Do Reino à Administração Interna. História de um Ministério (1736-2012) – ALMEIDA; SILVEIRA. (LH)

ALMEIDA, Pedro Tavares de; SILVEIRA, Paulo Sousa (Coord.). Do Reino à Administração Interna. História de um Ministério (1736-2012). Lisboa: INCM e Ministério da Administração Interna, 2015. 574 pp. Resenha de: SUBTIL, José. Ler História, n. 70, 2017.

1 Convém, desde já, chamar a atenção para um elemento que condiciona a apreciação desta obra e que diz respeito ao facto de se tratar de uma “encomenda”, ou seja, “um contrato de investigação celebrado entre a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna e a FCSH da UNL, em finais de 2010”. Não é, portanto, um trabalho que resulte de uma iniciativa científica, integrada ou não num centro de investigação. Estas encomendas tornaram-se frequentes nos últimos anos, muitas vezes satisfeitas por “curiosos” ou indivíduos ligados às instituições estudadas e, de uma forma geral, de qualidade inferior. Neste aspeto, a presente obra é uma exceção, na medida em que é realizada por historiadores, obedece a requisitos de qualidade historiográfica e a SG do Ministério da Administração Interna aceitou a “plena liberdade intelectual na conceção da obra e na redação dos textos”, o que é de realçar e aplaudir.

2 A obra está dividida em quatro partes, sendo que uma quinta diz respeito à prosopografia das elites. Na introdução adota-se uma exposição diacrónica do ministério, mas não se elucida o leitor sobre a escolha temática dos capítulos. Também teria sido útil uma justificação do plano e das fontes. A primeira parte, correspondente a cerca de 19% do texto, trata do “aparelho e os agentes” num leque temporal repartido entre 1736 e 2011, sem que haja referência ao período entre 1807-1834, o que nos leva a colocar a questão se a obra não deveria ser limitada ao período entre 1834 e 1922, uma vez que aos anos de 1736 a 1834 (35% do período) correspondem, apenas, 3% do texto. A abordagem mais completa quanto à evolução orgânica e os recursos humanos é de Rui Branco (1852-2011), se bem que o texto de Joana Estorninho se refira a um curto período (1834-1851) onde, apesar de tudo, explica a construção do modelo ministerial. O texto de Nuno Monteiro, que cobre o reinado de D. João V, desde 1736, e termina com as invasões francesas, é um remake de ideias já conhecidas, que, para além da caraterização já bem conhecida do sistema político do Antigo Regime, dizem respeito àquilo que o autor considera, em termos de dinâmica reformista, a superioridade da “mutação silenciosa” do reinado de D. João V sobre o impacto “político e simbólico” do período pombalino, insistindo no argumento da importância da reforma das secretarias de estado de 1736. Trata-se de uma interpretação polémica, que é aqui retomada, sem vantagem para a definição das funções que iriam ser assumidas pelo Ministério do Reino no final do Antigo Regime.

3 A segunda parte (30% da obra), intitulada “administrar e coordenar”, tem a colaboração permanente de Paulo Silveira e Sousa, sozinho para o governo no Antigo Regime e para os governos civis e poderes locais (1834-1926), e acompanhado por Rita Almeida de Carvalho no capítulo sobre os governos civis, municípios e freguesias (1926-2011), e por Jorge Miguéis e Pedro Tavares de Almeida sobre a administração das eleições. A terceira parte (cerca de 37% do texto) é designada por “proteger e controlar” e cobre o tema das polícias entre 1736 e 2011, a cargo de Diego Cerezales e António Araújo. O primeiro texto é relacionado com a questão da segurança e o segundo com os serviços de informação, para terminar com uma análise sobre as mobilidades populacionais (1736-2011), de Victor Pereira. A quarta parte, “auxiliar e regular”, é a mais pequena (13% da obra) e tem a colaboração de Rita Garnel, com um curto texto sobre a saúde pública (1834-1958), e de Paulo Jorge Fernandes e Paulo Silveira e Sousa sobre bombeiros, proteção civil e segurança rodoviária (1736-2011). Segue-se a parte mais inovadora com um capítulo, sem texto, sobre ministros e secretários de estado (1834-2012), de José Tavares Castilho, e outro sobre secretários-gerais (1835-2012) e directores-gerais (1859-2012), de Pedro Silveira, informação completada com um valioso anexo.

4 Uma ideia central que persegue a história do Ministério do Reino é a de que esta instituição, desde o início do século XVIII, constituiu uma reserva imensa de funções governativas que, à medida que foi crescendo a população e se foi estruturando o modelo ministerial de tipo “estadualista”, perderia muitas dessas funções para outros órgãos, e inclusive daria origem a novos ministérios. Temos assim que, no século XVIII, ao lado da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, existiram apenas outras duas secretarias de estado destinadas a assuntos “fora” do Reino (política externa, guerra e ultramar). O primeiro sinal de exautoração funcional foi dado no final do século com a criação de Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda. Seguiram-se outros, ao longo dos séculos XIX e XX, pelo que o atual Ministério da Administração Interna tem já pouco do que foi o “velho” Ministério do Reino. Justamente por isto, a explicação desta dinâmica deveria corresponder à primeira parte da obra, acompanhada por gráficos representativos e pela evocação dos organismos que foram herdando funções do Ministério do Reino. Embora na introdução se faça uma breve síntese desta evolução, sem dúvida que tal ficou por fazer, à parte a inovadora abordagem sobre os contingentes dos funcionários públicos e a sua comparação com os recursos humanos do Ministério do Reino.

5 Uma segunda ideia, estruturante para caraterizar uma instituição como o Ministério do Reino, tem a ver com o recenseamento das áreas de governo que fizeram parte da sua missão ao longo dos três séculos cobertos pela obra, algumas das quais se foram autonomizando com o seu esvaziamento político. O que ressalta deste estudo é que as áreas do Ministério da Administração Interna foram privilegiadas em relação às do Ministério do Reino, em que algumas nem sequer foram estudadas. Uma das mais significativas é, sem dúvida, a saúde pública. Esta área esteve, no Antigo Regime, a cargo do Provedor-mor da Saúde, Junta do Protomedicato, Junta da Saúde, Físico-mor, Cirurgião-mor e outros agentes tutelados pelo Ministério do Reino. Depois da revolução liberal, o Ministério do Reino enquadrou a ação do célebre Conselho de Saúde Pública, a rede distrital das estações e delegações de saúde, o Instituto Vacínico, o Lazareto, o Conselho Superior de Higiene e a sanidade marítima dos portos, além da gestão e do controlo financeiro e administrativo de muitos hospitais. Esta faceta está muito ausente do trabalho, descontando as 24 páginas de síntese a cargo de Rita Garnel (de 1834 a 1958), que incide nos órgãos centrais e retrata o que a legislação permite dizer, o que é, de facto, muito pouco para caraterizar esta imensa atividade do Ministério do Reino.

6 Uma outra área, igualmente fundamental, é a instrução pública. Antes da revolução liberal, o Ministério do Reino tutelou politicamente, durante o período josefino e mariano, a Junta da Providência Literária, a poderosa Junta da Diretoria Geral de Estudo e Escolas do Reino e a Real Mesa Censória para, no século XIX, coordenar o Conselho Geral de Instrução Pública e toda a rede de escolas de instrução primária e secundária por cada distrito, intervir no ensino superior (Universidade de Coimbra, Academia Politécnica do Porto, Escolas Médico-Cirúrgicas do Funchal, de Lisboa e do Porto e Escola Politécnica do Porto). Também aqui não há nenhuma aproximação a esta área de governo da qual viria, aliás, a surgir o Ministério dos Negócios da Instrução Pública (1870) retomado em finais do século (Ministério da Instrução Pública e Belas Artes, 1890-1892). Nada é dito sobre esta função charneira assumida pelo Ministério do Reino até praticamente à República.

7 Uma terceira área esquecida está relacionada com a assistência social, uma matéria política que sempre serviu para aferir a dimensão da clivagem entre conservadorismo e inovação. Antes do liberalismo, o Ministério do Reino esteve implicado na gestão da rede das misericórdias, confrarias, hospitais e casas pias e, depois, na Monarquia constitucional, com o Conselho Geral de Beneficência, Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, colégios, recolhimentos, asilos e misericórdias. O mesmo se passa, também, com a supervisão das obras públicas, trabalhos geodésicos, cadastrais e topográficos, oficinas de conservação e restauro de monumentos históricos, bem como o planeamento e construção de estradas. Ou, ainda, com diversas superintendências como, entre outras, sobre o Arquivo da Torre do Tombo, Biblioteca Nacional de Lisboa, Biblioteca Pública de Évora, Imprensa Nacional, Academia Real das Ciências, Academia de Belas Artes, bibliotecas, museus, arquivos e o apoio ao Conselho de Estado e ao Supremo Tribunal Administrativo.

8 De facto, as áreas emblemáticas do Ministério do Reino estudadas foram a segurança e o controlo periférico. A primeira sempre fez parte da matriz do Ministério do Reino (no Antigo Regime com a Intendência Geral da Polícia, Guarda Real e, no liberalismo, com a GNR, PSP e polícias de informação). Já o controlo à periferia foi diferente, uma vez que durante o Antigo Regime esteve a cargo do Desembargo do Paço e, depois de 1820, seria assumido pelo Ministério do Reino em articulação com os governos civis. Sem dúvida, um dos temas mais desenvolvidos, a par da administração dos processos eleitorais. Por outro lado, talvez a escolha do controlo das mobilidades populacionais e a emigração (1736-2011), os bombeiros, proteção civil e segurança rodoviária pudessem ter uma análise diferenciada para o Ministério do Reino e o Ministério da Administração Interna num período tão longo.

9 Finalmente, uma observação metodológica e epistemológica. A abordagem historiográfica a uma instituição político-administrativa não pode prescindir do seu acervo arquivístico porque representa o “espelho” das funções, competências, perfil organizacional, tramitação documental, práticas burocráticas, sistema de informação/decisão e os canais de comunicação política e administrativa. O núcleo do Ministério do Reino à guarda da Torre do Tombo é um repositório monumental que permite, graças à qualidade das intervenções arquivísticas, uma consulta sistemática que devia ter sido feita (nem que fosse por amostragem) para revelar detalhes da “maquinaria” institucional deste ministério. À parte uma ou outra meritória evidência na utilização deste recurso, o certo é que a investigação se serviu, fundamentalmente, de bibliografia, coleções de legislação e orçamentos. Uma aproximação à história custodial teria sido útil, visto tratar-se de uma instituição de onde se autonomizaram outros órgãos da administração central. Uma nota, ainda, para a conceção gráfica, que cria dificuldades na leitura e gera confusão na consulta.

10 Apesar das lacunas e insuficiências apontadas, trata-se de uma obra útil para se compreender o processo de construção política e administrativa do Estado liberal e o alvor da democracia. O leitor comum ganhará uma visão geral da governação e o estudioso da história institucional colherá detalhes e estatísticas de grande relevância.

José Subtil – Universidade Autónoma de Lisboa

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