história urbana, como no da história social ou cultural, poucas são as pesquisas que buscam problematizar os subúrbios, a sua história e a de seus moradores, bem como as características de suas relações com as áreas urbanas contíguas.

Margareth da Silva Pereira, que organizou o verbete “subúrbio” da obra A aventura das palavras da cidade, através dos tempos, das línguas e das sociedades [2], ao apresentar um histórico sobre os usos e significados do termo ao longo do tempo, afirma que a palavra não estava presente “nos Códigos de Posturas e nem nos decretos do período Imperial”, por volta de meados do século XIX. Todavia, segundo o depoimento de um contemporâneo: “na linguagem popular, só é designada como cidade a parte onde há maior comércio e estão as repartições públicas […] tudo o mais consideramos subúrbios” [3] . Ou seja, nessa época, os subúrbios estavam associados a uma área considerável do espaço das cidades, mas a investigação a respeito deles ainda foi pouco explorada pelos historiadores.

Embora o tema tenha começado a despertar o interesse de alguns estudiosos nos últimos anos, dentre eles os organizadores deste dossiê, os esforços ainda são esparsos e carecem de um espaço de debate. Conforme afirma José de Souza Martins:

“É preciso repensar a cidade, sua história, suas possibilidades. O olhar que decorre do vivido no subúrbio é instruído pela experiência das rupturas inauguradas pela fábrica, pelos acidentes, pelas tensões e pelos confrontos inevitáveis de todos os dias, ocultados pela repetição tardia de formas, de movimentos, de palavras, de ideias. É um olhar que revela outras dimensões da vida urbana, porque é outro o imaginário de que faz parte.”

Sendo assim, ao organizar este dossiê, a nossa intenção foi corroborar com o convite à reflexão feito por José de Souza Martins, proporcionando um espaço de discussão sobre a história dos subúrbios no Brasil e suas potencialidades, além de reunir em um único lugar os esforços dispersos daqueles que estudam a temática. Embora a submissão de artigos para avaliação tenha sido pequena, o que evidencia que o tema segue arrebatando menos adeptos do que o esperado, o recorte espacial dos textos que compõem o dossiê fugiu do tradicional eixo Rio-São Paulo, ampliando, portanto, o leque de pesquisas nessa área.

Elielton Gomes tratou a respeito das festividades que ocorreram no subúrbio da capital paraense, ao longo da década de 1950, utilizando como fonte a imprensa local. No constante diálogo sobre tais práticas no centro da cidade e fora dele, o autor ofereceu interessante panorama a respeito do cotidiano da cidade de Belém, em um contexto de intensas mudanças, provocadas pela chegada de muitos migrantes oriundos do interior do estado. Ainda com relação às práticas de lazer, Rosana Santos analisou o carnaval recifense, durante as décadas de 1950 e 1960. Apontou os conflitos e as tensões em torno dele, bem como tratou das diferenças entre o carnaval de rua e o praticado nas agremiações, explorando a relação deles com o espaço da cidade. Pedro Oliveira, por sua vez, investigou as enchentes que assolavam Parnaíba (PI) nos anos de 1970, procurando entender a relação dos munícipes com a conformação da cidade. Recorrendo à análise de como o fenômeno era apresentado em alguns periódicos, o autor problematizou a construção de estigmas em torno da população pobre e suburbana. Por fim, o artigo de Camila Itavo apresentou uma reflexão a respeito do filme Nostalgia da Luz, de Patricio Guzmán.

Que a leitura do dossiê seja proveitosa e inspire novas pesquisas que tomem o subúrbio como objeto de estudo.

Notas

1. MARTINS, José de Souza. Subúrbio: vida cotidiana e história no subúrbio da cidade de São Paulo: São Caetano, do fim do Império ao fim da República Velha. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; Unesp, 2002, p. 9

2. TOPALOV, Christian et. al. (org.). A aventura das palavras da cidade, através dos tempos, das línguas e das sociedades. Trad. por Alicia Novick. São Paulo: Romano Guerra, 2014, pp. 619- 627.

3. PINTO, Manuel Paulo Vieira. Carta a Alexandre José de Melo Moraes fornecendo dados referentes aos limites da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional. Seção de Manuscritos, v. 106, II, 34, 30, 42. 1862. Apud: Topalov, Christian et. al. Op. cit., p. 623

Cristiane Regina Miyasaka – Doutora em História / Unicamp.

Pedro Henrique Torres – Doutor em Ciências Sociais / PUC-Rio.

Os organizadores


MIYASAKA, Cristiane Regina; TORRES, Pedro Henrique. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.8, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

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A produção dos saberes em língua portuguesa / História e Cultura / 2018

A relação entre a história e os diversos saberes e práticas científicas produzidos em cada época tem se tornado cada vez mais foco da atenção do historiador contemporâneo. Pensar os saberes científicos não apenas como meio de expressão da experiência humana, mas como objeto incontornável para entendermos a própria historicidade das formas de conhecimento e construção do passado, só se tornou possível a partir de uma redefinição dos rumos do conhecimento histórico. Este redimensionamento ampliou as possibilidades de se contar o passado e abriu o caminho para novas abordagens. Assim, o presente dossiê A produção dos saberes em língua portuguesa reúne trabalhos que exploram desde saberes que trataram das diversas doenças e tratamentos corpóreos, passando pela análise das formas pelas quais os homens atuaram no seu meio natural transformando-o, até trabalhos cujo enfoque foi justamente interrogar a historicidade do conhecimento, ou melhor, dos modos de conhecer as terras, os mares e até mesmo os céus.

Desde os séculos XI e XII, momento em que os saberes ganham um espaço institucional habitado por mestres ou pares, a preocupação com a definição de arte e ciência passa a ser matéria corrente para aqueles homens que se propuseram a registrar o passado, ou seja, a construção de novos parâmetros definidores dos domínios teóricos e práticos das diversas matérias torna-se peça-chave para pensar a produção do conhecimento. As ciências, nessa altura, fixaram-se ligadas ao conhecimento de caráter especulativo, que partia da crença na racionalidade e constância divina para deduzir as leis que regulavam a experiência terrena. Do mesmo modo, as artes foram concebidas como sinônimo de bem fazer e estiveram relacionadas à noção de execução de uma técnica, de uma ação que, em conformidade com a natureza, gerava ou restabelecia a harmonia dos corpos. Muito embora tais noções tenham sido retomadas da antiguidade, estas concepções de ciência e arte foram redefinidas em um ambiente outro, já que todo e qualquer conhecimento na Idade Média era proveniente de Deus, um Deus que os antigos desconheciam. É significativo dizer, inclusive, que a apropriação e difusão das noções de arte e ciência, apesar de não serem percebidas como uma unidade, estiveram no cerne da proposta dos letrados – ligada, por vezes, aos “estudos gerais” – de pensar a natureza dos saberes, suas relações, oposições e seu grau de participação na busca da verdade. Desse modo, tal interrogação foi muito significativa para definição de campos de estudo como a astronomia e a astrologia que, ainda no tempo das navegações, pendiam entre a ciência e a superstição, como mostra a autora Simone Ferreira Gomes de Almeida no seu Escritos sobre o céu para homens ao mar. Considerações e estudos sobre a astrologia e astronomia dos séculos XV e XVI.

Tal binômio, até o século XVIII, parece não ter tido suas fronteiras recortadas com nitidez, malgrado o saber científico tenha buscado se afirmar sobre novos parâmetros no Setecentos, ao deslocar do centro da análise a figura de Deus, especialmente com Kant na virada do século – que estabeleceu, grosso modo, a morte epistemológica de Deus e a ascensão do homem como sujeito do conhecimento. O Dicionário da Língua Portugueza, de Morais Silva, de 1789, por exemplo, trazia a seguinte definição de ciência e arte: a primeira seria o “conhecimento certo e evidente das cousas por suas causas; v.g., a geometria é uma ciência”; e a segunda seria a “coleção de regras, ou métodos de fazer: v.g., a arte de falar corretamente; a arte de ourivesaria, da carpintaria”, podendo ser tomada como sinônimo de artífice e artista. Pouco antes, M. D`Alembert, no Discurso Preliminar da Enciclopédia, afirmava que “a especulação e a prática constituíam a principal diferença que distinguia as ciências das artes”, ou seja, os saberes práticos estavam relacionados à arte e os saberes teóricos à ciência. Essa falta de delimitação entre a ciência e arte é perceptível, por exemplo, nos escritos arquitetônicos do século XVIII, como foi explorado por Luiza da Silva no artigo “Tratado da arquitetônica, ou arquitetura militar, ou fortificação das praças”: linguagens de defesa, de uma dimensão celestial a vitrúvio. Outros campos do conhecimento, como não poderia deixar de ser, também careciam de contornos mais definidos para se legitimarem, é o caso, por exemplo, da preparação dos remédios, ou a botica, que até o início do século XIX no Brasil, como analisa Viviane Machado Caminha, foi uma atividade quase exclusiva da Companhia de Jesus.

O presente dossiê traz, ainda, dois artigos que se ocupam do ocaso do século XVIII e do século XIX, momento em que a distinção entre arte e ciência se dará com mais precisão. É nesse cenário, pois, que o discurso científico se estabelece, fixa fronteiras entre o que seria “ciência” e “pseudociência” e define normas para qualificar a atuação de diferentes homens de saber, tais como médicos e farmacêuticos. Os artigo Saberes ocultos no Brasil Império: a arte da cura pelo magnetismo animal e a busca pela legitimidade, de Danielle Christine Othon Lacerda, e A produção de conhecimentos de José Pinto de Azeredo, físico-mor de Angola e 1º professor da primera escola médica de Angola, de 1791, parte integrante da rede de conhecimento úteis do Império Ultramarino Português, de Fernanda Ribeiro Rocha Fagundes, levantam justamente essas questões, partindo, porém, de ângulos opostos: no primeiro, uma prática considerada como pseudociência, a do magnetismo animal, ganha evidência e permite questionar a própria historicidade das formas de curar; no segundo, o discurso médico como ciência é destacado por meio dos escritos elaborados pelo célebre físico-mor José Pinto de Azeredo, personagem, cabe mencionar, fundamental na criação de uma rede conhecimentos úteis ao Império Ultramarino.

O dossiê A produção dos saberes em língua portuguesa, para finalizar, reúne, como o leitor observará, textos que tratam de diferentes registros e modos de produção dos saberes científicos, ou com pretensão a científicos. Essa variedade de objetos aqui abordados traz à tona a seguinte questão: quais os contornos e nuances das áreas ou matérias constituintes da construção do saber em cada época? Se o leitor não encontrar uma resposta robusta para a questão, dada a impossibilidade de tal empreitada em um dossiê, defrontará, ao menos, com algumas pistas para discutir tal problemática.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Michelle Souza e Silva – Doutora pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP / Franca). Realiza, atualmente, estágio pós-doutoral financiado na Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Autora, entre outros, de Ler e ser virtuoso no século XV (Editora UNESP, 2012) e de estudos sobre a medicina e o corpo. Membro do grupo Escritos sobre os Novos Mundos.

Milena da Silveira Pereira – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e professora do Programa de Pós-Graduação em História na mesma instituição. Realizou estágio pós-doutoral com financiamento do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD / CAPES) na UNESP. Autora, entre outros, de A crítica que fez história: as associações literárias no Oitocentos (Editora UNESP, 2014), Insultos e Afagos: Sílvio Romero e os debates de seu tempo (Editora CRV, 2017) e organizadora, com Jean Marcel Carvalho França, de Por escrito: lições e relatos do mundo luso-brasileiro (EdUfscar, 2018). Membro da Association for Spanish and Portuguese Historical Studies (ASPHS) e do Grupo Escritos sobre os Novos Mundos.

As organizadoras.


SILVA, Michelle Souza e; PEREIRA, Milena da Silveira. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.7, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]

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História e gênero: representações e simbolismos / História e Cultura / 2018

No presente dossiê reunimos textos que discutem e analisam as formas de representação narrativa dos sujeitos em seus contextos e campos sociais. Essas representações de si para e dos outros construídas em relação à memória coletiva se apropriam de suportes imagéticos como fotografias, facebooks, instagran, fotologs e outros. Entretanto, para além das auto representações, precisamos pensar que os sujeitos também se constroem a partir de objetos materiais que projetam imagens, narrativas e representações de gênero, como livros didáticos, manuais didáticos, folhetos, cartilhas, assim como exposições de arte, fotografia, história e moda. Isso porque os papeis de gênero em suas mais diversas representações, através de múltiplas identidades e das muitas faces produzidas para situações em contextos sociais diferenciados se utilizam do símbolo iconográfico e narrativo.

Sendo assim, no presente dossiê reunimos pesquisas que venham alicerçaram suas análises nos mais diversos suportes imagéticos, narrativos e que dialogam com e expõe representações de gênero em relação às memórias coletivas. Nessa direção, essa organização se voltou à estudos sobre narrativas centradas nas representações de gênero e em como estas estão dotadas de um poder simbólico. Esse é o resultado do movimento da realidade, e que de forma integrada concebe o espaço, e os elementos que ali habitam (Bourdieu, 2007:8 / 9). Essa relação nem sempre é muito clara no mundo social, pois pode parecer conflituosa a um olhar externo, mas para quem a vive, ela tem as suas justificativas para tal aceitação. O reconhecimento desse poder simbólico só é concebível quando da identificação dos símbolos, pois são eles que constroem a relação de significação entre dominante e dominado. A representação do indivíduo ou do grupo está em como se mostra o símbolo e é essa medida do poder simbólico.

Durante os séculos XIX e XX, o fato do poder patriarcal assombrar a sociedade, criou um poder simbólico, chamado de dominação. Essa sensação de estar dominado é o que Pierre Bourdieu (2007:8) enfatiza como um poder invisível que sustenta uma discussão na relação entre os gêneros polarizando o que pode e o que não pode ser feito partindo de conceitos enraizados socialmente.

Entretanto, o simbólico das relações de gênero circundam os caminhos da memória coletiva. Nessa perspectiva, Paul Ricoeur (2007), afirmou que o lugar da lembrança pertence a uma dimensão objetal, ou seja, ao nível das análises da retenção e da reprodução. A lembrança colocaria as coisas do passado e por isso, segundo Ricoeur, “O ‘lembrado’ apóia-se então no ‘representado’”.[3] Esse representado viria em forma de imagens e assim daria suporte para um tipo de “lembrança-imagem”.

Na mesma direção, Henri Bergson, propôs uma dupla concepção de “lembrança pura” e “lembrança-imagem”. A primeira seria a “memória que revê”, espontânea, imediata e perfeita, enquanto a segunda, a “memória que repete”, que se atualiza e tende a viver numa imagem. A lembrança pura, para Bergson, tenderia a passagem para a “lembrança-imagem”, porque “essencialmente virtual, o passado só pode ser apreendido por nós como passado quando seguimos e adotamos o movimento pelo qual ele desabrocha em imagens presentes, que emergem das trevas para a claridade”.[4] Conforme proposto por Bergson nessa citação, as lembranças assumiriam na memória formas imagéticas. As imagens simplesmente não teriam o poder de incitar a memória do passado, isso somente seria possível a partir de sua busca no passado.

Dessa forma, o conhecimento do passado registrado pela memória seria, portanto, nas palavras de Marc Bloch, uma coisa em progresso, “que ininterruptamente se transforma e se aperfeiçoa”.[5] Sua transformação e aperfeiçoamento ocorreriam pelas inúmeras formas de registro e análise desse conhecimento: a história, a literatura, as imagens e o cinema entre tantos outros meios.

Como resultado, o dossiê apresenta artigos que abordam a temática a partir da análise de obras literárias, como por exemplo, um estudo ambientado principalmente nos anos 40, nos apresenta a vida de Madame Colette, em Ribeira, um bairro na cidade de Natal do Rio Grande do Norte. Como também da representação da mulher nas obras de arte de uma escultora latino-americana. Além de trazer à tona uma discussão muito pertinente a respeito da ausência das mulheres – através do apagamento de suas trajetórias – na construção do cânone literário brasileiro no século XIX, o que permitiu que muitas mulheres escritoras permanecessem no anonimato por muito tempo. Esta ausência de entendimento do papel feminino está presente também no artigo que estuda a forma de registro nas práticas musicais da Igreja Católica Romana e, também a dimensão da participação feminina nas práticas musicais em outras esferas.

Buscando compreender o processo de rupturas e permanências que envolveu as representações do feminino trazemos artigos que tratam dessa temática a partir da análise de manuais femininos. Em outro artigo, o dossiê contempla o estudo e análise, sobre a relação entre o feminismo branco e o feminismo negro no Brasil, tendo a trajetória intelectual e a militância de Lélia Gonzalez, como um ícone sobre a temática no Brasil, apresentamos um estudo acerca das trajetórias das mulheres na militância contra a ditadura militar no Brasil.

Dentro das discussões contemporâneas, o dossiê traz a reflexão acerca das transformações da travestilidade e da compreensão de pessoas designadas como intersexo / transgênero, através de estudos biográficos: a autobiografia de Herculine Barbin, e, também a construção de si através do relato biográfico de Renata.

Finalmente, temos a investigação sobre o impacto e seus resultados simbólicos no que se trata da ação do sexo masculino diante da escolha da profissionalização no Magistério, e as adversidades desse processo.

Notas

3. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2007, p. 64.

4. BERGSON Apud RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2007, p. 68.

5. BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Editora Europa-América, 1987, p. 55.

Gianne Zanella Atallah – Doutora em Memória Social e Patrimônio Cultural (PPGMP / ICH-UFPEL / RS -2018). Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural (PPGMP / ICH-UFPEL / RS – 2011). Especialista em Patrimônio Cultural: Conservação de Artefatos (ILA-UFPEL / RS-1997). Graduada em História – Licenciatura Plena (FURG / RS-1993). Dirigente do Núcleo de Patrimônio Municipal (Fototeca Municipal Ricardo Giovannini e Pinacoteca Municipal Matteo Tonietti). Docente em História da Rede Municipal – SMED / Prefeitura Municipal do Rio Grande / RS. E-mail: [email protected]

Júlia Silveira Matos – Pós-doutoranda em Educação UFPEL. Professora de História da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, coordenadora do Laboratório Independente de pesquisa em Ensino de Ciências Humanas – LABEC, formada em História Licenciatura pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2002), possui especialização em Teologia com habilitação para Ensino Religioso, mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005) e doutorado pelo Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2008). E-mail: [email protected]


ATALLAH, Gianne Zanella; Matos, Júlia Silveira. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 7, n. 1, jan. / jul., 2018. Acessar publicação original [DR]

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História e ética: múltiplas e complexas dimensões de um problema historiográfico / História e Cultura / 2017

Em 2008, o historiador Paulo Knauss publicou um breve e denso artigo intitulado “Uma história para o nosso tempo: historiografia como fato moral”.[3] Neste texto é possível vislumbrarmos, em perspectiva historiográfica, o longo percurso que a dimensão ética da escrita da história guarda desde os seus inícios. Como afirma Knauss, a partir dos estudos de François Hartog, o próprio surgimento desse saber, vinculado ao nome do grego Heródoto, já demarca uma discussão de caráter ético, considerando-se que diferentes culturas, em diferentes tempos e espaços, já possuíam formas e modos diferentes de relacionamento com as representações do passado.

Assim, mesmo a partir da experiência grega, percebe-se que em qualquer escrita da história estão implicadas dimensões de experiências pautadas pela diferença. Os gregos constroem suas histórias pela comparação aos não gregos. O historiador, ao afirmar que faz história, também pretende dizer que participa de uma produção que não é memoria, tradição ou qualquer outro mecanismo ritual de estruturação do tempo e de ações daí advindas. Tal perspectiva pretende enunciar que não há hierarquias entre diferentes histórias: há escolhas.

Nesse horizonte, o lugar comum, comumente repetido, de que a reflexão acerca do conhecimento histórico e sobre o papel social do historiador assume outra conotação, bem mais política e propriamente ética. Da polis grega ao século XXI, a história enfrentou os dilemas que envolvem as relações com o poder. A modernidade apenas exacerbou esse aspecto recorrente ao fazê-la disciplina com pretensões científicas. Do historiador elevado à voz da razão e da verdade, no século XIX ocidental, ingressamos no novo milênio com profissionais perseguidos e acusados de doutrinadores ideológicos, a despeito dos avanços e da reconhecida qualidade da historiografia produzida no Brasil, por exemplo. Como dissemos, antes, e Knauss recorda muito bem, a perseguição aos historiadores não se trata de algo recente. Heródoto e Tucídides, considerados por muitos como “pais da história” foram exilados. A participação no debate público através da escrita tem um preço que exacerba a proposta apresentada no presente dossiê.

Por outro lado, se o poder sempre operou ou contou com o suporte da história, a partir do momento em que o ofício do historiador passou a disputar seu prisma profissional, novos problemas e debates emergiram. Alguns são muito conhecidos (e, apesar disso, ainda muito repetidos): o historiador é capaz de fornecer uma verdade superior ou, no mínimo, diferenciada sobre do passado? Sua produção possui potencial pedagógico necessário e útil à formação do cidadão e da cidadã? A história, como arte ou ciência, permite uma intervenção direta no presente atual? Em maior ou menor medida, tais indagações situam a história e os historiadores em um espaço de ação social e política que merece reflexões mais detidas e particulares no que tange à epistemologia da história e à história da historiografia.

Propusemos, então, converter o tema das relações entre história e ética em um problema historiográfico a ser trabalhado neste dossiê. O próprio texto escrito por Knauss é sintomático. Há, desde aproximadamente a década de 1970, um crescente interesse por tal questão. De exaltados a perseguidos, de donos da verdade que favoreceu os Estados nacionais a críticos da sociedade, os historiadores passaram à autorreflexão. Revisar seus princípios teóricos e metodológicos tornou-se também um gesto ético. Os resultados das pesquisas históricas são obtidos a partir de intensa investigação, mesmo conceito que liga o mundo antigo ao ano de 2017. Entretanto, nem tudo se resume à epistemologia. Esta, em si, possui elementos que interferem em ações práticas, tomadas de decisão tanto no presente como para o futuro.

Os artigos reunidos neste número de Historia & Cultura, não temos dúvidas, fornecem uma espécie de “estado da arte” no que se refere à tentativa de sistematização dessa discussão que, como afirmamos, possui certa inflexão na década de 1970, mas, no começo dos anos 2000, ganha reforço significativo. Seja a partir das relações entre história e filosofia, da análise da autoridade e da responsabilidade dos historiadores em perspectiva historiográfica, de propostas relativas a uma ética própria da história ou de importantes discussões que deslocam a Europa (mais precisamente os homens cristãos europeus) do centro das atenções historiográficas, ficamos muito satisfeitos em oferecer um panorama que pretende, esperamos, colaborar com a construção de uma agenda mais encadeada e pertinente de um tema fundamental ao presente e ao futuro do conhecimento histórico tal como hoje o conhecemos.

Nota

3. KNAUSS, Paulo. Uma história para o nosso tempo: historiografía como fato moral. História Unisinos. Vol. 12, n. 2, maio / agosto, 2008, p. 140-147.

Evandro Santos – Professor Adjunto de Teoria da História no Departamento de História do Centro de Ensino Superior do Seridó da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CERES-UFRN). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]

Magno Francisco de Jesus Santos – Professor Adjunto de Ensino de História no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).


SANTOS, Evandro; SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 6, n. 3, dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Assistência e pobreza: sentidos e lugares dos pobres no Brasil / História e Cultura / 2017

A caridade e a filantropia no Brasil são, desde tempos coloniais, práticas amplamente devotadas a assistir aos pobres, sobretudo para a salvação de suas almas. Já na passagem do século XIX para o XX, a “modernização da assistência” demandou maior eficiência das ações beneficentes. No que diz respeito às obras voltadas para os cuidados com a saúde, essa melhoria ficou evidenciada na criação e no remodelamento de hospitais, que foram transformados em espaços de assistência médica, ensino e filantropia.

Dessa maneira, refletir sobre como e com quais motivações essas entidades foram fundadas; o modo que agiam frente aos problemas sociais; pensar a respeito de quem era o pobre brasileiro, do significado de ser pobre e de quais lugares eles ocupavam na sociedade; a aliança entre médicos e filantropos na transformação das ações assistenciais, referem-se a questões de longa duração no mundo ocidental e tem sido objeto de grande debate na historiografia sobre o mundo europeu. Com este dossiê pretendemos reunir e divulgar trabalhos que se dediquem à temática pobreza e assistência no contexto brasileiro, do período colonial ao republicano.

Desde a Colônia, o cuidado com os pobres ocupou um lugar de destaque nas iniciativas caritativas no Brasil. A instalação de entidades como as Santas Casas de Misericórdia, por exemplo, carregavam consigo o sentido de abrigar e proteger aos “desprovidos de sorte”. Segundo a noção de caridade cristã, essas ações eram consideradas o “dever” de um bom cristão que, preocupados com a salvação de suas almas, doavam esmolas e / ou legados testamentais para o cuidado dos pobres. É relevante ressaltar que eram os doadores que designavam a obra assistencial a ser prestada com sua doação, portanto, eram privilegiadas obras de apelo moral e religioso. No que diz respeito às crianças, a função dessa entidade limitava-se em batizá-las, o que denota uma maior devoção ao cuidado espiritual do que ao material.

Durante o Império, após a fundação das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, os hospitais passaram, gradativamente, a se tornar “lugares de cura”, inserindo em suas práticas critérios e conceitos determinados pela higiene, por meio da ação do médico, o que só foi de fato consolidado durante a República. Se na Colônia a assistência aos pobres esteve muito restrita às iniciativas caritativas de ordens leigas ou religiosas, no final do Império e, principalmente, no início da República, novos grupos sociais emergiram nesse cenário, com destaque para os médicos e para os filantropos. Estes últimos, segundo Sanglard e Ferreira (2014, p. 74), eram pessoas que “investia[m] seu capital social e financeiro na abertura de instituições voltadas para o atendimento da população indigente”.

A filantropia era praticada em maior escala pelas elites que, sensibilizadas por motivos políticos, científicos ou morais, se responsabilizaram pelo processo de modernização da nação. Nas ações filantrópicas destaca-se a participação de mulheres pertencentes às elites ou em processo de profissionalização, envolvidas ou não em movimentos feministas. De acordo com Maria Luiza Marcílio (2006, p. 132), a aliança entre médicos e filantropos reorganizou a assistência no país, criando novos modelos institucionais que se baseavam na prestação de serviços de saúde e / ou educacionais por meio de trabalho voluntário, com ações custeadas por doações filantrópicas ou pelo próprio Estado. Uma evidência dessa mudança foi a transformação da mortalidade infantil num entrave ao progresso nacional. Com vistas a corrigir esse problema, as ações médicas identificaram sua causa, a alimentação infantil, e orientaram as ações filantrópicas no sentido de reunir recursos para executar sua estratégia de combate ao flagelo, ou seja, a instrução maternal em puericultura. Na medida em que os princípios da higiene e preceitos pedagógicos norteavam a ação de filantropos e profissionais, podemos dizer que as ações filantrópicas possuíam um apelo científico.

As mudanças socioeconômicas ocorridas no Brasil pós-abolicionista provocaram uma transformação na pobreza característica do país. Desse modo, o lugar da pobreza e sobre quem recaía a responsabilidade de socorrê-la foi modificado. Nesse período, as cidades receberam um grande contingente populacional, com o qual não sabiam como lidar. Essa migração provocou aglomerações urbanas, desemprego, crescimento descontrolado e a demanda por novos cuidados. O retrato da pobreza urbana, até então composto por vadios ociosos, viúvas e órfãos, passou a integrar negros forros, imigrantes que chegavam ao Brasil, e trabalhadores urbanos. Ao mudar o assistido e quem o assistia, mudam-se também as motivações da assistência, a forma de se efetuar a mesma e seu estatuto, transformando-a em uma “questão social”, que passa a demandar ações filantrópicas e estatais, em conjunto ou separadamente.

A necessidade do provimento da assistência em conjunto com o Estado, o qual até então somente realizava ações isoladas, em casos, principalmente, epidêmicos, marcou a delimitação das funções das esferas públicas e privadas. De acordo com Robert Castel (2010), ao Estado caberiam ações gerais e à filantropia ações específicas. Desse modo, as fundações de entidades assistenciais nesse período correspondiam a essa nova ordem que se caracterizava na relação Estado e filantropia para o fornecimento da assistência à pobreza. Sabemos que com relação à assistência materno-infantil, esse modelo foi fundamental para ao desenvolvimento de políticas públicas para a maternidade e infância a partir das décadas de 1920 e 1930.

Através dessa breve contextualização, buscamos levantar algumas questões que irão permear dossiê temático. Com o objetivo de refletir sobre pobreza e assistência, os artigos aqui apresentados buscam compreender quem era o pobre no Brasil durante os períodos colonial, imperial e republicano, e qual o significado de ser pobre nesse espaço, bem como as relações articuladas em prol da pobreza. Relacionada a essa problemática serão discutidas algumas entidades caritativas, filantrópicas e instituições públicas fundadas e mantidas ao longo desse recorte e ações em prol da pobreza. Além disso, os artigos também propõem a reflexão a respeito das ações de sujeitos e instituições, estratégias, cuidado com a pobreza, financiamento da assistência, redes de sociabilidade e cooperação.

Iniciando por “A atenção aos pobres: apontamentos históricos sobre assistência e proteção social no Brasil” e percorrendo os caminhos da história da assistência à pobreza no Brasil desde o período colonial, Gisele Bovolenta discute essa questão perpassando pela importância do papel das Irmandades, especialmente, a Misericórdia, na prestação de serviços nas suas Santas Casa, tais como: distribuição de esmolas e alimentos, recolhimento dos órfãos, atendimento aos doentes, além de administrarem os cemitérios, livrar os presos pobres, fazer enterramentos, entre outros. A autora destaca a presença dessa instituição como pioneira no campo da assistência social no Brasil, ainda antes da existência do Estado e da sua tardia preocupação em implantar medidas efetivas no que diz respeito a assistência à pobreza e aos trabalhadores, as quais deram-se, inicialmente, através da promulgação de leis voltadas à proteção social, datadas do início do século XX. Bovolenta ainda discute e aprofunda tópicos relativos à legislação do serviço social ao longo do último século, chegando até a Constituição de 1988 em que a assistência social efetiva-se enquanto política pública.

Em seguida, no artigo “Caridade, devoção e assistência hospitalar aos pobres: o Hospital de São João de Deus da Vila da Cachoeira (1734-1770)”, há a reflexão sobre práticas de caridade no período colonial, especialmente durante o século XVIII. Tânia de Santana nos apresenta o caso do Hospital de São João de Deus da Vila da Cachoeira, no Recôncavo baiano como um caso interessante para pensarmos a assistência aos pobres em outro contexto que não o dominado pelas Misericórdias. Estudando um personagem que considera fundamental para as obras da instituição, no seu artigo encontramos uma discussão interessante a respeito da diferença entre as práticas de caridade e ao auxílio à pobreza praticado pelas elites.

Ainda abordando questões relacionadas às Misericórdias, no artigo “Assistência aos presos nas cadeias públicas do Rio de Janeiro e de Salvador pela Santa Casa da Misericórdia (séculos XVII-XIX)”, Nayara Luchetti faz uma leitura do Compromisso da Misericórdia no que diz respeito a sua responsabilidade com os presos, destacando que até o século XVIII essa função era cumprida pelas instituições Pias, não sendo dever do Estado arcar com quaisquer custos de seus prisioneiros, ficando estes à mercê da caridade pública. No entanto, a historiadora destaca a dificuldade financeira ultrapassada pelas Misericórdias do Rio de Janeiro e de Salvador, no período compreendido entre os séculos XVII e XIX, e em que medida isso afetou no cumprimento do provimento de recursos aos presos pobres.

Buscando discutir a respeito da institucionalização da criança no Brasil a partir do século XIX, Alan Costa Cerqueira, em “Assistência, pobreza e institucionalização infantil: usos estratégicos da roda dos expostos da Santa Casa da Misericórdia (Salvador, século XIX)”, entende a criação da Roda dos Expostos enquanto meio de combate ao abandono de bebês nas cidades brasileiras. Nesse sentido, o autor utiliza alguns exemplos de exposição de crianças na Roda da Misericórdia de Salvador para demonstrar as estratégias que eram utilizadas pelas famílias. Destaca como três, os principais motivos do enjeitamento: a censura social ao nascimento ilegítimo, a miséria e a morte de pelo menos um dos pais. Sendo assim, Cerqueira defende os usos das Santas Casas como estratégia de sobrevivência das famílias de Salvador.

Já em “Cortejo de miséria: seca, assistência e mortalidade infantil na segunda metade do século XIX no Ceará”, Georgina da Silva Gadelha e Zilda Maria Menezes Lima nos apresentam um olhar a respeito do quanto as migrações do campo para a área urbana ocasionadas pelas grandes secas gerou um novo panorama nas cidades. As historiadoras demonstram o quanto esse contexto transformou o que antes seria apenas um evento climático, em uma questão social, forçando o governo a assumir a gestão da pobreza, através de controle e disciplina. Nesse sentido, focam sua análise no caso das crianças, principais afetadas num cenário de fome e miséria, causando altos índices de mortalidade infantil, compreendendo o quanto essa particularidade influenciou na administração caridade e da pobreza enquanto problema social.

Refletindo a respeito das mudanças urbanas que atravessava a cidade de Natal no início do século XX, Renato Santos reflete sobre os elementos desse contexto, os quais envolviam os desejos da elite de transformar sua urbe. Através disso, discute o que estava por trás do discurso modernizador que pretendia civilizar seus espaços e sua população. Nesse sentido, dedica-se a estudar a Escola de Aprendizes de Natal, inaugurada em 1910, que representava o ideal de disciplinar, normatizar, criar novos hábitos, dentro de uma formação voltada para o trabalho. Além de ser um espaço em que poderiam estar inseridos os “desfavorecidos de fortuna”, membros das “classes perigosas”. Assim, o texto, através da análise dessa instituição e de outras, como presídio, lazareto e dispensário de pobres, nos leva a pensar no pensamento moralizador e civilizatório da Primeira República.

Outro artigo focado neste mesmo período histórico trata-se de “‘O pobre não é vadio’”: uma crítica ao discurso elitista acerca do trabalho na Primeira República”. Utilizando como fontes dois jornais que circulavam na capital paulista, Rose Dayanne de Brito discute através de ideias antagônicas o pensamento da elite brasileira durante a Primeira República que relacionava pobreza à falta de trabalho, ou seja, o que se considerava vadiagem e, em contraposição, a crítica a esse pensamento, apontando para a exploração do trabalho e as faltas de condições sociais e assistência que isso impunha ao trabalhador.

Perpassando também, de alguma maneira, a questão do trabalho e da noção de pobreza, no artigo “Subcidadania, naturalização das desigualdades e jovens em situação de risco: pensando sobre futuro em um presente marginalizado”, Neylton Costa discute o conceito de “subcidadania” a partir do sociólogo Jessé de Souza, através de um olhar mais sociológico a respeito das mudanças que ocorreram a partir do século XIX no Brasil. O foco de sua análise centra-se em entender como o processo de modernização brasileiro formou um grupo de excluídos, tentando entender como um modelo de competição mercadológica naturalizou e reproduziu as desigualdades sociais. Para responder a essa questão, o autor entrevistou um grupo de jovens a fim de compreender se eles se reconhecem como classe desfavorecida e como percebem seus futuros.

Discutindo as diferenças entre a assistência e o assistencialismo, Dayanny Rodrigues em “Assistencialismo, primeiro-damismo e manipulação social: a atuação de Lúcia Braga no estado paraibano na década de 1980” estuda o caso de Lúcia Braga, política paraibana, para entender a relação entre práticas assistencialistas e manipulação social nas suas práticas enquanto primeira-dama. Além disso, destaca seu papel não apenas enquanto meio de legitimação política através de ações governamentais, mas também no âmbito das ações sociais que promoveu e o quanto isso gerou popularidade, garantindo um capital político próprio para além da figura do marido, governador.

Por fim, em “Espiritismo, caridade e assistência: Florina da Silva e Souza e a Sociedade Espírita Feminina Estudo e Caridade em Santa Maria / RS” Felipe Girardi e Beatriz Weber trazem uma outra perspectiva da assistência, mas que não está distante do que já foi apresentado aqui, no que diz respeito as ações de assistência à pobreza. Focalizando na análise das práticas do espiritismo relacionadas a criação e manutenção de obras assistenciais como escolas e abrigos, por exemplo, os autores apresentam a trajetória de uma mulher que colaborou na fundação e atuou numa instituição de caráter assistencial, voltada, sobretudo, ao atendimento de crianças e jovens pobres. Analisando o que consideram peculiaridades da visão espírita, dedicam-se a entender seu olhar sobre a caridade e a assistência, através das visões e abordagens dadas à questão da infância e da juventude.

Desejamos a todos uma boa leitura, esperando contribuir para novas questões e discussões a respeito da historiografia da assistência à saúde e à pobreza.

Referências

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 2010.

MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 2006.

SANGLARD, Gisele Porto. FERREIRA, Luiz Otávio. Pobreza e filantropia: Fernandes Figueira e a assistência à infância no Rio de Janeiro (1900-1920). Est. Hist., Rio de Janeiro, v. 27, n. 53, p. 71-91, jan.-jun. 2014.

Daiane Silveira Rossi – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC / FIOCRUZ). Bolsista PDSE / CAPES na Universidade de Évora, Portugal. Membro do Grupo de Pesquisas “História da Assistência à Saúde”, vinculado ao CNPq. E-mail: [email protected]

Lidiane Monteiro Ribeiro – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC / FIOCRUZ). Bolsista FIOCRUZ. Membro do Grupo de Pesquisas “História da Assistência à Saúde”, vinculado ao CNPq. E-mail: [email protected]


ROSSI, Daiane Silveira; RIBEIRO, Lidiane Monteiro. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 6, n. 2, ago. / nov., 2017. Acessar publicação original [DR]

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100 anos da Revolução Russa / História e Cultura / 2017

É com grande satisfação que trazemos ao público o dossiê temático 100 anos da Revolução Russa. A efeméride desse importante processo histórico do século XX no ano de 2017 é uma bela oportunidade para a elaboração deste e de tantos outros dossiês, e eventos, que possam contribuir não apenas para trazer à luz um balanço dos estudos que pesquisadores profissionais vêm fazendo nos últimos anos sobre o tema, mas, também para apontar reflexões acerca da vida política contemporânea que, de alguma forma, possam remeter à tradição inaugurada no contexto da Revolução Russa. Na base deste interesse está o fato de que, ainda que o ano de 1917 continue a representar um incontornável marco para os estudos históricos da contemporaneidade, o evento sofreu uma relevante queda na atenção dos pesquisadores em geral. Esse fenômeno pode ser associado tanto à queda do bloco soviético; quanto à expressiva mudança nos horizontes historiográficos na academia, reflexo de uma cultura política também distante daquela do mundo bipolarizado.

Apesar da pouca tradição historiográfica no Brasil em tratar o tema, o que poderia ser explicado pela distância dos pesquisadores em relação aos documentos concernentes à revolução – eles mesmos colocados à disposição do público geral de maneira mais ampla apenas a partir da década de 1990 – e pela longa tradição nacionalista da historiografia em geral, propomos com este dossiê reunir trabalhos que se encontram dispersos, com a intenção de trazer ao leitor brasileiro estudos de autores brasileiros e estrangeiros que possam corresponder a esse interesse em debater a história a partir de uma reflexão de cultura política.

De maneira geral, a proposta foi a de reunir artigos que correspondessem a pesquisas finalizadas, ou em curso, que tivessem como eixo temático os impasses, os processos de constituição e perpetuação da Revolução de 1917 e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, assim como suas representações e experiências de oposição política, econômica e bélica realizadas pelo chamado “bloco capitalista”.

De maneira geral, a vitória do partido bolchevique após o golpe de outubro de 1917 foi apresentada como a primeira revolução vitoriosa conduzida pelos trabalhadores, influenciando o movimento operário mundial nas décadas subsequentes. A imagem que ilustra a capa deste número da Revista História e Cultura remete a essa revolução vitoriosa e à criação de uma nova sociedade e de um novo homem que deveriam se desenvolver a partir dela. A forma organizativa do partido bolchevique passou a ser o modelo adotado pelos demais partidos comunistas mundo afora. Da mesma forma, as medidas adotadas para a construção da União Soviética tornou-se o programa político hegemônico do movimento operário mundial, e um dos polos do binômio societário que marcou o mundo após a segunda metade do século XX.

Essa narrativa que sustenta o processo histórico que culminou na Revolução com uma direção única e inconfundível, desprovida de contradições, por exemplo, é questionada pelo artigo do historiador português João Valente Aguiar, Do céu ao inferno da criatividade coletiva: acção autónoma, ambiguidades e a reconstrução das hierarquias na Revolução Russa de 1917-18, que abre o dossiê propondo uma interessante discussão a partir de bibliografia pouco consagrada sobre os momentos iniciais da Revolução. Trata-se de uma forma de narrar a deflagração do processo revolucionário e de sua consagração enquanto força política dominante que problematiza o engessamento do discurso, sempre contraditório, construído a partir da naturalização da construção do estado bolchevique. Aguiar aponta que a Revolução Russa de 1917-18 foi atravessada por um processo díspar e antagônico, tendo numa primeira fase massas de trabalhadores urbanos que desenvolveram formas sociais de organização coletiva inovadoras e criativas, os Comitês de Fábrica; para apenas numa segunda fase esse processo ter sido revertido brutalmente por via da passagem do controle do processo econômico de base (e protagonizado pelas bases de trabalhadores) para as mãos dos bolcheviques, neogestores estatais em formação. Este debate, nos parece, é central para a percepção das contradições e desafios inerentes à Revolução, e que redundaram na vitória e perpetuação da hetero-organização bolchevique, em detrimento da auto-organização dos trabalhadores que estava presente de maneira vital e determinante desde fevereiro de 1917.

O dossiê segue apresentando mais duas narrativas, ou formas de narrar o processo revolucionário. Uma delas, crucial na forma com que a população mundial viria a encarar a Revolução, é a narrativa da imprensa à época. Nesse sentido, Emmanuel dos Santos, no artigo Aqueles perigosos radicais socialistas: os Bolcheviques e a Revolução Russa na cobertura e nos discursos do The New York Times, reconstitui com esmero e de forma bastante instigante a narrativa do jornal norte-americano para a Revolução durante todo o ano de 1917, perfazendo os editoriais e colunas publicadas diariamente com uma importante tradução dessas fontes para a língua portuguesa. O mesmo trabalho é empreendido por Iamara Silva Andrade, que desenvolve pesquisa sobre os Ecos da Revolução Russa na imprensa brasileira.

Ainda sobre os impactos da Revolução Russa no Brasil, temos o artigo A Teoria da Revolução do P.C.B.: Octávio Brandão, a aliança de classes e o feudalismo (1922- 1935), de Danilo Mendes de Oliveira, no qual o autor apresenta a visão de um dos principais teóricos da origem do PCB sobre a revolução social no país e como o partido e a classe operária deveria atuar com outras classes sociais na condução do processo revolucionário brasileiro. O autor ainda apresenta a perspectiva histórica do autor analisado sobre a formação do Brasil à luz da teoria da História.

Na sequência, abrimos um bloco que propõe reunir artigos que orbitam o tema da revolução na cultura a partir da Revolução Russa. Retornamos a Rússia por uma escala de análise mais reduzida, e crucial para percebermos o processo de afirmação do poder estatal bolchevique, com o artigo de Thaiz Senna sobre A questão da representação feminina nos cartazes soviéticos. Senna apresenta o processo revolucionário pela afirmação de um ponto de vista de construção da chamada Nova Mulher, que deveria se identificar com uma perspectiva moderna sobre a mulher, emancipada e de alguma forma igual ao homem. A autora parte do pressuposto que as representações são sempre um ideal, e que as representações da mulher na União Soviética podem ser entendidas como ideais do que deveriam ser as mulheres, e não o que a mulher era na sociedade. Nesse sentido, busca perceber padrões e deslizes que sinalizam escolhas menos conscientes e carregadas de valores e juízos, o que permite a autora afirmar que, embora a representação buscasse criar a Nova Mulher, ao mesmo tempo os cartazes serviam como propaganda à afirmação do estado bolchevique, e eram perpassadas por uma visão ainda tradicional da mulher, além de nunca as colocar em posição política ou social central nas imagens, o que corroborava com a ausência delas em cargos centrais na burocracia estatal.

Ainda no campo cultural, e ao mesmo tempo em que nas artes plásticas, é sabido que a Revolução abriu caminho para a expansão das vanguardas artísticas, num primeiro momento, e posteriormente culminou no chamado realismo socialista. O dossiê propõe, na sequência, um breve e preciso compêndio dessas contribuições no campo do cinema, com dois artigos, Eisenstein, o cineasta da Revolução, de João Barreto Da Fonseca; e O Cinema Soviético e as representações da Revolução de outubro e da Guerra Civil, de Moisés Wagner Franciscon e Dennison de Oliveira. No campo da crítica dos movimentos culturais contemporâneos à revolução, com o artigo Leon Trotsky e a Arte na Revolução Russa, de Alex Alves Fogal. E por fim uma análise da literatura russa após a queda da URSS na década de 1990, com o texto De Chapaev Ao Vazio: Entre a Revolução Russa e seus Efeitos na Literatura Pós-Soviética, de Luciano Augusto Meyer.

Da mesma forma, o campo intelectual e científico nunca mais seria o mesmo após a Revolução Russa, tanto pelo impacto direto das reflexões filosóficas e pela produção de novas técnicas de pesquisa nas mais diversas ciências, quanto pela influência ideológica nos diversos institutos de ensino e pesquisa em todo o mundo. No campo educacional, por exemplo, foram várias as contribuições de pensadores soviéticos, como Lev Vigotsky, Moisey Pistrak, Anton Makarenko, dentre outros. Tendo esses campos de impacto na história contemporânea em mente, e seguindo essa divisão que leva em conta as narrativas sobre a Revolução como formas de debater a cultura política, é que fechamos o dossiê com o artigo de Ricardo Vidal Golovaty, A Pedagogia Socialista de Moisey Pistrak no centenário da Revolução Russa: contribuição pelo olhar da História e da Sociologia da Educação.

Nesse interessante artigo, feito a partir de uma investigação coletiva no Instituto Federal de Goiás dedicada às questões históricas envolvendo a politécnica e o centenário da revolução, Golovaty propõe uma reflexão crítica sobre a Pedagogia Socialista de Moisey Pistrak, preocupado em lançar questões para os impasses políticos da militância estudantil contemporânea. O autor faz um importante exercício de articulação entre a conjuntura política e econômica na qual Pistrak produziu as obras Fundamentos da Escola do Trabalho (1924) e Ensaios sobre a escola politécnica (1929), com o olhar sociológico, sobre as relações entre educação e estrutura social, escolarização e Revolução Russa. Esse exercício proporciona ao leitor, tal como João Valente Aguiar propõe no artigo que abre o dossiê, uma narrativa sobre a Revolução que se distancia da tradicional, ao mesmo tempo em que retoma a proposta de pedagogia socialista como cultura socialista, e não como uma mera prática naturalizada pelos agentes que renegue a difícil realidade da comunidade escolar nos dias atuais.

A todos (as), uma boa leitura!

Luiz Felipe Cezar Mundim – Professor temporário do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e pela Université Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. E-mail: [email protected]

Tales dos Santos Pinto – Doutorando e Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


MUNDIM, Luiz Felipe Cezar; PINTO, Tales dos Santos. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 6, n. 1, mar., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Autoritarismo e conservadorismos políticos / História e Cultura / 2016

Tomando o Iluminismo enquanto momento inaugural da segunda modernidade, como ponto de inflexão para uma autorreflexão e para a busca pela racionalidade (Kant, 1968) e por uma autonomia política individual rumo ao cosmopolitismo (Kant, 1984 e 2004), percebe-se, em sua herança intelectual, dualidades básicas no centro das ações e das ideias políticas contemporâneas.

Essas dualidades referem-se, em essência, ao conflito fundamental pela inclusão ou exclusão de elementos ou grupos políticos de uma dada sociedade. Entre a evolução e o enraizamento, a tradição e a modernidade, observamos uma intensa contraposição, especialmente nos últimos dois “breves” séculos, de ideias e conceitos que fundamentam parte considerável das ideologias e a própria política moderna, como Nacionalismo e Cosmopolitismo, Conservadorismo e Liberalismo, Autoritarismo e Democracia, etc. (Funke et. al., 2011. p. 8). Essas contraposições dicotômicas se tornam ainda mais contrastantes em momentos de crises, quando ganham força posicionamentos e ideias conservadoras, assim como ações e políticas autoritárias.

Já no século XX, o avanço tecnológico e a composição da sociedade de massas trouxeram um novo momento, no qual os discursos e os meios de repressão se tornam ainda mais violentos, assim como crescem as possibilidades de interações e circularidade de ideias. Assim, as diversas formas do Conservadorismo e do Autoritarismo encontram nesse ambiente condições propícias para se desenvolverem e se relacionarem, ainda que tenham passado por modificações marcantes.

A partir dessas questões, que voltam à tona com intensidade em tempos recentes, surgiu o intuito do dossiê temático “Autoritarismo e Conservadorismos Políticos”, que os organizadores têm o prazer de apresentar. Os quatorze manuscritos selecionados demonstram a pertinência dos estudos sobre o tema e do próprio campo de estudos, suas vicissitudes, interações ou mesmo idiossincrasias, assim como diversas abordagens historiográficas possíveis.

Abrindo o volume, o texto de Thiago Possiede da Silva aborda a gestação de ideias e práticas autoritárias no Chile e suas implicações nas relações entre elites dirigentes e classes trabalhadoras durante a primeira década do século XX. Em recorte temporal semelhante, embora analisando a perseguição aos anarquistas no Brasil, o artigo de Bruno Corrêa Benevides auxilia a esclarecer a relação entre a negação de alteridade e repressão política que daria o tom às décadas seguintes.

Em relação ao papel desempenhado pelos intelectuais, dois artigos trazem novas análises sobre a construção de modelos autoritários baseados, de modo não mimético, em experiências externas. O texto de Felipe Xavier trata especificamente dos escritos de Delio Cantimori sobre a Alemanha nazista, enquanto a contribuição de Fábio Gentile analisa a questão do “autoritarismo instrumental” em Oliveira Vianna, assim como suas relações com o fascismo italiano.

Tratando especificamente de organizações fascistas (ou do fascismo enquanto movimento), Gabriela Grecco analisa a interação das porções “culturais” da Falange Española, suas relações e disputas face ao poder institucionalizado do Estado. Em relação às experiências e atividades da Ação Integralista Brasileira, Rodrigo Santos de Oliveira e Michelle Vasconcelos abordam o papel dos três principais intelectuais camisas-verdes na construção de um modelo totalitário à nação brasileira, enquanto Rafael Athaídes analisa as mensagens comoventes na imprensa integralista como estratégia política destinada às porções militantes, mas também ao projeto de nação.

Ainda sobre o integralismo brasileiro, todavia no período do “pós-guerra”, Leandro Pereira Gonçalves e Alexandre de Oliveira tratam da questão da problemática contingente militante na passagem da Ação Integralista Brasileira ao Partido de Representação Popular, que sem dúvida trazem implicações historiográficas.

Para além das formações e consequências de modelos autoritários que protagonizaram em especial o período do entreguerras, as contribuições ao dossiê também abrangem a segunda grande “onda” autoritária do século XX, cujo ápice decorre entre os anos 1960 e 1970. Da mesma forma que o primeiro bloco de artigos, neste os fenômenos também são analisados por várias autoras e autores a partir de abordagens diversificadas. É o caso, por exemplo, de Mila Burns, que trata sobre o papel da Diplomacia Brasileira na deposição de Salvador Allende em torno das interações entre atores e instituições internacionais. Já Juan Besoky aborda as disputas entre as porções da direita peronista que compõem o nacionalismo argentino durante a década de 1970.

A construção do regime de exceção brasileiro é analisada em duas contribuições. Thiago Nogueira de Souza analisa a movimentação anticomunista de parlamentares brasileiros da Ação Democrática Parlamentar, enquanto David Castro Netto trata sobre a relação entre propaganda, os manuais da Escola Superior de Guerra e o regime militar brasileiro. Já Gustavo Bianch, empreende uma leitura crítica sobre a tese do “oposicionismo nato” dos estudantes durante a ditadura, a partir da análise sobre organizações estudantis de direita.

Por fim, mas não menos importante, Bruno Biazetto, a partir da análise de percepções de intelectuais norte-americanos sobre o fenômeno conservador local, fornece uma ampla visão sobre o estado da arte, que se inicia na Era Reagan e se estende a expressões políticas como o Tea Party e a candidatura (e agora eleição) de Donald Trump.

Evidentemente, grande parte dos textos atentam para dinâmicas relacionadas a regimes de exceção – ou às tentativas de construção de ordens autoritárias. No entanto, conforme aventado, a hodiernidade da questão desconhece barreiras temporais ou mesmo divisões de mundo, inclusive entre “Ocidente” e “Oriente”. Assim, a entrevista realizada com o professor Dr. Andreas Umland, um dos expoentes nos estudos do autoritarismo pós-soviético, nos oferece uma visão acerca de um quadro complexo e por vezes pouco analisado do lado de cá, coroando a edição do presente volume. Como organizadores, esperamos que este dossiê auxilie a suscitar novas compreensões, discussões, possibilidades de pesquisas e, sobretudo, o diálogo entre as diferentes formas de vivenciar o mundo.

A todos (as), uma boa leitura!

Odilon Caldeira Neto – Professor substituto do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio doutoral junto ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL). Investigador-coordenador da “Rede Direitas, História e Memória” (http: / / direitashistoria.net). E-mail: [email protected]

Vinícius Liebel – Historiador, doutor em Ciência Política pela Freie Universität Berlin (FU-Berlin). Pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). Professor colaborador do PPG-História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), bolsista Capes-PNPD na mesma instituição. E-mail: [email protected]


CALDEIRA NETO, Odilon; LIEBEL, Vinícius. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 5, n. 3, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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As verdades da ficção / História e Cultura / 2016

Introdução – verdades e ficções

Ao propormos um dossiê intitulado “As verdades da ficção”, é claro que estávamos pensando na série de debates que se travou, ao longo das décadas de 1960 e 1970, no campo da historiografia. As palavras “verdade” e “ficção” remetem, para todos que têm uma certa familiaridade com essa produção intelectual, em especial à obra de Hayden White, que, sob forte influência de um aparato teórico forjado no campo da teoria literária, tirou o sono dos historiadores tradicionais. O uso de obras ficcionais como fonte de conhecimento histórico ou social vem de longa data, contudo. [1] White, por sua vez, ao aproximar ambos os termos, inverte o sentido epistemológico: não é mais a obra ficcional que dá acesso, em alguma medida, a um conhecimento histórico ou sociológico — a alguma dimensão do que chamamos de real; se trata, agora, de ressaltar que o uso de elementos ficcionais pela narrativa histórica impossibilita ver a história como fonte objetiva de conhecimento.

O dossiê tem exatamente a finalidade de revisitar essa questão, que, verdade seja dita, já não causa o mesmo furor de outrora. O próprio Hayden White andou fazendo, recentemente, uma mea culpa, ainda que pela metade. Em The Practical Past, ele reconhece que ter usado, para tratar da escrita historiográfica, o conceito de ficção sem ressaltar que este seria “um tipo de invenção ou construção baseada em hipóteses, mais do que uma maneira de escrita ou pensamento focada em entidades puramente imaginárias ou fantásticas” (WHITE, 2014, p. xii), abriu espaço para mal-entendidos desnecessários. Em certa medida, o livro de Peter Gay, Represálias selvagens — cujo título do epílogo, “As verdades das ficções”, não custa lembrar, inspirou o presente dossiê —, é uma reposição da questão entre literatura (ou ficção) e história (ou verdade) em tempo do refluxo da vaga cética. Daí que possa sair mais ou menos incólume com uma afirmação como a de que “pode haver história na ficção, mas não deve haver ficção na história” (GAY, 2010, p. 150), a qual seria tachada de conservadora um quarto de século atrás.

Pelo número de artigos recebidos — 30 para ser mais exato —, nota-se que o interesse pelo assunto continua considerável. Ao chamarmos a atenção para ficção, um termo mais genérico do que literatura, pintura ou cinema, buscávamos, além da referência aos debates provocados pelo uso do conceito por Hayden White, ampliar o máximo possível o número de objetos ficcionais, aqui pensados quase como sinônimo de artísticos, que servissem de ponto de partida para reflexão. Não é de se estranhar que a grande maioria das contribuições tenha se debruçado sobre objetos literários. Além da formação dos organizadores ter sido nesse campo do conhecimento, há uma forte tradição na academia brasileira, que se mantém atuante especialmente em São Paulo, que relaciona o estudo da literatura ao da sociedade.

A proposta, como se vê, foi bastante aberta; não indicamos preferência por análises de objetos concretos ou formulações mais teóricas. Queríamos apenas retomar o debate, de modo a termos uma ideia do estado da arte nas pós-graduações do país. E os resultados que ora apresentamos dão bem conta dessa diversidade. Para abri-lo, contudo, escolhemos dois artigos recentes, produzidos no cenário internacional, que se debruçam sobre os desafios mais recentes a respeito da relação entre ficção e história — ou, mais precisamente, literatura e história. O primeiro, “História literária e história da leitura” foi escrito por Judith Lyon-Caen, professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Seu olhar é de historiadora e se volta para as práticas de leitura e para os estatutos dos romances franceses produzidos ao longo dos anos iniciais da Monarquia de Julho, uma perspectiva, portanto, que se distancia do texto, espaço privilegiado no campo das Letras. O recurso às cartas e aos debates suscitados na imprensa pela publicação em folhetim dos Mistérios de Paris, de Eugène Sue, entre 1842 e 1843, é uma saída interessante da historiografia para lidar com o que Peter Burke (2011, p. 21) chama de “território não familiar” sobre os quais os historiadores têm se aventurado desde que, já há algumas décadas, decidiram ampliar seu rol de questões e, dessa maneira, de fontes e métodos.

Em certa medida, a metáfora do distanciamento [2] também tem uma função importante em “Narratologia no arquivo da literatura”, o ensaio de Margaret Cohen, professora de Literatura Comparada e Francesa da Universidade de Stanford. Não só a História, como todas as áreas das Humanidades, que é para usar uma expressão um tanto fora de moda, têm passado por um processo de redefinição de propósitos, objetos e métodos. O primeiro passo de Cohen diz respeito ao afastamento da leitura cerrada (close reading), que foi, por muito tempo e das mais diversas formas, [3] o paradigma dominante nos estudos literários (principalmente os anglo-saxões). O mais interessante da sua reflexão, contudo, está na tentativa de aparelhar metodologicamente uma demanda recente dos estudos literários, que têm encontrado nos arquivos um conjunto grande e importante de obras que foram negligenciadas pela crítica tradicional. Isso deve ser feito, segundo Cohen, sem abandonar a especificidade do objeto literário, ainda que este precise ser repensado noutros termos. Os ensaios de Judith Lyon-Cahen e Margeret Cohen, portanto, lidam, de maneiras distintas, com os desafios abertos aos seus respectivos campos, cruzando fronteiras e incorporando novos objetos, métodos e fontes.

Em verdade, como não poderia deixar de ser, o cruzamento de fronteiras é a tônica desse dossiê. Um bom exemplo dessa prática salutar é o ensaio de Everton Demétrio, “Sertão, nação e narração”. Aqui, a obra (e, mais especificamente, a narrativa) de Guimarães Rosa funciona como um modelo incômodo aos relatos que buscam recuperar e dar sentido a um passado e a uma geografia, uma vez que revela a impossibilidade de fazê-lo sem a remissão a uma alta dose de invenção. O sertão, de Ariano Suassuna dessa vez, também serve como objeto, ponto de chegada para ser mais exato, da reflexão teórica proposta pelo artigo de Jossefrania Vieira Martins, intitulado “História, literatura e representação”, na qual alguns pontos clássicos da relação entre esses campos do conhecimento são retomados.

Vale a pena notar, ainda que brevemente, duas questões. A despeito de termos recebido contribuições dos mais diversos Departamentos, os selecionados acabaram ficando restritos aos de História e Letras, o que, pelo que foi dito acima, não é de se estranhar. Contudo, em sua grande maioria, foram os historiadores que se aventuraram pelos meandros da teoria, mesmo que, como nos dois casos apresentados acima, houvesse sempre um objeto literário como suporte da reflexão. A exceção aqui é o artigo de Geruza Almeida, “Realidade e ficção, trauma e afeto”, que explora, com uma densidade teórica incomum, esses conceitos, em especial o de trauma. Um conceito que, é sempre bom lembrar, tem sido usado com bastante frequência pelos estudos historiográficos e literários que se debruçam sobre as questões da Shoah, no caso europeu, e das ditaturas, no sul-americano. [4]

Uma possível razão — e este é a segunda questão que gostaríamos de destacar — talvez seja ainda a forte presença de Hayden White, quando o assunto é a relação entre história e ficção. Na verdade, White reinou quase que soberanamente (mesmo em ensaios onde não é mencionado, como o de Everton Demétrio) em todos os trabalhos. O que causa estranheza não é esse fato, mas sim que as respostas ao ceticismo epistemológico no tratamento da ficção — como, para ficarmos em poucos exemplos, é o caso de Carlo Ginzburg (2002), [5] Peter Gay (2010) e Sidney Chalhoub (2003) — ainda não tenham sido incorporadas ao instrumental teórico apresentado nos trabalhos que lemos. [6]

Os artigos provindos dos Departamentos de Letras, por sua vez, se dedicaram a análises mais concretas, que fizeram dos textos ficcionais escolhidos pontos de partida para as discussões mais diversas. Tendo em vista o aparato conceitual de que se vale Hayden White, todo ele oriundo da Teoria Literária, é curioso notar sua ausência desse lado do debate. Aqui, o ceticismo epistemológico parece não ter vez, muito pelo contrário. Tome-se o artigo de Bruna Tella Guerra, “A armadilha de Padura”, como exemplo. Ela estuda, dentre outros livros do escritor cubano Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros, um romance histórico recheado de dados, chamando em causa, contudo, sua dimensão estética e fazendo dela fonte de conhecimento. A literatura latino-americana, dessa vez da Argentina, também é o mote do trabalho de Iuri de Almeida Müller, intitulado “Verdade e ficção em Glosa e A armadilha, de Juan José Saer”. Além de apontar, junto com artigo de Bruna Tella Guerra, para uma retomada da produção literária do subcontinente, que andou em baixa por muito tempo nos Departamentos de Letras, o texto de Müller permite vislumbrar o tratamento dado à relação entre ficção e verdade a partir do ponto de vista de um ficcionista e como essa reflexão é incorporada na feitura dos romances do escritor argentino Juan José Saer.

Outra boa nova é a forte presença da literatura contemporânea auxiliando nas reflexões sobre ficção e realidade. Em “Desconstrução do exílio nos contos ‘Paris não é uma festa’ e ‘London, London ou Ajax, Brush and Rubbish, de Caio Fernando Abreu”, Thereza Bachmann se debruça sobre a prosa desse escritor curitibano de modo a poder discutir uma certa percepção do exílio, sedimentada entre aqueles que permaneceram no país durante a ditadura cívico-militar de 1964. Os contos de Caio Fernando Abreu trazem para primeiro plano uma dimensão nada idílica ou edulcorada desse processo, ressaltando, dentre outros problemas, o da exploração do trabalho.

De modo geral, especialmente em se tratando de literatura, essa relação entre literatura e realidade tem como objeto privilegiado de estudo produções mais distantes no tempo, daí que tenhamos louvado os estudos que a encaram a partir de produções contemporâneas. O artigo de Sébastien Rozeaux, “Do mito à realidade”, por sua vez, retorna ao século XIX brasileiro para estudar a peça de Araújo Porto-Alegre, A estátua amazônica, de 1851. Contudo, seu trabalho não se faz nem nos moldes clássicos, por assim dizer, dos estudos do período — como é o caso de Antonio Candido (2004) e Roberto Schwarz (2000a e 2000b) —, nem o toma como parte do processo constitutivo da nação, outra linha de força que, mesmo não sendo mais hegemônica, ainda tem lá seu peso. Rozeaux lê a peça em relação ao seu contexto imediato de produção, que foram as expedições científicas do naturalista francês Francis de Castelnau.

Por fim, encerrando o dossiê, temos o artigo de Hezrom Vieira Costa Lima, “Escravidão e(m) quadrinhos”. Ao fazer uso de uma forma ficcional como a dos HQ’s, considerada por alguns um produto rebaixado, sem maiores interesses, para entender o alcance de novas concepções historiográficas, o autor inova não só no objeto que escolhe, como também na inversão do sentido do que foi proposto no dossiê. Em linhas gerais, o que temos é a ficção, iluminando, seja de maneira teórica, seja de forma mais concreta, algum aspecto da realidade. O que Hezom Lima faz é inverter o sentido desse processo. Agora são as mudanças produzidas pela nova história social da escravidão — crítica de uma concepção que representa o negro escravizado de maneira passiva, trazendo para primeiro plano as suas mais diversas formas de agência, mesmo aquelas que não se mostram de maneira evidente — que dão uma forma distinta ao enredo ficcional.

Notas

1. Uma relação que, como se sabe, é feita desde que o mundo é mundo — uma declaração intencionalmente nada acadêmica. Para ficarmos mais próximo ao nosso paradigma epistemológico, cf. Lepore (2008), que, num texto tão curto quanto provocativo, chama a atenção para a produção ficcional do século XVIII, quando romances ainda podiam se arvorar à autodenominação de História. Já num período de constituição da História como disciplina em busca de uma metodologia, digamos assim, científica, cf. Peter Burke (2008, em especial seu primeiro capítulo “A grande tradição”), que discute, ainda que brevemente, as obras de Jacob Buckhardt e Aby Warburg. Em se tratando deste e de toda uma tradição intelectual que se formou a partir do seu legado, cf. Carlo Ginzburg (1989).

2. Para uma reflexão ainda mais radical a respeito da necessidade de distanciamento do texto nos estudos literários, cf. Moretti (2005 e, especialmente, 2013).

3. O próprio pós-estruturalismo, a última grande moda a tomar de assalto os Departamentos de Letras ao redor do país, não deixa de ser, nas palavras de Derrida (1995, p. 31), um “ultra-estruturalismo”.

4. Para uma síntese, cf. Seligmann-Silva (2002).

5. Carlo Ginzburg é um dos casos mais interessantes a esse respeito, porque, além do debate teórico travado em Relações de força, ele ainda dedicou um conjunto de ensaios para pensar as maneiras através das quais o objeto figurativo (ficcional, portanto) pode servir como conhecimento histórico. Além do clássico “De A. Warburg a E. H. Gombrich”, já citado, sua retomada crítica dos trabalhos de Roberto Longhi sobre Piero dela Francesca é das mais interessantes. Cf., em especial, o “Prefácio (1981)” e o Apêndice IV, “Datação absoluta e datação relativa” (Ginzburg, 2010)

6. Vale a pena também ressaltar que essas breves reflexões não têm nenhuma pretensão “científica”. A amostragem, se não é pequena, tampouco é representativa a ponto de nos permitir tirar conclusões mais sólidas. O que deixamos aqui são, antes de tudo, simples insights, os quais podem funcionar como ponto de partida para aqueles que, por ventura, possam vir a se interessar por eles.

Referências

BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 2011, p. 7-38.

BURKE, Peter. O que é história cultural? 2. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: O discurso e a cidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 17-46.

CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

DERRIDA, Jacques. Força e significação. In: A escritura e a diferença. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 11-52.

GAY, Peter. Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann. São Paulo: Cia. das Letras, 2010.

GINZBURG, Carlo. De A. Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de método. In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

GINZBURG, Carlo. Investigando Piero: O Batismo, o ciclo de Arezzo e Flagelação de Urbino. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

LEPORE, Jill. Just the Facts, Ma’am. The New Yorker, New York, 24 Mar. 2008. Disponível em: http: / / www.newyorker.com / magazine / 2008 / 03 / 24 / just-the-factsmaam. Acesso em: 13 Nov. 2014.

MORETTI, Franco. Distant Reading. London: Verso, 2013.

MORETTI, Franco. Graphs, Maps, Trees: Abstract Models for Literary Theory. London: Verso, 2005.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000a.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000b.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Zeugnis” e “Testimonio”: um caso de intraduzibilidade entre conceitos. Pandaemonium germanicium, São Paulo, n. 6, p. 67-83, 2002.

WHITE, Hayden. The Practical Past. Evanston: Northwestern UP, 2014.

Rodrigo Cerqueira – Doutor em Teoria e História Literária (IEL / Unicamp) — Pós- doutorando — Departamento de Sociologia — Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP – Brasil. Bolsista Fapesp. E-mail: [email protected]

Leandro Thomas de Almeida – Doutor em Teoria e História Literária (IEL / Unicamp) — Pós- doutorando — Departamento de Teoria e História Literária — Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas, SP – Brasil. Bolsista Fapesp. E-mail: [email protected]


CERQUEIRA, Rodrigo; ALMEIDA, Leandro Thomas de. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 5, n. 2, set., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Os primeiros passos dos escritos em línguas vernáculas na idade média / História e Cultura / 2016

Em 1400, o teólogo da universidade de Paris, Jean Gerson, na obra La Montaigne de contemplation, tomava a iniciativa de escrever em vernáculo para aconselhar as gentes simples sobre os exercícios introspectivos de devoção, considerando que alguns clérigos poderiam se espantar com o fato de ele escrever em francês sobre uma matéria considerada, na época, elevada e complexa, digna apenas de ser tratada em latim. Contudo, sua escolha pelo vernáculo, como ele mesmo confessa, não foi despropositada, já que visava facilitar a divulgação do conteúdo da obra para um público mais vasto, isto é, pessoas menos instruídas e que não falavam outra língua que não fosse o francês. Ponto de vista semelhante é o de Álvaro da Mota, religioso português que, no século XV, ao traduzir do latim para o vernáculo a Vida de D. Telo, diz fazê-lo para que um número maior de fiéis tivesse contato com os ensinamentos contidos nessa hagiografia. A despeito da distância geográfica que separava esses dois eclesiásticos, ambos apontavam, do mesmo modo, o escrito em vernáculo como ferramenta chave para disseminar o conhecimento cristão.

Desde o século VIII, os concílios exortavam os padres a pregarem em língua vulgar. Posteriormente, por volta do século XIII, a pregação em língua vernácula aos poucos invadiu o terreno da escrita, os sermões passaram, então, a ser compostos e conservados nessas línguas, formando assim um material de leitura de natureza religiosa e edificante voltado para clérigos, mas visando igualmente a correção dos laicos. Se, nesse época, tais escritos começaram a ganhar fôlego, foi nos séculos XIV e XV que se multiplicaram e se tornaram mais difundidos. Essa ampliação da escrita vernácula não se restringiu, entretanto, ao domínio religioso, mas também se estendeu à produção de escritos laicais, como textos administrativos das cortes, tratados médicos, obras jurídicas, crônicas e romances de cavalaria. Nas terras latinas e em outros cantos da cristandade, se o poder eclesiástico apostou no vernáculo como veículo catequético, o poder temporal, por sua vez, o utilizou, tanto para promover regras no âmbito da corte, quanto para dinamizar o sistema administrativo da coroa. Mais precisamente, de um lado, eclesiásticos tornaram os manuais em vernáculo um dos instrumentos indispensáveis da política de pregação; do outro, leigos eruditos passaram a adotar o vulgar para textualizar o mundo, redigir história dos reinos, leis, relatos de viagens e conselhos para os nobres.

Abrindo o dossiê, o artigo de Fernando Ferrari, Nuove e strane e Meravigliose cose: As alterações nas práticas de leitura das traduções do Relatio de Odorico de Pordenone (1330) reflete sobre a circulação da obra deste viajante franciscano em diferentes lugares, como no norte da Península Itálica, Reino da França e das Ilhas Britânicas. Na sequência, o autor Thiago Borges explora como os mapas foram enriquecidos com explicações redigidas em vernáculo no estudo Textos e imagens do mundo medieval: as representações cartográficas entre as línguas clássicas e vernáculas (séculos VIII-XVI). Logo depois, é a vez de Jorge Vianna analisar, no trabalho Em defesa da monarquia imperial: Dante Alighieri e sua linguagem política contra o poder do papado medieval, o papel do vernáculo como instrumento de legitimação do poder monárquico na Península Itálica central. Continuando, Renan Birro reflete sobre a relação entre a poética vernácula e a absorção da fé cristã, no trabalho Sobre matadores de dragões: alusões poéticas ao herói Sigurdr Fáfnisbani e ao arcanjo Miguel na poesia escandinava do século XI. Outro autor a compor esta série é Dominique dos Santos que, no artigo A tradição Clássica e o desenvolvimento da escrita Vernacular na Early Christian Irland: algumas considerações sobre a matéria troiana e a Togail Troí, explora as heranças legadas pela Antiguidade na Irlanda medieval.

Além de trabalhos voltados para o mundo nórdico ou terras além-Pirineus, este dossiê apresenta um conjunto de estudos que abordam o universo dos escritos em vernáculo na Península Ibérica. O primeiro desses textos é do autor Ricardo Shibata que, no artigo Cultura Clássica e literatura vernacular no século XV em Castela e Portugal, discute as traduções, no ambiente das cortes régias, de obras da Antiguidade para o português e castelhano. Dando sequência, Carolina Ferro, no estudo A livraria de D. Duarte (1433-1438) e seus livros em linguagem, explora os esforços desse governante para a escrita no universo dos reis de Avis. Em seguida, André Silva, no trabalho A literatura devocional em língua vernácula e a reforma dos cuidados com os enfermos no Portugal tardo-medieval: a caridade, a assistência e a misericórdia, analisa em que medida os escritos em vernáculo contribuíram para a promoção das práticas de assistência aos enfermos. Por fim, a autora Kátia Michelan aborda, no estudo A escrita de um feito inglório: o cerco português a Tânger, em 1437, as diferentes narrativas que reportavam as expedições bélicas portuguesas no Norte da África.

A partir do papel político e social que os escritos em língua vernácula alcançaram em diferentes cantos europeus entre os séculos XII e XVI, o presente dossiê visa, desse modo, interrogar os usos desses materiais na construção e transmissão de saberes, na dispersão da fé e na consolidação dos reinos cristãos.

Leandro Alves Teodoro – Professor Doutor. Pós-dourando em história pela UNESP / campus Franca, bolsista FAPESP / CAPES e professor do programa de pós-graduação em História dessa mesma instituição. Membro do projeto “Temático escritos sobre os Novos Mundos”, financiado pela FAPESP.

Letícia Gonçalves Alfeu de Almeida – Professora Mestre. Doutoranda em história pela UNESP / campus Franca, bolsista CNPQ. Membro do projeto “Temático escritos sobre os Novos Mundos”, financiado pela FAPESP.

Organizadores


TEODORO, Leandro Alves; ALMEIDA, Letícia Gonçalves Alfeu de. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 5, n. 1, mar., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Conexões história e direito: temas e problemas compartilhados / História e Cultura / 2015

A ideia de elaborar um Dossiê sobre História e Direito nasceu do desejo de conectar estas duas áreas do conhecimento por meio da apresentação de artigos que abordassem alguns temas e problemas comuns, entre tantos pontos de entrelaçamento possíveis. Assim, buscamos evidenciar assuntos que pudessem elucidar perspectivas e abordagens nas quais a necessidade de contribuições recíprocas estivessem encobertas ou propositadamente distantes de ambos os universos acadêmicos. Mesmo que separados por barreiras ideológicas ou por interesses de campos teóricos divergentes, o objetivo resultou na tarefa de reunir diversos artigos que contemplassem a temática, e que refletissem sobre as relações entre estes dois ângulos do saber humanístico, em diferentes momentos e temporalidades, visando, sobretudo, divulgar o trabalho de pesquisadores que vêem a História e o Direito como possibilidades de interfaces em seus estudos. Portanto, o resultado alcançado partiu da proposta de valorizar a interdisciplinaridade, com base no estudo crítico e reflexivo que deve permear o universo acadêmico.

O Direito se relaciona com a História, não por ser um fato presente na vida social ou um campo especifico do conhecimento, mas por ser um valor construído e erigido em todas as sociedades independentemente das suas formas de organização, sistematização ou estruturação política, moral ou ética. O Direito é vivenciado e realizado pelo homem no decorrer do tempo, o que o faz presente na história da humanidade.

Direito é uma experiência vital; é uma soma de atos que as gerações vão vivendo, uma após outras, dominadas, todas, pelo ideal do que chamamos de justo. Pois, bem, a esta experiência histórica, que se concretiza no tempo, ao fato social que progride ou regride assumindo fisionomias e aspectos bastantes diversos, variando de lugar para lugar, de tempo para tempo, e exprimindo-se em sistemas de normas positivas damos no nome de Direito (REALE, 1956, p. 273)

A História é um campo de investigação que busca não só revelar e compreender os fatos e acontecimentos pretéritos da pessoa humana, mas substancialmente analisar mudanças ocorridas nos grupos sociais em que esta estava imersa. Dentro das condições e possibilidades fáticas estabelecidas, os elementos centrais são: os vestígios que sobreviveram e que, de alguma forma permitem interpretar, tanto a duração dos eventos quanto o tempo histórico. Assim, humanidade, documento, evento, duração e tempo histórico são substanciais para a análise dos acontecimentos relativos ao tempo cronológico.

“O processo histórico, temporal, é contínuo, porém não é linear, vez que não se encontra delimitado pelo tempo cronológico. É um tempo que inclui idas e vindas, desvios e avanços, recuos e inversões, alterações-rupturas e alterações-continuidades”. (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA; 2014) Por isso, a História não se resume a uma mera narrativa de fatos, mas a uma complexa urdidura de reflexão, análise e compreensão sobre fatos, eventos e / ou pessoas no tempo.

A pesquisa histórica foi convulsionada no último século e novos objetos de investigação surgiram florescendo uma nova história, uma história material, associada as práticas cotidianas, do imaginário social e das mentalidades, na tradição aberta pela escola francesa dos Annales. “A nova história começa por deslocar seu centro de atenções de uma certa política, especialmente a política do Estado e do Estado Nacional, voltando-se para a vida material.” (LOPES, 2014, p. 3).

Do ponto de vista dos métodos de investigação e de interpretação, o chamado “Giro Linguístico” impactou, de forma indelével, no último quartel do século XX, e os estudos nesse campo tornaram imprescindíveis a necessidade do historiador se valer das filosofias da linguagem e relativizar realidades e verdades históricas em função do efeito de representação dos fatos, eventos e / ou pessoas contidos tanto na documentação, quanto nas interpretações.

A Ciência do Direito passou a ser analisada pelo viés histórico pela Escola Histórica do Direito ou Historicismo Jurídico. O historicismo jurídico, que surgiu como pensamento de Savigny, vislumbra o Direito como resultado da história, fruto da consciência do povo, expressão não na lei, mas dos usos e costumes. Essa escola nasceu da necessidade de se conhecer o passado do Direito, visando buscar a tradição jurídica de cada povo como fundamento e justificativa da existência de um Direito nacional. Nesse viés, a história do Direito foi uma história romântica, “ela não foi seguramente uma história econômica e social e não foi tampouco sociológica ou jusnaturalista. Ela foi antes de mais nada nacionalista e tradicional” (LOPES, 2014, p. 4)

A História do Direito precisa ser revista e reavaliada, visando uma nova compreensão historicista que rompa com o dogmatismo positivista, permitindo que Direito possa ser analisado historicamente como objeto de um estudo crítico e reflexivo, sem a visão ilusória e romântica da ordem tradicional dominante e elitista, preocupada apenas em reproduzir os ordenamentos jurídicos postos como se eles não fosse elementos de uma conserva de cultura dotada de tropos e de figuras de representação do conhecimento. Essa conserva não pode simplesmente ocupar o espaço da realidade ou de uma verdade sem levar em conta que a linguagem que comporta os comandos jurídicos e que, em decorrência disso, os atos de fala dos operadores do direito, configuram um suporte representacional de intenções de compreensão do real e não o real em si.

Trata-se de pensar a historicidade do direito, no que se refere à sua evolução histórica, suas idéias e suas instituições, a partir de uma reinterpretação das fontes do passado sob o viés da interdisciplinaridade (social, econômico e político) e de uma reordenação metodológica, em que o fenômeno jurídico seja descrito sob uma perspectiva desmistificadora. (WOLKMER, 2006, p. 15).

Mais do que analisar dados, fatos e referências a momentos históricos, a História do Direito ou os aspectos das Ciências Jurídicas vistos em perspectiva histórica precisam estimular uma reflexão crítica dos institutos jurídicos, respondendo indagações acerca de sua finalidade, sentido e razões que foram criados, bem como a conserva cultural linguística na qual essa trajetória ficou registrada para entender suas transformações e as novas dimensões assumidas na atualidade. A História do Direito deve relatar, descrever e comentar o direito que vigorou em certa época e lugar, sem comparações ou julgamentos a partir dos valores atuais, mas como meio de fornecer informações para a compreensão do direito contemporâneo, esclarecendo dúvidas e afastando imprecisões (AZEVEDO, 2005, p. 22).

A história do direito deve cruzar os recursos da história renovada com os elementos característicos do universo jurídico: o direito como ordenamento, isto é, o conjunto de regras e leis; o direito como expressão de uma cultura, um espaço onde se produz um pensamento, um saber-discurso; e o direito como um conjunto de instituições e organizações que produzem e aplicam o próprio direito a partir de elementos de uma discursividade e de uma linguagem própria do campo jurídico não infenso a problemas de interpretação. Com isso, abrirá “para nós um universo de questões que podem e devem inquietar os historiadores de profissão mas que também são semente de inquietação de qualquer um que se dedique a estudar o direito e depois a fazer dele sua profissão.” (LOPES, 2014, p. 8)

A História do Direito por ser a história de um artefato de cultura, não pode ser resumida exclusivamente no ato de correlacionar no tempo e no espaço as normas jurídicas estatais e seus efeitos jurídicos. A História do Direito não se enquadra na dogmática jurídica, pois privilegia “o ato de conhecer, promovendo assim a reconstrução dos fatos e instituições jurídicas em determinados contextos históricos, sociais e intelectuais.” (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA; 2014, p. 5)

A importância de estudar a História do Direito é, antes de tudo, um importante exercício para compreender o tempo presente, e traçar o futuro a partir das experiências vivenciadas. O Direito não é algo isolado, mas tem sua historicidade, cultural e social, não podendo ser compreendido divorciado da sua formação no transcurso do tempo. O Direito quando se apropria das experiências passadas têm melhores condições de cumprir sua missão social, pois o Direito não se resume unicamente ao estudo da norma. O jurista que conhece a História do Direito desnaturaliza a ideia da permanência ou evolução, compreende que “o direito relaciona-se com o seu tempo e contexto (cultural, social, político, moral) e que o direito contemporâneo não é uma nova versão do direito romano ou uma evolução do direito medieval, mas sim fruto de um complexo de relações presentes na sociedade e que progride a par das forças indutoras capazes de modificá-lo, transformá-lo, revolucioná-lo”. (AGUIAR, 2007, p. 22)

O jurista que tem fundamento histórico reúne melhores condições de compreender e utilizar a legislação, a jurisprudência, a doutrina e as outras fontes do Direito, bem como, permite desenvolver a argumentação e persuasão das teses jurídica porque sabe que a conserva saber-discurso na qual se funda o Direito é um campo aberto a ambiguidades, a dialogicidades e a interesses de uma ação comunicacional aberta a constantes reparos e sujeita a uma modalidade de correspondência palavra-coisa que não é biunívoca.

Mesmo existindo novos estudos historiográficos sobre as instituições jurídicas, ainda persistirá uma ausência, até mesmo certo mistério, sobre questões ligadas às origens do Direito e sua aplicação ao longo dos tempos. Muitas perguntas continuam em aberto e muitas respostas conclamam por interpretações. “Essa dificuldade refere-se ao fato de que o estudo histórico do Direito exige procedimentos, métodos e abordagens bastante complexos, além da própria especificidade da Ciência do Direito, que abarca uma série de objetos de pesquisa (sistemas legais, sistemas jurídicos-políticos, sistemas econômicos, dentre outros).” (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA; 2014, p. 4)

O Dossiê quer aproximar e fomentar estudos que revigorem a História do Direito ou o Direito na História. A finalidade dos artigos que compõe essa obra coletiva é apresentar o Direito como um fenômeno histórico, de modo a contribuir para um olhar renovado do meio acadêmico, mostrando que estudar a História do Direito tem relevante importância, para perceber que a normatividade extraída de um determinado contexto histórico torna-se uma experiência concreta de conscientização do presente e de interpretação e compreensão dos fenômenos jurídicos contemporâneos.

O Dossiê é uma oportunidade para compreender a historicidade do Direito, a partir da reinterpretação das fontes do passado numa perspectiva da interdisciplinaridade (cultural, social, econômica e política). Por isso, o Dossiê está formado por artigos de sociólogos, historiadores, filósofos, cientistas políticos e juristas, mostrando as diferentes visões de ver o Direito na História e a História do Direito.

Aproveitamos para agradecer a todos os colaboradores que aceitaram o nosso convite de pensar temas jurídicos na perspectiva histórica, e encaminharam seus artigos, resultante de suas pesquisas. A contribuição de todos foi decisiva para o engrandecimento do nosso esforço em compor o presente Dossiê, e mais do que isto, é sim um enriquecimento para o campo do Direito, que vai além da dogmática jurídica, e ao mesmo tempo é uma oportunidade para fortalecimento do tema no âmbito da historiografia.

Referências

AGUIAR, Renan; MACIEL, José Fábio Rodrigues. História do Direito. (Coleção Roteiros Jurídicos). São Paulo: Saraiva, 2007.

ANKERSMIT, Frank Rudolf. Giro linguístico, teoria literaria y teoria histórica. con prólogo de Verónica Tozzi. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2011.

_______. A escrita da História: a natureza da representação histórica. tradução de Jonathan Menezes … [et al.]. Londrina: EDUEL, 2012.

AZEVEDO, Luis Carlos de. Introdução à História do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

BAGNOLI, Vicente; BARBOSA, Susana Mesquita; OLIVEIRA; Cristina Godoy Bernardo. Introdução à história do direito. São Paulo: Atals, 2014.

LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 5. ed. São Paulo: Atals, 2014.

REALE, Miguel. Horizontes do direito e da história. São Paulo: Saraiva, 1956.

WOLKMER, Antonio Carlos (Organizador). Fundamentos de História do Direito. 3. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2006.

Pedro Geraldo Saadi Tosi – Professor Doutor.

Paulo Henrique Miotto Donadeli – Professor Mestre.

Organizadores


TOSI, Pedro Geraldo Saadi; DONADELI, Paulo Henrique Miotto. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 4, n. 3, dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Educação em perspectiva histórica / História e Cultura / 2015

Alinhada à proposta inicial de integrar diversas áreas de pesquisa no campo das ciências humanas e sociais (História, Pedagogia, Sociologia, Filosofia etc.), esta coletânea de textos discute a educação a partir de suas múltiplas interfaces, sobretudo, com a História. Apresentamos, aqui, o fruto de dois anos de intenso trabalho na estruturação, recebimento, avaliação e correção das contribuições encaminhadas desde a aprovação da proposta deste dossiê pela Revista História e Cultura e a abertura da chamada pública de textos em 2013. As contribuições nacionais e internacionais agora publicadas contam com autores de diversas instituições e formações, de modo que estão organizadas em pequenos blocos temáticos.

O primeiro conjunto de textos está situado no campo do Ensino de História, apresentando, de forma sugestiva, abordagens e referenciais teóricos sensivelmente diferentes. O artigo assinado por Marcelo Abreu e Marcelo Rangel discute os nexos teóricos e práticos entre memória, cultura histórica e ensino de história. Integrando o entendimento do ensino de história no conjunto mais amplo de uma “cultura histórica”, os autores propõem temas, conceitos e problemas a partir dos trabalhos de Christian Laville, Jörn Rüsen, Hans Gumbrecht e François Hartog, abordando possibilidades do ensino de história em um tempo marcado pela “desorientação”, ou seja, o enfraquecimento de pilares teóricos e epistemológicos que pautavam a ação e a teorização históricas desde o século XIX (nação, identidade, verdade histórica etc.). A investigação de Livia Scheiner, construída sobre pesquisa empírica realizada no EJA do célebre Colégio Pedro II, analisa os estudos históricos e o ensino de história à luz da “cognição histórica situada”. Por meio de questionários dirigidos aos alunos, a pesquisa aborda o problema da formação histórica a partir de elementos cognitivos (experiência, interpretação, orientação) capazes de estruturar relações fundamentais com a historicidade, inserindo as formas do ensino na correlação entre uma consciência histórica situada na “vida prática” e a própria percepção da temporalidade e do passado histórico.

O segundo bloco de textos reúne abordagens que sugerem instigantes aproximações entre História, Sociologia e Filosofia, problematizando relações no campo do ensino e da pesquisa. O artigo de Renato José de Oliveira discute possibilidades de articulação da hipermodernidade e do pós-dever, de Lipovetsky, com algumas teorias da racionalidade argumentativa (Perelman e Olbrechts-Tyteca) para o entendimento de práticas e comportamentos em escolas de ensino fundamental e médio, situando, assim, as vivências escolares no contexto das ambivalências éticas e valorativas da própria modernidade (hiperindividualismo, bullying, agressões etc.). Rosana Cuba, desdobrando os diálogos entre Educação, História e Sociologia em pesquisa empírica realizada no município de São José do Rio Preto (SP), articula as profundas transformações históricas do final do século XX e início do XXI aos sentidos e significados atribuídos à escola por jovens de classe média. Destaca, nesse sentido, novas esferas de socialização (situadas na internet, por exemplo) e a dissolução de critérios de sequencialidade e hierarquização (característicos da escolarização moderna, sobretudo, a partir do século XVIII). O artigo de Leoni Henning reflete sobre as forças históricas que marcam importantes questões no campo da Filosofia da Educação no Brasil: desde configurações teóricas do campo até a prática e seus profundos sentidos políticos historicamente situados, a autora indica valiosos caminhos para o entendimento da Filosofia da Educação no processo de formação de professores no Brasil.

Analisando os processos de educação em perspectiva histórica, organizamos os demais artigos em ordem cronológica. A contribuição de Álvaro de Araujo Antunes oferece um painel teórico / historiográfico sobre os estudos produzidos em História da Educação tematizando a América Portuguesa. Além de um inventário debruçado sobre as especificidades da produção acadêmica na área, trata-se de propor alternativas de pesquisa à luz de problemas da História Cultural. Derick Santiago sugere aproximações entre os conceitos rousseaunianos de “estado de natureza” e “infância”: alinhando, portanto, temas da filosofia política e do pensamento pedagógico do filósofo de Genebra, Santiago indica uma matriz das reflexões de Rousseau calcada em dinâmicas de sociabilidade, destacando, como elemento central, uma teorização sobre o homem e suas interações sociais. O século XVIII ainda ganha outros contornos com o trabalho de Patrícia Merlo e Guilherme Marchiori de Assis, que enfatizam a pluralidade e as especificidades das Luzes na Europa a partir de uma investigação comparativa entre as obras de Ribeiro Sanches, estrangeirado português, e do marquês de Condorcet, filósofo francês. Para os autores, a ênfase do racionalismo Ilustrado nas formas de instrução conferia uma espécie de primado da educação no “esclarecimento” (para empregar a terminologia kantiana) das sociedades modernas.

O século XIX é compreendido pelo instigante estudo empírico assinado por Carimo Mohomed. O autor investiga o Movimento Aligarh, núcleo de identidade entre as populações muçulmanas da Índia Britânica, centralizando suas investigações na figura de Ahmad Khan (1817-1898), importante liderança política e intelectual da região e idealizador de um ambicioso sistema educacional para integração social: para Carimo Mohomed, as ações do Movimento Aligarh sinalizam, sobretudo, um projeto de modernização junto à comunidade muçulmana, aliando preceitos da educação islâmica aos conteúdos das ciências ocidentais. O autor, nesse sentido, enfatiza um amplo processo de regeneração intelectual dos muçulmanos na Índia, articulando o Movimento Aligarh em torno da construção de uma elite muçulmana que, educada para assumir quadros administrativos na Índia Britânica, era consciente de seu projeto na medida em que uma identidade muçulmana em elaboração na região sedimentava essa condição.

Preocupados com a História da Educação do Brasil republicano, os artigos que encerram esta coletânea apontam, além da diversidade temática, uma rica pluralidade teórico-metodológica na análise da documentação. Renan Mattos estuda algumas tensões no campo educacional nos anos 1930 e 1940: a partir das produções de Fernando do Ó, liderança espírita em Santa Maria (RS), o autor analisa, apoiado em documentação impressa e no quadro teórico de Bourdieu e de parte da historiografia sobre o período Vargas, processos e estratégias de disputa que delimitam algumas balizas do campo educacional brasileiro no período, sublinhando temas como a religião, o ensino público e a própria imagem da nação. Josineide Santana investiga o cotidiano escolar no Orfanato de São Cristóvão (SE) no início dos anos 1940: além de uma descrição minuciosa de práticas cotidianas (despesas, currículo, espaço etc.), o artigo propõe análises sobre os sentidos da educação feminina no período. Momento, aliás, rico em debates no campo educacional: Thiago Nascimento apresenta um painel dos anos 1920-1950 – conjuntura em que temas escolanovistas aparecem diretamente articulados às propostas de Delgado de Carvalho e às recepções das ideias de Dewey na configuração dos ensinos de História e Estudos Sociais no Brasil republicano.

O sugestivo estudo de Sérgio César da Fonseca, Débora Menegotti Ferreira e Maria Beatriz Prandi analisa o Parque Infantil, escola implantada em Ribeirão Preto (SP) nos anos 1950. Os autores inserem as análises documentais no contexto mais amplo de políticas de educação da infância que, desde os anos 1930, elaboravam ações estaduais na formação dos Parques Infantis: a pesquisa, dessa forma, acompanha significativas alterações das formas de educação, assistência e amparo à infância, analisando conjunturas centrais (décadas de 1950-60) para o entendimento da escolarização do Brasil. É essa mesma conjuntura que marca o ponto alto do artigo de Hilda Maria Gonçalves da Silva: analisando a Educação de Adultos no Brasil, a autora demonstra seus aspectos políticos e pedagógicos marcadamente associados aos anos 1950-70, momento de aguda modernização em sociedades da América Latina, criticando a sobrevalorização de uma concepção instrumental da forma educativa em detrimento de um ensino reflexivo e de maior possibilidade crítica: ambiguidade histórica que, conforme o argumento de Hilda Silva, prende as dimensões da educação às estruturas pragmáticas do mercado de trabalho. Finalizamos este dossiê com uma resenha de Everton Vieira Barbosa sobre o livro História & livro e leitura, de André Belo (historiador português da Universidade Rennes 2, na França), discutindo a História da Educação no contexto de uma história do livro e das formas de leitura.

Buscando, enfim, matizar algumas mediações históricas e teóricas que configuram o campo da educação, acreditamos que o presente dossiê ilustra, além de um esforço acadêmico para congregar pesquisas, uma possibilidade de interlocução entre diferentes campos para o entendimento dos processos de educação em suas dimensões políticas e socioculturais. Desejamos, nesse sentido, que a diversidade de temáticas, objetos, metodologias e teorias possa contribuir no sentido de um aprofundamento de pesquisas acadêmicas situadas na interface entre as ciências humanas e sociais e o campo da educação.

Marcus Vinicius da Cunha – Docente da Universidade de São Paulo (USP) Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da FFCLRP / USP e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP / Araraquara) Pesquisador do CNPq.

Tatiane Silva – Doutoranda em Educação – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP / Araraquara) Bolsista FAPESP.

Felipe Ziotti Narita – Doutorando em História – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP / Franca) Bolsista CAPES.

Organizadores do dossiê “Educação em perspectiva histórica”


CUNHA, Marcus Vinicius da; SILVA, Tatiane; NARITA, Felipe Ziotti. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 4, n. 2, set., 2015. Acessar publicação original [DR]

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História e Relações Internacionais / História e Cultura / 2015

As Relações Internacionais constituem uma área de estudo e investigação relativamente nova, se comparada às ciências humanas clássicas, como História, Política, Geografia, Economia e Direito. Trata-se de uma ciência multidisciplinar que, por meio do contato com outros campos do saber, busca o refinamento e a solidez a fim de compreender as relações sociais, econômicas e políticas em todo o mundo. Nesse processo, a História se coloca como base para compreensão dos fatos e fenômenos ocorridos no passado, proporcionando interpretações e comparações do panorama presente e, possibilita instrumentos e análises para traçar cenários futuros. Assim, para entender as relações internacionais na contemporaneidade, é condição sine qua non, utilizar como recurso metodológico a aplicação da perspectiva histórica com o objetivo de enriquecer tal arcabouço teórico e conceitual.

Os estudos de Relações Internacionais sempre buscaram na História as análises dos acontecimentos que justificassem a tomada de decisões dos governantes e dos Estados em suas políticas externas e domésticas, até mesmo para compreender quais são as variáveis que interferem para que um Império pudesse nascer, crescer e morrer (DUROSSELE, 2000).

Com as mudanças que ocorrem ao longo do extremo e curto século XX (HOBSBAWM, 1995), novos atores tornaram-se presentes e influentes no sistema internacional, como as Organizações Internacionais Governamentais, as diversas instituições ligadas ao setor privado, os meios de comunicação e outras instâncias constituídas por indivíduos. Além disso, os temas das agendas dos Estados, a princípio, defesa nacional, soberania, expansão territorial e relações de poder, passaram a dividir espaços com temáticas antes consideradas de segunda ordem, mas que, certamente, são imprescindíveis para a sobrevivência da humanidade, como meio ambiente, direitos humanos, igualdade entre gêneros, respeito às culturas, comércio, cooperação, integração, dentre outros.

Este dossiê objetiva apresentar temas das Relações Internacionais que se apropriaram da perspectiva histórica para compreender e analisar, para além da macropolítica e atuação dos Estados, mas também a participação direta e indireta dos atores não estatais na agenda internacional contemporânea.

O significativo volume de contribuições recebidas demonstra o inquestionável potencial que as Relações Internacionais possuem enquanto ciência em crescente construção e consolidação. Os catorze artigos que aqui se apresentam têm diversas origens e objetos de análise, demonstrando, a complexidade e a variedade das temáticas nessa área. O dossiê abrange acadêmicos de distintas universidades, nacionais e internacionais, além de envolver todo um arcabouço interdisciplinar.

No primeiro artigo, A política externa do governo Vargas durante o Estado Novo e a construção da Companhia Siderúrgica Nacional, Camila de Oliveira analisa as relações políticas entre Brasil e EUA na construção da CSN, além de demonstrar o êxito político do governo Vargas nesse processo. N

o texto Are the new international forums of the global south anti-western? Notes from historical and institutional perspectives, Victor Tibau problematiza o surgimento dos novos fóruns internacionais a partir de uma perspectiva “antiocidental”. Gilberto Guizelin, em As relações africano-brasileiras de longa data: uma análise da investigação histórica sobre o assunto no Brasil, resgata a história das relações internacionais entre Brasil e África ao analisar tais relações políticas no passado.

O quarto artigo, A rivalidade como sentimento profundo: origem, evolução histórica e reflexos contemporâneos do padrão de rivalidade entre Brasil e Argentina, sob autoria de Érica Winand, examina a relação histórica de embates e aproximações entre os dois países do Cone Sul, aportando-se, por fim, no tempo presente, marcado por alguns desentendimentos entre os dois Estados.

O artigo de Juliana Souza, Das várias linguagens do poder contemporâneo: feminismos, mercados e jornalismos, problematiza os feminismos vigentes na economia neoliberal e suas (re)produções presentes no discurso institucional.

Em Derrubando fronteiras: a construção do jornal A plebe e o internacionalismo operário em São Paulo (1917-1920), Kauan dos Santos analisa a interação entre o processo político local do operariado paulistano e sua relação com uma cultura política internacionalista, presente no periódico.

Ainda nos estudos internacionalistas que propõem a abertura de novas temáticas para a área, temos no texto de Rafael de Lima, Diplomacia em xeque: direito das gentes e escravidão na agenda bilateral Brasil-Uruguai (1847-1869), a análise dos embates diplomáticos entre Brasil e Uruguai, referentes à questão da escravidão para cada nação.

Dando sequência às novas fontes e estudos, no oitavo artigo, La diplomacia del balón: deporte y relaciones internacionales durante el franquismo, Juan Simón visa trabalhar com o papel do desporto da política do general Franco, durante seu governo ditatorial.

Outro texto publicado em espanhol, La “gallina ciega”: azara y la diplomacia entre España y Francia a finales del siglo XVIII, de Aleix Peña, aborda a questão subordinativa da Espanha frente ao Diretório francês, a partir de 1796.

No décimo texto, Victorino Oxilia, Ildo Sauer e Larissa Rodrigues, analisam as Motivações políticas e econômicas da integração energética na América do Sul: o caso de Itaipu, enfatizando sua importância para o projeto de integração e desenvolvimento regional, bem como os ganhos e interesses econômicos dos atores envolvidos nessa construção.

No segundo texto em inglês do dossiê, Tatiana Maia, em seu Not all fascisms are created equal: a comparative perspective on the politics of nationality in Interwar Germany and Italy, trabalha com a perspectiva comparada, a fim de traçar a complexidade das dinâmicas sociais, presentes nos países que viriam a associar-se ao Eixo.

Em Operações de paz: novos mandatos e suas implicações para os países contribuintes com tropas, Sérgio Aguilar apresenta as alterações nas operações de paz contemporâneas conduzidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e suas implicações para o Brasil.

O penúltimo texto, Política e cinema na era da Boa Vizinhança (1933 – 1945), de Isaias Moraes, apresenta uma análise histórica da Política Externa de Boa Vizinhança para América Latina, particularmente no Brasil.

Por fim, João Veiga e Murilo Zacareli, no texto Regimes Internacionais – do intergovernamental público às arenas transnacionais público-privadas, analisam a formação e a obsolescência do conceito de regimes internacionais para se compreender o sistema internacional na contemporaneidade.

Os organizadores deste dossiê esperam abrir mais uma porta para o universo das Relações Internacionais sob o olhar da História, inspirando reflexões e novas possibilidades.

Também compõem esse dossiê quatro artigos de temas livres e uma resenha. O primeiro artigo, A SAGMACS no Brasil e o planejamento urbano em Belo Horizonte (1958-1962), de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira que analisa três aspectos da configuração social e política do planejamento urbano regional na região de Belo Horizonte, ao final da década de 1950 e início de 1960; o segundo artigo livre, intitulado A contribuição de Daniel Pedro Müller para a transição do ensino da engenharia militar para a civil na Província de São Paulo (1802-1841), de José Rogério Beier, reconstitui a trajetória desse engenheiro militar e sua contribuição na organização de uma escola de engenheiros construtores de estradas, em meados do século XIX; no âmbito da História Política, José Henrique Songolano Néspoli, em Cultura Política, História Política e Historiografia, traça o processo de renovação da “História Política”, a partir de novos conceitos, como o de cultura política; por fim, no texto A mobilidade social do imigrante italiano pobre no Brasil (1890-1930): uma contribuição à historiografia da imigração em São Paulo, Marco Antonio Brandão retrata um outro cenário da imigração italiana no Brasil ao analisar sua atuação na cidade de Ribeirão Preto. A resenha desse número, escrita por Natália Frazão José, analisa a obra Introduction to the life of an Emperor, de Karl Galinsky.

Desejamos a todos uma ótima leitura!

Referências

DUROSELLE, Jean-Baptiste. Todo império perecerá. Teoria das relações internacionais. Tradução de Ane Lize Spaltemberg de Siqueira Magalhães, Brasília: Unb, 2000.

HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução: Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Tatiana de Souza Leite Garcia – Mestre em Geografia – Universidade Federal de Uberlândia (MG), Bacharel em Relações Internacionais e Geografia, Docente da Universidade de Ribeirão Preto e da Universidade Anhembi Morumbi.

Victor Augusto Ramos Missiato – Doutorando em História – Universidade Estadual Paulista (UNESP / Franca)

Sandra Rita Molina – Doutora em História – Universidade de São Paulo (USP), Docente Titular da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP) e pesquisadora do Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais (IPCCIC).

Organizadores do Dossiê História e Relações Internacionais


GARCIA, Tatiana de Souza Leite; MISSIATO, Victor Augusto Ramos; MOLINA, Sandra Rita.  Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 4, n. 1, mar., 2015. Acessar publicação original [DR]

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História e Sociologia / História e Cultura / 2014

A Sociologia surge durante o século XIX, o século das especializações, inspirada nas Ciências Naturais, em busca da explicação da regularidade dos “fatos sociais”. A História, por sua vez, é um campo do saber de longa data, por muito tempo considerada como uma área que visa acentuar a singularidade dos acontecimentos. Nessa linha interpretativa, enquanto a primeira se propõe a estabelecer um olhar geral e abrangente, buscando a interpretação e a generalização, a segunda se define pelo olhar da lupa que enxerga ao nível do detalhe e é capaz de dar luz ao arbitrário do movimento histórico. Esta é uma narrativa possível, embora há muito superada, sobre as duas ciências e suas fronteiras, pois, ao estabelecer tais definições de forma estanque, não é capaz de compreender as trocas e influências mútuas que as constituem. Essa visão também não considera as possibilidades criativas apresentadas por perspectivas contemporâneas, em ambas as áreas ou em focos interdisciplinares, que buscam ir além dos olhares que põem demasiada ênfase às “determinações estruturais” ou às ilimitadas escolhas conscientes dos agentes que conduzem as mudanças sociais.

Tal interpretação remonta às narrativas do século XIX de origem das disciplinas científicas que, embora não sejam falsas, são criações que dependem da seleção e da organização de eventos. É lugar-comum que a França é o contexto no qual a Sociologia se consolida como ciência, a partir das ambições levadas a cabo, entre outros, em primeiro lugar por Auguste Comte e, de forma mais sofisticada e definitiva por Émile Durkheim. A nova ciência buscava a explicação dos fenômenos sociais a partir de análises comparativas que possibilitassem a generalização e o estabelecimento de modelos explicativos da dinâmica social, portanto, em perspectiva antagônica com a historiografia prevalecente, aquela desenvolvida por Leopold von Ranke, centrada no estudo do fenômeno histórico compreendido em sua singularidade. A História serviria como ciência auxiliar às pretensões universalizantes da Sociologia.

Entretanto, ainda se referindo ao mesmo contexto francês, foi a partir da perspectiva inovadora dos Annales, desde a sua primeira geração de historiadores, que se estabeleceu uma revolução na maneira de se conceber a historiografia na década de 1930. Busca-se nessa perspectiva a interdisciplinaridade, especialmente entre a Antropologia, a Geografia, a Linguística, a Economia e a Sociologia. Houve, desta forma, uma influência muito grande da Sociologia neste novo e decisivo paradigma de se estudar a História a partir da perspectiva da “história-problema”, da preocupação com a interpretação e não mais com a simples narração e cronologia de fatos. A História incorporava elementos da Sociologia, recriando-se a partir de uma tradição que lhe é própria, recolocando novos “problemas” a desafiarem historiadores e sociólogos. Este é somente um exemplo, de importância inegável, do diálogo profícuo que se estabeleceu entre as duas áreas do conhecimento, renovando seus objetivos e as formas de produção do conhecimento acadêmico.

As ciências se configuram enquanto campos de saber específicos a partir de sua institucionalização, das definições de métodos, técnicas e objetos de pesquisa. Compreender o aspecto contextual, dinâmico e de natureza renovadora das ciências nos permite vislumbrar seu caráter plural, com as contribuições distintas da historiografia e sociologia francesas, norte-americanas, inglesas, latino-americanas, dentre outras que poderíamos provisoriamente classificar, bem como acompanhar seu desenvolvimento e suas trocas enriquecedoras. É no diálogo, muitas vezes contrastivo, que se fundam e se renovam as tradições teóricas e é por meio dele que os campos do saber se reinventam. A sociologia e a historiografia contemporânea, com sua ampla diversificação de autores, abordagens teóricas e metodologias renovam as questões e possibilidades de encontro entre as áreas.

Muito tem sido discutido mais contemporaneamente sobre as fronteiras e contribuições entre as duas áreas. O sociólogo Norbert Elias, expoente da sociologia histórica, apresenta-se como crítico de modelos explicativos sociológicos sistêmicos que pouco dão atenção à dinâmica histórica, mas não busca no elemento histórico algo “único” ou uma “singularidade absoluta”, em direção divergente, em uma abordagem que aproxima as duas áreas do conhecimento, visando analisar os processos históricos. Assim, Elias fomenta uma teoria sociológica que permite interpretar a mudança histórica como aspecto fundamental do social e a história de maneira menos subjetiva. Já o historiador Paul Veyne, em O inventário das diferenças. História e Sociologia (1983), acredita que a História deva recorrer e caminhar junto à Sociologia para ser interpretativa e problemática, mostrando que não há leis na História e que a História é, na verdade, o inventário das diferenças. O historiador deve, segundo Veyne, incorporar as teorias da Sociologia para perceber os tempos históricos em suas diferenças dentro do que há de constantes.

Para além das fronteiras demarcadas entre História e Sociologia, outros saberes, do qual se destacam aqueles originários dos Estudos Culturais, como as correntes teóricas contemporâneas dos estudos queer, pós-coloniais e feministas, apresentam-se como perspectivas críticas às limitações disciplinares. Críticos dos pressupostos normativos, presentes em diversificados campos de conhecimento, constroem a partir de incorporações criativas de diversos saberes, novas formas de conhecimento sobre o social e o histórico. É, portanto, na interdisciplinaridade que surgem outras abordagens inovadoras e críticas às relações de saber e poder institucionalizadas, que reproduzem ou invisibilizam diversas hierarquias e subalternizações da vida social.

Embora tenhamos alguns exemplos de reflexões nos estudos acadêmicos nacionais, notamos que são sempre importantes e mesmo necessárias produções que busquem refletir sobre a dinâmica entre as áreas, suas fronteiras e, especialmente, suas contribuições, tanto no âmbito teórico, como na realização de pesquisas empíricas, principalmente porque as reflexões e aportes teóricos das Ciências Sociais mudam com o passar do tempo. Tal é a proposta deste dossiê, apresentar artigos, tanto fundamentados em discussões teóricas, quanto baseados em pesquisas empíricas, que mostrem as contribuições, aproximações e o diálogo entre a Sociologia e a História.

Com base na proposta do dossiê, de apresentar uma interlocução entre áreas do conhecimento, a partir de uma perspectiva histórica e sociológica, incorporamos o Serviço Social ao debate, tendo em vista seu reconhecimento como profissão inserida no campo das ciências humanas e sociais.

O Serviço Social no Brasil surge nos anos de 1930, na fase monopólica do capital, como resposta às demandas e necessidades sociais da época. Com a emergência da questão social, entendida também como questão política, resultado da luta de classes e das desigualdades sociais produzidas no capitalismo, a profissão foi requisitada pelo Estado e pelos setores privados, objetivando, num cenário tenso, contraditório e antagônico, enfrentar as mazelas sociais pela via das políticas públicas.

Sendo assim, o Serviço Social não surge como uma ciência inscrita oficialmente num campo de saber, mas como uma profissão inserida na divisão social do trabalho, ou seja, como uma especialização do trabalho coletivo, dada sua dimensão interventiva. Isso não significa ausência da dimensão investigativa na profissão, tendo em vista que o Serviço Social atualmente é reconhecido e considerado área de produção do conhecimento. Nesse caso, as ciências humanas e sociais, especialmente a História, a Sociologia, a Economia e a Ciência Política, têm contribuído de forma significativa para a produção de conhecimento na área de Serviço Social. Concomitantemente, sobretudo nas últimas décadas, pesquisas, reflexões e produções teóricas do Serviço Social também têm contribuído com essas áreas do saber.

Tendo em vista a complexificação da realidade social, marcada pelas especializações e pela fragmentação do saber, inúmeros são os desafios do tempo presente no que se refere ao conhecimento produzido. Em muitas situações, esse conhecimento aparece descontextualizado, isolado, desconexo e justaposto, o que exige dos pesquisadores e estudiosos das diversas áreas do saber uma postura interdisciplinar.

A interdisciplinaridade pressupõe interlocução, diálogo, pluralismo de ideias, de posicionamentos, de concepções e abordagens. Nesse sentido, a interdisciplinaridade como postura, permite amplitude na análise e apreensão da realidade social a partir de várias angulações e perspectivas. A postura interdisciplinar contribui para a apropriação da natureza epistemológica e ontológica da realidade social, com vistas ao conhecimento de fatos, fenômenos e processos sócio-históricos.

Nesse cenário complexo e desafiador para a produção de conhecimento foi que surgiu a proposta desse dossiê, tendo em vista a necessidade de aproximação e interlocução entre as diversas áreas do saber.

O dossiê conta com treze artigos de estudiosos e pesquisadores das áreas de História, Sociologia e Serviço Social, voltados à temática das relações entre as áreas de História e Sociologia. Também apresenta uma entrevista com o pesquisador e professor Richard Miskolci que versa sobre sua trajetória acadêmica, refletindo sobre a importância da interdisciplinaridade no desenvolvimento de suas pesquisas focadas na temática das diferenças e dentro de uma perspectiva queer.

No primeiro artigo, Encontros entre História e Sociologia: primeiros embates metodológicos na França, Brunno Hoffmann perfaz uma discussão própria da virada do século XIX para o XX no contexto francês, quando a Sociologia e a História delimitavam suas fronteiras e disputavam no campo acadêmico as formas legítimas de abordagem do mesmo objeto: a vida do homem em sociedade.

Ulisses do Valle, no texto A relação entre História e Sociologia no horizonte da conceitualização e da explicação dos objetos históricos: reflexões sobre o pensamento de Max Weber, reflete sobre a História e a Sociologia a partir das propostas de Max Weber.

O terceiro artigo, História e Sociologia: a contribuição de Norbert Elias, de Tereza Cristina Kirschner, discute a elaboração criativa e interdisciplinar do sociólogo alemão e sua recepção entre sociólogos e historiadores.

Em As contribuições da Sociologia para o desenvolvimento da História Intelectual, Marcos Sorrilha Pinheiro analisa os “empréstimos teóricos” da sociologia de Pierre Bourdieu, Raymond Williams e Charles Tilly na elaboração de métodos de pesquisa da área de História Intelectual.

Elisângela de Jesus Santos problematiza, em Intelectuais e História: identidade caipira e o com-texto civilizatório brasileiro do século XX, a partir da perspectiva dos estudos culturais latino-americanos e dos estudos descoloniais, a construção do personagem literário Jeca Tatu na obra de Monteiro Lobato, dando destaque ao conceito de “colonialidade”.

O artigo de Maria Cecília Adão, Análise Histórico-Sociológica das Mudanças Comportamentais Femininas e do Impacto destas nas Famílias Militares, busca compreender como as mudanças comportamentais empreendidas pelas mulheres, desde a década de 1960 até os dias atuais, impactam nos arranjos familiares dos oficiais militares. Para isso a pesquisa realiza uma análise complementar entre elementos teóricos sociológicos e metodologias de pesquisas históricas.

Karen Fernanda da Silva Bortoloti, em seu artigo, Anísio Teixeira e as Ciências Sociais, apresenta reflexões sobre a contribuição e o legado de Anísio Teixeira para as Ciências Sociais e a educação brasileira.

Já o artigo Mapas Afetivos: recursos metodológicos baseados na história oral e reflexões sobre identidades espaciais e temporais em estudo sociológico, de Andréa Vettorassi, apresenta, por meio de metodologia baseada na história oral, com ênfase nos “mapas afetivos”, reflexões sobre o cotidiano, memória e identidade de trabalhadores migrantes em cidades do interior do Estado de São Paulo.

O manuscrito Paradoxos da Cidadania à Brasileira: sociologia histórica do campo jurídico no Brasil, de Márcio Caniello, aborda o sentido paradoxal da cidadania no Brasil, tendo como referência uma análise da formação sócio-histórica brasileira.

Quanto ao artigo de Clóvis Carvalho Britto, Paulo Brito do Prado e Raquel Miranda Barbosa, Vendo o sol nascer bordado: poderes, saberes e fazeres de reeducandas na Unidade Prisional de Goiás, os autores analisam, sob o crivo da memória e a ótica das relações de gênero, o Projeto Cabocla, implantado na Cidade de Goiás, como forma de trabalho e geração de renda para mulheres. Com base em entrevistas com mulheres, idealizadoras e trabalhadoras do projeto, enfatizam suas trajetórias de vida, suas redes de sociabilidade, cultura, relações de poder e identidades.

No artigo Os movimentos populares no Brasil: elementos sócio-históricos e desafios atuais, Michelly Ferreira Monteiro Elias retrata os movimentos sociais de caráter popular no Brasil no contexto de acirramento da luta de classes, tendo como referência temporal as últimas décadas do século XX e os primeiros anos do século XXI. Em uma conjuntura adversa, sob hegemonia do capital financeiro, apresenta as fragilidades, potencialidades e desafios postos aos movimentos populares na cena contemporânea.

Meire de Souza Neves, em seu artigo, A contribuição da Teoria Social Crítica para a formação em Serviço Social, apresenta os desafios e dilemas contemporâneos da formação em Serviço Social, destacando a importância e necessidade de se reafirmar uma perspectiva crítica, ancorada na tradição marxista, no projeto de formação profissional.

No último artigo, Confissões de um sociólogo, aprendiz de historiador (ou viceversa): aspectos da relação entre Sociologia e História em uma pesquisa sobre Oswald de Andrade, Giordano Barbin Bertelli em uma perspectiva dialógica entre os dois saberes, visa refletir sobre sua própria trajetória de pesquisa sobre Oswald de Andrade, buscando uma visão dinâmica e processual da realidade social e considerando a prática de pesquisa um campo de tensionamento e confrontação ao poder.

Como apresentamos, este dossiê é composto por trabalhos que trazem temáticas e metodologias variadas visando um mesmo propósito, refletir sobre o diálogo entre a História e a Sociologia numa perspectiva interdisciplinar. Desejamos, assim, boas leituras!

Reginaldo Guiraldelli – Professor da Universidade de Brasília, UnB Doutor em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista, UNESP / Franca.

Fernando de Figueiredo – Balieiro Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, UFSCar.

Semíramis Corsi Silva – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista, UNESP / Franca Organizadores do Dossiê História e Sociologia.


GUIRALDELLI, Reginaldo; BALIEIRO, Fernando de Figueiredo; SILVA, Semíramis Corsi. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.3, n.3 (Especial), dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Presença jesuítica nas Américas portuguesa e espanhola / História e Cultura / 2014

A revista História e Cultura, atenta às pesquisas e ao debate acadêmico desenvolvido na História e em áreas afins, traz neste número um dossiê voltado ao estudo da presença jesuítica nas Américas portuguesa e espanhola.

As pesquisas acerca das ações desenvolvidas pelos missionários desta Ordem vêm ganhando destaque crescente entre a pluralidade de temáticas de estudos no Brasil e no exterior. Dessa forma, essas investigações reúnem problemáticas, metodologias, discussões historiográficas e estudos de caso ímpares que demonstram as especificidades dessas áreas de pesquisa. Considerando essas características, o dossiê se apresenta como um espaço de reflexão dos temas que abordam o recorte cronológico e espacial inerente à instalação dos inacianos em zonas distintas dos centros de poder dos impérios português e espanhol.

O tema “Presença jesuítica nas Américas portuguesa e espanhola” determina o fio condutor da abordagem dos trabalhos de pesquisa contemplados neste dossiê. A ideia de presença se apresenta a partir da compreensão da organização dessa Ordem, fundamentada em seus textos fundadores, isto é, os Exercícios Espirituais, propostos por Inácio de Loyola, e as Constituições da Companhia de Jesus. A presença jesuítica em outros espaços, orientada por uma forma específica de ser, se faria presente entre conversos, gentios e infiéis. Desta maneira, este dossiê pretende contribuir para o entendimento das ações propostas por estes religiosos em consonância com os projetos português e espanhol de expansão de seus respectivos domínios coloniais.

Os trabalhos aqui apresentados – artigos que abordam a temática elencada para este número e uma resenha de livro – foram, gentilmente, analisados pela comissão de pareceristas, conforme sua relevância historiográfica e sua pertinência acadêmica. Desta maneira, agradecemos aos professores que se dispuseram a empreender tal tarefa, contribuindo, igualmente, para a realização deste dossiê.

Nosso objetivo não é somente possibilitar o debate intelectual acerca do tema, mas também fortalecer uma rede de pesquisadores preocupados com a produção historiográfica elaborada no Brasil e no exterior. Dessa forma, organizamos este dossiê em duas partes: artigos e resenha.

Os vinte textos que compõem o dossiê abordam uma pluralidade de discussões historiográficas sobre a presença jesuíticas nas Américas portuguesa e espanhola. Passível de percepção, os textos aqui selecionados compreendem a perspectiva de diferentes olhares sobre a chamada história Moderna e a importância dos estudos acerca das práticas desenvolvidas por estes missionários em diferentes áreas, na medida em que concentram intelectuais de diversas tendências acadêmicas em uma mesma obra, incluindo professores e alunos de pós-graduação de universidades brasileiras e estrangeiras. Nossa intenção foi exatamente essa: a de apresentar diferentes percepções e entendimentos de História, mais propriamente no campo dos estudos relativos à Companhia de Jesus e sua presença em dois lócus específicos.

De acordo com nossa proposta, informamos que os trabalhos que compreendem o presente dossiê foram elaborados por professores doutores de diferentes instituições públicas e privadas brasileiras, doutorandos, mestrandos e graduandos vinculados a instituições também nacionais, bem como investigadores ligados a instituições estrangeiras. Nesse sentido, cabe destacarmos que recebemos contribuições de pesquisadores vinculados às seguintes instituições brasileiras, a saber: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS); Universidade de São Paulo (USP); Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ); Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Universidade de Passo Fundo (UPF); Universidade Federal do Maranhão (UFMA); Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Universidade Federal do Pará (UFPA); Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRGN); Instituto Federal de Educação do Maranhão (IFE-MA); Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC); (Universidade Federal do Paraná (UFPR); Universidade São Judas Tadeu (USJT-SP); Universidade Salgado Oliveira (USO-RJ)). Do exterior, recebemos contribuições da Universidade de Sevilha (US-Espanha), Universidade de Évora (EU-Portugal) e da Universidade de Buenos Aires (UBA-Argentina).

Agradecemos em nome de todos os membros do Conselho Editorial o constante apoio do Conselho do Programa de Pós-graduação em História no qual está locada a História e Cultura.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Ana Raquel da Cunha Martins Portugal – Professora doutora. Docente do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Franca. E-mail: [email protected]

Fábio Eduardo Cressoni – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Franca. E-mail: [email protected]

Organizadores do dossiê


PORTUGAL, Ana Raquel da Cunha Martins; CRESSONI, Fábio Eduardo. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.3, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura no Século XIX / História e Cultura / 2014

Foi com muito prazer que recebi o convite para organizar um dossiê para a revista História e Cultura, publicação eletrônica discente do Programa de Pós-Graduação em História da UNESP (Franca). Propus o tema ‘História e Literatura no Século XIX’, levando em conta meus trabalhos de pesquisa sobre o período e o eixo principal de meus escritos desde o Mestrado: as relações entre os discursos sobre a nação, a formação da identidade nacional e as relações entre produção literária e contexto histórico numa perspectiva que sempre prioriza os processos de transferência e de circulação de códigos culturais entre a Europa e o Brasil.

Nestes estudos, protagonizam a elaboração discursiva – tanto da historiografia literária quanto da histórica – os personagens históricos das elites francesas e brasileiras que encetaram um projeto bilateral de construção da jovem nação independente. Ferdinand Denis, Eugène de Monglave, a família Taunay, Plasson, Hercule Florence, Pedro II, Gonçalves de Magalhães, Torres Homem e Araújo Porto Alegre têm lugar de honra na construção de um Brasil que nasce no papel – na Revista Nitheroy (1836), na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839) e na imprensa – mas também no protocolo diplomático dos jovens do Grupo de Paris, na delegação diplomática brasileira que anuncia a boa-nova transatlântica do nascimento de uma nação civilizada nos trópicos, sob a égide da França, sua guia. Nas últimas décadas do século, na tribuna, travam-se duelos verbais afiados entre os baluartes dos valores republicanos e que, simultaneamente, esgrimam suas penas ácidas nos romances-folhetins cariocas e nas charges que vão construindo um Brasil que ri de si mesmo, criticando.

Foi, também, por isso, com o mesmo prazer, que constatei, no recebimento dos artigos, trabalhos de pesquisadores que, atraídos pelo generoso da temática do dossiê, viram suas inquietações teóricas acolhidas nos eixos de discussão propostos. Com prazer igual, pude ler a produção de jovens pesquisadores que concebem, no lavor intelectual, a missão de serem os indivíduos cuja preocupação maior é a de refletir sobre o processo histórico e o fazer estético literário, oferecendo interpretações para eles.

Este dossiê ‘História e Literatura no Século XIX’ alegra-se por ser um êxito, tendo recebido um número importante de textos de pesquisadores que iniciam seu caminho de investigar, desvendar, desvelar, informar, e vêm de áreas de conhecimento e de instituições as mais díspares e de continentes diferentes, América do Sul, América do Norte, Europa.

Este dossiê reconhece o valor dos artigos aqui apresentados, escritos com análise fina e observação criteriosa. Estudiosos que revelam olhar preciso e rigor teórico. Tudo ensina que será cada vez mais profícua a colheita, prometendo, os jovens acadêmicos aqui reunidos, talentos para uma nova geração de pensadores, amantes do século XIX.

Sejam bem-vindos.

Segunda apresentação

Marcado pelo processo de criação dos Estados nacionais na Europa, pela definição de suas fronteiras e pela invenção de suas identidades, o século XIX ficou conhecido como “o século da história”. Conforme observa François Dosse (2010, p. 15-16), o processo de construção de tal expressão encobre duas realidades diferentes e complementares. De um lado, o Oitocentos foi o século da história porque a sociedade da época passou a esperar que a história enunciasse um tempo laicizado e que afirmasse para qual direção se dirigia a humanidade, atribuindo à história a função de um magistério do futuro em missão profética, e deslocando à disciplina histórica uma expectativa que tradicionalmente fora destinada à religião. Por outro lado, o século da história foi o XIX porque nesse período buscou-se uma profissionalização da prática histórica, que por toda a Europa foi dotada de um programa para seu ensino, com regras metodológicas e imbuído de uma preocupação para diferenciá-lo da literatura.

O nascimento da história como disciplina confundia-se com a imensa confiança na marcha progressiva das ciências. De acordo com José Carlos Reis (2003, p. 38), a busca por integrar a história aos padrões de cientificidade não impediu que os historiadorescientistas continuassem a considerar a história como o desenvolvimento progressivo, racional e contínuo do Espírito ou do Estado-nação, do povo, em direção à liberdade. “Para a história científica”, argumenta Reis (2003, p. 39), “a Europa continua sendo o centro e a vanguarda da história universal. Ela é guardiã e executora do ‘sentido histórico científico’, contra o qual não há apelação nem religiosa, nem especulativa”. Dito de outro modo, o olhar científico do século XIX significou a radicalização da confiança no projeto moderno, estruturado pela conquista europeia da história universal e pelo controle do sentido histórico.

Nesse contexto da afirmação do Estado-nação, das nacionalidades, enquanto o advento da razão moderna construiu um discurso teológico e / ou filosófico no qual chamou para si o privilégio de ser detentor da verdade, houve uma progressiva ascensão do discurso histórico sobre o discurso ficcional. Associada ao Estado-nação, a História havia se tornado centralmente uma história política em que a coletividade era substituída pelo relato dos fatos e pela biografia das grandes personalidades. Conforme explica Luiz Costa Lima (1989, p. 113-114), o domínio burguês em processo de expansão havia se associado “à ciência, ao desenvolvimento tecnológico e concedia à humanidade (europeia)” conceber-se enquanto uma espécie superior, cujo caminho se tornava sempre mais largo e promissor: “o fato histórico podia então ser tido como natural, autoevidenciador do domínio da vida pela espécie humana”.

Se a concepção da representação histórica verdadeira, positiva e científica tem sua origem no século XIX, antes dos Oitocentos, contudo, a historiografia era considerada como um assunto próprio da teoria retórica, como um ramo do discurso oratório. Tal qual Lima, Hayden White (1991, p. 24-25) também observa que a separação da historiografia da retórica teria se dado ao longo do século XIX, notadamente com o movimento cientificista, através de um “duplo ataque à retórica, dos poetas românticos, de um lado, e da filosofia positivista, de outro”, o qual teria levado “ao desprezo geral da retórica por toda a alta cultura ocidental”. Nesse movimento, argumenta White, a “literatura” teria suplantado o discurso oratório, da mesma forma que a prática da “escrita” e da “filologia” teriam suplantado a retórica como ciência geral da linguagem. A partir daí, a questão teórica da escrita da história passou pela especificação da relação da história com a “literatura”, o que, no entanto, teria criado um problema insolúvel, dado que a literatura era normalmente pensada como produto misterioso de uma “criatividade poética”.

Entretanto, para White, o fato das obras clássicas da historiografia continuarem a ser valorizadas por suas qualidades “literárias”, mesmo depois de seu conteúdo informativo ter sido considerado ultrapassado e lhe ter sido atribuída a característica de lugares-comuns do momento cultural em que foram escritas, confirma que o conteúdo do discurso historiográfico é indistinguível de sua forma discursiva:

É verdade que, ao falarmos da natureza “literária” de clássicos da historiografia como os escritos por Heródoto, Tácito, Guicciardini, Gibbon, Michelet, Tocqueville, Burckhardt, Mommsen, Huizinga, Febvre ou Tawney, podemos muitas vezes estar pensando em seu status como exemplares de um estilo bem-sucedido de escrita. Mas ao designarmos sua obra como “literária” não a estamos exatamente removendo do domínio da produção de conhecimento, e sim indicando, simplesmente, até que ponto se pode considerar que a própria literatura habita esse domínio, na medida em que ela também nos fornece modelos semelhantes de pensamento interpretativo (WHITE, 1991, p. 25).

Assim, os dois tipos de discurso, o literário e o historiográfico, mais se aproximariam que se distanciariam, pois, como ambos operam a linguagem, seria impossível traçar uma distinção clara entre a forma discursiva e o conteúdo interpretativo. Imprecisa, a diferença entre os discursos literário e histórico dever-se-ia ao fato de que seus referentes básicos são concebidos, respectivamente, mais como eventos “imaginários” que “reais”.

Não é aleatório que, já no século XX, precisamente no final dos anos 1970, um estudo de Lawrence Stone (1979) detectava uma espécie de retorno à retórica da prosa elegante do contar histórias (story-telling) “de Tucídides e Tácito à Gibbon e Macaulay”. Diante de um desgaste da explicação monocausal da mudança histórica amparada em determinismos econômicos, e com o reconhecimento da iniciativa do indivíduo no curso dos acontecimentos, em suas esferas cultural e emocional, de acordo com Stone, cada vez mais os historiadores passavam a trabalhar com seu objeto privilegiando uma perspectiva descritiva, através da qual a narrativa histórica organiza o material de pesquisa em uma sequência cronológica e o apresenta como conteúdo em uma única trama, ao invés – e cada vez menos – de dispô-lo em um arranjo analítico, de perspectiva estrutural, em cujo foco está a circunstância e não o sujeito. A história em questão era: haveria um “retorno da narrativa”, o surgimento de uma “nova velha história”, ligada à literatura que fora rejeitada pelo cientificismo do século XIX?

A partir disso, ao se pensar a história a partir de suas afinidades com a literatura, criou-se um conflito entre os historiadores com os pressupostos de cientificidade que haviam estabelecido a história como disciplina do conhecimento no século XIX, distanciando o historiador do cientista e aproximando-o do literato. Entretanto, se por um lado, as propriedades literárias da escrita da história, principalmente a narrativa, suscitaram questionamentos sobre a subjetividade e o caráter interpretativo do conhecimento histórico, evidenciando a relação complexa entre as fontes e a produção do discurso do historiador com uma incômoda interrogação sobre as garantias de objetividade científica na análise dos fatos do passado, por outro, a concepção da história, sobretudo enquanto narrativa, como um constructo linguístico intertextual, ofereceu elementos para que o historiador refletisse sobre seu ofício e para que buscasse um refinamento do seu trabalho de pesquisa e de escrita da história.

De fato, a julgar pelo imenso volume de contribuições que este dossiê recebeu, a compreensão interdisciplinar entre a história e a literatura deixou há muito de ser um assunto em litígio para se tornar um recurso valioso. É sintomático que, entre os artigos selecionados para o dossiê que se apresenta, há trabalhos nascidos no berço da literatura que se voltam com naturalidade à história e trabalhos provenientes do berço da história cujas reflexões encontram confortável amparo na literatura.

Assim, este dossiê é motivo de grande satisfação não apenas devido à qualidade de cada um dos trabalhos aqui publicados, um mérito indiscutível dos autores, mas também devido ao que ele próprio representa: é um sinal eloquente de uma tamanha afinidade da história e da literatura que torna indistinta a separação disciplinar tradicional dos ramos do saber.

Que este dossiê seja uma inspiradora semente de outras possibilidades.

Referências

DOSSE, François. História e historiadores no século XIX. In: MALERBA, Jurandir (org.). Lições de história: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV; Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. pp. 15-31.

LIMA, Luiz Costa. O Controle do Imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

REIS, José Carlos. História & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

STONE, Lawrence. The Revival of Narrative: Reflections on a New Old History. Past & Present, Oxford – UK, v. 4, n. 85, p. 3-24, nov. 1979.

WHITE, H. Teoria literária e escrita da história. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 21-48, 1991.

Ana Beatriz Demarchi Barel – Doutora em Literatura Brasileira – Université Paris III Sorbonne Nouvelle Pesquisadora Pós-Doutorado em História – FCRB (Bolsista FAPERJ).

Sérgio Campos Gonçalves – Doutorando em História – UNESP / Franca.

Organizadores do Dossiê História e Literatura no século XIX.


BAREL, Ana Beatriz Demarchi. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.3, n.1, 2014. Acessar publicação original; GONÇALVES, Sérgio Campos. Segunda Apresentação. Acessar publicação original [DR]

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Debates Historiográficos sobre a Antiguidade e o Medievo / História e Cultura / 2013

A revista História e Cultura, atenta às pesquisas e ao debate acadêmico desenvolvido na História e em áreas afins, traz neste número especial um dossiê voltado ao estudo da Antiguidade e do Medievo.

As pesquisas acerca da Antiguidade e do Medievo vêm ganhando destaque crescente entre a pluralidade de temáticas de estudos no Brasil e no exterior. Dessa forma, essas investigações congregaram problemáticas, metodologias, discussões historiográficas e estudos de caso ímpares que demonstram as especificidades dessas áreas de pesquisa. Respeitando essas características, o dossiê se apresenta como um espaço de reflexão dos temas que abordam o recorte cronológico das denominadas Antiguidade e Medievalidade.

O tema “Debates Historiográficos sobre a Antiguidade e o Medievo” determina o fio condutor da abordagem dos trabalhos de pesquisa contemplados neste dossiê. Além de artigos que abordam a temática elencada para este número, contamos com a contribuição de entrevistas e resenha de livro, analisadas pela comissão de pareceristas conforme sua relevância historiográfica e sua pertinência acadêmica.

Nossos objetivos não são somente possibilitar, mais uma vez, o debate intelectual acerca do tema, mas também fortalecer uma rede de pesquisadores preocupados com a produção historiográfica elaborada no campo da antiguidade e medievalidade no Brasil e no exterior. Dessa forma, organizamos este dossiê em três partes: Entrevistas, Artigos e Resenha.

As duas Entrevistas que abrem o dossiê abordam, cada uma, os dois campos de pesquisa atendidos. A primeira foi direcionada ao Dr. Adolfo D. Roitman, diretor e curador do Santuário do Livro, uma ala do Museu Nacional de Israel, em Jerusalém. O entrevistador, o doutorando Fernando Mattiolli Vieira, nos traz notícias do trabalho desenvolvido pelo Dr. Roitman, bem como do local onde estão armazenados alguns dos manuscritos do mar Morto encontrados nas cavernas da região de Qumran. Outros dois entrevistadores, Prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho e o doutorando Germano M. F. Esteves, por meio da entrevista com a Profª Drª Eleonora Del’Elicine, nos informam sobre os estudos acerca do Medievo na Argentina. Especialista sobre a Hispânia Visigoda, a Drª Del’Elicine nos mantém informados sobre as pesquisas medievais na Argentina e na Universidad de Buenos Aires, onde leciona.

Os trinta e um textos que compõem o dossiê estão organizados cronologicamente abordando uma pluralidade de discussões historiográficas sobre as denominadas, a saber: Antiguidade Clássica, Antiguidade Tardia e / ou Primeira Idade-Média, Alta Idade Média, Central e Baixa Idade Média, além da passagem do Medievo para o que entendemos historiograficamente como Idade Moderna.

Passível de percepção, os textos aqui selecionados e apresentados compreendem a perspectiva de diferentes olhares sobre as chamadas histórias Antiga e Medieval, na medida em que concentram intelectuais de diversas tendências acadêmicas em uma mesma obra, incluindo professores e alunos de pós-graduação de universidades brasileiras e estrangeiras. Nossa intenção foi exatamente essa: a de apresentar diferentes olhares, rótulos, percepções e entendimentos de História, mais especificamente no campo da Antiguidade e do Medievo.

De acordo com nossa proposta, informamos de uma forma breve os trabalhos que compreendem o presente dossiê: oito Professores Doutores locados em universidades públicas do país; quatorze doutorandos em História, dos quais onze pertencem a instituições nacionais e dois a programas de pós-graduação do exterior; dois mestres e sete mestrandos em História. Além de apresentar artigos de autores da instituição, ou seja, do Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP, Campus de Franca; o terceiro número (especial) do segundo volume da revista História e Cultura apresenta, igualmente, pesquisas de dezoito instituições de ensino superior, a saber: Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB); Programa Cultures en Contacte a la Mediterrània do Departament de Ciències de l’Antiguitat i de l’Edat Mitjana da Universitat Autònoma de Barcelona (UAB); Programa de Pós-Graduação em História Medieval da School of History – University of Leeds, Reino Unido; Universidade de São Paulo (USP); Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Universidade Estadual de Londrina (UEL); Universidade Estadual Paulista (UNESP – Assis); Universidade Federal de Goiás (UFG); Universidade Federal do Alagoas (UFAL); Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Universidade Federal do Maranhão (UFMA); Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS); Universidade Federal do Paraná (UFPR); Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM – UBERABA); Universidade Federal dos Vales Jequitinhonha e Mucuri / Diamantina-MG (UFVJM) e Universidade Federal Fluminense (UFF).

Ao final, apresentamos a resenha do livro de Andrew Lintott confeccionada pelo doutorando Thiago Eustáquio Araújo Mota.

Agradecemos em nome de todos os membros do Conselho Editorial o constante apoio do Conselho do Programa de Pós-graduação em História no qual está locada a História e Cultura.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Margarida Maria de Carvalho – Professora Doutora

Helena Amália Papa

Germano M. Favaro Esteves

Organizadores do dossiê


CARVALHO, Margarida Maria de; PAPA, Helena Amália; ESTEVES, Germano M. Favaro. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.2, n.3 (Especial), 2013. Acessar publicação original [DR]

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Indústria Cultural e Contemporaneidade / História e Cultura / 2013

A indústria cultural é um dos elementos que identificam a contemporaneidade. Toda a vida humana está hoje permeada por imagens, símbolos, sons, textos que foram produzidos em seu âmbito. Nossas subjetividades, a maneira como vemos o mundo, os desejos que expressamos estão sempre em diálogo, mais ou menos contraditório, com bens culturais produzidos de forma massiva e mercantilizada.

O conceito de indústria cultural foi trazido ao debate sobre a natureza do capitalismo no Pós-Guerra por Theodor Adorno e Max Horkheimer. Era o ano de 1947, no qual se definia a Guerra Fria e época em que os horrores do extermínio ainda povoavam intensamente corações e mentes. Em Dialética do Esclarecimento (Dialektik der Aufklärung), os autores criticavam a razão iluminista, capaz de tornar o massacre racional, e viam na indústria cultural sua perpetuação. Em oposição ao termo “cultura de massas”, que pode significar uma produção cultural produzida por ou para as “massas”, o conceito de indústria cultural põe a nu a lógica da cultura mercantilizada. Nesta, as “massas” seriam apenas objetos e jamais sujeitos. Os bens culturais produzidos como mercadorias se destinam ao consumo e, por meio deste, a um controle social fabricado pela alienação. Ao mesmo tempo similares a quaisquer mercadorias produzidas sob o capitalismo, esses bens se distinguiam pela sua capacidade de gerar conformismo e aquiescência, capturando subjetividades para a legitimação da ordem do capital.

Muitos foram os autores que debateram essa concepção, seja para negá-la radicalmente e celebrar a “liberdade de escolha” da audiência, seja para perceber nesse sistema de dominação brechas e contradições capazes de permitir a produção de contrahegemonias. Assim, tomando como horizonte a gênese de tal conceito, o dossiê “Indústria Cultural e Contemporaneidade” reuniu diferentes textos, divididos em: 10 artigos, 01 resenha e 01 entrevista que lançam olhares diversos sobre expressões culturais e seus contextos históricos.

Os primeiros artigos focam mais diretamente nas reflexões conceituais acerca da indústria cultural e seus desdobramentos. Em seguida, passamos para análises mais específicas de produtos e / ou manifestações culturais que dialogam com o referido conceito.

Música, turismo, produção audiovisual, novas tecnologias de informação e comunicação, movimentos sociais, foram temas escolhidos para problematizar o papel da indústria cultural no mundo contemporâneo. Selecionamos ainda uma entrevista de Armand Mattelart, sociólogo belga, co-autor do livro Para ler o Pato Donald, na qual ele reflete, entre outros temas, sobre o papel da indústria cultural no golpe que derrubou o presidente chileno Salvador Allende. Realizada pelo historiador Ivan Gomes, a entrevista traz uma contribuição fundamental para o aniversário dos 40 anos do golpe civil-militar no Chile. Por fim, Lia Rocha apresenta resenha que aborda a “moda” do turismo nas favelas, parte de um processo mais amplo de ordenamento urbano e de comoditização da cidade que está em curso no Rio de Janeiro, sede de megaeventos nos próximos anos.

“O Apocalipse é uma obsessão do dissenter, a integração é a realidade concreta dos que não dissentem.” A célebre frase de Umberto Eco, em seu livro Apocalípticos e Integrados, pode ser tomada como epígrafe deste dossiê. Nossa intenção foi, a partir de abordagens diferentes, desnaturalizar o senso comum, incentivando estudos culturais críticos que compreendam a História como processo. Pode-se perceber, assim, as mediações produzidas na dinâmica da indústria cultural, arena de conflitos e disputas entre um poderoso status quo que busca se perpetuar eternamente e um campo contrahegemônico que busca construir, de modos diversos, um novo horizonte histórico.

Adriana Facina – Professora do PPGAS / Museu Nacional / UFRJ, com pós-doutorado em Antropologia Social.

Pâmella Passos – Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Grupo de Pesquisas “Observatório da Indústria Cultural (Oicult).

Organizadoras do Dossiê Indústria Cultural e Contemporaneidade


FACINA, Adriana; PASSOS, Pâmella. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.2, n.2, 2013. Acessar publicação original [DR]

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História e Música / História e Cultura / 2013

É com grande satisfação que nos unimos ao corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para lançar o primeiro número do segundo volume da revista História e Cultura, publicação semestral online do Programa.

O dossiê temático desta edição traz em foco as discussões interdisciplinares entre História e Música, tema que apenas recentemente despertou interesse dos pesquisadores nas universidades brasileiras. Datam dos anos 1960 os primeiros estudos sistemáticos acerca do tema, que só então passou a configurar objeto de interesse entre os pesquisadores e a ser tratado como relevante objeto de estudo e reflexão acadêmica. Desde então, o número de trabalhos envolvidos com as relações entre História e Música cresceu vertiginosamente, não apenas no que se refere à produção historiográfica, mas também aos trabalhos desenvolvidos em outros departamentos acadêmicos. Os primeiros trabalhos dedicados à música nessa década de 1960 são desenvolvidos nos departamentos de Letras e compreendem particularmente análises da canção popular, destacando o conteúdo literário de seus versos. É a partir da década de 1980 que as contribuições mais significativas aos estudos musicais se farão notar na área de História e também nas áreas de Sociologia e Antropologia.

Cabe ressalvar que, em sua grande maioria, as pesquisas acadêmicas das Ciências Humanas dedicadas à música estarão predominantemente voltadas à música popular ou, mais especificamente, à canção popular. Uma das possíveis razões para essa preferência poderia ser apontada na dificuldade do pesquisador diante da não-simples decodificação da notação musical.

A historiografia promove diálogos bastante significativos com os estudos musicais desenvolvidos nas áreas de Letras, Antropologia, Sociologia, mas ainda tímidas são as articulações promovidas com a área da Musicologia ou de Etnomusicologia. Assim, os diálogos interdisciplinares envolvendo os estudos acadêmicos dedicados à música têm sua importância plenamente reconhecida pelos pesquisadores, embora seja ainda necessário algum avanço em direção aos áridos terrenos das fronteiras entre as disciplinas. Tal intercurso certamente trará novos importantes contributos às pesquisas historiográficas, tanto no que diz respeito às fontes quanto aos métodos de abordagem desse material. Frente a tal cenário, procuramos organizar um dossiê que integrasse pesquisadores de distintas áreas do conhecimento e que tratassem de diversos assuntos, dentro do horizonte de possibilidades dos estudos sobre História e Música.

O texto que abre o Dossiê é a conferência ministrada pelo Professor Doutor José D’Assunção Barros no XI Encontro de História da Educação do Ceará, realizado na cidade de Baturité, em setembro de 2012, intitulada “A Imaginação Musical como um modelo possível para repensar a Teoria da História”. A formação de Barros nas áreas de História e de Música permite colocar o discurso sobre a interdisciplinaridade na prática de sua produção acadêmica, refletindo sobre as possibilidades de uma “imaginação musical” aplicada à prática do historiador.

O Dossiê conta também com artigos sobre a música popular brasileira, como o do arquiteto e urbanista Marcos Virgílio da Silva, intitulado “O todo e a parte: nomeando espaços e vivências urbanas em São Paulo (décadas de 1950 e 1960)”, que traz um interessante diálogo interdisciplinar em sua investigação ao recorrer aos sambas de Adoniran Barbosa como ponto de partida para captar o olhar dos excluídos do processo de urbanização da cidade de São Paulo, e o artigo do cientista social Lucas Marcelo Tomaz de Souza, intitulado “Raul Seixas e o cenário musical brasileiro na década de 1970”, que aborda a inserção do cantor e compositor Raul Seixas no mercado fonográfico durante a década de 1970, refletindo sobre este tema importante para os estudos sobre música que é a estruturação do mercado fonográfico.

São variadas as possibilidades de reflexão acadêmica a partir da música. Interessantes, nesse sentido, são os estudos que têm como objeto a música erudita, como o dos músicos Álvaro Luiz Ribeiro da Silva Carlini e Alan Rafael de Medeiros, “A modernidade em questão: música de concerto em Curitiba – coexistência e especificidades entre a SCABI e SPMC”, sobre o papel das instituições culturais na difusão da música de concerto em Curitiba. Ainda refletindo sobre a música erudita temos o artigo “Aspectos vanguardistas na música de John Cage”, do historiador Vinicius Cranek Gagliardo, que apresenta os conceitos de vanguarda, instituição e obra de arte a fim de estabelecer relações entre as vanguardas artísticas europeias e a obra do compositor norte-americano John Cage.

Outros estudos que têm como objeto a música erudita são os dos historiadores Leandro Couto Carreira Ricon, “Por uma História Social da Música: uma metodologia aplicada à produção operística”, no qual o autor discute novas metodologias para uma abordagem problematizada da prática musical na História por meio da produção operística, e “O período joanino e as transformações no cenário musical no Rio de Janeiro”, de Renato Aurélio Mainente, que aborda as principais linhas de desenvolvimento da atividade musical no Rio de Janeiro a partir da fundação da Capela Real, em 1808, e do Real Teatro São João, em 1813.

Na intersecção entre estes dois objetos, a música erudita e a música popular brasileira, há o trabalho do comunicólogo Rafael Lage Pereira, intitulado “Artista artesão ou artista igual pedreiro: de Mozart a Macaco Bong, uma história de lutas por autonomia”, que traz uma reflexão instigante a respeito das possibilidades de reapropriações de antigas estratégias da indústria fonográfica e de que forma elas retornam reconfiguradas com jovens oriundos da indústria musical do século XXI.

A fim de evidenciar possibilidades de estudos que reflitam diretamente sobre as relações entre a música e a política trazemos as pesquisas de dois historiadores interessados na música latino-americana da segunda metade do século XX: o artigo “‘Canto porque la guitarra / tiene sentido y razón’: folclore e política na música de Víctor Jara (1966-1973)”, de Natália Ayo Schmiedecke, que considera o discurso político-musical identificado com o movimento da Nova Canção Chilena por meio da obra de Víctor Jara, e “‘Por toda América soplan vientos que no han de parar hasta que entierren las sombras’: anti-imperialismo e revolução na canção engajada latinoamericana (1967-69)”, de Caio de Souza Gomes, que analisa o ano de 1967 e o quanto ele significou um momento de ruptura importante no processo de consolidação dos movimentos de canção engajada na América Latina por conta da realização em Cuba do I Encuentro de la Canción Protesta.

Esperamos que os artigos publicados neste Dossiê possam contribuir para o campo dos estudos sobre História e Música, evidenciando que vários são os caminhos de pesquisa e que quanto maior a interação dos distintos profissionais e domínio de diversas perspectivas teórico-metodológicas, mais ricas serão as reflexões e escutas sobre o tema.

Lígia Nassif Conti

Mariana Oliveira Arantes

Organizadoras do Dossiê História e Música.


CONTI, Lígia Nassif; ARANTES, Mariana Oliveira. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.2, n.1, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Urbanidades / História e Cultura / 2012

Com orgulho que apresentamos o segundo número da revista História e Cultura, publicação semestral on-line produzida e editada pelo corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), com sede na cidade de Franca.

Nesta edição, contamos com a entrevista do pesquisador brasilianista Joel Wolfe, docente da Universidade de Massachusetts, que em 2010 publicou Autos and Progress: The Brazilian Search for Modernity (ainda sem tradução para a língua portuguesa), um estudo sobre a indústria automobilística no Brasil.

Em nosso dossiê temático, sobre Urbanidades, contamos com as contribuições de Leonardo Brandão cujo trabalho “Da cidade transfigurada à cidade transformada: culturas juvenis e a prática do skate (1970 / 1980)” analisa as origens da prática esportiva do skate no Brasil, período que este esporte não era bem quisto pela perspectiva das autoridades públicas das grandes cidades, momento concomitante de conturbação política que o país atravessava. Ainda no tocante à prática esportiva nas cidades brasileiras, temos o trabalho “Notas sobre a História da Educação Física no Triângulo Mineiro (Ituiutaba – 1934-1971)” de Andréa Azevedo de Oliveira e Sauloéber Társio de Souza que retrata a introdução da Educação Física enquanto disciplina escolar na região do Triângulo Mineiro.

Do centro-oeste brasileiro, contamos com os estudos de Rodrigo Tavares Godói e Luciano Pereira da Silva, respectivamente os artigos “Memória coletiva e discurso performativo: Barra do Garças como enunciado” e “Gestão do Patrimônio Histórico e Cultural no contexto do ‘plano de ação para as cidades históricas’, Cáceres – Mato Grosso”, que tem como preocupação pensar as identidades urbanas, seja pelo prisma da análise discursiva ou através do suporte arqueológico.

Pensando as periferias das cidades nordestinas na segunda metade do século XX, o dossiê conta com a contribuição de Esdras Carlos de Lima Oliveira, que discute o movimento social dos Mangueboys e suas representações na cultura urbana de Recife em seu artigo “O Recife de Freyre e dos Mangueboys: visões sobre os espaços e a vida da cidade”; e o trabalho de Hilmaria Xavier Silva, “Experiências urbanas: migrantes e modos de viver e trabalhar na periferia de Campina Grande na década de 1960”, leva o leitor a uma reflexão sobre as periferias das cidades brasileiras, tendo como objeto de análise a cidade paraibana de Campina Grande na década de 1960.

No presente número, na seção de artigos livres, apresentamos o trabalho de Danglei de Castro Pereira, “Marcas históricas no nacionalismo português”, que se utiliza da Literatura para uma reflexão sobre o nacionalismo lusitano; o estudo “A assistência institucional às crianças abandonadas no Brasil: do singular ao universal”, de Carlos André Moreira da Silva e Regina Célia Lima Caleiro, que aponta algumas questões sobre as origens da assistência social infanto-juvenil no país; o artigo de Gustavo Oliveira denominado “Histórias de Homero: Um balanço das propostas de datação dos poemas homéricos” problematiza os poemas homéricos enquanto fonte histórica apontando alternativas de abordagens e datação dessa tradição oral; e o trabalho de Vinícius Finger, “Zumbi e a construção da identidade negra: uma analise sobre a história em quadrinhos ‘Zumbi – a saga de Palmares’”, que utiliza como suporte documental história em quadrinhos a fim de debater a formação identitária negra através da figura de Zumbi dos Palmares.

Neste número, contamos com as resenhas das obras The Arab uprisings: what everyone needs to know de James L. Gelvin e Magia e Poder no Império Romano. A Apologia de Apuleio de Semíramis Corsi Silva.

Por fim, postergamos nossos sinceros agradecimentos ao o apoio e incentivo prestado pelo corpo docente que compõem o Conselho do Programa de Pós-Graduação da UNESP de Franca, bem com aos pareceristas anônimos e o Conselho Editorial da revista História e Cultura.

Carlos Alexandre Barros Trubiliano

Fabricio Trevisan Florentino da Silva

Organizadores do Dossiê Temático: Urbanidades


TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros; SILVA, Fabricio Trevisan Florentino da. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.1, n.2, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Linguagens da História / História e Cultura / 2012

A Revista História e Cultura apresenta, no seu primeiro número, o dossiê Linguagens da História, composto por seis artigos que refletem sobre a relação entre a história e as diversas linguagens que o homem utiliza para expressar as relações que mantém com o mundo circundante (literatura, música, cinema, religião, política, etc.). Relações, a propósito, cada vez mais foco da atenção do historiador contemporâneo.

Pensar as linguagens não apenas como meio de expressão da experiência humana, mas como objeto incontornável para entendermos a própria historicidade das formas de conhecimento e construção do passado só se tornou possível a partir de uma redefinição dos rumos do conhecimento histórico. A desnaturalização do vínculo entre história e narrativa a partir do século XX teve um papel fundamental nessa mudança. A narração, que tinha sido tomada como elemento intrínseco da história, passa a ser pensada como elemento que interfere nos sentidos da história.

Se essa história como narrativa de acontecimentos sofreu, no início do século XX, um significativo ataque pelos pioneiros da Escola dos Annales, os quais propuseram uma diluição da forma narrativa da história, foi a partir da década de 70 do século XX que a forma narrativa como fundamento da história recobrou força. O termo narrativa passou a ser defendido como próprio da história, ou seja, a nova história narrativa não significou o retorno da narrativa dos eventos, mas o redimensionamento da forma narrativa da história, sem desconsiderar suas complexas articulações com a ficção. A ênfase sobre a dimensão narrativa da história, ou melhor, o redimensionamento do papel da linguagem no discurso histórico, desse modo, ampliou as possibilidades da escrita da história e abriu o caminho para novas abordagens.

Ao levantar a problemática das Linguagens da História, o dossiê pretende refletir sobre os novos campos da história e os problemas que decorrem do uso de novos objetos, ou seja, evidenciar as perspectivas que tem os historiadores acerca dos diálogos da história com outros discursos sobre o homem. Por muito tempo, a história escrita foi pensada apenas através de um conjunto restrito de tipos de documentos, os quais, segundo a historiografia tradicional, permitiam distingui-la claramente de outras disciplinas e especialmente da ficção. Aqui, ao contrário, temos o propósito de mostrar como as diferentes linguagens que fazem a história ajudam a produzir um passado e, por isso mesmo, devem elas próprias serem examinadas em sua historicidade.

Vejamos como as diferentes linguagens são trabalhadas pelos autores que compõem o dossiê.

No artigo de abertura, André Luiz Cruz Tavares busca analisar o papel dos compêndios de História Universal, utilizados no Ensino Secundário durante a Primeira República do Brasil (1889-1930), para a construção de uma identidade republicana. Tomando o político como linguagem para a empreitada, Tavares examina como os autores desses manuais encontraram na Roma republicana – especialmente nos discursos de Marco Túlio Cícero, grande defensor do modelo da República romana – um exemplo político e jurídico a ser seguido pelo Brasil daquele tempo.

Próximo da temática abordada por André Luiz Cruz Tavares, Rubens Arantes Correa pretende, a partir da produção cronística de Raul Pompéia publicada no jornal O Estado de S. Paulo e intitulada “Da Capital”, remontar a política na última década do século XIX. No texto, além de destacar como Pompéia denuncia aspectos do tumultuado período que compreende os governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, Correa aponta a perspectiva do cronista sobre o cotidiano carioca e a falta de estrutura da capital do país. A literatura, pelas crônicas de Raul Pompéia, aparece no artigo como uma linguagem possível para “reconfigurar o debate político nos momentos iniciais da República no Brasil, marcado por disputas em torno de projetos de nação em construção”.

O trabalho de Carla Ferreti Santiago e Débora Viveiros Pereira, ao explorar a arte nas páginas do jornal mineiro Diário da Tarde, entre os anos de 1968-1978, apresenta uma história dos “movimentos de contracultura em Belo Horizonte”. As autoras destacam como a capital mineira foi palco de atuação de bandas musicais, de grupos teatrais e de produções artísticas que buscavam distanciar-se dos cânones oficiais para se expressarem; e como tais manifestações foram retratadas negativamente pelo periódico Diário da Tarde. De um modo geral, o artigo busca perceber como sociedades com valores e padrões morais conservadores lidam com expressões artísticas que inauguram novos padrões estéticos e estabelecem linguagens não convencionais de arte.

Outra linguagem presente num dos artigos que compõem o dossiê é a música. Gustavo dos Santos Prado busca captar a sociedade brasileira dos anos 80, do século XX, pela música, em especial o Rock. Através da análise das letras e das melodias do Rock produzido nos anos 80, Prado acredita ser possível mapear os dilemas, medos, anseios, dúvidas e questionamentos da juventude e entender o Brasil daquele tempo.

A religião também é umas das linguagens exploradas pelos dois últimos autores do dossiê. Danilo Medeiros Gazzotti estuda a difusão do Priscilianismo – uma interpretação dissonante da doutrina oficial da Igreja – na região da Gallaecia e como essa “heresia” foi interpretada pelo bispo Idácio de Chaves. Este, durante seu bispado, deixou suas impressões acerca dos acontecimentos no império em uma crônica que abrange desde a elevação de Teodósio I a condição de imperador em 379 d.C. até o ano de 469 d.C. Por meio do testemunho deste episcopal, Gazzotti busca compreender os conflitos e as disputas de poder que opunham essa heresia ao projeto institucionalizante de controle do cristianismo proposto pela Igreja Católica.

O estudo do corpo e das formas pelas quais os indivíduos com ele se relaciona é o foco do último artigo do dossiê, de Frederico Alves Mota. Partindo do papel da linguagem religiosa para a criação de normas e padronização do comportamento, Mota tem por objetivo analisar as representações religiosas produzidas pela Renovação Carismática Católica no que se refere à sexualidade, mais especificamente acerca da homossexualidade. Ao exaltar a heterossexualidade, o discurso da Renovação Carismática procura associar o homossexualismo as mais diversas patologias, bem como equalizar o comportamento homossexual a suscetibilidade às influências das forças do mal. Tal linguagem, segundo Mota, pretende homogeneizar as práticas espirituais e os comportamentos sexuais, numa tentativa de reafirmar os dogmas que por séculos tem dado sustentação aos postulados da Igreja Católica.

Finalizada esse breve apresentação ao dossiê, esperamos que as Linguagens da História suscitem reflexões e debates sobre as práticas do historiador, seus objetos, suas possibilidades de abordagens e os diálogos com outros campos do conhecimento. Agradecemos a colaboração dos autores ao dossiê e desejamos uma boa leitura.

Milena da Silveira Pereira

Gilmara Yoshihara Franco


PEREIRA, Milena da Silveira; FRANCO, Gilmara Yoshihara. Introdução. História e Cultura. Franca, v.1, n.1, 2012. Acessar publicação original [DR]

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História e Cultura | Unesp | 2012

Historia e Cultura2

História e Cultura (Franca, 2012-) é uma publicação eletrônica semestral, com números regulares anuais em março e em setembro, editada por discentes do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), com sede na cidade de Franca, São Paulo, Brasil.

Este periódico tem como objetivo principal divulgar pesquisas de pós-graduandos das diversas áreas do conhecimento, privilegiando aquelas que sejam de interesse ao campo da História ou que apresentem uma perspectiva historiográfica.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2238-6270

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