Antiguidade tardia / Territórios & Fronteiras / 2013

Decadência romana ou Antiguidade Tardia? O título da clássica obra do historiador francês Henri-Irénée Marrou sintetiza com simplicidade e de forma brilhante um dos maiores problemas formulados pelo conhecimento histórico, talvez mesmo o maior deles. A análise deste período se confunde com a instituição do próprio campo historiográfico, uma vez que The Decline and Fall of the Roman Empire, de Edward Gibbon, é a obra fundadora e estruturante da forma moderna de produção e escrita da História.

Durante longos anos esta etapa do devir histórico foi analisada, fundamentalmente, a partir dos conceitos de decadência e de declínio. Somente na década de 70 dos novecentos que outra obra seminal, The World of Late Antiquity from Marcus Aurelius to mohammad. AD 150-750, de Peter Brown, colocou o debate em novos termos, abrindo uma nova gama de perspectivas análiticas.

A obra de Peter Brown esta alicerçada na defesa de duas premisas fundamentais: por um lado, compreender a Antigüidade Tardia não como um momento de decadencia e declínio, mas sim como uma época de grande criatividade e inovação que se manifestam principalmente na religião e na cultura; por outro, a afirmação da existência de uma continuidade com o passado, sendo a Antigüidade Tardia a legitima herdeira do legado clássico e a perpetuadora dessa herança.

A partir desta contribuição, os estudos acerca da Antigüidade Tardia assumiram uma nova perspectiva, na qual este extenso período surge conceituado como um momento período histórico caracterizado por uma dialética entre a inovação e a conservação. Os conceitos de decadência e de declínio foram substituídos pelos de transformação e transição.

Os últimos anos marcaram a consolidação do conceito de Antiguidade Tardia e deste período como objeto historiográfico. Nas palavras de Jean-Michel Carrié: “Nos dias de hoje, nós podemos afirmar que a Antiguidade Tardia adquiriu definitivamente um direito à cidadania: não somente a expressão, mas também o período cronológico que designa e que procura reabilitar”. 1

Diferentes tradições historiográficas, inclusive a brasileira, têm refletido e produzido análises de grande densidade acerca de diversos aspectos e questões relativas à Antiguidade Tardia. O presente dossiê da Revista Território & Fronteiras reúne um conjunto de texto de destacados estudiosos do período tardo antigo. Ana Tereza Gonçalves realiza uma saborosa e densa análise da obra de Aurélio Prudêncio, Psychomachia, para discutir as estratégias retóricas utilizadas por autores pagãos e cristãos e, desta forma, refletir acerca das tensas relações entre esses dois grupos que compartilhavam o mesmo universo cultural. Em um instigante artigo, Margarida Maria de Carvalho se dedica a investigar as relações entre os princípios da filosofia neoplatônica professada pelo imperador Juliano e suas práticas militares como um elemento nas negociações com os contingentes “bárbaros” de seus exércitos. Já Gilvan Ventura da Silva explora com argúcia as principais estratégias adotadas pelas autoridades eclesiásticas na Antiguidade Tardia com a finalidade de difundir e consolidar o cristianismo nas cidades do Império Romano, bem como sobre os impasses da cristianização, enfatizando o caso da cidade de Antioquia por meio dos discursos de João Crisóstomo. A densa contribuição de Eduardo Fabbro coloca em questão o conceito de “germano” e o seu uso como instrumento de construção de um argumento historiográfico que sustenta uma parcela significativa dos estudos sobre a natureza das “invasões germânicas” e dos reinos romano-germanos. Finalmente Renan Frighetto encerra de forma exemplar esse dossiê apresentado uma fina e complexa discussão acerca do conceito de Antiguidade Tardia a partir de uma perspectiva da História Política, que tem como foco analítico a Hispania visigoda.

Este dossiê, portanto, apresenta uma ampla panorâmica dos estudos tardo antigos na historiografia brasileira, demonstrando não somente o amadurecimento deste campo de pesquisa e sua exuberante variedade temática, mas também a sua densidade, capaz de produzir análises de aliam profundo conhecimento e domínio documental com uma sólida reflexão teórico e conceitual.

Finalmente não poderíamos encerrar essa apresentar sem destacar o fato de que este dossiê é um dos primeiros frutos da recente parceria estabelecida entre o NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos e o VIVARIUM – Laboratório de Estudos da Antiguidade e Medievo.

Nota

1. CARRIE, Jean-Michel e ROUSELLE, Aline. L’Empire Romain en Mutation. Des Séveres à Constantin 192-337. Paris: Éditions Du Seuil, 1999. p.11.

Marcus Silva da Cruz – Universidade Federal de Mato Grosso


CRUZ, Marcus Silva da. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.6, n.1, jan / jul, 2013. Acessar publicação original [DR]

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