Fronteiras e relações transfronteiriças na América Ibérica / Almanack / 2021

Filosofia e Historia da Biologia 32 Fronteiras
Fronteira do Brasil com a Venezuela | Foto: Poder 360 |

As fronteiras e as relações transfronteiriças nas sociedades ibero-americanas, tema deste dossiê da revista Almanack, coloca em evidência algumas dificuldades no campo dos estudos históricos que sobre elese debruçam. Primeiro, o caráter polissêmico do próprio conceito de fronteira, principalmente quanto se tem em conta seu uso para diferentes objetos, situações e temporalidades, e sua relação com outros conceitos igualmente importantes para o estudo do espaço, como paisagem e território. Segundo, o recorte interdisciplinar em sua abordagem, tendo em vista as substanciais contribuições da outras ciências sociais, como a geografia e a antropologia, para seu estudo. Por fim, a ampla produção propriamente historiográfica que trata sobre os espaços concebidos como “fronteiras”, seja em relação ao período colonial ou ao nacional, entendidas como confins, limites territoriais, espaços lindeiros ou como zonas de expansão, de mobilidades, circulações, encontros e confrontos socioculturais.

O estudo das fronteiras, seja para os impérios modernos, seja para os Estados Nacionais a partir do XIX, ocupou uma parcela importante da produção historiográfica sobre a América ibérica. A própria montagem das sociedades coloniais no continente põe em relevo a vigência de operações de inclusão e exclusão responsáveis pela delimitação de fronteiras espaciais, culturais, políticas e econômicas. As revoluções de independência e os processos de construção dos Estados Nacionais, oriundos da dissolução dos impérios ibéricos, marcam novos projetos políticos de conhecimento e de controle dos espaços; desse modo, o discurso sobre os limites da nação assume papel de relevo nas projeções de futuro para os novos países e na formulação de ações concretas visando a “territorialização do Estado” [3].

Como dito anteriormente, esse dossiê não compreende somente as abordagens sobre fronteira, mas também propõe a discussão sobre relações transfronteiriças, entendidas como aquelas que vinculavam, de diferentes formas, populações, redes econômicas, discussões políticas e circulações de informação entre espaços imperiais ou nacionais confinantes. De modo geral, os estudos sobre as fronteiras internacionais foram produzidos nos marcos das histórias diplomáticas, valorizando-se as narrativas de constituição das territorialidades e as relações entre as esferas centrais dos poderes monárquicos e nacionais nas negociações sobre as demarcações de limites no espaço americano. De outro lado, as histórias de corte militar, destacando guerras e enfrentamentos nas zonas de litígio, também trouxeram importantes contribuições para as escritas historiográficas sobre as fronteiras. No entanto, pode-se perceber um deslocamento da discussão nesse campo, de um “paradigma estatal” no estudo das fronteiras para uma história mais atenta para as dinâmicas locais – os fluxos, as conexões, os arranjos e as disputas entre populações que habitam espaços fronteiriços – ou para a interação entre local e global noslimites territoriais [4]. É possível, além do mais, constatar uma produção crescente sobre fronteiras ibero-americanas a partir de recortes da história social e cultural, colocando em evidência a análise de fenômenos de mestiçagens e de intermediações em zonas de fronteira, entendidas muito mais como espaços de encontros e confrontos envolvendo múltiplos atores, e não apenas como limites territoriais de soberanias políticas [5].

Esse reposicionamento dos estudos sobre fronteiras não significa desconsiderar as tensões e condicionantes das relações internacionais que marcaram esses espaços, mas colocar em evidência conflitos e colaborações que também envolviam as populações fronteiriças, os sentidos de fronteira construídos por elas, e o impacto dessa dinâmica local na gestão das fronteiras a partir dos centros políticos [6].As interações entre habitantes nos espaços fronteiriços não devem ser compreendidas somente a partir das relações mantidas pelos Impérios modernos e pelos Estados Nacionais, mas também a partir do que Renaud Morieux definiu como uma “diplomacia vista de baixo”, focada na compreensão dos acordos construídos pelas comunidades fronteiriças [7]. Por outro lado, deve-se ter em contaos vínculos entre fronteiras internas e externas, no qual se tecem conexões entre esses espaços limítrofes e os centros administrativos internos, relações essas viabilizadas por diferentes mecanismos e agentes que concretizam as mediações entre poderes locais e centrais [8].

Os textos selecionados para este dossiê cobrem o recorte cronológico do final do século XVII à segunda metade do XIX, tratando sob diferentes enfoques as fronteiras internas e externas da América de colonização ibérica e posteriormente das nações latino-americanas. De modo geral, os trabalhos valorizam as relações, conflituosas ou colaborativas, de aproximações ou atritos, mantidas pelas populações que habitavam os espaços de fronteira. Outra questão levantada pelos trabalhos deste dossiê é a mediação política e econômica entre autoridades locais e poderes centrais, bem como a importância dos sujeitos que atuavam como intermediários entre os diferentes grupos presentes nas fronteiras.

No primeiro artigo, a historiadora francesa Soizic Croguennec aborda a multiplicidade de relações e identidades acionadas por sujeitos que habitavam as fronteiras da Lousiana e da Flórida, durante a fase de incorporação dessas colônias no Império espanhol, do final da Guerra dos Sete Anos até o começo do século XIX. Esse espaço constituía uma zona particularmente importante nas disputas imperiais entre espanhóis, britânicos e franceses na América do Norte e no Golfo do México. A partir da documentação judicial espanhola, principalmente sobre soldados e indígenas, a autora analisa como os sujeitos fronteiriços tinham de lidar não somente com as pressões geopolíticas mais amplas, mas igualmente construir suas próprias estratégias individuais e coletivas de sobrevivência e integração nesse espaço, tomando parte de um jogo fluido de alianças e conflitos, com demarcações imprecisas entre o legal e o ilegal, que também influenciou na conformação dos limites imperiais na América do Norte.

Em seguida, Jonas Moreira Vargas toma o caso do brigadeiro David Canabarro para desenvolver, a partir de uma perspectiva microanalítica, um estudo sobre sua trajetória e a formação de redes econômicas, sociais e políticas por ele articuladas na fronteira da Província do Rio Grande com o Estado Oriental do Uruguai entre as décadas de 1830 e 1860. Canabarro estabeleceu-se como grande liderança político-militar local a partir de suas atuações nas guerras que marcaram o sul do Império e a região platina na primeira metade do XIX, consolidando seu poder por meio de formas de negociação com o poder central e com outros segmentos da sociedade na fronteira. Trata-se, desse modo, de uma liderança que, antes de exercer seu poder de forma absoluta, precisavam manejar alianças com os atores do espaço fronteiriço e com o Estado Nacional em formação, destacando-se como mediador entre a burocracia imperial e as elites nos limites meridionais do país.

Jaime Rosenblitt, por sua vez, trata da atuação de quatro comerciantes britânicos na região Tacna-Arica entre as décadas de 1830 e 1860, abordando os fluxos mercantis que operavam nos limites entre Peru, Bolívia e Chile e que articulavam a costa do Pacífico e o altiplano. Muito embora se tratasse de um espaço politicamente secionado pela formação dos Estados Nacionais citados e de um período marcado por disputas político-militares, Rosenblitt destaca o espaço sul-andino como um mesmo território, o que relativizava as divisões indicadas pelas fronteiras políticas. O estabelecimento desse espaço integrado valeu-se, entre outros pontos, da existência de um mercado articulado principalmente pela entrada de manufaturas importadas e pela saída de produtos minerais. A pesquisa da documentação notarial de Arica e Tacna possibilitou ao autor analisar as estratégias e trajetórias desses comerciantes britânicos, os quais se projetaram regionalmente a partir da diversificação de atividades, da associação com grupos mercantis locais e de alianças familiares e políticas. Tomando como foco os quatro comerciantes, Rosenblitt atenta para o papel desses sujeitos na construção de redes mercantis que coordenavamessas fronteiras.

O quarto artigo deste dossiê, de autoria de Rafael Chambouleyron, Pablo Ibáñez Bonillo e Vanice Siqueira de Melo, trata dos projetos de comunicação para a difusa fronteira entre oestado do Maranhão e o estado do Brasil nas décadas finais do século XVII, almejando fortalecer o comércio interno, a comunicação intracolonial e as cooperações administrativas na América lusitana. Além de abordar as projeções enunciadas pelas autoridades coloniais do Maranhão, os autores analisam as estratégias de controle territorial postas em prática nessa fronteira, e como afetaram diretamente as populações indígenas ao promover descimentos de comunidades nativas ou ao decretar a guerra justa. As conexões projetadas para os limites entre as duas possessões portuguesasna América estavam inseridas em um contexto de expansionismo da sociedade e da economia coloniais, objetivando-se realizar a abertura de novas frentes de penetração, de incorporação de terras e de controle sobre a mão de obra indígena.

O historiador equatoriano Santiago Cabrera Hanna investiga os debates e ajustes que marcaram a montagem espacial da estrutura administrativa republicana colombiana no Distrito do Sul (equivalente aproximadamente ao território do Equador), tomando como marcos a aplicação do regime de intendências e a Lei de Divisão Territorial na primeira metade da década de 1820.As reformas aplicadas versavam sobre questões sensíveis ao exercício local do poder e as relações com a administração central, como fiscalidade, aplicação da justiça e organização das eleições. Esse processo foi caracterizado pelas disputas de poder entre cidades e municípios do Distrito do Sul, principalmente entre Quito, Cuenca e Guayaquil, cidades que irradiavam suas zonas de influência no território correspondente à antiga Audiência de Quito. As relações desses poderes locais com o central foram marcadas por ajustes e negociações com lideranças políticas e militares, o que era importante para garantir a administração e a defesa de uma área fronteiriça no sul da República da Colômbia em um contexto de guerras.

Retornando para o Império do Brasil, o texto de Mariana Thompson Flores investiga questões centrais para o entendimento da formação do Estado imperial a partir dorecorte local da fronteira, mais especificamente o oeste da Província do Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX, ao tratar de duas instâncias importantes para o exercício do poder: a justiça e a fiscalidade. Nesse espaço, a administração da justiça configura um desafio não apenas pelas dificuldades de provimento do cargo de juiz nas cidades de Alegrete e Uruguaiana, mas também pelas formas de criminalidade que grassavam na fronteira, com intensa movimentação de fugitivos entre países limítrofes. O fisco, por sua vez, era constantemente tensionado pela recorrência do contrabando entre o Rio Grande e o espaço platino, com alianças duradouras entre negociantes-contrabandistas e funcionários da alfândega. Tanto as aplicações da justiça quanto dafiscalidade dependeram, em boa medida, de ajustes e mediações entre poder central e grupos hegemônicos locais, o que tornava possível a capilaridadedessas instâncias de poder e o processo de construção do Estado Nacional “para dentro” quanto também na sua relação com outros Estados confinantes.

Adriano Comissoli, por fim, investiga a política de informação e as práticas de espionagem portuguesas a partir da Capitania de São Pedro do Rio Grande e direcionadas à região do Prata, entre as décadas de 1770-1810. Os extremos meridionais da América portuguesa foram marcados pelo estado de guerra ou pela recorrente tensão nas relações luso-espanholas, de modo que a espionagem desempenhava um papel importante para a comunicação política transfronteiriça e para os planejamentos bélicos das duas coroas ibéricas. Tomando como base a documentação produzida por comandantes militares das tropas de 1ª linha dos distritos do Rio Pardo e Rio Grande, Comissoli analisa as redes de comunicação política operadas por esses oficiais e a presença de espiões lusos na região do Prata.

Como em qualquer dossiê, a seleção aqui apresentada de artigos é extremamente parcial, não logrando abarcar o amplo quadro de objetos, fontes, debates e possibilidades dos estudos históricos sobre as fronteiras na América ibérica. A despeito das limitações próprias dessa empreitada, não se pode perder de vista os avanços que os trabalhos aqui reunidos apontam. Os diferentes espaços em foco, dentro do amplo recorte cronológico dos textos selecionados, são analisados com a devida atenção sobre a interrelação de escalas, vinculado espaços locais e dinâmicas globais. A agência dos atores das fronteiras, suas formas cotidianamente construídas de apropriação do espaço e as mediações culturais, sociais e políticas, são igualmente colocadas em destaque. O olhar atento para os espaços fronteiriços pode trazer à tona outros ângulos de análise ou novos questionamentos que elucidem processos mais abrangentes -como sugere Karl Schögel, as fronteiras oportunizam o estudo de “processos de mescla, transferências e amálgamas que trazem algo novo” [9].A partir dos textos que compõem esse dossiê, o leitor tem em mãos uma amostra qualificada desse potencial.

Notas

3. GARAVAGLIA, Juan Carlos, GAUTREAU, Pierre (ed.). Mensurar la tierra, controlar el territorio: América Latina, siglos XVIII-XIX. Rosario: Prohistoria, 2011.

4. MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Introducción. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y prácticas de integración y conflictos entre Europa y América (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017, p. 17. ZÁRATE BOTÍA, Carlos Gilberto. Amazonia 1900-1940: el conflicto, la guerra y la invención de la frontera. Letícia: Universidad Nacional de Colombia: Instituto Amazónico de Investigaciones: Grupo de Estudios Transfronterizos, 2019.

5. LANGFUR, Hal. Frontier/Fronteira: A transnationalreframing of Brazil’sInlandColonization. History Compass, Hoboken, v. 12, p. 843-852, 2014.

6. HERZOG, Tamar. Frontiers of Possesion. Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge,MA: Harvard University Press, 2015. ERBIG JR., Jeffrey Alan. Where Caciques and Mapmakers Met: Border making in Eighteenth-Century South America. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020.

7. MORIEUX, Renaud. Diplomacy from Below and Belonging: Fishermen and Cross-Channel Relations in the Eighteenth Century. Past &Present, Oxford, v. 202, n. 1, p.83-125, 2009.

8. LÓPEZ ARANDIA, María Amparo. Territorio frente a Estado. Nuevas fronteras y conflictos en la España del siglo XVIII. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras, Op. Cit.,p. 365-385.

9. SCHÖGEL, Karl. En el espacio leemos el tiempo: sobre historia de la civilización y geopolítica. Madrid: Siruela, 2007. p. 146, tradução nossa.

Referências

ERBIG JR., Jeffrey Alan. Where Caciques and Mapmakers Met: Border making in Eighteenth-Century South America. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020.

GARAVAGLIA, Juan Carlos, GAUTREAU, Pierre (ed.). Mensurar la tierra, controlar el territorio: America Latina, siglos XVIII-XIX. Rosario: Prohistoria, 2011.

HERZOG, Tamar. Frontiers of Possesion. Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2015.

LANGFUR, Hal. Frontier/Fronteira: A transnational reframing of Brazil’s Inland Colonization. HistoryCompass, Hoboken, v. 12, p. 843-852, 2014.

LÓPEZ ARANDIA, María Amparo. Territorio frente a Estado. Nuevas fronteras y conflictos en la España del siglo XVIII. In: FAVARÓ, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y practicas de integración y conflictos entre Europa y America (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017. p. 365-385.

MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Introduccion. In: FAVARO, Valentina; MERLUZZI, Manfredi; SABATINI, Gaetano. Fronteras: procesos y practicas de integracion y conflictos entre Europa y America (siglos XVI-XIX). Madrid: FCE; Murcia: Red Columnaria, 2017.

MORIEUX, Renaud. Diplomacy from Below and Belonging: Fishermen and Cross-Channel Relations in the Eighteenth Century. Past &Present, Oxford,v. 202, n. 1, p.83-125, 2009.

SCHOGEL, Karl. En el espacio leemos el tiempo: sobre historia de la civilizacion y geopolitica. Madrid: Siruela, 2007.

ZARATE BOTIA, Carlos Gilberto. Amazonia 1900-1940: el conflicto, la guerra y la invención de la frontera. Leticia: Universidad Nacional de Colombia: Instituto Amazonico de Investigaciones: Grupo de Estudios Transfronterizos, 2019.

Carlos Augusto Bastos – Universidade Federal do Pará. Ananindeua- Pará- Brasil. Doutor em História pela USP, Professor da Faculdade de História do Campus Universitário de Ananindeua/UFPA. Professor do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História/Prof Historia. Autor de No Limiar do Impérios. A frontera entre a Capitania do Rio Negro e a Província de Maynas projetos, circulações e experiências (c.1780-c.1820). (Hucitec, 2017), além de artigos e capítulos de livros. E-mail: [email protected].


BASTOS, Carlos Augusto. [Fronteiras e relações transfronteiriças na América Ibérica]. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Missões na América Ibérica: dimensões políticas e religiosas / Tempo / 2013

Em 1772, o governador de Buenos Aires comunicou ao governador do Chile uma notícia considerada como “digna de saber-se”. Na ocasião, um índio cristão, que conseguira fugir após passar alguns anos como prisioneiro dos índios “infiéis” do Chile, informava sobre a existência de um jesuíta que se tornara cacique. Apesar de não mencionar o nome do inaciano, afirmou que ele tinha oito mulheres e observava rigorosamente todos os costumes vigentes entre “aqueles bárbaros”, sendo muito “respeitado e reconhecido.”Seriam verídicas as informações prestadas pelo índio cristão? Difícil saber. As autoridades coloniais teriam dado mais importância à notícia devido à conjuntura antijesuítica então vigente? Talvez. O caso, porém, indica que semelhante situação era considerada verossímil na sociedade colonial, revelando facetas da experiência missionária ainda abordadas de forma incipiente pela historiografia.

Até recentemente, os estudos sobre as missões reiteravam determinados pressupostos estabelecidos sobre o tema. As interpretações se baseavam em juízos de valor sobre a atividade evangelizadora, sobretudo no caso dos inacianos, e em uma quase absoluta indiferença em relação aos nativos, cujos quereres eram considerados irrelevantes na construção daqueles espaços. Além disso, pouca atenção era dada às especificidades locais e aos consequentes reajustes e negociações característicos da construção da sociedade colonial.1

Apesar de a dimensão fronteiriça da atividade missionária ter sido destacada por Herbert Eugene Bolton em um inspirado ensaio publicado em 1917, ela era pouco mencionada por muitos autores, cujas abordagens frequentemente isolavam as reduções do contexto mais amplo.2 Porém, pela sua condição de estabelecimento fronteiriço, por vezes, verdadeiras pontas de lança da expansão territorial, as missões foram parte indissociável da construção dos impérios ibéricos. Poderiam ser consideradas o “esteio do domínio colonial”, como bem definiu Charles Boxer.3

Assim, longe de uma dimensão estritamente espiritual, as missões foram parte fundamental do processo de institucionalização do Estado nos domínios americanos. O trabalho dos missionários deveria transformar os índios em súditos leais das monarquias, garantindo, desta forma, a ocupação territorial. Esperava-se também que os novos súditos desempenhassem uma função militar estratégica nos impérios ibéricos: defender as suas fronteiras contra as pretensões expansionistas dos rivais europeus ou dos ataques dos grupos indígenas hostis à presença colonial. Por mais comprometidos que estivessem com a evangelização, os monarcas ibéricos faziam considerações geopolíticas para o financiamento das missões: eram mais generosos quando a concorrência europeia se fazia presente.4

A associação entre a cruz e a espada, porém, teve uma série de desdobramentos nos estudos sobre as missões. Um deles, ainda objeto de discussões, é o vínculo dos missionários com os seus respectivos padroados e / ou estados de origem. Muitos jesuítas, por exemplo, foram hábeis políticos comprometidos com a construção dos impérios coloniais. No caso português, Antônio Vieira estava tão envolvido nos assuntos da monarquia que, acertadamente, foi denominado por Ronaldo Vainfas como o “jesuíta do rei.”5 Diante das disputas imperiais, porém, nem todos demonstraram a mesma lealdade. O mesmo Vainfas aborda a trajetória de Manoel de Morais, um jesuíta nascido em São Paulo que atravessou fronteiras políticas e religiosas durante a presença holandesa no nordeste do Brasil.6

O envolvimento dos jesuítas nos mais variados assuntos, temporais e espirituais, na América foi desenvolvido em três artigos deste dossiê. Lígio José de Oliveira Maia analisa a sua participação nos conflitos da Guerra do Açu, um dos episódios do processo de ocupação territorial de parte do nordeste brasileiro no final do século XVII e início do XVIII. Naquele contexto, as alianças respondiam mais às urgentes questões locais do que a determinados princípios pré-estabelecidos pelas ordens religiosas ou à intervenção da Coroa.

As complexas alianças e conflitos nos quais os jesuítas estavam imiscuídos são também analisados por Almir Diniz Carvalho Júnior, com ênfase nas populações nativas. Centrando o artigo nos conflitos entre Antônio Vieira e o Principal indígena Lopo de Souza no Maranhão no século XVII, o autor demonstra os limites e possibilidades da ação dos índios cristãos. Apesar de frequentemente inseridos na sociedade colonial em uma posição desfavorável, os índios eventualmente foram capazes ganhar batalhas travadas contra personagens proeminentes da história colonial, em disputas nas quais a astúcia demonstrada pelos nativos foi um elemento fundamental.

Os reveses da atuação dos missionários são também analisados no artigo de Christophe Giudicelli. Abordando a área andina de Tucumán na segunda metade do século XVII, o autor demonstra a transformação do kakán em “língua do inimigo”, à medida que o idioma acabou circunscrito aos índios considerados infensos à sociedade colonial. De tal processo, surgiu um dilema para os jesuítas: após um grande investimento para aprendê-lo com fins evangelizadores, acabaram atuando como intérpretes nas tropas enviadas contra os índios.

Os artigos deste dossiê destacam ainda as ações dos índios, hoje consideradas imprescindíveis para a compreensão das atividades missionárias. Pesquisas sobre diferentes regiões da América têm demonstrado o papel ativo das populações nativas, revelando situações concretas nas quais, em detrimento de impor seus pontos de vista, os jesuítas foram hábeis negociadores, gerando ajustes políticos e religiosos muitas vezes distantes do convencional.7 Em certas ocasiões, o fizeram por gosto, como no caso dos que se identificavam demasiado com os índios e geravam situações embaraçosas para a Companhia. Apesar de pouco divulgado pelos inacianos, cujo interesse era propagar a sua própria habilidade de conversão, as populações nativas possuíam uma capacidade de convencimento nada desprezível, como parece ter acontecido no caso do Chile narrado acima.

Ao aprofundar o diálogo com a história dos índios, as análises sobre a experiência missionária colocaram em questão as diversas dimensões da religião católica no processo de reorganização ou criação das comunidades indígenas na América. Até recentemente, na historiografia brasileira, predominava uma perspectiva fatalista do contato dos índios com o catolicismo. Especialmente devido à influência do trabalho de Luiz Felipe Baeta Neves, para quem a “Aldeia não é mais um espaço indígena. É um espaço criado pela cultura cristã.”8 Em tal perspectiva, as opções dos índios eram limitadas. Ou fugiam da sociedade colonial e mantinham a sua “religiosidade tradicional” ou se convertiam ao catolicismo, considerada como uma etapa fundamental do seu aniquilamento cultural pelo “colonialismo” português. Os matizes apresentados pela historiografia sobre a história dos índios foram fundamentais para a mudança desse panorama. Afinal, como assinalou James Lockhardt, “ninguna de las dos categorías, la conversión o la resistencia, nos dice toda la verdad.”9

A religião adquiriu diversos significados na história dos contatos: poderia ser utilizada como uma estratégia de convencimento pelos europeus de diferentes confissões e que acabavam envolvendo os índios nas suas disputas religiosas e territoriais.10 Foi ainda apresentada pelos próprios índios como um benefício trazido pelos espanhóis, em uma estratégia por meio da qual eles enfatizavam a conversão, em detrimento da conquista militar, para marcar o seu ingresso no mundo colonial, como demonstrou Serge Gruzinski.11 De uma maneira geral, pode-se pensar que os significados dos aldeamentos foram construídos e negociados pela população nativa, como analisou Maria Regina Celestino de Almeida para o caso do Rio de Janeiro.12 O contrário, porém, também ocorreu: em revoltas indígenas contra a sociedade colonial, o catolicismo foi apresentado como um símbolo da dominação ibérica.13

Assim, ao considerar a negociação como um elemento indissociável da experiência missionária, os estudos demonstram como a religiosidade surgida nesses espaços estava muito além de uma mera imposição do catolicismo: vinculava-se, necessariamente, às percepções e aos quereres dos nativos.14 Tal aspecto foi desenvolvido neste dossiê por Charlotte de Castelnau-L’Estoile. A partir dos diálogos entre as lideranças indígenas e os capuchinos envolvidos na experiência da França equinocial no início do século XVII, a autora demonstra as negociações presentes nos contatos interétnicos. Problematizando as fontes produzidas pelos missionários, evidencia como elas foram fruto de um diálogo que tentava conciliar, com sucesso variado, os diversos interesses que moviam os sujeitos naquele contexto histórico.

Da articulação do catolicismo com o estabelecimento da sociedade colonial, também surgiram importantes trabalhos, cujas questões são fundamentais para a compreensão das relações de poder constituintes dos espaços missionários. Ainda que a utilização da religião como um elemento de hierarquização e de exclusão já estivesse presente em trabalhos que podem ser considerados clássicos sobre a evangelização, como o de Robert Ricard, a problemática tem favorecido abordagens instigantes e é ainda um campo propício para novos trabalhos.15 Afinal, qual foi o papel da religião na manutenção dos índios em condição subordinada aos ibéricos na América colonial?

Tal questão, evidentemente, não possui uma resposta única: as situações variavam conforme o tempo, as regiões e a habilidade dos sujeitos envolvidos em situações concretas.16 Um dos temas fundamentais para relacionar o lugar do catolicismo, e da atividade missionária, à construção dos significados coloniais do termo “índio” são os debates sobre a conveniência do ingresso dos nativos no sacerdócio. O tema agitou a sociedade colonial, especialmente no México e no Peru.17

Em linhas gerais, porém, pode-se afirmar que a condição de neófitos excluía os índios do exercício de uma série de atividades. Como destacaram alguns autores, dentre eles Juan Carlos Estenssoro, a conversão ao catolicismo desencadeava uma situação na qual os índios se viam destituídos de autonomia no campo religioso, pois dependiam dos sacerdotes de origem europeia para satisfazerem as suas necessidades espirituais.18 A questão, como assinalado acima, no entanto, é repleta de matizes. Em muitos casos, o controle exercido pelos párocos ou missionários nas comunidades indígenas era consideravelmente restrito (e os motivos variavam: não dominavam o idioma, não tinham interesse, eram em número muito reduzido, entre outros).19

O artigo de Elisa Frühauf Garcia aborda a questão do estatuto dos índios na sociedade colonial a partir do caso das missões do Paraguai no século XVIII. Mais do que evidenciar o funcionamento de tal estatuto, a autora busca demonstrar como os próprios índios percebiam a sua condição jurídica diferenciada, sobretudo quando ela se apresentava como um entrave para as suas expectativas de realização pessoal.

Assim, este dossiê reúne artigos de pesquisadores que se dedicaram a analisar a questão das missões considerando algumas das variáveis já destacadas por alguns autores, como mencionado acima, mas postas em segundo plano pela historiografia em um dado momento. As disputas que envolviam os espaços missionários, as incertezas características das áreas fronteiriças, a pouca operacionalidade das categorias dicotômicas e a indissociabilidade entre os contatos religiosos e o estabelecimento do poder colonial são aspectos desenvolvidos pelos autores convidados. Boa leitura!

Notas

1. Para uma avaliação crítica da tônica dominante na historiografia sobre as missões, veja-se: David Sweet, “The Ibero-American Frontier Mission in Native American History”, In: Erick Langer; Robert Jackson, The New Latin American Mission History,Lincoln, University of Nebraska Press, 1995; [ Links] Salvador Bernabéu, “La invención del Gran Norte ignaciano: la historiografía sobre la Compañía de Jesús entre dos centenarios (1992-2006)”, In: (coord.), El Gran Norte Mexicano, Sevilla, CSIC, 2009. [ Links ] 2. Herbert Eugene Bolton, “La misión como institución de la frontera en el septentrión de Nueva España” [1917], Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la fronteraAnexo 4, Revista de Indias, Madri, 1990, CSIC, p. 45-60; [ Links ] David Sweet, “The Ibero-American Frontier Mission in Native American History”, In: Erick Langer; Robert Jackson, The New Latain American Mission History, Lincoln, University of Nebraska Press, 1995; [ Links ] Salvador Bernabéu, “La invención del Gran Norte ignaciano: la historiografía sobre la Compañía de Jesús entre dos centenarios (1992-2006)”, In: ______. (coord.), El Gran Norte Mexicano, Sevilla, CSIC, 2009. [ Links ] 3. Charles Boxer, A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770), Lisboa, Edições 70, 1989, p. 95. [ Links ] 4 Herbert Eugene Bolton, “La misión como institución de la frontera en el septentrión de Nueva España” [1917], Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la frontera, Anexo 4, Revista de Indias, Madri, 1990, CSIC, p. 45-60. [ Links ] 5. Ronaldo Vainfas, Antônio Vieira: jesuíta do rei, São Paulo, Companhia das Letras, 2011. [ Links ] A relação dos jesuítas com o Império português foi bem desenvolvida em: Dauril Alden, The Making of an Enterprise. The Society of Jesus in Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750, Stanford, Stanford University Press, 1996. [ Links ] 6. Ronaldo Vainfas, Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 2008. [ Links ] 7. Sobre as reformulações do projeto missionário dos jesuítas no Brasil, veja-se: Charlotte de Castelnau-L’Estoile, Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil, 1580-1620. Bauru, Edusc, 2006. [ Links ] 8. Luiz Felipe Baeta Neves, O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1978, p. 117 (grifos no original). [ Links ] 9. James Lockhardt, Los nahuas después de la conquista: historia social y cultural de los indios del México central, del siglo XVI al XVIII, México, Fondo de Cultura Económica, 1999, p. 291. [ Links ] 10. James Axtell, The invasion within: the contest of cultures in Colonial North America, New York, Oxford University Press, 1985; [ Links ] Mark Meuwese, Brothers in arms, partners in trade: Dutch-indigenous alliances in the Atlantic world, 1595-1674, Leiden; Boston, Brill, 2012. [ Links ] 11. Serge Gruzinski, A colonização do imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI-XVIII, São Paulo, Companhia das Letras, 2003. [ Links ] 12. Maria Regina Celestino de Almeida, Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003. [ Links ] 13. Steve Stern, Los pueblos indígenas del Perú y el desafío de la conquista española-Huamanga hasta 1640, Madri, Alianza, 1986; [ Links ] Ronaldo Vainfas, A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. [ Links ] 14. Cristina Pompa, Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial, Bauru, SP, Edusc, 2003; [ Links ] Paula Montero (org.), Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural, São Paulo, Globo, 2006; [ Links ] Cynthia Radding, Paisajes de poder e identidad: fronteras imperiales en el desierto de Sonora y bosques de la Amazonía, Sucre, Fundación Cultural del Banco Central de Bolivia; Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia, 2005. [ Links ] 15. Robert Ricard, La conquista espiritual de México, México, Fondo de Cultura Económica, 1986 [1947] [ Links ]. O tema também foi desenvolvido por Charles Boxer, A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770), Lisboa, Edições 70, 1989. [ Links ] 16. Para uma relação entre a condição indígena e a construção de uma sociedade de Antigo Regime na América colonial, veja-se: Karen Spalding, “¿Quiénes son los indios?”, In: ______., De indio a campesino, Lima, Instituto de Estudios Peruanos, 1974, p. 147-193; [ Links ] Jacques Poloni-Simard, “Historia de los indios en los Andes, los indígenas en la historiografía andina: análisis y propuestas”, Mundo Nuevo Nuevos Mundos, revista eletrônica, Paris, 2011. Disponível em: <www.nuevomundo.revues.org / 651.htm>. Acesso em: 16 de junho de 2012. [ Links ] 17. Robert Ricard, La conquista espiritual de México, México, Fondo de Cultura Económica, 1986 [1947] [ Links ]; Ignacio Osorio Romero, La enseñanza del latín a los indios, México, D.F., Universidad Nacional Autónoma de México, 1990; [ Links ] Margarita Menegus Bornemann; Rodolfo Aguirre, Los indios, el sacerdocio y la Universidad en Nueva España, siglos XVI-XVIII, México, Universidad Nacional Autónoma de México, 2006; [ Links ] Monique Alaperrine-Bouyer, La educación de las elites indígenas en el Perú colonial, Lima, Instituto Francés de Estudios Peruanos; Instituto Riva-Agüero; Instituto de Estudios Peruanos, 2007; [ Links ] Pilar Gonzalbo Aizpuru, Historia de la educación en la época colonial: el mundo indígena. México, El Colegio de México, Centro de Estudios Históricos, 2000. [ Links ] 18. Juan Carlos Estenssoro, Del paganismo a la santidad: la incorporación de los indios del Perú al catolicismo, 1532-1750, Lima, Instituto Francés de Estudios Andinos, 2003. [ Links ] Tal panorama começou a se modificar durante as reformas ibéricas da segunda metade do século XVIII, quando as promessas de igualdade jurídica aos índios incluíam o incentivo ao exercício do sacerdócio, inclusive para os índios das regiões de fronteira. Sobre o tema, veja-se: David Weber, Bárbaros: los españoles y sus salvajes en la era de la Ilustración, Barcelona, Crítica, 2007, [ Links ] especialmente o capítulo 3, “La ciencia de criar hombres”, p. 139-205.
19. Sobre o tema, veja-se, por exemplo, James Lockhardt, Los nahuas después de la conquista: historia social y cultural de los indios del México central, del siglo XVI al XVIII, México, Fondo de Cultura Económica, 1999. [ Links ]

Elisa Frühauf Garcia – Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: [email protected]


GARCIA, Elisa Frühauf. Apresentação. Tempo. Niterói, v.19, n.35, jul. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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