Reclamando a liberdade: mulheres em busca de emancipação em sociedades escravistas nas Américas (séculos XVIII e XIX)/Tempo/2023

Escravidão, raça e gênero: caminhos possíveis para a historiografia brasileira

Desde a renovação historiográfica ensejada pelo centenário da abolição no fim da década de 1980 e aprofundada nas décadas seguintes, a história social da escravidão tem incorporado um conjunto diverso de temáticas e perspectivas fortemente marcadas pela consideração da participação escrava nos processos de contestação e desagregação da escravidão. Estudos sobre práticas de resistência e autonomia escravas – como o crime, a formação de quilombos e as rebeliões, o trabalho ao ganho, o financiamento de alforrias, a formação de famílias e redes de solidariedade, o recurso à Justiça e a interposição de ações de liberdade, entre outros – vêm colaborando, desde então, para enriquecer a tradição historiográfica dos estudos da escravidão.1 Mais recentemente, novas pesquisas vêm tornando ainda mais complexas as considerações sobre a escravidão e seus sujeitos ao demonstrar que os processos de emancipação, como saída individualizada do cativeiro, e abolição, como eliminação formal da instituição, redundaram em desafios à construção de vidas efetivamente autônomas por escravizados, libertos e aqueles em vias de libertação, deles demandando o empenho de investimentos e esforços de longo prazo, frequentemente coletivos.2 Leia Mais

Êxitos e fracassos: a circulação de pessoas, práticas e conhecimentos nos mundos ibéricos, séculos XVI-XVIII | Tempo | 2022

Rendicao de Granada 1492. Cena retratada na obra de Francisco Pradilla y Ortiz 1882. Imagem Pinterest
Rendição de Granada (1492). Cena retratada na obra de Francisco Pradilla y Ortiz, 1882. | Imagem: Pinterest

Nas últimas décadas, os estudos sobre a circulação de pessoas, conhecimentos, modelos jurídicos, políticos e valores econômicos têm sido um dos principais eixos da transformação da história moderna e colonial, incluindo os americanismos e hispanismos europeus e anglófonos. As contribuições fundamentais centraram-se em questões sobre a circulação de pessoas no contexto da expulsão de grupos marcados pela sua confissão e raça, a migração de escravos e cativos (Vincent, 200420082010Kagan e Morgan, 2009Martínez Montiel, 20042012Seijas, 2014Valenzuela, 2015Ruiz Ibáñez e Vincent, 2018Oropeza, 2020Schaub e Sebastiani, 2021), a lógica financeira e social das diásporas (Smallwood, 2007Kagan e Morgan, 2009Vincent, 2015Trivellato, 2019Sousa, 2019), a mobilidade do pessoal administrativo das monarquias europeias e os seus efeitos sociais e econômicos (Dedieu, 2005Schaub, 2014Esteban Estríngana, 2012Pardo Molero e Lomas Cortés, 2012), as delegações territoriais nas cortes régias (La Monarquía…, 1998Mazín, 20072017Álvarez-Ossorio, 2016Herrero Sánchez, 2019Mauro, 2021Gaudin, 2017b), a itinerância como fundamento da nova nobreza (Muto, 2015Yun Casalilla, 2009). De forma quase simultânea, multiplicaram-se os estudos sobre informação e comunicação política (Brendecke, 2016Fragoso e Monteiro, 2017), circulação da lei e da justiça (Barriera, 20172019Cunill, 2015), formação de modelos culturais transregionais ou transoceânicos (Heywood e Thornton, 2007Brook, 2009Gerritsen e Riello, 2021), assim como a reinterpretação de missões e missionários como conectores de mundos distantes (Palomo, 2016Romano, 2016Sachsenmaier, 2018; para citar alguns dos exemplos mais interessantes). Leia Mais

A história ambiental do capitalismo no mundo colonial, séc. XV-XIX | Tempo | 2022

Colonizacao extinguiu metade das cobras e lagartos de arquipelago no Caribe Jose Francisco Dos Santos EyeEmGetty Images
Colonização extinguiu metade das cobras e lagartos de arquipélago no Caribe | Jose Francisco Dos Santos / EyeEm/Getty Images

História ambiental

Um espectro ronda a formação da história ambiental como campo disciplinar: o espectro da crise ecológica planetária. Ao longo de um pós-guerra marcado pela crescente hegemonia do capital financeiro ocidental, a intensificação de processos de extração e industrialização e o aumento exponencial da população mundial, certos movimentos sociais de cunho “ambientalista” se consolidaram com base em grupos da classe média e alta em países industrializados norte-americanos e europeus. Porta-vozes, polemistas e manifestantes ambientalistas no pós-guerra conscientizaram seus públicos sobre questões de biodiversidade e sustentabilidade, pressionando a elite político-administrativa de vários órgãos governamentais a legislar e estabelecer ordens regulatórias voltadas à “proteção ambiental”, como foi o caso nos Estados Unidos. Com exceção dos movimentos mais diversos e radicais de Environmental Justice (cf. Pellow, 2017), inicialmente as manifestações principais do movimento ambientalista norte-americano, tendo em conta obras de referência como as de Rachel Carson e Garrett Hardin, articulavam seus objetivos dentro das estruturas do Estado-nação. Com frequência, medidas rumo à sustentabilidade ecológica foram imaginadas tanto por ambientalistas quanto por governantes como formas de remediar danos perpetrados por coletivos humanos nem sempre claramente definidos, reconhecidos, porém, como ameaças à viabilidade de conglomerações não humanas imaginadas como “natureza”, separadas ontologicamente da esfera humana. Tais ameaças à ordem ecológica eram vistas – e continuam sendo vistas – em múltiplas escalas temporais e cronológicas: o choque de um cataclismo nuclear, o desgaste nocivo da poluição agroindustrial, a extração desinibida de recursos naturais precipitando extinções de espécies diversas, o esgotamento de recursos naturais necessários para o sustento da vida no planeta. Ao movimento ambientalista do pós-guerra, por fim, não faltavam narrativas de declínio ou apocalipse planetário; faltavam historiadores. Não foi por acaso, portanto, que o campo conhecido como história ambiental se cristalizou na historiografia internacional ao longo das últimas décadas do século XX. Leia Mais

Lugares de memória e de consciência na América Latina | Tempo | 2021 (D)

O Espacio Memoria y Derechos Humanos1

Desde as últimas décadas do século XX, mais especificamente a partir da queda do Muro de Berlim, do fim das ditaduras latino-americanas e do apartheid na África do Sul, podemos observar a expansão de políticas de memória em diversos países, cada um com sua temporalidade e suas prioridades. Nesse sentido, como a historiografia recente tem destacado, podemos constatar nas sociedades contemporâneas uma alteração nas relações com o futuro e o passado. O futuro, que era apresentado como o tempo das realizações e da afirmação do progresso, cedeu lugar a um tempo que reservaria maiores possibilidades de certeza e segurança: o passado.

As experiências traumáticas às quais se remetem, mormente a história do tempo presente, têm como uma das suas principais preocupações as ações que dizem respeito à transmissão da memória desses acontecimentos. Como transmitir o horror das experiências ditatoriais para quem não viveu o período? Como abordar um passado sensível com as novas gerações? Como construir o que chamamos de nunca mais em tempos de disputas de narrativas e negacionismos sobre o passado ditatorial? Por trás desse debate podemos identificar três objetivos centrais, a saber: a criação da empatia sobre as vítimas; a condenação de qualquer regime ditatorial; e a valorização da democracia e dos direitos humanos.

Para isso, é possível identificar políticas de memória empreendidas por governos comprometidos com essas questões, dentre as quais destacamos o incentivo ao ensino do tema na educação básica; a abertura de processos judiciais para agentes que praticaram graves violações dos direitos humanos; a localização e divulgação de arquivos; recuperação de espaços etc. Na maioria das vezes, essas ações são oriundas das pressões exercidas pela sociedade por meio de grupos de direitos humanos e/ou atingidos direta ou indiretamente pela ação das ditaduras, com o intuito de promover o que chamamos de dever de memória para com as vítimas.

Para o caso do nosso dossiê, a ênfase dos artigos aqui reunidos diz respeito à política de memória relativa a identificação e recuperação de espaços na América Latina onde ocorreram graves violações de direitos humanos ou que foram referências, seja para a resistência ou para a própria ditadura.

Ao falarmos sobre esses espaços, remetemos a dois conceitos-chave para a sua compreensão e que consideramos de fundamental importância destacar nessa apresentação. O historiador Pierre Nora foi o pioneiro nesse debate ao cunhar e consagrar a expressão lugares de memória na historiografia, quando coordenou a coletânea de textos Les lieux de mémoire, editada na França a partir de 1984. Segundo Nora, os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não existe memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter os aniversários, organizar as celebrações, pronunciar as honras fúnebres, estabelecer contratos, porque estas operações não são naturais (Nora, 1993, p. 13). A esse conceito acrescentamos a ideia de que podem ser também lugares de consciência. Segundo a International Coalition of Site of Conscience, organização mundial que reúne cerca de duzentos integrantes de mais de cinquenta países, os “sítios de Consciência vão desde os esforços de reestruturação de pequenas comunidades de sobreviventes, aos grandes projetos financiados pelo Estado que visam amplo alcance nacional”.[1] Para integrar a coalização, o lugar deverá interpretar a história por meio dos espaços históricos; envolver-se em programas públicos que estimulem o diálogo sobre questões sociais urgentes; promover valores humanitários e democráticos como função principal; e compartilhar oportunidades para a participação pública em questões levantadas no local.

Transformar um lugar de memória em também um lugar de consciência implica identificar, reconhecer e preservar esses espaços. E isso não ocorre sem embates políticos e sociais, disputas de memórias e (re)construções de novos sentidos para o passado e seus usos políticos. Esse processo mobiliza distintos agentes (públicos e privados; individuais, coletivos e/ou institucionais), que passam a atuar como “emprendedores de memória”, expressão cunhada por Elizabeth Jelin para designar os atores sociais que criam e executam projetos de memória (com um caráter coletivo) e lutam pela visibilidade de seus empreendimentos, pelo reconhecimento social e pela legitimidade política de suas narrativas do passado (Jelin, 2002, p. 48-49).

Nesse sentido, esses lugares são alvos de intensos debates sobre a sua recuperação, pois alguns ainda são ocupados pelas forças estatais ou são de propriedade privada, como a Casa da Morte, em Petrópolis, Rio de Janeiro. Implica também uma política de patrimônio histórico que reconheça aquele espaço e as ações que ali ocorreram como parte da história oficial do país. A questão do patrimônio vem acompanhada das ações de instituições como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que os reconhece não apenas como um espaço exclusivo de um drama nacional, mas algo que afeta toda humanidade. Ainda nos casos dos países da América Latina que integram o Mercosul, o Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos (IPPDH) publicou em 2012 o documento “Princípios fundamentais para as políticas públicas sobre lugares de memória” no qual reconhece a obrigação dos estados participantes em promover ações de caráter pedagógico sobre as ditaduras dos anos 1960 e 1970. Em paralelo e em diálogo com essas duas instituições foram criadas a Rede Sitios de Memoria em America Caribe (Reslac) e a Rede Brasileira de Lugares de Memória (Rebralume).

Além disso, abre-se um intenso debate sobre o que fazer com o espaço. Múltiplas vozes devem ser ouvidas na tentativa de construir um consenso sobre essa ocupação, suas atividades futuras, sobre como deve ser a estatização do horror e como falar sobre os que não estão, os desaparecidos e assassinados etc.

Tais espaços não devem ser pensados apenas como cenários onde as graves violações de direitos humanos ocorreram, pois, atualmente, são provas judiciais nos processos contra os perpetradores em países como Argentina e Chile. Eles cumprem também um importante papel no ensino do passado recente, não apenas recebendo estudantes, mas promovendo atividades e formação de professores. Por fim, muitas vezes integram o roteiro da secretaria oficial de turismo em diversas cidades. Segundo Teklik e Mesnard (2011, p. 101), o turismo de memória apresenta como elemento central o valor ético de resgate do passado. Lugares como Auschwitz e Treblinka, na Polônia; ou Ravensbrück e Sachsenhausen, na Alemanha; Espacio Memoria y Derechos Humanos Ex-Esma, na Argentina; Estádio Nacional, no Chile, recebem a cada ano cada vez mais visitantes interessados em saber mais sobre o que ocorreu ali e conhecer onde “a história aconteceu”.

Nessa perspectiva, o presente dossiê pretende apresentar um panorama da problemática relacionada aos lugares de memória e de consciência das ditaduras na América Latina, contribuindo para o fortalecimento de um debate importante no âmbito da historiografia contemporânea. Acreditamos que os artigos aqui apresentados possibilitarão aos leitores o contato com distintas abordagens sobre a temática, destacando a amplitude do conceito de “lugares de memória”, que não se restringem apenas aos espaços diretamente associados às práticas de violência e tortura que marcaram a estrutura e funcionamento dessas ditaduras no século XX. Além de apresentar reflexões sobre a diversidade desses lugares e distintos estudos de caso, outra contribuição desse dossiê é também destacar espaços e regiões pouco explorados pela historiografia relacionada ao tema no Brasil.

Nesse sentido, o dossiê se inicia com o artigo de Maura Leal da Silva e Janaína Valéria Pinto Camilo, intitulado “A Fortaleza de São José de Macapá: nos rastros das memórias, das prisões e torturas (1964-1973)”. No texto, as autoras analisam como essa fortaleza – uma construção militar do século XVIII, hoje tombada como Patrimônio Histórico Nacional – se tornou, durante a ditadura civil-militar brasileira, um dos principais centros de detenção e tortura de presos políticos em Macapá, capital do Amapá. A partir do Relatório Final e dos depoimentos coletados pela Comissão Estadual da Verdade do Amapá (CEV-AP), criada em 2013 e cujos trabalhos foram concluídos em 2017, o artigo destaca as prisões ilegais, as torturas físicas e psicológicas, as arbitrariedades e a violência praticadas nas dependências da Fortaleza de São José de Macapá e o reconhecimento institucional desse espaço amapaense como um lugar de memória da ditadura, contribuindo para os estudos sobre a ditadura brasileira fora do eixo Sul-Sudeste, bastante privilegiado nas pesquisas sobre o tema.

As políticas públicas de memória no Brasil e as lutas políticas e sociais para a identificação e reconhecimento dos lugares de memória da ditadura são o tema do artigo “Lugares de memória da ditadura: disputas e agenciamentos nos processos de construção do 1° BIB Barra Mansa-Rio de Janeiro e da Casa Marighella-Salvador”, escrito por Alejandra Magalhães Estevez e Priscila de Almeida Cabral. Também contemplando espaços territoriais pouco explorados pela historiografia especializada no tema, as autoras analisam a trajetória de lutas para a efetivação de dois lugares de memória: o antigo 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército, na cidade de Barra Mansa no sul fluminense, e a Casa Marighella, em Salvador, capital baiana. Nesse sentido, o artigo não só destaca os conflitos sociais, as negociações e os embates políticos envolvidos nesses processos ainda em aberto, mas também amplia as discussões sobre os lugares de memória, que não se limitam aos espaços associados diretamente às práticas de violações aos direitos humanos pela ditadura, mas contemplam também espaços associados às ações de militância política daqueles que, de distintas formas, resistiram à ditadura.

Além das dependências oficiais ou civis, utilizadas pelos órgãos de repressão, e das residências de militantes históricos que combateram as ditaduras, outros espaços, menos explorados pela historiografia, também merecem destaque entre os lugares de memória da ditadura, como os estádios de futebol, que, além de servirem como prisão para opositores políticos (como o Estádio Nacional, em Santiago no Chile, e o Caio Martins, em Niterói no Brasil), também foram utilizados, no Brasil, como instrumentos de construção de legitimidade por políticos ligados à ditadura, como destacam João Manuel Casquinha Malaia e Rafael Fortes Soares, em seu artigo “Brasil grande, estádios gigantescos: Toponímia dos estádios públicos da ditadura civil-militar brasileira e os discursos de reconciliação”. No texto, os autores analisam a construção de 14 estádios públicos estaduais com capacidade para mais de 40 mil pessoas, inaugurados entre 1964 e 1985, em sua maioria, com nomes dos governadores da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de apoio à ditadura. Nessa perspectiva, o artigo debate como a nomeação, as disputas sobre as homenagens prestadas e a manutenção de nomes ligados à ditadura em espaços que se tornaram lugares de afeto de milhares de pessoas estão inseridas no complexo processo de (re)construção das memórias coletivas acerca da ditadura brasileira.

As disputas de memórias relacionadas aos lugares e às efemérides referentes ao período da ditadura civil-militar brasileira são o eixo condutor do artigo de Andréa Cristina de Barros Queiroz, “As memórias em disputa sobre a ditadura civil-militar na UFRJ: lugares de memória, sujeitos e comemorações”, que privilegia a trajetória da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destacando como os espaços universitários também foram atravessados pela cultura política autoritária do regime. No texto, a autora analisa como essa centenária universidade, no contexto da modernização autoritária promovida pela ditadura brasileira, foi palco de censura, perseguição política e expulsão de alunos, funcionários e professores e de ações violentas das forças policiais, como no episódio da invasão, em 1966, da Faculdade Nacional de Medicina (FNM), na Praia Vermelha, cujo prédio histórico foi demolido em 1975. O texto também debate a demolição deste prédio como uma política de esquecimento promovida pela ditadura, que incluiu negociações e colaborações de parte dos dirigentes da instituição e da parcela conservadora dos docentes e técnicos que apoiavam o regime autoritário, bem como as recentes iniciativas da universidade na investigação das violações de direitos humanos sofridas por sua comunidade acadêmica e sua reparação no âmbito institucional, através das ações da Comissão de Memória e Verdade (CMV) da UFRJ, criada em 2013.

Encerrando esse dossiê, o artigo “Reflexiones en torno a los sitios de memória em Uruguay: las demarcaciones del paisaje represivo”, de Luciana Scaraffuni, propõe uma análise sobre os debates e embates políticos e sociais acerca das demarcações dos lugares de memória da ditadura – lugares da repressão ou da resistência – na cidade de Montevidéu, capital uruguaia, a partir da promulgação da “Ley de Creación de Sitios de Memoria Histórica del Pasado Reciente”, em 2018. No texto, a autora privilegia os debates sobre o antigo Cárcel de Punta Carretas, o histórico presídio de presos políticos no Uruguai que funcionou até 1986, sendo posteriormente demolido, abrindo espaço para a construção de um shopping center, o Punta Carretas Shopping, um dos mais badalados de Montevidéu. Até pouco tempo, não havia no local nenhuma demarcação que remetesse ao antigo presídio que ali funcionou e não era oficialmente reconhecido como um lugar de memória da ditadura no Uruguai. Somente em fevereiro de 2020 se colocou a pedra fundamental de um futuro memorial a ser construído na entrada do shopping em homenagem às centenas de presos políticos que por ali passaram. A autora ressalta que o processo de identificação, recuperação e ressignificação desses lugares é marcado pelo enfrentamento de diferentes setores da sociedade uruguaia e seus distintos interesses e concepções sobre uma cultura de memória ou de esquecimento acerca do recente passado autoritário do país.

Esperamos que esse dossiê colabore com o debate sobre o passado ditatorial em um momento em que vivemos um intenso debate revisionista e negacionista, assim como – em especial no caso brasileiro – incentive, e dialogue com, a recuperação e abertura de espaços, muitos dos quais já somamanos de disputas, como o prédio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) na rua da Relação, no centro do Rio de Janeiro, e reforce não só a importância dos estudos historiográficos sobre a ditadura, mas também o papel significativo que os lugares de memória e de consciência podem exercer no ensino da história das ditaduras na América Latina e em ações pedagógicas que promovam, principalmente junto às novas gerações, uma cultura democrática e de respeito aos direitos humanos

Nota.

1. Ver: https://www.sitesofconscience.org.

Referências

JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria Colección Memorias de la Represión. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto História (São Paulo). n. 10, p. 7-28, 1993.

TEKLIK, Joanna; MESNARD, Philippe. El viaje a Auschwitz: turismo de la memoria o turismo cultural? In: FLEURY, Béatrice; WALTER, Jacques (Comp.). Memorias de la piedra Buenos Aires: Ejercitar la Memoria Editores, 2011, p. 99-116.

Samantha Viz Quadrat – Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói (RJ), Brasil. Email: [email protected].

Izabel Pimentel da Silva – Universidade do Estado do Rio de Janeiro-Faculdade de Formação de Professores (Uerj-FFP). São Gonçalo (RJ), Brasil. Email: [email protected].


QUADRAT, Samantha Viz; SILVA, Izabel Pimentel da. Marcas territoriais do passado autoritário: lugares de memória e de consciência na América Latina. Tempo. Niterói, v.27, n.1, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF].

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28 abr. 2021

El clero secular iberoamericano en la Época Moderna / Tempo / 2020

El clero secular iberoamericano en la Época Moderna. Institucionalidad, carrera eclesiástica y conexiones sociales

Una de las caracterizaciones de las sociedades iberoamericanas que más consenso sigue teniendo sostiene que estuvieron constituidas por estamentos y calidades sociales. Este fuerte sentido de las personas de aquella época por diferenciarse y pertenecer a una jerarquía social más alta, sin duda permeó en todos los grupos, corporaciones e instituciones. En este sentido, la historiografía sobre la Iglesia, ha hecho hincapié desde el siglo XIX al menos, en el gran poder, la influencia y la riqueza del clero colonial, derivado en buena medida del papel tan relevante de esa institución múltiple y compleja en el gobierno monárquico español y portugués. Derivado de este proceso histórico de encumbramiento del clero secular se han escrito múltiples libros, artículos y capítulos a lo largo del tiempo que lo reafirman en cada región, provincia u obispado iberoamericano. Para ello, los y las historiadoras han echado mano de variadas fuentes de archivos eclesiásticos o extra-eclesiásticos, así como de diversas metodologías y ópticas.

La historiografía ha tenido tres formas de estudiar al clero secular a lo largo del siglo XX: en las historias generales de la Iglesia, en el análisis de coyunturas importantes, o bien, como objeto central de estudio. En las historias generales se ha concebido al clero secular de forma global pues, aparte quizá del alto clero, el resto de sus miembros son anónimos. Igualmente, en otros trabajos la clerecía ha sido sólo una especie de “escenario” eclesiástico para la actuación del alto clero o de los obispos. En algunos incluso la historia de una diócesis se ha reducido a la gestión de los prelados. Además de las historias generales, en estudios específicos sobre coyunturas históricas o gestiones de obispos, el clero ha sido analizado como un gran colectivo que acompañaba o se oponía a los objetivos de su prelado, cuando participó de algún movimiento importante, fundó alguna nueva institución o como receptor de alguna reforma impulsada por las autoridades. Aunque en este tipo de obras se superan las generalizaciones o los juicios de valor, también es cierto que no se profundiza más.

Dentro de ese universo historiográfico podemos destacar dos tendencias actuales. Una, que a pesar de la multiplicidad de estudios monográficos sobre el clero secular de distintos obispados, siguen faltando estudios de conjunto o de síntesis que brinden visiones globales de la clerecía, a nivel diocesano o de cada provincia eclesiástica. En este sentido, hay algunas excepciones notables que nos muestran un camino viable y enriquecedor. Dos pertenecen al clero español. La obra La sociedad española en el siglo XVII, de Domínguez Ortiz (1970), tuvo una gran influencia por las líneas de investigación que inspiró, tales como la población clerical y su distribución geográfica, la crítica social y política por el excesivo clero o sobre la mala formación educativa de los clérigos. La imagen que construyó Domínguez Ortiz sobre el clero peninsular, analizando aspectos que hasta entonces poco se habían estudiado, inspiró variados estudios de corte prosopográfico o de biografía colectiva (Morgado, 2007). Tiempo después otra obra notable fue la de Barrio Gozalo, El clero en la España moderna (Barrio, 2010) en donde se hace una muy útil síntesis descriptiva de ese estamento desde la era de los reyes católicos hasta el siglo XIX, recogiendo los resultados de múltiples estudios monográficos de las últimas décadas. Esta gran aportación ya había sido precedida por otro artículo importante referido solo a los obispos de Castilla la Vieja (Barrio, 1982). Otra importante contribución ha sido el estudio de las élites eclesiásticas, sus características y su vínculo con el poder. Un trabajo importante es el de Terricabras (2000) sobre la recepción del Concilio de Trento por Felipe II y la política de control ejercida por la Corona sobre el clero que por medio del Patronato Real logró alcanzar ciertas condiciones para disciplinar el clero secular. De los estudios generales también resultaron aquellos basados en el interés por las carreras eclesiásticas. Aún para la península, sobresale la investigación de Chacón (1993) sobre las formas de promoción en el estamento eclesiástico secular para la Sevilla rural del siglo XVIII a partir principalmente de los libros de visitas pastorales, expedientes de congruas y patrimonios.

Para el caso de la historiografía portuguesa hay que mencionar tanto por su importancia como por la influencia que tuvo posteriormente el estudio de Paiva (2006) sobre el episcopado en Portugal y en el imperio, dónde analiza los procesos de elección de los individuos para el cargo de obispo, los modelos del munus episcopal y las carreras de dichos eclesiásticos a partir del abordaje prosopográfico. [1] En los mismos años Olival y Monteiro (2003) hicieron un balance de la historiografía sobre el clero analizando por consiguiente las cuestiones del estatuto y de la movilidad social para las carreras del clero diocesano, considerando las estrategias familiares y el tema del patrimonio delante del problema del mérito. Además, llama la atención la investigación desarrollada por Silva (2013) con el objetivo de explicar las disputas de poder en el cabildo catedralicio entre 1564 y 1670, subrayando en particular los mecanismos formales y informales que disponían los clérigos seculares frente a las presiones de toda orden – en particular fiscales – impuestas por la Corona como también por el episcopado.

Para Iberoamérica, a su tiempo, vale mencionar el estudio de Delgado y Fernández (1992) que se ocupó de un esbozo prosopográfico de los obispos de Indias y además, dos otros trabajos de referencia: el de Bayle (1950), El clero secular y la evangelización de América, así como la síntesis general de Valpuesta (2008), El clero secular en la América hispana del siglo XVI, obra que viene a compensar la falta de una visón de conjunto, más allá de las limitaciones o alcances de interpretación historiográfica del estudio.

La segunda tendencia es la atomización de los estudios en múltiples investigaciones monográficas, en muchas ocasiones más descriptivas que analíticas y que prescinden de una vinculación con problemas o procesos históricos más generales. Pueden ser ricos en información de archivos locales pero pobres en metodología e hipótesis historiográficas bien sustentadas. Junto a estas también se ha publicado diferentes libros y artículos que han buscado problematizar y enriquecer la interpretación historiográfica del clero secular. Aquí sólo haremos un esbozo de las líneas generales que, desde nuestro punto de vista, han marcado su rumbo historiográfico en las últimas décadas, al mismo tiempo que haremos referencia a algunos trabajos que siguieron las tendencias de investigación abiertas.

Una de las líneas recurrentes ha sido la de las carreras eclesiásticas y la formación académica y sacerdotal de la clerecía. Cabe resaltar la investigación de Schwaller (1987), quien publicó un estudio específico sobre el clero secular del siglo XVI, planteando un análisis de los diferentes estratos clericales de acuerdo a su jerarquía, así como su papel en la sociedad temprana novohispana. Este autor realizó un trabajo de corte prosopográfico abarcando todos los segmentos de la jerarquía eclesiástica y estableciendo una tipología de las carreras emprendidas por el clero en el siglo XVI. Para otras latitudes se han elaborado igualmente estudios importantes sobre la carrera eclesiástica del clero desde una perspectiva prosopográfica. Uno de ello es de Enríquez sobre la clerecía chilena entre 1650 y 1850, en donde analizó la conformación de la jerarquía del clero secular (Enríquez, 2006). Para el caso de la formación de los sacerdotes, el análisis de Velázquez (2013) a partir de la diócesis de Nicaragua y Costa Rica entre los siglos XVI y XIX representa un buen ejemplo del abordaje de los nombramientos del clero secular teniendo en cuenta el papel de los seminarios en su educación y el acceso a las capellanías en zonas no tan centrales del mundo americano.

Paul Ganster dedicó algunos trabajos sugerentes sobre los integrantes de los cabildos eclesiásticos de México y Lima, un grupo de 280 individuos, en el siglo XVIII, examinando sus estilos de vida y sus familias, así como sus trayectorias clericales: prebendas y dignidades catedralicias, y como ellas se relacionaban con sus familias, proponiendo que: “…la situación de cada clérigo se comprendía mejor dentro del contexto multigeneracional de la familia extensa a que pertenecía” (Ganster, 1991, p. 149). Partiendo del peso de la familia, Wanderley (2013) ha examinado la trayectoria de dos presbíteros descendientes del patronímico Portugal en la Nueva España a comienzos del siglo XVIII para comprender sus estrategias alternativas frente al estrechamiento de las condiciones de movilidad en la carrera eclesiástica basadas tradicionalmente en los méritos.

Mazín (1996), por su parte, dedicó un estudio novedoso sobre los miembros del cabildo eclesiástico del obispado de Michoacán a lo largo de tres siglos. Con base en una amplia documentación de repositorios eclesiásticos, de la Corona y de notarías, el autor realizó la prosopografía de trescientos prebendados de los siglos XVI a inicios del XIX. En esta misma línea de los cabildos novohispanos se halla el estudio de Jaramillo sobre el mismo cabildo michoacano, si bien referido al periodo de transición de 1790 a 1833, ya en el México independiente (Magaña, 2014). En este caso, el autor realizó la prosopografía de 65 prebendados en torno a sus orígenes geográficos, su formación académica y sobre todo su trayectoria eclesiástica, con base en una gran variedad de fuentes eclesiásticas y de otros repositorios de la época. En esta misma perspectiva, poco después Castillo (2018) dedicó un libro a estudiar a los miembros del cabildo eclesiástico de México entre 1530 y 1612, profundizando en su carrera eclesiástica y su participación en la política eclesiástica de esa era fundacional.

Pero también el clero diocesano y parroquial ha sido objeto ya de importantes estudios. Cabe resaltar las investigaciones de Taylor sobre los curas, o como él les llama “ministros de lo sagrado”, en donde los vinculó al proceso de aplicación de las reformas borbónicas (Taylor, 19951999), logrando una renovada visión historiográfica, partiendo de la premisa sobre que: “La religión y los sacerdotes fueron parte integral de la cultura política colonial” (Taylor, 1999, tomo I, p. 19). Esta concepción de los sacerdotes permitió al autor insertarlos en problemáticas sociales, culturales y políticas que en la historiografía anterior están ausentes, y con ello fue más allá de la simple descripción, al analizarlos como verdaderos actores sociales.

Siguiendo los pasos de Taylor, Lundberg (2011) realiza su investigación sobre la vida parroquial o local a partir del clero secular en el México Central, o sea, la arquidiócesis de México y el obispado de Puebla, con particular referencia a Tlaxcala. Teniendo en cuenta las parroquias rurales administradas por los padres seculares en la primera mitad del siglo XVII, ha buscado analizar la interacción entre los feligreses indígenas y los curas como un esfuerzo de comprender la influencia del poder local en dicha relación. Por lo tanto, no solamente observa como las poblaciones indígenas entienden la Iglesia, si no también como los párrocos de indios sirven a nivel parroquial como enlaces con la Iglesia Metropolitana (centro de México, Puebla o mismo Roma), evidenciando así las complejas relaciones entre el “centro eclesiástico” y lo que llama “periferia”, concretamente traducidas en los procesos de aplicación de las orientaciones canónicas en las zonas rurales. El trabajo está fundado en un abanico amplio de fuentes, como los documentos conciliares, las visitas pastorales, manuales sacramentales, informes de extirpaciones de idolatrías, peticiones indígenas y, principalmente, en las relaciones de méritos y servicios de los clérigos.

Burciaga (2012) es autor de un amplio estudio sobre el clero secular en la región de la Nueva Galicia, concentrándose en las acciones y relaciones de los poderes eclesiásticos situados en la capital del obispado, Guadalajara y, en la Audiencia de Zacatecas, este último un expresivo centro económico virreinal del siglo XVII. Este estudio fue precedido por el de Alanís (1997) sobre los orígenes del clero michoacano en el siglo XVI. Desde una perspectiva regional amplia, Burciaga examina la problemática de cómo este clero jugó un papel fundamental en el lento desarrollo de la autonomía de la zona que tuvo como principal consecuencia generar el deseo de una identidad regional propia, o mejor dicho, de una “cultura religiosa” específica. Cierto de que las libertades fueron logradas a partir de la práctica religiosa, lanza mano del concepto de “pertenencia sociorreligiosa” para delimitar entre otras cosas el motor de dicho proceso: “los sentimientos de solidaridad o lealtad para con su núcleo de pertenencia social”. Burciaga explica entonces como tanto los intereses globales del imperio como locales – ambos complementarios – son articulados por medio de aquella cultura religiosa. El autor propone que los clérigos seculares fueron los mediadores o “comunicantes” de aquella pertenencia, que además implicaba el reconocimiento del valor del grupo, su honor y los principios clericales defendidos. El carisma de la economía minera de Zacatecas produjo un visible interés de los obispos y presidentes de la Audiencia por controlar el nombramiento de los curas, de modo a evitar la oposición a las directrices de Guadalajara. En este sentido, dos de los puntos más importantes del trabajo son el reconocimiento de dos tipos de poblaciones clericales – estables y transitorias – y de sus esfuerzos, en particular de los clérigos más modestos, por garantizar sus derechos personales frente a los abusos cometidos por las autoridades eclesiásticas.

Las estructuras eclesiales locales y el clero secular son además objetos de reflexión para el caso del mundo andino. Desde la tesis doctoral de Ganster (1974) sobre las carreras eclesiásticas en Lima en el siglo XVIII, la historiografía se ha caracterizado por el desarrollo de estudios inclinados a delimitar las tendencias clericales más allá del centro limeño. El trabajo de Bellido (1996) sobre el clero diocesano en el Perú del siglo XVI ha representado uno de los primeros esfuerzos desde la perspectiva de la historia eclesiástica por ofrecer un cuadro general sobre las dichas estructuras. Teniendo en cuenta la instalación de los curatos en ciudades como Cuzco, Trujillo, Arequipa e Quito entre otras (Obispados de Lima y Cuzco), el autor da cuenta de abordar la progresiva importancia del clero diocesano y los problemas de su organización a partir de la conversión de las doctrinas de naturales de las primeras encomiendas en curatos, tales como la insuficiencia de clérigos, las interdicciones cuanto a la ordenación de criollos y mestizos, el crecimiento del número de ordenados a partir de mediados del siglo. Mas allá del rol del clero secular por contener el retorno de las idolatrías como en el caso del Taqui Onqoy, el punto a destacar son los enfrentamientos de los clérigos con las estructuras de poder a partir de la noción de “clérigos políticos”. Bellido enseña como estuvieron involucrados en los conflictos entre Gonzalo Pizarro y la Corona, en las guerras civiles, como se enfrentaron con el virrey Toledo y con las autoridades eclesiásticas por hacer valer ciertos derechos y libertades. El análisis de Guerreira (1990) también ha tratado de las opciones políticas del clero secular a partir de los conflictos generados por las guerras civiles en el siglo XVI, ubicando así su tormentosa actuación en la evangelización a partir de su inserción en las doctrinas de indios.

El análisis de Ganster que apunta una tendencia de acercamiento de los clérigos a los centros urbanos en la búsqueda de cargos o doctrinas más prestigiosos es discutido para el caso de Charcas por Draper (2000). Desde la óptica de la historia cultural subraya la presencia de un “modelo alternativo de conducta clerical” enmarcado por un hiato entre los “valores sociales defendidos” y la conducta real. Ha examinado los seculares en el sistema eclesiástico andino del siglo XVII, según él, en un área marginal frente a la centralidad de Lima, la Arquidiócesis de la Plata. A partir de una muestra biográfica de sesenta sacerdotes y de un conjunto de datos consistente, analiza la composición del clero, sus actitudes ministeriales, su “marco ideológico” y las formas como interactúan con las estructuras sociales. Según el autor, el clero de Charcas era dominado por una composición de jóvenes sacerdotes limeños – que buscaban escapar a la intensa competencia verificada para la carrera en Lima – y los charqueños que van creciendo numéricamente a lo largo del XVII. El universo eclesiástico de la zona poseía un perfil sobre manera parroquial y, en el clero convivían muy claramente dos grupos: uno formado por los estratos de hijos de las familias notables y otro más bien pobre – que sólo había recibido las órdenes menores – y que subsistía de una modesta capellanía o de la caridad. A partir del cruce de cinco tipos de mentalidades (evangelizadora, profesional, culta, parental y extirpadora), deducidas teniendo en cuenta la tipificación de los valores indicados como más significativos en su carrera, Draper ofrece una idea de los aspectos que caracterizan el clero de Charcas: un tercio formado por sujetos con amplia formación; en general con bajo nivel de disciplina y responsabilidad clerical, de mentalidad profana o proclive a los intereses mundanos; algo que impacta sobre su comprensión del sacerdocio: un camino de ascenso social. Los trabajos de García (2007) sobre el clero secular en el norte de Perú a comienzos del período Republicano, como los de Robins (2009) y de Huarcaya (2018) analizando los conflictos de los sacerdotes con la comunidad, así como la cuestión de la inmunidad personal de los curas seculares doctrinarios durante las rebeliones indígenas del Alto Perú en la segunda mitad del siglo XVIII, son además buenos ejemplos de la diversificación de los problemas y del avance de los estudios hacia otras regiones del mundo andino.

Para el Río de la Plata y Argentina independiente se han escrito en las últimas décadas trabajos muy importantes sobre el clero secular (Di Stefano, 2007). Los trabajos de Di Stefano (19982000), en particular el capítulo “El clero Rioplatense y la revolución” (Schmidt, Dorsch, Herold-Schmidt, 2011); Ayrolo (20062007Ayrolo, Oliveira, 2016), Barral (20062016) y Caretta (2016) han abordado sobre todo el siglo XVIII y la transición al periodo independiente, en especial a partir de las reformas borbónicas. A partir de una amplia gama de fuentes eclesiásticas y coloniales, estas obras han profundizado en el conocimiento de los distintos sectores del clero secular, la evolución de sus poblaciones, así como su vinculación al cambio político. Sin duda, ha marcado valiosas pautas para futuras investigaciones de esa región.

Por lo que respecta al estudio de las poblaciones clericales en Indias, hay pocos estudios aún, a diferencia de lo que sucede para Europa. Para Nueva España, Aguirre (2012) dedicó parte de un estudio al análisis de la población de clérigos seculares del arzobispado de México, con base en el tratamiento de las matrículas sacerdotales, fuentes muy poco estudiadas todavía. En 2017, Cano publicó El clero secular en la diócesis de México (1519-1650), el cual, sin ser sólo una investigación prosopográfica estricta, sin embargo, el autor usó del método para caracterizar en varios sentidos a la clerecía del centro de la Nueva España, valiéndose de amplias e importantes fuentes históricas, de archivos nacionales y extranjeros.

A su vez, el estudio realizado por Pereira das Neves sobre el tribunal de la Mesa da Consciência e Ordens se ha revelado como uno de los más significativos para la historia social del clero secular en el mundo luso-brasileño, sobre todo por permitir analizar los efectos a mediano plazo de los cambios implementados por las políticas reformistas del siglo XVIII en el ámbito eclesiástico (Neves, 1997). En términos generales, la investigación ha planteado analizar el papel de la religión y del clero secular en la formación de la nación en el primer tercio del siglo XIX, período todavía, como afirma, caracterizado por la persistencia de las estructuras del Antiguo Régimen. Neves concentra su análisis en el cotidiano y los intereses variopintos de este clero, en particular, el segmento más cercano a los feligreses, los vicarios de las parroquias, considerando las peticiones presentadas por los sacerdotes – sin despreciar a de los sujetos pertenecientes a la alta jerarquía eclesiástica – y los dictámenes de aquel tribunal sobre lo requerido por ellos. De ahí provienen los muchos temas asociados al cosmos de los eclesiásticos: las condiciones de realización del culto, los salarios, la estabilidad de posiciones en sus carreras, disputas intereclesiásticas, conflictos con feligreses, comportamiento de las poblaciones frente a los sacerdotes y por fin las condiciones generadas por la política regalista. La imagen del clero secular brasileño que emerge de la investigación, sobre todo a partir de las condiciones para el ejercicio de su oficio, constituye una importante referencia para hacer comparaciones con el mismo clero hispanoamericano y, por consecuencia sirve para comprender las formas distintas que ha asumido el catolicismo en los contextos del mundo iberoamericano. Se trataba, según él, de un clero carente, por lo tanto, ávido por distinciones; sin medios adecuados para su formación; disperso territorialmente y aún sujeto al desorden de las divisiones eclesiásticas; administrando en zonas empobrecidas; azotado por el retraso de sus congruas; involucrado en negocios mundanos y con tendencias a burlar el celibato clerical.

Además, la investigación doctoral de Gama Lima ha contribuido para entender los comportamientos delictivos de la clerecía colonial (Lima, 1990). Su trabajo que se enfoca en el crimen de solicitación practicado por los padres durante la confesión – a partir de la política de persecución por parte del Santo Oficio – subraya no sólo su fragilidad en cumplir las reglas del modelo tridentino, pero también las dificultades de hacer observarlas por parte de las autoridades eclesiásticas. La autora advierte aún los problemas cuanto a la formación del clero y principalmente los esfuerzos reformistas llevados a cabo por los obispos con el beneplácito de la Corona de Portugal durante el siglo XVIII para revertir dicha situación. La reforma consistió en crear condiciones para ampliar la red parroquial, estrechar conexiones con la jerarquía eclesiástica y reformar el clero desde el punto de vista intelectual y moral (Lima, 19932014). Las conclusiones de Gama Lima enseñan que las condiciones coloniales redujeron por fin el alcance de las medidas reformistas. La investigación de Neves centrada en los decenios posteriores como se vio confirma que los problemas aún persistían y que en particular la política de ampliación del número de parroquias tuvo reflejos negativos sobre el ejercicio del oficio del clero secular en razón de la desproporción entre el número de parroquias-población global de feligreses-cantidad de párrocos.

El camino abierto por tales investigaciones, que ponderan los efectos de las políticas regalistas en las reformas eclesiásticas del siglo XVIII, es analizado por Barral (2013) tomando en cuenta el conjunto de las dos Coronas ibéricas. A su tiempo, los estudios generados en las últimas décadas que tienen por objeto el clero secular, desarrollados sobre todo en los programas de posgrado brasileños, estuvieron bajo el influjo de las preocupaciones con aquel siglo y marcadamente desde una perspectiva regional. Se destacan los trabajos de Zanon (1999), sobre la acción de los obispos en São Paulo con un capítulo dedicado a los clérigos seculares; de Ferreira (2016) sobre el clero secular en el obispado de Rio de Janeiro durante un gobierno episcopal; de Lima (2016) sobre los seculares y la Inquisición en la Amazonia; de Poletto (2010), sobre los sacerdotes en la diócesis de Curitiba (XVII-XIX); de Santos (2008) sobre los conflictos entre la sociedad y el clero en las villas de Curitiba e Paranaguá de 1718 hasta 1774; de Santos (2013) sobre la transgresión de los clérigos del hábito de São Pedro en las feligresías de Pernambuco entre 1750 y 1800; de Nunes (2010) acerca de la política regalista y el clero secular en Minas Gerais; de Duarte (2017) que trata de la clerecía secular y sus sociabilidades en la misma Minas Gerais; de Castro (2010) sobre la trayectoria de un padre secular entre los indígenas de los sertões de las Gerais; y por fin el de Mendonça (2011) sobre el obispado del Marañón .

En particular la investigación doctoral de Mendonça sobre la justicia eclesiástica y los comportamientos desviantes del clero secular es buen ejemplo y, se destaca no solamente por el rico manantial de fuentes archivísticas explotadas, pero, sobre todo, por tratarse de observar la actuación del clero secular en el Noroeste de Brasil. Aunque su preocupación esté centrada en el juicio eclesiástico bajo el mando episcopal, pondera además sobre la comprensión jurídico-procesal acerca del cotidiano clerical desde el punto de vista de los juicios inquisitorial y secular. Mendonça establece sus características desde la documentación del Auditorio eclesiástico, entrecruzando las trayectorias con una perspectiva de conjunto que ha permitido profundizar en su formación, sus perfiles, sus estrategias de carrera y las redes familiares de protección o apoyo, los crímenes practicados, los castigos aplicados, las reformas de las costumbres, la defensa del privilegio de foro, las disputas políticas por los beneficios y, lo más característico del contexto maranhense: la gran flexibilidad durante los periodos continuos de vacancia en el obispado, que se reflejó en amplios procesos de ordenación sacerdotal.

El interés por las ordenaciones sacerdotales ha permitido ampliar el abanico de investigaciones, en las últimas dos décadas, a segmentos como el clero indígena. Por ejemplo, el libro de Menegus y Aguirre, para Nueva España, abrió una perspectiva de larga duración para el estudio de la formación de indios letrados y su estrecha vinculación con el sacerdocio. A partir de fuentes del archivo de la Real Universidad de México, del archivo del Seminario Conciliar de México y del archivo del arzobispado de México, principalmente, propusieron varias etapas históricas para entender por qué solo hasta el siglo XVIII se pudo conformar un sector de indios sacerdotes, al amparo de la Corona. Sobresale la segunda mitad de esa centuria debido a que ya no solo se ordenaron hijos de caciques sino también de tributarios, además de que algunos indios obtuvieron grados de doctor e hicieron una carrera eclesiástica notable, llegando uno de ellos, Luciano Páez de Mendoza, a ser canónigo de la colegiata de Nuestra Señora de Guadalupe (Menegus, Aguirre, 2006). Por su parte, Lundberg (2008) publicó un artículo donde propone algunas cuestiones a considerar para el estudio del clero indígena en Hispanoamérica, tomando en cuenta los avances historiográficos, los usos de la categoría de clero indígena y los posibles niveles de análisis para el tratamiento del tema: como las legislaciones, las polémicas teológico-jurídicas y conciliares, la formación y las carreras de los curas. A despecho de las prohibiciones impuestas y de la escasa ordenación de dichos clérigos en tiempos de “fundación”, a partir del siglo XVII la Corona apoyó a la idea de constitución de un sacerdocio nativo y a mediados del siglo XVIII se impuso la necesidad de contar con más clérigos seculares que supieran lenguas nativas – debido a la expulsión de los jesuitas y a las reformas secularizadoras – abriendo las puertas de la Iglesia a un contingente más numeroso de indios, destinados ser ayudantes de los curas titulares en parroquias rurales de pocos recursos. Sin embargo, en algunas zonas del mundo andino, llama la atención para el hecho de que algunos llegaron a tener carreras notables en los cabildos catedrales.

En la historiografía brasileña los trabajos de Resende (2014) y Oliveira (2018) son representativos de dicha vertiente acerca del clero autóctono. Como para el caso hispánico, Resende subraya las restricciones a la formación y admisión a la carrera eclesiástica, impuestas a los indígenas y la rareza de su presencia – además de los mestizos – en los procesos de ordenación realizados en los territorios de la Corona de Portugal hasta el siglo XVIII. Discute las posiciones esgrimidas en las polémicas sobre la idoneidad canónica de los indios para el oficio clerical y como en el siglo XVIII, con la implantación del Directorio de los Indios y con la política secularizadora del marqués de Pombal, las ordenaciones fueron favorecidas, si bien esto no se tradujo en incremento sustancial de nativos en la carrera. A partir del examen de casos, en particular de Pedro da Motta – sacerdote indio de la etnia Cropó – destaca la especificidad del caso de Minas Gerais, dónde los seculares jugaron un papel protagónico en la evangelización de los indios de los sertões. Ya Oliveira se dedica al estudio de las trayectorias de los africanos y sus descendientes considerando el problema del “defecto de color” en los procesos de habilitación al sacerdocio entre 1669 y 1823. Aunque reconozca la fuerza de las interdicciones, cuestiona la tesis de que la Iglesia colonial se cerraba a tales segmentos y demuestra como la ordenación se convirtió en una promesa de movilidad social durante el Antiguo Régimen. Contrasta el examen de la legislación, como las Constituciones Sinodales de Lisboa y las Constituciones Primeras de Bahia, estas últimas analizadas por Feitler e Souza (2011), con los documentos de los procesos de habilitación (de generevita et moribus y patrimonio) buscando comprender la lógica de la dispensación de los defectos de origen o nacimiento prevista por las mismas reglas canónicas. Oliveira señala el sentido orgánico de los procesos, sugiriendo la ordenación como un “proyecto” del grupo y el catolicismo como un elemento que favorece a la distinción social.

El presente dossier busca abonar a algunas de las líneas de investigación antes expuestas. Los tres trabajos que lo componen se articulan alrededor de un eje situado en el campo de la historia social del clero que problematiza su trayectoria en los marcos de la organización eclesiástica y parroquial en tres zonas geográficas de los imperios ibéricos. En los estudios hay un elemento común: la carrera se vuelve una estrategia con medidas precisas que exigían de los promotores una buena red, local o extra local, de contactos y de protección familiar. El estudio de Enríquez, por ejemplo, analiza los caminos del proceso de presentación a la Corona – en razón del Patronato Regio – de aquellos pretendientes aptos para obtener dignidades o beneficios eclesiásticos en la Iglesia de Indias. Tomando en cuenta las carreras eclesiásticas en Chile, la autora considera pertinente el cruce de dos grupos documentales para explicar la lógica del derecho de ocupar las plazas vacantes de los cabildos eclesiásticos: las colecciones de cartas privadas y los papeles de las consultas hechas al Consejo de Indias. Enríquez reafirma como el derecho a presentarse engendró distintas concepciones en la marcha de su aplicación, subrayando una visible transición de ser un privilegio papal a una regalía a cargo casi exclusivo de la monarquía, con moderadísima intervención procesal por parte de la curia romana, ya que por ejemplo, para el caso de los obispos, al final cabía al Papa solamente confirmar la presentación real por medio de una bula, trámite distinto de la institución canónica de los canónigos a cargo de los obispos y sin la exigencia del sello papal. Sin embargo, la autora advierte que ese peso relativo de Roma en la delimitación de los procesos no implicó un fenómeno de alejamiento del gobierno de la Curia en relación a las cuestiones de la organización jerárquica de la Iglesia indiana. Superada dicha visión, ofrece al lector un cuadro de la compleja dinámica aspiración-concesión, dónde actuaban las razones familiares y sus mediadores, se componían redes de contactos, se configuraban estrategias para lograr alcanzar el nombramiento y, además se percibían los márgenes de acción de los agentes. Teniendo en cuenta estudios de caso bien documentados plantea dos cuestiones fundamentales. La primera: que a partir de la institución de la “vía reservada de Indias” en el comienzo del siglo XVIII, cuando el curso de los asuntos eclesiásticos pasó a ser competencia directa de las secretarías del despacho en “forma paralela a la Cámara de Indias”, se impuso una clara división entre los sujetos capaces o no de movilizar las redes y los medios para acceder a la dicha vía. La segunda: el papel central jugado por los agentes y mediadores en el curso de las provisiones, quienes al fin y al cabo decidían la vía de ascenso más pertinaz cuanto a sus méritos y a sus pretensiones.

A su vez, el trabajo de Anderson Oliveira aborda las estrategias de movilidad social de los descendientes de esclavos y libertos al buscar acceder al clero secular en el obispado de Rio de Janeiro en la primera mitad del siglo XVIII. En términos puntuales, su análisis se concentra en las estrategias familiares para promocionar sus miembros a la carrera eclesiástica y buscar así trascender las barreras impuestas por las jerarquías y sus consecuentes efectos funcionales cuando se trata de considerar la herencia del cautiverio. Incursiona, a partir del problema de los orígenes de los candidatos, en el universo de las prácticas procesales de la Cámara Eclesiástica del obispado, considerando las peticiones de habilitación o solicitudes de órdenes sagradas, para examinar las formas de comprensión y los juicios expedidos acerca de los defectos provenientes de la ilegitimidad y del color. Oliveira enseña cómo, muchas veces, la suma de cierta reputación con buenas relaciones locales superaba las interdicciones formales, garantizando así la recomendación apostólica y la posibilidad de ser nombrado para el ejercicio del oficio eclesiástico en la diócesis. En efecto, aunque el nombramiento siguiera caminos ajustados por los reglamentos canónicos, se quedaba en manos de la prelacía la decisión de admisión, hecho confirmado por distintas vertientes historiográficas al discutir la composición de redes clientelares por parte de los obispos y el papel que juegan como importantes palancas del sistema político imperial, piezas que terminan por articular – no sin conflictos o polémicas – los intereses globales y locales de la monarquía y de la propia Iglesia. Además de los procesos de ordenación sacerdotal, el autor se vale también de las fuentes notariales – en particular los testamentos – para comprender el valor del patrimonio como garantía de la dotación de recursos para el mantenimiento de los futuros sacerdotes. Para el caso del clero de Rio de Janeiro, el autor subraya en este sentido ser las redes de protección familiar y la condición social de la línea paterna las piezas clave para hacer valer la pretensión. Por lo tanto, dedica una parte importante del estudio a analizar múltiples datos concernientes a dicha línea, corroborando ser el aspecto por excelencia de la selectividad y de cierto modo una garantía para acceder a la carrera sacerdotal, permitiendo así el ascenso de los hijos ilegítimos o marcados por los estigmas del defecto de color.

Otra una línea de investigación que sigue siendo muy socorrida es el de la fundación de las corporaciones eclesiásticas en el Nuevo Mundo. En la historiografía tradicional se abordó normalmente acudiendo a fuentes legislativas y decretos fundacionales, pretendiendo con ello zanjar el análisis histórico. Pero fue una línea que tarde o temprano se agotó y no tuvo mucho ya que agregar después de los trabajos pioneros. Sin embargo, surgió nuevamente la necesidad de volver a abordar los inicios de las instituciones, como las eclesiásticas, para explicar más claramente el desarrollo de la Iglesia en sus distintos ámbitos temporales y geográficos. Un buen ejemplo es el artículo de Miranda y Ponce, que cierra el presente dossier, en el cual muestran la importancia de estudiar los inicios de las instituciones eclesiásticas en el Nuevo Mundo, no desde la normatividad, sino enfocándose en las primeras generaciones de clérigos que les dieron vida. Los autores muestran los complicados inicios del cabildo eclesiástico de la diócesis de Yucatán, región periférica con poca población española en el siglo XVI, de la cual dependía la recaudación del diezmo. Esto implicó que había poca renta para las canonjías y dignidades del cabildo de la catedral. Igualmente, Yucatán tampoco ofrecía buenas perspectivas de promoción a mejores prebendas catedralicias, ya sea en el mismo obispado o en otros. Al faltar recursos del diezmo y razonables expectativas de ascenso, se provocó un cabildo permanentemente incompleto en donde, los pocos capitulares que había, buscaban salir pronto o residir en otros obispados que les ofreciera mejores posibilidades. Igualmente, hubo prebendados nombrados en España para Yucatán, pero que se negaron a trasladarse, buscando un mejor destino. Es claro entonces que para un buen desarrollo y consolidación de las instituciones eclesiásticas en Indias era necesario también garantizar a sus miembros buenas rentas y posibilidades de ascenso en la jerarquía.

Nota

1. Por supuesto el estudio contempla además los clérigos regulares que fueron obispos.

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Rodolfo Aguirre Salvador – Instituto de Investigaciones sobre la Universidad y la Educación, Universidad Nacional Autónoma de México (IISUE-UNAM), Ciudad de México(CDMX), México. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-1698-1264


WANDERLEY Marcelo da Rocha; SALVADOR, Rodolfo Aguirre. Presentación. Tempo. Niterói, v.26, n.3, set. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Regulação de conflitos na Idade Média / Tempo / 2020

Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV

Nas últimas duas décadas, as pesquisas referentes a estudos sobre a Idade Média experimentaram um vertiginoso e consistente crescimento na historiografia produzida por pesquisadores brasileiros. Neste caso, não se trata apenas do aumento no número de publicações na área, sejam em livros, artigos ou anais de eventos científicos. Para além disso, destacamos que as pesquisas sobre o período medieval vêm experimentando um reconhecimento nacional e internacional, verificado através do surgimento de novos laboratórios e grupos de pesquisa, fortalecimento dos trabalhos em rede com historiadores e universidades estrangeiras, e pela “democratização” do acesso a uma bibliografia atualizada e fontes documentais, fruto dos constantes processos de digitalização e disponibilização on-line do material de pesquisa em História Medieval.

O resultado do fortalecimento da área dos estudos medievais apresenta ainda outra consequência extremamente positiva: a diversificação nas temáticas de pesquisa. Atualmente, encontramos pesquisas que se localizam nos mais diversos recortes temporais, geográficos, temáticos, o que permite o fortalecimento do diálogo com outras ciências, como Arqueologia, Ciência Política, Direito, Literatura, Artes e Antropologia.

Devido a esse cenário de transformações e fortalecimento da área junto aos estudos de História no Brasil, hoje em dia não caberia uma proposta de dossiê junto a um periódico apenas pautado pelo título de “História Medieval” ou “Idade Média”. Por isso, este dossiê não é recortado apenas por balizas cronológicas amplas em comparação com outros períodos da História (Moderna, Contemporânea, Colonial, do Tempo Presente, entre outros). Mais do que isso, trazemos aqui artigos que lidam de maneira mais específica com questões relacionadas ao recurso à Justiça e suas formas específicas de ação, legitimação e atuação, bem como a compreensão sobre sua função de intermediar e promover a resolução de conflitos no período medieval.

Atualmente, o termo jurisdictio designa, de forma relativamente precisa, a instituição do Judiciário, ou seja, o poder de julgar e, por extensão, o limite desse poder. Esta compreensão se desenvolveu, sobretudo, a partir do século XVIII. No final da Idade Média, a etimologia da palavra jurisdictio refletia sua íntima ligação com determinadas práticas legais. Associados a ela, encontramos ainda os termos edictum (editar) e dictum, “o que ele diz”, recorrente nos inquéritos e procedimentos judiciais em geral. (Billorè; Mathieu, 2012)

Todavia, quando recuamos alguns séculos no tempo, percebemos que a concepção medieval de jurisdictio deve boa parte de sua significação à estruturação institucional da Igreja. A ausência de uma definição estrita de jurisdictio, longe de levar apenas à confusão em sua compreensão, multiplicava as possibilidades de extensão dos usos do poder da justiça. Dessa forma, era por meio de uma malha de superposições jurisdicionais que muitos conflitos eram regulados no período medieval (Guillot; Rigaudière, 1999).

Nesta perspectiva, o que este dossiê pretende é apresentar um panorama da problemática sobre a Justiça e o exercício do poder em diferentes contextos de resolução de conflitos, contribuindo para o fortalecimento de um debate importante no âmbito da historiografia do Direito e suas aplicações no estudo das sociedades medievais. Acreditamos que os artigos aqui apresentados possibilitarão ao leitor o contato e algumas reflexões com abordagens historiográficas atualizadas sobre o tema. Além da aproximação com a área do Direito e da Ciência Política, o dossiê Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV também propõe um diálogo mais próximo com outras áreas da História, como a História Moderna, na medida em que a questão do estudo das jurisdições é temática recorrente em ambas as áreas.

Assim sendo, o dossiê se inicia com o artigo de Marcelo Cândido da Silva, “Valor e cálculo econômico na Alta Idade Média”, trazendo uma reflexão sobre a presença do cálculo econômico na definição dos preços dos gêneros alimentícios, partindo da análise da relação entre avaliação dos produtos e definição de seus preços. O autor trabalhou com documentos oriundos da Gália e da Península Itálica.

Na sequência, dois artigos que tratam do mundo anglo-saxônico e anglo-normando, a partir de recortes cronológicos e documentais distintos. No trabalho intitulado “Propriedade fundiária na Nortúmbria anglo-saxônica: jurisdição, conflito e confluências (século VIII)”, Renato R. da Silva discute, a partir da análise da questão fundiária na Inglaterra anglo-saxônica, como se davam as redefinições, discussões e conflitos presentes sobre esta questão, uma vez que a jurisdição sobre os regimes de propriedades ainda não se apresentava plenamente constituída e uniformemente aceita nesta sociedade. Já José Manuel Cerda propõe uma análise sobre a distinção dos conselhos gerais e do conselho privado e cerimonial durante o período de governo de Henrique II, na segunda metade do século XII. Percebendo uma ampliação das grandes assembleias, Cerda verifica que Henrique II e sua corte teriam introduzido um grande número de reformas e medidas, apoiadas pelo consentimento baronial. Suas reflexões estão presentes no artigo “King Henry Plantagenet in the midst of his barons: public and territorial consultation at great assemblies in England (1155-1188)”.

Os dois últimos artigos deste dossiê lidam com análises localizadas na Península Ibérica, concentrando-se no estudo da atuação do poder real, não restrito exclusivamente à figura do monarca. No artigo “Inquirir em nome de Afonso II: a jurisdição régia a serviço da aristocracia cristã (Portugal, século XIII)”, Maria Filomena Coelho coloca em discussão certa naturalidade presente nas análises sobre as iniciativas régias do governo de Afonso II em Portugal. A autora propõe uma relativização sobre a visão dessa centralização do poder real que permite ampliar os estudos das inquirições, ligando-as a um cenário político mais amplo e menos centrado na figura do monarca.

Por fim, encerrando este dossiê, no artigo “Jurisdições das rainhas medievais portuguesas: uma análise de queenship”, Mirian Coser propõe uma análise a respeito de como os domínios da rainha de Portugal sobre determinadas propriedades conferiam a ela não apenas recursos econômicos, mas também o exercício da Justiça. Por meio da pesquisa sobre as crônicas do reino, a autora aponta para o fato de os recursos econômicos e exercício de uma Justiça por parte da rainha constituírem um espaço de poder legítimo que se relaciona não apenas com o matrimônio, a linhagem e a maternidade, mas também com o patrocínio, a piedade religiosa e a intercessão junto ao rei, inclusive nos assuntos da guerra.

Portanto, tendo como eixo os estudos sobre a Justiça e o exercício do poder na Idade Média, o dossiê Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV apresenta cinco artigos que mantêm o foco no tema proposto, mas diversificam a análise tanto no que diz respeito às balizas temporais, com trabalhos que tratam desde a Alta até a Baixa Idade Média, como também nos recortes geográficos, apresentando reflexões sobre a Gália, a Península Itálica, a Inglaterra anglo-saxã, a Inglaterra anglo-normanda e o mundo Ibérico. Acreditamos que os trabalhos aqui reunidos representam, em diferentes medidas, os impactos recentes das reflexões propostas por uma Nova História Política e pela Nova História Cultural.

Referências

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Fabiano Fernandes – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Guarulhos (SP), Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-1384-9156

Renato Viana Boy – Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó (SC), Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0001-5500-6256


FERNANDES, Fabiano; BOY, Renato Viana. Apresentação. Tempo. Niterói, v.26, n.1, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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História como diagnóstico / Tempo / 2019

Ei, não tenha medo, não tente fugir, porque a dor pode ser sua amiga, como explica, as respostas às suas perguntas …[1]

Matt Johnson

O tema desta edição é pautado pelo interesse em encontrar formas mais perceptivas de análise crítica da sociedade contemporânea e novas formas de abordagem de teorias na pesquisa histórica. Conceitos médicos ou terapêuticos como crise, patologia, diagnóstico e trauma são abundantes nas teorias críticas e na historiografia sobre a sociedade moderna. Embora tais conceitos possam ser problemáticos ( Roitman, 2014 ), eles também contêm o potencial de uma abordagem mais produtiva das perspectivas teóricas. Muitas pesquisas históricas aplicam perspectivas teóricas padronizadas a casos históricos particulares, onde a ‘patologia’ ou o conteúdo de uma crise é amplamente determinado pela perspectiva teórica escolhida. E se o ponto de partida fosse antes: como poderíamos teorizar sobre esse fenômeno, essa tendência, esse problema?

Para promover uma forma mais crítica e inovadora de diagnosticar crises e problemas na sociedade, combinamos o tema da história como diagnóstico com o interesse pela necessidade de teorização independente. Antes de apresentarmos os artigos incluídos no número, faremos um breve esboço de uma história da ‘história como diagnóstico’ e diremos algumas palavras sobre os antecedentes do tema.

O antigo conceito grego de diagnóstico está etimologicamente conectado ao conhecimento ( gnose ) e à separação ( dia -) e relacionado ao verbo grego diagnostickein , que significava examinar cuidadosamente e distinguir fenômenos anormais em um contexto médico. O conceito combinava, assim, uma dimensão de conhecimento e uma dimensão de percepção criteriosa com referência a uma condição normal ou saudável. Vale a pena notar a proximidade de significado para dois outros conceitos gregos que têm sido fundamental para o conceito de crítica: Krisis (acórdão, a separação, a decisão) e Diakrisis (discernimento, distinção) (Kudlien, 1971- 2007 ).

Embora as metáforas médicas ou doenças, curas e médicos já fossem usados ​​na antiga historiografia e pensamento político por Tucídides, Platão e Polibios entre outros ( Demandt, 1978 , pp. 25-27), foi sobretudo a partir do final do século XVIII e no século século XIX que a aplicação de conceitos e metáforas médicas à sociedade tornou-se influente na historiografia. Com o desenvolvimento da forma moderna de pensamento histórico e a ideia de ‘História’ como um processo coerente, ‘crise’ tornou-se uma ferramenta conceitual central para fazer diagnósticos do presente ( Koselleck, 1972) Koselleck apontou para o caráter dualista e moralista problemático do conceito de crise usado no discurso político que conduziu à Revolução Francesa. O tipo de filosofia da história desenvolvida durante o final do século XVIII tendia a ocultar a natureza controversa da “crise” e a naturalizá-la em termos de “desenvolvimento histórico” ( Koselleck, 1959 ).

Um fio importante na história do diagnóstico é a tradição da filosofia social, com a crítica de Rousseau à civilização moderna como um dos primeiros casos. Como aponta Honneth, um aspecto típico de tais diagnósticos é a identificação de tendências negativas de desenvolvimento, como alienação e desigualdade. ‘Crise’, neste contexto, tem sido freqüentemente usada para chamar a atenção para uma situação alarmante e um ponto de inflexão iminente, bem como para prognosticar o fim da era atual. A análise crítica de Marx do capitalismo moderno, que tem sido uma grande fonte de inspiração para o pensamento diagnóstico no século XX, é um exemplo chave ( Honneth, 2000 ; Habermas, 1973 ).

Durante o século XIX, o uso de conceitos médicos e biológicos no pensamento social tornou-se influente por meio da preferência por metáforas organicistas no romantismo, os triunfos da medicina, a influência do darwinismo e o surgimento de visões de mundo vitalistas e naturalistas. Problemas sociais, culturais e políticos eram tratados em termos de doenças e ‘degeneração’. Com referência a uma evolução esperada ou florescimento cultural, os fenômenos sociais e culturais contemporâneos que se desviaram de tais expectativas podem parecer patológicos. Foi especialmente no final do século XIX e no início do século XX que o “diagnóstico” tornou-se explicitamente usado como uma forma de crítica cultural, significativamente nos diagnósticos de Nietzsche de que a cultura europeia sofria de um excesso de conhecimento histórico e ,mais fundamentalmente, do niilismo. A psicanálise de Freud também se tornou uma fonte vital de inspiração para perspectivas diagnósticas de distúrbios psicológicos e políticos, mais obviamente talvez na Escola de Frankfurt, uma das principais correntes de pensamento empenhadas em fazer diagnósticos do presente ( Honneth, 2007 ; 2001 ).

Outra forma significativa de diagnóstico histórico do presente é representada por Michel Foucault. Foucault é especialmente interessante neste contexto também porque uma forma um tanto estereotipada de ‘Foucault’ foi muito usada na pesquisa histórica, embora o próprio Foucault entendesse a análise crítica de uma maneira muito diferente. Ele descreveu sua própria forma de história como ‘um diagnóstico do presente de uma cultura’, como uma escavação de camadas subterrâneas do pensamento contemporâneo. O objetivo deste tipo de investigação não era construir uma teoria geral estável da sociedade contemporânea, mas sim promover a autorreflexão, a autoproblematização e a autotransformação – examinar o presente a fim de torná-lo possível transcendê-lo e pensar e agir de maneira diferente.[2] Um aspecto da obra de Foucault que é particularmente relevante para esta questão temática é o papel filosoficamente produtivo da pesquisa empírica histórica na elaboração de seus diagnósticos, em oposição à aplicação de modelos de interpretação já prontos.

Como pode ser visto no esboço histórico acima, os diagnósticos do presente têm sido freqüentemente formulados por sociólogos, que combinam a filosofia social e a pesquisa empírica com uma perspectiva histórica do desenvolvimento social. Como os historiadores poderiam desenvolver sua capacidade de criar diagnósticos independentes e inovadores dos problemas e patologias da sociedade, de um regime político ou de uma tendência cultural? Como os historiadores podem lidar de forma perceptiva e crítica com as ‘crises’ e os chamados ‘eventos-limite’, como a Shoah¸ Hiroshima, Chernobyl, genocídios e guerras civis?

Para esclarecer como os historiadores podem fazer diagnósticos históricos, reunimos trabalhos de estudiosos de diferentes partes do mundo que analisam a história como diagnóstica em diferentes campos historiográficos, com ênfase em filósofos e historiadores da França, Espanha e Alemanha do século XX. século. Como o leitor descobrirá, os artigos estão relacionados a diferentes aspectos do esboço histórico acima, de Nietzsche e Freud a Foucault e a Teoria Crítica.

O artigo de Egon Bauwelinck sobre o uso do diagnóstico como metáfora por Charles Péguy mostra como o conhecimento histórico e as preocupações políticas se fundem de uma maneira que exige respostas sofisticadas. Péguy criticou a tendência do Partido Socialista de se ater a diagnósticos anteriores e destacou a importância de examinar adequadamente os problemas e as doenças e de poder aceitar a própria doença. Um aspecto intrigante do artigo diz respeito à importância da veracidade mútua entre o médico / historiador e o paciente / público para que o diagnóstico funcione como um remédio. A análise de Bauwelinck do papel de Péguy como intelectual nos convida a pensar que no cerne da sensibilidade histórica está um componente ético, no qual a sinceridade e a franqueza desempenham um papel importante.

O artigo de Juan Luis Fernández analisa uma pluralidade de exemplos de diagnósticos históricos na escrita da história espanhola no século XX e revela como diagnósticos específicos estavam ligados a “remédios” e soluções políticas preferidas. Os exemplos mostram como os diagnósticos históricos foram desenvolvidos de diferentes maneiras e responderam a outras narrativas. Fernández também analisa os elementos teóricos desses diagnósticos e dá uma contribuição para a compreensão do caráter geral dos diagnósticos históricos, consistindo em um quadro geral, um padrão de enredo, um diagnóstico e uma sugestão de terapia.

A relevância do nosso tema para um campo de pesquisa como a história da ciência pode não ser óbvia à primeira vista, mas a análise de Tiago Almeida da história filosófica da ciência de Gaston Bachelard lança luz sobre como a história da ciência e da razão podem fornecer um diagnóstico crítico da presente, articulando os obstáculos para um maior desenvolvimento da ciência e da razão e possibilitando uma transvalorização das normas epistemológicas. A ideia de razão turbulenta de Bachelard corresponde ao diagnóstico como um processo inevitavelmente turbulento, devido à interdependência entre a interpretação e o julgamento do passado e o diagnóstico das normas do presente.

Em certo sentido, o artigo de Pedro Caldas sobre o conceito de evento limite também trata de como uma disciplina científica específica pode perceber e diagnosticar seus próprios sintomas, mas neste caso centra-se na historiografia. O evento limite acaba sendo um evento que desafia o historiador e seus padrões de interpretação, mas para poder perceber isso, o historiador precisa se deixar ser afetado pelo evento. Poderia Angstbereitschaft , a capacidade de sentir Angst, talvez seja uma virtude epistêmica necessária para ser capaz de identificar eventos limites que desafiam nossos padrões de criação de sentido de orientação histórica? Assim, embora o artigo trate principalmente da historiografia contemporânea, ele se coaduna com a ênfase de Péguy na necessidade epistemológica e ética da franqueza perceptiva e da prontidão para ser diagnosticado como doente.

Em poucas palavras: esperamos que o leitor possa ver como a história como diagnóstico contém várias possibilidades e como muitas vezes envolve uma tarefa bastante complexa, autorreferencial, e que pode envolver sintomas problemáticos tanto na sociedade quanto na pesquisa. Isso sugere que dificilmente poderíamos nos excluir de tal tarefa: e quanto ao nosso próprio diagnóstico? Em certo sentido, nosso interesse pela história como diagnóstico pode, por si só, ser interpretado como um sintoma. Sentimos que algo estava coçando, uma espécie de irritação intelectual com a forma como as teorias são freqüentemente usadas e aplicadas, e sentimos a necessidade de procurar abordagens alternativas. Esse é um problema não apenas para a pesquisa, mas também para o debate público, onde as “crises” são proclamadas e as explicações dos problemas às vezes são lançadas de forma instrumental para promover objetivos políticos específicos.

O interesse por novos diagnósticos não é apenas um sintoma de nossa preocupação com o desenvolvimento de pesquisas, mas também uma reação ao caráter problemático da sociedade atual e de nossa insatisfação com os diagnósticos usuais. Essa percepção bifocal de, por um lado, o estado crítico da sociedade e, por outro, a tendência a lançar identificações e julgamentos pré-fabricados dos problemas do presente, apontou no sentido de tentar estimular o desenvolvimento. de formas mais inovadoras, perceptivas e dinâmicas de crítica e diagnóstico. O tema desta edição pode, portanto, ser visto como motivado tanto pelas patologias de que sofre a teoria histórica quanto pelas patologias de nossas sociedades atuais.

Notas

1. Da música “Phantom Walls”, escrita por Matt Johnson (The The).

2. Precisamente o caráter da filosofia de Foucault como diagnóstico do presente está em foco na análise perspicaz de Raffnsøe , Gudmand-Høyer e Thaning (2016).

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Exílio e Afastamento: considerações sobre uma hermenêutica da distância? / Tempo / 2019

A semântica dos deslocamentos é complexa: apátridas, deslocados, fugitivos, clandestinos, desenraizados, imigrantes, emigrados e muitos outros termos compõem um campo vasto. Uma avaliação terminológica rigorosa seria necessária para ordenar uma mescla de registros que descrevem situações jurídico-sociológicas, referências a condições existenciais e termos que remetem a contextos históricos. De todo modo, esse conjunto indica condições de profunda instabilidade e insegurança (Nouss, 2015).

Nessa galeria lexical, o termo exílio destaca-se. Consideramos que a amplitude de significados associados a essa categoria sustenta uma importância conceitual e metodológica específica: a experiência exílica representa um núcleo existencial / jurídico / social comum a todos os fenômenos de mobilidade forçada em nossa contemporaneidade, de tal modo que ela pode permitir a compreensão de outras terminologias sem recobrir suas especificidades.

Utilizar o termo exílio para tratar de milhões de trajetórias de deslocamento que balizaram a experiência coletiva e global do último século indica, por conseguinte, uma reconfiguração do sentido de exílio. A trajetória exilar trama uma relação tensa entre histórias e memórias, constitui biografias tocadas pela ruptura e pela descontinuidade e produz relatos que aspiram a uma coerência imaginária – esforços narrativos que lançam desafios às categorias de tempo, espaço e identidade.

Vivendo na crise dos Estados nacionais europeus depois de 1918, os exilados da contemporaneidade deslocaram-se por uma geografia instável, na qual o passado de suas existências desaparece para dar lugar a um futuro radicalmente novo, em que eles não têm pertencimento garantido, e sua tarefa de sobrevivência é um desafio físico e de produção de sentido. O presente dossiê conta com estudos sobre as diversas dimensões da experiência exilar contemporânea, trabalhos que analisam testemunhos, ações institucionais e campos de conhecimento surgidos como desdobramento dos eventos violentos associados ao fato exilar. No entanto, pensar o exílio é uma proposição que vai além do estudo de caso. Os trabalhos publicados nesta edição da revista Tempo partem da experiência do exílio para discutir as relações complexas da história com a literatura, com o campo psicanalítico e com práticas políticas diversas.

Possibilidades de análise

O exílio tem sua origem na velha prática do banimento, mas os exilados sem pátria são uma criação do Estado do século XX. Muitos pertencem à extensa galeria de personagens do deslocamento: os expatriados moram em outro país, geralmente por motivos pessoais ou sociais, sem sofrer as mais rígidas interdições; os emigrados gozam de uma situação ambígua, em que a possibilidade de escolha não lhes foi de toda retirada; funcionários coloniais, missionários, assessores técnicos, mercenários e conselheiros militares podem, em certo sentido, viver longe de sua pátria, mas não foram banidos. No entanto, o surgimento massivo de exilados sem pátria foi uma dimensão severa de sucessivas crises políticas, ideológicas e militares ocorridas nas primeiras décadas do século XX. Milhões de homens e mulheres movendo-se em uma extensão territorial global; esse é o cenário que configura a dimensão do contemporâneo.

Nesse sentido, ao considerar as transformações que marcam nosso presente, François Hartog (2013) observa que o homem deslocado foi uma figura importante na lenta construção de uma nova forma de historicidade. Atualizando o conceito de “brecha”, o autor afirma que a temporalidade vivida pelos deslocados de nosso tempo ocorre no interior de um gap temporal, em que o tempo histórico está suspenso, um tempo desorientado, situado entre dois abismos: um passado que não está abolido, mas que nenhuma orientação pode oferecer, e um futuro do qual não se faz ideia de como será. Vivendo em um tempo em trânsito, esse deslocado, exilado entre distintas temporalidades, será um observador agudo desse novo tempo.

Nesse sentido, os exilados foram os primeiros a transformar a experiência dos horrores do século XX em objeto de pensamento. Por isso, sua contribuição ao pensamento crítico foi, e ainda é, tão fundamental para a escrita da história. O desenraizamento nacional, a perda do trabalho, das ligações familiares, da língua e do contexto social e cultural transformam o exilado em um personagem dotado de uma condição fundamental para a construção de uma análise crítica do mundo contemporâneo: a condição do estranhamento e da distância.

Acompanhamos Traverso (2012) em sua proposição, ou seja, no que ele denomina hermenêutica da distância. Vivenciando o estranhamento proporcionado pelo afastamento que lhe foi imposto, os exilados e apátridas são obrigados a observar, sem nenhuma empatia, o mundo do qual foram expulsos e enfrentar eticamente o mundo para o qual se dirigiram. Crítica e compromisso (ético) são as bases da hermenêutica, quase existencial, que se tornam incontornáveis para o estrangeiro radical. A potência presente no exilado desse novo tempo é ao mesmo tempo sua tragédia, ou seja, sua impossibilidade de retorno, uma vez que o mundo material, jurídico, cultural ou pessoal foi aniquilado, transformando a distância em impossibilidade. Nesse caso, o lugar de exilio torna-se também espaço imaginativo. Diante do novo mundo de acolhida e com um futuro às vezes imprevisível pela frente, muitos reinventam suas identidades e trajetórias de vida. Um novo começo, com outro nome, religião e profissão, marca as histórias desses desenraizados.

Cabe, portanto, uma breve reflexão sobre as relações entre a experiência exilar e a escrita literária. Said (2002), ao ler Lukács, sustentou que o romance, forma literária criada a partir da fantasia, emana de uma realidade marcada pela instabilidade, na qual sujeitos comuns, mesmo os itinerantes e deserdados, pensam poder construir um mundo novo. No romance, diferentemente de na epopeia, o destino é desdito, e apresentam-se às personagens e aos leitores outros mundos possíveis. Podemos nos perguntar de que modo a literatura do exílio assumiu seu lugar como um topos da experiência humana. Ou ainda como se realiza a experiência dos intelectuais e escritores exilados, na medida em que o exílio impacta diretamente seu ofício, a saber, a produção da inteligibilidade sobre si e seu entorno. Essas questões mobilizam Federico Gerhardt na escrita de seu artigo “Decir (en) el exilio, en el siglo XX: cuestiones terminológicas, literarias y editoriales. Aproximaciones con vistas al exilio de la Guerra Civil española”, sobre os dilemas e impasses dos escritores espanhóis exilados a partir da derrota republicana e pelo início do governo franquista.

No campo dos estudos sobre trajetórias de intelectuais, publicamos os textos de Benedetta Calandra, “Cultural philanthropy and political exile: the Ford Foundation between Argentina and The United States (1959-1979)”, e de Luiza Nascimento dos Reis, “O exílio africano de Paulo Farias (África ocidental, 1964-1969)”. A partir de casos coletivos ou individuais, ambas trazem importantes contribuições para a compreensão da participação de pesquisadores latino-americanos na formação dos campos disciplinares nas áreas de ciências sociais.

Calandra faz uma análise das políticas de financiamento e apoio a intelectuais argentinos fomentada pela Fundação Ford, nos Estados Unidos. O artigo estuda a atuação da agência americana a partir de 1959, momento crítico das relações interamericanas durante a Guerra Fria. A pesquisa está baseada em fontes com informações sobre as ações que permitiram a diversos intelectuais escaparem das perseguições políticas iniciadas no final da década de 1950 na Argentina.

O trabalho de Luiza Nascimento, por sua vez, apresenta a trajetória de um intelectual negro brasileiro após o Golpe de 1964. Em seu artigo, a autora descreve, a partir da correspondência de Farias com Pierre Verger, não apenas um percurso exilar, mas principalmente elementos para compreendermos a construção do campo de estudos africanos no Brasil.

O sujeito exilado sai sem saber se retorna à sua pátria. Seu projeto político e de vida foi derrotado, e, a partir desse dado, ele poderá ou não se reinventar no exterior, ou simplesmente desistir. Suas perspectivas, entre elas a do fim do exílio, orientarão a forma com que ele se relacionará com seu passado, deixado na terra natal, e recriará seu presente e futuro. Fato é que o exílio impõe a ruptura com um mundo de referências basilares, obrigando o exilado à inescapável experiência do desenraizamento (Todorov, 1999). A diferença está no que fazer a partir dessa experiência, que, em um primeiro momento, expressa apenas perdas dolorosas.

O luto doloroso decorrente da sobrevivência e a dificuldade do retorno são um campo de estudos que radicaliza o compromisso ético dos historiadores e cientistas sociais com seu presente. A mobilização de testemunhos como fonte para a pesquisa e a atenção para as trajetórias individuais e coletivas em um contexto de reconstrução são problemas analisados por Mario Ayala em seu artigo “‘Reaparecer en el exilio”: experiencias de militantes argentinos sobrevivientes de desaparición forzada en Venezuela (1979-1984)”. O autor aborda com competência os problemas surgidos no processo de chegada a outro país e as relações, por vezes tensas, entre os diversos agentes presentes no processo exilar.

Em uma abordagem próxima, na qual sobressai o tema do pós-exílio, María Soledad Lastra analisa o processo de elaboração conceitual do termo “retorno”, relacionando-o com o campo dos direitos humanos e da saúde mental. Em seu texto “‘Dejar de ser síntoma con el silencio’: la inscripción del exilio-retorno en el campo de la salud mental en la posdictadura argentina (1983-1986)”, a autora criteriosamente analisa a produção teórica e clínica das equipes de saúde mental de instituições argentinas dedicadas à recepção de exilados argentinos nos anos 1980, trazendo uma abordagem original sobre o problema do retorno.

Ao editarmos este dossiê, acreditamos apresentar ao leitor a possibilidade de avaliar o tema tão incômodo quanto presente de forma complexa e múltipla. A experiência do deslocamento, que hoje atinge milhões de seres humanos, não é apenas um tema que desafia os conceitos legais ou a norma jurídica. Mais do que isso, como categoria trágica, o exílio / deslocamento é parte do lento e desafiador processo de nossa contemporaneidade de redefinição de nossas concepções de tempo, espaço e cultura.

Referências

AGAMBEN, G. O que é ser contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. [ Links ]

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1979. [ Links ]

HARTOG, F. Regimes de historicidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. [ Links ]

NOUSS, A. La condition de l’éxile. Paris: Editions de La Maison des Sciences de l’Homme, 2015. [ Links ]

QUADRAT, S. (Org.). Caminhos cruzados: história e memória dos exílios latino-americanos no século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2011. [ Links ]

SAID, E. Reflexões do exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. [ Links ]

TODOROV, T. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Record, 1999. [ Links ]

TRAVERSO, E. L’histoire comme champ de bataille: interpréter les violences du XXe siècle. Paris: La Découverte, 2012. n. 359 [ Links ]

Silvina Jensen – Universidad Nacional del Sur (UNS) – Bahia Blanca- Buenos Aires, Argentina. Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas-CONICET – Buenos Aires, Argentina. E-mail: [email protected]
http: / / orcid.org / 0000-0002-9166-8852

Mauricio Parada – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-2959-5215


JENSEN, Silvina; PARADA, Mauricio. Apresentação. Tempo. Niterói, v.25, n.2, maio / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Corporativismos: experiências históricas e suas representações ao longo do século XX / Tempo / 2019

O corporativismo foi frequentemente apresentado por intelectuais, associações, grupos de poder e governos como resposta a um período de crise e alternativa às distorções do paradigma liberal na representação dos interesses produtivos. Essa terceira via entre socialismo e liberalismo pretendia criar uma nova ordem social capaz tanto de “reprimir quanto de cooptar o movimento trabalhista, os grupos de interesse e as elites, por meio dos legislativos orgânicos” (Pinto e Martinho, 2016, p. 19).

As características acima delineadas explicam como o corporativismo demonstou ter sido um projeto político, ideológico e econômico de sucesso, em especial durante os anos convulsivos do período entre as duas guerras mundiais, registrando êxito sobretudo nos regimes autoritários de direita na Europa e na América Latina.

Se é inegável que nos anos entre a promulgação da Carta del Lavoro, de 1927, e o fim da Segunda Guerra Mundial o corporativismo viveu seu apogeu em termos de especulação intelectual e vivência histórica, esse fenômeno merece também ser investigado além do marco cronológico e das correntes da direita autoritária (Schmitter, 1974). Este dossiê, inserindo-se no recente debate sobre o corporativismo como fenômeno transnacional (Pasetti, 2016Pinto, 2017Pinto e Finchelstein, 2018), quer investigá-lo como um acontecimento complexo e multifacetado do ponto de vista teórico e de suas experiencias práticas e representativas.

As páginas que se seguem abordam os casos inglês, brasileiro, italiano e português, num período compreendido entre a Primeira Guerra Mundial e a queda do regime salazarista, em 1974, tendo como fil rouge comum a análise dos sistemas políticos contemporâneos em períodos de crise e transição e o papel representado pelo corporativismo em meio a tais mudanças.

Os anos da Grande Guerra no Reino Unido são o cenário do artigo de Valerio Torreggiani. A crise política, militar, e a desconfiança em relação ao sistema liberal, em conjunto com a necessidade sempre mais premente de disciplinar as massas, deram lugar a um intenso debate entre os intelectuais britânicos acerca da necessidade de “garantir a ordem social, implementar a eficiência econômica e realizar a representação funcional-corporativa” (infra p. XX).

Por meio da análise de três momentos tópicos – a conferência organizada no Ruskin College, as atividades desenvolvidas pelo Romney Street Group e o relatório produzido pela Garton Foundation em 1916 -, Torreggiani reconstrói o intenso debate que envolveu intelectuais de várias afiliações políticas para promover uma nova democracia econômica, baseada numa tipologia de representação corporativo-empresarial, que tivesse em seu centro os representantes das associações de interesses.

Essa medida, embora elaborada para responder à crise causada pela Grande Guerra e às mudanças sociais, econômicas e políticas do século XX, além de ter por fim encontrar uma nova ordem capaz de disciplinar a sociedade e suas relações laborais, acabou, paradoxalmente, encontrando espaços limitados nas políticas promovidas pela classe dirigente conservadora, que, assustada pela exacerbação do conflito irlandês e pelas notícias provenientes de Moscou, decidiu não apoiar por completo um corporativismo que previa a cooperação entre as classes sociais.

Da mesma forma que o artigo de Torreggiani demonstra que o conceito de corporativismo foi muito versátil e que as hipóteses de suas realizações práticas foram debatidas também em estados democráticos, com a presença marginal de movimentos fascistas, o estudo de Marco Vannucchi ilustra, de modo original, como, no seio do corporativismo brasileiro, surgiram forças oposicionistas ao regime. O tema principal do artigo é a complexa relação entre o Estado e o corporativismo das classes médias na era Vargas, com enfoque específico sobre as profissões liberais.

Mais uma vez, o corporativismo, entendido como projeto político, econômico e social, se delineia nas páginas do texto como uma solução de ordem perante uma fase de transição – no caso especifico, a surgida após a revolução de 1930, com a proscrição das instituições da democracia liberal-oligárquica. Conquanto Vannucchi defina o Estado Novo como o momento forte do corporativismo, ao mesmo tempo sua análise das posições tomadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo Sindicato dos Advogados nos anos 1944 e 1945 prova como a estrutura corporativa não foi granítica, sobretudo por não ter sido capaz de controlar a oposição ao regime exercida pelas profissões liberais ao fim da ditadura varguista.

O fim do regime corporativo e o papel desempenhado pelo corporativismo em meio às oposições ao fascismo é também o tema central dos artigos de Maurizio Cau e Laura Cerasi, mas o cenário é a Itália dos anos de transição democrática, em 1945. Os recentes estudos sobre o corporativismo fascista (Santomassimo, 2006Stolzi, 2007Gagliardi, 2010Cassese, 2010Cerasi, 2017) asseveram que o ordenamento corporativo previsto pelo regime de Mussolini foi um projeto político, institucional e econômico de sucesso, tanto por ter tido impacto no debate intelectual quanto pelas práticas corporativas em nível mundial (Pasetti, 2006).

Da mesma forma, evidenciam que, para compreender a fundo o corporativismo é necessário reconstruir o debate sobre esse projeto, analisando as diferentes matrizes ideológicas que o animaram desde o início do século XX até os anos imediatamente sucessivos à queda do regime. Esse é o ponto de partida dos textos de Cerasi e Cau. Os dois artigos traçam um perfil das especulações a respeito do corporativismo em meio às forças políticas democráticas italianas e seus relativos pontos de contatos, fricções e incompatibilidades com o fascismo.

A escolha da análise de longa duração é particularmente interessante, em especial quando os dois textos analisam o que resta do corporativismo, definido por Cau como uma “herança incômoda”, nos anos da definição da Constituição Republicana. Focando a atenção no mundo católico, o autor ilustra como o ponto crucial do corporativismo continuou a alimentar o debate nos anos de redefinição do sistema democrático, tornando-se um dos principais protagonistas da nova Itália republicana.

Cerasi, por sua vez, dissolve a questão da herança do corporativismo fascista sublinhando como o leitmotiv entre as forças políticas que emergiram vitoriosas da luta contra o regime e a experiência política anterior se encontra não no corporativismo per si, que já desde a metade dos anos 1930 havia perdido a força inovadora e aglutinadora, mas na dimensão fundadora desempenhada pelo trabalho, entendido como componente econômico, social e ético do Estado italiano.

Essa é uma centralidade que a autora identifica também na sua forma representativa simbólica, seja no monumento icônico do fascismo – o Palazzo del Lavoro, situado no bairro do Eur, em Roma -, seja naquele documento-monumento representado pela nova Constituição italiana, que no seu primeiro artigo afirma que “a Itália é uma República Democrática baseada no trabalho”.

A abordagem de longo prazo carateriza, do modo similar, o artigo de Dulce Freire e Nuno Estêvão Ferreira dedicado à experiência corporativa no Estado Novo português. É interessante analisar esse texto em comparação com os dois anteriores a fim de destacar os pontos de contato e as divergências entre os sistemas corporativos italiano e português. Valendo-se de um novo conjunto de fontes, Freire e Ferreira reconstroem a criação e a estabilização do sistema corporativo português e sua difusão no território, estabelecendo que esse sistema não surgiu de forma casuística ou desordenada, como afirmado em diversos estudos recentes, mas como um projeto sistemático e moldado nas várias fases do regime.

Os estudos de Cau, Freire e Ferreira provam, portanto, que, para entender completamente o fenômeno do corporativismo em cada Estado – por meio de uma perspectiva mais ampla, como um fenômeno transnacional -, este deve ser pensado não como um instrumento de retórica institucional ou mera criação de estruturas administrativas, mas como um sistema que, mesmo apresentando algumas distorções, acabou por ser funcional e dinâmico ao longo de varias décadas.

No caso português, graças à extensão cronológica maior, os autores mostram que o ordenamento corporativista do Estado Novo, assim como seu ditador, foi caracterizado por aquela “arte de saber durar” (Rosas 2012) que o tornou capaz de se adaptar aos vários momentos políticos e se moldar em função do território, de modo a manter um controle funcional sobre as principais atividades econômicas e, mais em geral, contribuir para preservar o controle político sobre a população.

Em conclusão, os estudos que apresentamos neste dossiê procuram oferecer um novo olhar acerca do fenômeno do corporativismo ao revelar sua poliedricidade política e sua duração de longo prazo. Em particular, o dado mais inovador que emerge da leitura dos textos aqui recolhidos é a análise da capacidade de adaptação e preservação – no que diz respeito a alguns aspectos -, bem como de remoção – no tocante a outros -, que o corporativismo teve dentro das grandes mudanças e os desafios que caraterizaram as sociedades ocidentais ao longo do século XX.

Referências

CASSESE, Sabino. Lo stato fascista. Bolonha: Il Mulino, 2010. [ Links ]

CERASI, Laura. Rethinking Italian Corporatism: Crossing Borders between Corporatist Projects in Late Liberal Era and the Fascist Corporatist State: Topics, Variances and Legacies. In: PINTO, António Costa. Corporatism and Fascism: The Corporatist Wave in Europe. Londres: Routledge, 2017, p. 103-123. [ Links ]

GAGLIARDI, Alessio. Il corporativismo fascista. Roma: Laterza, 2010. [ Links ]

PASETTI, Matteo. L’Europa corporativa: una storia transnationale tra due guerre mondiali. Bolonha: BUP, 2016. [ Links ]

PASETTI, Matteo(Ed.). Progetti corporative tra le due guerre mondiali. Roma: Carocci, 2006. [ Links ]

PINTO, António Costa. Corporatism and Fascism: The Corporatist Wave in Europe. Londres: Routledge, 2017. [ Links ]

PINTO, António Costa; FINCHELSTEIN, FedericoAuthoritarianism and Corporatism in Europe and Latin America: Crossing Borders. Londres: Routledge, 2018. [ Links ]

PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Palomares(Eds.). A vaga corporativa: corporativismo e ditaduras na Europa e na América Latina. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2016. [ Links ]

ROSAS, Fernando. Salazar e o poder: a arte de saber durar. Lisboa: Tinta da China, 2012. [ Links ]

SANTOMASSIMOLa terza via fascista: il mito del corporativismo. Roma: Carocci, 2006. [ Links ]

SCHMITTER, Philippe. Still the Century of Corporatism? The Review of Politics (Cambridge), n. XXXVI, v. 1, 1974. [ Links ]

STOLZI, Irene. L’ordine corporativo: poteri organizzati e organizzazione del potere nella riflessione giuridica dell’Italia fascista. Milão: Giuffré, 2007. [ Links ]

Cláudia Maria Ribeiro Viscardi – Universidade Federal de Juiz de Fora- Juiz de Fora (MG) – Brasil. E-mail: [email protected]
http: / / orcid.org / 0000-0002-0277-4478

Annarita Gori – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa – Lisboa- Portugal. E-mail: [email protected] 
http: / / orcid.org / 0000-0002-8703-8700


VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro; GORI, Annarita. Apresentação. Tempo. Niterói, v.25, n.1, jan. / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

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O governo da Justiça e os magistrados no mundo luso-brasileiro / Tempo / 2018

Ao apresentarmos a proposta do dossiê O governo da justiça e os magistrados no mundo luso-brasileiro para a Revista Tempo, no ano de 2016, pretendíamos reunir artigos que trouxessem novas perspectivas para a geração mais recente de historiadores interessados na temática. Nos últimos anos, após a retomada dos estudos sobre a administração colonial e seus principais agentes, um novo olhar vem sendo lançado sobre a história social das instituições jurídicas e dos magistrados. Esse renovado interesse pode ser facilmente identificado em razão do aumento gradativo de dissertações e teses sobre o tema, em diferentes programas de pós-graduação no Brasil, bem como em virtude de diversos eventos2 e de publicações recentes3.

As novas pesquisas trilham de alguma forma o caminho aberto com a publicação da obra “Burocracia e sociedade no Brasil colonial”. O trabalho de Stuart Schwartz, publicado originalmente em língua inglesa, no ano de 1973, e reeditado em 2011, foi produzido em um ambiente com grande carência de estudos sobre as instituições metropolitanas e das escassas pesquisas sobre a magistratura portuguesa4. Se, por um lado, a obra de Schwartz sempre representou uma contribuição fundamental para compreendermos o funcionamento do Império português – e suas reflexões acerca das relações entre a sociedade e o Estado serem amplamente difundidas no meio acadêmico brasileiro -, por outro, durante muitos anos sua proposta de olharmos com atenção para a dimensão humana da burocracia judicial permaneceu sem muito seguidores no Brasil.

Entretanto, a partir do incremento das pesquisas sobre a magistratura portuguesa e à luz de novas fontes disponíveis, aos poucos, o campo fértil de possibilidades analíticas, revelado por Stuart Schwartz há quase 40 anos, passou a conquistar novos adeptos. As questões observadas por Schwartz, como a importância do aparelho judicial para a administração, e a larga esfera de poder dos magistrados e sua influência na sociedade colonial, ainda hoje seguem chamando a atenção de um número cada vez maior de jovens pesquisadores brasileiros. Portanto, por inúmeras razões, sua obra, seja pela temática, seja pela metodologia ou pela discussão teórica, segue até hoje influenciando consideravelmente as pesquisas sobre o governo da justiça.

Aos poucos, mas em movimento crescente, dissertações, teses e estudos de casos, começam a revelar “os rostos” dos indivíduos nomeados para as diferentes instâncias jurídicas. Os novos trabalhos buscam compreender a organização da justiça no mundo luso-brasileiro, reavaliando e repensando o papel dos magistrados – juízes de fora, ouvidores e desembargadores – na construção e na manutenção do Império português. No jogo de poderes entre as forças reinóis contra os interesses locais na colônia, os magistrados constituíam a espinha dorsal da monarquia, mas ao mesmo tempo eles formaram um grupo poderoso, cujo interesses eram às vezes independentes. Servindo como representantes do poderio imperial e, ao mesmo tempo, como vetores de grupos ou indivíduos coloniais, o papel dos magistrados era central no funcionamento do império.

Assim, iniciamos o dossiê com um artigo de António Manuel Hespanha que nos brinda com uma exposição sobre o retrato social dos juristas por meio de um arguto exame de vários tratados de deontologia jurídica. Sua análise coloca para os historiadores a relevância de considerarmos nos estudos prosopográficos, o que denomina de contextualização ideográfica, ou seja, a consideração dos discursos que os juristas produziam sobre si próprios e sobre a sua atividade. As questões cuidadosamente tecidas por António Manuel Hespanha, autor cujas reflexões são referências primordiais para qualquer estudo sobre o governo da justiça e o mundo da magistratura no Antigo Regime, chamam atenção para a importância de incorporarmos a história do direito letrado na construção das pesquisas relacionadas à história social dos juristas.

No segundo artigo, Isabele Mello descortina o processo de criação dos três primeiros tribunais de justiça instituídos na América portuguesa. Sua pesquisa desvenda as motivações que levaram as áreas consideradas de vital importância desde o início da colonização – Bahia, Rio de Janeiro e Maranhão – a serem escolhidas como locais privilegiados para receber os tribunais da Relação. Nesse sentido, ao seguir o caminho já trilhado por Stuart Schwartz e Arno Wehling, a autora nos traz uma análise inédita sobre o estabelecimento do Tribunal da Relação do Maranhão. Seu texto abre caminho para repensarmos o papel dos tribunais de justiça, tanto no âmbito do Brasil como no Estado do Maranhão, e busca uma melhor compreensão do funcionamento político e jurídico dessas instituições em relação à administração dos territórios.

O artigo de Patrícia Valim nos revela parte da atuação dos desembargadores do tribunal da Relação da Bahia na condução das devassas da Conjuração Baiana, destacando as complexas relações que poderiam ser forjadas entre os magistrados e o governador-geral na imbricada constelação de poderes do sistema administrativo da capitania. Em seu texto, a autora nos faz repensar a cultura jurídica do fim do século XVIII, bem como as possibilidades de ingerência dos governadores frente à indicação de desembargadores para realização de diferentes diligências no império ultramarino.

Em seguida, o texto de Eduardo Borges aborda o processo de mobilidade social dos indivíduos nascidos na Capitania da Bahia, por meio de uma amostragem das leituras de bacharel realizadas ao longo do século XVIII. O autor nos mostra também como o pertencimento a um tribunal da Relação era uma mercê muito cobiçada, destaca a importância do estatuto de desembargador como capital simbólico almejado por parte da elite baiana, que buscou a distinção social pela via da carreira jurídica. A pesquisa realizada por Eduardo Borges aponta ainda para o número expressivo de indivíduos nascidos na Bahia, e provenientes das elites locais, que ingressaram na Universidade de Coimbra.

Finalizando o dossiê, temos o trabalho de Claúdia Atallah que discute uma outra faceta importante da organização judicial nos trópicos: a aplicação da justiça régia nas capitanias donatariais, vertente ainda pouco explorada na historiografia brasileira. Com o interessante estudo de caso, centrado no processo de aquisição régia da Capitania da Paraíba do Sul dos Campos dos Goytacazes e na atuação do Ouvidor-Geral Matheus Nunes José de Macedo, seu texto nos apresenta a complexa trama de disputas de poder e de negociação entre os agentes régios e as elites locais. Além disso, expõe o papel fundamental do tribunal da Relação da Bahia como arbítrio na resolução dos conflitos entre diferentes autoridades locais.

Esperamos que o leitor encontre nas páginas a seguir textos que lhe permitam aprimorar seu conhecimento sobre a história da administração da justiça e o universo da magistratura. Este dossiê contribui para uma temática instigante e desafiadora de um campo de estudos cada vez mais fecundo de nossa historiografia que, por sua vez, está chamando a atenção, gradativamente, de um número maior de pesquisadores brasileiros.

Notas

1. Os eventos vêm ocorrendo em diferentes localidades do Brasil. Como exemplo podemos citar: o seminário A Justiça no Brasil Colonial (2015), organizado por Maria Fernanda Bicalho (UFF), Ronald Raminelli (UFF), Vírgínia Almôedo de Assis (UFPE) e Isabele Mello (UFF / CAPES), na Universidade Federal Fluminense; e o Colóquio Internacional Justiças, Governo e Bem Comum (2015), organizado por Júnia Ferreira Furtado (UFMG), Claúdia Atallah (UFF / Campos) e Patrícia Ferreira (UFMG), na Universidade Federal de Minas Gerais. Além disso, vale destacar que, desde a edição de 2014, o Encontro Internacional de História Colonial (EIHC) passou a contar com um simpósio temático denominado “O governo da justiça: poderes, instituições e magistrados (sécs. XVII-XIX)”, coordenado por Antônio Filipe Pereira Caetano (UFAL) e Isabele Mello (UFF / CAPES).

2. Entre as novas publicações podemos destacar: BICALHO, Maria Fernanda; ASSIS, Virgínia Maria Almoêdo de; MELLO, Isabele. “Justiça no Brasil Colonial. Agentes e práticas” (2017); MONTEIRO, Nuno Gonçalo; FRAGOSO, João. “Um Reino e suas Repúblicas no Atlântico” (2017), entre outras obras já citadas nos artigos do dossiê.

3. Hoje, esse panorama já foi significativamente alterado, e temos contribuições importantíssimas de autores portugueses, como António Manuel Hespanha, Antônio Barbas Homem, José Subtil e, mais recentemente, Nuno Camarinhas.

Isabele Mello – Instituto de História da Universidade Federal Fluminense- Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: [email protected]

Stuart Schwartz – Departamento de História da Universidade de Yale- New Haven – Estados Unidos. E-mail: [email protected]


MELLO, Isabele; SCHWARTZ, Stuart. Apresentação. Tempo. Niterói, v.24, n.1, jan. / abr., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Amazônia e História Global / Tempo / 2017

Desde o final do século XVIII, o que o hoje conhecemos como a região amazônica da América do Sul passou principalmente a ser identificada a partir de vários conceitos relativos ao mundo natural: Floresta Amazônica, Selva Amazônica, Floresta Equatorial da Amazônia, Floresta Pluvial ou Hileia Amazônica. Foi precisamente o cientista prussiano Friedrich Alexander von Humboldt (1769-1659) quem usaria o termo hileia (Hyleae) para denominar e centralizar essa região no planeta. A marca do território, porém, é muito mais antiga. Desde 1540, quando Francisco de Orellana (1490-1550) desceu o imenso paraná-assu dos tupis, o batismo do rio Amazonas correu mundo, evocando imagens da mitologia grega e das narrativas indígenas. Da natureza à história, a ideia de Amazônia começava a ser construída. Em 1833, Ignacio Accioli Cerqueira e Silva (1808-1865) utilizaria a expressão “País das Amazonas” para denominar a extensa área do antigo estado do Grão-Pará e Maranhão, nos tempos da América colonial portuguesa. Essa noção faria percurso de mão dupla no campo científico oitocentista, entre a ilustração e o Romantismo, tanto que, em 1835, Friedrich Moritz Rugendas (1802-1858) utilizaria “região do Amazonas” para nomear a região Norte do Brasil, enquanto o barão Frederico José de Santa Anna Nery (1848-1901) retomaria a ideia de “País das Amazonas” em uma publicação em Paris, em 1885. Nery foi o ponto de partida de uma vasta intelectualidade “nativa” que utilizaria um conceito de Amazônia com forte acento histórico, geográfico e cultural, no qual se sobressairiam José Veríssimo, José Coelho da Gama Abreu, Ignacio Moura, Euclides da Cunha, Henrique Santa Rosa, Alfredo Ladislau e Eidorfe Moreira.

Está claro, portanto, que o conceito de Amazônia pode variar dependendo do ponto de vista fisiográfico, geomorfológico, biogeográfico, político e histórico. Por isso mesmo, a proposta deste dossiê temático foi a de reunir estudos sobre a Amazônia brasileira e as fronteiras amazônicas da América do Sul, do Atlântico e do Caribe, e seus diálogos com o campo historiográfico internacional da chamada global history. Tomando como premissa que, em si, a Amazônia sempre foi um espaço de fronteiras, de políticas transnacionais e de relações sociais, intelectuais e econômicas em escala mundial, apresentamos aqui cinco trabalhos que manejam diferentes histórias conectadas e cruzadas em distintas escalas de leitura temporal e espacial com passagem pelo locus amazônico, real ou imaginário, histórico, literário ou artístico, passado ou presente. Ancorados em importante e múltiplo debate historiográfico, desde a economia-mundo, de Braudel, Wallerstein e Tomich, passando pelas connected histories, de Sanjay Subrahmanyam, Serge Gruzinski e François Hartog, seguindo pela histoire cruzée, de Michael Werner e Bénédicte Zimmermann, até distinções pontuais entre a global history, a world history e a transnational history, nas obras de Hugo Vengoa e Sandra Ficker, os vários artigos compartilham da necessidade de ampliar os objetos de análise para além das fronteiras nacionais. Assim também, revelam esforço em romper com a tradicional unidade do Estado-nação e oferecer uma interpretação alternativa aos “modelos” centrados a partir de “casos” europeus.

Mark Harris apresenta uma releitura dos primeiros relatos sobre a Amazônia, de finais do século XV e primeira metade do século XVI, buscando compreendê-los como elementos importantes para a compreensão das sociedades ameríndias e suas dinâmicas históricas no momento da conquista. Com isso, aprofunda uma reflexão consagrada a partir da pesquisa arqueológica que vê o momento da conquista como a irrupção dos europeus em um mundo em plena ebulição, revelando também as múltiplas conexões entre as diversas partes da Amazônia no momento da chegada dos ibéricos.

Em seu texto sobre contrabando nas fronteiras luso-hispânicas da Amazônia, Sebastián Gómez González revela os inúmeros interesses envolvidos e as complexas relações estabelecidas nas zonas de fronteira, para além dos interesses das Coroas ibéricas. Ao estudar o contrabando entre as Amazônias hispânica e portuguesa, o autor não só lança luz sobre as relações entre esses mundos considerados quase que excludentes pelas historiografias nacionais, como também permite conectar duas outras regiões, também apartadas historiograficamente uma da outra: as terras baixas e as terras altas, ou a selva e os Andes e sua zona de transição, o pé de monte.

O artigo de Rafael Ale Rocha também está voltado para o problema da fronteira, questão central na região amazônica ao longo de todo o período colonial e depois das independências das nações sul-americanas. Ao analisar os conflitos em torno do Cabo do Norte e das pretensões portuguesas e francesas sobre essa região, o autor reinsere a Amazônia em uma reflexão mais global e a conecta com a compreensão de seu lugar nos respectivos impérios a partir dos contextos mais globais nos quais se insere o problema das fronteiras. Faz isso, principalmente, a partir da correspondência trocada por um governador do estado do Maranhão e autoridades francesas e do Reino português.

Daniel Souza Barroso e Luiz Carlos Laurindo Junior buscam analisar as dinâmicas da escravidão no vale amazônico nos quadros da economia-mundo capitalista, revisitando um clássico debate historiográfico sobre a importância e a efetividade econômica e demográfica da escravidão negra no Norte do Brasil. Demonstrando, de modo inovador, o papel da reprodução endógena na manutenção do escravismo na Amazônia e atualizando o diálogo com Wallerstein e Tomich, os autores propõem uma reflexão sobre a economia escravista amazônica, cotejada com a chamada segunda escravidão, faceta mais conhecida da história global das relações de trabalho compulsório no século XIX.

Aldrin Moura de Figueiredo e Silvio Ferreira Rodrigues investem sobre a questão do “centro” e da “periferia” no contexto da arte global, tomando como parâmetro analítico a circulação de cópias de pintura europeia em Belém do Pará, na segunda metade do século XIX, em diálogo com outros centros e periferias de arte, como Roma, Lisboa, Istambul e Santiago. O contexto mais amplo é o do movimento internacional de renovação do catolicismo, conhecido como ultramontanismo, romanização ou reforma católica, no qual se destacou a atuação do bispo do Pará d. Antônio de Macedo Costa (1830-1891), durante o pontificado de Pio IX. Para os autores, esse movimento testemunha a pedagogia e os debates políticos na história do catolicismo romano e brasileiro do século XIX, evidenciando conexões artísticas, intelectuais e religiosas entre o Vaticano e a América do Sul como parte do movimento internacional de renovação do catolicismo.

Esperamos que a leitura dos artigos do dossiê permita a compreensão de uma Amazônia (ou de várias Amazônias, no tempo e no espaço) que tem de ser entendida a partir de sua complexidade e, principalmente, das múltiplas conexões que dão sentido à sua história, superando uma historiografia tradicional que ainda insiste em pensá-la e explicá-la a partir dos quadros dos Estados nacionais.

Aldrin Moura de Figueiredo – Faculdade de História, Universidade Federal do Pará – Belém – Brasil. E-mail: [email protected]

Rafael Chambouleyron – Faculdade de História, Universidade Federal do Pará – Belém – Brasil. E-mail: [email protected]

José Luis Ruiz-Peinado Alonso – Departamento de História e Arqueologia, Universidade de Barcelona – Barcelona – Espanha. E-mail: [email protected]


FIGUEIREDO, Aldrin Moura de; CHAMBOULEYRON, Rafael; ALONSO, José Luis Ruiz-Peinado. Apresentação. Tempo. Niterói, v.23, n.3, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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O tráfico de Escravos Africanos: Novos Horizontes / Tempo / 2017

A escravização e o transporte forçado de africanos para as Américas possibilitaram a exploração intensiva da mão de obra de milhões de indivíduos, influenciando profundamente o desenvolvimento das sociedades americanas, das nações europeias diretamente envolvidas na colonização e das sociedades africanas escravizadoras e escravizadas. O tráfico de escravos e as lutas por sua extinção no século XIX foram fundamentais para definir as identidades de negros e brancos, legando importantes consequências socioculturais no mundo atlântico. Por isso, esses temas seguem inspirando profícuos trabalhos nos campos das ciências humanas, notadamente na história. Desde o lançamento do banco de dados Voyages (<slavevoyages.org>) em 2008,2 esses estudos ganharam uma ferramenta central de investigação. Totalizando informações de aproximadamente 35 mil viagens pelo Atlântico, Voyages tornou possível redimensionar os dados até então conhecidos sobre o infame comércio de seres humanos. Hoje, sabemos que cerca de 12,5 milhões de indivíduos foram embarcados e transportados em condições degradantes em navios de mais de uma dezena de nações. Desses, apenas 10,7 milhões chegaram vivos aos portos de desembarque. Graças ao Voyages, sabemos atualmente também mais sobre a distribuição geográfica desses africanos, as condições a bordo dos navios e outras características importantes do tráfico que gerações anteriores de historiadores.

Além de ser uma monumental fonte de registros sobre o tráfico, Voyages tem influenciando a constituição de outros bancos de dados que vêm se demonstrando ferramentas fundamentais que possibilitam aos estudiosos enveredarem por investigações inovadoras que tanto têm contribuído com novos entendimentos da história da migração forçada de seres humanos. A cada pesquisa que se inicia, um minucioso perfil dessa atividade se desvela. Estudos recentes vêm investindo em aspectos originais que não foram contemplados na plataforma online, mostrando que, mais do que uma operação mercantil, o comércio de africanos provocou transformações em diferentes esferas conectadas pelo tráfico. E não apenas aquelas do contexto atlântico, pois foi um fenômeno de dimensões globais, impactando regiões a milhares de quilômetros de distância.

O objetivo deste dossiê é trazer em primeira mão alguns resultados atuais, inovadores e originais sobre o trato negreiro que vêm renovando a historiografia sobre o assunto. Assim, oferecemos aos leitores textos que tenham como tema principal o comércio de africanos a partir de perspectivas e abordagens diversificadas.

O artigo “Ending the history of silence: reconstructing european slave trading in the Indian Ocean”, de Richard Allen, que abre este dossiê, é inovador em vários aspectos. Primeiramente, por abordar com profundidade um tema que ainda permanece renegado pela historiografia do tráfico de escravos: o comércio de cativos realizado nas águas do Índico, rompendo com um padrão “atlântico-cêntrico”.4 Em segundo, por apresentar uma meticulosa análise de documentos recentemente inventariados da Companhia das Índias Orientais Britânica dos séculos XVII e XVIII e de viagens francesas e portuguesas pela localidade, cobrindo um período que vai de 1670 aos anos 1830. Ao deslocar seu campo de estudo para o Índico, Allen propõe que os historiadores passem a analisar esse comércio como uma atividade global, e não apenas regional, dentro de uma imbricada rede mercantil, envolvendo comerciantes de diversas nações europeias e de outras regiões, bem como a escravização de milhares de africanos, indianos, malaios, chineses e outros povos que circundavam o Mare Indicum. Essas atividades impactaram de forma variada e generalizada os Estados e as sociedades locais. Allen revisita também o movimento abolicionista que tomou forma no Índico pari passu àquele do Atlântico, que propunha o fim do comércio de cativos e da utilização da mão de obra escrava, demonstrando, assim, as conexões existentes dessa atividade global. Na parte final de seu artigo, ele lança um estimulante desafio, apontando várias questões que ainda carecem de análises e abordagens mais aprofundadas para que a atividade mercantil escravista do Índico atinja a devida importância no âmbito da historiografia.

Estímulos a novas pesquisas relacionadas com tráfico de escravos também são sugeridos em “Patterns in the intercolonial slave trade across the Americas before the nineteenth century”. Escrito em coautoria por Gregory E. O’Malley e Alex Borucki, esse é o segundo artigo que compõe o dossiê. Nesse texto, os autores focam o estudo das rotas dos escravos no continente americano, outra dimensão da migração forçada de africanos repleta de lacunas a serem preenchidas pelos investigadores. Para muitos africanos escravizados, a chegada a um porto americano após uma dolorosa travessia atlântica não significava o fim da sofrida jornada, mas apenas uma etapa de um caminho que estava por ser concluído. A partir de uma análise qualitativa, os autores buscam esquadrinhar onde e por que as rotas de escravos se desenvolveram nas Américas. O foco da investigação recai sobre o período anterior às abolições do comércio de escravos britânico e norte-americano. Os autores elaboram uma tipologia para diferenciar as modalidades dessa atividade escravista. De forma geral, o tráfico intercolonial se dividia em duas grandes categorias, intraimperial e transimperial, com três ramificações cada, decorrentes das condições de tributação, de legalidade, da capacidade econômica e da política imperial. O bem-sucedido trabalho ora apresentado é um refinado arcabouço conceitual que nos permite enxergar com mais clareza os padrões da prática mercantil escravagista intra-americana. Não à toa, trata-se de um texto que reflete inquietações intelectuais de um grupo de historiadores partícipes de um projeto maior que busca desenvolver uma ampla base de dados intitulada Final Passages: The Intra-American Slave Trade Database. Inspirado pelo Voyages, esse conjunto de informações visa a levantar e tornar público elementos sobre as viagens de escravos pelas Américas. Assim, ao final do artigo, os autores incentivam que mais pesquisadores passem a se dedicar a essa modalidade da migração forçada dos africanos e de seus descendentes que tanto contribuíram para moldar as diversas sociedades americanas nas quais estiveram inseridos.

A modalidade intra-americana do comércio de escravos também é o objeto de análise do terceiro texto que compõe o dossiê, “O tráfico interestadual de escravos nos Estados Unidos em suas dimensões globais, 1808-1860”, de Leonardo Marques. Seu escopo analítico mira as tensões provocadas na esfera pública norte-americana causadas pelo tráfico interestadual no período posterior à abolição do comércio transatlântico nos Estados Unidos. Na primeira parte, Marques nos apresenta um minucioso debate historiográfico sobre a temática, com contribuições de pesquisas recentes que descortinam as relações entre a instituição da escravidão e do tráfico no sul dos Estados Unidos com o desenvolvimento do capitalismo global no Oitocentos. O acirrado debate pró e contra o tráfico interestadual norte-americano é escrutinado na segunda parte do texto. Aqui, ficamos sabendo o quanto essa questão sofria influência de processos atlânticos e hemisféricos. O tráfico doméstico norte-americano nos é apresentado como constituinte de uma rede mercantil mais ampla, que envolvia territórios no Caribe, África e Brasil, causando tensões diplomáticas internacionais, ao mesmo tempo que impactava sobremaneira o debate interno existente entre os defensores e os contrários ao tráfico e à escravidão no âmbito doméstico.

No século XIX, o debate em torno da legalidade ou não do tráfico de escravos calcava-se em argumentos de caráter econômico, mas também humanitários. Eram seres humanos, afinal, os transportados em condições degradantes pelas águas do Atlântico. Muito pouco se sabe ainda sobre a história de vida desses indivíduos que foram obrigados a realizar essa longa jornada, que muitas vezes se iniciava nos sertões africanos, estendendo-se até o interior do continente americano. O quarto texto do dossiê, “The slave ship Manuelita and the story of a Yoruba community, 1833-1834”, escrito por Olatunji Ojo, nos revela quem eram alguns desses africanos. Em plena era da abolição, a apreensão de um navio cubano em 1833 por forças anglo-espanholas fornece ao autor um caminho para descortinar o passado desses sujeitos. Por meio da utilização da base de dados African Origins (<www.african-origins.org>) e de outros materiais investigativos, Ojo estabelece quem eram esses escravos, suas origens, os trajetos por eles percorridos, os processos e o contexto de escravização pelos quais passaram na África, suas afinidades sociais e familiares pré-escravistas, bem como suas experiências no domínio da escravidão. Vale apontar o destaque dado pelo autor aos impactos causados pelo tráfico de escravos, acarretando guerras generalizadas, além do papel atuante dos africanos no processo de captura e venda dos escravos nas rotas mercantis da Iorubalândia.5 Por serem descritos nos registros coevos como sendo lucumis-ecomoshos,6 os sobreviventes que chegaram a Havana direcionam a investigação ora apresentada para a análise da questão identitária dessa região africana e de como essas mesmas identidades poderiam ser reinterpretadas no contexto americano. O artigo busca esquadrinhar também o processo de condenação do navio no tribunal antiescravista de Havana, de como os recém-libertos foram inseridos na ilha de Trinidad na condição de trabalhadores contratados ou aprendizes, causando repercussões trágicas na vida desses indivíduos.

Por fim, o texto que encerra o dossiê, “Domingos Dias da Silva, o último contratador de Angola: a trajetória de um grande traficante de Lisboa”, escrito por Maximiliano M. Menz, segue os passos da carreira de um importante agente do comércio angolano de escravos. Por meio da análise da biografia desse personagem, Menz soma esforços a uma ampla gama de trabalhos que vêm se dedicando nas últimas décadas a desvelar a complexa engrenagem que movia os negócios negreiros envolvendo agentes das praças de Lisboa, Rio de Janeiro e Luanda. Para tanto, o autor utiliza um vasto manancial documental calcado em um alicerce teórico-metodológico vinculado aos estudos da história econômica clássica e da micro-história. Assim, a trajetória que nos é revelada ilumina o modus operandi dos circuitos mercantis e de seus agentes, responsáveis pela migração forçada de milhões de africanos entre as duas margens do Atlântico Sul.

A publicação desse dossiê pela Tempo, portanto, contribui para a divulgação desses novos estudos, ampliando o espaço de debate e de interesse pela temática, rompendo com a ideia de que a escravização e o comércio de escravos africanos ocorreram exclusivamente na esfera atlântica. Ele também proporciona novos olhares sobre contextos diferentes nos quais a dinâmica escravista exerceu papel fundamental

Notas

1. Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ), Brasil. E-mail: [email protected].

2. Departamento de História da Universidade de Rice – Houston(TX), EUA. E-mail: [email protected].

3. Desde 2015, o banco de dados conta com uma versão em português. Uma primeira versão ainda em inglês fora publicada em 1999 no formato de CD-Rom pela Cambridge University Press.

4. Allen, em seu texto, menciona o historiador francês Hubert Gerbeau como tendo sido o primeiro a apontar a “história do silêncio” em torno do tráfico de escravos no Índico.

5. Região cultural africana do golfo da Guiné que compreende hoje parte da Nigéria, Togo e Benin, habitada pelo povo iorubá.

6. Designação aplicada aos falantes da língua iorubá em Cuba no século XIX.

Alexandre Vieira Ribeiro – Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ), Brasil. E-mail: [email protected]

Daniel B. Domingues da Silva – Departamento de História da Universidade de Rice – Houston(TX), EUA. E-mail: [email protected]


RIBEIRO, Alexandre Vieira; SILVA, Daniel B. Domingues da. Apresentação. Tempo. Niterói, v.23, n.2, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Novas perspectivas na história da escravidão / Tempo / 2016

El historiador británico E. P. Thompson dijo en una ocasión que cada vez que tenía noticia de un dios nuevo sentía la necesidad de blasfemar. Armitage (2004)

O que pode ser chamado de “novo” na historiografia? Vivemos – pelo menos a partir da década de 1970, em que houve a junção na mesma frase das palavras novo e história (Le Goff e Nora, 1976 a,b,c) – buscando novidades que venham revelar o “verdadeiro passado” e, sobretudo, que venham revelar uma metodologia que se transforme em instrumento multiplicador de novos passados.

A partir da década de 1970, a novidade era enunciada em diferentes modelos: a história social, a história cultural e a micro-história. Todas essas “escolas”, que se desenvolviam com certa autonomia, vinculadas a tradições historiográficas nacionais, podiam combinar-se solidariamente. Enquanto Carlo Ginzburg e Carlo Poni falavam em trocas desiguais no mercado historiográfico entre Itália e França, denunciando certo isolacionismo italiano (Ginzburg, 1989, p. 169-178), no Brasil se abraçavam todas as novidades que a historiografia oferecia, sem se colocar o problema da recepção sem interlocução, isto é, da desigualdade nas trocas entre as historiografias mencionadas e a brasileira.

A crise de paradigma constituiu o fundamento epistemológico e ideológico que permitiu andar com certa rapidez no caminho que conduzia da necessidade à liberdade. Como disse Emilia Viotti em artigo canônico do debate da década de 1990, houve uma inversão dos “determinantes”; o econômico, material e objetivo passou a ser “determinado” pela cultura, pela política, pela linguagem e pelo significado. A dialética esteve ausente tanto no período do predomínio do econômico quanto no período do predomínio do cultural. Aquilo que teve uma formulação crítica nas abordagens de Raymond Williams e E. P. Thompson, entre outros, terminou contrariamente à intenção desses autores em simples “inversão” das proposições (Costa, 1998b p. 9). Ginzburg e Poni apontavam que pesquisas quantitativas demandavam investimentos financeiros consideráveis, investimentos que, no final da década de 1970, somente eram possíveis para o capital franco-americano e o computador (Ginzburg, 1989, p. 170). Os dois historiadores italianos consideraram ainda que a história quantitativa serial gozava de estabilidade epistemológica e formava parte da “ciência normal”, na denominação de Kuhn. Enquanto isso era enunciado e traduzido para o português, no Brasil cresciam o desinteresse e a desconfiança sobre a história quantitativa e a história econômica, que uniram seus destinos em uma homologação apressada. Nesse período, a história econômica saiu dos departamentos de história, salvo raríssimas exceções, para ficar “marginada” do campo historiográfico e ser realocada nos departamentos de economia.

Tanto os programas de pós-graduação quanto o mercado editorial davam a público teses e livros que juntavam várias escolas historiográficas em um convívio de fazer inveja aos “globalistas” contemporâneos. Conjugou-se o que aquelas tinham em comum: a circunscrição dos objetos, o método onomástico e o papel da “agência” (Ginzburg, 1989, p. 174; Johnson, 2003, p. 113-124). Houve outro processo de “inversão”; nesse caso nos referimos à inversão parcial dos objetos e dos métodos. Antes se utilizavam métodos quantitativos para abordar os estratos subalternos e o onomástico para as elites; a partir da década de 1980, utilizou-se o método onomástico para estudar os setores subalternos, resgatando a subjetividade do vivido, combinando micro-história com história social, ou história da cultura com micro-história. A subjetividade foi colocada em primeiro lugar, ao ponto que a escravidão foi estudada pelo prisma da liberdade. Como diz Johnson, não é necessário criticar os ganhos feitos com o conceito de “agência”, mas devemos colocar os limites de uma noção que parece falar mais de nós que dos sujeitos da nova história social. Em geral, os estudos sobre as classes subalternas, e entre eles os escravizados, tendiam a valorizar “qualidades” da individualidade, noção cara ao liberalismo (Johnson, 2003, p. 116). Apesar da polissemia da palavra agência, Johnson a vincula principalmente a categorias liberais do século XIX. A respeito dos estudos sobre a escravidão, podemos afirmar que, depois de depurados de conceitos como coisificação, anomia e anomalia, a historiografia buscou mostrar escravos iguais a “nós”, não somente do ponto de vista da humanidade compartilhada, mas iguais de um ponto de vista de uma racionalidade cartesiana, buscando empatia com o leitor. Premiaram-se com as narrativas os bem-sucedidos, os que agiram segundo critérios que são reconhecidos dentro de uma racionalidade que maximiza as oportunidades. Foi definido que o oposto de escravidão era liberdade, nos moldes da filosofia do século XVIII (Buck-Morss, 2009, p. 21-23), mais que comunidade. Houve também uma historiografia que entendeu a “agência” a partir da perspectiva do outro, sem projetar os valores contemporâneos e ocidentais às sociedades pretéritas (Gomes, 2005Machado, 1988 e 2010).

Mas se, por um lado, parece que fomos longe com o conceito de agência, por outro parece que não avançamos o suficiente com ele. É o caso dos estudos sobre a chamada “escravidão contemporânea”. Nesses estudos, continuam a predominar os enfoques “abolicionistas”, em que o protagonismo recai sobre os agentes da liberdade, os magistrados e fiscais do trabalho, e não as ações dos “escravizados”. Estes aparecem, em geral, como vítimas de esquemas nos quais não fizeram escolhas, salvo algumas exceções não predominantes na historiografia sobre o tema (Rocha, 2015Ferreras, 2013).

Tudo o que era novo nas décadas de 1970, 1980 e 1990 se tornou “ciência normal” no decorrer do final do século XX ao início do XXI, isto é, o paradigma predominante e quase exclusivo. Termos sistêmicos, como capitalismo e escravismo, foram “erradicados” dos vocabulários histórico-acadêmicos. No expurgo conceitual, aconteceram operações surpreendentes, como a que autonomizou a “brecha camponesa” do complemento / oposto que lhe dava sentido: “brecha campesina no sistema” (Cardoso, 1973, p. 216). De qualquer forma, houve uma notável renovação nas abordagens sobre a escravidão no Brasil. É difícil inventariar todas as contribuições, mas podemos mencionar algumas, como os estudos sobre a escravidão urbana, sobre práticas sociais de compadrio, família e demografia escrava, sobre práticas econômicas e identitárias, resistência escrava, normas e práticas legais relacionadas com o cativeiro, sobre práticas e estratégias no mundo rural, sobre alforrias etc. Embora muitos desses temas não fossem totalmente novos, tiveram uma nova perspectiva de abordagens e um novo repertório documental (Marquese, 2013, p. 228).

Também o nacionalismo metodológico foi predominante entre as últimas décadas do século XX e o início do XXI. Prevaleceram o particularismo e a excepcionalidade dos objetos e das perspectivas. As sínteses existentes foram examinadas, e em todas se encontraram excepcionalidades que não confirmavam a regra. Foram tantas as exceções achadas que a regra pareceu ser uma delas. Devemos mencionar que, a partir do final da década de 1980 e durante a de 1990, vivenciamos uma renovação geracional nos quadros acadêmicos universitários. O que transformou a disputa historiográfica no Brasil em uma disputa pela ocupação dos espaços acadêmicos. Como nos advertiu Bourdieu (1983, p. 1): “O universo ‘puro’ da mais ‘pura’ ciência é um campo social como outro qualquer, com suas relações de força e monopólios, suas lutas e estratégias, seus interesses e lucros, mas onde todas essas invariantes revestem formas específicas. ” À crise de paradigma se somou a necessidade de legitimação dos novos quadros institucionais, o que levou a uma “radicalização” das críticas. As obras de autores como Caio Prado e Emília Viotti da Costa foram desqualificadas e citadas somente como antimodelos.1 Houve um novo consenso, o de que a teoria do “escravo-coisa” era compatível e até assimilável com as teorias sobre o funcionalismo do capitalismo. Isto é, que as explicações sistêmicas, aqueles que entendiam a escravidão a partir de uma lógica mercantilista primeiro e capitalista depois, eram compatíveis com os postulados da escola sociológica paulista.

Tudo o que era sólido se desvaneceu. As estruturas e as explicações estruturais foram abandonadas, e o contingencial ocupou o lugar que antes ocupavam aquelas. Na busca de novas fontes que permitissem enxergar do ponto de vista dos sujeitos subalternos, deu-se grande destaque às de origem judicial. As falas e estratégias individuais esgrimidas no judiciário foram tomadas e interpretadas sem que estivessem vinculadas à estrutura judicial e administrativa. A fala em primeira pessoa ocupou lugar de destaque sem que se prestasse atenção nas mediações. Na primeira metade do século XX, tinha predominado uma historiografia institucional em que os homens sucumbiam ante as leis e as instituições. Na segunda metade e, sobretudo, a partir da década de 1980 predominou uma historiografia em que os indivíduos usavam da lei (e da justiça) sem que esta os condicionasse. Dissera Pierre Vilar (1983, p. 106-120) que “a importância do direito na interpretação histórica de uma sociedade é que denomina, qualifica e hierarquiza qualquer divórcio entre a ação do indivíduo e os princípios fundamentais dessa sociedade”. Mas a diferença entre as ações dos indivíduos e os princípios da sociedade dificilmente foi cotejada.

A partir da primeira década do século XXI, vemos aparecer trabalhos que alargavam as fronteiras do observado. Primeiro, em um sentido literal, ultrapassando as fronteiras nacionais (Curthoys e Lake, 2005, p. 5-20); segundo, em um sentido metodológico, buscando as heterogeneidades culturais (Cornejo Polar, 1996), as mestiçagens (Gruzinski, 2001 e 2015) e as conexões (Subramayan, 1997, 2007 e 2012) de um mundo que começou a ser enxergado a partir de vários pontos de vista (Bertrand, 2011, p. 11-28).

A historiografia da escravidão nunca abandonou totalmente as perspectivas mais amplas, mundiais e “globais”, como no caso dos trabalhos de Luiz Felipe de Alencastro e Robin Blackburn. Nestes, houve um enorme esforço de explicação de processos históricos na longa duração e em espaços amplos. Daí que Alencastro diga em seu prefácio que não se tratava de estudar de forma comparativa as colônias portuguesas no Atlântico, mas de mostrar como as partes unidas pelo oceano se complementam em um sistema de exploração colonial (Alencastro, 2000, p. 9). Essas abordagens foram de alguma forma “marginais” à historiografia dominante e lidas como “contextuais”. A inovação estava nas escritas monográficas, circunscritas, com destaque para a subjetividade e as estratégias no cotidiano.

Nesse contexto, qual é a atualidade de um dossiê sobre escravidão?

No caso do Brasil, escravidão é daqueles temas sobre os quais recai grande parte da produção historiográfica e no qual se concentra boa parte das discussões internacionais. Pensar em novos problemas a respeito é pensar em tempos e espaços largos. Em primeiro lugar, significa estar atento à periodização. Sem abandonar os ganhos feitos a partir do conceito de agência, uma “nova” historiografia (novo Deus a ser blasfemado?) propõe estar atento ao “movimento global”, não como contextual, mas como parte do problema. Se a conflitividade entre senhores e escravos aumentou internamente depois de 1850, isso se deveu às tensões recorrentes do tráfico interprovincial articulado ao movimento mais amplo do mercado internacional (Marquese, 2013, p. 234). Assim, a questão da periodização, matéria fundamental para o ofício do historiador, foi colocada no centro da cena. Dessencializaram-se a condição escrava e a escravidão, vindo estas a estar expostas às contingências do devir histórico. Mas não somente o tempo está sendo repensado, também o espaço. Por isso afirmamos que tempo e espaço se alargaram. A escravidão foi colocada no mundo atlântico, um mundo atlântico que se inscreve em uma oceanografia maior, que pode incluir o índico e o pacífico (Alencastro, 2015, p. 1-79). Evidentemente, o recorte nacional deixou de ter capacidade heurística, embora não a dimensão local. Os estudos da escravidão tendem a uma história supraespacial.

Neste dossiê, Flávio Gomes, no artigo “Africans and “nations” in the slave trade through parish registers: preliminary notes for comparative perspectives on Brazil and Cuba in the seventeenth century”, oferece-nos um exercício metodológico: comparar as formas de registrar as “nações” africanas nas fontes paroquiais em Brasil e Cuba. Reúne cerca de 2.200 registros de batismos, casamentos e óbitos para as freguesias de Candelária, Sé, Cabo Frio, Irajá, Jacutinga, Magé, São João Batista de Niterói, Bonsucesso de Piratininga, Maricá, Itaboraí, Suruí e Engenho Velho para o Brasil. Para Cuba, analisa cerca de 900 registros de batismos e casamentos das paróquias de Guanabacoa e Santo Angel Custodio. Ambas as regiões são analisadas em um período prévio à sua transformação em áreas de plantações, quando passaram por grandes mudanças com a montagem de estruturas produtoras de açúcar baseadas no trabalho escravo. No entanto, no século XVII eram sociedades escravistas incipientes, cuja força de trabalho incluía escravos africanos e os povos indígenas, como evidenciam os registros analisados no artigo.

Como diz o autor, ainda sabemos pouco sobre os padrões de classificação das “nações africanas” nos registros paroquiais para destas poder inferir origens e identidades. Mas a abordagem comparativa permite descartar generalizações. Embora a Igreja fosse uma “instituição transnacional”, as formas de registro também estiveram condicionadas pelas práticas sociais locais, e Gomes nos alerta a estar atentos a elas. Discorrendo sobre as potencialidades dos registros paroquiais e os etnônimos, o autor afirma que podem ajudar na compreensão dos pontos de vista dos agentes coloniais sobre a África e os africanos, tanto quanto sobre a autorrepresentação.

No jogo necessário entre o macro e o micro, Flávio Gomes salienta que, sem perder de vista os aspectos africanos do comércio de escravos, as áreas de captura, as lógicas locais de microssociedades envolvidas no comércio de escravos, é essencial analisar contextos sociais e demográficos específicos. Esses contextos locais, estudados em perspectiva comparada, poderiam sugerir uma cronologia das adaptações e sociabilidade dos africanos e seus mundos circundantes nas Américas.

Preocupada em compreender melhor o funcionamento da instituição na chamada segunda escravidão – marcada por uma maior proporcionalidade de escravizados africanos -, Martha Santos, em ““Slave Mothers,” Partus Sequitur Ventrem, and the Naturalization of Slave Reproduction in Nineteenth-Century Brazil” mostra como os proprietários de escravos e políticos no Brasil após 1830 propõem explorar a vida sexual e reprodutiva das mulheres escravizadas a fim de gerar a domesticidade dos “ameaçadores” africanos.

Santos salienta que, embora o princípio romano de ventrem partus sequitur tivesse uma longa tradição na América portuguesa, no Brasil foi revitalizado a partir do fim do tráfico. Nesse momento, a reprodução da escravatura por meio dos nascimentos tornou-se um ponto focal de debate. Santos não se preocupa com a questão numérica da reprodução, mas com as questões simbólicas que nortearam os debates em que a antiga noção de ventrem partus sequitur adquiriu renovada importância jurídica, embora seja naquele contexto que o debate sobre a condição do ventre se incentiva.

A autora convida o leitor a prestar atenção nos discursos sobre a escravidão que surgiram desde o início da década de 1830 e que, de fato, naturalizaram a categoria de “mãe escrava” com a finalidade de dar centralidade à reprodução escrava. Esses discursos estariam motivados tanto pela preocupação com a reposição da mão de obra uma vez acabado o tráfico quanto com as rebeliões de escravos lideradas por homens. Nesse sentido, as mulheres escravizadas poderiam atender a esta dupla preocupação patronal: como reprodutoras da força de trabalho escravo e como “pacificadoras” de incontroláveis cativos.

O artigo de Norberto O. Ferreras, “A escravidão depois da escravidão: a questão do trabalho compulsório na constituição das organizações internacionais no período de entreguerras”, analisa, em uma perspectiva global e transnacional, a construção da categoria legal e discursiva da escravidão, historicizando a categoria e, portanto, desnaturalizando-a. Nesse sentido, afasta-se das abordagens que têm utilizado o conceito de “escravidão contemporânea” de forma a-histórica, dando o sentido de “continuidade” da instituição oitocentista.

O artigo examina as formas de controle e normatização do trabalho no decorrer do século XX, partindo da visão global, hemisférica e, portanto, civilizadora das primeiras instituições transnacionais que se ocuparam do tema do trabalho – da Anti Slavery até a Sociedade de Nações (SdN) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Salienta as diferenças entre elas e as tensões geradas entre a esfera global e a local. Enquanto a SdN buscava proteger a liberdade dos indivíduos, a OIT protegia o trabalho. Para a última, a perda da liberdade do trabalhador não estava vinculada à perda da liberdade individual, e sim à da liberdade econômica, uma vez que o trabalhador escravizado ou forçado não podia vender a força de trabalho “livremente”. No período entreguerras, essas organizações tiveram de lidar com a disjuntiva de que sem o trabalho indígena as colônias não prosperavam. Para entrar na “civilização”, era necessário participar do mundo do trabalho normatizado. Atento aos descompassos entre o global e o local, Ferreras salienta que os países da América Latina rejeitaram durante a década de 1920 a categoria de “trabalho indígena” com a qual a OIT queria englobar algumas experiências da região. Analisa convenções e recomendações da OIT como ponto de partida para alcançar acordos diplomáticos entre as potências colonizadoras de modo a limitar o trabalho forçado. Como acontecera no século XIX, os países que tinham tomado a iniciativa de aderir ao combate do trabalho forçado pressionaram os outros para também adotarem medidas restritivas.

O artigo de Ferreras outorga visibilidade à questão da escravidão e do trabalho forçado para além das balizas do século XIX. Portanto, oferece-nos uma importante contribuição para analisar a questão do trabalho na “era do mercado de trabalho” e de suas regulações.

Nota

1. No Simpósio Nacional da Anpuh de 2003, realizado em João Pessoa, Emilia Viotti da Costa apresentou em uma conferência seu livro Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos em Demerara em 1823(1998a) como uma proposta metodológica e evidência de que era possível e salutar uma historiografia que incluísse a liberdade e a necessidade, de forma dialética. Mas essa não foi a tendência predominante na historiografia do novo milênio.

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Imagética de Vasos Gregos / Tempo / 2015

Imagética de Vasos Gregos consiste em um dossiê da Revista Tempo composto por cinco artigos de pesquisadores interessados em decodificar os signos criados nos ateliês de artesãos domiciliados nas póleis.[2] As cenas pintadas no suporte cerâmico despertam o interesse de pesquisadores de várias disciplinas por conta da variedade de temáticas e de práticas sociais representadas. Tais artefatos são, para nós historiadores, um testemunho do imaginário helênico. Como observou Jean-Pierre Vernant, no prefácio da obra La Cité des Images, a imagética é uma construção. Trata-se de uma obra da cultura e a criação de uma linguagem própria expressada na teckné do artífice (Vernant, 1984, p. 5).

O interesse ou mesmo fascínio pelas pinturas nos vasos gregos pode ser constatado entre os visitantes de vários museus espalhados pelo mundo. As galerias e salas do Museu Arqueológico Nacional de Atenas, do Museu do Louvre ou do Museu Arqueológico de Amsterdã (Allard Pierson Museum) abrigam vitrines repletas de vasos confeccionados em várias regiões do antigo mundo helênico. Os espectadores dessas obras logo percebem a diversidade de cenas e de temas representados. Fica latente o olhar e a interpretação do artesão acerca das práticas religiosas, das divindades, dos mitos e das experiências de vida de mulheres e de homens que viviam mergulhados em uma mesma cultura. Crianças e adultos ficam, até hoje, admirados com as cenas de confronto de heróis, com as imagens de ritual de casamento ou mesmo com as belas representações de atletas no ginásio e na palestra.

Homens e mulheres na Antiguidade utilizavam os vasos em seu cotidiano. O objeto poderia ou não possuir imagem pintada em sua superfície e isso denotaria seu uso e também o seu valor. Em uma casa grega, as mulheres poderiam utilizá-los tanto na cozinha quanto no gineceu fazendo a “toilette”. No santuário, cultuadores poderiam libar um deus com taças ou dedicar vasilhames às divindades políades. Ou seja, os vasos e suas imagens circulavam em espaços privados e públicos de uma mesma pólis, transmitindo mensagens polissêmicas a todos que os vislumbrassem. As práticas relacionadas à fabricação, à manipulação e à comercialização dos vasos gregos estimularam estudiosos de diferentes disciplinas a desbravar uma instigante e fecunda área de pesquisa sobre a Antiguidade.

A imagética grega despertou o interesse na comunidade acadêmica principalmente na virada do século XIX para o XX. Os pioneiros em identificar os estilos de pintura, proveniência dos vasos e sua catalogação foram Ed. Pottier e J. D. Beazley. O Corpus Vasorum Antiquorum (CVA), idealizado por Pottier, e as obras de referência de cerâmica ática de figuras negras e de figuras vermelhas, bem como de cerâmica etrusca, organizadas por Beazley, proporcionaram um avanço significativo nos estudos científicos da cerâmica grega (Lissarrague, 2013). Dessa forma, arqueólogos e ceramólogos, ao longo do século XX, organizaram inúmeros catálogos de vasos a partir dos sítios onde eles foram encontrados, bem como elaboraram obras norteadas pelas temáticas pintadas (representação de peixes, imagens de caça, cenas de kômos, imagens ritualísticas de “bacantes”etc.). Atualmente, o grande público tem acesso, sem sair de casa, a banco de dados, catálogos e acervos de museus e de universidades por meio da rede mundial de computadores (CVAProjeto BeazlevMuseu do Louvre).

Nós, historiadores, começamos, a partir da década de 80 do século XX, a trabalhar de fato com a documentação imagéticas em utilizá-la de forma ilustrativa, como anteriormente ocorria em livros e manuais escolares de história antiga grega (Schmitt Pantel, 2013). A preocupação em organizar um corpus imagético e tratá-lo de forma adequada, ou seja, utilizando métodos advindos da semiótica e da história da arte, proporcionaram uma verdadeira “revolução” nos estudos das imagens na cerâmica grega e de suas mensagens.2

Os debates entre arqueólogos, historiadores da arte e ceramólogos, nos últimos anos, foram registrados em obras coletivas, dossiês temáticos e anais, frutos de colóquios. Uma das preocupações constantes consiste no processo de criação dos oleiros e dos pintores. Em um ergasthérion (oficina), o artífice está conectado tanto com referenciais internos, de seu bairro e de sua comunidade,[3] quanto com trocas externas. Os estudiosos constataram intercâmbios de temáticas e de técnicas entre os próprios demiurgos. Um pintor de vasos poderia, por exemplo, se inspirar em uma criação de um escultor ou então de outro pintor de pintura parietal (Croissant, 1999Snodgrass, 2004).

O presente dossiê tem como objetivo, portanto, proporcionar um tópos de diálogo e de debate sobre as possibilidades de estudos da imagética de vasos gregos. O encontro dos pesquisadores do Anhima,[4] precursores de uma “antropologia das imagens”, com os do Nereida tem possibilitado justamente mapear as trocas de técnicas artesanais, os usos de inscrições nas imagens, a circulação de vasos no Mediterrâneo, assim como os empregos de métodos para decodificar os signos criados pelos artesãos tanto na cerâmica ática quanto na coríntia. Espero que este dossiê estimule discussões e futuras pesquisas acerca das imagens, seus significados e suas mensagens elaborados pelos pintores gregos na Antiguidade.

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Notas

2. A título de exemplo, podemos indicar os seguintes trabalhos que tiveram uma clara preocupação metodológica: Bérard, 1983, fasc. 4, p. 5-37;Frontisi-Ducroux, 1991Steiner, 2007.

3. Os trabalhos apresentados no encontro sobre o pintor Euphronios,domiciliado no bairro do Cerâmico, nos ajudam a pensar sobre os intercâmbios entre artesãos de uma mesma pólisDenoyelle, 1992.

4. O Anhima foi criado em 2010 e congregou pesquisadores dos seguintes centros, a saber: Centro Louis Gernet, Centro Gustave Glotz e Phéacie.

O autor agradece imensamente ao Professor Doutor François Lissarrague pela ajuda em interceder junto aos autores na adesão à proposta deste dossiê.

Alexandre Carneiro Cerqueira LimaProfessor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: [email protected].

LIMA, Alexandre Carneiro Cerqueira. Imagética de Vasos Gregos. Tempo. Niterói, v.21, n.38, jul. / dez., 2015. Acessar dossiê [DR]

Traduções de Maquiavel: da Índia portuguesa ao Brasil / Tempo / 2014

Desde há muito, no vocabulário português, “tradução” significa o ato de converter um texto falado ou escrito de um idioma a outro, desejando-se, para o tradutor, um ótimo conhecimento da língua a lhe servir de fonte, bem como uma familiaridade maior com a língua almejada. Conforme o muito citado clérigo luso-francês setecentista Bluteau, as boas traduções não seriam feitas por palavras, mas por equivalências. Para ele, o vocábulo seria ainda uma figura retórica, ao repetir-se a mesma palavra com diferentes sentidos. Alude, então, ao famoso ditado”traduttore, traditore”, todavia, ponderando sobre a possível fidelidade dos bons trabalhos. 1A acepção de transferir e transformar, relativa ao termo, foi enfatizada em dicionários posteriores da língua portuguesa,2 sem prejuízo dos primeiros significados, mas conotandoo ato de traduzir como esclarecer o significado de algo. Ou seja, traduzir seria, principalmente, uma interpretação, uma compreensão e uma explicação do que pretende ser entendido.3

O dossiê ora apresentado lida com algumas “traduções” do autor Niccolò Machiavelli (1469-1527) e de suas obras, valendo-se não apenas do primeiro sentido apontado, mas também dos outros, em busca de equivalências e / ou interpretações. Em todos os casos, nele procura-se entender certas expressões assumidas por Maquiavel no mundo lusofônico através dos tempos. Essas expressões foram buscadas no império ultramarino português da época moderna, do século XVI ao XVIII, mas também no Brasil independente do século XX.

Nas histórias de Portugal, suas conquistas coloniais e do Brasil, os escritos desse florentino vivenciaram uma trajetória peculiar. Inicialmente, foram lidos com interesse por humanistas durante a expansão lusa na primeira metade do século XVI, com avanços na África, na Ásia e na América nos reinados de D. Manuel I e D. João III. Em um de seus proêmios, Maquiavel ousadamente comparou-se aos navegadores que, então, descobriam o Novo Mundo, fazendo um paralelo entre a sua teoria política e as viagens ultramarinas.4Embora ele não tenha incorporado em seus livros maiores reflexões sobre as novas conquistas então encetadas pelas monarquias ibéricas, após sua morte, suas ideias incidiram na elaboração de textos que dissertavam sobre a natureza e a legitimidade do governo de Portugal nas partes do mundo, principalmente no Oriente. Naquele momento, a censura eclesiástica em Roma e nos países ibéricos ainda não condenara plenamente as obras do secretário florentino. Comparavam-se, então, as epopeias lusitanas aos feitos dos antigos romanos, sendo os Discorsi – cuja tradução para o espanhol fora encomendada por Carlos I e dedicada ao futuro Felipe II de Espanha – uma fonte principal.5

Procura-se entender certas expressões assumidas por Maquiavel no mundo lusofônico através dos tempos, no império ultramarino português da época moderna, mas também no Brasil independente do século XX

Sucedeu-se na segunda metade do Quinhentos o tempo dos índices de livros proibidos (romanos, portugueses e espanhóis) e do reforço da ortodoxia católica. Entretanto, paradoxalmente, a pecha de autor proibido e o surgimento do antimaquiavelismo não diminuíram o interesse por essas ideias – ou pelo que elas representavam – no ambiente ibérico e marcadamente português. Nesse mundo de guerras e afirmações de poderes com pretensões mundiais, Il principe – como seria conhecido o opúsculo – e seu autor eram referências incontornáveis. No ambiente católico que formalmente o rechaçou, Maquiavel personificava os vícios da política, frequentemente contrapostos a uma atuação cristã. Mas ele também podia inspirar de forma velada ações tidas como irreprocháveis. Naquele tempo, a má fama do autor de Florença associava-se aos próprios preceitos de uma pérfida razão de Estado. Contudo, suas ideias eram também encontradas em autores formalmente definidos como antimaquiavélicos.6

Nos séculos XVII e XVIII, em Portugal e no Brasil, surgiram governantes cujas práticas políticas podem ser identificadas como outra vertente de exercício do poder, mais objetiva e temerária, distinta da comumente veiculada aos pactose mediações característicos de uma monarquia católica respaldada pela filosofia neoescolástica. Em Portugal,essa cultura politicafoireforçada na conjuntura da Guerra da Restauração (1640-1668).7Todavia, mesmo nesse meio, não raro administradores e rebeldes incorporaram em seus discursos estratégias de dissimulação, que sabemos não terem sidoexclusivas de Maquiavel, mas foram recorrentemente a ele associadas como maquiavelismos. Mais tarde, a participação de nobres portugueses na Guerra de Sucessão da Espanha (1701-1713) constituiu um outro grande momento de internacionalização e contato com ideias excêntricas ao tradicional ambiente reinol lusitano.8

Essa breve remissão diacrônica aponta para uma perspectiva teórica e metodológica diferente para o estudo dos governos, ideias e práticas na monarquia portuguesa e emsuas conquistas ultramarinas.9Diante desse mundo apenas superficialmente hostil às ideias de Maquiavel, é aconselhável ler as fontes a contrapelo e desconfiar das banais acusações de maquiavelismo, facilmente proferidas a fim de denegrir os inimigos. Esse era um tempo no qual a má reputação do autor florentino contaminava outras formas de dissimulação e de ardil político, existentes desde a cultura clássica.10 Abre-se, assim, o leque de possibilidades à heterodoxia e à singularidade, mais frequentesdo que as análises modelares dos Estados modernos europeus deixam entrever, para captar esse grande contexto político e cultural – na realidade, multifacetado. Por cópias manuscritas cuidadosamente guardadas e hoje desparecidas, ou por livros proibidos depositados nas bibliotecas monásticas, ou por edições nunca expostas pelos seus detentores, sobreviviam as ideias maquiavelianas, evitando-se, a todo custo, sua vinculação ao maquiavelismo – o que as fragilizaria ante os possíveis acusadores.

Mais adiante, no Brasil já republicano e na esteira da Revolução de 1930, desponta a primeira tradução em língua portuguesa de Il principe, antecedendo em dois anos a sua congênere europeia. Contudo, no país liberto há muito da censura inquisitorial, sobrevivia o tom depreciativo para tratar do que fosse alusivo a Maquiavel. O livro foi publicado por uma editora carioca de perfil socialista para denegrir a escalada ascensional e estrategista de um Getúlio Vargas “maquiavélico”, conforme o seu prefácio. Em Portugal, a tradução da mesma obra, conhecida como o “Maquiavel fascista”, com prefácio de Mussolini, fazia também a ponte entre a política então vivida, em pleno salazarismo, e as ideias seminais do florentino quinhentista.11

Voltemos, então, aos vários sentidos da palavra “tradução”. Do toscano ou italiano ao português, mas também do político brasileiro contemporâneo, posto como equivalente ao escrito outrora pelo afamado autorno século XVI em relação à prática do poder. Um Maquiavel que falou a outros tempos não poderia, ainda, ter suas ideias e conselhos comparados à atuação de uma personagem coeva, encontrada nos quadros do império ultramarino luso? A correspondência do grande Afonso de Albuquerque, governador da Índia portuguesa no tempo em que era escrito o pequeno livro sobre os principados, mostra o quanto suas preocupações com a conquista e a conservação dos territórios assemelhavam-se aos textos dos DiscorsiIl principe e Dell’arte della guerra, não obstante algumas diferenças em outros tópicos. Albuquerque não leu Maquiavel, mas equivalia-se a suas ideias. Ele seria, portanto, uma sua tradução.

Diante desse mundo apenas superficialmente hostil às ideias de Maquiavel, é aconselhável ler as fontes a contrapelo e desconfiar das banais acusações de maquiavelismo

É possível perceber também Maquiavel e / ou elementos do maquiavelismo mediante a realização de interpretações, como nos casos do governador-geral do Estado do Brasil no anos de 1660, 1ºconde de Óbidos, e do governante de capitania D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, então futuro 3ºconde de Assumar, no segundo decênio do Setecentos. Suas ações e escritos apresentam semelhanças com os conselhos proferidos pelo florentino, sobretudo em Il principe. Embora – dados os constrangimentos culturais e políticos já indicados – seja ousado demais atestar cabalmente a leitura feita por esses nobres portugueses dos livros de Maquiavel, seus governos podem ser entendidos como maquiavélicos, pela sobreposição criada na época moderna entre o próprio estereótipo e a sua fonte. Em outras palavras, os elementos de Maquiavel estariam também nesses maquiavelismos que, não obstante, seriam já a sua caricatura.12

Sem dúvida, trata-se de um horizonte complexo de investigação, para o qual são importantes os estudos realizados, de matiz filológico ou quantitativo, bem como a sensibilidade e o bom senso das suas análises. Também é fundamental operar com o termo “maquiaveliano” – surgido na Itália do século XX como uma tentativa de remissão às ideias do afamado autor mais despojada de seus estereótipos- e com os outros vários vocábulos derivados de Maquiavel (“maquiavelista”, “maquiavélico”, “maquiavelizar” etc.), cujo nome já se costuma proferir na forma aportuguesada. Tudo isso evidencia sua importante recepção em países de língua portuguesa.13

O pequeno dossiê integra-se ao conjunto de realizações pertinentes ao projeto Machiavellismo e machiavellismi nella tradizione politica occidentale (secoli XVI-XX), dirigido por Enzo Baldini, da Universidade de Turim, elaborado com o fito de promover a formação de grupos e colóquios no Ocidente em função da efeméride dos 500 anos da escrita de Il principe, redigido entre fins de 1513 e início de 1514. Desde 2007, cursos, oficinas, jornadas de estudos e um colóquio internacional foram organizados na Universidade Federal Fluminense – em parceria com outro evento realizado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa -, para perceber o papel das ideias de Maquiavel nos universos português e brasileiro, do século XVI ao presente.14Ao longo desse tempo, lidamos com várias “traduções” e “traições”: de livros, ideias e representações. Portanto, os artigos de Ângela Barreto Xavier, Luciano Figueiredo, Rodrigo Bentes Monteiro, Vinícius Dantas e Sandra Bagno constituem uma breve mostra das enormes possibilidades de pesquisa que o campo da história das ideias políticas pode, no momento, descortinar.

Companhia das Índias, junho de 2014.

Notas

1. Rphael Bluteau, Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, achitectonico… vols. 8 e 9, Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728, p. 233-234; 261. Disponível em: http: / / www.brasiliana.usp.br / pt-br / dicionario / edicao / 1 . Acesso em: 09 de junho de 2014.

2. Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa: recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado… Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1789, p. 793. Disponível em: http: / / www.brasiliana.usp.br / pt-br / dicionario / edicao / 2 . Acesso em: 09 de junho de 2014.

3. Antônio Houaiss; Mauro de Salles Villar; Francisco Manoel de Mello Franco (orgs.), Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2004, p. 2.745.

4. Maquiavel, Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio: “Discorsi”, 4. ed., Tradução de Sérgio Bath, Brasília, Editora da UnB, 2000, p. 17.

5. Giuseppe Marcocci, L’invenzione di un impero: politica e cultura nel mondo portoghese (1450-1600), Roma, Carocci, p. 45-88; Giuseppe Marcocci, “Construindo um império à sombra de Maquiavel”, In:Rodrigo Bentes Monteiro; Sandra Bagno (orgs.), Maquiavel no Brasil: dos descobrimentos ao século XXI, Rio de Janeiro, Editora FGV; Faperj, no prelo; Helena Puigdomènech, Maquiavelo en España: presencia de sus obras en los siglos XVI y XVII, Madrid, Fundación Universitaria Española, 1988, p. 81-133.

6. A título de exemplo, o piemontês Giovanni Botero (1544-1617), com especial entrada no mundo ibérico. Luís Reis Torgal; Rafaella Longobardi Ralha (orgs.),João BoteroDa razão de Estado, Tradução de Rafaella Longobardi Ralha, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992; Enzo Baldini (org.), Botero e la ‘ragion di stato’. Atti del convegno in memoria di Luigi Firpo (Torino 8-10 marzo 1990), Firenze, Leo S. Olschki, 1992.

7. Luís Reis Torgal, Ideologia política e teoria do Estado na Restauração, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981-1982, 2 v.

8. David Martín Marcos, Península de recelosPortugal y España, 1668-1715, Madrid, Marcial Pons, 2014.

9. Distinta, por exemplo, da promovida por Martim de Albuquerque, Maquiavel e Portugal: estudos de história das ideias políticas, Lisboa, Aletheia, 2007, com base no anterior A sombra de Maquiavel e a ética tradicional portuguesa: ensaio de história das ideias políticas, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Instituto Histórico Infante Dom Henrique, 1974.

10. Pablo Badillo O’Farrell; Miguel A. Pastor (orgs.), Tácito y tacitismo en España, Madrid, Anthropos, 2013.

11. Sandra Bagno, “Il principenell’area luso-brasiliana e le sue prime traduzioni in portoghese”, In:Alessandro Campi (org.), Il principe di Niccolò Machiavelli e il suo tempo1513-2013, Roma, Treccani, 2013, p. 219-220.

12. Michel Senellart, Machiavélisme et raison d’Etat. XIIe-XVIIIe siècle, Paris, PUF, 1989.

13. Sandra Bagno, “‘Maquiavélico versus‘maquiaveliano'” na língua e nos dicionários monolíngües brasileiros”, Cadernos de Tradução, vol. 2, n. 22, Florianópolis, 2008, p. 129-150. Disponível em: https: / / periodicos.ufsc.br / index.php / traducao / issue / view / 1121 . Acesso em: 25 de setembro de 2013.

14. Hypermachiavellism. Disponível em: http: / / www.hypermachiavellism.net / . Acesso em: 19 de janeiro de 2014. Como resultados desses empreendimentos, o dossiê de Gustavo Kelly de Almeida; Bento Machado Mota (orgs.), “Maquiavel dissimulado: heterodoxia no mundo ibérico”, 7 Mares. Revista dos pós-graduandos em História Moderna da Universidade Federal Fluminense, vol. 1, n. 1, Niterói, 2012, p. 6-49. Disponível em: http: / / www.historia.uff.br / 7mares / ?cat=6 . Acesso em: 24 de fevereiro de 2014, e o livro de Rodrigo Bentes Monteiro; Sandra Bagno (orgs.), Maquiavel no Brasil: dos descobrimentos ao século XXI, Rio de Janeiro, Paz & Terra; Faperj, no prelo. Essas inciativas também vinculam-se ao projeto coordenado por Ronaldo Vainfas, Linguagens da intolerância: religião, raça e política no mundo ibérico do Antigo Regime (Pronex CNPq / Faperj) e ao dirigido por Ângela Barreto XavierO governo dos outros: imaginários políticos no império português (1496-1961) (Portugal, FCT). Disponível em: <http: / / governodosoutros.wordpress.com>. Acesso em: 10 de junho de 2014.

Rodrigo Bentes Monteiro – Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: [email protected]


MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Apresentação. Tempo. Niterói, v.20, out., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Missões na América Ibérica: dimensões políticas e religiosas / Tempo / 2013

Em 1772, o governador de Buenos Aires comunicou ao governador do Chile uma notícia considerada como “digna de saber-se”. Na ocasião, um índio cristão, que conseguira fugir após passar alguns anos como prisioneiro dos índios “infiéis” do Chile, informava sobre a existência de um jesuíta que se tornara cacique. Apesar de não mencionar o nome do inaciano, afirmou que ele tinha oito mulheres e observava rigorosamente todos os costumes vigentes entre “aqueles bárbaros”, sendo muito “respeitado e reconhecido.”Seriam verídicas as informações prestadas pelo índio cristão? Difícil saber. As autoridades coloniais teriam dado mais importância à notícia devido à conjuntura antijesuítica então vigente? Talvez. O caso, porém, indica que semelhante situação era considerada verossímil na sociedade colonial, revelando facetas da experiência missionária ainda abordadas de forma incipiente pela historiografia.

Até recentemente, os estudos sobre as missões reiteravam determinados pressupostos estabelecidos sobre o tema. As interpretações se baseavam em juízos de valor sobre a atividade evangelizadora, sobretudo no caso dos inacianos, e em uma quase absoluta indiferença em relação aos nativos, cujos quereres eram considerados irrelevantes na construção daqueles espaços. Além disso, pouca atenção era dada às especificidades locais e aos consequentes reajustes e negociações característicos da construção da sociedade colonial.1

Apesar de a dimensão fronteiriça da atividade missionária ter sido destacada por Herbert Eugene Bolton em um inspirado ensaio publicado em 1917, ela era pouco mencionada por muitos autores, cujas abordagens frequentemente isolavam as reduções do contexto mais amplo.2 Porém, pela sua condição de estabelecimento fronteiriço, por vezes, verdadeiras pontas de lança da expansão territorial, as missões foram parte indissociável da construção dos impérios ibéricos. Poderiam ser consideradas o “esteio do domínio colonial”, como bem definiu Charles Boxer.3

Assim, longe de uma dimensão estritamente espiritual, as missões foram parte fundamental do processo de institucionalização do Estado nos domínios americanos. O trabalho dos missionários deveria transformar os índios em súditos leais das monarquias, garantindo, desta forma, a ocupação territorial. Esperava-se também que os novos súditos desempenhassem uma função militar estratégica nos impérios ibéricos: defender as suas fronteiras contra as pretensões expansionistas dos rivais europeus ou dos ataques dos grupos indígenas hostis à presença colonial. Por mais comprometidos que estivessem com a evangelização, os monarcas ibéricos faziam considerações geopolíticas para o financiamento das missões: eram mais generosos quando a concorrência europeia se fazia presente.4

A associação entre a cruz e a espada, porém, teve uma série de desdobramentos nos estudos sobre as missões. Um deles, ainda objeto de discussões, é o vínculo dos missionários com os seus respectivos padroados e / ou estados de origem. Muitos jesuítas, por exemplo, foram hábeis políticos comprometidos com a construção dos impérios coloniais. No caso português, Antônio Vieira estava tão envolvido nos assuntos da monarquia que, acertadamente, foi denominado por Ronaldo Vainfas como o “jesuíta do rei.”5 Diante das disputas imperiais, porém, nem todos demonstraram a mesma lealdade. O mesmo Vainfas aborda a trajetória de Manoel de Morais, um jesuíta nascido em São Paulo que atravessou fronteiras políticas e religiosas durante a presença holandesa no nordeste do Brasil.6

O envolvimento dos jesuítas nos mais variados assuntos, temporais e espirituais, na América foi desenvolvido em três artigos deste dossiê. Lígio José de Oliveira Maia analisa a sua participação nos conflitos da Guerra do Açu, um dos episódios do processo de ocupação territorial de parte do nordeste brasileiro no final do século XVII e início do XVIII. Naquele contexto, as alianças respondiam mais às urgentes questões locais do que a determinados princípios pré-estabelecidos pelas ordens religiosas ou à intervenção da Coroa.

As complexas alianças e conflitos nos quais os jesuítas estavam imiscuídos são também analisados por Almir Diniz Carvalho Júnior, com ênfase nas populações nativas. Centrando o artigo nos conflitos entre Antônio Vieira e o Principal indígena Lopo de Souza no Maranhão no século XVII, o autor demonstra os limites e possibilidades da ação dos índios cristãos. Apesar de frequentemente inseridos na sociedade colonial em uma posição desfavorável, os índios eventualmente foram capazes ganhar batalhas travadas contra personagens proeminentes da história colonial, em disputas nas quais a astúcia demonstrada pelos nativos foi um elemento fundamental.

Os reveses da atuação dos missionários são também analisados no artigo de Christophe Giudicelli. Abordando a área andina de Tucumán na segunda metade do século XVII, o autor demonstra a transformação do kakán em “língua do inimigo”, à medida que o idioma acabou circunscrito aos índios considerados infensos à sociedade colonial. De tal processo, surgiu um dilema para os jesuítas: após um grande investimento para aprendê-lo com fins evangelizadores, acabaram atuando como intérpretes nas tropas enviadas contra os índios.

Os artigos deste dossiê destacam ainda as ações dos índios, hoje consideradas imprescindíveis para a compreensão das atividades missionárias. Pesquisas sobre diferentes regiões da América têm demonstrado o papel ativo das populações nativas, revelando situações concretas nas quais, em detrimento de impor seus pontos de vista, os jesuítas foram hábeis negociadores, gerando ajustes políticos e religiosos muitas vezes distantes do convencional.7 Em certas ocasiões, o fizeram por gosto, como no caso dos que se identificavam demasiado com os índios e geravam situações embaraçosas para a Companhia. Apesar de pouco divulgado pelos inacianos, cujo interesse era propagar a sua própria habilidade de conversão, as populações nativas possuíam uma capacidade de convencimento nada desprezível, como parece ter acontecido no caso do Chile narrado acima.

Ao aprofundar o diálogo com a história dos índios, as análises sobre a experiência missionária colocaram em questão as diversas dimensões da religião católica no processo de reorganização ou criação das comunidades indígenas na América. Até recentemente, na historiografia brasileira, predominava uma perspectiva fatalista do contato dos índios com o catolicismo. Especialmente devido à influência do trabalho de Luiz Felipe Baeta Neves, para quem a “Aldeia não é mais um espaço indígena. É um espaço criado pela cultura cristã.”8 Em tal perspectiva, as opções dos índios eram limitadas. Ou fugiam da sociedade colonial e mantinham a sua “religiosidade tradicional” ou se convertiam ao catolicismo, considerada como uma etapa fundamental do seu aniquilamento cultural pelo “colonialismo” português. Os matizes apresentados pela historiografia sobre a história dos índios foram fundamentais para a mudança desse panorama. Afinal, como assinalou James Lockhardt, “ninguna de las dos categorías, la conversión o la resistencia, nos dice toda la verdad.”9

A religião adquiriu diversos significados na história dos contatos: poderia ser utilizada como uma estratégia de convencimento pelos europeus de diferentes confissões e que acabavam envolvendo os índios nas suas disputas religiosas e territoriais.10 Foi ainda apresentada pelos próprios índios como um benefício trazido pelos espanhóis, em uma estratégia por meio da qual eles enfatizavam a conversão, em detrimento da conquista militar, para marcar o seu ingresso no mundo colonial, como demonstrou Serge Gruzinski.11 De uma maneira geral, pode-se pensar que os significados dos aldeamentos foram construídos e negociados pela população nativa, como analisou Maria Regina Celestino de Almeida para o caso do Rio de Janeiro.12 O contrário, porém, também ocorreu: em revoltas indígenas contra a sociedade colonial, o catolicismo foi apresentado como um símbolo da dominação ibérica.13

Assim, ao considerar a negociação como um elemento indissociável da experiência missionária, os estudos demonstram como a religiosidade surgida nesses espaços estava muito além de uma mera imposição do catolicismo: vinculava-se, necessariamente, às percepções e aos quereres dos nativos.14 Tal aspecto foi desenvolvido neste dossiê por Charlotte de Castelnau-L’Estoile. A partir dos diálogos entre as lideranças indígenas e os capuchinos envolvidos na experiência da França equinocial no início do século XVII, a autora demonstra as negociações presentes nos contatos interétnicos. Problematizando as fontes produzidas pelos missionários, evidencia como elas foram fruto de um diálogo que tentava conciliar, com sucesso variado, os diversos interesses que moviam os sujeitos naquele contexto histórico.

Da articulação do catolicismo com o estabelecimento da sociedade colonial, também surgiram importantes trabalhos, cujas questões são fundamentais para a compreensão das relações de poder constituintes dos espaços missionários. Ainda que a utilização da religião como um elemento de hierarquização e de exclusão já estivesse presente em trabalhos que podem ser considerados clássicos sobre a evangelização, como o de Robert Ricard, a problemática tem favorecido abordagens instigantes e é ainda um campo propício para novos trabalhos.15 Afinal, qual foi o papel da religião na manutenção dos índios em condição subordinada aos ibéricos na América colonial?

Tal questão, evidentemente, não possui uma resposta única: as situações variavam conforme o tempo, as regiões e a habilidade dos sujeitos envolvidos em situações concretas.16 Um dos temas fundamentais para relacionar o lugar do catolicismo, e da atividade missionária, à construção dos significados coloniais do termo “índio” são os debates sobre a conveniência do ingresso dos nativos no sacerdócio. O tema agitou a sociedade colonial, especialmente no México e no Peru.17

Em linhas gerais, porém, pode-se afirmar que a condição de neófitos excluía os índios do exercício de uma série de atividades. Como destacaram alguns autores, dentre eles Juan Carlos Estenssoro, a conversão ao catolicismo desencadeava uma situação na qual os índios se viam destituídos de autonomia no campo religioso, pois dependiam dos sacerdotes de origem europeia para satisfazerem as suas necessidades espirituais.18 A questão, como assinalado acima, no entanto, é repleta de matizes. Em muitos casos, o controle exercido pelos párocos ou missionários nas comunidades indígenas era consideravelmente restrito (e os motivos variavam: não dominavam o idioma, não tinham interesse, eram em número muito reduzido, entre outros).19

O artigo de Elisa Frühauf Garcia aborda a questão do estatuto dos índios na sociedade colonial a partir do caso das missões do Paraguai no século XVIII. Mais do que evidenciar o funcionamento de tal estatuto, a autora busca demonstrar como os próprios índios percebiam a sua condição jurídica diferenciada, sobretudo quando ela se apresentava como um entrave para as suas expectativas de realização pessoal.

Assim, este dossiê reúne artigos de pesquisadores que se dedicaram a analisar a questão das missões considerando algumas das variáveis já destacadas por alguns autores, como mencionado acima, mas postas em segundo plano pela historiografia em um dado momento. As disputas que envolviam os espaços missionários, as incertezas características das áreas fronteiriças, a pouca operacionalidade das categorias dicotômicas e a indissociabilidade entre os contatos religiosos e o estabelecimento do poder colonial são aspectos desenvolvidos pelos autores convidados. Boa leitura!

Notas

1. Para uma avaliação crítica da tônica dominante na historiografia sobre as missões, veja-se: David Sweet, “The Ibero-American Frontier Mission in Native American History”, In: Erick Langer; Robert Jackson, The New Latin American Mission History,Lincoln, University of Nebraska Press, 1995; [ Links] Salvador Bernabéu, “La invención del Gran Norte ignaciano: la historiografía sobre la Compañía de Jesús entre dos centenarios (1992-2006)”, In: (coord.), El Gran Norte Mexicano, Sevilla, CSIC, 2009. [ Links ] 2. Herbert Eugene Bolton, “La misión como institución de la frontera en el septentrión de Nueva España” [1917], Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la fronteraAnexo 4, Revista de Indias, Madri, 1990, CSIC, p. 45-60; [ Links ] David Sweet, “The Ibero-American Frontier Mission in Native American History”, In: Erick Langer; Robert Jackson, The New Latain American Mission History, Lincoln, University of Nebraska Press, 1995; [ Links ] Salvador Bernabéu, “La invención del Gran Norte ignaciano: la historiografía sobre la Compañía de Jesús entre dos centenarios (1992-2006)”, In: ______. (coord.), El Gran Norte Mexicano, Sevilla, CSIC, 2009. [ Links ] 3. Charles Boxer, A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770), Lisboa, Edições 70, 1989, p. 95. [ Links ] 4 Herbert Eugene Bolton, “La misión como institución de la frontera en el septentrión de Nueva España” [1917], Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la frontera, Anexo 4, Revista de Indias, Madri, 1990, CSIC, p. 45-60. [ Links ] 5. Ronaldo Vainfas, Antônio Vieira: jesuíta do rei, São Paulo, Companhia das Letras, 2011. [ Links ] A relação dos jesuítas com o Império português foi bem desenvolvida em: Dauril Alden, The Making of an Enterprise. The Society of Jesus in Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750, Stanford, Stanford University Press, 1996. [ Links ] 6. Ronaldo Vainfas, Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 2008. [ Links ] 7. Sobre as reformulações do projeto missionário dos jesuítas no Brasil, veja-se: Charlotte de Castelnau-L’Estoile, Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil, 1580-1620. Bauru, Edusc, 2006. [ Links ] 8. Luiz Felipe Baeta Neves, O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1978, p. 117 (grifos no original). [ Links ] 9. James Lockhardt, Los nahuas después de la conquista: historia social y cultural de los indios del México central, del siglo XVI al XVIII, México, Fondo de Cultura Económica, 1999, p. 291. [ Links ] 10. James Axtell, The invasion within: the contest of cultures in Colonial North America, New York, Oxford University Press, 1985; [ Links ] Mark Meuwese, Brothers in arms, partners in trade: Dutch-indigenous alliances in the Atlantic world, 1595-1674, Leiden; Boston, Brill, 2012. [ Links ] 11. Serge Gruzinski, A colonização do imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI-XVIII, São Paulo, Companhia das Letras, 2003. [ Links ] 12. Maria Regina Celestino de Almeida, Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003. [ Links ] 13. Steve Stern, Los pueblos indígenas del Perú y el desafío de la conquista española-Huamanga hasta 1640, Madri, Alianza, 1986; [ Links ] Ronaldo Vainfas, A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. [ Links ] 14. Cristina Pompa, Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial, Bauru, SP, Edusc, 2003; [ Links ] Paula Montero (org.), Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural, São Paulo, Globo, 2006; [ Links ] Cynthia Radding, Paisajes de poder e identidad: fronteras imperiales en el desierto de Sonora y bosques de la Amazonía, Sucre, Fundación Cultural del Banco Central de Bolivia; Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia, 2005. [ Links ] 15. Robert Ricard, La conquista espiritual de México, México, Fondo de Cultura Económica, 1986 [1947] [ Links ]. O tema também foi desenvolvido por Charles Boxer, A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770), Lisboa, Edições 70, 1989. [ Links ] 16. Para uma relação entre a condição indígena e a construção de uma sociedade de Antigo Regime na América colonial, veja-se: Karen Spalding, “¿Quiénes son los indios?”, In: ______., De indio a campesino, Lima, Instituto de Estudios Peruanos, 1974, p. 147-193; [ Links ] Jacques Poloni-Simard, “Historia de los indios en los Andes, los indígenas en la historiografía andina: análisis y propuestas”, Mundo Nuevo Nuevos Mundos, revista eletrônica, Paris, 2011. Disponível em: <www.nuevomundo.revues.org / 651.htm>. Acesso em: 16 de junho de 2012. [ Links ] 17. Robert Ricard, La conquista espiritual de México, México, Fondo de Cultura Económica, 1986 [1947] [ Links ]; Ignacio Osorio Romero, La enseñanza del latín a los indios, México, D.F., Universidad Nacional Autónoma de México, 1990; [ Links ] Margarita Menegus Bornemann; Rodolfo Aguirre, Los indios, el sacerdocio y la Universidad en Nueva España, siglos XVI-XVIII, México, Universidad Nacional Autónoma de México, 2006; [ Links ] Monique Alaperrine-Bouyer, La educación de las elites indígenas en el Perú colonial, Lima, Instituto Francés de Estudios Peruanos; Instituto Riva-Agüero; Instituto de Estudios Peruanos, 2007; [ Links ] Pilar Gonzalbo Aizpuru, Historia de la educación en la época colonial: el mundo indígena. México, El Colegio de México, Centro de Estudios Históricos, 2000. [ Links ] 18. Juan Carlos Estenssoro, Del paganismo a la santidad: la incorporación de los indios del Perú al catolicismo, 1532-1750, Lima, Instituto Francés de Estudios Andinos, 2003. [ Links ] Tal panorama começou a se modificar durante as reformas ibéricas da segunda metade do século XVIII, quando as promessas de igualdade jurídica aos índios incluíam o incentivo ao exercício do sacerdócio, inclusive para os índios das regiões de fronteira. Sobre o tema, veja-se: David Weber, Bárbaros: los españoles y sus salvajes en la era de la Ilustración, Barcelona, Crítica, 2007, [ Links ] especialmente o capítulo 3, “La ciencia de criar hombres”, p. 139-205.
19. Sobre o tema, veja-se, por exemplo, James Lockhardt, Los nahuas después de la conquista: historia social y cultural de los indios del México central, del siglo XVI al XVIII, México, Fondo de Cultura Económica, 1999. [ Links ]

Elisa Frühauf Garcia – Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: [email protected]


GARCIA, Elisa Frühauf. Apresentação. Tempo. Niterói, v.19, n.35, jul. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Uma História do Esporte para um País Esportivo / Tempo / 2013

Precisamente o que os historiadores sociais do esporte fazem? Eles
examinam os esportes como textos, formações ou práticas sociais,
com o propósito de entender ambos, sociedade e esporte. Perguntam
e respondem sobre a natureza e formato do esporte em certos
períodos, sobre como e por que se concebem formas particulares
de praticá-lo, sobre os signi!cados que os agentes humanos a ele
concedem, sobre con”itos e contestações que existem ao seu redor,
sobre padrões de continuidade e de mudanças nas experiências
e estruturas esportivas e sobre o signi!cado social das práticas
esportivas no contexto de outras práticas, processos e dinâmicas.1

A organização de um campo de investigação histórica tendo por objeto as práticas corporais institucionalizadas,2 notadamente o esporte, no cenário internacional, data da virada dos anos 1960 e 1970. Já no Brasil, ainda que desde o século XIX existam experiências ligadas à ‘preservação’ da memória de diferentes modalidades esportivas, foi apenas na década de 1990 que surgiram os primeiros sinais de uma maior estruturação dos estudos históricos que se debruçam sobre tais objetos.3 Naquele momento, há pelo menos uma década, outras disciplinas das ciências sociais, notadamente a Antropologia e a Sociologia, já dedicavam uma atenção maior ao desdobramento das investigações pioneiras de José Sérgio Leite Lopes, Simoni Guedes e Roberto DaMatta.

No Brasil, as primeiras iniciativas de conformação da “História do Esporte” — utiliza-se uma metonímia para designar práticas corporais institucionalizadas — não se iniciaram na disciplina História, mas sim no âmbito da Educação Física. Na primeira persistiam desconfianças relativas à propriedade do tema, bastante semelhantes às que existiam com outros objetos que interessavam mais aos historiadores culturais.4 A segunda passava por um movimento de reavaliação, que induziu a uma maior proximidade com os estudos socioculturais, contrapondo, ao menos momentaneamente, a forte relação que existia na área com as investigações experimentais de natureza biomédica.

Uma maior proximidade entre a História do Esporte e a História foi observada apenas na primeira década do século XXI. Como indícios, é possível apontar a criação de simpósios temáticos nos eventos organizados pela Associação Nacional de História, a maior presença do tema em revistas especializadas5 ou de divulgação científica, o crescimento do número de dissertações, teses e livros acadêmicos sobre o assunto, entre outros.

Esse acolhimento tem certamente relação com as mudanças notadas na disciplina-mãe, que tem demonstrado maior abertura a novas possibilidades de investigação, bem como com os movimentos de consolidação da História do Esporte, sobretudo no decorrer das duas últimas décadas, quando o aperfeiçoamento de suas experiências foi percebido.

Tanto ou mais do que esses dois aspectos, deve-se considerar também a força do fenômeno esportivo na sociedade brasileira. O que era notável nos anos finais do século XIX e cresceu no decorrer do XX teve mais importância na primeira década do XXI, não só em função de o esporte ter se tornado um dos principais produtos dos meios de comunicação e da indústria de entretenimento como um todo, como também pelo fato de que o Brasil, na esteira de seu crescimento econômico e do aumento de sua visibilidade no cenário internacional, sediará os dois maiores eventos esportivos mundiais — a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos de Verão.

Nesse país tão e cada vez mais esportivo, não surpreende que o assunto tenha se imposto aos intelectuais e pesquisadores, inclusive aos historiadores, filhos atentos do seu tempo, como sugeria Lucien Febvre.

Este dossiê intenta apresentar um panorama desse campo de investigação nos últimos anos. Sua estruturação partiu de um olhar sobre as discussões que majoritariamente vêm ocorrendo em eventos e periódicos científicos, bem como sobre os caminhos que tal subdisciplina pode vir a trilhar.

A edição inicia-se com uma contribuição de Wray Vamplew, professor emérito da Universidade de Stirling, na Escócia / Reino Unido, autor de livros-referência (entre os quais o renomado “Pay up and play the game: professional sport in Britain, 1875–1914”) e editor de importantes periódicos especializados (atualmente está à frente do International Journal of Sport History). Por sua carreira destacada, na qual sobressaem suas contribuições para a história econômica do esporte, em 2011, recebeu o prêmio do ano da International Society of History of Physical Education and Sport (ISHPES). Sua análise da configuração da História do Esporte no cenário internacional é certamente um contributo para que olhemos ao nosso movimento nacional, uma base que pode nos ajudar em caminhadas futuras.

Na sequência, dois jovens pesquisadores, João Manuel Casquinha Malaia Santos (Universidade Nove de Julho, em São Paulo), um especialista em história econômica do esporte, e Maurício Drumond (Sport: Laboratório de História do Esporte, Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro), que tem dado significativas contribuições à história política do esporte, fazem uma instigante e perspicaz análise da historiografia do futebol no Brasil. Como em alguns momentos esse foi praticamente o único tema investigado (ainda é o majoritário, mas já divide espaço com outras modalidades), fazia-se necessária tal abordagem, mesmo porque os modelos de pesquisa adotados para discutir o tema, não poucas vezes com imprecisões ou inadequações, foram e têm sido inspiração para muitos estudos.

Cleber Dias, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, que tem se dedicado desde seu curso de Mestrado a discutir as relações entre o esporte e o espaço urbano, faz um balanço crítico de um dos objetos mais abordados nessa primeira década de estudos históricos: o surgimento do fenômeno esportivo nas mais diversas cidades brasileiras. Compreender melhor a peculiaridade de cada uma dessas experiências é um desafio fundamental para que possam ser evitadas posturas etnocêntricas e possam ser compreendidas a plasticidade e a riqueza da prática.

Silvana Vilodre Goellner, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, discute um dos temas mais comuns nos estudos históricos do esporte no Brasil e no mundo: as questões de gênero. A pesquisadora alerta para a necessidade de ampliar o escopo das investigações, não as restringindo a análises sobre mulheres. Faz-se necessário não só enfatizar o aspecto relacional, sugerindo-se até mesmo um olhar mais atento às questões da masculinidade, como também levar em consideração outros grupos como homossexuais e transgêneros.

Augusto Nascimento, pesquisador do Instituto de Investigação Científica Tropical / Lisboa, que estuda a história de São Tomé e Príncipe, e Andrea Marzano, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio, que desenvolve pesquisas sobre a história angolana, lançam um olhar panorâmico sobre a presença e a importância do esporte nas antigas colônias portuguesas na África. Destaca-se a postura dos autores em se afastar de abordagens maniqueístas, percebendo o quanto a prática foi, por ambos os lados, metrópole e movimentos nativistas, mobilizada para seus intuitos específicos.

Enquanto os artigos anteriores são balanços historiográficos de ramos específicos do campo da história do esporte, os dois seguintes são estudos de caso, o primeiro escrito com o uso de fontes documentais, o segundo a partir de um trabalho de campo de natureza antropológica.

Victor Andrade de Melo, coordenador do Sport – Laboratório de História do Esporte e do Lazer, e Marcelo Bittencourt, especialista na história de Angola, debruçam-se sobre a política colonial portuguesa, analisando o Boletim Geral do Ultramar e prospectando o quanto o Estado Novo, à busca de manter seu Império, operou a prática esportiva.

Vale lembrar que os dois artigos anteriores são frutos de um projeto que está em andamento desde 2008, desenvolvido por pesquisadores de três instituições brasileiras e duas de Portugal. Seu principal intuito é investigar, de forma comparativa, a presença do esporte nos países de língua oficial portuguesa. A ambição de tal pesquisa é, portanto, extrapolar as fronteiras nacionais, percebendo-se similaridades e diferenças entre localidades que têm algum grau de relação histórica.

Para encerrar a publicação, Marcos Alvito, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Esporte e Sociedade da Universidade Federal Fluminense, analisa um tema urgente e de grande visibilidade, as torcidas organizadas, as quais nos últimos anos têm estado constantemente presentes nos meios de comunicação, não poucas vezes sendo tratadas de forma apressada e preconceituosa. O autor chama a atenção para a necessidade de melhor considerar essa que é uma das facetas mais conhecidas e importantes do fenômeno esportivo.

Distintas abordagens metodológicas (Histórias Comparada, Social, Cultural e Política), diferentes recortes espaciais (Brasil, África, Portugal, cenário internacional), diversos temas, oito instituições universitárias de três países: acredita-se que se trata de um bom panorama dos estudos históricos sobre o esporte.

No entanto, não se equivoque o leitor, muita coisa ficou de fora: temas, abordagens, modalidades e investigações espalhadas por todo o país. A diversidade desse alvissareiro campo de pesquisa efetivamente não caberia na íntegra nas dimensões reduzidas de um dossiê. O que é observado no presente trabalho é a ponta de um iceberg, que, ao contrário do que comumente ocorre com esses enormes blocos de gelo, cresce enquanto navega pelas águas de Clio.

Notas

1. Nancy Struna, “Social History and sport”, In: Jay Coakley; Eric Dunning, Handbook of Sports Studies, London, Sage, 2007, p. 187-203. [ Links] 2. Certas práticas corporais, mesmo com peculiaridades, passaram por processos aproximados de institucionalização, constituição de um campo ao seu redor, podendo ser investigadas por áreas de pesquisa específicas: esporte, educação física (entendida tanto como disciplina escolar quanto uma área de conhecimento), ginástica, dança, atividades físicas alternativas (antiginástica, eutonia, ioga etc.), alguns fenômenos análogos de períodos anteriores à Era Moderna (as práticas de gregos, os gladiadores romanos, os torneios medievais, um grande número de manifestações lúdicas de longa existência), entre outras (como a capoeira).
3. Para mais informações, ver Victor Andrade De Melo; Rafael Fortes, “Sports history in Brazil: an overview and perspectives“, Sport History Review, vol. 42, n. 2, p. 102-116,2011. [ Links] 4. Para um debate sobre a pequena presença do tema na história brasileira até os anos 1990, ver Patrícia Genovez, “O desafio de Clio: o esporte como objeto de estudo da História”, Lecturas: Educación Física y Deportes, Buenos Aires, n. 9, 1998. [ Links ] 5. Desde 2008 existe um periódico integralmente dedicado ao tema, a Recorde: Revista de História do Esporte.

Victor Andrade de Melo – Professor Doutor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected]

Marcelo Bittencourt – Professor Doutor na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected]


MELO, Victor Andrade de; BITTENCOURT, Marcelo. Apresentação. Tempo. Niterói, v.19, n.34, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

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História do Trabalho e dos Trabalhadores: novas abordagens / Tempo / 2012

Ya me gritaron mil veces que me regrese
a mi tierra por que aquí no quepo yo,
quiero recordarle al gringo:

Yo no crucé la frontera, la frontera me cruzó.
América nació libre el hombre la dividió
ellos pintaron la raya para que yo la
brincara y me llaman invasor.

Los Tigres del Norte. Somos más americanos.

Nos últimos anos, as Américas têm vivido importantes processos de transformação. Do Alaska à Tierra del Fuego, os governos dos anos 1990, favoráveis à não intervenção do Estado na economia e nas diversas questões sociais, deram lugar a novas tendências políticas, que retomaram o papel dinâmico do Estado. Esses governos que se iniciaram no alvorecer do novo milênio não são fáceis de serem definidos, suas ideologias são difusas e vão da enunciação de um “socialismo do século XXI”, como acontece na Venezuela, à rejeição de qualquer aproximação com essa palavra, como no Brasil. Em alguns casos, as experiências partem de forças políticas preexistentes e se nutrem do passado, como é o caso da Argentina, que enfatiza os vínculos com o nacional-desenvolvimentismo da década de 1940, ou da Nicarágua e de El Salvador, que se relacionam com as guerrilhas dos anos 1960 e 1970. Outros, pelo contrário, enfatizam a novidade e a ruptura com o passado, como acontece na Bolívia e no Equador. Até os Estados Unidos podem ser assimilados nesse grupo se pensarmos que todos esses países têm em comum a rejeição das políticas implementadas ao longo da década de 1990 e que foram identificadas como parte do paradigma neoliberal ou neoconservador.

Certamente que a revisão do neoliberalismo pode ser vista como um elemento muito difuso de identificar, principalmente se colocarmos lado a lado a Venezuela e os Estados Unidos, países que estão mergulhados em disputas constantes. Há, porém, um elemento pouco mencionado e que deve ser ressaltado em relação ao dossiê aqui apresentado: o fato de que todos eles são produto de importantes mobilizações populares e do apoio explícito dos trabalhadores organizados. É matéria de discussão se esses governos são ou não favoráveis aos trabalhadores de seus respectivos países.1 O que está fora de discussão é o fato de que as principais centrais operárias lhes deram seu respaldo, logístico e financeiro, durante as campanhas eleitorais, e que esse respaldo institucional foi referendado pelo amplo apoio popular em comícios e, fundamentalmente, em votações com altíssimo percentual de votos operários. Sendo assim, o que está em questão, então? Compreender se os trabalhadores conseguem reconhecer quais são seus interesses? Se esses interesses coincidem com a “consciência de classe”? Se esta é verdadeira ou falsa? Se essas perguntas estão corretas e os governos progressistas da região não o são tanto, por que os trabalhadores insistem em apoiar quem não lhes reconhece? É uma questão cultural? É política? É econômica?

O dossiê a seguir não responde diretamente a essas perguntas, até porque não foi o ponto de partida dos autores aqui reunidos. É o organizador do dossiê quem entende que estes artigos nos ajudam a pensar essas questões de um ponto de vista historiográfico. Ao se perguntarem como esses trabalhadores têm sido vistos no passado e como eles se identificavam, os autores nos permitem avançar sobre as perguntas colocadas, como veremos quando analisarmos os artigos.

Este dossiê vem a contestar o senso comum de boa parte dos estudos do trabalho. Em grande medida, os historiadores que pesquisam os mundos do trabalho tentam compreender as ações dos trabalhadores pensando que todos eles conformam um coletivo único com um alto grau de homogeneidade, que tem sido denominado “classe trabalhadora”. A classe trabalhadora foi analisada a partir de um modelo teórico específico, e a partir deste se determinava se os trabalhadores se comportavam apropriadamente segundo o que a teoria determinava. De modo geral e simplificando, os trabalhadores caíram em uma série de armadilhas da fenomenologia, que demonstravam a fraqueza da sua consciência e, assim, de serem capazes de se representar a si próprios. Se eles estavam errados, alguém deveria determinar o que era certo e levar a verdadeira consciência a esses grupos, para que, de alguma maneira, eles chegassem a se reconhecer como “trabalhadores” e como parte de um grupo social diferente, com um destino, libertar-se das correntes que os oprimiam e, desse modo, atingir um objetivo superior: libertar a humanidade como um todo. O objetivo último era o socialismo, o fim da história. Se a obrigação dos trabalhadores é esse destino transcendente, os historiadores que a seu estudo se dedicam contribuem para compreender melhor o processo de transformação da sociedade e auxiliam os trabalhadores em sua luta pelo socialismo. Ser historiador do movimento operário implica uma dupla responsabilidade: melhorar o conhecimento científico e contribuir para a transformação social.

Esse pode ter sido o projeto de E. P. Thompson e de outros historiadores socialistas do fim do século XX. Ler A formação da classe operária Inglesa2 é percorrer esse caminho. O editorial inicial do History Workshop tinha um sentido similar.3 Para esse coletivo, o operariado continuava a ser o sujeito da transformação social. A diferença entre esses dois textos estava em que, para E. P. Thompson o projeto revolucionário havia sido concluído com a primeira institucionalização dos trabalhadores e, para os membros do Workshop, a classe continuava a ser a única garantia de um futuro diferente. Porém, os dois coincidiam na existência da classe e de seu potencial revolucionário. O socialismo necessariamente deveria contar com a classe, em uma situação subalterna, na leitura vanguardista de E. P. Thompson4 do processo político inglês, ou com uma centralidade maior, no populismo romântico dos membros do Workshop. Alguns poucos anos depois – e traz os duros golpes sofridos pelo movimento operário na Inglaterra durante o governo de Margaret Thatcher –, outro historiador socialista, Stuart Hall, questionava os modelos teleológicos em um momento em que o movimento operário se debatia por sua sobrevivência antes que pelo socialismo. Como apresenta Stuart Hall: “[…] continuamos a pensar dentro de uma lógica política unilinear e irreversível, movida por alguma entidade abstrata que denominamos o econômico ou o capital que se desenrola rumo ao seu fim predeterminado”.5

Hall recolocou a questão, porque, até pouco tempo atrás, fazer história dos trabalhadores implicava um recorte das lutas e resistências, consideradas como os temas corretos; caso contrário, contribuía-se para uma leitura conservadora ou reacionária da realidade. Os historiadores entendiam que, como os organizadores do movimento operário partilhavam diversas teorias de transformação social – desde o anarquismo até as distintas famílias do socialismo –, então a mudança era necessária para o conjunto dos trabalhadores. Isso é parcialmente correto. Para boa parte da militância política entre os trabalhadores e para uma parte muito maior ainda dos intelectuais engajados, o objetivo principal devia ser o socialismo. Compreender as organizações operárias e suas lutas era compreender a formação da consciência de classe. Como o destino do trabalhador era se tornar um revolucionário, sua consciência deveria ser revolucionária. Alguns estudos relativizaram isso, entendendo que a consciência podia não ser revolucionária, mas deveria ser autônoma e estar enquadrada nos limites da classe.

Porém, para boa parte dos trabalhadores, esse não parecia ser um fim em si mesmo. Outras questões apareciam como mais relevantes: a luta pela sobrevivência, contra o desemprego ou a melhora das condições de vida. Ocasionalmente, podiam engajar-se nas lutas políticas, votar, participar de comícios e apoiar os revolucionários, mas esse engajamento era menor se comparado às lutas no dia a dia. Para muitos historiadores e militantes, teria prevalecido, entre os trabalhadores, no passado e no presente, a “moral dos escravos”,6 ou seja, a rejeição dos objetivos mais elevados (o socialismo) pelos imediatos (como melhores salários e condições de vida ou a obtenção de terras). Isso porque muitos historiadores partem da base de que o proletariado tem uma missão histórica, e que esta é o socialismo.7

O grande problema dessa interpretação é que ela foi pensada no século XIX, no momento em que se estabelecia de forma hegemônica e vitoriosa o capitalismo industrial na Inglaterra. A expansão colonial permitiu a sua consolidação, ao tempo que melhorava as condições de vida dos trabalhadores no coração do Império e o objetivo de derrotar o capitalismo transmutou na necessidade de civilizar os bárbaros. Impunha-se a moral dos senhores, como pretendia Nietzsche, mas, como contraparte, os trabalhadores também eram senhores, se comparados aos colonizados. Em parte, essa visão é herdeira da Primeira Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, que elevava os direitos da burguesia à categoria de universal e o proletariado como sua contraparte necessária. Escravos, prostitutas, camponeses, vizinhos não eram agentes da transformação, portanto não eram dignos de serem estudados, a não ser como transgressores ou alienados. Esforços posteriores foram realizados para incorporá-los à classe, como vimos com E. P. Thompson.

Depois da Segunda Guerra Mundial e com o processo de descolonização em andamento, outros sujeitos chamaram a atenção, como podemos ver na Declaração de Direitos Humanos da ONU, de 1948. Essa declaração reconhecia os direitos das minorias, inevitável depois da Shoá e com o início das lutas de descolonização. Mesmo assim, os estudos do trabalho demoraram a incorporar a diversidade e os múltiplos sujeitos de direitos, que partem dos mundos do trabalho, mas que não se restringem a eles. Esses sujeitos de direito cruzam-se com outras questões, com outras situações, com outros sujeitos. Lembremos que alguns teóricos do marxismo encaram a questão da diversidade e da necessidade de pensar para além das barreiras de uma classe que se apresentava mais como uma quimera que como uma realidade efetiva. Assim, temos José Carlos Mariategui lidando com a questão indígena e Antonio Gramsci preocupado com a diversidade do proletariado italiano, que se lhe figurava como um conglomerado de grupos diferentes antes que como um grupo homogêneo.8

Outro nível de complexidade deve ser incorporado a esta análise. O modelo de trabalhador revolucionário pode encaixar-se na teoria, mas dificilmente na prática. Também temos de pensar que o trabalhador, a tempo completo e plenamente incorporado ao mercado, pode ser um modelo inglês, mas dificilmente pode ser assimilado nas Américas. Com certa dificuldade, podemos assimilar os trabalhadores urbanos americanos a esse modelo. O setor informal, as alternativas ao mercado de trabalho ou o preenchimento das necessidades básicas fora do mercado, por sistema de trocas e produção no âmbito doméstico, não podem ser subestimados. E se nos deslocarmos do setor urbano, depararemos com comunidades camponesas, trabalhadores em regime análogo ao sistema escravo, trabalhadores temporários, indígenas e tantas variedades que é impossível homogeneizar todos em um único sistema ou modelo. Sem cair em uma atomização excessiva do sujeito, também temos de incorporar as dinâmicas locais para compreender como esses trabalhadores se articulam, se organizam e para compreender quais são seus objetivos.

Os estudos pós-coloniais nos advertem da primazia dos modelos europeus e das deformações analíticas que isso ocasiona na procura de quimeras inalcançáveis – o trabalhador revolucionário, por exemplo – e no estudo das deficiências e carências, antes que na análise dos elementos realmente existentes.9 Dessa maneira, no lugar de ver a política em nossa região como viciada pelo populismo, podemos proceder de modo a compreender aquilo que é denominado como populismo e o que ele representa nas práticas políticas e culturais de nossa região.10 Justamente são os estudos pós-coloniais os que têm-nos permitido repensar o sujeito trabalhador como uma aporia. Para grande parte das sociedades americanas o trabalho não é a categoria que organiza as suas vidas. As mesmas se organizam a partir das suas atividades comunitárias e o trabalho é uma delas, como acontece com as comunidades indígenas e camponesas. Esta situação convive com uma realidade diametralmente oposta como é a do trabalhador urbano, industrial, organizado e militante. Mas esse trabalhador urbano não é a vanguarda do conjunto porque este não é o objetivo do resto dos setores subalternos. Pelo contrário, esse tipo de trabalhador específico, que cresceu até a década de 1970, quase sumiu nos anos 1990, voltando com força nos últimos anos, mas como produto da ação dos Estados antes que como parte de estratégias do capital ou como lutas específicas desse setor. A grande lição dos anos 1990 foi que as pessoas se posicionaram e disputaram com o Estado e o capital a partir de outros coletivos: desempregados, aposentados, moradores, sem-terra, camponeses, trabalhadores informais, e assim por diante. A história não foi concluída,11 cobrou um novo significado e nos chamou a atenção para outros sujeitos, que pedem seu direito de pertença aos mundos do trabalho, requerendo que esses mundos alarguem suas fronteiras.

Este dossiê é produto de uma tentativa de reunir algumas temáticas e pesquisadores que demonstram a necessidade de repensar a história do trabalho tal como foi feita durante um bom tempo em nossas universidades. As leituras dos textos que aqui são apresentados permitirão fazer uma passagem pelas tendências atuais da historiografia desse assunto. É por isso que os assuntos são variados. Escravos e prostitutas são trabalhadores, mas podem ser considerados trabalhadores no sentido estrito da adequação a um paradigma transformador da realidade? Como esses sujeitos podem tentar modificar a realidade como um todo, se mal conseguem modificar seu opressivo cotidiano? Prostitutas e escravos carregam uma forte mácula social que os limitaria e os puniria. Porém, eles demonstram as possibilidades existentes em espaços sociais limitados e como agir segundo seus próprios parâmetros. De fato, colocar aqui, neste dossiê, escravos da cidade de Buenos Aires é desafiador. Em princípio, porque neste período não nos deparamos com trabalhadores que não estão inseridos no sistema capitalista de produção. Eles são trabalhadores, mas não se definem a si próprios com esse vocábulo. Trabalhador escravo é um problema para os estudos do trabalho. São enormes os esforços realizados para poder dar um lugar na história do trabalho aos escravos, porém esses esforços encontram algumas dificuldades, em princípio porque não é essa a palavra pela qual eles próprios se definem. Ser escravo não implica unicamente não dispor da força de trabalho livremente, há outros elementos que tornam essa categoria marcante e decisiva para a sociedade em que tem lugar. Com as prostitutas acontece algo parecido e com o fator complicador de conviver no mesmo espaço com trabalhadores. As questões de gênero e a criminalização e a exclusão das prostitutas por parte dos trabalhadores colocaram em questão seu caráter de membros do mundo do trabalho, mas novamente as aproximam desse mundo sua presença nos bairros operários e o fato de terem entre os operários sua clientela, pelo menos aquelas que são analisadas neste dossiê. O artigo de María Verónica Secreto, sobre os escravos de Buenos Aires, e o de Cristiana Schettini, sobre as prostitutas do Rio de Janeiro, se permitem uma indagação do cotidiano e das formas de sobrevivência em uma situação de desamparo e nos apresentam a possibilidade de vê-las como sujeitos de direito.

O artigo de Luigi Biondi traz à tona a constituição legal e institucional do trabalhador como sujeito. O autor analisa a conformação de uma rede de associações de assistência entre os trabalhadores paulistas de origem italiana. O interessante do caso é verificar como a etnicidade inicial dá lugar a conflitos entre trabalhadores e patrões no interior desse grupo quando as relações de trabalho começam a identificar de forma poderosa os detentores do capital e os trabalhadores manuais. Na medida em que essa ruptura vai-se produzindo durante o período das grandes migrações, as associações de socorros mútuos de origem italiana em São Paulo mudam também suas características.

Finalmente, os dois artigos restantes focam a relação entre trabalhadores formais e informais com a política institucional. Esses estudos abordam uma questão central da cultura política latino-americana, que é o populismo. Os autores questionam a forma como os trabalhadores se vinculam a sindicatos e partidos e como seus interesses podem ser coincidentes, sem que isso implique uma identificação entre as partes. Mas também analisam como a política auxilia na conformação de estratégias de ação, embora cubra uma relação que se sustenta com base na desconfiança. A política, entendida aqui como a dinâmica dos acontecimentos, é central nesses dois casos, antes que o político, entendido aqui como o institucional. Luigi Negro, em seu artigo sobre as relações entre um político profissional, como era Otávio Mangabeira, e os trabalhadores baianos, analisa um vínculo que extrapola a relação com os partidos políticos. Ao mesmo tempo que Mangabeira se torna uma figura de destaque, também sua relação com os trabalhadores torna-se mais ambígua em um período de constituição de lideranças populistas, em fins da década de 1930. No caso analisado por Gillian McGillivray, o período escolhido, dos anos 1930 aos anos 1950, é significativo para compreender a política cubana e a participação dos trabalhadores cubanos em uma sociedade que caminhava em direção à radicalização do regime de Fulgencio Batista. O artigo também nos ajuda a compreender como Batista construiu sua legitimidade entre os trabalhadores cubanos, principalmente entre os cortadores de cana, e a posterior ruptura com eles.

Entendo que este dossiê ajudará na compreensão do rumo atual dos estudos sobre as questões do trabalho e dos trabalhadores.

Notas

1. Para uma visão crítica do desenvolvimento desses processos na América Latina, ver BORÓN, Atilio. Socialismo siglo XXI. ¿Hay vida después del neoliberalismo?. Buenos Aires: Luxemburg, 2008. [ Links] 2. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v(1. ed. em inglês: 1963). [ Links] O ideal é repassar o conteúdo dos três volumes para compreender a operação historiográfica thompsoniana.
3. Editorials History Workshop Journal. History Workshop Journal, Oxford: Oxford University Press, n. 1, primavera 1976. [ Links ] 4. Quando utilizo o termo vanguardista, estou-me referindo à participação de Thompson em grupos de intelectuais que se negavam a conciliar políticas para além de sua própria agenda. É bem conhecida sua capacidade para acabar com acordos mínimos, como fica evidente em El culturalismo – debates en torno a Miseria de la teoría. In: SAMUEL, Raphael (Ed.). Historia popular y teoría socialista, p. 271-331. [ Links ] Para matizar essa afirmação, devemos lembrar que alguns anos depois, em seus estudos sobre o século XVIII, Thompson apresentou o “pobre” como um sujeito dinâmico e contestatário que se afirma na lei burguesa para poder defender seus direitos. Ver THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores. A origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997 (1. ed. em inglês: 1975). [ Links ] 5. HALL, Stuart. The hard road to renewal. Londres: Verso, 1988. p. 273 apud BABBHA, Hommi. O pós-colonial e o pós-moderno. A questão da agência. In: BABBHA, Hommi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p. 246. [ Links ] 6. NIETZSCHE, Friedrich. Más allá del bien y del mal. Buenos Aires: Hyspamerica, 1983. p. 125 (1. ed.: 1886). [ Links ] 7. Poderíamos dizer que esses historiadores se preocuparam mais com as últimas linhas do Manifesto comunista e suas promessas messiânicas que com a primeira frase: “A história de toda a sociedade que existiu até agora é a história da luta de classes.” Ver MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 9 e 67 e. [ Links ] 8. GRAMSCI, Antonio. A questão meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 (1. ed.: 1935); [ Links ] e MARIATEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão Popular, 2008 (1. ed.: 1928), [ Links ] especialmente os ensaios “O problema do índio” e “O problema da terra”.
9. BABBHA, H. Op. cit.; e LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. [ Links ] 10. Essa é a proposta de LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: FCE, 2005. [ Links ] 11. Nem à moda Fukuyama, nem à moda Lenin.

Norberto Osvaldo Ferreras – Professor associado do Departamento de História – UFF


FERRERAS, Norberto Osvaldo. Apresentação. Tempo. Niterói, v.18, n.33, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Ordens e Congregações Religiosas no Mundo Ibero – Atlântico / Tempo / 2012

Conta-se aos quatro ventos que a grande revisão historiográfica do momento está no campo político, negligenciado durante boa parte do século XX devido à ênfase nos estudos econômicos e sociais. O reencontro dos historiadores com o tempo curto, em bases distintas daquelas definidas pela historiografia oitocentista, só foi possível graças ao diálogo estabelecido com a Antropologia e a Sociologia. O saldo desse revival fez brotar o interesse pelas biografias individuais e coletivas, ressaltou a importância dos ritos e dos mitos para a construção da imagem pública dos governantes, destacou o diálogo entre as elites locais e o epicentro do poder, e deu um novo enfoque aos estudos institucionais. Assim, a história militar e a história da Igreja voltaram à cena para revelar, a partir de novos problemas e novas abordagens, personagens e enredos até então desconhecidos.

Nesse bojo, o clero católico, antes mencionado apenas para enaltecer os feitos prodigiosos de uma ordem ou do papado, passou a ser objeto de estudos prosopográficos. O foco, outrora atribuído aos santos fundadores de uma congregação ou a seus grandes intelectuais, deslocou-se para o baixo clero, mal-instruído e avesso aos votos de pobreza, obediência e castidade. Outras vezes, a reconstrução do perfil social dos religiosos apontou para a frouxidão no cumprimento das regras de diversas ordens. Assim, padres bígamos, traidores do Estado, freiras impuras de sangue emergiram de fontes variegadas para dar a conhecer outra face da história das ordens e congregações religiosas no mundo ibero-atlântico.1

O percurso dessa releitura temática foi trilhado por caminhos diferentes nos dois lados do Atlântico. Os investigadores lusos, diferentemente dos brasileiros, alinharam-se à historiografia francesa, retirando da penumbra e da marginalidade a História religiosa. Transformada em um campo de investigação, integrada à Historia geral, a História religiosa retoma a importância dos fatores religiosos no processo histórico. A partir da exploração dos ritos, das crenças e de suas implicações, procura alcançar a influência que a religião exerce sobre os domínios político, social, econômico ou cultural.2

A História religiosa não é, no entanto, um ramo da História sociológica ou da História cultural, ou, ainda, uma História comparada das religiões. Embora se debruce sobre questões institucionais, segue a apartada de uma história confessional. Considera a hegemonia do cristianismo na configuração geopolítica do Ocidente, mas reconhece a importância de outros monoteísmos em sua formação cultural, econômica e social. Ocupa-se das peregrinações, devoções, cultos populares, formas de piedade, heresias, teologias, crenças e suas representações, sem hierarquizar os fenômenos religiosos.

A evolução da História religiosa na França deve muito à Escola dos Annales e à Nova História. Muitos dos autores que contribuíram de maneira decisiva para formar esse campo de investigação, como Lucien Febvre, Marc Bloch, Jean Delumeau e Jacques Le Goff, desfraldaram a bandeira da História das mentalidades, das representações coletivas e da biografia, elegendo objetos de estudo de natureza religiosa. Legaram, dessa forma, à posteridade obras de peso.3 É o caso das biografias de Lutero e de São Luís de França; dos estudos inovadores sobre os ritos taumatúrgicos na consolidação do poder régio medieval e a incredulidade no limar da Renascença; e, ainda, das obras sobre os desdobramentos políticos e econômicos do movimento protestante, para citar apenas alguns exemplos.

O tratamento dispensado à religião nesses estudos e a enorme influência que exerceram no meio acadêmico consolidaram a História religiosa como uma linha de pesquisa que resultou em obras como a História religiosa da França, publicada em quatro volumes, entre 1988 e 1989, sob a direção de Jacques Le Goff e René Rémond.4

No Brasil, os estudos sobre a vida religiosa buscaram, em geral, o abrigo de outras searas. Em outras palavras, as pesquisas acadêmicas que tomaram como objeto de análise credos, doutrinas, associações confraternais, ordens religiosas ou o perfil socioeconômico dos sacerdotes e demais membros de uma organização identificaram-se, em geral, como estudos de História cultural, de História das mentalidades ou de História social.

À primeira vista, essa classificação obedece à natureza do problema a discutido,5 mas tem estreita ligação com a legitimidade das linhas de pesquisa já consolidadas. Na verdade, tal postura só se justifica porque ainda persiste uma superposição equivocada entre a História religiosa e a História eclesiástica, esta marcadamente confessional, prosélita, edificante. Como estratégia para neutralizar essa impressão, os historiadores que se debruçaram sobre temas religiosos vincularam seus estudos àqueles campos de investigação enriquecidos pelo diálogo fecundo com a Antropologia e a Sociologia. Essa aproximação, estimulada pelos estudos da Escola dos Annales, da História Social inglesa e da Nova História francesa e americana, resultou como se sabe, na produção de obras já clássicas sobre a vida religiosa no Brasil colonial, que inspiraram inúmeras teses e dissertações nas duas últimas décadas.6

Em Portugal, o arranque em direção à renovação dos estudos sobre a vida religiosa ocorreu, também, sob influência dos escritos da Nova História francesa.7 A inclusão de temas relacionados com a piedade popular, a magia, as devoções e peregrinações, na grade de investigação dos historiadores, promoveu a integração do fenômeno religioso à História geral. Nos anos 1980, a disciplina “História religiosa” surgia para suplantar a História eclesiástica, centrada exclusivamente na evolução histórica do clero e de seus protagonistas.

Considerando a religião como realidade estruturante das sociedades, dos grupos e dos indivíduos, os historiadores portugueses passaram a incorporar as singularidades dos percursos, as contradições e os conflitos da experiência religiosa, seus desdobramentos políticos e econômicos, sem desprezar, contudo, seus aspectos institucionais. Sob esse prisma, organizou-se uma História religiosa de Portugal, em quatro volumes, que enquadra a Igreja no cristianismo, valoriza a matriz cristã-católica na formação religiosa lusa, mas não descura os dois outros credos que também constituíram a realidade histórica da Península: o judaísmo e o islamismo; tampouco olvida as diversas sensibilidades religiosas e formas de sociabilidades decorrentes.8

O lançamento dessa obra, no final do segundo milênio, livre do tom apologético da História eclesiástica, inseriu novamente o tema da religião nas grandes sínteses da historiografia portuguesa e contribuiu decerto para rebater o anticlericalismo militante que ainda inibe os estudos sobre as ordens religiosas em Portugal, a despeito da riqueza de seus acervos documentais.9

No Brasil, embora ainda não se tenha desposado a ideia de uma História religiosa que atualize os conteúdos defasados ou imprecisos das sínteses disponíveis sobre a História da Igreja, na prática, essa revisão já está em curso.10 Os estudos recentes sobre as ordens religiosas em Portugal e na América portuguesa, que integram este dossiê, fazem parte deste movimento.

O primeiro artigo, escrito por Adone Agnolin, analisa a atuação dos jesuítas no processo de catequização das populações indígenas no Brasil colonial. Explica como a ideia do livre-arbítrio, desenvolvida sobre profundas bases humanistas, definiu a experiência dos inacianos no Novo Mundo e transformou-os nos primeiros “etnólogos” da América lusa. O historiador italiano, radicado no Brasil, explica por que o esforço de compreensão e de tradução dos códigos sagrados dos indígenas deu origem a uma “gramática da evangelização” e demonstra porque as dificuldades no processo de conversão conduziram à valorização dos sacramentos como principal instrumento da catequese.

O segundo artigo, assinado por Lígia Bellini e Moreno Laborda Pacheco, explora o papel das crônicas e dos tratados escritos por religiosas do ramo franciscano observante, no século XVII. Os autores demonstram como esses manuscritos, em tom encomiástico, sublinhavam os feitos da realeza para captar recursos e favores variados, esclarecendo, assim, porque um monarca cumulava de vantagens a certas congregações e seu sucessor nem sempre seguia a mesma orientação.

O terceiro estudo, da autoria de Jorge Victor de Araújo Souza, trata da ordem dos beneditinos no Rio de Janeiro seiscentista. Demonstra, com base no perfil social dos religiosos, o vínculo familiar dos monges com a elite local e a importância da herança que lhes cabia na condução dos negócios da ordem. O trabalho ultrapassa, portanto, os limites do claustro, aproximando a vida religiosa do Mosteiro de São Bento da dinâmica econômica colonial.

O quarto texto, escrito por Suely Creusa Cordeiro de Almeida, aborda a criação e a utilização dos espaços de recolhimento e reclusão feminina em Portugal e no Pernambuco colonial. Demonstra, com base na trajetória de mulheres que apelaram ao Conselho Ultramarino para ingressar na vida monástica ou para manter-se dignamente nelas, que conventos e recolhimentos assumiam múltiplas funções no Antigo Regime: contemplativas, punitivas e educativas.

O quinto e último artigo deste dossiê, assinado por Pollyanna Gouveia Mendonça, discute a feição do clero regular nos primeiros tempos da colonização do Maranhão. Demonstra como capuchinhos, carmelitas e mercedários, embora membros de ordens distintas e submetidos ao provincial da sua respectiva ordem, estiveram sob a mira do poder episcopal. Constata o despreparo dos religiosos, a frouxidão nos costumes e na observância das regras a que deveriam obedecer. Segundo a autora, até o século XVIII, época em que o cerco ao clero católico fechou-se nas altas rodas da sociedade portuguesa e tornou-se uma política régia, os desmandos eram abafados pelos próprios superiores eclesiásticos.

Caracterizado pela diversidade das ordens religiosas analisadas, considerando as experiências religiosas nos dois gêneros, este dossiê aponta para o vigor das pesquisas sobre o tema e sua importância para melhor compreensão nas dinâmicas sociais do mundo ibero-atlântico.

Notas

1. VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008; [ Links] SANTOS, Georgina Silva dos. A face oculta dos conventos: debates e controvérsias na mesa do Santo Ofício. In: VAINFAS, Ronaldo; MONTEIRO, Rodrigo Bentes (Orgs.). Império de várias faces: relações de poder no mundo ibérico da época moderna. São Paulo: Alameda, 2009. p. 141-150. [ Links] 2. DURAND, Jean-Dominique. Le parcours de l’histoire religieuse dans l’évolucion culturelle européenne. Lusitania Sacra, 2. série, t. XXI, p. 40-46, 2009. [ Links ] 3. FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Lisboa: Asa, 1994 [1. ed., 1928] [ Links ]; LE GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 1999 [1. ed., 1996] [ Links ]; BLOCH, Marc. Los reyes taumaturgos. México: Fondo de Cultura Económica, 1988 [1. ed., 1924] [ Links ]; FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1. ed., 1942] [ Links ]; DELUMEU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989 [1. ed., 1973] [ Links ].
4. LE GOFF, Jacques; RÉMOND, René. Histoire de la France religieuse. Paris: Seuil, 1988-1989. 4 v. [ Links ] 5. Cf. HERMANN, Jacqueline. História das religiões e religiosidades. In: Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 489- 497.
6. Refiro-me a BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; [ Links ] SOUZA, Laura de Mello e. Diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; [ Links ] VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. [ Links ] 7. Um dos marcos dessa virada foi, certamente, a mudança da direção do Centro de Estudos de História Eclesiástica, responsável pela primeira série da revista Lusitania Sacra (1956-1978), que, a partir de 1984, em seu novo enquadramento, passou a chamar-se Centro de Estudos de História Religiosa.
8. AZEVEDO, Carlos A. Moreira. Introdução geral. In: História religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000. p. XX. [ Links ] 9. A publicação recente do Dicionário histórico das ordens, institutos religiosos e outras formas de vida consagrada católica em Portugal reforça minha afirmação, uma vez que se ocupa, sobretudo, das ordens religiosas que atuam no mundo contemporâneo e pouco acrescenta às formadas na Idade Média e na Era Moderna. Cf. FRANCO, José Eduardo. Dicionário histórico das ordens, institutos religiosos e outras formas de vida consagrada católica em Portugal. Lisboa: Gradiva, 2010. Sobre o anticlericalismo em Portugal, ABREU, Luis Alberto de. A intriga teológico-política dos anti clericalismos. In: MARUJO, António; FRANCO, José Eduardo. Dança dos demônios. Lisboa: Temas e Debates, 2009. [ Links ] 10. Um bom exemplo é o livro decorrente do congresso sobre as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales. A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Unifesp, 2011. [ Links ]

Georgina Silva dos Santos


SANTOS, Georgina Silva dos. Apresentação. Tempo. Niterói, v.18, n.32, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Linguagens Políticas e História dos Conceitos: Propostas e Aplicações / Tempo / 2011

Embora cada autor tenha gozado de plena liberdade para escolher o assunto, despontam entre os artigos a seguir afinidades temáticas ou cronológicas que resultam, com certeza, dos interesses acadêmicos daquele que os convidou. No entanto, o objetivo do conjunto não consiste no exame de um período ou questão histórica a partir de ângulos diversos, mas, sim, na preocupação de chamar a atenção para um aspecto metodológico comum. Não obstante, dada a notória aversão das comunidades historiográficas, tanto nacionais quanto estrangeiras, por tais reflexões, as abordagens adotadas debruçam-se sobre aspectos concretos – à exceção, em parte, do último texto – e estão no centro de muitas investigações em curso, como cada um deles trata de evidenciar a partir de suas respectivas referências.

Em termos cronológicos, o dossiê está voltado para os séculos XVIII e XIX, entre os quais se situa o “tempo-sela” (Sattelzeit) que Reinhart Koselleck – e não somente ele – identifica como o momento axial em torno do qual se constitui a modernidade que nos rodeia. Espacialmente, três voltam-se para a antiga metrópole, sementeira em que se cultivaram as raízes da cultura brasileira, fato em princípio exorcizado pelo entusiasmo da independência, mas cuja importância, mesmo a contragosto, a historiografia tem sido cada vez mais obrigada a reconhecer, como a aproximação entre os profissionais de ambas as margens do Atlântico tem revelado de maneira eloquente nas últimas décadas. Outros dois revisitam o período joanino, entendido no sentido brasileiro da designação, de pontos de vista pouco ou nada abordados pela recente celebração dos 200 anos da chegada da Corte em 1808. E, ainda que de maneira pontual, o penúltimo serve para lembrar o quanto se mostra sempre sugestiva a comparação com a América espanhola, esse conjunto de países com que partilhamos muito mais do que a fronteira ou o continente e para os quais damos as costas com demasiada frequência.

Em outra ordem de ideias, se a irrupção das ciências sociais no ambiente universitário a partir da segunda metade do século XIX desencadeou uma crise de consciência da história, esta somente se abateu, nas décadas seguintes, na medida em que os profissionais da área encontraram a fórmula mágica que lhes permitia enfrentar o desafio que assim se apresentara. Converteram os inimigos institucionais de outrora em preciosos colaboradores do futuro para participar da grande tarefa interdisciplinar de conhecimento dos homens no tempo, como Febvre e Bloch tiveram o dom de fazer com os Annales. À reserva técnica da disciplina tenderam a ficar relegadas, então, outras modalidades, penosamente surgidas nos séculos XVII e XVIII e consolidadas no seguinte (outra vez, o tempo-sela…), mais próximas do esprit de finesse peculiar às humanidades do que daquele de geometria das ciências, que, com suas conquistas, pareciam revolucionar o mundo. Após aquela das Luzes, que reduzira a religião ao foro íntimo dos indivíduos, trazida desta feita pelas calamidades das guerras e, em seguida, pelo colapso do muro ideológico que dividia a humanidade entre bons e maus conforme o lado em que se encontravam, a segunda vaga de desencantamento encarregou-se, porém, de dissipar a ilusão. Entre 1970 e 1990, ainda que jamais tenha deixado de integrar o repertório de pequeno número de espíritos, o giro linguístico não constituiu apenas uma moda de maior ou menor efeito de marketing para uso de intelectuais crescentemente globalizados, mas, sobretudo, quando encarado com seriedade, a tomada de consciência outra vez do lugar que o indivíduo e a linguagem têm para o historiador.2

Em 1974, ninguém menos que Pierre Vilar reagia às primeiras provocações de Michel Foucault afirmando: “quando um homem busca palavras novas, quando ele distorce [gauchit] o sentido das antigas, aí está o sinal de coisas novas”.3 Essa perspicácia, revelada pelo autor de La Catalogne dans l’Espagne moderne, estava sendo explorada, a essa altura, em pelo menos três direções diferentes. Embalados pelos sucessos da quantificação e da linguística estrutural, historiadores-linguistas franceses enveredavam pelos caminhos espinhentos da lexicometria. Do outro lado da Mancha, levados por esse Quixote dos sete instrumentos chamado Peter Laslett, historiadores-políticos rebelavam-se contra a dominante história das ideias e, em vez de encadear o autor a alguma genealogia de antepassados que remontava a Platão e Aristóteles, procuravam ancorá-lo em seu tempo. Por fim, na Alemanha dividida e devastada, historiadores-filósofos voltavam a mergulhar nas águas de sua tradição mais rica, ainda quando praticada por alguma espécie de Deinos, para correlacionar, como Vilar iria fazer, a mudança semântica à mudança da inteligência do mundo e, em última instância, à da própria realidade.4

No Brasil, em 1992, Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, em tese defendida na USP sobre a cultura política da independência sob orientação de Maria Beatriz Nizza da Silva, já detectara algumas dessas tendências graças ao artigo seminal de Melvin Richter, assim como recorrera ao mesmo estudo de Telmo dos Santos Verdelho que um dos textos a seguir continua a utilizar, para tentar decifrar o vocabulário político daquele momento.5 Doze anos mais tarde, por iniciativa dos cientistas políticos e historiadores do Iuperj, realizou-se no Rio de Janeiro a VII Conferência Internacional de História dos Conceitos, à qual já não pôde comparecer Koselleck (1923-2006), mas de que participou um notável grupo de pesquisadores de diversos países preocupados com a temática.6 A essa altura, há vários anos encontravam-se disponíveis obras relacionadas à análise do discurso e ao uso da linguística e da semiótica pela história; desde 1996, a tradução da obra que estabeleceu o nome de Quentin Skinner; e, a partir de 2003, a primeira coletânea de artigos de John Pocock em português.7 De lá para cá, o movimento ampliou-se, mas, ao que parece, não sem alguns equívocos e de maneira ainda muito limitada no terreno dos historiadores.8 Neste, a iniciativa mais promissora continua sendo o projeto conhecido como Iberconceptos, dirigido por Javier Fernández Sebastián, em vias de concluir a elaboração do segundo volume de um Diccionario político y social del mundo iberoamericano: la era de las revoluciones, 1750-1850, cujo primeiro envolveu 100 verbetes e 75 pesquisadores da Península Ibérica e América latina, em mais de 1.400 páginas.9

Contra esse pano de fundo, a limitada extensão dos sete artigos a seguir não tem a pretensão de trazer alguma novidade teórica. Nem era essa a proposta. Como mencionado de início, trata-se apenas de salientar um aspecto metodológico que nem sempre merece o reconhecimento que lhe cabe e que, na perspectiva deste organizador, está associado a esse tipo de abordagem, tanto na vertente inglesa quanto na alemã. Na realidade, se o texto de John Pocock, publicado em 2004, além de servir de introdução a suas preocupações, contribui para esclarecer semelhanças e diferenças em relação a Quentin Skinner, bem mais conhecido no Brasil, o de Fátima Sá e Melo Ferreira é o único a obedecer de maneira mais rigorosa à proposta da história dos conceitos. Confinado, no entanto, pelas diretivas do dicionário ao qual se destina (e pela inclusão aqui), vê-se na contingência de acompanhar o conceito de ordem em Portugal dos séculos XVIII e XIX por meio de alguns momentos e exemplos marcantes, não tendo como explorar de maneira sistemática a variedade de fontes pressupostas por Koselleck e que permitem acompanhar a presença, ou não, dos processos de politizaçãoideologizaçãodemocratização e temporalização que assinalam o advento do mundo moderno na sua interpretação.10 Airton C. L. Seelaender doutorou-se em Direito na Alemanha e move-se sem dificuldade no ambiente da história dos conceitos, embora, neste caso, aproxime-se mais do esforço para a reconstrução da linguagem de uma dessas personagens fascinantes que participaram do momento traumático que correspondeu aos reinados mariano e joanino, o jurista Ricardo Raimundo Nogueira. Fascinantes pela ambivalência que revelam e pela resistência que oferecem para se verem classificadas conforme os padrões a que estamos habituados.

Nos outros casos, a preocupação volta-se de maneira ainda mais decisiva para linguagens do que para conceitos.

José Luís Cardoso, tendo por segundo violino Alexandre Mendes Cunha, cuja pós-graduação transcorreu na UFF, confrontam Sebastião José de Carvalho e Melo, ministro proeminente de José I (1750-1777), a Rodrigo de Sousa Coutinho, em sua atuação (1796-1803) no gabinete, como regente, do filho de Maria I (1777-1816), a fim de avaliar, no fundo, as variedades das Luzes presentes em Portugal nessa segunda metade do século XVIII. Para tanto, apesar da distância que buscam preservar de alguns dos pressupostos correntes nos demais textos, elegem, sobretudo, as políticas econômicas adotadas e acabam considerando o mercantilismo, o cameralismo, as ciências da administração e o próprio liberalismo de Adam Smith como uns tantos sotaques ou dialetos que se combinam para constituir a linguagem propriamente ilustrada. William de Souza Martins, detentor, enfim, de posição na academia capaz de trazer-lhe de volta o ânimo de pesquisador há anos exaurido pela vida profissional atribulada, retorna aos franciscanos de quem se fez familiar no doutorado em São Paulo, mas de ângulo ainda pouco explorado: o poder justificado pela linguagem política dos sermões pregados no Rio de Janeiro joanino, tendo por referência a obra paradigmática de João Francisco Marques.11 Em relação ao mesmo período e muito próximos dos procedimentos favorecidos por Pocock, Arno e Maria José Wehling recorrem à ótica do Direito, que conhecem tão bem, para identificar uma questão, ao que parece, de todo original: o significado da celebrada elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves em 1815. Reconhecimento de uma soberania sem independência, o evento carrega consigo uma carga semântica extraordinária do passado e coloca em jogo uma série de subentendidos, para os quais as novas linguagens políticas daquela conjuntura tumultuada, por sua vez, haviam chamado a atenção. De forma parecida, Yobenj Aucardo Chincangana-Bayona, mestre e doutor pela UFF há alguns anos, hoje professor em Medellín, salienta não só que as linguagens políticas extravasam os textos, acessíveis aos ouvidos, e incorporam-se igualmente nas imagens, assimiladas com os olhos, como ainda o quanto símbolos antigos adquirem conotações originais ao longo do processo de independência da Colômbia, sem que se esgarce completamente o tecido sob o qual se abrigavam.

Dessa maneira, os textos a seguir, não podiam deixar de sê-lo, colocam em evidência uma questão-chave da história, a relação entre a parte e o todo, entre o particular e o geral, de cuja dimensão, para fornecer uma ideia, Paul Veyne se viu obrigado a lembrar de provérbio taoísta: como pode a flecha tudo atravessar sem nada ferir?12 Para tal, nem a história das linguagens políticas nem a história dos conceitos constituem solução. Uma como a outra, no entanto, oferecem um enorme potencial heurístico para sugerir abordagens, para propor encaminhamentos, para servir de balizas ao historiador – em especial, aquele que lida com esses objetos imateriais como são ideias e crenças -, de modo a esconjurar o pecado mortal do anacronismo, denunciado por Febvre, e a blasfêmia da teleologia, a que o senso comum recorre quando a reflexão carece de informações sobre a época de que se fala. Por meio desses procedimentos, ao situar o evento único e irrepetível em seu contexto, não se define necessariamente, como gostaria François Furet no auge da esperança quantitativista, uma série estatística, mas impede-se que o fato tenha uma trajetória que proceda em linha reta do passado ao futuro, criando as condições próprias para que se torne parte integrante do presente de um passado.13 Conforme Gadamer, “em um conceito, algo está apreendido em seu conjunto, reunido e resumido”. Por isso, “trata-se de tornar novamente transitável o caminho que vai do conceito à palavra, de forma que o pensamento possa voltar a falar”.14 Ou seja, que se aprenda aquela linguagem.

Como quis sugerir o organizador com a diversidade dos textos aqui reunidos, não há, contudo, receita. “O mundo em que nossa experiência intervém como algo novo, que altera o que tinha dirigido nossas expectativas e que se reorganiza em função disso, é sempre um mundo que já se interpretou e que está ordenado segundo suas próprias linhas de força.” Não obstante, “porque somos conduzidos pelo que nos é familiar, por aquilo em que há concordância, […] podemos […] acolher o que é estranho e, portanto, alargar e enriquecer a nossa própria experiência do mundo”.15 Como resultado, o aspecto metodológico anunciado de início, relacionado à história das linguagens políticas e à história dos conceitos, pode (e deve) ser sistemático, mas não equivale a um método. Afinal, não há regras para definir a experiência que ocorre “quando algo distinto ou diferente é compreendido”; quando somos levados “a ceder – dentro de certos limites – à verdade do outro”; quando compreender esse outro “é ver a justiça, a verdade da sua posição”; e, sobretudo, quando “é isso que nos transforma”.16

Espera-se, assim, que os possíveis leitores – se já não perceberam o quanto lhe são inconscientemente devedores – encontrem nestas páginas uma oportunidade para reconhecer o potencial dessa atitude metodológica, presente no cerne tanto da história das linguagens políticas quanto da história dos conceitos, como fundamento do esprit de finesse que constitui a alma do trabalho propriamente historiográfico desenvolvido nos últimos 250 anos.

Seu nome? Hermenêutica.17

Notas

1. Professor-associado do Departamento de História da UFF e pesquisador do CNPq. E-mail[email protected]
2. Para tratamento um pouco mais detalhado das questões abordadas de raspão nessa apresentação, ver os artigos reunidos no volume História, teoria e variações, a sair em breve pela Contracapa (Rio de Janeiro), graças ao apoio do Projeto Pronex / Faperj / CNPq, coordenado por Ronaldo Vainfas, de que participa este organizador e que aqui registra seu agradecimento.
3. Cf. “Les mots et les choses dans la pensée économique”. InAujourd’hui l’histoire, Paris, Éditions Sociales, 1974, p. 162-179, p. 174.
4. Para essas questões, ver Javier Fernández Sebastián & Juan Francisco Fuentes, “Introducción”. In: Idem(dir.), Diccionario político y social del siglo XIX español, Madri, Alianza, 2002, p. 23-60. Para Deinos, talvez com Martin Heidegger em mente, cf. Hans-Georg Gadamer, O problema da consciência histórica, trad. Paulo C. D. Estrada, Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1998, p. 56.
5. A tese encontra-se hoje disponível como Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência, 1820-1823, Rio de Janeiro, Revan, 2003. Ver também Melvin Richter, “Reconstructing the history of political languages: Pocock, Skinner and the Geschichtliche Grundbegriffe”, History and Theory, Middletown, v. 29, n. 1, 1990, p. 38-70, e, em sua falta, do mesmo autor, “Avaliando um clássico contemporâneo: o Geschichtliche Grundbegriffee a atividade acadêmica futura”. In: Marcelo Gantus Jasmin & João Feres Júnior (org.), História dos conceitos: debates e perspectivas, Rio de Janeiro, PUC-Rio / Loyola / Iuperj, 2006, p. 39-53.
6. Ver, ambas com acesso em 15.12.2010, http: / / www.jyu.fi / yhtfil / hpscg / rioprogramm.html e http: / / www.historia.uff.br / artigos / guilherme_conferencia.pdf.
7. Para o primeiro caso, sirvam de exemplos Régine Robin, História e lingüística, trad. A. Bole, São Paulo, Cultrix, 1977, e Ciro Flamarion Cardoso, Narrativa, sentido, história, Campinas (SP), Papirus, 1997. As outras duas indicações são, respectivamente, As fundações do pensamento político moderno [1980], trad. R. J. Ribeiro e L. T. Motta, São Paulo, Cia. das Letras, 1996, e Linguagens do ideário político [1976-1995], org. Sérgio Miceli, trad. Fábio Fernandez, São Paulo, Edusp, 2003.
8. Ver Jasmin & Feres Júnior (org.). História dos conceitos…, citado; João Feres Júnior & Marcelo Gantus Jasmin (org.), História dos conceitos: diálogos transatlânticos, Rio de Janeiro, PUC-Rio / Loyola / Iuperj, 2007; João Feres Júnior (org.), Léxico da história dos conceitos políticos no Brasil, Belo Horizonte, Ed. da UFMG, 2009; e também os artigos reunidos em Ler História, Lisboa, v. 55, 2009. Na mão contrária, a “Introdução” dos organizadores ao volume de 2007 fala em “história conceitual” como equivalente à história dos conceitos, o que parece revelar certa incompreensão do empreendimento de Koselleck e seus colaboradores; enquanto ainda hoje jaz inédita a tradução, realizada por Modesto Florenzano há alguns anos, de uma das obras centrais de Pocock, The machiavellian moment: florentine political thought and the atlantic republican tradition, Princeton, Princeton University Press, 1975.
9. Madri, Fundación Carolina / Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales / Centro de Estudios Político y Constitucionales, 2009. Ver também http: / / www.iberconceptos.net / Default.aspx?id=es, com acesso em 15.12.2010. Em conjunto com Lúcia Bastos P. Neves, este organizador participou de ambos os volumes.
10. Ver “Un texto fundacional de Reinhart Koselleck. Introducción al Diccionario histórico de conceptos político-sociales básicos en lengua alemana”, trad. e notas Luis Fernández Torres, Revista Anthropos: Huellas del Conocimiento, Barcelona, n. 223, abr. / jun. 2009, p. 92-105, e Richter, “Reconstructing the history of political languages…”.
11. Merece ser lembrado nesse ponto Bernard Groethuysen, Origines de l’esprit bourgeois en France: l’Église et la bourgeoisie, Paris, Gallimard, 1927, também disponível em edições posteriores, e The bourgeois: catholicism vs. capitalism in eighteenth-century France, trad. M. Ilford, intr. Benjamin Nelson, Nova York, Holt, Rinehart & Winston, 1968, objeto de extensa discussão em 2003, envolvendo, entre outros, Louis Châtellier, Marcel Gauchet e Dominique Julia. Ver, com acesso em 15.12.2010, http: / / ccrh.revues.org / index261.html.
12. Cf. Comment on écrit l’histoire, Paris, Seuil, 1971, p. 172, para o trecho mencionado.
13. A melhor versão em português é F. Furet, “A história quantitativa e a construção do fato histórico”. In: Maria Beatriz Nizza da Silva (org.), Teoria da história, São Paulo, Cultrix, 1976, p. 73-91, p. 84-85.
14. Hans-Georg Gadamer, “Heidegger y el final de la filosofía”. InAcotaciones hermenéuticas, trad. A. Agud e R. de Agapito, Madri, Trotta, 2002, p. 239-256, p. 245-247.
15. Hans-Georg Gadamer, L’art de comprendre, trad. M. Simon, intr. Pierre Fruchon, Paris, Aubier Montaigne, 1982, p. 38.
16. “Interview: writing and the living voice”. In: Dieter Misgeld & Graeme Nicholson (eds.), Hans-Georg Gadamer on education, poetry, and history: applied hermeneutics, Albany (NY), State University of New York Press, 1992, p. 63-71, p. 69-70.
17. Essas reflexões são de exclusiva responsabilidade deste apresentador, organizador do presente dossiê. Por conseguinte, nem serviram de critério para os convites aos autores nem devem ser pressupostas como necessariamente compartilhadas por eles.

Guilherme Pereira das Neves – Professor-associado do Departamento de História da UFF e pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected]


NEVES, Guilherme Pereira das. Apresentação. Tempo. Niterói, v.17, n.31, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Pureza, Raça e Hierarquias no Império Colonial Português / Tempo / 2011

O tema da discriminação racial, das cotas universitárias para os negros, enfim, da identidade baseada na raça, está constantemente presente na imprensa escrita e televisiva. Nos últimos anos, o governo brasileiro investiu em políticas sociais dedicadas a minorar as distâncias econômicas e educacionais entre os cidadãos. Parte do mesmo debate, os estudos sobre a escravidão no período colonial pretendem, em grande parte, investigar as desigualdades sociais de ontem e de hoje e entender o processo gerador do descompasso entre os extremos da pirâmide populacional.1 Embora a história social dos negros e mulatos tenha notavelmente avançado nas últimas décadas, ainda são poucos os estudos dedicado às ideologias geradoras ou legitimadoras da discriminação, sobretudo no que toca o período colonial.

Em perspectiva panorâmica, Charles Boxer analisou as relações raciais no império colonial português e fez ruir o mito da integração harmoniosa entre os portugueses e os povos coloniais, conforme defendiam Gilberto Freyre e a historiografia salazarista.2 Apesar desse notável pontapé inicial, os estudos mais centrados no preconceito racial no mundo português dedicaram-se especialmente ao problema cristão-novo, pouco investigando os impedimentos discriminatórios referentes a negros, índios e mulatos: Maria Luiza Tucci Carneiro e José Alberto Veiga Torres, ou ainda Fernanda Olival, em suas importantes contribuições, analisaram os estatutos de pureza de sangue e as habilitações para cargos na Inquisição ou para hábitos de Ordens Militares, privilegiando os impedimentos ligados à origem judaica dos habilitandos.3 Por certo, nos últimos anos, não surgiram novas pesquisas dedicadas às hierarquias sociais sustentadas pela ideia de raça capazes de avaliar, de modo ao mesmo tempo mais amplo e mais fino, os privilégios e impedimentos que sustentavam ou barravam a ascensão social de portugueses, africanos, índios e mestiços no mundo português.4 Faltam portanto pesquisas mais alentadas sobre a construção das noções de pureza e de raça no mundo português do Antigo Regime. O presente dossiê pretende investigar o tema e incentivar as análises que partam não somente de um grupo específico, mas sobretudo de uma avaliação mais ampla dos diversos segmentos sociais nos diferentes recantos do império português.

Em geral, historiadores e cientistas sociais investigam a questão racial nos fenômenos contemporâneos, pois consideram que as classificações sócioraciais tenham tomado importância somente a partir de meados dos oitocentos. Para esta vertente, seria impróprio o emprego da noção de raça para entender a dinâmica social do Antigo Regime.5 Esta vertente também pode ser identificada por entre os especialistas da história da época moderna. Segundo Jean-Pierre Zuñiga, por exemplo, na América espanhola, as classificações étnicas de um indivíduo eram muito instáveis. A denominação de mestiço, mulato ou espanhol variava segundo sua posição social, domínio da língua castelhana, aparência e até mesmo do testemunho que registrou a sua classificação. À época, os mestiços não eram entendidos como fruto da mistura de raças, mas como mistura de sangues, na acepção nobiliárquica do termo. Ou seja, a classificação étnica era, em grande parte, determinada pelo sangue. O casamento de indivíduos com qualidades diferentes, entre espanhóis e índias, produzia uma “mésalliance”, união entre indivíduos desiguais. Para o estudioso, seria portanto um evidente anacronismo empregar aqui o conceito de raça na sua acepção biológica, mais adequado então era recorrer à concepção nobiliárquica, a ideia de linhagem e sangue.6 Em suma, em defesa desta primeira vertente, Zuñiga contesta o emprego de raça para o Antigo Regime e recorre à ideia nobiliárquica de sangue. No entanto, nos parece que o argumento somente se sustenta quando se refere à dicotomia entre nobres e plebeus, puros e impuros, espanhóis e índios. A ideia de sangue, sangue misturado (sang-mêlé), não comporta a variedade de tipos sociais, não explica a dinâmica das hierarquias próprias do mundo colonial pois iguala e concebe como inferiores a todos os que não eram espanhóis. Sobre a complexidade de tipos raciais e sociais na América espanhola, vale lembrar a fabulosa pintura de casta e seu inventário visual das misturas entre índios, espanhóis e africanos.7

Em contrapartida, alguns estudiosos buscam dilatar a existência do racismo. Christian Delacampagne situou suas origens na Antiguidade enquanto James H. Sweet identificou as suas raízes na Península ibérica, recorrendo ao legado árabe e cristão medievais.8 De fato, as duas vertentes trazem problemas e não destacam as variações históricas da noção de raça. A primeira minimiza as manifestações racistas anteriores ao século XIX, e, portanto enfatiza a importância da origem religiosa (ou seja, cristã) para o surgimento e difusão da noção de pureza de sangue. Seguindo este pressuposto, esses estudiosos desconsideram as experiências coloniais, ou seja, as conexões metrópole-colônia e a dominação colonial pautada pela inferioridade dos povos ultramarinos. Já a segunda vertente banaliza os preconceitos racistas e os torna universais e quase atemporais, naturalizando assim perigosamente a sua existência.

Num terceiro ponto de vista, o historiador canadense Pierre H. Boulle considera que o racismo não apareceu repentinamente. Aliás, modificou-se ao longo tempo, aglutinando elementos novos, formando-se aos poucos. Tal construção ideológica teria tido uma tríplice origem que remonta aos séculos XVI e XVIII. Segundo Boulle, ela se iniciara sob a influência da expansão marítima europeia e da conquista de povos ultramarinos. A segunda grande contribuição para a construção do racismo viria do desenvolvimento das ciências, responsáveis pela melhor compreensão dos processos naturais e da transmissão das características humanas. Finalmente o fim do predomínio da explicação religiosa, em favor da razão matemática, fomentou a ideia de progresso material e da superioridade tecnológica dos europeus.9 Tais elementos esclareceriam, enfim, os vínculos entre ciência e racismo, entre controle da natureza e hierarquia entre os povos. Embora o estudo de Boulle explore o caso francês, os estudos sobre as sociedades ibero-americanas não divergem nos resultados.

Para o mundo hispânico, a perspectiva atual pretende não apenas analisar as ideias de pureza e raça antes de determinismo biológico, mas também demonstrar que o princípio religioso não era a única e determinante forma de classificação social na Espanha e no seu império colonial antes do advento do século XIX. Para além da ampliação cronológica do problema, os atuais estudos não pretendem restringir a análise às sociedades do Velho Mundo, 10 mas ampliar o seu espectro em direção ao mundo colonial, assim como fizera o historiador canadense. Não mais se concebe o ultramar como mera extensão das áreas metropolitanas, ou como áreas apartadas da civilização europeia.11 Assim, ultimamente os estudos sobre o conceito de raça enfatizam as trocas culturais e as dinâmicas sociais comuns a metrópole e colônias.12 Eles entendem o pensamento racial, como Jean-Frédéric Schaub em artigo seminal,13 como parte de um sistema ideológico forjado não apenas nas sociedades europeias, mas também na vivência colonial, nos contatos íntimos entre brancos, índios, negros e asiáticos. Inevitavelmente, as trocas e os conflitos entre esses povos eram mais intensos no ultramar, mas cidades como Lisboa, Sevilha e Paris não ficaram imunes aos movimentos migratórios e à miscigenação. No presente dossiê, exploram esta perspectiva os artigos de Giuseppe Marcocci, Ângela Barreto Xavier, João de Figueirôa-Rêgo e Fernanda Olival.

Ao propormos um dossiê sobre a ideologia da raça na época moderna, pretendemos analisar a dinâmica das sociedades, as hierarquias e os diferentes graus de mobilidade social. Focados notadamente entre os séculos XVI e XVII, os artigos primam por analisar: o sangue como distinção entre nobres e plebeus (artigo de Arlette Jouanna); a hierarquização entre índios e negros (artigo de Giuseppe Marcocci); os discursos sobre pureza entre os brâmanes (artigo de Ângela Barreto Xavier). Com enfoque social, os estudos de Francis Dutra, Fernanda Olival e João de Figueirôa-Rêgo analisam a presença de negros e mulatos nas Ordens Militares em Portugal e na administração colonial.

O dossiê aborda então questões da maior relevância. A noção de pureza da raça, inicialmente, tencionava naturalizar as diferenças morais entre plebeus e nobres.14 Determinava ainda o forte vínculo entre superioridade do sangue e capacidade de governar. O líquido vital respaldava a continuidade da casa real: o poder régio não se estribava somente nos exércitos e na tradição, mas particularmente na natureza, na hereditariedade transmitida entre pais e filhos, como demonstra o artigo de Jouanna. No entanto, a defesa da pureza do sangue não se restringiu aos circuitos cortesãos e se expandiu pelos mais diferentes estratos das sociedades europeias e coloniais.

Aliás, para receber títulos, assumir cargos eclesiásticos e postos na administração régia, os súditos não poderiam ter origens cristã-nova ou moura. Os defeitos de “qualidade” ou “defeitos mecânicos” eram também impedimentos, embora fossem menos graves e mais facilmente perdoados, segundo o caso, pela monarquia. As investigações mais recentes, aos poucos, demonstram que a origem gentia, negra ou mulata não era concebida como defeito de sangue, mas de qualidade, como defende Maria Elena Martinez em seus trabalhos15 e Francis Dutra neste dossiê. Na época moderna, porém, a ideologia da raça ainda não era capaz de excluir índios, negros e mulatos dos cargos eclesiásticos, administrativos e militares, sobretudo em áreas despovoadas de homens brancos.16 O artigo aqui assinado por Olival e Figueirôa-Rêgo demonstra o quão frequente era a presença de homens sem a devida qualidade nos postos chaves nas colônias da África e da América. Embora considerados inferiores, os aliados da monarquia eram indispensáveis para a defesa e gerenciamento das possessões régias. Ao reconhecer e remunerar os serviços de índios e negros, a monarquia contrariava os princípios da hierarquia racial defendida onde ocorria o predomínio de súditos brancos e cristãos-velhos, ciosos de sua honra e privilégios.

Segundo Paolo Prodi, no correr da época moderna, uma paulatina decadência da ideologia nobiliárquica, “última trincheira na defesa da cadeia hierárquica dos seres e da ligação entre as gerações” deu pouco a pouco lugar a um novo tipo antropológico, a nobreza como raça ou casta garantidora do mando sendo substituída por uma outra, de serviço, que busca a honra e o exercício de uma função social.17 Podemos também dizer que esta mesma decadência acaba por abrir espaço para o surgimento de outras hierarquias, de outras explicações para as diferenças entre as pessoas, ou seja: as que hoje chamamos raciais. Ainda, as infindáveis querelas que perpassam boa parte dos séculos XVII e XVIII sobre a importância da origem, do mérito, da virtude, dos favores ou da riqueza para se definir o lugar de um indivíduo na sociedade, são um importante sintoma do que importava na definição do corpo social,18 mas também mostram que esse mesmo corpo estava vivendo um momento de redefinição.19

Este já não era mais o caso no século das luzes quando os filósofos dividiram a humanidade entre coletores, caçadores e agricultores, entre caucasianos, africanos, asiáticos e americanos, entre arianos e semitas. Valorizavam assim não somente os costumes e a forma física, mas também a capacidade de controlar os processos naturais. A condição material dos povos era um diferencial entre europeus e os povos do ultramar. Desde então o progresso tornou-se parâmetro que concorria com a antigas bases religiosas do preconceito. Nessa conjuntura, entre fins do século XVIII e inícios do XIX, a ideia de raça se consolida para respaldar a alegada superioridade dos brancos, promotores da civilização e da ciência, sobre os territórios coloniais.20

Notas

1. Como exemplos, vale mencionar os estudos de Jacob Gorender, O escravismo colonial, São Paulo, Editora Ática, 1980; [ Links] Kátia de Queirós-Mattoso, Ser escravo no Brasil, São Paulo, Editora Brasiliense, 1982; [ Links] Stuart B. Schwartz, Segredos internos, São Paulo, Companhia das Letras, 1988; [ Links ] Silvia Hunold Lara, Campos da violência, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988; [ Links ] Manolo Florentino, Em costas negras, São Paulo, Companhia das Letras, 1997; [ Links ] Hebe Mattos, As cores do silêncio, 2a ed., Nova Fronteira, 1998. [ Links ] 2. Vale lembrar Charles Boxer, O império colonial português (1515-1825), 3a ed., Lisboa, Ed. 70, 1981 [1969] [ Links ]; Relações raciais no império colonial português, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967. [ Links ] Mencionemos ainda os estudos que enfatizam questões étnicas, embora não explorem a ideologia e as classificações raciais: Stuart B. Schwartz, “The formation of colonial identity in Brazil” in: N. Canny & A. Pagden (eds.), Colonial identity in the Atlantic World, Princeton, Princeton University Press, 1987; [ Links ] A. J. R. Russell-Wood: “Comunidades étnicas” in: F. Bethencourt e K. Chaudhuri (eds.) História da expansão portuguesa, v. 3, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998. p. 210-222. [ Links ] Para um estudo sobre a questão racial entre os historiadores entre os séculos XIX e XX, veja o artigo de Ronaldo Vainfas, “Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira”, Tempo, 8, 1999. [ Links ] 3. Maria Luiza Tucci Carneiro, Preconceito racial em Portugal e no Brasil colônia, 2a ed. São Paulo, Perspectiva, 2005 [1983] [ Links ]; José Alberto Veiga Meira Torres, “Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 40, 1994, pp. 109-135; [ Links ] Id., Limpeza de geração, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 2008; Fernanda Olival, “Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal”, Caderno de Estudos Sefaraditas, 4, 2004, pp. 151-182. [ Links ] 4. Sobre o serviço régio enquanto instrumento de mobilidade social, cf. Nuno G. Monteiro, Pedro Cardim, Mafalda Soares da Cunha (ed.) Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime, Lisboa 2005 e F. [ Links ] Chacón Jiménez e Nuno G. Monteiro (ed.), Poder y movilidad social. Cortesanos, religiosos y oligarquias em la península ibérica (siglos XV-XIX), Madrid, 2006. [ Links ] 5. Sobre a relação estreita entre raça e ciência, veja: Michèle Duchet, Anthropologie et Histoire au siècle des Lumières, Paris, Albin Michel, 1995; [ Links ] Emmanuel C. Eze (ed.), Race and the Enlightenment, London, Blackwell, 1997; [ Links ] Tzvetan Todorov, Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana,v.1.Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993; [ Links ] H. F. Augstein (ed.) Race; The origins of an idea, 1760-1850, Bristol, Thoemmes Press, 1996; [ Links ] Stefano F. Bertoletti, “The Anthropological Theory of Johann Friedrich Blumenbach” in: S. Poggi & M. Bossi (ed.) Romanticism in Science, Dordre-cht, Kluwer, 1994. [ Links ]; Marvin Harris, The rise of Anthropological Theory, London, Routledge & Kegan Paul, 1968; [ Links ] Georges Gunsdorf, Introduction aux Sciences Humaines, Paris, Ed. Ophys, 1974; [ Links ] Sergio Moravia, La scienza dell’uomo nel Settecento, Bari, Editori Laterza, 1970; [ Links ] Para a estreita ligação entre o surgimento da linguística e da ideia de raça: Maurice Olender, Les langues du paradis. Aryens et sémites: un couple providentiel, Paris, Seuil, 1989. [ Links ] 6. Jean-Pierre Zuñiga, “La voix du sang. Du métis à l’idée de métissagen en Amérique espagnole”, Annales, v. 54 n. 2, 1999. pp. 443-444. [ Links ] 7. Ilona Katzew, Casta painting, New Haven, Yale University Press, 2004. [ Links ] 8. Christian Delacampagne, L’invention du racisme: Antiquité et Moyen Age, Fayard, Paris, 1983; [ Links ] James H. Sweet, “The Iberian Roots of American Racist Thought.” The William and Mary Quarterly, 3rd Ser., Vol. 54, No. 1 (Jan., 1997), pp. 143–166. [ Links ] 9. Pierre H. Boulle, Race et esclavage dans la France de l’Ancien Régime, Paris, Perrin, 2007, pp. 61-62. [ Links ] 10. Como é o caso do clássico livro de Albert Sicroff, Los estatutos de limpieza de sangre, Madrid, Taurus, 1979 [1960] [ Links ], ou ainda da obra de Juan Hernández Franco, Cultura y limpieza de sangre en la España Moderna, Murcia, Universidade de Murcia, 1996. [ Links ] 11. Estes estudos são fortemente influenciados por Sanjay Subrahmanyam, “Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia”, Modern Asian Studies, v. 31, n. 3, 1997, pp. 735-762. [ Links ] Aliás, neste dossiê os artigos de Giuseppe Marcocci e Angela Barreto Xavier exploram especificamente esta perspectiva.
12. Para os estudos dedicados ao conceito de raça nas metrópoles e no ultramar, veja: Nicholas Hudson, “From ‘Nation’ to Race, The Origin of Racial Classification in Eighteenth-Century thought”, Eighteenth-Century Studies, v. 29, n. 3, 1996, pp. 247-264; [ Links ] Roxann Wheeler, The complexion of race; categories of diference in Eighteenth-century British culture, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 2000; [ Links ] John Beusterien, An eye on race; perspectives from Theater in Imperial Spain, Lewisburg, Bucknell University Press, 2006; [ Links ] Kim F. Hall, Things of darkness; economies of race and gender in early modern England, Ithaca, Cornell University Press, 1995. [ Links ] 13. Jean-Fredéric Schaub, “La catégorie – études coloniales – estelle indispensable?”,  Histoire, Sciences Sociales, 63, 2008. [ Links ] 14. Vale mencionar o principal estudo sobre a idéia de sangue nobiliárquico: Ellery Schalk, L’épée et le sang, Seyssel, Champ Vallon, 1996. [ Links ] 15. Maria Elena Martínez. Genealogical fictions, pp. 91-122. Veja também Dutra, Francis, “A hard-fought struggle for recognition”, The Americas, n. 56, 1999, pp. 91-113. [ Links ] 16. Para os estudos sobre a limpeza de sangue dos índios, ver: Ronald Raminelli, “Servicios y mercedes de los vasallos de la América Portuguesa”, Historia y Sociedad, v. 12, 2006, p. 107-131; [ Links ] Id. “Jefes potiguaras, entre portugueses y neerlandeses, 1633-1695”, Historias (México), v. 73, p. 67-85, 2009. [ Links ]; Ide. “Privilegios y malogros de la familia Camarão” in: Giovanni Levi (org.), Familia, jerarquización y movilidad social, Murcia, EDITUM – Universidad de Murcia, 2010, pp. 45-56. [ Links ] 17. Paolo Prodi, Introduzione allo studio della Storia Moderna, Bolonha, Il Mulino, 1999, pp. 57-58. [ Links ] 18. Natalie Zemon Davis, L’histoire tout feu, tout flame. Entretiens avec Denis Crouzet, Paris, Albin Michel, 2004, pp. 115-116. [ Links ] 19. Especificamente sobre a questão do mérito: Jay M. Smith, The Culture of Merit: Nobility, Royal Service and the Making of Absolute Monarchy in France, 1600-1789, Ann Arbor, University of Michigan Press, 1996. [ Links ] Sobre as hierarquias sociais no mundo ibérico, ver Rodrigo Bentes Monteiro et alii (org.), Raízes do privilégio. Mobilidade social no mundo ibérico do Antigo Regime, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, [ Links ] 2011 e as obras citadas acima na nota 4.
20. Ronald Raminelli, Viagens Ultramarinas, São Paulo, Alameda, 2008. cap. 5; [ Links ] Id. “As raças contra a nação: reflexões do médico Francisco Soares Franco” in: J. L. Cardoso, N. G. Monteiro e J. V. Serrão (orgs.) Portugal Brasil e a Europa Napoleónica, Lisboa, ICS, 2010. pp. 415-434 [ Links ]

Ronald Raminelli

Bruno Feitler

RAMINELLI, Ronald; FEITLER, Bruno. Apresentação. Tempo. Niterói, v.16, n.30, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Patrimônio e memória da escravidão atlântica – História e Política / Tempo / 2010

O Dossiê Patrimônio e Memória da Escravidão Atlântica começou a ser planejado há quase dois anos, quando eu voltava de um estágio de pós-doutorado na França, onde tive a oportunidade de participar com Bogumil Koss Jewsiewicki na iniciativa de organizar o primeiro “Festival Internacional do Filme de Pesquisa sobre Patrimônio e Memória da Escravidão Moderna”.1 Como titular da cátedra de história comparada da memória na Universidade de Laval, no Canadá, Jewsiewicki mantinha em Paris um importante seminário sobre história da memória na EHESS (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales), em conjunto com Philippe Joutard, da Universidade de Aix-en-Provence. Desde 1994, eu desenvolvia no Laboratório de História Oral e Imagem o projeto de documentação e pesquisa Memórias do Cativeiro, que já havia dado origem a um livro, com Ana Lugão Rios2, diversos acervos audiovisuais abertos à consulta (www.historia.uff.br / jongos) e dois filmes: Memórias do Cativeiro e Jongos, Calangos e Folias, desenvolvidos em parceria com Martha Abreu.3 Tive a oportunidade de discutir os filmes e demais resultados do projeto junto ao Centre d’Etudes du Brésil et de l’Atantique Sud, da Universidade de Paris IV e ao CRBC – Centre de Recherche du Brésil Contemporain e ao CIRESC – Centre International de Recherche sur les Esclavages, na EHESS. O festival do filme de pesquisa surgiu de certa forma da rede então constituída e marcou, para mim, o início de uma reflexão comparada sobre história da memória da escravidão nas antigas sociedades escravistas do mundo atlântico.

O impacto na África do processo de patrimonialização da memória da escravidão a partir do projeto Rota dos Escravos da UNESCO e os debates em curso entre historiadores e cientistas sociais franceses sobre explosão memorial e dever de memória estavam, sem dúvida, na base da reflexão. Principalmente, a presentificação da memória da escravidão e sua apropriação política por movimentos antiracistas no Brasil e na França emprestavam novas nuanças às complexas relações entre história da escravidão, memória e usos políticos do passado. O presente dossiê foi pensado na perspectiva de contribuir para aprofundar a compreensão de tais relações, levando em consideração o estado atual da discussão no campo da história e das ciências sociais no Brasil.

Para a escolha dos artigos, parti de uma definição simples de memória: a presença do passado no presente. Os artigos do dossiê procuram refletir sobre a multiplicidade de sentidos atribuídos hoje à experiência da escravidão na era moderna.

Abre o volume o artigo A Herança Musical da Escravidão: da crioulização à world music, de Denis Constant-Martin (Centre d’Etudes d’Afrique Noire, Université de Bordeaux), pesquisador que reúne de forma instigante as competências do cientista político, do historiador e do musicólogo. Sua frase inicial é impactante: “Todas as músicas ditas hoje “populares” ou de “massa” derivam, de uma forma ou de outra, de práticas surgidas no seio de sociedades organizadas em torno da escravidão em territórios conquistados por europeus.” A memória da escravidão no artigo é problematizada como “herança musical” dos processos criativos que emergiram desses contatos, ocorridos “em condições específicas de desigualdade e de violência absolutas fundadas na negação da humanidade de pessoas deportadas”. Nos seus termos, a mestiçagem cultural e os processos de inovação dela decorrentes seriam resultantes imperativas do deslocamento em massa de pessoas para servirem como escravos, em qualquer das sociedades que conheceram a instituição, e para estudar o processo toma como exemplo os casos dos Estados Unidos e da África do Sul. Entre o muito que aprendemos no artigo, está que o contato cultural em situação de desigualdade não impede nem engendra formas específicas de relações raciais, mas produz um nível acelerado de inovação cultural, que atinge igualmente senhores e escravos. Fruto da resistência do escravizado à desumanização, a mestiçagem cultural seria parte inerente às sociedades escravistas e sem dúvida uma herança positiva da escravidão às sociedades contemporâneas, em meio a tantos legados de iniqüidade.

O segundo artigo do dossiê (Aquele que salva a mãe e o filho), da historiadora brasileira Ana Lucia Araujo, professora na Universidade de Howard nos Estados Unidos, nos transporta aos problemas colocados pelo processo de construção de uma memória pública da escravidão e do tráfico negreiro nas sociedades africanas contemporâneas. O tráfico atlântico de africanos escravizados para as Américas foi oficialmente considerado crime contra a humanidade pela ONU que, através da UNESCO, desenvolveu o projeto A Rota dos Escravos, como dever de memória e celebração das contribuições sócio-culturais da diáspora forçada de africanos. Também as condições de desequilíbrio que permitiram a colonização européia da África e a extrema pobreza do continente africano hoje se apresentam, pelo menos em parte, como decorrência do impacto do tráfico negreiro nas sociedades africanas. Neste contexto, a participação das elites africanas no mesmo é tema difícil no exercício da memória no continente ainda hoje. São as tensões entre a pluralidade de memórias sobre o tráfico negreiro e o movimento de patrimonialização da memória da escravidão como crime contra a humanidade no Benin, após a redemocratização do país, que estão no cerne da discussão apresentada por Ana Lucia Araujo em torno da abertura ao público, em Ajudá, do Memorial a Francisco Felix de Souza, negreiro brasileiro radicado no então reino do Daomé, no século XIX.

Os dois artigos seguintes voltam-se para a história da memória da escravidão no Brasil em relação com o processo transnacional de patrimonialização da escravidão e do tráfico como crime da humanidade ainda em curso. Como vimos no caso do Benin, são inúmeras e muitas vezes concorrentes e conflituosas as memórias públicas sobre a escravidão engendradas nesse contexto. Os artigos selecionados procuram dar conta de dois aspectos importantes e diferenciados do momento atual.

O de Matthias Assunção (A memória do cativeiro no Maranhão), historiador da Universidade de Essex, no Reino Unido, pesquisador associado ao LABHOI / UFF e professor visitante na nossa Universidade no ano de 2007, retoma aquele que tem sido o mote principal do projeto Memórias do Cativeiro, desde sua implementação no LABHOI em 1994 – dar visibilidade à memória familiar da experiência do cativeiro presente entre os descendentes da última geração de escravizados no Brasil. Com este objetivo, Assunção revistou as transcrições de entrevistas por ele realizadas ainda no início dos ano 80, no Maranhão, tendo como questão principal a memória da Balaiada, guerra civil que arrasou a região na primeira metade do século XIX. A força da memória do tempo do cativeiro, vivido por pais ou avós dos camponeses então entrevistados emerge com uma força surpreendente, levando-nos mais uma vez a constatar quão próxima ainda é a experiência escravista da realidade do Brasil contemporâneo. O artigo nos faz também indagar sobre o silêncio em que essa memória permaneceu até recentemente. Memória subterrânea, antes enquadrada pelo medo e a ética paternalista, emerge à cena pública através da pesquisa de um historiador e adquire novos significados. Tem-se, assim, uma espécie de efeito secundário da explosão memorial contemporânea, sempre criticada nos seus aspectos superficiais e homogeneizadores por historiadores e cientistas sociais – a emergência de memórias específicas de grupos marginalizados que funcionam como chave para novas leituras do passado.4

O reverso desse processo é a produção de contra discursos públicos e generalizantes sobre a história da escravidão e da abolição no Brasil e sua apropriação por grupos marginalizados em luta por cidadania. É o que acompanhamos no último artigo, sobre uma encenação memorial e educativa levada a efeito pela mãe de santo de um terreiro de candomblé na Baixada Fluminense. O Navio Negreiro, artigo de Francine Saillant, antropóloga da Universidade de Laval, no Canadá, transcreve e analisa a narrativa discursiva e corporal sobre a memória da escravidão produzida naquele contexto, bem como seus significados de reconfiguração de identidade. O artigo complementa, e dialoga com, o filme de pesquisa de mesmo titulo, apresentado na primeira versão do festival do filme de pesquisa sobre patrimônio e memória da escravidão moderna, e disponível em DVD no acervo do LABHOI / UFF, na Biblioteca Central do Gragoatá.

Boa leitura.

Notas

1 A primeira edição do festival itinerante teve início em abril de 2008 em Toronto, Canadá, sob auspícios do Harriet Tubman Resource Centre for the African Diaspora da Universidade de York. Depois repetiu-se em mais 10 cidades no Canadá, França, Senegal, Burkina Faso e Brasil. A edição brasileira ocorreu em novembro do mesmo ano na Universidade Federal Fluminense e no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro.
2 Rios, Ana Lugão e Mattos, Hebe. Memórias do Cativeiro. Família, Trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
3 Abreu, Martha e Mattos, Hebe (direção geral). Memórias do Cativeiro, produção LABHOI / UFF 2005 e Jongos, Calangos e Folias. Música Negra, memória e poesia. Produção LABHOI / UFF, Patrocínio Petrobras, 2007.
4 Sobre o tema, ver também Chivallon, Christine. « Mémoires de l’esclavage à la Martinique L’explosion mémorielle et la révélation de mémoires anonymes ». Cahiers D’Etudes Africaines. N. 197, 2010 / 1.

Hebe Mattos


MATTOS, Hebe. Apresentação. Tempo. Niterói, v.15, n.29, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]

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1946-1964: A Experiência Democrática no Brasil / Tempo / 2010

Em dezembro de 1945, o eleitorado brasileiro foi às urnas e, pelo voto secreto e sob a fiscalização do Poder Judiciário, elegeu o presidente da República, deputados federais e senadores. A eleição é considerada a primeira efetivamente democrática ocorrida no Brasil.1 Os parlamentares formaram uma Assembleia Nacional Constituinte, livremente eleita e politicamente soberana, inaugurando, no Brasil, o regime de democracia representativa.

Na Assembleia Constituinte estavam representados diversos setores da sociedade brasileira, de liberais a comunistas. Embora sob forte influência da democracia-liberal vitoriosa ao final da Segunda Guerra Mundial e com o repúdio ao autoritarismo do Estado Novo, os constituintes mantiveram al-guns dispositivos inaugurados nos anos 1930. Evitaram o retorno à excessiva descentralização política da Primeira República, permitiram que o Executivo tivesse suas prerrogativas ampliadas e conservaram a legislação corporativista. O pluralismo partidário, portanto, passou a coexistir com a unicidade sindical. Os constituintes estavam afinados com os ventos liberais-democráticos que vinham da Europa e dos Estados Unidos, mas não desconheceram as experiências vividas no próprio país nos anos 1930. O resultado foi uma Constituição que sustentou a democracia representativa, implantada, pela primeira vez, no Brasil.

As dificuldades para viabilizar o regime democrático no Brasil devem ter sido imensas. Afinal, os antecedentes conhecidos eram o autoritarismo dos anos 1930 e o liberalismo excludente da Primeira República. Até então, a sociedade brasileira não conhecera experiências de participação política ampliada. Era preciso, portanto, aprender a lidar com as regras do jogo democrático e a participar delas. Na década de 1930 a sociedade brasileira havia tido um importante aprendizado: o exercício dos direitos sociais com a promulgação das leis trabalhistas. É possível afirmar que o aprendizado de cidadania social já estava consolidado em fins de 1945. Mas com a Constituição de 1946, os brasileiros tiveram acesso aos direitos políticos. O momento que se abria era de grande importância: aprender a lidar com os direitos políticos e a exercer os direitos civis.

Pela primeira vez na história do país, surgiram e se fortaleceram partidos políticos nacionais com programas ideológicos definidos e identificados com o eleitorado. Não mais se tratava dos partidos da época do Império ou das organizações estaduais da Primeira República, em ambos os casos instrumentos das elites. As eleições tornaram-se sistemáticas e periódicas para os cargos do Executivo e do Legislativo nos planos federal, estadual e municipal, e contribuíram para consolidar um sistema partidário nacional que expressava as diversas correntes de opinião do eleitorado. Os estudos demonstram que, naquele período, se fortaleceram os vínculos programáticos e ideológicos entre os partidos e o eleitorado. Na avaliação de Antonio Lavareda, tratou-se de um sistema partidário-eleitoral que, no início dos anos 1960, estava consolidado. Mesmo com as dificuldades existentes, foi, para o autor, “uma experiência privilegiada”, combinando a ampliação dos direitos políticos dos cidadãos, a nacionalização dos partidos políticos e um rápido processo de urbanização que emancipou politicamente amplos contingentes da população.2 Com base no sufrágio universal e com alto grau de competitividade, as eleições eram fiscalizadas pela Justiça Eleitoral, permitindo que a sociedade brasileira, no dizer de Angela de Castro Gomes, conhecesse “o que se chama ‘aprendizado da política’ eleitoral em novos e mais amplos marcos”.3

Os trabalhadores surgiram no cenário político durante a transição democrática, ao longo do ano de 1945, participando ativamente do movimento queremista. Até março de 1964, manifestaram-se por meio de seus sindicatos e de partidos políticos, em particular o PTB e o PCB, com greves, manifestações públicas e nas campanhas eleitorais.

Dificilmente outro período na história política brasileira tenha tido a quantidade de títulos de jornais publicados como no período 1946-1964, caracterizando uma imprensa que expressava diversas vertentes da opinião pública e atuando de maneira livre da censura estatal.4 Os governos, na época, eram fiscalizados e cobrados pelos órgãos de comunicação. Da reforma do Jornal do Brasil ao surgimento impactante de Última Hora, a imprensa brasileira se transformou. Deixou a fase do “jornalismo literário” para ingressar no “jornalismo empresarial”.5 Nos jornais e nas revistas, os cidadãos buscavam informações e formavam sua própria opinião.

A intelectualidade brasileira participou ativamente dos debates sobre os rumos do país, especialmente no tocante aos projetos de desenvolvimento e à questão democrática. A começar no governo de Vargas, mas sobretudo com Juscelino Kubitschek e João Goulart, a sociedade produziu diversos movimentos artísticos e culturais. No teatro, na música, no cinema, nas artes plásticas ou na poesia, artistas e intelectuais valorizavam o nacional e o popular. Tudo queria ser novo, do Cinema Novo à Bossa Nova.

No entanto, nas palavras de José Murilo de Carvalho, são grandes as dificuldades em admitir que, naquela época, o Brasil conheceu sua “primeira experiência democrática”.6Muitos historiadores negam o caráter democrático do regime instaurado em 1946. Em geral dois argumentos são muito utilizados.

O primeiro é que no governo de Eurico Dutra o Partido Comunista (PCB) foi posto na ilegalidade, enquanto seus militantes sofreram perseguições e o movimento operário foi cerceado pelo aparato policial repressivo. De fato, um ano após a promulgação da nova Constituição, em 1947, as relações internacionais foram alteradas profundamente com o clima beligerante da Guerra Fria. O Brasil não ficou imune aos conflitos entre Estados Unidos e União Soviética e, em vários setores da sociedade, despontou o sentimento anticomunista. O PCB teve seu registro cassado pelo Superior Tribunal Eleitoral e forte repressão se abateu sobre o movimento sindical.

Mas devemos perguntar se, na mesma época, foi diferente na maior democracia ocidental, os Estados Unidos, com os comitês de atividades antiamericanas, o macarthismo, as listras negras de artistas e intelectuais, a lei Taft-Hartley7e a intromissão do FBI na vida privada dos cidadãos. Com a promulgação do Communist Control Act, atividades consideradas “comunistas” foram criminalizadas.8O Partido Comunista Americano não chegou a ser cassado, como no caso brasileiro, mas o cerceamento foi tamanho que, na prática, ele foi banido da vida política do país. O conjunto de medidas acuou as esquerdas e o movimento sindical, alimentando a histeria anticomunista. Na Alemanha (antiga Ocidental), o Partido Comunista foi declarado ilegal em 1956. Mas nem por isso tais países foram considerados como “não democráticos”.

Em outro aspecto, não se considera que existiram alterações e ritmos variados nas relações entre Estado e o movimento comunista no Brasil. Se durante o governo Dutra a repressão policial aos militantes revolucionários foi violenta, em 1951 João Goulart, na presidência do PTB, avalizou aliança entre os trabalhistas e os comunistas no plano sindical. Em sua gestão no Ministério do Trabalho, dois anos depois, os pecebistas assumiram a direção de sindicatos sem perseguições ou empecilhos legais. Durante os governos de Juscelino Kubitschek e João Goulart, eles agiram livremente, em situação de semilegalidade.

Outro argumento para desqualificar o caráter democrático do regime é a interdição do direito de votar dos analfabetos. Como no caso dos comunistas, sem dúvida que se tratou de uma limitação das prerrogativas democráticas. Contudo, é preciso considerar a ampliação do direito ao voto no Brasil nessa época. Segundo Gláucio Ary Dillon Soares, o regime da Carta de 1946 teve como principal êxito a ampliação dos direitos de cidadania política. Na primeira eleição, a de dezembro de 1945, votaram cerca de 7,5 milhões de pessoas, contra 1,5 milhão no pleito de 1933. Ao longo dos anos, o alistamento eleitoral não parou de crescer, chegando a 18,5 milhões de cidadãos votando em 1962 – duas vezes e meia comparando a 1945 e 12 vezes a mais que 1933. No caso das eleições presidenciais, o número de participantes dobrou: de 6 milhões de votantes na primeira eleição para presidente, alcançou 12 milhões em 1960.9

O crescimento do número de votantes cresceu devido à expansão do sistema educacional: os analfabetos eram 54% em 1945 e passaram para 36% em 1962. Além disso, o número de novos eleitores foi maior que o aumento da população. “O aumento de 11 milhões de eleitores mostra que a cidadania se ampliou gradualmente, democratizando o eleitorado”, afirma Gláucio Ary Dillon Soares. Além disso, continua o mesmo autor, “outro impacto positivo para a democracia foi inculcar na cultura brasileira o valor do voto, divulgando a idéia de que votar era bom e um direito ao qual amplos setores da população também deveriam ter acesso”.10

Contudo, muitos estudos na área de História apresentam dificuldades de reconhecer a importância dos direitos civis e de valorizar os direitos políticos nos regimes de democracia representativa, preferindo centrar o foco nos mecanismos de manipulação ideológica, dominação política e controle social. Essa, a meu ver, é a questão central quando se desqualifica a experiência de 1946-1964 como um período democrático.

Os que resistem em admitir que o país conheceu uma experiência liberal-democrática, pensando no governo Dutra, na cassação do registro do PCB e na interdição dos analfabetos ao direito de votar, baseiam-se, muitas vezes, em uma receita prévia de democracia, não considerando que esta não surge pronta, como um receituário, mas é conquistada, ampliada e “inventada”, no dizer de Claude Lefort. A democracia resulta de demandas da própria sociedade, de seus conflitos e contradições, inventando e reinventando suas práticas e instituições.

A desqualificação da experiência democrática inaugurada em 1946 tem uma história. Começou mesmo ainda durante sua própria existência. Grupos políticos inconformados com as derrotas eleitorais, em particular os setores mais conservadores da UDN e das Forças Armadas, passaram a desqualificar o regime, alegando a “manipulação” e “demagogia” de trabalhistas e pessedistas, além da “corrupção” vigente no movimento sindical, cuja origem era o imposto sindical. Para os grupos civis e militares golpistas, a democracia no Brasil estaria condenada em seu nascedouro pela “demagogia getulista”, sendo necessário “saneá-la” – para usar uma expressão recorrente no vocabulário desse grupo político.

Mas os ataques ao regime da Carta de 1946 tomaram força com o golpe civil-militar que, em 1964, encerrou aquela experiência democrática. O con-junto de forças políticas que apoiou o golpe de Estado e sustentou a ditadura formulou uma série de imagens desqualificadoras sobre o período, a exemplo da “corrupção”, da “incompetência” e da “demagogia”. Para as direitas que tomaram o poder com o golpe de 1964, haveria no país um povo “ingênuo” e destituído de “cultura” política e, por isso, facilmente manipulado por líderes políticos inescrupulosos. Mas setores das esquerdas que se declaravam revolucionárias também elaboraram representações igualmente demeritórias, sobretudo no tocante à “manipulação” dos operários por lideranças exteriores à classe, a exemplo de políticos reformistas e sindicalistas “pelegos”. Para as direitas, inexistiria o cidadão cônscio de seus direitos, enquanto para as esquerdas os operários ainda não estariam conscientes de seus “verdadeiros” interesses de classe. Ao lado das direitas e das esquerdas, muitos intelectuais e a imprensa também colaboraram para as versões negativas que se formavam sobre o período 1946-1964. Criou-se, assim, um conjunto de imagens e representações que se firmou no imaginário acadêmico brasileiro durante muitos anos: as dificuldades da sociedade brasileira em conviver com instituições democráticas, resultando no fracasso da experiência liberal-democrática no Brasil.

Também contribuiu para a desqualificação do período a pouca dedicação dos historiadores brasileiros por temporalidades mais recentes. Enquanto a época colonial e o século XIX, em particular o tema da escravidão, apresentam pesquisas de longa data, os estudos sobre a República brasileira são recentes. As primeiras pesquisas publicadas sobre o governo de Vargas, por exemplo, datam de meados dos anos 1980. Sobre o período 1946-1964 encontramos o pouco interesse dos historiadores. Os grandes temas sobre o período foram pesquisados nas áreas da Ciência Política e da Sociologia, com trabalhos que se tornaram referências.11Recentemente, encontramos inúmeras pesquisas produzidas por historiadores voltadas para o estudo da ditadura militar. O regime político inaugurado com a Constituição de 1946 pode ser considerado o período menos pesquisado entre os historiadores brasileiros.

A pouca dedicação dos historiadores e as imagens fortemente introjetadas no imaginário acadêmico que desqualificam o período reforçaram a caracterização do regime político como populista. Durante muitos anos, a experiência democrática que se abriu em 1945 com o fim do Estado Novo e se encerrou com o golpe civil-militar de 1964 ficou conhecida por categorias pejorativas como período populistarepública populista ou democracia populista. O sindicalismo, igualmente populista, ainda recebeu a qualificação de “velho”. As expressões podem ser encontradas tanto em livros didáticos quanto em textos produzidos nas universidades. Nada há de ingênuo nessas maneiras de nomear aquele período da história do país. O objetivo é desqualificar o regime de 1946-1964 como uma experiência de democracia representativa.

Uma das imagens que mais desmereceram a sociedade brasileira daquela época foi, sem dúvida, a do populismo. Diversos pesquisadores, atualmente, criticam a expressão por sua excessiva generalização.12Por sua elasticidade, o termo populismo se esforça por dar conta de diferentes projetos e tradições políticas sob as mesmas características. Além disso, populismo é imagem que desqualifica a sociedade brasileira para o exercício da democracia. A expressão sugere a existência de lideranças cínicas e superconscientes capazes de “enganar” o eleitorado e os trabalhadores em particular. O “povo”, nesse sentido, não saberia votar – é o que fica subentendido.

Mesmo que superadas por pesquisas mais recentes, as teses tradicionais ainda são bastante aceitas. É o caso dos textos que afirmam o caráter artificial do sistema partidário, de pouco enraizamento na sociedade, sem consistência ideológica e ainda dominado por lideranças carismáticas; ou do corporativismo e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que teriam desviado a classe operária de seus “verdadeiros” interesses, instituindo a “tutela” do Estado sobre os trabalhadores. Outras teses falam do “agrarismo”, do “clientelismo”, do “patrimonialismo”, da “sociedade de massas”, dos “líderes carismáticos” e do “populismo”. Os estudos marcados pelo determinismo econômico complementam o quadro de desqualificação da experiência liberal-democrática no Brasil, sugerindo a incompatibilidade da sociedade brasileira com aquelas instituições.

As imagens desmerecedoras do passado encobrem a atuação política dos atores sociais, marginalizando vivências e experiências de trabalhadores em seus sindicatos, camponeses em suas ligas, estudantes em suas entidades de representação, empresários em suas associações e diversos outros grupos sociais que, em suas organizações, atuaram politicamente. Não ingenuamente, grandes mobilizações e conflitos sociais são silenciados e desvalorizados porque resultados da “política populista”.

Portanto, acredito não apenas na necessidade de desenvolver pesquisas sobre o período, mas em estabelecer uma revisão historiográfica e conceitual sobre a experiência liberal-democrática brasileira inaugurada em 1946.

O dossiê, desse modo, é uma contribuição para a renovação dos estudos sobre aquela temporalidade. Pedro Cezar Dutra Fonseca, Professor Titular do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, escreve artigo sob o prisma da História Econômica, realizando sofisticado debate sobre a política econômica durante o segundo governo de Getulio Vargas. Jefferson José Queler, doutor em História pela UNICAMP, apresenta pesquisa inovadora sobre Jânio Quadros. Com fontes inéditas – cartas escritas por populares durante a campanha à Presidência da República – o autor demonstra como o eleitorado participou ativamente da campanha eleitoral e da construção da imagem do próprio Jânio. A partir de notícias sobre explosões de bombas atômicas sobre os céus do nordeste brasileiro, Tácito Thadeu Leite Rolim, mestre em História pela Universidade Federal do Ceará, nos leva a conhecer como o Brasil esteve envolvido na Guerra Fria. No artigo de Bryan McCann, da Georgetown University, conhecemos a influência do blues no desenvolvimento da Bossa Nova, bem como o circuito de relações entre artistas brasileiros e norte-americanos nos anos 1950 e 1960. Por fim, em artigo dedicado ao debate historiográfico, Lucilia de Almeida Neves Delgado, Professora Titular de História do Brasil da UFMG e da PUC-Minas, atualmente lecionando na UnB, faz um inventário das principais teses explicativas do golpe civil-militar de 1964.

O dossiê, portanto, reúne pesquisas inéditas, com temas variados e em diversas abordagens historiográficas. O objetivo é contribuir para a melhor compreensão da primeira experiência de democracia representativa vivida pela sociedade brasileira.

Notas

1. É necessário considerar, no entanto, as eleições de 1933 que constituíram a Assembleia Nacional Constituinte. Com o pleito foi instituído o voto secreto e a Justiça Eleitoral. As mulheres obtiveram o direito de votar. Contudo, as inovações de cunho democrático foram interrompidas pelo golpe do Estado Novo.
2. Antônio Lavareda. A democracia nas urnas. O processo partidário-eleitoral brasileiro (1945 1964). Rio de Janeiro, Iuperj / Revan, 1999, p. 133 e 191. [ Links] 3. Angela de Castro Gomes. “Jango e a República de 1945-1964: da República Populista à Terceira República”, in: Rachel Soihet; Maria Regina Celestino Almeida; Cecília Azevedo; Rebeca Gontijo (orgs.). Mitos, projetos e práticas políticas. Memória e historiografia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, p. 36. [ Links] 4. A população do Rio de Janeiro, capital da República, dispunha de cinco grandes jornais: Correio da ManhãJornal do BrasilO Globo, O Jornal e Última Hora. Com menor circulação havia o Diário CariocaDiário da NoiteO Dia, Imprensa Popular, Jornal dos Sports, Tribuna da Imprensa, entre outros.
5. Para a imprensa da época, ver Alzira Alves Abreu (org.). A imprensa em transição. O jornalismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1996. [ Links ] 6. José Murilo CarvalhoCidadania no Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004, p. 127. [ Links ] 7. O Congresso norte-americano, em 1947, aprovou a lei Taft-Hartley, tornando ilegais determinadas greves e limitando a representação sindical no país.
8. O Communist Control Act foi aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos em 1954.
9. Gláucio Ary Dillon Soares. A democracia interrompida. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2001, p. 313. [ Links ] 10. Idem, p. 318.
11. O estudo do movimento sindical entre 1945 e 1964 também foi objeto de preocupação de sociólogos e cientistas políticos. Contudo, em período mais recente, historiadores se dedicaram à pesquisa do tema, inovando as análises em diversos aspectos.
12. Ver Jorge Ferreira (org.). O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001. [ Links ]

Jorge Ferreira – Professor Titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense e Pesquisador I do CNPq e da FAPERJ. E-mail: [email protected]

FERREIRA, Jorge. Apresentação. Tempo. Niterói, v.14, n.28, jun., 2010. Acessar publicação original [DR]

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Política e governabilidade: diálogos com a obra de Maria de Fátima Silva Gouvêa / Tempo / 2009

Para Luigi e Lili

Política e governabilidade são conceitos que Maria de Fátima Silva Gouvêa desenvolveu com maestria em seus trabalhos. Desde seu mestrado e doutorado – ambos realizados em Londres, em finais da década de 1980, sob a orientação dos professores John Lynch e Leslie Bethell –, ela se dedicou a analisar as imbricadas teias da política e as condições de governabilidade de dois grandes impérios: o do Brasil, no século XIX, e o português, nos tempos modernos.

Em 1991, já de volta da Inglaterra, Fátima, como vários de nós, seus colegas e contemporâneos, fez concurso para o Departamento de História da UFF. Porém, ao contrário de muitos de nós, já doutora, começou a atuar na graduação, dedicando-se à história colonial da América, e na pós-graduação. Em ambas, “fez escola”, formando um sem número de graduandos, bolsistas, mestrandos e doutorandos. Este, certamente, é um dos seus legados, e de importância incalculável; outros não são menos importantes, como os inúmeros projetos que desenvolveu e que, por sua vez, resultaram em outros tantos trabalhos, artigos, capítulos de livros, obras individuais e coletivas.

Em 1995, tornou-se bolsista de Produtividade do CNPq. Em um de seus primeiros projetos de pesquisa, intitulado “Em Busca de Governo e Soberania: homens bons no Rio de Janeiro, 1780-1822”, dedicou-se às dinâmicas do poder local e às redes de poder que, tecidas por aqueles que participavam da governança da cidade, garantiam a administração e a soberania do Império.

Neste trabalho, já enunciava uma nova interpretação da história colonial do Brasil, rompendo com os dualismos metrópole / colônia, colonizador / colono, propondo interpretar a sociedade que se formava nos trópicos a partir de práticas e instituições herdadas do Antigo Regime português, baseadas no ideário da conquista, no sistema de mercês, no desempenho de cargos administrativos, na intensa negociação entre poder central e poderes locais. Em 2001, organizamos, com João Fragoso, o livro O Antigo Regime nos Trópicos, fruto de uma rica interlocução de um conjunto bastante amplo de historiadores. Para Fátima Gouvêa, a governabilidade do império português assentava-se, entre outras coisas, numa economia política de privilégios, conceito cunhado também por ela.

Desde então, seu interesse voltou-se, na tentativa de compreensão da política e da administração imperiais, para o “complexo atlântico português”, privilegiando, como ponto de partida, as relações entre Brasil e Angola. Insere-se nessa chave interpretativa o desenvolvimento da pesquisa “Conexões Imperiais: oficiais régios e redes governativas no Brasil e Angola, 1645-1777”. Neste trabalho Fátima foi hábil no estudo das estratégias e das práticas políticas portuguesas no ultramar. Esmiuçou as trajetórias de governadores em ambos os lados do Atlântico; discutiu os critérios para sua nomeação; destrinchou as redes clientelares construídas por eles e pelas elites locais em torno deles; analisou suas relações de poder e os conflitos jurisdicionais em que se envolveram.

Além da produção acadêmica, a formação de pesquisadores ocupou um lugar de destaque na vida de Fátima Gouvêa. Em todos os trabalhos que desenvolveu, a capacidade de agregar colegas e orientandos era sua marca registrada. Entre seus inúmeros projetos de pesquisa, a proposta que apresentou em 2003 à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, “A governação portuguesa no Brasil, séculos XVI-XIX”, calcava-se no trabalho de uma equipe de alunos e bolsistas cujo objetivo era empreender um estudo crítico dos mais de cem volumes da publicação dos Documentos Históricos. No Núcleo de Pesquisa em História Cultural (NUPEHC), laboratório da Área de História UFF que Fátima ajudou a fundar e do qual foi coordenadora, essa capacidade de agregação, aliada à produção, foi uma constante. No desenvolvimento de nossos sucessivos projetos – vários deles em torno do conceito de cultura política, da pesquisa e do ensino da História – sua presença sempre foi marcante.

Porém, sua índole desbravadora e, ao mesmo tempo, agregadora, a levaria a tecer e conectar redes mais extensas, constituídas por historiadores e pesquisadores em diferentes países e hemisférios. Entre 2000 e 2001, realizou seu primeiro pós-doutorado, parte em Lisboa, onde foi recebida por António Manuel Hespanha, e parte na Johns Hopkins University, sob a supervisão do professor A. J. R. Russell-Wood. Voltaria outras muitas vezes a Portugal, para encontros, seminários e pesquisas, como a que reuniu, nos últimos anos, um grupo de historiadores portugueses e brasileiros em torno das “Franjas dos Impérios Ibéricos”, sob a coordenação de Nuno Gonçalo Monteiro.

O ano de 2008 passou-o em Portugal, num segundo pós-doutorado, como investigadora visitante do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em parceria, mais uma vez, com Nuno Monteiro. Integrava igualmente o convênio CAPES-GRICES, com o projeto “A Monarquia e seus Idiomas: Corte, governos ultramarinos, negociantes, régulos e escravos no mundo português (sécs. XVI-XIX)”, sob a coordenação de João Fragoso. Foi ainda em 2008 que Fátima publicou sua tese de doutorado, O Império das Províncias. Rio de Janeiro, 1822-1889, reafirmando sua persistência no tema da governação, das redes, das conexões e negociação entre poder local e poder central.

Ao buscar em seus diversos trabalhos compreender a política e a governabilidade dos Impérios – do Brasil e de Portugal –, ao tecer redes e conexões entre pesquisadores já consolidados, jovens aprendizes e futuros historiadores, Fátima Gouvêa deu sentido não só à sua própria trajetória, mas foi, sobretudo, um exemplo para todos nós, seus amigos e companheiros. Nós a perdemos ainda muito jovem, em janeiro de 2009. Porém, ela deixou muitas sementes e redes já consolidadas, muitas saudades e um sentimento de privilégio por a termos conhecido e trabalhado com ela.

Este dossiê compõe-se de artigos que dialogam com as várias facetas do trabalho de Maria de Fátima Silva Gouvêa. Cada um dos textos dessa homenagem é fruto da interlocução de seus autores com a obra de Fátima, e da grande amizade que nos unia. Em “As Câmaras municipais e o poder local: Vila Rica – um estudo de caso na produção acadêmica de Maria de Fátima Silva Gouvêa”, Júnia Ferreira Furtado percorre seus trabalhos sobre o papel das câmaras municipais, e analisa a contribuição inovadora da autora sobre o tema. Com “Entre trajetórias e impérios: apontamentos de cultura política e historiografia”, Iara Lis Schiavinatto faz uma leitura do debate historiográfico sobre o império ultramarino português, no qual Fátima esteve sempre presente, e de sua contribuição para a análise da cultura política que marcou o império brasileiro e, mais especificamente, o Segundo Reinado. “Monarquia Pluricontinental e Repúblicas: algumas reflexões sobre a América Lusa nos séculos XVI–XVIII”, assinado por João Fragoso e Maria de Fátima Silva Gouvêa, é uma reunião de textos que ambos escreveram juntos, e nos quais discutem a ideia de autogoverno, o conceito de redes governativas e a noção de monarquia pluricontinental. Em “A circulação das elites no império dos Bragança (1640-1808): algumas notas”, Nuno Gonçalo Monteiro debruça-se sobre as conexões e os equilíbrios imperiais e atlânticos da monarquia bragantina no século XVIII, analisando a fratura identitária entre reinóis e naturais da América portuguesa no início do século XIX. Em “Nobreza Indígena da Nova Espanha. Alianças e Conquistas”, Ronald Raminelli discute as inflexões nas alianças entre castelhanos e chefes indígenas, a partir dos valores aristocráticos vigentes na monarquia hispânica e difundidos pelos conquistadores, e os novos interesses da Coroa. Ronaldo Vainfas, em “Guerra declarada e paz fingida na Restauração portuguesa”, privilegia a discussão do Papel Forte escrito por Antônio Vieira, ao interpretar o conflito diplomático entre Portugal e Países Baixos, no contexto da Restauração e das guerras holandesas em Pernambuco no século XVII. Marília Nogueira dos Santos, em “O império na ponta da pena: cartas e regimentos dos governadores-gerais do Brasil”, reflete sobre os regimentos e a correspondência dos governadores-gerais da América portuguesa, demonstrando como ambos, conjugados, visavam o bom governo das conquistas. Em “A cobrança do ouro do rei nas Minas Gerais: o fim da capitação – 1741-1750”, Joaquim Romero Magalhães analisa a intensa negociação entre oficiais régios e as câmaras das principais vilas da região mineradora, em torno da imposição e do funcionamento desta nova forma de tributação. Marcus J. M. de Carvalho, em “A repressão do tráfico atlântico de escravos e a disputa partidária nas províncias: os ataques aos desembarques em Pernambuco durante o governo praieiro, 1845-1848”, discute como o envio da polícia para apreender a carga dos navios negreiros no período analisado serviu como instrumento político e econômico na luta contra o partido conservador.

Todos nós que integramos este dossiê convivemos com Fátima Gouvêa e temos, de uma forma ou de outra, nossas trajetórias interligadas. Nossa intenção, com mais esta homenagem que fazemos à sua memória, é compartilharmos com os leitores da revista Tempo algumas reflexões sobre temas tão caros ao seu percurso intelectual e à paixão com que nossa amiga e companheira dedicava ao seu trabalho e à sua vida.

Maria Fernanda Bicalho – Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]


BICALHO, Maria Fernanda. Apresentação. Tempo. Niterói, v.14, n.27, 2009. Acessar publicação original [DR]

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A Primeira República / Tempo / 2009

A Primeira República, em especial as décadas iniciais do novo regime, vem ganhando crescente interesse e espaço na produção historiográfica brasileira. Muitos são os historiadores, sobretudo os dedicados à história política e cultural, que têm retomado o período numa chave distinta daquela que o consagrou como a República “Velha”. Por essa razão, este dossiê se inicia com uma reflexão de teor historiográfico que objetiva desnaturalizar o uso de tal designação, ainda muito utilizada e compartilhada, tanto na literatura acadêmica como na escolar. Afinal, periodizar, nomeando um “tempo”, é um ato de poder, como os historiadores sabem por dever de ofício. Nessa operação nada é ingênuo, sendo necessário pensar que sentidos uma determinada nomenclatura deseja atribuir a um “espaço de tempo”, o que necessariamente implica considerar quem e quando se constrói tal designação. No caso, a de República “Velha”, uma autêntica “fórmula mental”,1 que certamente exige questionamentos, a começar pela indicação de que, não casualmente, foi imaginada e adotada pelos ideólogos autoritários das décadas de 1920 / 30.2 Desde então, ela foi propagada, com ênfase durante os anos do Estado “Novo”, outra fórmula de periodizar a história política brasileira, diretamente ligada, por contraste, às décadas que o precederam.

Com essas breves observações, fica evidente a imensa carga de disputas políticas e memoriais que tais designações contêm, e como elas se associam claramente aos projetos dos intelectuais que estiveram mais fortemente envolvidos em sua produção, legando-as ao pensamento social e à historiografia brasileira. Por isso, consideramos interessante transcrever o primeiro parágrafo de uma dissertação de mestrado em História, defendida em 2008, na medida em que ele pode materializar, com esmero, a longa duração e o forte compartilhamento dos sentidos de um projeto político, passível de ser datado das décadas iniciais do século XX.

Há algum tempo tenho interesse pelo período denominado Primeira República. (…) A idéia que ficava recorrente, assim que saíamos do ensino médio, era a de que a “República Velha” é um período de verdadeiro caos, de desorganização; afinal, o Império havia desmoronado e os poderes se tornariam cada vez mais descentralizados. Aparentemente, o que fica no nosso imaginário é a identificação dos anos que vão de 1889 a 1930 como uma desordem ou bagunça generalizada, um tempo marcado pelo vazio de idéias, propostas e ações significativas para a nação brasileira.3

A partir dessas constatações, é possível defender e postular uma necessária e urgente revisão historiográfica do período, ou seja, sua retomada de forma inteiramente diversa, assinalando-se sua importância e riqueza para o debate de idéias e a experimentação de ações políticas e culturais no Brasil. Sendo assim, é bom realizar um percurso, que embora pareça tortuoso, é justificável, e tem seu início marcado por considerações que envolvem um retorno, mesmo que muito rápido, ao Estado “Novo”. Vale lembrar, então, que tal período recebeu essa designação por obra dos políticos e intelectuais nele engajados, com a nítida intenção de acentuar sua força transformadora; na verdade, sua força revolucionária. O golpe que instalou o Estado Novo, uma ditadura com chefe civil amplamente sustentada por forças militares, em especial pelo Exército, já foi destrinchado e caracterizado como um “golpe silencioso”.4 Um silêncio – de protestos e reações de qualquer tipo e origem –, que evidencia não apenas o poder dos que ascendiam à direção do Estado, como também a existência de um projeto político que incluía a construção de uma imagem para o presente que se inaugurava e, em decorrência, para o passado que o antecedia e para o futuro que seria sua própria criação.

Exatamente por atentarmos para a existência desse ambicioso projeto político-cultural, algumas observações são convenientes. Em primeiro lugar, a da existência de uma interpretação que considera o Estado Novo, em bloco, como um evento que se articula diretamente às intenções dos revolucionários de 1930 e é um desdobramento natural da “revolução”, produzindo um corte radical com o passado do país. Em segundo lugar, que a Primeira República, a partir daí decididamente “velha”, também em bloco, passa a ser avaliada como um grande fracasso e equívoco, praticamente desde seu começo, em 1889 ou 1891, anos da Proclamação ou da Constituição, não importa. Assim, nessa narrativa, vemos como as elites vitoriosas do pós-1930 inauguravam um projeto político que se concluía com o Estado “Novo”, enterrando definitivamente uma República “Velha” e tornando os anos que vão de 1931 a 1936 uma antecâmara da presença inevitável do golpe de novembro de 1937. Uma versão / interpretação de um conjunto de acontecimentos, absolutamente teleológica, mas nem por isso menos eficiente e duradoura. Em outros termos, queremos chamar a atenção para os vínculos existentes entre uma proposta fundadora (em várias dimensões) do Estado Novo e o estabelecimento das bases de uma periodização da história republicana do Brasil, ainda muito vigente, na qual esse regime autoritário tem posição estratégica e decisiva. Nos termos dessa interpretação, a Revolução de 1930 assinalaria um novo e grande ponto de partida na história do Brasil, rompendo definitivamente com o passado; vale dizer, com os erros da Primeira República: liberal, oligárquica, fraca, inepta, europeizante e política e culturalmente afastada do “povo brasileiro”.

Esse é o aspecto que queremos destacar. Isto é, que tal periodização, reforçando formas de nomear / compreender o tempo, está defendendo valores e criando concepções ligadas a uma tradição inventada de antiliberalismo, que condena não só as idéias liberais, como também suas práticas, seus atores sociais e suas instituições e organizações político-culturais. As eleições, os parlamentos, os partidos políticos e os variados tipos de associativismo são, assim, geralmente desqualificados como ineptos e / ou desnecessários. Essas práticas participativas, expressas em organizações e movimentos que reuniam atores diversos são, assim, minimizadas e / ou apagadas. Tais associações, que eram muito numerosas e diversificadas, ligavam-se à expressão e demanda de direitos que eram, ao mesmo tempo, civis e políticos, pois envolviam a liberdade de pensamento e sua expressão, inclusive para lutar pelos novos direitos sociais, que se tornavam mais conhecidos e desejados.

Sabemos que não é de fato nenhuma novidade assinalar os vínculos entre a construção de um pensamento autoritário no Brasil e as críticas ao liberalismo, encarnado e identificado na política e nos políticos “profissionais” da República “velha e oligárquica”. Contudo, alguma novidade existe em registrar a eficiência desse processo de construção de tradições e enquadramento da memória nacional. O objetivo é destacar como ele foi capaz de abarcar e esgotar a experiência política, social e cultural da Primeira República em um tipo de narrativa que, identificando, selecionando e valorizando apenas determinadas vivências do campo da política formal, transforma-as em símbolos do fracasso da experiência liberal do período, como um todo.

Nesse sentido, vale atentar para dois aspectos dessa construção memorial, ainda pouco comentados. Primeiro: como ela seleciona e enfatiza um conjunto de procedimentos exercidos no espaço da representação político-parlamentar, traduzidos especialmente pelo momento das eleições, silenciando toda uma variada e numerosa gama de formas de participação política e cultural, ocorridas nesse espaço de tempo. Ou seja, como, nesse tipo de narrativa, não se destaca e mesmo se ignora uma série de experiências de mobilização e organização de atores coletivos (e de atores coletivos modernos, como os trabalhadores e o patronato), em torno de questões de seu interesse. Quer dizer, marginaliza-se, nunca ingenuamente, todo um conjunto de vivências, envolvendo diferenciados grupos sociais, que demandavam políticas às autoridades públicas, propondo e implementando uma série de iniciativas através de suas formas de associativismo, fossem elas na área da educação, da saúde, da política econômica, da regulamentação do mercado de trabalho e da expressão cultural, entre outras. Um processo de escolhas do que lembrar e do que esquecer que é obra política articulada desde os anos 1920, mas que permanece tendo vigência na historiografia e no ensino de história sobre a Primeira República.

Assim, podemos afirmar que ainda se desconhece, basicamente por falta de estudos, uma rica movimentação de atores – intelectuais, trabalhadores, setores de classes médias e populares – empreendida no campo da participação política, que alcançou desenhos variados e mais ou menos formalizados em instituições e associações muito variadas. De toda forma, o que desejamos ressaltar é como esse apagamento da esfera da participação política durante a Primeira República está relacionado com o diagnóstico então construído – e desde então acreditado – de que o “povo” brasileiro não tem capacidade de ação coletiva; que a sociedade brasileira, sendo inorgânica, é insolidária e, por isso, pouco afeita (praticamente de forma ontológica) às formas de associação de um modelo liberal-democrático.

Segundo: como essa seleção que dá destaque à esfera da representação política é plena de sentidos, pois seu objetivo é, claramente, rebaixar tal tipo de experiência participativa, ressaltando que ela estava pautada em procedimentos fraudados e fictícios, portanto, desprezíveis e inócuos, devendo ser afastada e negada de maneira definitiva. Algo que ganhou brilhante formulação na concepção de “Brasil legal”: um Brasil “irreal”, porque fundado em leis inaplicáveis ao país, por terem sido copiadas de experiências estrangeiras e, por isso, desconhecerem o “Brasil real”. Uma dicotomia célebre, fortemente presente no pensamento político e social brasileiro, que tem como seu núcleo duro a descrença no poder da institucionalidade jurídico-política liberal. Dessa forma, as leis, inclusive e com destaque as constituições, são vistas como peças que têm, por definição, pequeno ou nenhum grau de eficiência na transformação da realidade social. Seus enunciados, por conseguinte, não são vistos como guardando uma diretriz normativa, um “horizonte de possibilidades” para o futuro. O descolamento, como se postula, entre o legal e o real é, ao contrário, geralmente postulado na chave da ignorância das “verdadeiras” características do Brasil, gerenciado por leis “utópicas”, feitas “para não pegar” ou “para inglês ver”. Aliás, por isso mesmo, seria possível incluir quase tudo nas leis brasileiras, já que elas – tradicionalmente e até propositalmente –, não são feitas a sério e, portanto, não devem ser levadas a sério.

Talvez o exemplo de um documento, certamente paradigmático, seja útil para se entender como se estabeleceu esse tipo de cultura histórica sobre a Primeira República que, como se pode perceber, transborda o período do pós-30 e se expande em sua desconfiança para com os princípios liberais, até os dias de hoje. Trata-se de um misto de conto e depoimento (de ficção e não-ficção), publicado em 1941, na revista Cultura Política, um periódico oficial do Estado Novo, direcionado a fazer propaganda do regime e de seu presidente. De autoria de Raimundo de Ataíde, intitula-se: “Recordações de um cidadão que nunca votou”. Como era usual na revista, o texto é precedido de uma apresentação da editoria, que contextualiza o que vai ser lido, apropriando-se do texto e ressignificando-o segundo as diretrizes políticas do Estado Novo.

Jornalista militante na imprensa do Rio de Janeiro, porém natural do estado do Ceará, onde viveu longo tempo – dá-nos o autor um sugestivo flagrante de um momento de eleição no interior do Brasil da República Velha. É um testemunho curioso de como se processavam as eleições, naquela época que já se distancia tanto do Brasil Novo, alentado por impulsos de progresso político mais sadios e mais viris.5

A seguir o que se lê é um delicioso relato de um dia de eleição em Pacatuba, pequena cidade do interior do Ceará. Preciso quanto às práticas vigentes nessas ocasiões, não há uma data cronológica a localizar os fatos narrados. Assumindo-se o ponto de vista de Cultura Política, eles permitem um acompanhamento detalhado do poder dos coronéis da região, os grandes inimigos dos revolucionários de 1930 e de 1937, e também os grandes símbolos do liberalismo decadente da República “Velha”. O texto permite, assim, uma reencenação das críticas e acusações feitas às práticas liberais, em função das fraudes eleitorais, muito comuns e sabidamente violentas, nos sertões brasileiros. Como se percebe desde a apresentação, tratava-se de algo já distante do Brasil Novo, mas ainda não inteiramente superado, o que justifica o desejo de serem lembradas e combatidas.

Do ponto de vista do historiador, o relato é muito valioso. De um lado, porque descreve o que certamente ocorria em boa parte do país quando dessas ocasiões, mas assumindo o ponto de vista de um eleitor de “oposição”, já que o pai do autor / narrador era o Juiz de Direito da cidade; mas um juiz que não se conformava com aquelas “mascaradas eleitorais”. Ou seja, um juiz que não fazia parte do arranjo coronelista então dominante e que o relato faz crer não participar de qualquer outro tipo de arranjo, o que atribui ao que é dito uma veracidade suplementar ao próprio caráter, si só apresentado como “verdadeiro”, do testemunho. De outro, porque retomando o evento eleitoral a partir da retórica de “um cidadão que nunca votou”, navega entre a Primeira República e o Estado Novo, contrapondo suas crenças e valores e militando em favor do segundo, que advogava uma “democracia autoritária” mais “sadia” e que, para tanto, havia suprimido todos os procedimentos e instituições liberais.

De forma absolutamente abreviada, o narrador mostra que o dia de eleição era um dia de festa na cidade, cheia de “matutos”, que para lá afluíam alegres e bem arranjados para votar, embora mal soubessem assinar seus nomes. Havia também muitos soldados, além de missa, tragos de bebida e até almoço na Casa da Câmara. Havia, o que vale assinalar, algum grau de disputa entre os coronéis, tanto que o caráter extraordinário do acontecimento acaba sendo alterado, durante seu decorrer. Isso porque o clima de espetáculo, meio cívico, meio cômico, pois os “granfinos do lugar se riam à socapa daqueles cidadãos”,6 é rompido pelo assassinato de um homem, ocorrido após uma discussão política “em defesa do chefão político” em que fora votar. O episódio, que tem lugar quando o autor era “moço”, marca-o para sempre, não só porque o criminoso, preso por seu pai e do partido do governo, é logo posto em liberdade, como porque ele fica sabendo de muitas outras “safadices e intrujices dos politiqueiros”, pelo Brasil afora. Quer dizer, “decência e honestidade nas eleições constituíam exceções à regra geral. (…) Esse estado perigoso de coisas foi que a minha geração encontrou (…)”.7 Entende-se, então, o fenômeno de “ordem inteiramente psíquica”, o complexo que inibia o comparecimento às urnas desse eleitor, que não acreditava no êxito de seu gesto, na eficácia “daquela atitude coletiva”, o que explicava, como se vê no último parágrafo, “o fato do brasileiro não se ter entrosado com sucesso no sistema representativo pelo voto (…)”.8

É preciso ficar claro, contudo, que com a mobilização desse texto, não estamos querendo negar ou minimizar a ocorrência de fraudes e violências eleitorais na Primeira República, o que efetivamente existia, limitando e desestimulando a representação política dos cidadãos; porém, como diversos estudos têm demonstrado, a despeito de sua existência, a realização de eleições cumpria papel chave no sistema político de então. De um lado, porque eram fundamentais para uma relativa, mas estratégica, circulação de elites, introduzindo na cena política um mínimo de competição e renovação. De outro, porque eram responsáveis por uma incipiente, porém pedagógica, mobilização de eleitores, o que ocorria certamente de formas muito diversas, fundamentando um aprendizado político constante pela realização sistemática dos pleitos. Afinal, o dia de eleições era ao menos um dia de alegria, encontros e disputas – um dia de festa na avaliação do autor – para os muitos “matutos” que também participavam, a seu modo, daquele espetáculo cívico-cômico. Além disso, é possível argumentar, com sólidas evidências históricas, que a Primeira República tinha tantos problemas de governabilidade e de incorporação de atores, como várias outras liberais-democracias européias, consideradas clássicas. Nelas, também os partidos políticos se apresentavam como “clubes de elites”; também os critérios de inclusão ao corpo político passavam pelo saber ler e escrever e por critérios de idade e sexo, admitindo-se apenas o masculino; e também havia fraudes, clientelismo etc.9 Importa assinalar igualmente que, nos anos 1910 / 20 / 30, esses exemplos internacionais foram vistos, primeiro como modelos a serem seguidos, ainda que não copiados; e depois, embora não de forma generalizada, como experiências a serem abandonadas, em nome de uma originalidade a ser alcançada, que passava justamente pelo questionamento das idéias liberais.

Portanto, desde o início dos anos 1920, avançava uma contundente crítica ao reduzido grau de governo do Estado liberal republicano. Este, por sua fragilidade institucional, não estava conseguindo um bom desempenho na tarefa de forçar os principais atores políticos (as oligarquias) a cooperarem, abandonando seus interesses mais particulares e imediatos, em nome de horizontes de mais longo prazo. Era o que se identificava como o domínio dos interesses egoísticos, o mundo do caudilhismo, do coronelismo. Essa fragilidade, que se expressava na insuficiente consolidação e funcionamento das instituições políticas brasileiras, bloqueava a criação de um verdadeiro espaço público, para o qual os conflitos privados pudessem ser canalizados e solucionados. Só assim seria possível a incorporação de novos atores, que se agregariam através de novos arranjos políticos, capazes de limitar a força excessiva do privatismo, sustentando uma autoridade centralizadora incontestável. A imagem que, durante a própria Primeira República, dela se construiu pelos que a criticavam com um claro objetivo de desautorizar o modelo político-institucional estabelecido, era a de uma República instável e ineficiente, distante do Brasil “real”, fundamentalmente devido à sua adesão ao liberalismo político.

Os ideólogos do Estado Novo, portanto, irão aprimorar e, sobretudo, divulgar e consolidar essa versão interpretativa. Nela, a Primeira República, conformada a partir da experiência representativa, vista pelo que tem de pior (e esse pior existe, mas não é tudo que existe), é lançada de forma ampla e geral em um poço de incompetência política. Ela nada acrescentaria à nossa história, estando completamente apartada e “atrasada” em relação a outras experiências internacionais que lhe eram contemporâneas. Aliás, quando as aproximações são feitas, o que se evidencia é essa decalagem ante as “democracias avançadas”, onde haveria opinião pública, eleitores conscientes e políticos “autênticos”: competentes, éticos etc. Naturalmente, uma realidade distante do Brasil, lugar de ausências e descaminhos; lugar de atraso e de insolidarismo.

Interessa aqui notar o fato de tal interpretação estar considerando esse período do regime republicano um total fracasso, por não fazer jus nem a seu “passado”, especialmente o do Segundo Reinado, nem a seu futuro, o dos sucessos da Revolução de 1930. A República “Velha”, nessa versão, teria se excedido na adoção da fórmula federativa, copiada dos EUA, o que não só comprometera definitivamente o próprio liberalismo no Brasil, como nos desviara do caminho centralizador já apontado pela monarquia. Por fim, toda a elite político-intelectual daquele período, em suas várias correntes, teria falhado completamente no campo simbólico, pois não conseguira construir nem um imaginário republicano poderoso, nem um sentimento cívico de amor à nova pátria.

Sabemos, há algum tempo, que as expressões culturais não são prisioneiras dos regimes políticos. Mas é impressionante constatar como as versões e interpretações sobre essas expressões no primeiro período republicano, inclusive posteriormente reproduzidas pela historiografia, possuem enorme correspondência com as avaliações políticas sobre o período, divulgadas pelos ideólogos do Estado Novo. Assim, se a Primeira República, através de seus políticos e intelectuais, não tinha sido bem sucedida na construção de um imaginário republicano e de um sentimento cívico de amor à nova pátria, também não tinha conseguido valorizar e incorporar o Brasil “real”, formado pela contribuição racial e cultural de índios, negros e portugueses.

O Estado Novo e seus ideólogos conseguiram trazer para si todos os méritos da criação de um país de todos, unificado política e culturalmente, através da construção de um povo mestiço, em termos festivos e musicais, tanto no samba e no carnaval, como em diversas manifestações folclóricas de todas as partes do país. O governo Vargas e a década de 1930 passaram a representar, na memória nacional, um momento de ruptura do passado cultural brasileiro. A valorização da música popular, do carnaval e até mesmo da capoeira – tudo nos faz crer – precisava esperar esses novos tempos.

A Primeira República, para seus críticos, teria também sido fraca e incompetente culturalmente, pois havia buscado um ideal nacional imitativo das nações mais civilizadas, não investindo na valorização de gêneros populares e nacionais. A Primeira República era mesmo “velha” por não ter rompido com antigos cânones literários, artísticos e musicais elitistas, ligados à música universal e eurocentrista. Seus políticos e intelectuais não teriam conseguido associar as manifestações populares, suas peculiaridades e potencialidades, à identidade da nação e da arte brasileiras. As críticas ao liberalismo político da Primeira República se irradiaram para o mundo cultural pela sua associação aos valores europeus, distantes de nossas originalidades e tradições populares.

Sem dúvida, o Estado Novo, com grande apoio das ondas do rádio, investiu pesadamente numa política cultural que buscava romper com um pretenso e velho passado cultural. Visava construir uma nova cultura nacional através da valorização de certas expressões afrodescendentes e populares; especialmente as musicais, definidas como sertanejas, folclóricas ou populares, foram vistas como uma forma de arte que uniria todo o país sob a égide de um novo Estado, responsável por uma nova política cultural. Músicos populares e sambistas ganharam destaque; os desfiles de carnaval receberam renovado apoio oficial. O canto orfeônico, por sua vez, difundido em todas as escolas do país, representaria o combate, no campo cultural, ao individualismo e egoísmo das tradicionais oligarquias regionais – os condenáveis atores políticos do regime anterior a 1930.

Foi inegável o investimento dos ideólogos do Estado Novo na produção de uma imagem de Estado forte e construtor de uma nação “real”, em termos de cultura e história nacionais. Da mesma forma que no campo da história estritamente política, o maior problema para quem se dedica à história cultural do período é também assumir as versões sobre o protagonismo do Estado Novo como a “verdade” da história, incorporando-as à historiografia brasileira.

Como vários estudos já demonstraram, a Primeira República está repleta de exemplos de intelectuais e políticos que, numa conjuntura marcada pelas disputas em torno dos direitos dos recém-libertos e dos trabalhadores de forma geral, investiram na construção de uma nação com traços europeizantes e condenaram – até mesmo pela força – o Brasil mestiço, africano, negro e popular. Mas isso não foi tudo! Muito menos podemos apostar numa escala evolutiva e gradual em relação às políticas de valorização das culturas dos setores populares (dentre eles muitos afrodescendentes) que, teleologicamente, tenderiam a ficar mais receptivas à medida que o Estado Novo se aproximava. Inverter os sinais, lenta ou rapidamente, quando se trata de avaliar, negativa ou positivamente, as políticas da Primeira República e dos governos de Vargas, não ajuda à compreensão das relações entre política e cultura, entre os sujeitos sociais e seus mecanismos de participação política e cultural ao longo da história recente do Brasil. Atribuir todo o protagonismo da valorização da cultura popular aos governos Vargas é também abrir mão de reconhecer os investimentos dos setores populares, por esse reconhecimento, muito antes do Estado Novo e do chamado movimento modernista, nos anos 1920.

Diversas pesquisas recentes têm aberto caminho para se pensar o quanto associações recreativas, esportivas, carnavalescas e dançantes da população negra e pobre das cidades, especialmente na capital, conseguiram legitimar-se na Primeira República, ao buscarem (e conseguirem) autorizações e direitos na relação com as instituições republicanas, autoridades municipais e policiais. E bem antes dos anos 20! Em meio a perseguições policiais cotidianas – que também eram comuns no pós-30 – grupos carnavalescos impuseram às cidades suas formas de socialização e de brincar o carnaval. Por outro lado, se o apoio dos órgãos culturais e políticos do Estado Novo valorizaram expressões culturais negras e populares, as operações de escolha do que era o verdadeiro popular e nacional nunca deixaram de ser seletivas e de envolver uma boa dose de perseguição ou de censura aos candomblés, às organizações de lazer populares e às letras de samba. A cultura, em qualquer período histórico, é um campo aberto a conflitos e disputas políticas.

A música popular e o samba, associados à idéia de “alma da nação mestiça”, não precisaram esperar as bênçãos dos chamados modernistas ou das autoridades do Estado Novo. Desde pelo menos o final do século XIX e as duas primeiras décadas do XX, os maxixes, os lundus, os sambas e as modinhas ao violão eram gêneros divulgados por editoras populares, como a Quaresma, ou por casas de disco, como a Casa Edison. Nos catálogos das editoras e gravadoras, esses gêneros afro-brasileiros e sincréticos eram rotulados como populares e brasileiros. Constituíam um bom negócio, como comprovam os interesses dessas firmas comerciais.

Músicos negros e mestiços, como Xisto Baia, Eduardo das Neves, Sinhô, Pixinguinha, Baiano e Catulo da Paixão Cearense, dentre outros, mesmo sofrendo muitas críticas e preconceitos, não tiveram que esperar intelectuais tidos como mais identificados com as coisas do Brasil, como as avaliações sobre os anos 1920 / 30 divulgam, para encontrarem reconhecimento de um vasto público (não de todo o público, é claro). Há muito tempo, gêneros identificados com tradições africanas e portuguesas encontravam-se e disputavam espaço nas praças, festas populares, teatros, palcos de rua e clubes dançantes; eram livre e irreverentemente combinados pelos setores populares. No final do século XIX, alguns desses gêneros, marcados por trânsitos culturais e musicais, foram selecionados e associados às marcas da nação por muitos intelectuais, artistas de teatro de revista, músicos eruditos e populares.

E essa experiência parece não se restringir ao Brasil; não foi apenas “nacional”. Nos Estados Unidos, na Argentina ou no multicultural Caribe, o período da nossa Primeira Republica foi também um marco em termos de consolidação de gêneros afro-americanos e populares associados à construção de identidades nacionais, em meio a muitos trânsitos e trocas culturais no circuito internacionalizado das gravadoras de disco. O jazz nos Estados Unidos, o tango na Argentina, a rumba em Cuba e o calipso no Caribe são bons exemplos de uma experiência internacional que associava expressões de música / dança popular e identidade nacional.

Um importante depoimento pode ser proveitoso para expressar, de uma forma emblemática, como foi pouco valorizada – ou esquecida – nas memórias e histórias construídas sobre a Primeira República, a associação entre música popular e identidade nacional no Brasil. O depoimento escolhido é o de Catulo da Paixão Cearense, poeta e cantor muito conhecido, no Prefácio de seu livro Cancioneiro Popular de Modinhas Brasileiras. Publicado pela Livraria do Povo da Editora Quaresma, o texto consultado foi o de 1908, em sua 25ª edição:

Nós, convencidos de que nessas composições do povo, cintilam fulgurantes pensamentos que, raríssimas vezes, são lobrigados (sic) pela alta literatura; nós que preferimos uma modinha, canção rústica, um lundu requebrado a um qualquer trecho de Wagner, que não compreendemos, e que não nos produz a mínima sensação (…) não nos importemos com o pedantismo estulto dos que menoscabam do violão, por ser ele, dizem, o instrumento dos desocupados e perdidos (…) Concluo lamentando não ver neste volume, o que seria um trabalho colossal, todas as nossas tenras, meigas doces, e saudosas modinhas brasileiras, preciosíssimas jóias… Mas, ainda assim, os Srs. Quaresma vão prestando, conscientemente, inestimável serviço a literatura mais nacional – a do povo.

Catulo testemunha, de uma forma contundente, até mesmo pelo número expressivo das edições de seu livro, o quanto os estilos populares podiam representar a nação e disputar e ganhar espaço e mercado na vida cultural e política da Primeira República.

Evidentemente, todos os argumentos que levantamos não apagam ou negam diversas outras operações intelectuais, sempre seletivas, que escolheram alguns gêneros musicais, em detrimento de outros; também não pretendemos diminuir as ações repressoras e racistas sobre diversas expressões culturais afrodescendentes. A Primeira República está cheia de exemplos de políticas que visavam branquear a população e a cultura brasileiras. Mas não podemos reduzir a experiência histórica deste período a essas possibilidades. Os exemplos de intelectuais e políticos racistas e europeizantes não podem servir para resumir a história cultural e política da Primeira República. Definitivamente, ela não era só isso.

Em sentido complementar, intelectuais como Afonso Arinos, Mello Moraes Filho, Alexina de Magalhães, Guilherme de Mello, Lindolfo Gomes, Alberto Nepomuceno, dentre muitos outros, interessados na valorização dos costumes populares, não podem mais ser tidos como exceção. Na Primeira República, diversos agentes sociais, como intelectuais, professores, maestros, músicos populares e o variado público dos teatros e festas populares, formado por setores médios e trabalhadores, experimentaram, em meio a muitos conflitos, a construção da nação – e também da nação republicana – em termos culturais. Era inteiramente possível que músicos e grupos carnavalescos populares identificassem suas músicas e blocos às glórias nacionais, ou que lideranças negras usassem os símbolos republicanos como forma de luta e valorização de suas expressões culturais e identidades, negras e brasileiras. Os investimentos de intelectuais na educação elementar, na valorização do folclore, na construção de uma arte e música republicanas, na produção de heróis e na própria divulgação de uma história republicana precisam ser vistos sem as poderosas lentes de uma cultura história produzida durante o Estado Novo.

Os artigos que formam esse dossiê representam de uma forma significativa alguns desses diferentes olhares e pesquisas sobre a Primeira República nos campos político e cultural. Abrem novas abordagens e problemáticas até então pouco valorizadas ou mesmo desconhecidas dos estudantes e pesquisadores do período. Através desses artigos o leitor também poderá ter acesso a uma bibliografia que permite reavaliar as dimensões e possibilidades dos estudos sobre a nova “velha” República. Por fim, este dossiê é um convite a novas pesquisas e abordagens sobre período.

Notas

1. A noção de fórmula mental remete à idéia de um “hábito mental” que, aprendido, conduz o pensamento sem maiores questionamentos.
2. Entre os mais conhecidos e reconhecidos estão Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos, sobre os quais há uma ampla e rica literatura produzida por historiadores e cientistas sociais.
3. Vanessa Carvalho Nofuentes, Um desafio do tamanho da Nação: a campanha da Liga Brasileira contra o analfabetismo (1915-1922)Dissertação de Mestrado em História, Rio de Janeiro, PUC, 2008, p. 9. [ Links] 4. Aspásia Camargo et al, O golpe silenciosoRio de Janeiro, Rio Fundo, 1989. [ Links] 5. Raimundo de Ataíde, “Recordações de um cidadão que nunca votou”, Cultura PolíticaAno 1, n. 5, julho, 1941, p. 247. [ Links ] 6. Idem, p. 248.
7. Ibidem, p. 249.
8. Ibidem, p. 247 e 249.
9. Nesse caso, é bom lembrar que a França, um dos paradigmas maiores de defesa da liberal-democracia, só reconheceu o voto feminino após a Segunda Guerra Mundial.

Ângela de Castro Gomes – Professora Titular de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense e Professora Titular do CPDOC / FGV. Coordenadora do programa de Pós-Graduação de História, Política e Bens Culturais do CPDOC / FGV. E-mail: [email protected]

Martha Abreu – Professora Associada do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do programa de Pós-Graduação de História da UFF. E-mail: [email protected]


GOMES, Ângela de Castro; ABREU, Martha. Apresentação. Tempo. Niterói, v.13, n.26, 2009. Acessar publicação original

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Influência dos Estados Unidos: Mundo e Brasil / Tempo / 2008

O presente dossiê partiu do desconcerto diante de um evidente paradoxo: a inquestionável influência dos Estados Unidos no mundo, e no Brasil em particular, de um lado, e o desinteresse e o conseqüente lento desenvolvimento dos estudos de história dos Estados Unidos nas universidades brasileiras, de outro. Parte desse descompasso deve-se certamente ao acesso restrito à produção historiográfica estadunidense, ao desinteresse das editoras especializadas e ao alto custo das traduções. A escassez de material bibliográfico em português, por sua vez, dificulta o ensino de história dos Estados Unidos nos cursos de graduação e faz com que a história desse país não seja privilegiada nos programas de História das Américas, cuja ênfase, em geral, é posta na história da América Latina, concedendo-se, inclusive, pouca atenção à dinâmica das relações interamericanas.

Com o objetivo de estimular discussões sobre essa história tão desconhecida quanto estereotipada, reunimos nesse dossiê artigos de quatro autores norte-americanos e de uma brasileira, acompanhados por uma entrevista com a atual presidente da American Historical Association (AHA). No conjunto, eles ajudam a visualizar linhas de investigação e reflexão muito distantes tanto de uma historiografia nacionalista dominante até os anos 1950 e marcada pelas idéias do consenso interno e da excepcionalidade da experiência norte-americana, produzida por norte-americanos, quanto de uma historiografia brasileira sobre os Estados Unidos, que igualmente elide a diversidade e os conflitos sociais e políticos, ao valorizar a continuidade de traços negativos e perversos de suas políticas internas e externas. Já é hora de superar esses paradigmas que sustentam uma cultura histórica e um imaginário sobre os Estados Unidos que não convidam à reflexão e à pesquisa.

O artigo de Mae Ngai trata de imigração e controle de fronteiras, tema fundamental da história norte-americana e uma das questões mais candentes no debate político, posto que associada à discussão da identidade nacional desde a fundação da nação. O período recoberto pelo artigo é o dos anos 1921 a 1965, quando teve vigência uma legislação que estabelecia quotas para imigrantes segundo a nacionalidade. A autora demonstra o quanto essa política imigratória se fez acompanhar do reforço do controle das fronteiras terrestres, especialmente a do sul, e da deportação de imigrantes considerados ilegais, cujo número se elevou de modo extraordinário, justamente em função da importante mudança conceitual que se operou então. Atingindo indivíduos já inseridos na sociedade muitas vezes por longo tempo, a deportação e sua revisão, implementadas de modo diferenciado de acordo com a nacionalidade, envolvia avaliações sobre adequação social e aptidão para a cidadania, ou seja, critérios qualitativos supostamente superados pelo princípio numérico que regia a política em vigor. Ao recuperar o debate político sobre princípios e direitos que a revisão da lei suscitou, a autora nos dá acesso aos conflitos vividos pela sociedade norte-americana naquele contexto.

No segundo artigo, Gary Gerstle articula guerra e imaginário político norte-americano, ao analisar produções cinematográficas e o sucesso editorial de obras que se dedicaram a recuperar, nos anos 1990, as duas guerras mais populares da história norte-americana: a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial. O autor percebe o investimento de figuras como o diretor Spielberg e o historiador Sthephan Ambrose em filmes e séries como “O resgate do soldado Ryan” e Band of Brothers como parte do movimento de reconciliação dos liberais com o nacionalismo, depois do trauma do Vietnã. Através da figura do soldado-cidadão, central nessas narrativas épicas, busca-se realçar sua disposição cívica e moral, valorizada em geral pelos conservadores, de modo a novamente associar a guerra ao sentido de missão e virtudes democráticas.

Os artigos de David Chappell e Jessica Graham relacionam ideologia, religião e relações raciais. O primeiro enfoca o pensamento de líderes do movimento pelos direitos civis, refutando a tese, muito difundida, de que Martin Luther King Jr. tenha adotado uma perspectiva gradualista nessa matéria, o que o colocaria num pólo oposto ao de outros líderes negros considerados radicais, que rejeitaram qualquer projeto de integração ou acomodação com a América branca. Chappell demonstra, valendo-se de grande erudição, que o evangelismo profético estava na base da desobediência civil pregada por King e outros líderes negros que, ao contrário dos liberais, tinham uma visão extremamente negativa da natureza humana e da ordem social. Não comungavam, portanto, da idéia de que a discriminação racial, por sua disfunção e irracionalidade, teria seus dias irremediavelmente contados, considerando que a redenção dessa ordem só poderia advir da ação dos próprios negros. A ênfase do autor no poder mobilizador do discurso profético parece irrefutável, dada a disciplina e a firmeza demonstradas pelas massas negras na luta pelos direitos civis que, por fim, obrigou o governo a agir, tornando ilegal a segregação racial.

Jessica Graham se vale do boxe, esporte muito popular e carregado de forte simbolismo relacionado à nação, para apontar mudanças nas sensibilidades coletivas nos Estados Unidos decorrentes da ascensão do nazismo. Analisando a clara mudança na disposição do público em relação ao boxeador negro Joe Louis por ocasião das duas lutas que travou contra o alemão Max Schmeling em 1936 e 1938, a autora percebe um desgaste do paradigma racialista e maior abertura para inclusão do negro na comunidade nacional imaginada na segunda metade da década de 1930.

Representando os estudos norte-americanos no Brasil, Mary Anne Junqueira retrocede ao século XIX para recuperar um episódio muito pouco conhecido: a primeira expedição de circunavegação de caráter científico lançada pela Marinha dos Estados Unidos em 1838. Mary Junqueira mostra-nos que a então jovem nação norte-americana, antes mesmo de consolidar suas fronteiras terrestres, já se lançava nos mares, revelando não só suas ambições no terreno econômico, militar e geopolítico, mas também a preocupação em construir sua hegemonia no campo científico e cultural. A expedição apresenta-se assim como um empreendimento de múltiplas faces. Além do grande feito de constatar que a Antártida era um continente separado, de mapear costas e inúmeras rotas marítimas, a expedição coletou um número elevadíssimo de artefatos culturais, espécimes da fauna, da flora, amostras de minerais e, o que é muito significativo, constituiu uma rede de contatos entre atores-chave neste intercâmbio internacional: oficiais, diplomatas, cientistas, missionários. Desse modo, a autora nos ensina que muito antes da virada do século XIX para o XX – momento costumeiramente assinalado como início da extroversão dos Estados Unidos –, esse país já procurava firmar seus interesses globais frente às potências européias.

Por fim, a entrevista com Barbara Weinstein, a primeira “brazilianista” a assumir a presidência da AHA, centenária associação de historiadores dos Estados Unidos, descortina o universo extremamente plural de interesses e tendências da historiografia estadunidense, valorizando o intercâmbio com historiadores de outros países, particularmente o Brasil.

Cecília da Silva Azevedo – Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]


AZEVEDO, Cecília da Silva Apresentação. Tempo. Niterói, v.13, n.25, 2008. Acessar publicação original [DR]

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Transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro / Tempo / 2008

Tempo 24 traz ao público acadêmico um conjunto de artigos, reunidos aqui em razão de duas preocupações principais. Em primeiro lugar, a extraordinária oportunidade de apresentar um conjunto de estudos dedicados à análise de alguns dos aspectos mais relevantes, recentemente contemplados pela historiografia especializada sobre a temática da transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Tema que tem recebido grande atenção por parte dos historiadores por ocasião dos duzentos anos de tal acontecimento. Evento que marcou de modo singular a história do Brasil e que, enfim, tem recebido a merecida atenção dos pesquisadores. Em segundo lugar, o objetivo de se considerar tal tema de estudos do ponto de vista de uma abordagem que priorize a utilização de certos recursos analíticos: trajetórias e formas de sociabilidade. Tal estratégia destaca a relevância dessas ferramentas de análise no desenvolvimento do debate historiográfico, que recentemente – graças às novas contribuições advindas da micro-história, em particular da antropologia de Fredrick Barth – passou a instaurar um amplo campo de possibilidades de estudo em torno desses instrumentos de reflexão.

Nesse sentido, é de destaque a forma como Barth desenvolveu uma metodologia capaz de analisar a experiência do indivíduo enquanto um processo. Em sua reflexão, cultura é sempre entendida como sendo distributiva por ser fruto da interação de valores diferenciados, gerando processos generativos, resultantes de acontecimentos interdependentes. Processos esses que acabam como por constituir um padrão de interação social em que os indivíduos buscam defender seus interesses no que diz respeito às diferentes posições que ocupam, uns em relação aos outros. Por isso, a incerteza é algo inevitável e sempre presente no jogo social, assim como é uma constante a permanente capacidade de escolhas de cada um dos indivíduos relacionados. Como conseqüência, o caráter altamente dinâmico, no qual incerteza é um dado inerente a qualquer padrão de ação social. Padrões que acabam por constituir costumes e comportamentos, tornando-se referência da ação social. O indivíduo só se torna perceptível por meio de sua relação com outros indivíduos. Daí as redes sociais, a correspondência entre o ator social e a sociedade como um todo.

Os artigos aqui reunidos procuram – cada um a seu modo – descortinar novas facetas da história do período joanino, utilizando algumas dessas propostas analíticas. Abrindo o dossiê, tem-se o artigo de Kirsten Schultz, intitulado Perfeita civilização: a transferência da corte, a escravidão e o desejo de metropolizar uma capital colonial. Rio de Janeiro, 1808-1821. Nesse artigo, a autora analisa de forma bastante dinâmica o processo ambivalente de transformação da cidade do Rio de Janeiro em nova corte régia do Império português. Ao “metropolizar” a cidade, os oficiais régios buscaram limitar a presença da escravidão naquele espaço, procurando redefinir as fronteiras físicas e sociais até então existentes em face da incontornável presença e circulação dos escravos africanos e afro-descendentes – contingente que somava cerca de quase metade do total da população da cidade. Esforços que, entretanto, esbarraram na efetiva necessidade de ampliação do uso do trabalho escravo e o profundo apego desses mesmos oficiais régios a certos ideais de manutenção das hierarquias sociais e da ordem social na cidade. Sociabilidades e trajetórias surgem aqui como elementos privilegiados para se analisar o quadro mais amplo de transformações então observadas no Rio de Janeiro.

O artigo de Andréa Slemian, intitulado Entre a corte e a revolução: a atuação de um “negociante” na América sede do Império português, examina a trajetória de Manuel Luís da Veiga, um comerciante de Portugal que acabou por se dedicar à instalação de uma fábrica de cordas em Pernambuco, no período logo após a chegada da família real à cidade do Rio de Janeiro. Tal empreendimento vinculava-se à expectativa de que um amplo campo de novas possibilidades socioeconômicas no Império português surgia então. O estudo analisa o campo das sociabilidades políticas no interior do qual Veiga se encontrava posicionado. Ao fazer isso, a autora destaca de modo particular dimensões indissociáveis da prática social da personagem – os aspectos relativos ao velho e ao novo modo de ser e agir naquela sociedade. Sua trajetória traduz vários elementos que cristalizam um mundo em profunda mudança em termos de seus paradigmas mais fundamentais. Mundo esse impossível de ser sintetizado por meio da simples identificação dos modos mais precisos de como se ia estabelecendo uma distinção entre as velhas e as novas formas de comportamento sociopolítico verificadas no alvorecer do século XIX.

O terceiro artigo a integrar o dossiê intitula-se A metamorfose de um militar em nobre: trajetória, estratégia e ascensão social no Rio de Janeiro joanino e é de autoria de Adriana Barreto de Souza. Nesse texto, a autora estuda a trajetória de um jovem oficial português, José Joaquim de Lima da Silva, para desse modo reconstituir – através de sua experiência institucional – as estratégias utilizadas por esse indivíduo na gestão de sua prática social como militar do Império português. O Exército setecentista se apresentava como uma instituição formada por diferenciados padrões de trajetórias militares, construídas por diferentes meios e recursos. Essa pluralidade de formas em ser militar resultava em parte do monopólio exercido pela Coroa na distribuição de patentes, então percebidas como um de vários bens simbólicos conferidos pelo rei em remuneração a serviços prestados por seus súditos. A hierarquia do Exército tornava-se, desse modo, permeável à hierarquia social vigente à época.

A seguir, tem-se o artigo de Márcia Abreu, intitulado Livros ao mar – Circulação de obras de Belas Letras entre Lisboa e Rio de Janeiro ao tempo da transferência da corte para o Brasil. Nesse estudo, a autora dedica-se a examinar o ritmo de circulação entre Lisboa e o Brasil de um determinado conjunto de obras de Belas Artes. O ano de 1808 se revela um claro divisor de águas no que tange ao extraordinário avanço dessa circulação. Não apenas isso, mas destaca-se também o fato de que a cidade do Rio de Janeiro passava a progressivamente se constituir numa área produtora de obras lidas em Portugal, traduzindo assim uma nítida inversão no padrão daquela circulação observado até então.

Maria do Socorro Ferraz Barbosa apresenta o artigo intitulado Liberais constitucionalistas entre dois centros de poder: Rio de Janeiro e Lisboa, quinto artigo a integrar o presente dossiê da Tempo. Nesse estudo, a autora analisa os conflitos verificados entre o absolutismo e o constitucionalismo, tanto em Portugal, quanto no Brasil. A província de Pernambuco é tomada como caso privilegiado para se observarem as diferentes facetas do movimento constitucionalista, haja vista o constitucionalismo defendido por D. Pedro, príncipe regente no Rio de Janeiro, e o constitucionalismo dos vintistas de Portugal. Os sobreviventes revolucionários de 1817 acabaram por retornar ao poder, de diferentes maneiras, articulando uma perspectiva política constitucionalista, porém monárquica.

Os artigos aqui reunidos representam uma importante oportunidade para se realizar um balanço das novas possibilidades de análise apresentadas pelas pesquisas mais recentes sobre a temática da transferência da corte portuguesa para a cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de estudos que demonstram com vigor e sagacidade o caráter essencialmente ambivalente, por vezes contraditório, das inúmeras transformações introduzidas por tamanha inovação: a fuga de um monarca europeu para a sua colônia nos trópicos americanos. Processo esse multifacetado, cuja riqueza de aspectos e questões se torna mais claramente perceptível através do estudo de trajetórias e formas de sociabilidade que se fizeram presentes em tal conjuntura.

Maria de Fátima Silva Gouvêa – Professora Associada ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]


GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Apresentação. Tempo. Niterói, v.12, n.24, 2008. Acessar publicação original [DR]

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Os índios na História: abordagens interdisciplinares / Tempo / 2007

Onde estão os índios na História do Brasil? Foi a pergunta feita, recentemente, aos editores da Tempo por Nancy de Castro Faria, nossa revisora de português por mais de uma década. A pergunta colocada por alguém acostumada a ler inúmeros artigos de História sobre os mais diversos temas é significativa a respeito dessa grande lacuna em nossa historiografia.

Em nossos dias, no entanto, tal situação vem-se alterando, e a organização deste dossiê já é um reflexo dessa lenta mudança. No Brasil, em proporções menores que em outras regiões da América, as populações indígenas vão, aos poucos, ganhando espaço em nossa historiografia. Nas últimas décadas, a aproximação crescente entre historiadores e antropólogos tem conduzido a novas proposições teóricas, que, ao complexificarem conceitos como cultura e etnicidade, questionam antigos dualismos como índio puro / índio aculturado; estruturas culturais / processos históricos; aculturação / resistência e permitem um novo olhar sobre as relações de contato entre os índios e as sociedades envolventes. O resultado tem sido o desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares que tendem a valorizar as atuações dos índios como importantes variáveis para a compreensão dos processos históricos nos quais se inserem. Assim, de vítimas passivas ou selvagens rebeldes que, uma vez vencidos, não movimentavam a história, diferentes grupos étnicos da América passam, a partir dessas pesquisas, a figurar como agentes sociais que, diante da violência, não se limitaram ao imobilismo ou à rebeldia. Impulsionados por interesses próprios e visando à sobrevivência diante das mais variadas situações caóticas e desestruturadoras, movimentaram-se em diferentes direções, buscando múltiplas estratégias que incluíam rearticulações culturais e identitárias continuamente transformadas na interação com outros grupos étnicos e sociais.

Este dossiê reúne artigos de historiadores e antropólogos que analisam tais interações por meio de estudos de casos concretos em temporalidades e espaços diversos. Quatro artigos tratam de regiões de fronteira, nas quais os índios e os colonizadores desenvolveram diferentes formas de relações que continuamente se modificavam, conforme suas próprias dinâmicas. Os três primeiros abordam esses encontros, no século XVIII, em três diferentes regiões da América Portuguesa, que constituem hoje os estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Amazonas, enquanto o quarto, com recorte temporal mais longo, do século XVI ao XIX, aborda a região sul da América Espanhola, no atual centro-sul do Chile. No quinto artigo, as relações entre as populações em contato são enfocadas por meio da análise de um objeto de coleção de museu: o retrato de Guido, um menino Bororo, que, revestido de historicidade, revela instigantes conexões entre os agentes em contato e os diferentes significados que os objetos podem adquirir nas coleções dos museus para índios e não-índios.

No primeiro artigo, Maria Leônia Chaves de Resende e Hal Langfur desvelam a significativa atuação dos índios nos sertões e nas vilas mineiras. Os conflitos nos sertões complexificam-se, na análise dos autores, de forma que, nas intrincadas relações ali estabelecidas entre posseiros, soldados e índios, estes últimos deixam de figurar nos extremos de selvagens ou vítimas indefesas dos bandeirantes. Nas vilas, o foco recai sobre os índios inseridos na sociedade colonial, que desafiavam seus administradores, ao rejeitarem a condição de mestiços e afirmarem, nas “ações de liberdade”, a identidade indígena que os livrava da escravidão, conforme a legislação de Pombal.

O artigo de Elisa Frühauf Garcia trata da política pombalina de integração dos índios guaranis ao império português, enfocando os limites e as implicações da política lingüística desenvolvida em dois estabelecimentos de ensino criados na Aldeia dos Anjos, no Rio Grande de São Pedro. As dificuldades de implementação dessa política que visava proibir o guarani e obrigar os índios a falarem o português são analisadas de forma complexa e interdisciplinar, o que permite à autora levantar instigantes questões sobre os processos de mudança cultural e reafirmação étnica vivenciados pelos grupos em contato.

Patrícia Maria Melo Sampaio enfoca as ações e estratégias dos índios nas vilas coloniais da Amazônia Portuguesa no momento da implantação da Carta Régia de 1798, que aboliu o Diretório dos Índios (1757-1798). Ressaltando a importância dos vassalos índios naquela capitania e o temor das autoridades de que eles passassem para o lado espanhol, a autora apresenta as adaptações das legislações como resultado de negociações sistemáticas com as lideranças indígenas, de forma que as ações e estratégias dos índios são vistas como fatores essenciais para a construção das políticas indígenas e indigenistas da Amazônia.

Guillaume Boccara estuda, ao longo dos séculos, o processo de construção da identidade Mapuche, abordando as complexas relações de conflitos e negociações entre os índios Reche / Mapuche e os agentes coloniais. Evidencia-se que as mudanças culturais e identitárias daí resultantes foram fruto tanto das atuações dos índios quanto dos colonizadores. O suposto caráter exclusivamente conflitivo das áreas de fronteira dá lugar à idéia de espaço de interações fluidas e dinâmicas entre diferentes grupos étnicos e sociais, no qual se alteram relações de hostilidade e de trocas comerciais e culturais.

Combinando estudos históricos e etnográficos, João Pacheco de Oliveira analisa o retrato de Guido, o menino Bororo, identificando seus múltiplos significados. No contexto da chamada pacificação dos Bororo, o autor analisa as complexas relações entre os atores, refletindo sobre suas compreensões a respeito das próprias histórias, que se revelam por meio de textos, desenhos e objetos. Apresenta, pois, uma reflexão sobre os diferentes sentidos desses objetos para as populações em contato e sobre o significado de que se revestem no âmbito da coleção do Museu Nacional, lembrando que as representações dos índios ali expostas não se encerram em suas vitrines, mas possuem conexões com identidades dos índios no presente. O artigo aponta para a importância de se levar em conta a historicidade dos objetos museológicos, cujos sentidos são continuamente reinterpretados e ressemantizados, conforme os contextos e os agentes sociais.

Todos os estudos, portanto, se inserem num quadro teórico-conceitual no qual se enfatiza a historicidade das culturas e das identidades étnicas, valorizando-se as ações dos índios e os processos históricos como elementos importantes para a compreensão do desenvolvimento das próprias relações de contato e das sociedades daí resultantes. Nesse sentido, contribuem não apenas para uma revisão da história indígena, mas das próprias histórias nacionais e coloniais. Lembrando Jonathan Hill, desde a chegada dos europeus às Américas, as histórias dos índios passaram a se entrelaçar com as dos colonizadores e não devem ser vistas de forma distinta, nem em oposição a elas. Ao apresentar histórias indígenas imbricadas com as histórias coloniais / nacionais, os trabalhos deste dossiê convidam os leitores a repensarem o lugar dos índios na História do Brasil e da América e respondem, ao menos em parte, à pergunta colocada por nossa estimada revisora.

A entrevista com Serge Gruzinski e a resenha de Ronald Raminelli, publicadas neste número, complementam o dossiê. Serge Gruzinski, historiador da École des Hautes Études en Sciences Sociales e referência internacional para estudos interdisciplinares sobre relações interétnicas e mestiçagens culturais, nos fala sobre as dificuldades e os avanços da história indígena na América em perspectivas interdisciplinares e comparativas. Ronald Raminelli, historiador da UFF, especialista em pesquisas no campo histórico-antropológico, incluindo a temática indígena, levanta importantes questões sobre o dilema do tempo na etno-história, ao nos apresentar o livro Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial, de Cristina Pompa, antropóloga com alma de historiadora, cujo trabalho mereceu o primeiro lugar no concurso ANPOCS de 2002.

Maria Regina Celestino de Almeida – Professora Associada do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]


ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Apresentação. Tempo. Niterói, v.12, n.23, 2007. Acessar publicação original [DR]

Ensino de História / Tempo / 2006

O dossiê “Ensino de História” foi concebido a partir da crescente importância que as discussões em relação ao tema vêm assumindo nos meios acadêmicos brasileiros e, conseqüentemente, da ampliação de pesquisas nesta área em várias partes do país, embora o número de trabalhos publicados seja ainda bastante restrito. O espaço conquistado na Associação Nacional de História (ANPUH) com a publicação, em 1983, da coletânea Repensando a História, organizada por Marcos Silva, vem-se tornando cada vez mais significativo.

Neste sentido, cabe destacar a importância dos debates e das reflexões que têm tido lugar nos Encontros Nacionais “Perspectivas do Ensino de História” e “Pesquisadores em Ensino de História”. Também podemos mencionar os núcleos e os laboratórios dedicados à área de ensino de História existentes em todo o país. Entre estes, ressaltem-se, por exemplo, o Laboratório de Ensino de História do Centro de Letras e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Londrina e o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, que, além de promoverem uma série de atividades de ensino, pesquisa e extensão, são responsáveis pela publicação de periódicos especializados.1

Na Universidade Federal Fluminense, o Laboratório de Ensino de História, ligado à Faculdade de Educação, possui uma atuação bastante expressiva na área, através do desenvolvimento de projetos de pesquisa e de extensão e da realização de seminários, onde se discutem, desde meados dos anos 1990, questões fundamentais relacionadas ao aprender / ensinar história.2 É importante mencionar, ainda, a inserção de discussões sobre o ensino de História nos eventos e nas publicações3 patrocinados pelo Núcleo de Pesquisas em História Cultural (NUPEHC-UFF) nos últimos anos.

Mais recentemente, o campo de conhecimento dedicado ao ensino de História ganhou um espaço no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, através da linha de pesquisa “Ensino de História e Saberes Históricos”. Por fim, cabe referir a existência do Grupo de Pesquisa “Oficinas de História”, que, sediado na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, reúne professores / pesquisadores de outras instituições (PUC-RJ, UFRJ, UFF, UFPA), interessados em investigar as concepções e as práticas do ensino de história e refletir sobre elas.

Todos os exemplos aqui apresentados denotam, sem dúvida, sinais de mudanças importantes que, de um lado, indicam um crescente questionamento da perspectiva preconceituosa em relação ao ensino de História e, de outro, apontam o paulatino movimento de professores dos departamentos de história das licenciaturas, no sentido de assumirem a responsabilidade, ao lado dos professores das faculdades ou dos departamentos de educação, na formação de profissionais da área de ensino.

Contudo, é também inquestionável que tais mudanças se vêm operando em ritmo bastante lento e, muitas vezes, de forma muito restrita. Entre as inúmeras dificuldades, é preciso mencionar, primeiramente, a permanência, nos meios universitários, de convicções que hierarquizam pesquisa e ensino, sendo atribuído à primeira o papel de criar / produzir o conhecimento, que caberá ao segundo reproduzir. O ato de ensinar é visto, assim, como mera repetição dos saberes de referência – no nosso caso, a história – por meio de uma linguagem didática e, portanto, simplificada, quase sempre distorcida.

No que se refere a este aspecto, são absolutamente fundamentais as reflexões desenvolvidas pelo Professor Ilmar Rohloff de Mattos no artigo que abre o presente dossiê, intitulado “‘Mas não somente assim!’ Leitores, autores, aulas como texto e o ensino-aprendizagem de História”. Trata-se de uma verdadeira Aula Texto – expressão cunhada pelo próprio autor – que nos conduz a refletir mais profundamente sobre a sala de aula, onde alunos e professores encenam / vivem o processo ensino-aprendizagem, como lugar de produção / criação de conhecimento.

Mas qual seria o papel da formação de professores na construção de um sentido para ensinar / aprender História na educação básica? Este é o assunto central do artigo da Professora Flávia Eloisa Caimi, “Por que os alunos (não) aprendem História? Reflexões sobre ensino, aprendizagem e formação de professores de História”. Tendo como referência a definição de saber docente, dada por Maurice Tardif, Claude Lessard e Louise Lahye,4 a autora defende a necessidade da “formação do professor reflexivo e investigador da sua prática e dos contextos escolares”.

Constituintes do saber docente, do currículo e do programa são, portanto, lidos e reconstruídos / ressignificados pelos professores em suas reflexões e práticas cotidianas. É dentro desta perspectiva que a Professora Lana Mara de Castro Siman, no artigo “Um programa de História num contexto de mudanças sociopolíticas e paradigmáticas: a voz dos professores”, se propõe a analisar as relações entre “mudança de programa, mudança paradigmática e embates sociopolíticos no ensino de História no Brasil”, a partir do exemplo do programa de História implementado pelo governo do Estado de Minas Gerais, em 1987.

A postura dos professores diante das propostas de mudança curricular é também objeto das preocupações do artigo de Marcelo de Souza Magalhães, intitulado “Apontamentos para pensar o ensino de História hoje: reformas curriculares, Ensino Médio e formação do professor”. Trata-se de uma reflexão interessante e provocativa sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais, a partir de um breve esboço da trajetória do Ensino Médio no Brasil. As questões suscitadas pela análise do autor servem para iluminar a problemática da formação do professor de História.

O ensino de História e a formação do professor são também o viés da análise desenvolvida por Elio Chaves Flores no artigo “Etnicidade e ensino de História: a matriz cultural africana”. Partindo da hipótese de que “as estruturas curriculares dos cursos de História reproduzem para a educação básica o cânone da mestiçagem”, o autor realiza um estudo das relações entre a pesquisa e o ensino acadêmicos de História e a recente legislação sobre a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, cujos resultados são de grande relevância.

Finalmente, no artigo do Professor Marcos Silva, “Além das coisas e do imediato: cultura material, História imediata e ensino de História”, encontramos novamente a preocupação com os Parâmetros Curriculares Nacionais e, ainda, com as relações entre as pesquisas acadêmicas e o ensino de História. Trata-se de refletir sobre as possibilidades de aprender / ensinar História através das “experiências ligadas à materialidade da Cultura”, bem como das interseções vivas entre passado e presente no âmbito da História imediata.

A viabilização de um dossiê sobre ensino de História na Revista Tempo representa sem dúvida um passo fundamental no sentido de valorizar esta dimensão essencial do conhecimento histórico, ampliando o espaço de seu reconhecimento no mundo acadêmico.5 Tal iniciativa contribui para colocar em xeque posturas que supervalorizam a pesquisa em detrimento do ensino – concebendo-os equivocadamente como elementos dissociáveis. Com esta iniciativa, esperamos, pois, contribuir para que haja o reconhecimento de que o saber docente produz conhecimentos específicos tão legítimos e essenciais quanto os criados nas instituições de pesquisa – fadados, aliás, a uma circulação restrita e estéril, se não chegassem às salas de aula recriados por saberes docentes que, antes de tudo, lhes conferem sentido para além dos muros da academia.

Notas

1. No caso do primeiro, a Revista História e Ensinoe, do segundo, os Cadernos Labepeh.
2. A Revista Ensino de Históriaé uma publicação do LEH-UFF. A iniciativa de criar um espaço especialmente dedicado à área de ensino de história no Departamento de História da UFF, através do Laboratório de Educação em História (LEHIS), infelizmente não teve sucesso.
3. Martha Abreu e Rachel Soihet (orgs.), Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003; e Rachel Soihet, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa (orgs.), Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história, Rio de Janeiro, Mauad, 2005.
4. Estes autores definem o saber docente como um saber específico e original, que reúne de forma complexa “os saberes das disciplinas, os saberes curriculares, os saberes profissionais (compreendendo as ciências da educação e a pedagogia) e os da experiência” (Tardif, M., Lessard, C. e Lahaye, L., “Os professores face ao saber. Esboço de uma problemática do saber docente”, Teoria & Educação, no 4, Porto Alegre, 1991, p. 216).
5. Este fato torna-se ainda mais expressivo num momento em que alguns importantes periódicos de História se negam explicitamente a receber contribuições no âmbito do ensino de História.

Magali Gouveia Engel – Professora do Departamento de História da UFF e do Departamento de Ciências Humanas da UERJ / FFP. E-mail: [email protected]


ENGEL, Magali Gouveia. Apresentação. Tempo. Niterói, v.11, n.21, jun., 2006. Acessar publicação original [DR]

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África / Tempo / 2006

Este novo número da revista Tempo tem um significado especial, na medida em que vem consolidar a firme determinação do Departamento de História da UFF em levar adiante o projeto de incremento do ensino e da pesquisa sobre História da África. O crescimento do interesse pelos estudos africanos está, sem dúvida, associado à promulgação da lei nº 10.639, de janeiro de 2003, que dispõe sobre os conteúdos de História da África e Cultura Afro-brasileira nos currículos de ensino fundamental e médio. O debate sobre a lei e sua posterior promulgação fez surgir uma ampla demanda por publicações que atendessem às necessidades das novas diretrizes. Na UFF, já antes disto, ocorreram, por parte de professores e alunos, algumas iniciativas que serviram de lastro para que passássemos a pensar seriamente na ampliação do ensino e da pesquisa sobre Historia da África. Foi assim que, ao longo dos últimos cinco anos, reunimos um grupo de professores, pesquisadores e alunos interessados no tema.

Se o debate sobre a lei nº 10.639 / 03 suscitou a urgência do tema, também fez com que a História da África passasse a ser vista por muitos como um componente dos estudos sobre escravidão, diáspora africana e relações raciais. Estes são, sem dúvida, elos fundamentais. Entretanto, é importante ir além deles e mostrar a grandeza do continente africano em toda a sua diversidade, esteja ela, ou não, vinculada ao estabelecimento da escravidão africana nas Américas de modo geral, e no Brasil em particular. Temas como as primeiras migrações que constituíram o povoamento do continente em tempos remotos, a expansão muçulmana, o Mali e o Songhi, o colonialismo e a descolonização, a urbanização, os conflitos civis e a desagregação dos estados nacionais são imprescindíveis para uma apreciação da história daquele continente. Neste sentido, é importante deixar claro que nosso intuito vai além do estabelecido pela lei e visa não apenas a formação de professores habilitados ao ensino dos conteúdos nela previstos, mas, fundamentalmente, contribuir para o desenvolvimento da pesquisa em História da África, esteja ela associada a conteúdos didáticos imediatos ou não.

Dentro da perspectiva acima apontada, não são apenas os historiadores das Américas a se debruçarem sobre as origens da população escrava, mas também os historiadores da África, que passam a incorporar a diáspora africana como um tema de suas reflexões.Por outro lado, o olhar sobre novos temas nos leva também a uma vasta literatura sobre a África que, com atraso, temos que admitir, apenas agora começamos a conhecer. Foi com este intuito que a Tempo 20 buscou autores e temas diversificados, que sejam representativos não apenas do estado atual das questões na historiografia africana, mas que também nos colocassem em dia com a longa e farta produção já acumulada ao longo das últimas décadas e da qual o leitor brasileiro, sem acesso a línguas e publicações estrangeiras, tem sido privado. Nosso dossiê procurou abranger temas, áreas geográficas e épocas diversas, escolhendo textos variados e autores com diferentes trajetórias.

Gwyn Campbell nasceu em Madagáscar, estudou na Inglaterra e é especialista em história econômica do Oceano Índico. Atualmente, ocupa a cátedra de Oceano Índico e História Mundial na McGill University, em Montreal, Canadá. Seu artigo sobre a colonização de Madagáscar trata das controvérsias historiográficas sobre a formação dos malgaxes. O texto nos introduz num universo bastante desconhecido da história remota da ocupação da ilha e de sua diversidade, apontando para a complexidade do povoamento insular e para a construção das identidades dos vários grupos ali presentes. O texto avança também em questões atuais, destacando o papel das nações européias coloniais, como no caso da explícita intenção francesa de manter a ilha sob sua possessão fora do que foi, à época, definido como “África”. Neste sentido, o artigo atravessa os séculos, indo de informações arqueológicas à política colonial e tomando vulto em sua fina análise sobre a história da presença humana e da construção das identidades na ilha de Madagáscar.

Roquinaldo Ferreira é brasileiro, doutor em História pela University of Los Angeles-California e professor de História da África na University of Virginia / EUA. Seu artigo aborda a temática atlântica de um ponto de vista diferente, destacando a importância de Benguela no tempo do tráfico atlântico. Partindo da reconstrução das trajetórias pessoais de negociantes para analisar suas redes mercantis nos séculos XVIII e XIX, demonstra que uma certa dinâmica sociocultural amalgamada, propícia ao tráfico, fora tecida através de casamentos, laços familiares e da participação em irmandades religiosas, entre africanos e europeus.

Paul E. Lovejoy é canadense e um dos mais reconhecidos historiadores africanistas. É professor na York University, Toronto, Canadá, onde ocupa a cátedra de História da África e da Diáspora Africana e dirige o Harriet Tubman Resource Centre on the African Diaspora. É um estudioso da histórica econômica, enfocando a escravidão africana e sua diáspora, especialmente no Sudão Central. Seu artigo nos leva ao mundo muçulmano e às redes comerciais terrestres através de uma análise detalhada do modo de operar das caravanas, destacando ainda a riqueza da obra de viajantes ocidentais na descrição das sociedades africanas.

José Capela foi o pseudônimo adotado pelo então jornalista português José Soares Martins, quando, na década de 1960, ainda sob domínio colonial, trabalhou no jornal Diário de Moçambique. Após a independência foi nomeado adido cultural de Portugal em Moçambique. Atualmente, é pesquisador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, Portugal. Seu artigo apresenta um tema que os brasileiros têm para si como familiar – os quilombos – o que confere à temática uma importante dimensão comparativa, mas, antes de tudo, apresenta um aspecto pouco conhecido das relações sociais em Moçambique e de seus mecanismos de confronto com a expansão colonial de finais do século XIX e início do XX.

Robin Law ocupa a cátedra de História da África na University of Stirling, Escócia, é considerado o maior conhecedor dos povos da Baía do Benim, região que, ao lado de Angola, enviou o maior número de escravos para as Américas, mas cuja história é pouco conhecida no Brasil. Através de seu artigo, trazemos à tona um outro importante aspecto da historiografia africanista, a saber, o debate por ela estabelecido com a historiografia da escravidão e do tráfico atlântico. Ao analisar a identidade “mina”, Law mostra não apenas as diferenças entre os chamados minas, na Baía do Benim e nas Américas, mas alerta também para as mudanças nesta identidade ao longo do tempo, dando-nos uma boa medida da importância do nosso aprofundamento na historiografia africana para uma melhor compreensão da escravidão nas Américas.

Este número não poderia estar completo sem que contássemos com a colaboração de um historiador africano e formado na África. As opções de autores e temas a serem selecionados nos deixavam sempre a sensação de que cada um deles poderia dizer mais do que estaria contido em seus textos. Foi assim que optamos não por mais um artigo e sim por uma entrevista que desse conta não apenas dos resultados da produção africana, mas da trajetória tão particular destes profissionais, assim como do modo como hoje muitos deles se inserem no universo acadêmico internacional. Foi com esta preocupação que decidimos entrevistar Toyin Falola, historiador nigeriano, que se doutorou pela Universidade de Ifé. Já como doutor, transferiu-se para o Canadá e atualmente ocupa a cátedra de História da África na University of Texas / Austin nos Estados Unidos, possuindo uma vasta obra que enfoca a história colonial e pós-colonial da Nigéria. A entrevista contextualiza sua trajetória pessoal e se amplia numa polêmica interpretação da história da África e nos meios acadêmicos ocidentais.

Ao longo do trabalho de edição dos textos aqui reunidos, deparamo-nos com vários problemas, para os quais nem sempre encontramos a melhor solução. Se a escolha dos autores e dos temas se constituiu como primeiro obstáculo, a tradução dos textos foi um desafio adicional. Foi feito um cuidadoso trabalho que envolveu freqüentes consultas aos autores, mas, certamente, ainda assim restaram problemas que envolvem a própria dificuldade de conversão não apenas de palavras, mas de universos sociais distintos, mediados, quase sempre, por uma teia de línguas e nacionalidades que envolvem o objeto estudado, o historiador que os toma, o tradutor e o editor, o qual tem em mente seu público específico. Neste sentido, a tradução de nomes de locais, reinos, grupos étnicos, etc. nem sempre pode seguir uma regra rígida, acompanhando algumas vezes o senso comum. Alguns deles já têm traduções consagradas, outros foram, provavelmente, escritos em língua portuguesa pela primeira vez. Isto sem considerar o fato de que a grafia inglesa ou francesa da qual partimos já é, ela mesma, uma adaptação da maioria dos termos.

Ao lado disto, existem ainda diferenças ortográficas entre as línguas ocidentais. Um sério problema enfrentado foi a padronização ortográfica dos nomes de lugares e grupos. O inglês escreve o nome das nacionalidades com letra maiúscula, enquanto o português usa minúscula. Outro ponto de divergência está no fato de que os autores de língua inglesa escrevem o nome de grupos no singular – “the Mina” – em lugar de “os minas”, como recomenda a gramática portuguesa. Diante disto – na medida do possível e tentando não ferir as opções de cada autor – optamos por seguir as normas gramaticais da língua portuguesa. Que nos perdoem os leitores sobre a falta de um acordo sobre o assunto e que concorramos todos para o estabelecimento de alguns critérios básicos que possam nortear nosso trabalho no futuro.

A maioria dos textos apresentados é inédita ou foi adaptada para esta edição. O texto de Robin Law é tradução de um artigo recentemente publicado. Agradecemos a David Henige, editor da revista History in Africa, que autorizou sua publicação. O texto de Paul E. Lovejoy é uma reelaboração, a partir de um texto escrito em colaboração com Mark B. Dufill, em 1985. A tradução dos textos foi resultado de um esforço conjunto dos editores, de Mariana Candido e Roquinaldo Ferreira, a quem agradecemos a dedicação. A revisão final dos artigos, feita por Nancy Barros de Castro Faria, foi imprescindível e sem dúvida elevou a qualidade do resultado obtido. Cristiane Maria Marcelo secretariou a edição com o cuidado de sempre, mas com especial incentivo nos momentos mais difíceis.

O amadurecimento da linha de trabalho que hoje transparece na edição da Tempo 20 é, em grande medida, fruto da convivência com um conjunto diversificado de historiadores no Brasil e no exterior. Dentre eles gostaríamos de destacar o Professor Paul E. Lovejoy / Tubman Centre. Por fim gostaríamos de agradecer a um historiador que conquistou a todos no Departamento de História da UFF, por sua competência e dedicação ao ministrar o primeiro curso de História da África em nosso departamento.

Este número é dedicado a Elisée Soumonni, professor da Université du Bénin / Abomey Calavi e network professor do Tubman Centre que permaneceu como professor visitante no Departamento de História por dois semestres letivos, em 2002. Seus cursos, oferecidos a alunos de graduação, deram início à formação da primeira geração de estudantes que, como resultado deste esforço institucional, estão se dedicando à pesquisa da História da África na UFF.

Mariza de Carvalho Soares – Professora do Departamento de História da UFF.

Marcelo Bittencourt – Professor do Departamento de História da UFF


SOARES, Mariza de Carvalho; BITTENCOURT, Marcelo. Apresentação. Tempo. Niterói, v.10, n.20, jan., 2006. Acessar publicação original [DR]

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Impérios e imperialismos / Tempo / 2005

O termo “império”, derivado do latim imperium, é muito antigo. Em suas origens romanas, designava um poder pessoal de escopo extremamente vasto, civil e militar, de embasamento religioso mas que a cada vez exigia uma lei do povo romano (lex curiata de imperio); tal poder passou dos reis de Roma aos magistrados republicanos que lhes sucederam. Ainda sob a República, apareceu também a designação imperator, aplicável a um general aclamado por suas tropas (como magistrado dotado de um comando militar, tratava-se de alguém investido do imperium). No final da República e ao longo dos dois primeiros séculos imperiais, isto é, entre o século I a.C. e o século II d.C., já se nota, em função em primeiro lugar da emergência do poder e dos exércitos privados na época das guerras civis que deram cabo da República, uma evolução semântica de ambos os termos: de diversos modos (por exemplo ao se falar, sob o imperador Augusto, de termini imperii para designar as fronteiras do mundo romano), imperium, sem perder sua denotação republicana, passou a designar também o território dominado por Roma, marcado por uma hierarquização do espaço derivada da conquista, com a Itália no centro. Concomitantemente, imperator adquiriu contornos mais próximos ao que hoje entendemos por imperador, ou seja, o governante à frente de um império.

“Império” como atributo de uma pessoa aparece, em nosso dossiê, longo tempo após a queda do Império Romano ocidental e numa conotação já marcada por elaborações medievais, no artigo de Eduardo Romero de Oliveira voltado para Portugal e o Brasil no período 1772-1824. A noção de um “império civil” como poder do rei de Portugal, detentor do direito absoluto de moderar e dirigir as ações de todos os elementos a ele submetidos de um modo favorável à utilidade comum dos cidadãos (idéia que remete ao jusnaturalismo), aplicava-se ao monarca nas discussões da segunda metade do século XVIII – o que não impedia que “Império Português” também designasse um território unitário mas hierarquizado: nas palavras de Oliveira, “um sistema político-administrativo que reunia todos os domínios ultramarinos ( como províncias detentoras de iguais privilégios – e o reino de Portugal, caracterizado como ‘entreposto comercial’ e ‘centro político da unidade do império’ “.

“Imperialismo”, em comparação com “império” e “imperador”, é termo muito mais recente no tocante ao seu aparecimento no vocabulário das línguas modernas. Num primeiro momento, a palavra, de cunho descritivo, é criada no século XIX, expressando sobretudo uma política ativa de conquista e subordinação de territórios por parte da Inglaterra e da França, avanço imperial impulsionado pela expansão do capitalismo nesses países e apoiado pela suposição de uma missão civilizadora que deveriam cumprir. O termo teria sua primeira incidência em 1832 numa acepção diferente, como a doutrina dos partidários do regime imperial. Sua incorporação oficial à língua francesa dataria aproximadamente de 1880. Em português, sua primeira citação dicionarizada dataria de 1874.

Note-se que, uma vez surgidos e firmados em suas formas de uso mais habituais, todos estes termos passaram a aplicar-se, indiscriminadamente, a períodos e processos históricos muito variados. É assim que se fala, por exemplo, do Império de Alexandre, o Grande, que antecedeu a expansão do Império Romano, e também do Império Egípcio sob o Reino Novo (séculos XVI-XII a.C.), de diversos impérios mesopotâmicos, etc. – além, claro está, de numerosos impérios posteriores ao de Roma (Impérios Mongol, Otomano, Russo, Britânico, etc.). A palavra imperialismo, por sua vez, passou a utilizar-se em forma corrente para designar quaisquer processos de dominação de uma entidade política sobre outras. Embora isto desagradasse aos marxistas mais ortodoxos – havendo sempre quem invariavelmente censurasse o uso de “imperialismo” exceto para designar, na linha de Lênin, a etapa superior e última do capitalismo (financeiro) –, no início da década de 1960 lia-se, por exemplo, um “Que sais-je?” cuja primeira versão fora publicada em 1949, Les impérialismes antiques, de Jean-Rémy Palanque, para quem o imperialismo (termo que, segundo ele, possui uma nuance pejorativa) ocorre cada vez que “um Estado procure absorver outros em si mesmo, ou estender-se sobre territórios desorganizados” (p. 7) – noção descritiva que contém um preconceito favorável aos assim chamados “povos civilizados”, já que, ao falar de “territórios desorganizados”, Palanque se referia, não a territórios vazios de população mas, sim, a territórios politicamente ordenados em tribos ou chefias (no sentido do termo chiefdoms do vocabulário antropológico de língua inglesa), entidades não estatais que nada têm, entretanto, de “desorganizadas”.

Note-se que a coisa não se limitou à difusão de vocábulos como os mencionados: império, imperialismo. Como, no dizer de Adam Schaff, “a História se reescreve sem cessar” a partir de um presente mutável, houve também intercâmbios de interpretações e de enfoques teóricos entre estudiosos de casos e períodos muito diversos entre si. Quando, por exemplo, o historiador Moses I. Finley mostra que o imperialismo ateniense do século V a.C. favorecia de diversos modos os elementos mais pobres da pólis de Atenas e, portanto, imperialismo e democracia tinham, naquele caso, estreitos vínculos, é duvidoso que chegasse a uma tal visão em total independência da afirmação de Lênin sobre o papel do imperialismo europeu do final do século XIX e início do século XX no “apaziguamento” dos setores populares metropolitanos, ou no estímulo ao oportunismo em setores operários dos países centrais que se beneficiavam com os frutos da expansão imperialista, ou das considerações de Rosa Luxemburgo acerca da tensa relação entre as fronteiras internas e externas, exemplificada com a imposição pelo império ateniense da forma democrática às cidades subjugadas, o que garantia, não o favorecimento dos pobres dessas cidades mas, sim, um melhor controle por Atenas e, portanto, os interesses especificamente atenienses.

Outro exemplo de intercâmbios assim, nós o temos em texto de nosso dossiê: o artigo que Norma Musco Mendes, Regina Maria da Cunha Bustamante e Jorge Davidson consagram à experiência imperialista romana vista em suas teorias e práticas. O artigo em questão assume crítica recentemente oposta ao eurocentrismo da tradição historiográfica predominante até meados do século XX, a qual, sob o influxo do imperialismo contemporâneo, tinha uma concepção unilateral da romanização como aculturação imposta às províncias, nas quais as populações indígenas, culturalmente inferiores aos romanos (pelo menos na parte ocidental do Império), simplesmente se deixaram ganhar por uma cultura superior. Tal crítica foi desenvolvida por uma corrente chamada “teoria pós-colonial” dos estudos da romanização, que proclamou sua dívida para com o pensamento crítico surgido em áreas do Terceiro Mundo na fase da descolonização, ou posteriormente a esta. No novo modo de ver, a romanização foi avenida de mão dupla, uma relação entre os padrões culturais romanos e a diversidade cultural provincial, numa dinâmica de negociação bidirecional.

Num instigante escrito sobre o Grupo de Historiadores do Partido Comunista Britânico (Eric Hobsbawm, E. P. Thompson e tantos outros), inserido em coletânea sua de 1987, Gertrude Himmelfarb, inteligente historiadora liberal estadunidense, critica tais historiadores, incluindo na crítica aqueles que deixaram o partido, seja logo após a crise húngara – que pôs fim ao auge (1946-1956) desse corpo de especialistas como algo dotado de coesão formal, um “Coletivo” (Collective) no seio daquela organização partidária –, seja posteriormente, pelo fato de terem demorado muito, em seus escritos e em especial na revista Past and Present (fundada em 1952), a abordar o stalinismo como tema (na revista, isto aconteceu pela primeira vez só em 1979) e evitado escrever explicitamente e em detalhe sobre sua experiência partidária, a União Soviética e sua própria trajetória como historiadores marxistas.

A autora contrasta tal atitude com a de “eminentes historiadores franceses” que enfrentaram, “séria e honestamente”, tanto suas experiências prévias no Partido Comunista quanto as implicações da História marxista. Entre os “eminentes historiadores” em questão, ela cita François Furet – isto é, um intelectual que renegou todo o seu passado não somente de membro do Partido Comunista Francês como também de marxista e, mais em geral, de homem de esquerda; e que, no contexto da comemoração do bicentenário da Revolução Francesa, em 1989, bem como nos anos seguintes, dedicou-se a “desconstruir” a própria noção de ter ocorrido uma revolução burguesa na França, ou mesmo a possibilidade efetiva de revoluções sociais de qualquer tipo, tornando-se notoriamente, com Pierre Nora, François Rosanvallon e Marc Augé, um dos líderes do neoconservadorismo em sua vertente francesa, mediante a proposta de uma teoria do “consenso” francês em torno da necessidade da economia de mercado para a democracia.

Não há, de fato (e ainda bem!), semelhança entre as trajetórias dos ex-membros do “Grupo” e intelectuais como estes – o que deve ser dito em louvor dos primeiros. Deveras lamentáveis teriam sido, acreditamos, outras coisas: ver os ex-membros do Grupo convertidos à defesa da “liberdade” e da “democracia” em forma abstrata e coerente com a tradição filosófica do individualismo burguês, à maneira de Hannah Arendt, que com tanta freqüência gostava de refugiar-se na pólis grega como forma de não se ver obrigada a enfrentar problemas socioeconômicos contemporâneos incômodos; ou, talvez, aderindo a “alternativas” que não o são, como por exemplo aquela, paramarxista, da “teoria da ação comunicativa” de Jürgen Habermas.

Continuam existindo, felizmente, historiadores que, como Pierre Vilar, recentemente falecido, não aderiram, nem ao pós-modernismo, nem ao neoconservadorismo, menos ainda à noção proclamada por Margaret Thatcher de que “não há alternativa” ao neoliberalismo: autores que persistem na opinião de que a oposição, no sistema capitalista, entre os interesses do capital e os interesses do trabalho, na situação atual, continua a ser o grande drama de nosso mundo. Pensadores, portanto, que não aceitam o veto do “pensamento único” neoconservador a conceitos como o de imperialismo – em alguma das suas versões marxistas ou, mais em geral, de esquerda – ou o de exploração, nem falam de uma “ideologização do debate” (numa oposição, curiosamente anacrônica diante das discussões da segunda metade do século XX, entre ideologia e… verdade, ciência, objetividade?!) cada vez que um tema assim surja num ambiente acadêmico.

Esta posição, consistente e coerente, bem como uma ilustração de como se apresentam, hoje em dia, em dois de seus melhores especialistas de longa tradição acadêmica, os debates de esquerda (os neoconservadores de plantão, utilizando um dos chavões que usam quando procuram evacuar o debate politizado, diriam “de extrema esquerda”) em torno do tema do imperialismo, estão representadas em nosso dossiê pelos magníficos panoramas da História do Tempo Presente, ou História Imediata, elaborados por Pablo González Casanova, ex-reitor da Universidade Nacional Autônoma do México, e Samir Amin, tendo como fulcro o conceito de imperialismo. Em textos preparados para exposição oral, cada um deles aborda, com a largueza de vistas e o espírito de síntese facultados por décadas de intimidade com o tema, a quantas anda o imperialismo estes tempos de radical internacionalização do capital. Fazem-no numa perspectiva altamente politizada – como já notara Jean-Rémy Palanque em 1949, “imperialismo” é noção disfórica, de forte conotação pejorativa –, com grande veemência e incontestável autoridade intelectual.

Ciro Flamarion Cardoso – Professor titular do Departamento de História da UFF.

Virgínia Fontes – Professora do Programa de Pós-Graduação em História da UFF.


CARDOSO, Ciro Flamarion; FONTES, Virgínia. Apresentação. Tempo. Niterói, v.9, n.18, jan. / jun., 2005. Acessar publicação original [DR]

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Tempo | UFF | 1996

TEMPO3

Fundada em 1996, Tempo (Niterói.online) é uma publicação do departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Desde 2016, tem sido publicada três vezes ao ano.

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