Historiografia e Ensino de História | Revista Territórios & Fronteiras | 2021

A produção de um conjunto de trabalhos que tome as relações entre historiografia e ensino de História como objeto de análise insere-se na tradição da produção bibliográfica acerca do ensino de História que tem envolvido, principalmente, os debates e reflexões que vêm sendo produzidos por historiadores e professores no âmbito de instituições de pesquisa e ensino, ou como partícipes de debates em torno de programas ou políticas educacionais. Ademais, envolve também um conhecimento historicamente produzido, resultante de projetos e propostas de investigações, experiências e práticas concretas. Do ponto de vista do arcabouço teórico os trabalhos sugerem a opção e adesão aos fundamentos teóricos e filosóficos da ciência da História como referenciais para reflexões, investigações e debates. Esta opção e adesão tem caracterizado, de maneira específica, a qualidade e a especificidade para um recorte diferenciado da produção no âmbito do Ensino de História. Uma das principais contribuições a este debate tem sido o princípio indicado pelo historiador Jörn Rüsen acerca da Didática da História como ciência da aprendizagem histórica, porqueela produz de modo científico (especializado) o conhecimento necessário e próprio à história, quando se necessita compreender os processos de aprendizagem e lidar com eles de modo competente. Ou, todo conhecimento acerca do que seja a aprendizagem histórica requer o conhecimento do que seja história, daquilo em que consiste a especificidade do pensamento histórico e da forma científica moderna em que se expressa. No cerne da questão está a capacidade de pensar historicamente, a ser desenvolvida nos processos de educação e formação. Leia Mais

A virada de gênero na historiografia brasileira: pesquisas, temáticas e debates | Revista Territórios & Fronteiras | 2021

Trinta e um anos se passaram desde a tradução, no Brasil, de Gênero: uma categoria útil de análise histórica, artigo da historiadora americana Joan Scott e obra decisiva para os estudos sobre gênero e sexualidades na historiografia brasileira. De lá para cá, graças também a abertura de mais programas de pós-graduação em História e nascimento de revistas acadêmicas da área de História, a categoria gênero germinou, fincou raízes e formou campos decisivos que têm nos ajudado a esclarecer questões sensíveis do passado e apontar para a construção de mundos possíveis.

Em 2011, no artigo Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea, Joana Maria Pedro refletia sobre esses efeitos sinalizando como eles enriqueceram a historiografia. De fato, se considerarmos, por exemplo, os Simpósios temáticos dos dois últimos encontros da ANPUH veremos o destaque para estudos que tematizam as relações de gênero, inclusive nas duas últimas edições tivemos simpósios sobre História LGBTQIA+. Leia Mais

Festas brasileiras e seus significados / Territórios & Fronteiras / 2020

As festas são manifestações que propalam momentos singulares que fazem parte da vida e do cotidiano de todos nós. Podem ser celebrações tanto por motivações ordinárias quanto em relação a eventos extraordinários que expressem pertenças e questionamentos diversos, e, ainda, afirmem outras vivências socioculturais de seus integrantes. Foi pensando nesses aspectos que o tema “Festas brasileiras e seus significados” materializou-se neste dossiê — ora publicado pela Revista Territórios e Fronteira que chega em momento oportuno à conturbada realidade brasileira atual.

Do ponto de vista sistêmico, as festas demarcam sempre um ponto de encontro de interesses individuais e coletivos em que é possível perceber os fios do próprio tecido social a partir de modos de fazer próprios e singulares que envolvem lutas de representação entre grupos sociais distintos. Quando vistas sob um sentido mais subjetivo e vertical, as festas permitem que se percebam encontros (im)possíveis entre práticas culturais que têm no espaço público um território que pode ser o lugar de vazão dos desejos, que não mais se contém. Elas também evidenciam o tensionamento dos recalques silenciosos acumulados cotidianamente que podem ser extravasados, por exemplo, nos carnavais pelos foliões e foliãs que têm na festa um lugar de júbilo. Em outras palavras, as festas podem agregar pessoas e aferir laços identitários a partir dessas experiências festivas que celebram os rituais do poder, religioso ou laico, mas também as que ocorrem em espaços diversificados que propiciam sociabilidades e lazer com objetivos diversificados. Podem, ainda, favorecer as condições para consolidar arranjos diversos para garantir a manutenção de interesses financeiros, políticos e afetivos. Em todos esses sentidos, marcam as visões de mundo e valores culturais partilhados por seus integrantes.

Resultantes de pesquisas originais com fontes variadas — relatos de viajantes, imprensa, depoimentos orais, atas de clubes etc.—, os textos aqui enfeixados discutem tipos de festividades que vão dos eventos carnavalescos e encontros em espaços de lazer diversificados até aqueles que tratam de festividades do campo religioso. O tempo de seu acontecer remonta ao século XIX e se projeta aos dias atuais, no século XXI.

Os textos que compõem este dossiê moveram o eixo do debate, do centro para a periferia, em sentido amplo e, também, do grande evento. No Rio de Janeiro, por exemplo, o eixo festivo moveu-se ao trazer análise que desbancou a perspectiva que centrava os locais de divertimento apenas na região central da cidade e na zona sul carioca. Ao contrário, mostra-se que havia diferentes formas de diversões nos subúrbios, embora elas sofressem todo tipo de discriminação por parte da imprensa e da polícia. Além disso, as reflexões sobre os carnavais — cuja incidência ainda são os festejos ocorridos no Rio de Janeiro — reposicionam-se para outras regiões, a exemplo de Minas Gerais, Pará e Amazonas.

Portanto, essas festas aqui reunidas transitam por diversos eixos: ensejam as possibilidades de transgressão nos anos 1960 ante uma sociedade reativa ao desejo feminino; destacam valores agregadores na organização dos blocos, cuja marcação de um espaço de (re)existência é sempre possível, principalmente a partir de redes (virtuais) de apoio mútuo visando a communitas, ultrapassando o caráter competitivo. Por sinal, a rivalidade é o corte analítico das festas do boi de Parintins e na organização das torcidas em torno do duo Caprichoso-Garantido e das “galeras” em torno das escolas de samba de Manaus. As suas modalidades também variam desde aquelas brincadeiras do entrudo, passando pelos blocos de enredo e por outras modalidades inscritas muito além dos grandes espetáculos como os desfiles das grandes escolas de samba do carnaval carioca.

Os festejos carnavalescos aqui apresentados situam-se na longa duração que vão dos séculos XIX ao XXI. Iniciaremos pelo artigo “Outros tempos, outros carnavais: brincadeiras de entrudo e de carnaval no Brasil (século XIX)” no qual Patrícia Vargas Lopes Araújo discute as festas carnavalescas ocorridas em Minas Gerais ao longo do século XIX, em particular os festejos de entrudo e do carnaval, a partir de fontes documentais diversas — relatos de viajantes, memórias, jornais, entre outros. A autora se propõe capturar as singularidades de suas manifestações, bem como recuperar “como se elaboravam, na segunda metade do século XIX, os discursos que apresentavam o carnaval como um festejo civilizado em contraposição ao entrudo, considerado um divertimento grosseiro, incivilizado, marca de outro tempo, e portanto, impróprio a uma sociedade que buscava se modernizar”. Fica claro nas reflexões da autora que esse festejo segue a mesma perspectiva presente nas manifestações, de igual natureza, ocorridas no Rio de Janeiro e já fartamente exploradas pela historiografia, o que torna uma operação complexa capturar as possíveis distinções e suas sutilezas, em relação aos ditos eventos ocorridos na Corte.

As pândegas do Rio de Janeiro são abordadas em “Carnaval em Revista: os sentidos da festa na apreensão de mulheres brincantes pela imprensa ilustrada dos anos 1960” por Ellen Karin Dainese Maziero, que faz uma análise de fôlego em torno de um conjunto documental composto por charge, fotografias, entrevistas e músicas. Essa documentação farta tem nas revistas ilustradas O Cruzeiro e Manchete, notadamente em sua cobertura fotojornalística, seu núcleo. Aqui, os bailes fechados são lidos como possibilitadores da transgressão de mulheres que tinham sua liberdade amputada em plena década de 1960, marcadamente refratária à manifestação da sensualidade e sexualidade femininas alheias ao desejo masculino. Sua análise atilada abarca tanto a conjuntura nacional quanto o que é próprio desses carnavais, relacionados por uma densa revisão bibliográfica.

No que diz respeito aos blocos, o leitor e a leitora têm nas mãos dois trabalhos que avançam no entendimento que as Ciências Humanas têm sobre os blocos carnavalescos, sempre tidos como manifestação carnavalesca “menor” quando comparados às escolas de samba.

Em “‘Que escola é essa que está desfilando?’: os blocos de enredo do carnaval do Rio De Janeiro”, Julio Cesar Valente Ferreira analisa os blocos de enredo enquanto representações de forças sociais localizadas nas camadas periféricas do Rio de Janeiro. O autor rastreia as acepções que os blocos de enredo receberam dos estudiosos do assunto, que variam de “mini-escolas de samba” à “sub-escola”, sempre envoltos em uma hierarquia que certamente não auxilia no entendimento do objeto em si. O autor nos remete a uma tipologia sobre a história dos blocos, fazendo uma revisão bibliográfica sobre a caracterização dos mesmos, seus tipos e demarcando uma diferença substancial que vai além dos tipos, mas de princípio: aqueles que têm uma estrutura competitiva e aqueles de caráter comunitário. A partir de quadros explicativos o autor organiza sua pesquisa em torno de blocos que foram fundados de 1944 a 2016, rastreados a partir do corpus documental da Biblioteca Nacional e pensados juntos e a partir de entrevistas semi-estruturadas. O conjunto dessas entrevistas, cabe destacar, agrega nuances à cobertura feita pela imprensa periódica e valoriza as vozes daqueles e daquelas que estavam envolvidos na consecução dos desfiles: de representantes dos quadros administrativos do poder público e das entidades representativas até os participantes das agremiações rastreadas pelo autor. Nessas, as marcas identitárias, as redes de solidariedade – que além do investimento de tempo e dinheiro de foliãs e foliões, envolve o comércio local e as escolas de samba – que dão sustentação à permanência dos blocos de enredo, que se utilizam também das relações clientelistas com os representantes do poder público, como as escolas de samba, demarcam uma diferença substantiva: almejam a communitas, não o comércio.

Ainda na seara dos blocos, Tiago Luiz dos Santos Ribeiro e Felipe Ferreira trazem à baila as formas inventivas que foliões e foliãs se utilizaram para driblar as proibições que os alvejavam e ameaçavam seu carnaval. Em “Esse bloco é meu: noções de pertencimento e apropriação nos blocos carnavalescos da cidade do Rio De Janeiro”, os autores articulam a assunção de blocos de rua como resposta / revide ao cancelamento de outros. A estratégia de pesquisa dos autores para pensar as formas de resistência do brincar feito correlato a esses blocos, impedidos de desfilar, encerra uma plêiade de fontes: entrevistas via e-mail, observação participante posts de internet, pensado à luz de teóricos que articulam a descentralização como forma de organização diferenciada, que catapulta a rua e, cabe acrescentar, as redes sociais, como espaços de articulação, organização e projetos coletivos. Doravante, a Internet entra como fonte nuclear na análise dos autores que buscam arejar o debate em torno das fontes e formas de se trabalhar com qualquer festividade do século XXI. A pesquisa demonstra que a estratégia de divulgação dos novos blocos e / ou das novas datas dos desfiles cancelados pelos representantes do poder público só foi possível porque havia uma confluência de valores e propósitos entre os membros que reconfiguraram os blocos, alterando seus nomes e subvertendo o regramento. A pesquisa, com tons singulares de um observador-participante, é um convite para se debruçar nos “processos de negociação, espaço de tensões, resistência e incorporação como estratégias de sobrevivência”.

Deslocando-nos do eixo fluminense, o trabalho “Da galera do Caprichoso aos Gigantes do Morro: notas sobre rivalidade e sociabilidade nas torcidas organizadas do Carnaval de Manaus e Festival De Parintins No Amazonas”, de autoria de Ricardo José de Oliveira Barbieri, faz um estudo comparativo que parte da rivalidade e do engajamento das torcidas do Boi Bumbá e da “galera” das escolas de samba de Manaus. A pesquisa se constituiu a partir da figura do observador participante, o próprio autor, que participou dos festejos do Boi Caprichoso em 2010 e das escolas de samba na cidade de Manaus entre 2012 e 2016. O recorte cronológico e a distância dos anos em que os festejos foram observados importam menos para o texto, que gira em torno do papel da rivalidade das torcidas e da rivalidade e nos seus sentidos. O leitor e a leitora terão em mãos um artigo que faz um retrospecto interessante sobre essas manifestações culturais, como o caso do Boi-bumbá, que estão fora do eixo sul-sudeste e que frequentemente passam ao largo do radar dos foliões e mesmo dos pesquisadores. O trabalho também abre espaço para pensar o imbricamento de termos como “galera”, advindo do carioca “galeras funk”, que, como as torcidas organizadas de futebol, são organizações heterogêneas em ocupação social e idade. Com fortes tons pessoais, característico da metodologia adotada, o autor busca transmitir algo da essência no sentimento de engajamento que invade os organizadores das torcidas de fenômenos com diferentes induções, e de naturezas festivas diferenciadas.

Outros tipos de festas ocorreram no Rio de Janeiro e alhures. Como exemplo, naquele estado essas festas se deslocam aos subúrbios (do Rio de Janeiro) e são discutidas no texto “Diversões nos subúrbios cariocas: identidades, representações e tensões (1900-1930)”, de Nei Jorge Santos Junior. O autor percorre vários bairros do arrabalde carioca identificando os diversos espaços de sociabilidade e diversão que os segmentos populares frequentam tais quais os bailes de seus clubes, os botequins, os quiosques e os jogos de futebol. Esses registros foram feitos a partir da cobertura da imprensa carioca que se esmerou nos adjetivos desqualificadores daqueles sujeitos, sempre chamados de “desordeiros”, “agressivos”, “violentos” e “vagabundos”. Nesse sentido, demonstra o autor, que as “representações” dos cronistas da imprensa não diferiam das posturas da polícia que acionam, a todo momento, os mecanismos de repressão para coibir os “abusos” das práticas populares nesses locais de encontro e diversão. O autor conclui que os jornais e a polícia tecem várias críticas desqualificadoras às formas de diversão suburbana, buscando “redefinir usos e costumes considerados inadequados aos padrões daquilo que se julgaria civilizado”.

Ainda nesse universo das festas, o texto “Festa e território: modo de vida e devoção a Nossa Senhora das Graças em uma comunidade camponesa”, de autoria Rafael Benevides de Sousa e Cátia Oliveira Macedo, discute outro tipo manifestação. O artigo é resultado de pesquisa realizada na comunidade do Cravo, no nordeste do Pará, que visa compreender o papel desempenhado pela festa de Nossa Senhora das Graças para a territorialização camponesa local. Os autores enxergam tal festa como um dos componentes de forjamento desse território, posto que a partir dela “se articulam relações sociais densas, explicitando-se o sentimento de pertencimento a comunidade”. A entrevista oral e a história de vida, coletadas entre 2017 e 2018, foram fundamentais para os autores entenderem os meandros desse território camponês e os significados simbólicos inerentes ao evento.

Concluindo essa Apresentação, podemos dizer que o tema situa o debate teórico e historiográfico sobre os sentidos possíveis aferidos às festas que conformam as relações sociais dos sujeitos, homens e mulheres, cujos valores se manifestam nessas práticas culturais e em suas representações simbólicas de tipos variados. Se, por um lado, essas manifestações simbolicamente celebram a vida e os acontecimentos considerados relevantes por esses sujeitos em seu cotidiano, por outro, também estabelecem limites e barreiras sociais ao definirem fronteiras entre os seus integrantes e os outros, mesmo que o objetivo almejado seja garantir a coesão social e também tornarem-se instrumentos de apaziguamento os possíveis conflitos e divergências entre os seus integrantes e o mundo que o cerca.

Portanto, caro leitor e cara leitora, convidamos você para a leitura das reflexões dos diferentes autores e autoras, a quem agradecemos pela colaboração. Eles e elas se empenharam para analisar as respectivas manifestações festivas, com toques de originalidade e competência, atendendo ao nosso convite e de T&F, viabilizando o presente dossiê.

Zélia Lopes da Silva – Doutora pela USP e Livre Docente na área de História do Brasil pela Unesp. Integra o Programa de Pós-Graduação em História da Unesp, ministrando curso e orientando pesquisas. Aposentada. E-mail: zelia.lopes @terra.com.br

Danilo Alves Bezerra – Doutor em História pela Unesp -Programa de Pós-Graduação História e Sociedade. É professor adjunto no curso de graduação em História da Uespi / Parnaíba e de pós-graduação do ProfHistória / Parnaíba. E-mail: [email protected]


SILVA, Zélia Lopes da; BEZERRA, Danilo Alves. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.13, n.1, jan / jun, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Tempo Presente, história oral e imagens / Territórios & Fronteiras / 2019

Este dossiê da revista T&F reúne artigos que apresentam reflexões de historiadores e historiadoras que lidam com a “história oral” e com a linguagem visual, sejam elas vestígios visuais como imagens fotográficas ou imagens narrativas que dependem do testemunho escrito e da memória e que, por isso mesmo, não deixam de se articular com os documentos escritos. Os artigos contemplam temas das pesquisas desenvolvidas pelas autoras e autores e nos oferecem debates metodológicos sobre o corpus documental utilizado como referência. Destacam-se, nessa linha, a metodologia que escolhem e valorizam passagens das entrevistas orais, temáticas ou histórias de vida, e das imagens visuais, como fotografias, assim como de outros documentos que registram eventos significativos na vida dos entrevistados e dos acontecimentos analisados. Do tecido narrativo que constitui o texto dos artigos emergem histórias, trançadas como experiências pela memória e testemunhos.

Não poderíamos deixar de assinalar, que há um especial interesse em vários artigos do dossiê em explorar algumas possibilidades de análise do tempo presente e instigar os leitores ao diálogo. Ao debaterem questões que não se circunscrevem apenas à especificidade dos temas abordados, oferecem uma rica contribuição para a análise da história recente do Brasil, em especial, eventos relacionados à memória da ditadura militar e dos movimentos sociais e políticos do período da redemocratização do país.

O dossiê abriga temas, pesquisas e abordagens historiográficas bastante diversas e inovadoras. Assim, suscitam leituras e reflexões que se apresentam imprescindíveis à produção do conhecimento histórico. Nessa trilha, o artigo “Uma garota propaganda para o império: o caso de Rosinha na Exposição do Porto de 1934”, de Franco Santos Alves da Silva, apresenta um estudo acerca da relação entre etnia e gênero no contexto específico da 1ª Exposição Colonial Portuguesa de 1934, através da análise de imagens fotográficas. Argumenta o autor que a utilização da fotografia e de outras imagens visuais não deve ter cunho ilustrativo. Em seu texto, as imagens são indiciárias, possibilitam múltiplos olhares e provocam estranhamentos, já que trazem “à baila imagens que eram elas mesmas inseridas e produzidas em uma conjuntura que gerava e perpetuava as relações de gênero / colonialismo / etnia durante o recém reformulado projeto colonialista do Estado Novo Português”.

Em seu artigo, “O futuro do passado no tempo presente: memórias e narrativas amazônicas nas encruzilhadas do tempo”, Erinaldo Cavalcanti utiliza relatos de memória para refletir sobre a história do tempo presente. Neste escopo, analisa entrevistas orais com trabalhadores e trabalhadoras rurais, afetados pela experiência da Guerrilha do Araguaia, realizadas na cidade de Xambioá / TO, para o projeto de pesquisa “História Oral e Narrativas Amazônicas”. Sublinha a importância da memória histórica numa dimensão política. As reflexões sobre tempo, memória e história são, segundo o autor, imprescindíveis à escrita dos relatos orais na produção textual.

O artigo de Pablo Porfírio, “Memória de imagens de trabalhadores rurais: marchas das Ligas Camponesas, Pernambuco, 1960”, com base nas fotografias produzidas no início dos anos 1960, focaliza as manifestações políticas de trabalhadores rurais, integrantes das Ligas Camponesas, em Pernambuco. Reflete com acuidade a produção das imagens, de forma a apreender discursos e práticas que criminalizam as ações dos trabalhadores e, sobretudo, nos discursos oficiais e na imprensa, desqualificam as iniciativas de resistência. Para o autor, as fotografias analisadas constituem “uma memória de imagens que oferece novas narrativas sobre o Golpe-civil militar de 1964”.

Em “Imagens depois da catástrofe: outras memórias do desenvolvimento no Vale do São Francisco”, Elson de Assis Rabelo se detém sobre as imagens visuais produzidas em desenhos do artista juazeirense Antônio Carlos Coelho de Assis. As imagens dão acesso a camadas diferentes de temporalidade e de experiências de espaço do rio São Francisco, nos anos 1980. Além disso, aparecem implicadas às práticas de cunho desenvolvimentista direcionadas para o “interior do Brasil”, especialmente aquelas que se baseavam na agricultura irrigada das zonas semiáridas e na exploração do rio São Francisco como recurso natural. O autor dialoga, também, com outros vestígios documentais, como notícias de jornal e o material produzido pelo Movimento de Defesa do São Francisco, que lutava contra a degradação ambiental daqueles espaços. Pauta-se pelo diálogo entre as memórias individuais e o cenário político do período, a partir do recorte sobre as manifestações artísticas e a preservação do meio ambiente.

Os irmãos Daniel e Guilherme dos Santos Fernandes, iniciam seu texto, “Imagens e palavras na escritura da narrativa etnofotográfica: notações metodológicas”, destacando o uso de imagens nas pesquisas antropológicas, especialmente na obra Balinese Character (1942), e os trabalhos pioneiros no Brasil no uso das imagens fotográficas a partir das expedições do Marechal Rondon. Para os autores deste artigo, a antropologia visual e a utilização de uma narrativa etnofotográfica -sem desmerecer o risco da subjetividade na escolha de imagens no registro imagético pelos etnógrafos -possibilitam o registro de uma realidade que ultrapassa os traços culturais isolados e potencializam a memória singular da cultura como discurso narrativo.

O artigo “História e acontecimento: imagens narrativas no relato oral de uma liderança dos trabalhadores rurais de Rondon do Pará”, de Regina Beatriz Guimarães Neto e Airton dos Reis Pereira, utiliza o relato oral de memória de uma líder rural, Maria Joel da Costa (Joelma), que descreve a violência cometida contra os trabalhadores rurais no Pará, em especial, o assassinato do Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará. O testemunho é social e estabelece relações com outras experiências, além disso, ao elaborar o “relato de si”, a narrativa testemunhal se torna indiciária. Para a autora e o autor, as imagens narrativas presentes nos relatos orais, em especial no testemunho de Joelma, são inseparáveis de sua dimensão visual e ressignificam, no fluxo da narrativa, os acontecimentos históricos.

Já Gerardo Necoechea Gracia, em seu artigo, “De enfermedades, historias y lecturas: imágenes narrativas de cultura obrera”, seleciona passagens de uma entrevista realizada a uma mulher que recorda sua infância em um povoado mineiro do norte de México. Analisadas, em detalhe, as imagens narrativas que emergem do relato o ajudam a refletir sobre a cultura da classe trabalhadora e suas transformações. Neste texto, o autor indaga sobre o significado e a importância das imagens narrativas para a compreensão dos relatos orais, que convertem imagens em recordações comunicáveis, em narrativas.

Em “Uma leitura sobre as novas configurações migratórias: análise no / do tempo presente em narrativas orais e de jornais”, os autores Leandro Baller e Jorge Pagliarini Junior tecem importantes considerações e análises sobre “migrações” para áreas de fronteira, sobretudo sobre os movimentos de retorno. Tomaram como base duas pesquisas que problematizam as migrações do Sul do Brasil, particularmente do Paraná, para o Paraguai e, em outra direção, para a Amazônia. Apresentam reflexões sobre a memória e narrativa, na configuração social das migrações no tempo presente.

No artigo, “Realismo maravilhoso e circularidade cultural: crença no invisível atordoa o pensamento? (Região Bragantina-PA)”, Ipojucan Dias Campos e Danilo Gustavo Silveira expõem diferentes narrativas de universitários da UFPA, em Bragança e Capanema, a respeito de histórias de “lendas”, “folclores”, “superstições”, “crendices”. Enredos que misturam a vida real, o trabalho e o cotidiano, com o imaginário e o extraordinário do sobrenatural e na interface entre as culturas “popular” e “erudita.

Nas páginas escritas por Magno Michell Marçal Braga e César Martins de Souza, em seu artigo “Transamazônica: terra, trabalho e sonhos”, que se alimentaram de diferentes fontes documentais, narrativas e fotografias, os autores nos apresentam as narrativas de alguns migrantes que se fixaram em terras amazônicas, além de discursos oficiais a respeito da construção da rodovia Transamazônica. Diante de uma produção discursiva e imagética, celebrativa dos feitos governamentais, justificava-se a ocupação humana e econômica da região amazônica, através da transposição de populações do Nordeste e do Sul do Brasil.

Em “Exorcizando o Passado: experiências de trabalhadores migrantes escravizados na Fazenda Brasil Verde / PA”, Cristiana Costa Rocha narra a trajetória de trabalhadores rurais migrantes do Piauí contratados pelo “gato” Meladinho para trabalhar no sul do Pará. Dois são os personagens principais do trabalho de Cristiana, José Pitanga e Luiz Sincinato, escravizados, no ano 2000, na fazenda Brasil Verde, fazenda que entre meados da década de 1980 até o ano 2000 foi alvo de sucessivas denúncias em relação ao uso de trabalho escravo.

No último texto do dossiê, “Da assistência patronal à disciplina da vida e trabalho operário: narrativas, imagens e denúncias do passado”, Marcelo Góes Tavares, usa como fonte principal Memória da vida e do trabalho, documentário dirigido e produzido por Celso Brandão, e, também, relatos de memórias de operários têxteis alagoanos. Por meio de alguns fotogramas e relatos orais o autor tece uma rica paisagem polissémica sobre as políticas de assistência, gestão do trabalho, sobrevivência e resistência, tendo como cenário principal a vila operária de Fernão Velho e a Fábrica Carmen, nomeada até 1943 de Companhia União Mercantil.

Agradecemos imensamente a dedicação dos autores e autoras que compuseram este dossiê. Tivemos o privilégio de contar com um grupo de historiadoras e historiadores de enorme rigor e profissionalismo. Nesse sentido, não se furtaram em atender as sugestões críticas dos pareceristas, enriquecendo os textos e contribuindo de forma decisiva para novas abordagens historiográficas. Em “tempos difíceis” a nossa melhor resistência política é o rico diálogo em nossa área de conhecimento e no campo interdisciplinar: “tudo o que nos alenta, renova nossas forças!

Pere Petit – Graduação em Geografia e História pela Universitat de Barcelona. Mestrado em História de América Contemporânea pela Universidad Central de Venezuela. Doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Pós-doutorado na Universidad de Salamanca-Espanha. Docente dos Programas de Pósgraduação em História Social da Amazônia (Belém / UFPA), Linguagens e Saberes na Amazônia (Bragança / UFPA) e História (Marabá / Unifesspa). Presidente da Associação Brasileira de História Oral (ABHO). E-mail: [email protected]

Regina Beatriz Guimarães Neto – Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (1996). É professora Adjunto IV do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]


PETIT, Pere; GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.12, n.1, jan / jul, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Os embates na construção do conhecimento histórico e a memória no Paraguai / Territórios & Fronteiras / 2019

O ano de 2019 marca duas efemérides de fundamental importância para a história do Paraguai e da região platina: primeiro o “ciclo de (re)memorações” iniciado no ano de 2014 em torno dos “150 anos da Guerra Guasu”, marco este que se findará no próximo ano: 2020, e segundo, os 30 anos da queda do ditador Alfredo Stroessner (1954-1989).

Nesse contexto este Dossiê que ora vem a público faz parte de um esforço coletivo de investigadores e investigadoras rio-platenses que tem se debruçado sobre o desafio de estudar o Paraguai e a região platina através de diferentes perspectivas, tanto da história, como da sociologia, da antropologia e outras áreas das ciências humanas.

Ressaltamos que até meados do século XX a produção historiográfica acerca do Paraguai centrava-se em análises de cunho positivista e alicerçada em documentos oficiais e / ou obras com cunho memorialístico. Com a queda do regime autoritário de Alfredo Stroessner os pesquisadores e pesquisadoras da área começaram a ter acesso a arquivos e documentação antes não disponibilizada; tal fato aliado à profissionalização acadêmica ocorrida no Paraguai e demais países vizinhos vem permitindo que vários temas e objetos de pesquisa sejam revisitados e reescritos, da mesma forma que o emprego de outras abordagens e metodologias fez com que aflorasse investigações que romperam com o viés positivista até então empregado na análise e construção da narrativa da história paraguaia.

Monumentos, movimentos sociais, textos escolares, as escritas de si, enfoques de gênero, imprensa e cotidiano, são alguns exemplos de abordagens que podemos apontar como parte integrante do movimento de renovação histórica e historiográfica vivida contemporaneamente.

O conjunto de Artigos que compõe este Dossiê demonstra o processo de renovação do qual falamos na medida em que apresenta uma gama diversa de temas que perpassam a análise da imprensa, de gênero, de aspectos relacionados a política externa entre Paraguai, Brasil e Argentina, as escritas de si e, por fim, duas fases da Guerra Guasú: a campanha de Mato Grosso e a da Cordilheiras; a temporalidade privilegiada também é extensa e contempla aspectos inseridos entre os séculos XIX e XX.

No Artigo intitulado “O ‘progresso’ e a ‘falta’: representações e relações Brasil- Paraguai no jornal O Globo durante a construção da Ponte da Amizade (1956-1965)”, Paulo Renato da Silva analisa as diversas representações tecidas em torno da construção da Ponte da Amizade que vinculou a Ciudad del Este, no Paraguai, com Foz do Iguaçu, no Brasil. O autor demonstra como essas representações divergem muitíssimo das atuais percepções que se tem em torno desse passo fronteiriço. Naquele momento, a construção da ponte sobre o rio Paraná foi enxergada como veículo de modernidade ao mesmo tempo que instrumento de luta contra o comunismo.

“De General a Visconde: José Antônio Correa da Câmara na Campanha da Cordilheira e na caçada final a Solano López” é o título da reflexão de André Atilas Fertig que versa sobre o percurso do General Câmara, que partiu de terras gaúchas para integrar as forças aliadas contra o Paraguai. Considerando elementos da história social e da microhistória, o autor tenta resgatar o sujeito do devir histórico considerando como fonte privilegiada seu epistolário para, desse modo, recuperar o olhar de Câmara sobre a política externa e os enfrentamentos bélicos na região do Prata, principalmente na fase final da Guerra Guasu.

Já em “Conflictividades impositivas y territoriales entre Paraguay y Corrientes (1852-1859)”, o autor Dardo Ramírez Braschi se debruça sobre as relações bilaterais entre o Paraguai e a província rio-platense de Corrientes, num período anterior à Guerra Guasu, quando ambos os Estados dirimiam suas diferenças econômicas, políticas e territoriais de forma direta, sem a intervenção de um Estado nacional argentino ainda difuso e quase inexistente. A complexidade dessas relações, expostas através de uma exaustiva pesquisa documental, permitem compreender os laços políticos e culturais que perduram entre ambas as regiões até a atualidade.

No Artigo denominado “A ocupação paraguaia em Mato Grosso durante a guerra do Paraguai” os autores Ana Paula Squinelo e Jérri Roberto Marin abordam a ocupação paraguaia na Província de Mato Grosso, analisando o contexto mato-grossense que antecedeu a guerra, a ocupação de Mato Grosso e suas fases até a retomada de Corumbá. Trazem no bojo de suas análises aspectos cotidianos, numéricos e demográficos do período de ocupação paraguaia que até então não haviam sido analisados; problematizaram ainda os efeitos da referida ocupação e como ocorreu a construção de uma narrativa memorialista no pós-guerra em Mato Grosso e, posteriormente, em Mato Grosso do Sul.

No texto “O Coronel Arturo Bray e a escrita de si”, o pesquisador Luiz Felipe Viel Moreira trabalha sobre a correspondência e as memórias deste militar e escritor paraguaio. A análise das cartas trocadas entre Bray e o liberal Justo Prieto recupera a percepção dos dois intelectuais do momento que antecedeu a chegada de Stroessner ao poder, fato que será rememorado por Bray em suas memórias escritas uma década mais tarde, no ocaso de sua vida e publicadas postumamente. Nestas, o militar traz seu olhar sobre a história nacional paraguaia da primeira metade do século XX, posicionando-se sobre os aspectos mais polêmicos e resgatando a importância de preservar a memória dos tempos democráticos em época de ditadura.

As autoras Lorena Zomer e Tamy Amorim, em “Perspectivas e reflexões sobre a história recente paraguaia: trajetórias de pesquisa e o debate de Gênero”, apresentam uma perspectiva do estudo da história das mulheres desde a história do tempo presente em uma mirada transnacional. Esta lupa-guia para focar os processos históricos apresenta uma novidade no campo de estudos do Paraguai, tendo em vista que se existem trabalhos sobre as mulheres, a perspectiva de gênero na historiografia configura-se como uma grande dívida das ciências sociais e humanas. Esta primeira caracterização do campo que propõem as autoras é, sem dúvida, um marco inicial para a inauguração de uma nova perspectiva investigativa.

Maria Alice Gabriel em “Lembranças da Guerra do Paraguai na obra do brasileiro Pedro Nava” também reflete sobre uma escrita de si que traz lembranças dispersas sobre a Guerra Guasu em diversos textos memorialísticos do autor. Destaca-se que essas lembranças de guerra não são diretamente pessoais, mas elas permanecem através da memória de personagens próximos do escritor, permitindo resgatar as diferentes reelaborações da Guerra Grande no imaginário coletivo de fins do século XIX primeiras décadas do XX.

Por fim, Luiz Eduardo Pinto Barros no Artigo “O Paraguai e sua Política Externa: os interesses do país em meio às divergências entre Brasil e Argentina sobre o aproveitamento hidro energético do Rio Paraná nos anos de 1960 e 1970” vem renovar as formas fechadas e / ou estagnadas de pensar as relações internacionais a partir de uma perspectiva que procura incorporar o diálogo interdisciplinar, favorecendo um olhar inovador. O resgate dos atores e dos conflitos a favor de modelos de desenvolvimento, permite visualizar uma trama que vai muito além das realidades dos Estados nacionais.

Neste Dossiê reunimos, portanto, um conjunto de pesquisadores e pesquisadoras rio-platenses que se dedicam há tempos a investigações sérias e comprometidas com a História do Paraguai; a estes autores e autoras nossos sinceros agradecimentos por partilharem dessa empreitada conosco. Em tempos bicudos como os que vivemos na América Latina o trabalho coletivo, combativo e engajado é essencial para a sobrevivência das ciências humanas e da educação pública, laica, humana e gratuita.

Ana Paula Squinelo – Professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e professora no ProfHistória (UFMT) e PPGCULT (UFMS). Pós-doutora em Ciências da Educação na especialidade de Educação em História e Ciências Sociais (UMinho / PT). Doutora em História Social (USP). Grupo de Pesquisa “Historiografia e Ensino de História” (HEH). Ñande – Rede de pesquisadoras e pesquisadores sobre o Paraguay. E-mail: [email protected]

Lorena Soler – Doutora em Ciências Sociais (2012) pela Universidade de Buenos Aires. Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (CONICET), sediada no Instituto de Estudos da América Latina e Caribe (IEALC). Professora da Faculdade de Ciências Sociais (UBA). Ministra cursos de pós-graduação de América Latina em várias universidades nacionais e estrangeiras. Autora de La Larga Invención del golpe. El stronismo y el orden político paraguayo (Imago Mundi, Buenos Aires, 2012) e coeditora de Franquismo em Paraguay. El golpe. (El 8vo. Loco Ediciones, Buenos Aires, 2012). E-mail: [email protected]

Marcela Cristina Quinteros – Doutora (2016) em Ciências, na área de História Social, na Universidade de São Paulo (USP). Concluiu o Pós- Doutorado em História na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), dando continuidade à pesquisa em História Intelectual, Identidades Latino-americanas e Guerra Fria Cultural iniciada no doutorado. Pós-doutorado na Universidade Federal da Grande Dourados (2019). É integrante e fundadora da Rede de Pesquisadoras e Pesquisadores sobre o Paraguay Ñande, criada em 2017 para a discussão e difusão das pesquisas desenvolvidas no Brasil sobre a História, Sociedade e Cultura do Paraguai. E-mail: [email protected]


SQUINELO, Ana Paula; SOLER, Lorena; QUINTEROS, Marcela Cristina. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.12, n.2, ago / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Sertões / Territórios & Fronteiras / 2018

Sertão, e por extensão os sertanejos, é um signo central na interpretação do Brasil, circulando por todas as regiões do Brasil desde o século XVI seus significados articularam discursos, linguagens e práticas (ou experiências) que forjam, ainda no presente, sentidos socioculturais que influenciam disputas territoriais e a constituição de fronteiras. Desde os sentidos de vazio e deserto até o preenchimento com sinais claros de resistência ao processo de colonização e / ou civilizador o sertão aparece como categoria e espaço de luta social. É um dos temas mais evocados nas artes e nas ciências sociais. Percebido, também, como um dos mais inquietantes enigmas a ser decodificado na interpretação do país.

No Brasil essa designação passou por mudanças ao longo tempo. Alcântara Machado3, por exemplo, evidenciou que o termo “sertão” já aparece nos inventários paulistas dos séculos XVI e XVII, como forma de nomear espaços desconhecidos, atraentes e misteriosos, a um só tempo, despertava a afoiteza do desbravamento, o sonho do enriquecimento rápido e fácil. Trazia consigo, porém, o risco das forças ameaçadoras da natureza: feras, doenças, além dos temidos índios selvagens, como os canoeiros em Goiás. Na percepção de Janaína Amado salienta que o conceito “sertão” foi elaborado inicialmente pelos colonizadores portugueses, carregado de sentidos negativos: espaços vastos, desconhecidos, longínquos, pouco habitados, isolados, perigosos, dominados pela natureza bruta e habitados por bárbaros. Foi utilizado para nomear as mais diversas áreas, como as de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás nos séculos XVII e XVIII.

Regiões distantes, povoadas pelo gentio, porém repletas de riquezas. Dependendo do enunciante, o “sertão” pode possuir os mais variados sentidos. Para os governantes de capitanias / províncias “o sertão era o exílio a que haviam sido temporariamente relegados”. A partir das últimas décadas do século XIX, outros significados foram incorporados ao conceito, transformando-o numa categoria essencial para o entendimento da “nação”.4

José de Alencar no romance regionalista “O sertanejo” representa o sertão nordestino, uma reprodução de como eram as terras do Brasil na época em que foram descobertas marcada pela vastidão, pela natureza opulenta e vasta, uma rica descrição da exuberância e abundância da flora brasileira, cuja: imensa campina, que se dilata por horizontes infindos, é o sertão de minha terra natal […] Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante?”5 . Em Inocência, considerada a obra prima do romance regionalista, o visconde de Taunay retrata o sertão Mato Grosso, caracterizado pela solidão melancólica do despovoamento, a virgindade da terra, o deserto, a calma da campina. O “sertão bruto” é percebido com “nenhum teto habitado ou em ruínas, nenhuma palhoça ou tapera dá abrigo ao caminhante”. 6

Euclides da Cunha escreveu a mais pungente narrativa sobre o território do sertanejo nordestino: árido, inóspito, indômito, atrasado, imune à passagem do tempo e aos progressos da civilização. Nessa obra a dicotomia entre os “brasis” torna-se mais evidente. Para ele, no sertão vivia o brasileiro legítimo: corajoso, perseverante, honrado, forte e aguerrido. Nessa escrita, ele recrimina o nacionalismo e ufanismo exagerado do país a época, mostrando a face real da gente brasileira vivendo a margem da sociedade.7

O Brasil profundo e sua gente ignorados pelos olhares das elites começam a vir a tona nos relatos de expedições científicas promovidas pelo governo que defrontava com as dificuldades de inserção no mundo moderno capitalista na Primeira República (1889-1930). Nesse contexto, a aliança entre o Estado e os cientistas médicos foi profícua nessa campanha de integração nacional das imensas áreas abandonadas e alheias ao empreendimento de criação da identidade nacional. A província de Goiás, por exemplo, reflete bem essa condição periférica. Por intermédio de projetos sanitários, culturais, educacionais procurou-se encontrar caminhos capazes de retirar a região daquela condição tão periférica em relação às demais províncias do Brasil.

Ainda no início do século XX, a população vivia dispersa em um dilatado território. Sua gente, composta, em sua maioria, de camponeses analfabetos e pobres, habitava a área rural, quase totalmente isolados do restante do País e do mundo. Goiás era, então, uma região ignota. A medicina, aliada ao poder público, consistia no instrumento para operar essa transformação. A Ciência propiciaria um fundamental lenitivo para os intelectuais, que, até então, não avistavam alternativas para um país que parecia condenado.

Posteriormente, ao conceito sertão foram incorporadas novas abordagens e diversas formas de apreensão do que aquelas relacionadas a dicotomia geográfica. O debate passou a incorporar diversas linguagens por meio das quais são narrados, tais como o memorialismo, a literatura, a historiografia, a linguagem fílmica, a mídia impressa e / ou digital, as artes de uma maneira geral, dentre outras formas narrativas. Questões de fronteiras e interculturalidades, territórios e territorialidades, etnicidades e identidades e modos de viver, trabalhar, habitar e se alimentar e também os processos de ocupação, povoamento e colonização dos sertões.

O dossiê que o leitor tem em mãos, reuni artigos selecionados com suas diversas ênfases, concepções, estilos narrativos, metodologias e objetos de pesquisa, individualmente e no seu conjunto, constroem uma abordagem polifônica, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar sobre a pluralidade dos sertões brasileiros. Assim, reunindo uma gama plural de objetos e abordagens o dossiê ora apresentado delineia-se como uma perspectiva de leitura de mundo e de textos abertos para múltiplas interpretações.

Nos artigos “Joãozinho Bem-bem e os antigos: a história de um herói através de sua estória”, “Narratividade e Cientificismo: a construção literária dos sujeitos de Canudos em Euclides da Cunha” e “A lepra no sertão: a visão de três regionalistas” há a busca por compreender alguns dos sentidos culturais dos sertões por meio da mobilização de um repertório de estudos de linguagem e da literatura. Em “Joãozinho Bem-bem e os antigos: a história de um herói através de sua estória” a autora, Lorena Lopes da Costa, discute a construção da personagem de João Guimarães Rosa, Joãozinho Bem-bem, a partir da análise das representações literárias da “bela morte” como uma forma de redenção do sertão e dos sertanejos das minas gerais. Nesse artigo, as referências clássicas à poesia épica formam uma imagem heroica dos sertões que se destaca em nosso imaginário.

Outro artigo que fixa sua interpretação na discussão das linguagens literárias é “Narratividade e Cientificismo: a construção literária dos sujeitos de Canudos em Euclides da Cunha” escrito por Euclides Antunes de Medeiros e Fernanda Rodrigues Lagares. Nele a questão central é problematizar as pressões que a narrativa euclidiana sofre dos repertórios científicos e literários nos quais está mergulhado o autor de “Os Sertões”. Partindo da análise das metáforas da cobra e da sucuri, presentes na obra, o artigo delineia uma imagem dúplice: de um lado, o homem esteticamente construído a partir da ideia do sertanejo “como antes de tudo um forte”; de outro lado, a mobilização do argumento de que a ciência era a grande artífice da retirada dos sertões da barbárie, pois dela dependia a “civilização”.

Centrado também na literatura, o artigo “A lepra no sertão: a visão de três regionalistas”, de Roseli Martins Tristão Maciel e Veralúcia Pinheiro, busca discutir as visões dos literatos goianos Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Élis e Valdomiro Silveira acerca da lepra nos sertões goianos. Discutindo como esses autores evidenciam em suas linguagens literárias a estigmatização dos leprosos, o artigo esclarece questões importantes sobre as representações do interior goiano como o “lugar da doença” e sobre o processo de (des)humanização dos doentes.

Em “A invenção do sertão: viajantes e barqueiros navegando pelo Araguaia”, escrito por Dernival Venâncio Ramos Junior e Marina Haizenreder Ertzoque, o foco é a compreensão e reinterpretação dos discursos dos viajantes José Vieira Couto de Magalhães e Joaquim de Almeida Leite Moraes acerca dos sertões goianos. Perscrutando nas narrativas de ambos a presença do argumento do colonizador, o artigo apresenta a imagem de um sertão tomado como território vazio e que estaria em busca de novos bandeirantes capazes de lhe retirar do atraso.

Em outra vertente, mas ainda preocupando-se com os discursos relativos ao bandeirantismo, o artigo em inglês “Heroes of the Sertão: the bandeirantes as a symbolic category for the study of Brazilian West colonization”, de Sandro Dutra e Silva, problematiza as representações sobre os bandeirantes como personagem ressignificado e de valor estratégico na política estatal da Marcha para o Oeste durante o Estado Novo, denotando a importância das reapropriações dos sentidos civilizadores produzidos sobre os sertões durante o século XX.

A questão discursiva é também objeto do artigo “Narrativas culturais dos sertões: atuação dos intelectuais na construção de narrativas historiográficas piauienses na emergência do século XX.” de Francisco Assis Nascimento. Nele a questão central é a contribuição dos intelectuais na construção de um modelo cultural que foi responsável por erigir uma identidade para os sertões piauienses. Na interpretação proposta pelo artigo o discurso desses intelectuais pode ser dividido em duas abordagens: de um lado, o enaltecimento das personagens locais e o registro dos mitos fundadores da história do Piauí; de outro lado, o sofrimento das populações indígenas durante o processo colonizador, surgindo desses dois caminhos o que é denominado no artigo de “piauiensidade”.

No artigo “Sertão, civilização e progresso: olhares sobre a fronteira Brasil-Paraguai-Argentina (1896-1937)”, de Jiani Fernando Langaro, os discursos analisados são de militares do Exército brasileiro e de autoridades do governo estadual paranaense. Nele, mais uma vez, se discute as imagens dos sertões, essa ampla e plural categoria, como um lugar inóspito e ao mesmo tempo destacam-se os variados significados que os discursos e narrativas analisadas imprimem à ideia recorrente de “progresso”.

Analisando os discursos da elite regional, o artigo “Diamantina e o estigma do sertão: o olhar das elites diamantinenses sobre a cidade e o sertão norte mineiro durante a Primeira República”, escrito por Carolina Paulino Alcântara e Anny Jackeline Torres Silveira, busca problematizar as representações da elite diamantinense acerca dos sertões de Diamantina dentro do processo de modernização brasileira. Segundo o artigo, esse projeto de modernização das elites diamantinenses, construído majoritariamente como um discurso, sedimentou-se no imaginário dos sertões mineiros com sentidos ambivalentes: de um lado surgem associados às imagens da miséria e do abandono e, de outro lado, às imagens da riqueza, e da proximidade da cidade de Diamantina com o litoral e com as representações de “civilização”.

Outro artigo que têm como lócus o sertão mineiro é “Ocupação e conflito nos sertões do Manoelburgo na Zona da Mata mineira”. Escrito por Vitória Fernanda Schettini de Andrade, esse artigo visa discutir o processo de ocupação dos referidos sertões a partir do século XVIII e, mais especificamente, os conflitos em torno da posse da terra desde a chegada do “homem branco”, conflitos estes que teriam caracterizado o processo de colonização dos sertões realizado pela Coroa.

Direcionado o olhar para um ponto pouco explorado pelos estudiosos dos sertões, o artigo “Da boca do sertão ao ouro verde: Indaiatuba, Itu e a evolução da Arquitetura rural paulista”, escrito por Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus, problematiza como os modos de morar na região – ponto de saída dos bandeirantes que iam aos sertões – influenciou a formação da arquitetura rural do interior paulista. Percorrendo os ciclos açucareiros e cafeeiros dessa região, o autor redesenha a paisagem arquitetônica que expressava o gosto e os interesses das elites econômicas da época.

O artigo “Composição demográfica domiciliar e (i)mobilidade no Seridó potiguar: vulnerabilidade à seca e estratégias domiciliares no sertão nordestino”, nos leva ao nordeste brasileiro. Nesse artigo, escrito por Isac Alves Correia e Ricardo Ojima, o foco é a migração nordestina em situações de seca e os modos por meio dos quais as famílias organizam a mobilidade de seus membros em função dos interesses tanto de partir do sertão como de a ele retornar. Nesse caso, as estratégias para migrar, assim como as para permanecer, trazem em sua estruturação toda uma carga simbólica do “ser sertanejo”.

No conjunto, esse dossiê diz respeito a esse “ser sertanejo” em múltiplas espacialidades, temporalidades e principalmente subjetividades. Nesse sentido, embora por vezes ele seja delimitado em uma cartografia precisa, no mais das vezes os sertões estão presentes em nós e, ainda que de forma difusa, ele está dentro de nós e o levamos pela vida, como escreveu Guimarães Rosa em “Grande Sertão Veredas”.

Notas

1. Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora do Curso de História da Universidade Federal do Tocantins.

2. Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Professora do Curso de História da Universidade Federal de Goiás.

3. MACHADO, Alcântara Machado. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1943.

4. Ver: AMADO, J. Região, sertão, nação. Estudos Históricos, vol.8, no 15, 1995, p.149.

5. ALENCAR, José de. O sertanejo. São Paulo: Ática, 1995.

6. TAUNAY, Visconde de. Inocência. São Paulo: Ática, 1988.

7. CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Folha de São Paulo, 2000.

Olivia Macedo Miranda Cormineiro1 – Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora do Curso de História da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected]

Sônia Maria de Magalhães2 – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Professora do Curso de História da Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]


CORMINEIRO, Olivia Macedo Miranda; MAGALHÃES, Sônia Maria de. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.11, n.1, jan / jul, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Amazônia, modernidade e desenvolvimento / Territórios & Fronteiras / 2018

A floresta e o bioma amazônico têm sido alvo de atenção por diferentes motivos desde o século XVI. As razões pelas quais ela desperta o fascínio e interesse entre aqueles que compreendem suas dimensões variam nesse tempo largo, mas não diminuem de intensidade. Desde o fato de a floresta vir a ser batizada em referência às Amazonas, mulheres guerreiras da mitologia grega, passando pelo Mapinguari, até o El Dorado, relacionado às inesgotáveis riquezas de que essa floresta seria portadora, chegamos ao começo do século XXI ainda buscando um entendimento mais apurado sobre essa região tão complexa. Cabe lembrar que desde o século XVI, em relação à Amazônia temos buscado anexar, dominar, unificar e não aproximar, cooperar e unir (SANTOS, 1997, p19). O Estado Brasileiro, nos últimos 40 anos, investiu cerca de 6 bilhões de dólares / ano na Amazônia Legal (COY, 2005), mantendo as propostas similares àquelas lançadas por Golbery do Couto e Silva nos anos 1950, ainda embasadas no espírito da Guerra Fria, que consideravam a Amazônia como área vulnerável, vazia, incivilizada. O Estado Brasileiro criou uma malha tecno-política com o propósito de facilitar a apropriação física e político-econômica do território: redes de circulação rodoviária, de telecomunicações, urbana e agro-industrial. Incentivos fiscais e créditos a juros baixos visaram subsidiar o capital, incentivos a migração para o povoamento da região e formação de um mercado de trabalho. Projetos de colonização e superposição do território federal sobre os estaduais, alimentados por investimentos púbicos, priorizaram o grande empresário, a grande propriedade, o grande capital, desconsiderando as comunidades locais, os saberes e culturas locais. Não é preciso dizer que isso levou a enormes injustiças e violências contra indígenas, garimpeiros, posseiros, seringueiros, com resultados que se manifestam ainda hoje, após décadas de avanços sobre a floresta. A Amazônia contém 61% do território nacional, com 12% da população do Brasil e 6,5% do PIB e a segunda pior concentração de renda do país em 2017 (ficando à frente apenas do Nordeste), com um índice Gini de 0,544 (a média nacional foi de 0,549. Os dados são do IBGE). Entre 1970 e 1996 a taxa de urbanização na região, foi a maior do país (BECKER in COY, 2005). A questão do avanço da fronteira econômica não apenas social e política, mas também profundamente sociocultural e ecológica. Quanto ao desmatamento, a área total da floresta devastada aumentou para 650 mil km2 em 2003, ou 15,9% da área coberta pela floresta tropical (6.947 km2 de corte raso somente em 2017, de acordo com INPE). A taxa média de desmatamento bruto entre 1978 e 1988 foi de 21 mil km2. Entre 1988 e 1998, 16 mil km2. Entre agosto de 2002 e agosto de 2003, 23.750 km2, sendo 40% no MT e 30% no PA. Entre agosto de 2003 e agosto de 2004 entre 23.100 e 24.000 km2 (KOHLHEP in COY 2005).

Feitas essas breves considerações iniciais, que sevem de contexto e justificativa para o presente dossiê, temos a satisfação de mencionar a iniciativa de reunir no Seminário Internacional sobre Identidades, Relacionamentos e Linguagens Emergentes na Amazônia, que aconteceu na Assembleia Legislativa de Mato Grosso em agosto de 2018 – parte das atividades da rede internacional de pesquisa Agroculturas coordenada pela Universidade Federal de Mato Grosso e Cardiff University (mais informações em: www.agrocultures.org) – membros da comunidade científica e sociedade civil, incluindo representantes dos movimentos sociais e dos grupos sociais que vivem na e da floresta. O objetivo básico foi romper com a visão modernista e positivista de que nosso conhecimento é capaz de dar conta da complexidade desse lugar, como algo estático e quantitativamente mensurável, visou também uma aproximação entre os pressupostos racionalistas que embasam a epistemologia acadêmica e que tem marcado de forma indelével nossos olhares sobre os caminhos para o desenvolvimento e a modernização, e outras formas de saber e conhecer vigentes entre os pequenos proprietários, ou posseiros, que vivem do auto sustento, entre os povos indígenas que, nas palavras de Martins (2018), detém um saber essencial: “As populações indígenas são nossa Biblioteca Nacional, dessa parte da informação etnológica e cultural. A informação está aqui. Porque o que ainda há para descobrir, na área de humanas, está no Brasil, eventualmente em algum outro país, mas aqui em abundância.”

Pretendeu-se, nas atividades do seminário, explorar um entendimento diferenciado do que chamamos fronteira agro-cultural e isso não será possível sem romper com o que Santos (1998), chamou de “territórios verticais”, em outras palavras, com o olhar de fora, portador de um entendimento estreito de ciência. Os resultados do evento apontaram para a necessidade do desenvolvimento de novas solidariedades, aproximando o global do local, o argumento acadêmico-reducionista do conhecimento empírico, vivido e criativo, propondo e defendendo um sistema de relações que atue em benefício do maior número de envolvidos, baseado nas possibilidades reais desse momento histórico e da diversidade geográfica. Por fim, pretendeu-se encontrar caminhos para outras modalidades de desenvolvimento e relacionamento social que, em lugar de traçar fronteiras separando uns dos outros, produza os efeitos acima mencionados, seja uma proposta de solidariedade orgânica, de aproximação dos diferentes saberes, que nos leve ao entendimento uns dos outros, caminho necessário para a construção de uma nação, esse fenômeno obscuro (MORIN, 1965, p.73), mas ainda necessário.

Como forma de registro desses resultados alcançados no Seminário Internacional, foi proposto pelos participantes a organização desse dossiê que ora se apresenta. Dentre os artigos, abrindo as discussões, temos o texto “O lugar dos historiadores no século XXI ou reflexões sobre o fim da historiografia”, uma reflexão teórica acerca do papel e das funções da História e dos historiadores nas sociedades ocidentais contemporâneas, que nessas primeiras décadas do século XXI, atravessam momentos de grande transformação. O autor afirma ser esse processo o resultado de um conjunto de mudanças que marcam o que se configura como a superação da Modernidade e afirma ainda que os historiadores estão perdendo a batalha pela construção da consciência histórica. Qual o lugar da História nesse processo (político) de construção de uma nova consciência ambiental? Como os historiadores podem contribuir para a aproximação (cultural) entre os povos da floresta e os habitantes dos grandes centros urbanos nacionais, para quem esse universo é desconhecido? No artigo intitulado “Centralidade da Fronteira: Ensaio sobre a Origem e Evolução de Fronteiras Socioespaciais” o autor trata acerca da produção de fronteiras como fundamentais para a circulação e acumulação de capital. Aborda a perenidade da emergência de novas fronteiras não apenas como demanda por minerais, terras ou outros recursos, ou porque as fronteiras representam novas oportunidades de mercado, mas crucialmente porque a fronteira opera como compensação pela saturação das relações capitalistas existentes nas áreas centrais. Ainda segundo o autor, na fronteira, a sequência convencional de tempo e espaço é suspensa e reconfigurada, permitindo a descompressão de tensões e contradições. Consequentemente, as fronteiras espaciais funcionam como um espelho, onde as características mais básicas e explícitas do capitalismo estão vivamente expostas e esse poderia ser um caminho viável para compreendermos a incorporação econômica e territorial da região Amazônica e às perspectivas de resistência política. Dirigindo nossas atenções para os primeiros séculos de ocupação europeia nessa região, temos o artigo “Política e administração na Amazônia colonial: regimentos e instruções para o governo das capitanias do Pará e do Maranhão (séculos XVII e XVIII)” que analisa três documentos importantes sobre a Amazônia: Regimento dos Capitães-mores do Pará (1669), no Regimento entregue ao capitão-mor Baltazar Fernandes (1682) e no Registro da instrução que ficou ao Governador do Maranhão (1751). Em todos, é possível entrever a organização político-administrativa e da governação nas capitanias do Pará e do Maranhão e algumas das suas dinâmicas administrativas internas, nos séculos XVII e XVIII. Saltando para o início do século XX, temos “Quando os seringueiros falam: o trabalho nos seringais e convocações para os combates pela posse do Acre no início do século XX.”. Nesse artigo o autor discute as falas dos seringueiros sobre como chegaram ao vale do rio Acre e de que maneira tomaram parte nas lutas pela posse dessas terras elaborando uma análise narrativa cujo fim é explorar um experimento da micro História. O autor fez uso das fichas historiográficas elaboradas pelo Instituto Histórico e Geográfico do Acre, que foram confrontadas com fontes complementares tais como relatórios governamentais, séries estatísticas e jornais. Segundo o autor, pretendeu-se ampliar os campos de investigações historiográficas sobre uma parte significativa da Amazônia brasileira. Avançando para meados do século XX, temos “Políticas públicas do governo federal no estado do Pará no tempo presente: da SPVEA à Nova República”, nesse trabalho o autor, fazendo uso de fontes oficiais, historiográficas e hemerográficas, traçou uma linha de análise que atravessou, praticamente, a segunda metade do século. Os estudos daquilo que o autor denomina de História regional, análise dos discursos e fontes orais, pretendem contribuir nos estudos sobre os impactos das políticas públicas do governo federal e empresas públicas e privadas no estado do Pará, desde a criação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), passando pelos governos militares (1964-1985) e chegando até a Nova República. As análises dos chamados projetos de colonização aparecem no artigo: “Terra da Promissão: recolonização e natureza na história amazônica.”. nele, o autor busca analisar os projetos de colonização que aconteceram durante o século XIX, em especial na região Bragantina do Pará e, mais recentemente, os projetos de infraestrutura do governo Médici (1969-74). Nessa abordagem comparativa foca-se a construção dos discursos usados nos projetos oficiais de colonização, nos relatos de cronistas, nas propagandas migratórias e em textos jornalísticos, com ênfase na ideia de desenvolvimento e pioneirismo. O artigo “Combates Cosmológicos pelo Direito do Rio na Amazônia Oriental”. Fazendo uso da História Oral, o autor colhe relatos dos moradores da Vila de Umarizal, município de Baião banhado pelo Rio Tocantins, e de moradores da Vila de Santa Isabel, no baixo Araguaia, município de Palestina do Pará, analisando as memórias desses camponeses, ribeirinhos e comunidades quilombolas, elaborando uma crítica cosmológica dos grandes projetos, bem como da produção de quadros compreensivos sobre os processos de ocupação e conformação territorial do Pará. Fechando o dossiê temos o artigo: Amazônia Meridional: Relações Sociedade e Meio ambiente. Impactos Econômicos, Sociais e Ambientais. Nele o autor dirige seu foco para uma análise que busca pontos possíveis de convergência entre aspectos desse complexo processo de reocupação da Amazônia que envolvem, por exemplo, as relações entre os migrantes e a floresta, a busca por uma forma de crescer economicamente e os conflitos entre essas atividades (agropecuárias), a floresta e seus moradores.

Nossa expectativa é a de que as reflexões aqui apresentadas proporcionem novas pesquisa, apontem caminhos para pensar a Amazônia e seu papel no desenvolvimento nacional, sem que isso venha a implicar em prejuízos aos seus moradores, destruição dos recursos naturais ali presentes e integração, entendida como relação horizontal e plural, entre os diferentes grupos de interesse envolvidos nesses processos. O debate sobre desenvolvimento, conservação ambiental, igualdade socioeconômica e política, entre outros temas, tem relevância universal e é certamente necessário em todos os cantos do mundo. Ainda mais que nesse começo de século vemos com inquietação a perda acelerada de diversas conquistas que pareciam consolidadas há décadas, tal como o respeito interpessoal, a diversidade sociocultural, bases mais sustentáveis de produção e consumo, e justiça social e ambiental. A violência crescente e as tendências eleitorais recentes suscitam profundas e desconfortáveis dúvidas sobre a direção do progresso e do jogo democrático. Nesse sentido, dadas suas particularidades e demandas específicas, mas também sua riqueza sociocultural e sócio ecológica, os processos em curso na Amazônia representam um capítulo muito importante da história e geografia contemporâneas. As populações da região percebem e articulam tal complexidade de modo muito agudo e perspicaz, fazendo uso de uma maravilhosa pluralidade linguística e narrativa. Portanto, cabe também aos pesquisadores abrirem olhos e ouvidos, conversar com todos ao redor, interrogar passado, presente e futuro, e fazer aquilo que deve ser sua tarefa primordial: repensar crítica e responsavelmente o mundo de forma a colaborar na sua transformação, buscando justiça e prosperidade plenas.

Referências

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COY, Martin e KOHLHEPP, Gerd (Coord). Amazônia Sustentável. Desenvolvimento sustentável entre políticas públicas, estratégias inovadoras e experiências locais. Rio de Janeiro / Tübinger: Garamond / Geographischen Instituts der Universität Tübinger, 2005.

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MORIN, E. L’introduction à la politique de l’homme. Seuil: Paris, 1965.

SANTOS, M.; SOUZA, M.A.; SCARLATO, F.C.; ARROYO, M. Fim de século e globalização. São Paulo: HUCITEC, 1997.

SANTOS, M.; SOUZA, M.A.; SILVEIRA, M.L. Território, globalização e fragmentação. São Paulo: HUCITEC, 1998.

Vitale Joanoni Neto – Professor do Departamento de História, coordenador do Programa de Pós-Graduação em História e coordenador do Núcleo de Pesquisa em História.

Antonio A. R. Ioris – Professor (senior lecturer) na Escola de Geografia e Planejamento e diretor do programa de pós-graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade de Cardiff, Reino Unido.


IORIS, Antonio A. R.; JOANONI NETO, Vitale. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.11, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Escravidão Moderna / Territórios & Fronteiras / 2017

A Afro-América – as zonas do Novo Mundo que mais contaram com o aporte demográfico de africanos escravizados – engloba uma diversidade enorme de países, com trajetórias históricas muito distintas. Desde a década de 1930, antropólogos e historiadores exploraram cuidadosamente, a partir de múltiplos referenciais teóricos e metodológicos, os fundamentos comuns e as divergências da herança africana para a formação de nações tão díspares como Brasil, Estados Unidos, Cuba, Haiti, Jamaica, Venezuela, Colômbia e Suriname, dentre outras. Ao mesmo tempo que se discutia o problema dos aportes e das recriações culturais, economistas, sociólogos e historiadores lançavam luz sobre o peso da escravidão africana nas Américas para o deslanche econômico do Velho Mundo, chamando atenção para a importância crucial do colonialismo e da economia escravista de plantation na formação da modernidade capitalista.

Os especialistas jamais chegaram a um consenso a respeito desses problemas. De todo modo, os avanços dos estudos sobre a escravidão na África e sobre o tráfico transatlântico de escravos rapidamente indicaram que, de todas as regiões do Novo Mundo, o Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados. Conforme os dados disponíveis no sitio www.slavevoyages.org, fruto de um notável esforço coletivo de historiadores de diversos países, cerca de 10 milhões e 700 mil escravos foram desembarcados nos portos americanos entre 1500 e 1866, dos quais cerca de 4 milhões e 864 mil chegaram ao Brasil. Portanto, o país importou, sozinho, 45% de todos os africanos forçados a migrar como escravos para as Américas. As colônias da América portuguesa estiveram entre as primeiras a receber escravos africanos, e o Império do Brasil foi o penúltimo país a abolir o infame comércio.

Até fins do século XVII, a colonização portuguesa de suas possessões na América, fundada de início na escravidão indígena e, em sequência, na escravidão africana, limitara-se ao litoral, com a exploração de zonas açucareiras dispersas entre si – Pernambuco e Bahia, e, em escala muito menor, Rio de Janeiro e São Vicente. Dado o custo do frete para uma mercadoria de volume considerável e relativamente perecível, os engenhos de açúcar não tinham como se afastar dos portos atlânticos. As únicas exceções de interiorização econômica (a pecuária no Vale do Rio São Francisco e os raids de escravização indígena) eram atividades complementares à economia açucareira, sendo ambas fundadas em uma mobilidade intrínseca.

No açúcar, na pecuária e no infame “bandeirantismo” paulista, a escravidão constituía a relação básica de trabalho. As descobertas de ouro no interior da América portuguesa a partir da década de 1690, muito além das fronteiras estabelecidas em Tordesilhas, seguiram esse padrão estabelecido desde o século XVI, conferindo-lhe, no entanto, nova substância e caráter. Em primeiro lugar, por uma notável intensificação no tráfico transatlântico de escravos. Ao longo de todo o século XVII, haviam sido desembarcados cerca de 784.000 africanos escravizados para trabalhar no complexo econômico articulado em torno do açúcar. Somente na primeira metade do século XVIII, sob o impacto direto da nova economia aurífera, chegaram ao Brasil quase 900.000 africanos escravizados; somados aos desembarques da segunda metade do século, ao longo dos setecentos o Brasil importou cerca de 2 milhões de escravos africanos.

Em segundo lugar, pelo espraiamento espacial da escravidão negra. O ouro, como uma mercadoria com altíssimo valor agregado, justificava economicamente sua extração em lugares muito afastados do litoral e completamente despovoados. Mas, em pouco tempo, as demandas de consumo básico e de luxo provocadas pelo adensamento populacional nos centros urbanos dispersos de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso ativaram a economia interna em lugares até então completamente apartados. Do Rio Grande do Sul ao Piauí, com mulas para o transporte interno e charque para o consumo humano, a pecuária articulou-se à extração de ouro. Rotas de escoamento atrelaram o Mato Grosso a Belém do Grão-Pará, cruzando os rios do Vale Amazônico. São Paulo e o sul de Minas Gerais tornaram-se os celeiros das cidades e vilas do ouro, e os portos do Rio de Janeiro e da Bahia converteram-se em portas de entrada atlântica de mercadorias importadas para o ouro – a principal das quais, evidentemente, eram os africanos escravizados.

Em terceiro lugar, esse espraiamento espacial da escravidão negra na América portuguesa significou, também, seu espraiamento pelo tecido social. Dados os custos relativamente baixos da “mercadoria” escrava, propiciada pelo fato de o tráfico transatlântico ser operado basicamente a partir dos portos brasileiros, todos os setores livres da América portuguesa – o que incluía o número crescente de afrodescendentes libertos ou nascidos livres – passaram a medir sua posição no espectro social pela propriedade de cativos. Noutros termos, a posse de escravos tornou-se a medida da pobreza e da riqueza no Brasil.

No momento da independência, essas práticas compartilhadas de escravização, criadas ao longo do século precedente e presentes de modo relativamente uniforme no Rio Grande do Sul, em São Paulo, em Minas Gerais, nas vilas auríferas de Goiás e Mato Grosso, no Vale do Rio São Francisco, no Vale Amazônico, no Maranhão, no litoral nordestino e nos grandes portos negreiros do Rio de Janeiro, Salvador e Recife serviram de solda para a construção da unidade nacional. Em um duplo sentido: por um lado, o fato de a posse de escravos ser disseminada pelos diversos estratos sociais levou a que os sujeitos sociais livres do Brasil, fossem brancos nascidos em Portugal ou no Brasil, fossem afrodescendentes negros ou mulatos, se vissem como partícipes de um conjunto de interesses unificados em torno da perpetuação da escravidão africana. Por outro lado, dada essa base escravista comum, as forças políticas regionais brasileiras tenderam muito mais para a convergência do que para a divergência, a despeito de todas as manifestações de contestação ao poder central, verificadas em especial no período de 1835 a 1845.

No período pós-independência, isto é, nos vinte e oito anos compreendidos entre 1822 e 1850, foram importados cerca de um quarto de todos os africanos que aqui chegaram durante três séculos e meio. Noutras palavras, no tempo em que o Brasil como nação soberana foi responsável direto pela gestão de seus negócios negreiros, importou-se proporcionalmente mais africanos escravizados do que em qualquer outra região do Novo Mundo, em qualquer outra época. Daí a validade da proposta analítica de uma “segunda escravidão” para descrever e analisar o novo conteúdo das relações escravistas brasileiras no século XIX. Como diversos historiadores têm demonstrado, três feixes de forças foram estruturantes para sua configuração: a novidade da forma institucional do Estado nacional, a geocultura do liberalismo centrista e os novos padrões econômicos surgidos com a integração de mercados da era do capitalismo industrial.

A diversidade espaço-temporal que marcou a trajetória histórica da escravidão brasileira colonial e nacional, bem como seus legados para o presente, constituem o objeto deste dossiê da Territórios e Fronteiras. Seus artigos apresentam uma pluralidade de linguagens teóricas para dar conta de objetos relativos à demografia histórica, à micro-história, à história regional, ao tráfico transatlântico de escravos, à degradação do trabalho nos séculos XX e XXI. De formas variadas, eles procuram enfrentar o desafio de articular eventos locais a processos globais, lançando luz sobre as forças mais amplas que permitiram a reprodução e a recriação da escravidão brasileira no tempo, no entanto com o emprego de lentes que não desconsideram as contingências de terreno enfrentadas pelos sujeitos históricos.

Dentre os temas aqui abordados, encontram-se as relações entre o tráfico transatlântico de escravos e as possibilidades de reprodução vegetativa da população escravizada; a reconfiguração das práticas do tráfico negreiro na África na passagem do século XVIII para o XIX; a disseminação social da propriedade escrava como condição de estabilidade do sistema escravista; a prática relativamente de escravos se apresentarem como proprietários escravistas; a conversão de colônias originalmente concebidas como zonas de trabalho livre em fronteiras mercantis da produção escravista de café; a precarização das relações de trabalho nas fronteiras agrícolas do século XX como parte das heranças da escravidão. Trata-se, em resumo, de um dossiê que oferece uma importante contribuição para a cada vez mais pujante historiografia sobre a escravidão no Brasil.

Rafael Marquese – Professor doutor do Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. Doutor em História pela Universidade de São Paulo e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: [email protected]

Dale Tomich – Professor de História e Sociologia da Universidade de Binghamton, Estados Unidos, além de diretor do Fernand Braudel Center na mesma instituição. Autor de, entre outros, Slavery in the Circuit Sugar: Martinique in the World Economy (Johns Hopkins University Press, 1990), e Pelo prisma da escravidão (EDUSP, 2011). E-mail: [email protected]


MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.10, n.1, jan / jul, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Gênero, feminismos e relações de poder / Territórios & Fronteiras / 2017

Organizado a partir dos eixos temáticos gênero, feminismos e relações de poder, o presente dossiê tem como orientação aglutinar e divulgar estudos sobre as questões de gênero articuladas à crítica feminista e aos jogos e relações de poder que informam sua construção e naturalização no cotidiano social. O propósito é integrar e ampliar o contemporâneo – e até mesmo acirrado – debate acerca de nossa localização no mundo como pessoas produzidas no / pelo gênero e, ao mesmo tempo, produtoras dele.

A interseccionalidade do gênero com outras dimensões da vida social como raça, etnia, classe, religião, escolaridade, sexualidade, ocupação, região e geração, foram perspectivas e possibilidades abertas às abordagens dos temas. Além disso, definiu-se intencional abertura para sua inscrição em diferentes recortes espaciais e temporais, no que tange ao Brasil e à América Latina. Acrescente-se, nessa ampliação do espectro temático, a inclusão dos feminismos, suas ações e seu aporte teórico como possíveis lentes e chaves de leitura para se apreender a historicidade da dimensão do gênero nas relações sociais. Afinal, foi justamente a crítica feminista que mostrou que os papéis sociais são construídos, que o próprio discurso da “natureza” dos sexos é um artifício e um exercício de poder. E exatamente por isso nos textos do dossiê é possível envontrar não apenas a interseccionalidade operante, mas também uma diversidade de questões e reflexões em torno dos conceitos de poder, violência, gênero, igualdade / diferença e cidadania.

Nessa direção, abre o dossiê Pós-cidadania feminina, artigo em que Ana Maria Colling exercita a crítica feminista ao fazer uma abordagem histórica do conceito ‘cidadania’. Nele, ela se detém na acepção moderna do conceito, a fim de problematizar os dispositivos universais do liberalismo e da República e também as lutas históricas das mulheres pela conquista de direitos civis, políticos e sociais. Ao interrogar as matrizes discursivas – políticas, jurídicas, morais – que fundamentam aquelas representações sociais, inclusive as do feminino, a autora discute as práticas de silenciamento, violência e exclusão produzidas nas teias de construtos e sentidos articulados na sociedade moderna.

A Ditadura Civil-Militar brasileira é o cenário histórico onde circulam sujeitos-objetos do artigo seguinte, Mulheres que foram à luta: relações de gênero e violência na Ditadura Civil Militar brasileira (1964-1985). Nele, Clerismar Aparecido Longo e Eloísa Pereira Barroso discutem as experiências de mulheres militantes de esquerda que lutaram contra a ditadura civil-militar brasileira de 1964. Baseado em relatos colhidos pela Comissão Nacional da verdade, a partir de memórias subtraídas dos depoimentos, o texto assinala como determinadas relações vivenciadas por essas mulheres com os agentes repressivos nos órgãos do Estado ditatorial estão vincadas pelas demarcações e pela violência de gênero. Trata-se de uma interessante análise de representações do feminino que possibilita conhecer imagens, papéis, valores, normas específicas e parte significativa do imaginário androcêntrico em um passado recente de nossa experiência histórica.

O mesmo espaço e temporalidade, agora tomados através da sintaxe do cinema, como fonte da história, são alvos do artigo de Alcilene Cavalcante Oliveira, A violência de gênero durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) sob as lentes de Ozualdo Candeias. Inspirado na peça de teatro Milagre na Cela (1975), de Jorge Andrade, o longa-metragem de ficção, A Freira e a tortura (1983), mostra a prisão e a tortura de uma freira e a análise proposta no artigo dele se apropria para discutir um tema pouco trabalhado na historiografia brasileira: a violência política e de gênero contra religiosas durante o regime militar no Brasil.

Violência é também tema do artigo seguinte, de Vera Lúcia Puga e Michelle Silva Borges, Violência de Gênero, Justiça Criminal e ressignificações feministas. O ensaio fornece contribuições relevantes acerca dos avanços das práticas feministas, problematizando as incorporações mais ou menos críticas, as negociações e sobretudo as acomodações políticas evidenciadas nas leis, nos discursos da justiça criminal e nas práticas de punição. Em que pese a pressão constante dos movimentos feministas no enfrentamento da questão da violência social marcada pelo gênero, as autoras sugerem que muitas manobras na / da cultura androcêntrica, entre elas a institucionalização do patriarcado e das instâncias cotidianas de poder, exigem a renovação das lutas e a construção dialógica de novos processos de ação e subjetivação das mulheres.

Buscando uma alternativa ou estratégias para enfrentar e superar um cotidiano de violência e desigualdade social, para a autora, Cintia Lima Crescêncio, o humor e o riso produzido por cartunistas mulheres configuram uma maneira singular de ser e estar no mundo. Partindo desse debate, no artigo “Tá rindo de quê?” ou Os limites da teoria Humor Gráfico na Imprensa Feminista do Cone Sul, ela propõe uma reflexão sobre a importância dos discursos feministas e as dificuldades da teoria em explicar o humor gráfico contra-hegemônico produzido por mulheres e publicado em jornais feministas do Brasil, Argentina e Uruguai entre os anos 1970 e 1980.

No esforço de atravessar arenas históricas e historiográficas da violência, agora acerca do Brasil do século XIX, Fabiana Francisca Macena produz uma instigante reflexão a partir da análise de documentos sobre a escravidão no artigo Mulheres cativas nas Minas oitocentistas: experiências de liberdade. Ali, ela destaca crimes perpetrados por cativas da província de Minas Gerais, na segunda metade daquele século, bem como suas articulações e demandas junto à justiça na tentativa de alcançar a liberdade. As fontes, sob essa análise, revelam experiências que sublinham como aquelas cativas, mulheres pobres, negras e pardas, subverteram as imagens da passividade, de simples coadjuvantes ante a violência do cativeiro, e produziram, a partir de suas práticas políticas, efeitos abolicionistas, enfraquecendo a instituição da escravidão.

A questão da violência, da resistência e da exclusão, com base na interseccionalidade de categorias da identidade, reaparece em Bernardina Rich (1872- 1942): uma mulher negra no enfrentamento do racismo em Mato Grosso. O artigo de Ana Maria Marques e Nailza da Costa Barbosa Gomes, construído sobre fontes históricas pouco exploradas, ilumina e redescreve a trajetória de uma mulher negra, cuiabana, para problematizar os marcadores racistas, classistas, sexistas da sociedade mato-grossense do pós-abolição. Através de pesquisa criteriosa, as autoras refletem sobre a experiência da professora em meio às lutas pela emancipação feminina, pelo voto e escolarização das mulheres e às evidências do crescimento quantitativo das mulheres no mercado de trabalho remunerado. Assim, ao retomar criticamente aspectos dessa experiência significativa em relação àquele momento da educação brasileira, repleto de tensões, negociações e conflitos, o artigo desvela o processo da divisão sexual do trabalho docente e das lutas históricas de mulheres, negras e / ou brancas em busca de autonomia, reconhecimento e respeito na / da sociedade brasileira.

O artigo seguinte é um exemplar da crítica feminista sobre a literatura negrobrasileira. Gênero, Feminismo, Poder e Resistência na Contística, artigo de Rubenil da Silva Oliveira, Benedito Ubiratan de Sousa Pinheiro Júnior e Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões, examina a apropriação das categorias conceituais – gênero, feminismo, poder e resistência na contística de autoria negra feminina. Nessa aventura, eles se apropriam dos contos – O tapete voador e Nkala: um relato de bravura, da escritora Cristiane Sobral, que fazem parte do livro O tapete voador (2016), para analisá-los à luz de abordagens teóricas que discutem aquelas categorias, e refletem como tais textos literários abarcam o empoderamento feminino, já que as protagonistas resistem e não se deixam dominar, mesmo que isso lhes custe o emprego ou a vida.

O último artigo do dossiê é Os homens também choram: leituras de masculinidade na arte funerária a partir do caso do pranteador, de Maristela Carneiro. Nele, a autora explora o ato de prantear do homem por meio da abordagem de um exemplar escultórico proveniente da arte funerária paulistana: a obra Lenda Grega, parte do complexo tumular da Família Trevisioli, concebido em 1920 pelo escultor Nicola Rollo (1889-1970) e instalado no Cemitério da Consolação, em São Paulo. Segundo Carneiro, o sentido da morte é tão inescrutável para aqueles que ficam que a dor e o lamento, muitas vezes, são as únicas manifestações possíveis: o pranteador é escolhido como manifestação destes sentimentos. Também chamados pleurants, colocam-se em um lócus particular e transitório, entre a vida e morte. Diante dos túmulos, debruçados em pranteio, estas figuras sinalizam a morte, e tal sensibilidade modelada na arte embaralha e tensiona as representações de masculinidade habituais.

Reunidos no dossiê, embora em pequena amostragem, os artigos são reveladores do amplo espectro de objetos, problemas e abordagens possíveis, que se fazem necessárias, até mesmo urgentes em nossos dias, e exprimem o vigor e a fertilidade analítica da caixa de ferramentas das teorias feministas. Uma característica que deve ser destacada no dossiê é que vários textos aqui apresentados transitam nos caminhos da análise da cultura e da arte, isto é, no campo das representações modeladas na literatura, no cinema e na escultura.

Com efeito, o conjunto apresenta artigos elaborados sob diferentes perspectivas e enfoques, que exibem documentações e estratégias metodológicas próprias, contemplando diferentes temáticas, espacialidades e temporalidades, com um denominador comum: todos têm o gênero, os feminismos e o poder como parâmetros que articulam a narrativa e a (des)construção analítica. Nesta edição, portanto, será possível encontrar histórias de mulheres e de homens figuradas em diferentes escritas, mulheres que lutam, que escrevem, que vivenciam violências, e homens que choram. Também, encontrar questionamentos e críticas aos conceitos, os quais nos permitirão pensar na contribuição destes textos aos estudos de gênero, dos feminismos e das relações de poder.

Esperamos que as / os leitoras / es do dossiê possam desfrutar de tais contribuições e, sobretudo, a partir dessas elaborações, possam discutir, adensar e fomentar o debate que ainda se apresenta relevante e (cada dia mais evidentemente) incontornável para construir uma cultura de igualdade entre os sexos e de respeito às diferenças.

Boa leitura!

Blanca Susana Vega Martínez – Doutora em Humanidades pela Universidad Autónoma de Zacatecas. Professora e pesquisadora na Faculdade de Psicologia e no Instituto de Ciências Educativas da Universidad Autonóma de San Luís Potosí. E-mail: [email protected]

Diva do Couto Gontijo Muniz – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro – Doutora em História pela Universidade de Brasília. Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected]


MARTÍNEZ, Blanca Susana Vega; MUNIZ, Diva do Couto Gontijo; CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.10, n.2, dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Franciscanos e franciscanismos: origens e difusão / Territórios & Fronteiras / 2016

Da solidão dos claustros ao convívio nas cidades; do interesse pelo mistério de Deus à imitação de Cristo, é com esses deslocamentos que a vida religiosa se redefine no século XIII e traz à cena a figura de Francisco, religioso que busca sua aproximação com Deus já não por meio da clausura, como seus antecessores, mas por meio da atuação no mundo e do contato com os seus semelhantes. Desvinculando-se do monaquismo que procurou a mediação com o além no interior dos muros dos mosteiros e sob rígidas regras de contenção para combater as tentações mundanas, os irmãos franciscanos buscaram a inspiração de Cristo e dos apóstolos e passaram a se conduzir por um ideal evangélico, ornado com o da pobreza, que se traduziu em uma vida ascética, consagrada à oração e à caridade.

O compromisso de anúncio do Evangelho, a ser vivido em fraternidade, e a pregação da penitência como forma de aproximação a Deus, inspirada mais em um testemunho do que em uma doutrina bem delineada, foram alguns dos fatores decisivos que deram origem a uma nova predicação e contribuíram para fortalecer a unidade Cristã no século XIII, quando os movimentos heréticos ameaçavam tal unidade. A nova espiritualidade que então se configura ganha força por estar articulada à moral, ou seja, por estar orientada pela prática de fazer o bem, tendo sempre em vista a bem-aventurança eterna.

A busca de coerência entre crer e viver, vale destacar, foi uma das principais marcas de um movimento que mais tarde veio a ser chamado de franciscanismo. Sustentado na mediação de Cristo, este movimento traçou um caminho a ser percorrido que era ornado pelas virtudes teologais, fé, esperança e caridade. Foi este o emaranhado que serviu de esteio à moral franciscana e deu a forma do itinerário para a transcendência, sempre na esteira do modelo pleno das virtudes: Cristo.

É a partir desses pilares que aos poucos se vai delineando uma moral amparada na ideia de fraternidade, ou seja, uma moral da solidariedade, porque fundada em ideias como o de que o homem, por possuir uma dimensão ética, social e religiosa que o distingue dos animais e o identifica, não se basta a si e precisa essencialmente do outro. A vida em fraternidade, pregada por Francisco, e retomada pelos seus seguidores, é assim definida como o caminho seguro rumo à plenitude; razão pela qual a caridade se anuncia como o eixo dessa moral, em que o amor a Deus que a inspira ganha forma e materialidade no amor ao próximo.

Uma teologia afetiva e prática, em que a caridade, porque vincula as almas ao seu fim último, é a forma da virtude – como sintetiza Boaventura –, bem como o instrumento para três ações rumo à perfeição moral: descartar o mal, praticar o bem e sofrer as adversidades. A este núcleo dessa moral se junta a justiça e a paz. A primeira garantidora da ordem, da equidade e do culto a Deus; a segunda, entendida como fruto do senhorio de Cristo.

Tal caráter inovador e ao mesmo tempo simples e prático, pode-se dizer, foi o que garantiu uma certa longevidade a uma ordem que se constituiu sem um programa bem definido, mas cuja mensagem, dada a sua acessibilidade, teve uma longa fortuna, tendo atravessado os séculos e se deslocado da Europa para os territórios conquistados, atualizando seus princípios por meio de uma expansão não apenas econômica ou religiosa, mas também cultural.

Representantes letrados da lei, do rei e da fé, os missionários franciscanos atuaram como cronistas do novo mundo, mas também como ordenadores, senão juízes, dos interesses monárquicos nos quatro cantos do mundo. No seu processo de expansão por várias partes do mundo, denunciaram a idolatria como um dos principais pecados do homem selvagem, fosse ele índio, amarelo ou negro. Dessa comparação surgiram ainda os primeiros discursos definindo e legitimando a noção de raça e de racismo.

À luz do púlpito ou nas sombras do confessionário, cultivaram, nas novas terras do orbe, as letras e o conhecimento como um distintivo social que garantia sua afirmação e dos valores cristãos – identificados com os de civilização – nas franjas do mundo. Apesar dos novos desafios, é possível dizer que mantiveram algo da vocação que os distinguiu, os votos de pobreza e vida simples, notáveis na identificação com a população local e no reconhecimento da natureza como prova da afeição divina pela terra nova que, assim como a boa nova germinada na Umbria, possibilitava a utopia de uma cristandade reinventada.

Neste dossiê, as origens do culto franciscano e a propagação de seu evangelho estão em foco. Nosso esforço foi o de reunir estudos significativos sobre o conteúdo prático-teológico do franciscanismo em seus desdobramentos. Os textos originalmente escritos em italiano serão disponibilizados com tradução para o português, realizada por Marta Zanini, mestre em Letras pela Universidade Federal de Goiás).

O leitor terá a oportunidade de conhecer, a partir do texto de abertura de Grado Giovani Merlo, presidente da Società Internacionale di Studi Francescani, a releitura do célebre testamento de Francisco de Assis, em que sua experiência religiosa como memória cristã é trazida à tona. Na sequência, Stefano Brufani, primeiro secretário da Società internazionale di Studi francescani e professor de História Medieval na Università degli Studi di Perugia, traz-nos um estudo sobre os desdobramentos da fraternidade fundada por Francisco, esmiuçando as linhas de pensamento que lhe garantiram vida longa e fecunda.

Os estudos que se seguem abordam aspectos específicos da mensagem e do movimento. Temos, no conjunto, a oportunidade de conhecer mais sobre a relação entre Francisco e os animais como caminho para pensar como o seu poder sobre eles era fruto das suas elevadas virtudes, a serem modelares para os fieis no texto de Rafael Afonso Gonçalves, doutor pela UNESP / Franca.

Com “As primeiras clarissas portuguesas e suas vivências cotidianas”, de Teresinha Maria Duarte, da Universidade Federal de Goiás, ficamos igualmente a saber sobre a versão feminina da ordem em sua configuração portuguesa e vivências cotidianas ao longo do século XIII. E não só. Um dos estudos explora, ainda, um ângulo pouco comum, o dos desvios e distorções do papel dos franciscanos, dada a sua participação na Inquisição. Eis o trabalho de Marina Benedetti, da Università degli studi di Milano, com o texto “Frades Menores e Inquisição”.

Por fim, o leitor terá a oportunidade de conhecer um pouco sobre a iconografia franciscana presente no mais antigo dos quatro códices da obra Franceschina, composta no século XV por Giacomo Oddi, no “Miniaturas franciscanas: a construção da imagem e herança de Francisco de Assis na ‘Franceschina’ (1474)” de Angelita Marques Visalli, da Universidade Estadual de Londrina.

Bem como sobre a tipologia e importância dos sermões franciscanos nos idos de um Portugal Moderno em “Entre Religião e Política: a Parenese Seiscentista de Fr. Amador da Conceição” de Isabel Drumond Braga, da Universidade de Lisboa.

O dossiê conta, ainda, com uma seleção de imagens, preparada por Roger Brunório, OFM, diretor do Setor de Bens Culturais da Província Imaculada Conceição – uma das maiores províncias franciscanas do país –, que documenta sua participação nas artes, na ciência e na educação no nosso país.

Boa leitura!

As organizadoras.

Maria Renata da Cruz Duran – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP / Franca). Professora adjunta de História Moderna e Contemporânea na Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected]

Susani Silveira Lemos França – Doutora em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa. Professora livre-docente em História Medieval da Universidade Estadual Paulista (UNESP / Franca). E-mail: [email protected]


DURAN, Maria Renata da Cruz; FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.9, n.1, jan / jun, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Revistas modernistas circulações, representações e a questão transnacional / Territórios & Fronteiras / 2016

Artefatos culturais expressando a temporalidade não contemplada pelo livro nem pelo jornal, as revistas revelaram-se dinâmicos laboratórios e privilegiados observatórios de ideias em que certos grupos sociais tomaram a palavra pública. Muitas delas constituíram-se em verdadeiras comunidades de pensamento e abriram canais inéditos de comunicação registrando a vida cotidiana, os debates em ebulição ao mesmo tempo em que divulgavam imaginários e práticas sociais.

No presente dossiê, discutiremos a circulação de culturas e mediadores como difusores de modelos, ideias, valores, percepções e sensibilidades sociais a partir das revistas modernistas. O contexto de discussão é o da modernidade e do modernismo, compreendido pelo século XIX até meados da década de 1960. É nesta conjuntura que intelectuais e artistas efetuaram de forma sistemática um balanço crítico das tradições visando a implementação de novos projetos estéticos e sociais.

Estudos sobre revistas, tratadas na sua materialidade ou como polo agregador de intelectuais e ideias, vêm ganhando crescente importância no campo da história da imprensa. Não se dissocia o entendimento do objeto revista e a revista como fonte da pesquisa histórica. Um e outro se explicam a partir desta relação dialógica. Em determinados contextos históricos, essa iluminação recíproca tornou-se particularmente notória, como ocorreu ao longo da instauração da cultura da modernidade.

Sob a perspectiva das abordagens que consideram tais suportes importantes para o estudo da circulação nacional e transnacional de ideias e modelos editoriais, temos artigos como os de Diana Cooper-Richet que abre o dossiê com um estudo sobre o que chamou révolution révuiste (revolução revisteira), no âmago da qual situa a emergência das revistas modernistas durante o século XIX. A autora evoca as matrizes inglesas das revistas literárias francesas, que são usadas e francamente reivindicadas como símbolo de prestígio. Traz nomes como os de Galignani, um angloitaliano radicado em Paris, que em 1807 publica nesta cidade The Monthly Repertory of English Literature dando início a um ciclo de aller-retour que se fechará em fins do mesmo século quando é uma revista francesa, a Revue des Deux Mondes, que serve de inspiração aos ingleses.

Sob a mesma ótica, a presença de um espaço midiático francófono em São Paulo e Rio de Janeiro da virada do século XIX para o XX é objeto de Valéria Guimarães. Concentrando sua análise na esfera da circulação e publicação de periódicos em língua francesa, trabalha catálogos e registros de livreiros e bibliotecários e a partir destas fontes constrói uma complexa cartografia das relações cruzadas França / Brasil que incidiriam na formação da comunidade de leitores. A diversidade de títulos do periodismo francês no Brasil, em amplo diálogo com a produção nacional, produziria distintos imaginários da modernidade e do modernismo.

É também no quadro dessas discussões, mas com o recorte no século XX do pós-primeira Guerra Mundial, que Monica Pimenta Velloso analisa a circulação de algumas publicações da cultura modernista francófona no cenário internacional, tomando como referência a revista belga Lumière (1919 / 1923), publicada em Anvers, dirigida por Roger Avermaete e que contou com a participação do brasileiro Sérgio Milliet, então radicado na Bélgica. Após o conflito, acentuou-se a necessidade de redefinir o lugar do país no contexto internacional das ideias e as revistas literárias foram vitais nesta função. Milliet foi importante mediador na divulgação do modernismo brasileiro para estrangeiros e vice-versa. Constituída em meio a uma densa rede de intelectuais de diversas origens, Lumière deu visibilidade e legitimidade a realidades desconhecidas ou ignoradas pelo cânone ocidental.

No que tange às abordagens voltadas ao conteúdo, Tania Regina de Luca destaca como o inquérito sobre os rumos da literatura brasileira levado a cabo no primeiro semestre de 1940 pela Revista do Brasil (1938-1943) é fonte de análise das especificidades do movimento modernista, circunscrito às condições particulares do Estado Novo. Quando questionados sobre os efeitos da cultura estrangeira no campo artístico nacional, os entrevistados fornecem pistas instigantes sobre as disputas de auto-representação dos grupos surgidos no seio do modernismo brasileiro.

Marcelo Robson Téo, por sua vez, explora este movimento artístico tanto pelo diálogo com as vanguardas europeias quanto pela via do nacionalismo, da música e do complexo sensorial fatores que exerceram papéis específicos no processo de invenção, tradução ou reelaboração estético-cultural. O autor analisa algumas das propostas de atualização estética da “inteligência nacional” nos escritos de Mário de Andrade a partir da leitura de revistas modernistas como a L’Esprit Nouveau. O intuito é compreender como, através da crítica, procurou vincular o país ao cenário da modernidade, tendo o universo sensorial como motivo e a arte como instrumento de renovação e divulgação.

Pedro Duarte de Andrade busca demonstrar que a publicação de revistas pelos movimentos de vanguarda na época moderna não foi apenas uma circunstância eventual, mas se devia à busca de circulação veloz de ideias em uma nova linguagem com autoconsciência histórica. Para isso, se vale dos referenciais analíticos do romantismo alemão no fim do século XVIII e do modernismo brasileiro no começo do século XX, por meio dos quais se pode concluir que o suporte material das revistas foi ao encontro do experimentalismo estético e da vontade polêmica dos posicionamentos da vanguarda cultural.

Ao rever alguns cânones da historiografia modernista, Aldrin Moura de Figueiredo explora o período que se estende de 1900 a 1929 e coloca em destaque a Revista Belém Nova. Defende a constituição de um modernismo amazônico e problematiza a dupla relação com as vanguardas nacionais / internacionais. Contatos com a Europa também se processavam de forma autônoma ao movimento paulista de 1922. Novas rotas de diálogo com referências alógenas incorporaram Madrid, Barcelona e Paris nesse ciclo de trocas culturais e possibilitaram conjugar ultraísmo e futurismo. O autor ressalta as especificidades de uma estética que incluía traços do repertório indígena e conferia sentidos transgressores locais à vocábulos das tradições universais.

O viés de um modernismo transgressor também é discutido por Avelino Romero por meio da revista La canción Moderna de Buenos Aires (1928). Identifica na publicação valores do que chamou de “cultura tanguera”, dotada de uma visão crítico satírica da cultura oficial, preferindo repertórios populares marginais e suburbanos. Capaz de elaborar criativamente traços do vanguardismo e práticas da comercialização musical, a revista marca-se pela circulação intensa das ideias. O autor defende a presença de uma vertente política na cultura do tango expressa através de um anarquismo lírico que se posiciona frente ao projeto modernizador.

Ao analisar uma série de cartas enviadas de diversas cidades europeias para a conhecida revista norte-americana Partisan Review, entre 1938 e meados da década de 1950, Matheus Cardoso Silva traz à tona um moderno epistolário. Ele insere o magazine no internacionalismo político da esquerda nova-iorquina de então, rumo ao internacionalismo literário, e trabalha com a emergência de um cenário que mescla guerra, modernismo e marxismo como parte do processo de busca de uma nova identidade para o magazine.

Joëlle Rouchou, por meio da revista Diretrizes, analisa a importância e o papel dos editorialistas na produção do discurso da imprensa. Lançada em maio de 1938, pelo intelectual conservador Azevedo Amaral, sete meses depois, esse mesmo periódico, então sob a direção Samuel Wainer, tomou uma linha progressista, nacionalista e de oposição a Vargas até o fim de sua publicação em 1944 o que redimensionou sua participação no meio editorial e intelectual brasileiro. Em meio a um cenário internacional e nacional conturbado, em que as bases do autoritarismo emergiram em toda sua força em um movimento de alcance mundial que ultrapassou fronteiras, a Diretrizes de Wainer constituiu-se em espaço de resistência ao totalitarismo em geral e ao Estado Novo em particular, além de ter sido importante plataforma de divulgação da cultura e dos ideais progressistas.

Para fechar o dossiê, um periódico singular, A Casa (1923-1940), revista voltada à difusão dos conceitos da arquitetura moderna, é analisado por Marize Malta que estabelece uma análise crítica da visualidade e conteúdo desse periódico, procurando inquirir o modo como as ideias de modernidade foram apresentadas e negociadas, tendo o “lar” e seus ambientes como lugares privilegiados de discussão. Discursos visuais e textuais eram ofertados ao leitor como construtores de sentido na condução de um olhar para o mundo dos objetos e da decoração. A autora opõe o universo da interioridade e do indivíduo, caracterizado pelo “lar”, à dimensão exógena à casa e mais ampla do internacionalismo característico das tendências modernistas, relação dada, assim, em suas dimensões simbólicas as mais cotidianas e prosaicas.

A diversidade das contribuições aqui apresentadas joga luz na história do periodismo e dos movimentos intelectuais dos últimos dois séculos. O tema é oportuno em momento em que os meios de comunicação ganham a centralidade do debate público. Nada mais adequado que se debruçar sobre questões que podem melhor esclarecer como foi possível formar, por meio das revistas modernistas, um pensamento sociocultural que está na base do projeto de nação no século XX, com desdobramentos no século XXI ainda não definidos e, por isso mesmo, suscetíveis de debate.

Boa leitura!

Os organizadores.

Monica Pimenta Velloso – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). Bolsista de Produtividade (CNPq). E-mail: [email protected]

Valéria Guimarães – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP / Franca). Coordena os projetos “Imprensa Francesa Publicada no Brasil (1854-1924)” (Auxílio Regular / FAPESP) e “TRANSFOPRESS Brasil – Grupo de Estudos da Imprensa em língua estrangeira no Brasil” (Edital Universal / CNPq). E-mail: [email protected]

Aldrin Moura de Figueiredo – Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista de Produtividade (CNPq). E-mail: [email protected]


VELLOSO, Monica Pimenta; GUIMARÃES, Valéria; FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.9, n.2, jul / dez, 2016. Acessar publicação original [DR]

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População em áreas de fronteira / Territórios & Fronteiras / 2015

Este dossiê temático intitulado “População em áreas de fronteira” procurou reunir, em um único produto, no caso uma edição da revista Territórios & Fronteiras, artigos de estudiosos de renome da área de estudos de população de diversas instituições.

Os artigos foram divididos em quatro seções: 1) Processos de formação e ocupação de fronteiras; 2) Migração populacional em áreas de fronteira; 3) Inserção social e cultural dos migrantes; e 4) Estratégias de sobrevivência na fronteira amazônica. A primeira parte deste produto contém artigos que tratam dos processos de formação e ocupação de áreas de fronteira do Amapá com a Guiana Francesa, Rondônia e na Amazônia como um todo.

O primeiro artigo, de Jadson Porto e Yurgel Caldas, aborda a construção da fronteira franco-brasileira, entre a Guiana Francesa e o Amapá, através da atuação francesa e da atuação brasileira na formação da fronteira amapaense, e a inserção desta fronteira na rede global. Chama atenção também para o papel da fronteira como território estratégico e também como um grande negócio, fornecedor de commodities além de integrante de uma rede ambiental a atuante na integração com o Platô das Guianas.

No segundo artigo, de Alisson Barbieri, são estudadas estratégias de planejamento regional para a ocupação da Amazônia a partir da utilização de três perspectivas teóricas tradicionais em mobilidade populacional (funcionalista, estruturalista e transicional) e a dificuldade destas perspectivas em explicar este processo de ocupação. O texto traz a relação entre mobilidade populacional e planejamento regional para a ocupação e desenvolvimento da fronteira amazônica, assim como aponta a necessidade de uma redefinição conceitual de urbano e rural para o planejamento regional.

Já o terceiro artigo, de Marília e Geraldo Cotinguiba, faz uma ponte entre a primeira e a segunda parte deste dossiê, uma vez que traz um panorama histórico da formação do estado de Rondônia como uma região de fronteira, situando o incremento populacional no âmbito das migrações internas em diferentes momentos, o papel das hidrelétricas, e também analisando a dinâmica e as fases do processo migratório dos haitianos em Porto Velho após o ano de 2010.

A segunda parte deste dossiê traz artigos que tratam de processos migratórios em áreas de fronteira, relacionando atividades de garimpo e remessas financeiras na fronteira Brasil-Guiana, a evolução da população urbana e rural no Oeste do Paraná e a relação entre migração e gênero no caso das migrantes bolivianas em Corumbá.

O artigo de Hisakhana Corbin e Luis Aragón explana sobre os processos migratórios na Guiana, em especial na cidade-fronteira de Lethem com a cidade brasileira de Bonfim (RR), e a importância das redes sociais e familiares nesta mobilidade de população. O texto aborda o problema da fragilidade da economia guianense, baseada na produção mineral e em remessas de guianenses residentes no exterior. Uma vez que mais da metade da população da Guiana se encontra fora de seu país de nascimento, as remessas financeiras para suas famílias chegam a perto de 10% do PIB da Guiana e são consideradas estratégias de redução de pobreza. Neste contexto, é mencionada também a questão da fuga de cérebros (brain drain) do país, causando problemas como a escassez de profissionais mais qualificados, como professores, por exemplo.

O próximo artigo, de Ricardo Rippel, abordou a relação entre dinâmica demográfica e localização da população rural e urbana do Oeste do Paraná, a última área de fronteira a ser ocupada no Paraná, frente à migração e à qualificação dos responsáveis pela família. Envolve questões como a modernização da agricultura e sua relação com os movimentos migratórios, medidas de localização da população e sugere que a concentração populacional não sofreu modificações significativas no período adotado.

Já o terceiro artigo desta parte, de Roberta Peres, analisa a questão das mulheres na fronteira, por meio da migração de bolivianas para Corumbá (MS). Inicialmente faz uma discussão do papel da fronteira para a elaboração de um aporte teórico que sustente e explique este fluxo migratório, depois trata da migração feminina e as relações de gênero, apontando uma rede social essencialmente feminina naquele local, com o dinamismo econômico fortalecendo atividades mais femininas, e termina abordando as trajetórias migratórias e o ciclo de vida destas mulheres. Chama também a atenção para modificações das relações de poder e os papéis de gênero desempenhados pelas mulheres bolivianas em Corumbá através de salários maiores, autonomia e poder de decisão em suas famílias.

A inserção dos migrantes internacionais, seja esta social ou mesmo cultural, é retratada na terceira parte deste produto, por meio do exemplo dos haitianos na Amazônia ou das festas com danças de forró ou reggae frequentadas pela população que se move na fronteira entre o Brasil e a Guiana.

O artigo de Sidney Silva analisa os haitianos nas fronteiras amazônicas, em especial em Manaus, tentando captar as formas de inserção social e cultural destes migrantes no local de destino, e explicitando a falta de políticas públicas inclusivas para eles. Utiliza fontes de dados primários (surveys) ou pesquisas de campo para traçar um perfil dos haitianos, incluindo também meios de entrada no Brasil e relação com os brasileiros. Destaca que inicialmente os migrantes eram constituídos basicamente por homens, jovens, entrando via terrestre e agora é possível observar mudanças no perfil migratório, aumentando a proporção de crianças, mulheres e adultos com mais de 50 anos, ou seja, características de migração na forma de reunificação familiar, e chegando inclusive por via aérea.

O tema da inserção cultural é descrito mais a fundo no artigo de Antonio Meneses, Francilene Rodrigues e Ana Vale, que descreve duas festas: o forró em Bonfim (RR) e o reggae em Lethem (Guiana), chamando a atenção para pontos de encontro, de contato e de trocas culturais que ocorrem nestas festas. São abordados os processos de diferenciação e de identificação de participantes e estratégias de sociabilidade, inclusive através de símbolos que podem marcar identidades e diferenças sociais e de classe, como marcas de cerveja e tipos de prato para degustar. Estas festas possibilitam as trocas culturais, a criação de relações sociais e o fortalecimento dos laços de solidariedade que se refletem nesse espaço transfronteiriço. Exemplo disso é o que os autores chamam de “casamentos transnacionais”, formados muitas vezes nestas festas, em que os membros precisam falar outros idiomas, compartilhar culturas diferentes e viver em dois lugares ou mais.

Por fim, a última parte do dossiê contém artigos que abordam as estratégias de sobrevivência da população na fronteira amazônica, das perspectivas rurais e urbanas e do ciclo de vida, a partir de estudos de caso.

As estratégias de sobrevivência da população na fronteira amazônica são estudadas no artigo de Thais Lombardi, Gilvan Guedes e Alisson Barbieri para a área urbana, utilizando dados de Altamira (PA), e para a área rural, com dados de Machadinho d’Oeste (RO). Nestas regiões houve forte influência de projetos de colonização nas décadas de 1970 e 1980. Após uma discussão sobre o conceito de estratégias de sobrevivência, seus pressupostos e limitações, os autores utilizam modelos de classe latente para analisar as relações entre os indicadores destas estratégias, distribuídos nos capitais natural, físico, social, humano e financeiro, mostrando as características regionais destas áreas de fronteira, e a progressiva urbanização de estratégias de sobrevivência das áreas rurais, assemelhando-se às das áreas urbanas.

Por fim, o último artigo, de Gilvan Guedes, Alisson Barbieri, Reinaldo Santos e Mariângela Antigo, aborda mais a fundo a evolução das estratégias de sobrevivência em termos do desenvolvimento da fronteira agrícola de Machadinho d’Oeste (RO) analisando duas gerações de domicílios a partir da natureza longitudinal dos dados, observando os domicílios ao longo do tempo. Foram investigadas as dimensões de estratégias de sobrevivência, mobilidade e fatores de ciclo de vida. Além dos modelos de classe latente, utilizados no artigo anterior, também utilizaram a modelagem “grade of membership” que utiliza técnicas fuzzy de análise para estimar o grau de pertencimento individual a cada classe latente, e assim identificar um modelo com a menor quantidade de classes que descrevem os dados. Os resultados mostram cinco perfis de estratégias de sobrevivência para as duas gerações de domicílios.

Assim, este dossiê trata de temas extremamente atuais, alguns inclusive de difícil captação por meio das fontes mais utilizadas pelos estudiosos de população, como os censos demográficos, como no caso da recente migração de haitianos ao Brasil pós-2010 e festas culturais; e trata também de localidades de estudo com bem poucos estudos publicados, como a fronteira do Brasil com as Guianas (francesa e inglesa) e outras regiões de fronteiras amazônicas.

Os processos migratórios abordados envolvem migração interna, migração internacional, assim como mobilidade populacional, ou circulação de pessoas em localidades transfronteiriças, podendo ser de grande relevância para a correta formulação de políticas públicas específicas para estes grupos populacionais.

Boa leitura!

Alberto Augusto Eichman Jakob – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: [email protected]

Dimitri Fazito – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected]


JAKOB, Alberto Augusto Eichman; FAZITO, Dimitri. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.8, n.2, jul / dez, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Formação docente e ensino de história: fontes, objetos e categorias / Territórios & Fronteiras / 2015

O dossiê “Formação docente e Ensino de História: fontes, objetos e categorias” traz artigos que expõem diferentes contextos, atravessam os níveis de ensino, e mobilizam categorias que permitem destacar a variedade de abordagens e as possibilidades do trabalho investigativo a partir de fontes diversas que indagam sobre a escrita didática da história, os sujeitos, as políticas, as memórias e as práticas imersas no processo formativo de professores / as de História.

O percurso formativo do / a professora / a de História é um tempo de conhecimento, reflexão, crítica e aperfeiçoamento profissional. Nos cursos superiores entram em contato com os saberes teóricos, com a pesquisa e a preparação pedagógica. A base formativa prévia (origem e inserção cultural e formação escolar anterior) se mescla com a formação continuada e, assim, a socialização dos saberes no interior das escolas e na vida vai se constituindo. Os saberes profissionais, como diz Tardif,1 são datados (temporais), são plurais e heterogêneos, são personalizados e situados, são adquiridos por meio da experiência.

Ao percorrer um caminho escolhido do conhecimento (o currículo), têm-se objetivos em mente e questões que devem indagar sobre qual passado tratamos quando ensinamos aos estudantes e como essas histórias operam sentidos na formação dos sujeitos.

Um dos procedimentos imprescindíveis para o ensino de História é o trabalho com as fontes ou documentos. Também a ampliação da noção de fonte atingiu diretamente o trabalho pedagógico, levando à superação da compreensão do documento como prova do real. As inovações tecnológicas também modificaram a relação com o documento.

Entre os oito artigos que compõem este Dossiê, podemos indagar no trabalho de Ana Carolina Eiras Coelho Soares sobre o conceito de História Visual em Ulpiano Bezerra de Meneses2, entendido como um conjunto de recursos para dar consistência à pesquisa histórica. Alerta ele que o uso da pintura, da fotografia ou do desenho não deve ser feito como mera ilustração do texto. A investigação deve levar ao exercício de reconstrução de redes que falam de quando o autor produziu a obra, do contexto da época, do lugar da produção, das articulações de interesse para quem produziu etc.

Ana Carolina Soares aproveita um episódio alardeado na mídia carioca, no ano de 2009, polemizando a retirada de livros didáticos de História das escolas por acusação de suposto conteúdo nefasto presente em possível interpretação de imagens de Theodore de Bry (século XVI). O fato é utilizado pela autora para refletir sobre as vulnerabilidades a que as escolas se submetem em momentos nos quais são cobradas e vitimadas por ações violentas vindas de toda parte. O incidente serviu também para apontar possíveis caminhos do trabalho pedagógico nas aulas de História e fazer pensar a formação de professores.

Em defesa de um código disciplinar da Didática da História, Ana Claudia Urban foi buscar na análise de ementas de cursos de licenciatura em História de universidades públicas do Paraná os “textos visíveis” para suas argumentações. Também analisou pareceres de 1960 ao ano 2000 que foram dando indicativos de como as preocupações com a Didática caminharam junto com as mudanças de perspectivas para a formação de professores.

Alexandra Lima da Silva apresenta, no exemplo de Rocha Pombo, as subjetividades formativas da docência. Explorando o autodidatismo do poeta, historiador e professor, Alexandra faz um passeio pela atribulada história do fazer-se professor e escritor de livros didáticos – esses últimos ficaram tão presentes no imaginário de estudantes, tanto quanto foram marcantes referências de formação para muitos professores.

Jaqueline Aparecida Zarbato nos brinda com uma reflexão sobre Educação Histórica e sobre como se produz a consciência histórica nas práticas pedagógicas de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Sua análise parte de uma oficina realizada com estudantes de História da Universidade de Mato Grosso do Sul, em Três Lagoas, no ano de 2013.

Buscando refletir sobre o embate entre representações no entorno da formação de professores de História, André Luiz Bis Pirola, ao estudar o Espírito Santo na segunda metade do século XIX, investiga como a História era ensinada na ausência de uma formação específica. Dessa forma, a história da formação de professores de história imbrica-se com a própria história da construção da história como disciplina escolar e pode-se compreender como, em meio às lutas, leis e livros, diferentes profissionais (bacharéis, padres e médicos) buscaram instituir determinadas formas de ser e estar no mundo por meio da construção de um sentido para o saber e o fazer docentes.

João Batista Bueno, Arnaldo Pinto Jr. e Maria de Fátima Guimarães, por sua vez, refletem sobre três conceitos importantes para a formação dos professores de História: a interação, a significação e a identidade. Discutem também quais são as possíveis alternativas e critérios que podem ser mobilizados na definição de atividades de interações significativas que visem conectar questões do passado ao presente do estudante. Além disso, analisam como algumas abordagens atuais do conceito de identidade estão modificando os objetivos do ensino de História.

Já o artigo de Helenice Ciampi tem o objetivo de refletir sobre a questão da formação do educador a partir de sua experiência na PUC-SP, com a Prática de Ensino e Estágio Supervisionado e disciplinas afins. A intenção da autora foi focar as últimas décadas de debates no Brasil, articulando as questões centrais da discussão com os temas que constituíram os planejamentos dos cursos no período. Enfim, sua reflexão visa explicitar as questões canônicas na formação do profissional de História ontem e hoje.

Concluindo o Dossiê, Juciene Ricarte Apolinário traz ao debate um tema ainda pouco discutido na área do ensino de História: a educação indígena. Seu artigo aborda, de forma reflexiva, a criação do Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Educação Indígena, UFCG – Povo Potiguara, especialmente no tocante às experiências das práticas pedagógicas das disciplinas de História do Brasil e História Indígena. O projeto foi produzido coletivamente entre indígenas e professores da UFCG para a elaboração de uma proposta de educação superior intercultural, tendo como destaque a formação do professor indígena na área de História.

Acreditamos que os diferentes trabalhos aqui reunidos poderão contribuir com os debates acerca da formação docente do / a profissional de História e sua relação com a dinamização da produção historiográfica e das reflexões metodológicas. Pensamos que os textos que compõem este Dossiê, ao tratarem de diferentes contextos, atravessam os níveis de ensino e mobilizam categorias que permitem destacar a variedade de abordagens e as possibilidades do trabalho investigativo a partir de fontes, objetos e categorias diversas que indagam sobre a escrita didática da história, os sujeitos, as políticas, as memórias e as práticas imersas no processo formativo em questão. Esse conjunto de textos nos oferece, enfim, um quadro representativo de produções acadêmicas que demonstram a consolidação da área de Ensino de História e a relevância das pesquisas sobre formação docente para a profissão do / a historiador / a. Esperamos que estes textos sejam também inspiradores.

Boa leitura!

As organizadoras

Notas

1 TARDIF, Maurice. Os professores enquanto sujeitos do conhecimento. In: _____. Saberes docentes e formação profissional. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

2 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual – balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, 2003.

Ana Maria Marques – Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: [email protected]

Juçara Luzia Leite – Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: [email protected]


MARQUES, Ana Maria; LEITE, Juçara Luzia. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.8, n.1, jan / jun, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Os 50 anos do golpe militar brasileiro e a Amazônia Legal: desafios ainda presentes / Territórios & Fronteiras / 2014

[Os 50 anos do golpe militar brasileiro e a Amazônia Legal: desafios ainda presentes]. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, edição especial, v.7, n.1, abr, 2014. Acessar dossiê [DR]

Espaços públicos e circulação de ideias nas Américas / Territórios & Fronteiras / 2014

Há algumas décadas a historiografia dedicada às Américas, e especialmente à América Latina, tem experimentado uma diversificação de temas e enfoques que dialogam com os processos históricos vivenciados após o final de regimes ditatoriais e com as novas conformações políticas e econômicas do continente. Questões levantadas sobre temas capitais como o par público / privado, as demandas da sociedade civil, as dimensões constitutivas da cidadania, as diferentes abordagens de temas culturais explicitam uma premissa que nos parece basilar: a história é sempre escrita desde um presente! Um presente amplo, é verdade, capaz de reunir em si categorias que o complementam e, no mesmo passo, o definem, a exemplo da noção de espaço, de instituição, de tempo, de temporalidade etc.

Considerando tal pressuposto, temos a satisfação de apresentar este dossiê, cuja proposta contempla uma reflexão tão valiosa quanto necessária ao tempo presente. “Espaços públicos e circulação de ideias nas Américas”, tal foi tema oferecido como desafio aos autores que escreveram neste volume. De modo geral, buscamos com o conjunto “espaço público e circulação de ideias” a agência de diferentes grupos e os enfrentamentos que compuseram um repertório de indagações de domínio amplo e compartilhado – em suas concordâncias ou nas discordâncias, por meio do debate público perceptível em circunstâncias de maior ou menor liberdade, e mesmo nos períodos de interdições que marcaram a história do continente. Num mesmo golpe, visualizamos movimento (as circulações) e uma arena capaz de capturá-lo (os espaços públicos), ainda que instantaneamente, a fim de compreendê-lo, esmiuçá-lo.

O historiador Tulio Halperin Donghi já nos havia indicado uma chave de leitura importante para esse jogo entre circulações e suas apropriações. O “uso público da razão”, conforme ele notara, elabora-se com base em discursos mobilizadores e estruturadores das linguagens políticas, constituindo-se, portanto, em produto e produtor de significados heterogêneos. A pulverização entre diferentes audiências e identidades que podem ser reivindicadas por ideias que circulam em espaços públicos sugere outro exercício relevante, e que atravessa este dossiê: questionar premissas homogeneizantes e, ao mesmo tempo, reconhecer a variedade das pesquisas que consideram a existência de espaços públicos como o local privilegiado para a ação política, e que observam como a circulação de ideias ultrapassa fronteiras, criando significações distintas em cada época. Do legado colonial à emergência das nações contemporâneas, recuperando a ideia do letrado colonial de Angel Rama ou do letrado patriota do período das independências, por exemplo, há um vasto repertório de ênfases e questões próprias à formação das sociedades americanas, com seus traumas, fragmentações e pluralidades. Os paradoxos na construção do espaço público e da circulação de ideias exigem, ainda, questionar a idealização dos feitos da moderna cidadania na emergência das repúblicas ou mesmo dos grupos políticos que se organizaram em torno das questões da memória nos debates estabelecidos a partir do final das mais recentes ditaduras militares.

O leitor encontrará nas páginas desta edição de Territórios & Fronteiras um rol de artigos que desdobraram o tema proposto em muitas faces distintas e instigantes, oferecendo aos interessados em história das Américas reflexões originais. As boas vindas à discussão ficaram por conta de Pablo Piccato e seu artigo A esfera pública na América Latina: um mapa da historiografia, versão em língua portuguesa do texto publicado originalmente em 2010 na revista Social History. Além de propor uma revisão historiográfica criteriosa, Piccato nos convida a pensar sobre as implicações teóricas e metodológicas dos usos da categoria de “esfera pública”, e também a respeito das possibilidades de se fazer uma “história da esfera pública” no continente. Esfera pública e hegemonia; Habermas e Gramsci: tais são os pontos que balizam sua análise, aproximando-se muitas vezes, mas sem necessariamente se misturar.

Ao percorrer o texto de Pablo Piccato o leitor perceberá que os historiadores interessados no debate em torno da esfera pública na América se dedicaram majoritariamente ao período posterior às independências. A definição dos espaços da ação política, de outras linguagens e de novos atores nas repúblicas recém-independentes foi acompanhada de recorrentes investidas de cunho intelectual com vistas a construir sentimentos de pertença, laços nacionais. Um conjunto de análises sobre esse tema, enfatizando tempos e espaços distintos na América espanhola, é o que se encontrará nos três artigos que se seguem ao texto de abertura. Maria Elisa Noronha de Sá, em Por uma nova ordem de coisas: as reformas rivadavianas na década de 1820 na província de Buenos Aires, retoma as proposições de Reinhart Koselleck para examinar as experiências de tempo dos sujeitos envolvidos com os processos de emancipação política e construção do Estado-nação na Argentina dos anos 1820. Conceitos caros a intelectuais e políticos do século XIX, a exemplo de “revolução”, “nação”, “progresso”, “história”, consistem em vigorosas portas de entrada para a compreensão histórica na medida em que permitem aos historiadores acompanhar e interpretar as mutações semânticas pelas quais eles passam. Conceitos, linguagens, circulações, apropriações, modernização dos espaços políticos, formação dos estados nacionais: esses são alguns dos elementos em torno dos quais se organiza o referido artigo.

A circulação de ideias e linguagens pode ser observada em fontes menos exploradas no debate sobre o espaço público. A troca de cartas entre um soldado e seu irmão durante os anos 1862 e 1867, período em que no México materializaram-se os desejos de expansão de Napoleão III, é reveladora de apreensões e questionamentos abordados por Gabriela Pellegrino Soares em A correspondência de Augustin-Louis Frélaut durante a intervenção francesa no México (1862-1867). Como as populações indígenas teriam se movimentado ante a intervenção francesa no México? As respostas emergem do conjunto epistolar de Frélaut, juntamente com as possibilidades variadas de se pensar a circulação de bens, pessoas, ideias e as tensões que permeavam as relações entre os diferentes atores que se enfrentavam nos espaços políticos e intelectuais do México dos anos 1860. Se com o texto de Gabriela Pellegrino Soares vislumbramos a percepção “estrangeira” sobre os indígenas “mexicanos”, elaborada num momento em que se buscam as raízes históricas e nacionais do novo país, no artigo de Maria Helena Rolim Capelato, encontramos o tema da produção da identidade nacional e política, porém agora no Chile. Da emulação dos modelos europeus, própria do impulso modernizador verificado a partir das últimas décadas do século XIX, até a emergência de um pensamento conservador após o golpe de Pinochet, em 1973, acompanhamos a trajetória de uma proposta: a criação da identidade nacional chilena em três tempos. O ser chileno, argumenta Capelato, é criado e recriado em três chaves distintas: com a recuperação do mito de Diego Portales, um dos pais fundadores da pátria, nos anos 1920 e 1930; com a propagação de uma historiografia revisionista que pretendia responder às crises pelas quais passava a sociedade chilena de meados do século XX; e com um discurso conservador sobre a identidade, formulado nos anos da ditadura. A leitura desse artigo não deixa dúvidas: a história é sempre escrita desde um presente!

A noção de que a agência de diferentes grupos e os enfrentamentos nos espaços públicos, nas democracias ou nas ditaduras, integram o tema deste dossiê fica bem documentada no texto de Paulo Renato da Silva, A oposição na “literatura stronista” e a opinião pública na ditadura do general Alfredo Stroessner (Paraguai, 1954-1989). Enquanto notamos no Chile a construção de um discurso identitário, atrelado a um pensamento conservador, observamos no contexto paraguaio analisado as possibilidades de dissenso, interpretadas com base na análise da própria literatura stronista. Na disputa pelo controle do espaço e da opinião públicos, o enfrentamento indicava a necessidade de o discurso oficial reconhecer e se apropriar de princípios que eram identificados nas demandas da oposição, frequentemente representada na literatura simpática ao regime de Stroessner.

Se o tema do dossiê sugere um viés eminentemente político, há que se considerar que ele permite a problematização em outros âmbitos. Com o artigo de Beatriz Helena Domingues, acompanhamos de perto os modos pelos quais o historiador norte-americano, e brasilianista, Richard Morse leu e se apropriou dos escritos de Gilberto Freyre. Ou melhor: o modo como este se fez presente na obra daquele. A hipótese do artigo se cristaliza em seu próprio título: A presença de Gilberto Freyre na obra de Richard Morse. A familiaridade da historiadora com os escritos de Morse e seu entusiasmo ao perseguir as “matrizes freyrianas” no pensamento do brasilianista são reveladoras de uma operação historiográfica que dialoga com ideias e reapropriações de nomes basilares do debate cultural latino-americano. Em O cinema se alastra pela América Latina: repercussões do novo espetáculo, artigo assinado por Miriam V. Garate, a autora analisa uma série de escritores e cronistas de diferentes partes da América que abordaram a novidade que representava o cinema. As relações entre o espetáculo cinematográfico, pleno de efeito de realidade, e a vida cotidiana não demoraram a ser registradas por aqueles cronistas, que muitas vezes conceberam o cinema como um espaço de evasão do mundo real. Ou mesmo como “paliativos imaginários” antes a crueza da vida, publicizando experiências e a formação de uma audiência que traz questões originais na descoberta das sedutoras imagens audiovisuais

O artigo que fecha o dossiê recoloca o problema da circulação de ideias valendo-se de uma proposta metodológica conveniente à própria noção de “circulação”: a história Atlântica. Hereges nos mares de Deus. A ação de corsários como episódio das Guerras de religião no século XVI, de Luiz Estevam de Oliveira Fernandes, propõe ao leitor um retorno ao período colonial, para que se possam observar as trocas e circulações de ideias, nem sempre amistosas, entre representantes do catolicismo e de grupos reformistas. Tendo o Atlântico como palco, argumenta Luiz Estevam, piratas e corsários, os personagens principais dessa trama, tornavam-se algo além de saqueadores, ou de um entrave político e econômico às monarquias ibéricas: eles passavam a ser agentes disseminadores de ideias religiosas e, portanto, armas eficazes nas disputas pelas almas.

Agradecemos aos pesquisadores que integram o dossiê, ao Conselho Editorial da Territórios & Fronteiras e esperamos que cada um dos trabalhos apresentados, em suas reflexões e propostas peculiares, com seus enfoques e recortes, possa contribuir para a ampliação dos debates sobre o “Espaço público e circulação de ideias nas Américas”. Afinal, trata-se de um território do qual fazemos parte, mas que, por diferentes processos, ainda expressa uma ambiguidade de proximidade e distanciamento para grande parte dos pesquisadores brasileiros.

Boa leitura!

Os organizadores

Anderson Roberti dos Reis – Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]

José Alves de Freitas Neto – Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]


REIS, Anderson Roberti dos; FREITAS NETO, José Alves de. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.7, n.1, jan / Jun, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Faces do Monarquismo Ocidental / Territórios & Fronteiras / 2014

O dossiê Faces do monaquismo Ocidental aborda um dos temas centrais para a compreensão do período medieval, a saber, o monaquismo nas suas mais variadas formas e expressões ao longo da Idade Média. Para sua realização, contamos com a colaboração de estudiosos brasileiros e estrangeiros, cujos trabalhos permitem pensar no monaquismo por diferentes perspectivas, tanto ao considerá-lo em espaços e tempos distintos, quanto por ressaltarem a diversidade de situações e relações produzidas pelos monges e os modos de vida que suscitaram ou que a eles se opuseram.

Os artigos aqui dispostos elucidam, ainda, estratégias e argumentos que fundamentaram debates em torno da importância social e política dos monges para a sociedade medieval: a começar pela valorização teórica, arquitetônica e espacial do desprezo do mundo e do isolamento a partir da ênfase na importância da clausura e da construção de uma memória histórica para o monaquismo, que apontasse a estabilidade e a obediência como elementos essenciais do propósito da vida monástica. Tal é a abordagem dos artigos de Michel Lauwers e Cécile Caby que, por meio da utilização de fontes diversas, definem a descoberta da estabilidade como prerrogativa monástica elementar, identificando a existência de um processo de territorialização promovido pela organização monástica. Lauwers confirma o processo de territorialização e de “comunitarização” a partir da análise da Planta do Mosteiro de Saint-Gall. Já Cécile Caby retraça os usos possíveis para a metáfora dos pequenos peixes, originária da Vida de Santo Antônio, em autores dos séculos XII e XIII, ora como forma de defesa, ora como forma de negação do pertencimento ao mosteiro enquanto característica própria da profissão monástica.

Neste dossiê, também encontramos monges e mosteiros situados no entrecruzamento entre a autoridade papal e as cortes croatas, atuando como partes integrantes do projeto de conquista territorial e política da Dalmácia, realizado por um papado reformado. O surgimento de mosteiros beneditinos na região dálmata, bem como o uso da escrita beneventana em documentos administrativos da corte croata permitiram a Stéphane Gioanni comprovar a existência de alianças mobilizadas pelo papado para fortalecer seus domínios em uma região históricamente vinculada a Bizâncio. Em território bem distante da Dalmácia, observamos o monaquismo no coração das relações de poder, mas, desta vez, vinculados à monarquia e famílias aristocráticas leonesas, fundadoras e mantenedoras de estabelecimentos monásticos cistercienses masculinos e femininos na região. Indo além de um estudo sobre a territorialização promovida pela Igreja ou sobre a ocupação do território hispânico durante e após a Reconquista por meio da construção de mosteiros, Maria Filomena Coelho Pinto apresenta como as casas monásticas foram peças centrais nas estratégias de linhagem, sobretudo, em razão da condição santificada de que gozavam. Tal santidade estava posta nos lugares, mas também em objetos pertencentes aos mosteiros, servindo à construção de uma memória e de um passado de defesa do cristianismo peninsular, bem como à defesa do bem comum para a comunidade cristã.

Mas não só no isolamento dos mosteiros tornava-se possível a vivência de uma experiência religiosa durante o período medieval, sobretudo após o século XIII. Deve-se atentar, portanto, para a importância de uma vida religiosa situada no coração das cidades e o papel crucial desempenhado pelas ordens mendicantes na fundamentação de uma nova eclesiologia e na construção de uma memória histórica que contribuíram para afirmação de seu poder no seio das cidades Baixo medievais. Tal é a perspectiva trazida a tona pelos estudos de Néri de Barros Almeida e André Miatello. Néri de Barros Almeida trata da importância da ordem dos pregadores e de sua atuação no espaço urbano italiano, concentrando-se numa das principais e mais difundidas obras produzidas neste ambiente: a Legenda Áurea. Da análise desta obra, a autora retira implicações instigantes sobre a relação entre história, memória e hagiografia na Idade Média, bem como reflete sobre as consequências do posicionamento de Jacopo de Varazze sobre o passado do monaquismo, sobretudo ao promover o obscurecimento de um modelo de santidade e de vida monástica possível entre os séculos X e XII e valorizar os santos mártires e ascetas antigos ou aqueles saídos da Ordem Dominicana no século XIII. Já Miatello analisa obras importantes de Dominicanos e Franciscanos, identificando os critérios inovadores do modelo eclesiológico que esses frades ofereceram à cristandade Baixo medieval. O autor chama atenção, sobretudo, para o conflito entre o clero secular e as ordens mendicantes iniciado com a ingerência dos frades na atividade de pregação, na administração do sacramento da confissão e no combate à heresia.

Do mesmo modo, Renata Cristina de Sousa Nascimento apresenta uma investigação sobre os dominicanos, mas toma como ponto de partida sua experiência em Portugal e em um mosteiro específico: o Mosteiro de Batalha. A autora destaca a importância dos frades pregadores em Portugal a partir da relação que estabelece entre esta ordem e a dinastia de Avis iniciada por João, Mestre de Avis, o qual ascendeu ao poder luso após a batalha de Aljubarrota, momento no qual constrói o mosteiro, dedicando-o à Ordem já estabelecida na região. Saul António Gomes também aborda o desenvolvimento do monaquismo em território lusófono, apresentando uma cartografia da fixação das casas conventuais portuguesas e sua relação com as dioceses e poderes régios. Cuidadoso em apresentar dados sobre a demografia das diferentes ordens que se estabeleceram em Portugal no século XV, Saul Gomes arremata este dossiê com um panorama quantitativo e qualitativo do estabelecimento das diferentes ordens monásticas em Portugal e sua relação direta com o patrocínio régio.

Com este dossiê, procuramos, portanto, apresentar diferentes possibilidades de se pensar o monaquismo em sua relação com a vida religiosa e política da Idade Média. Ao situarmos as ordens monásticas e mendicantes nos jogos de poder do período e ao atestarmos sua atuação para a construção da cultura, do pensamento e mesmo da espacialidade da Europa, procuramos ampliar o conhecimento que temos sobre sua importância, crucial e definidora, para a construção da sociedade medieval e contemporânea, já que, como muito bem notou Giorgio Agamben:

Se o ideal de uma vida comum tem, evidentemente, um caráter político, o cenóbio é, talvez, o lugar onde a comunidade de vida é reivindicada como elemento constitutivo em todos os sentidos do termo. Assim, o que está em questão na vida cenobítica é a transformação do cânone da prática humana que foi determinante para a ética e a política das sociedades ocidentais. Cânone este que, ainda hoje talvez, não compreendemos plenamente a natureza e as implicações.[1]

Boa leitura e boas reflexões!

Nota

1. AGAMBEN, Giorgio. De la très haute pauvreté. Régles et formes de vie. Paris: Éditions Payot & Rivages, 2013, p. 79.

Cláudia Regina Bovo – Universidade Federal do Triângulo Mineiro. E-mail: [email protected]

Rossana Alves Baptista Pinheiro – Universidade Federal de São Paulo. E-mail: [email protected]


BOVO, Cláudia Regina; PINHEIRO, Rossana Alves Baptista. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.7, n.2, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História da saúde e das doenças: protagonistas e instituições / Territórios & Fronteiras / 2013

O dossiê “História da saúde e das doenças: protagonistas e instituições”, da Revista Territórios & Fronteiras, do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, reúne trabalhos de estudiosos de diversas procedências institucionais. Radicados profissionalmente no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais e São Paulo, os autores refletem sobre a temática, utilizando-se de distintos recortes espaço-temporais e de perspectivas teórico-metodológicas e fontes diferenciadas.

Desde aproximadamente a década de 1970, que o campo da História da saúde e das doenças ganhou projeção, em especial com os trabalhos de Jean-Pierre Peter, Jacques Le Goff, Philippe Áries, Jean Delumeau e Jean-Charles Sournia1, que chamaram a atenção para a importância do corpo – em todas as suas manifestações. Para Jacques Le Goff, esse interesse deveu-se ao fato de as doenças não estarem ligadas apenas a uma história dos progressos científicos e tecnológicos, mas por pertencerem “à história profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições, às representações” 2.

As doenças devem ser entendidas como fenômenos inteligíveis apenas em um contexto biossocial historicamente determinado, e regulado pelas condições do ambiente3; sua eliminação sempre fez parte das preocupações de homens e mulheres, em todas as civilizações, quaisquer que tenham sido as representações produzidas sobre elas4.

Fatos e acontecimentos associados às doenças produzem uma historicidade que se diferencia nas diversas temporalidades e espacialidades. Assim, a aplicação da perspectiva histórica para o estudo das doenças pode auxiliar na compreensão das estruturas de poder e dos comportamentos humanos de uma determinada época, possibilitando a análise das ações dos diferentes grupos sociais. O binômio saúde-doença não pode, evidentemente, ser interpretado da mesma maneira ao longo das diferentes épocas, pois as sociedades apresentam particularidades que distinguem esse fenômeno. Se na Antiguidade existiu a crença de que as doenças eram enviadas aos homens pelos deuses como castigo por suas faltas, foi também durante esse largo período histórico que surgiram as primeiras formulações de que as doenças eram provocadas por fatores naturais, a exemplo de Hipócrates (século IV a.C). O médico grego recomendava que os fatores ambientais fossem conhecidos tanto para averiguar as causas da propagação das doenças, quanto para melhor determinar as ações a serem adotadas face à manifestação de alguma enfermidade.

Durante a Idade Média vigorou a idéia de que as práticas mágicas e religiosas eram fatores determinantes para a manifestação das doenças; no entanto, os médicos do medievo também difundiram o conceito de contaminação e a necessidade da quarentena como forma de contenção da propagação de epidemias. Nas faculdades medievais de medicina conviviam os ensinamentos de Hipócrates, os de Galeno e de alguns médicos do mundo árabe. Abordando o contexto dos séculos XIII e XIV, o artigo de Dulce O. Amarante dos Santos, “Saúde e enfermidades femininas nos escritos médicos (séculos XIII e XIV)”, aborda a produção do conhecimento médico sobre doenças próprias das mulheres, mais especificamente daquelas associadas aos órgãos ligados à reprodução. Para tanto, a autora analisou dois textos medievais importantes: De secretis mulierum, atribuído ao Pseudo Alberto Magno, que analisa os mistérios que envolvem o processo da reprodução humana, e o Thesaurus pauperum, atribuído ao físico Pedro Hispano, um receituário de practica medica para todas as doenças, dirigido aos praticantes leigos.5

Durante os séculos XVII e XVIII, o conhecimento médico e científico avançou consideravelmente. Em especial, no Setecentos, saúde e aumento da população estavam relacionados ao aumento da riqueza e do poder do Estado. Desse modo, governantes se esforçavam para organizar estatísticas que pudessem servir de fontes para propostas políticas e econômicas que aumentassem a riqueza e o poder do Estado. O crescimento das cidades promoveu uma série de ações políticas e médicas, provocando a emergência da medicina do estado alemã, da medicina urbana francesa e da medicina do trabalho inglesa. Neste período, e tratando da produção colonial luso-brasileira, se insere o estudo de Jean Luiz Neves Abreu, “Tratados e construção do saber médico: alguns aspectos dos paratextos nos impressos de medicina lusobrasileiros – século XVIII”. Em seu artigo, Abreu identifica os princípios e finalidades que a medicina assumia no Setecentos, e, através da análise de prefácios e preâmbulos de livros de medicina publicados ao longo do século XVIII, aponta para sua condição de difusores e legitimadores do saber médico deste período. 6

Ao longo do século XVIII e século XIX, inúmeras foram as viagens realizadas por naturalistas, botânicos, zoólogos e médicos, que a serviço de seus Estados europeus de origem, detiveram-se na sistematização de conhecimentos sobre o meio ambiente, as doenças e os costumes de outros povos. No artigo “Raça, clima e doença: a viagem de Alphonse Rendu para o Brasil (1844-45)”, Rosa Helena Girão de Moraes analisa as idéias do médico francês Alphonse Rendu, inserindo-as num debate mais amplo, que não se restringia às Academias de Ciências e de Medicina do período, na medida em que chamaram também a atenção dos políticos e intelectuais.7

Numa Europa em que predominavam os estudos que atribuíam o funcionamento do corpo às leis da física e da química, surgiram também diferentes propostas para a cura, como a do médico escocês John Brown (1735–88), para quem todas as doenças seriam provocadas por estimulação excessiva ou deficiente. Para curá-las, Brown prescrevia doses muito altas de sedativos e estimulantes, provocando danos e polêmica. Opondo-se a esta orientação terapêutica, surgiu a homeopatia, que propunha que os sintomas de um paciente deveriam ser tratados com drogas que produzissem os mesmos sintomas, mas com a aplicação de dosagens mínimas. Em “Medicina intuitiva, homeopatia e espiritismo na Revista Espírita de Allan Kardec – 1858-1869”, Beatriz Teixeira Weber, com base nas edições da Revue Spirite – Journal d’Etudes Psychologiques, entre 1858 e 1869 − período em que a revista foi dirigida por Allan Kardec −, analisa os pressupostos do espiritismo e da homeopatia, confrontando-os nas várias correntes de pensamento existentes na Europa da segunda metade do século XIX, priorizando os aspectos relacionados ao processo de adoecimento e de cura. 8

Apesar dos intensos debates e avanços, houve pouca mudança na prática clínica no Oitocentos, como se pode constatar na continuidade da sangria e da purga. As mudanças mais substanciais emergiram ao final do século, especialmente com Pasteur (1822-95) e sua revolucionária teoria microbiana. Contemplando este período, o artigo intitulado “A saúde dos escravos na Bahia Oitocentista através do Hospital da Misericórdia”, de Maria Renilda Nery Barreto e Tânia Salgado Pimenta, analisa as condições de saúde da população escrava em Salvador, na primeira metade do século XIX, identificando quais as doenças que mais acometiam esta população, e explorando as possíveis associações entre elas e as condições de trabalho a que estavam submetidos. Tendo como fontes os registros de entradas e de saídas de doentes internados no Hospital da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, as autoras avaliam, ainda, o impacto da epidemia de cólera de 1855 sobre esta população. 9

Também com o olhar direcionado para a saúde da população escrava, Paulo Roberto Staudt Moreira, em “Ingênuas mortes negras: doenças e óbitos dos filhos de ventre livre (Porto Alegre – 1871 / 1888)”, trata de dois temas ainda pouco explorados do universo escravista: a infância e a saúde. Enfocando o período de 1871 a 1888, o artigo se detém na análise das condições de saúde das crianças geradas por ventre escravo após a Lei Rio Branco, de 28 de setembro de 1871, identificando as doenças que as acometiam com maior freqüência.10

Dilene Raimundo do Nascimento e Matheus Alves Duarte da Silva, em “A peste bubônica no Rio de Janeiro e as estratégias públicas no seu combate (1900- 1906)”, analisam os relatórios da Diretoria Geral de Saúde Pública e do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, a fim de identificar as estratégias adotadas pelo poder público para o combate da epidemia de peste bubônica, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, que consistiram na reformulação das leis sanitárias e no saneamento da Capital Federal. 11

Abordando tema ainda pouco contemplado pela historiografia brasileira, Kaori Kodama e Magali Romero Sá, em “Saúde, imigração e circulação de conhecimentos: Japão e Brasil nas relações científicas no período entre-guerras”, apresentam os intercâmbios havidos entre cientistas japoneses e brasileiros e as relações que podem ser estabelecidas entre os fluxos de imigração japonesa e algumas das políticas internacionais de saúde. Kodama e Sá referem a existência de uma agenda comum entre brasileiros e japoneses representantes da Liga das Nações, o que permitiu lançar luz sobre alguns dos problemas de saúde pública associados ao deslocamento de grandes contingentes pelo mundo, especialmente aqueles relacionados à ancilostomíase.12

O presente dossiê, ao contemplar diferentes sociedades e épocas, constitui-se em amostra da vitalidade dos estudos de História da saúde e das doenças que vêm sendo desenvolvidos no Brasil, os quais, não apenas têm ampliado significativamente as análises sobre saberes e práticas de cura, discursos científicos, instituições e políticas públicas, representações e percepções sociais das doenças, como também as perspectivas teórico-metodológicas do campo. Os oito artigos aqui apresentados filiam-se a esta tendência atual das investigações da área da História da saúde e das doenças, privilegiando a discussão sobre os papéis desempenhados por certos protagonistas – alguns deles esquecidos ou pouco valorizados pela historiografia –, e sobre a atuação de instituições – européias ou brasileiras –, para a adoção ou difusão de determinadas concepções e práticas.

Notas

1 REVEL, Jacques e PETER, Jean-Pierre. O corpo: o homem doente e sua história. In LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre Nora (org). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1988. LE GOFF, Jacques (org). As doenças têm história. Lisboa: Terramar, 1985.; ARIÈS, Philippe. O homem perante a morte I. Portugal: Editora Europa América, 1988.; DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300-1800. Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.; SOURNIA, JeanCharles. História da medicina. Instituto Piaget, sd.

2 LE GOFF, Jacques. As doenças têm história. p. 8.

3 ROSEN, George. Da polícia médica à medicina social. Rio de Janeiro: Graal, 1980. p. 47.

4 PORTER, Roy. Das tripas coração: uma breve história da medicina. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2004. p. 13.

5 Da mesma autora, recomenda-se ver: SANTOS, Dulce O. Amarante dos. O percurso intelectual do físico Pedro Hispano (século XIII). In: GONÇALVES, Ana Teresa M. et al.(Orgs.). Escritas da História. Goiânia: Ed. da UCG, 2004. p.129-145; SANTOS, Dulce O. A. Aproximações à medicina monástica em Portugal na Idade Média. História (São Paulo. Online), v. 31, p. 47-64, 2012; SANTOS, Dulce O. A; FAGUNDES, M. D. C. Saúde e dietética na medicina preventiva medieval: o Regimento de saúde de Pedro Hispano. História, Ciências, Saúde-Manguinhos (Impresso), v. 17- 2, p. 333-342, 2010.

6 Ver, também, do mesmo autor, Higiene e conservação da saúde no pensamento médico luso-brasileiro do século XVIII. Asclepio. Revista de Historia de la Medicina y de la Ciencia, 2010, vol. LXII, nº 1, enero-junio, págs. 225-250. Sobre temática similar, ver a tese de doutoramento de Leny Caselli Anzai, defendida em 2004 no Programa de Pós-graduação em História da UnB, “Doenças e práticas de cura. O olhar de Alexandre Rodrigues Ferreira” (prelo). Neste estudo, a autora analisa o manuscrito “Enfermidades endêmicas da capitania de Mato Grosso”, do naturalista Rodrigues Ferreira e, em especial, no capítulo II, trata dos manuais médicos que serviram de fonte para o naturalista em seu trabalho sobre as doenças que encontrou na Amazônia. Anzai analisou também apresentações e prefácios de publicações utilizadas pelo naturalista, com o intuito de destacar o estágio do conhecimento médico à época, e o alcance dos manuais médicos. Destacou a ação do médico Antonio Nunes Ribeiro Sanches, que pregava a necessidade de se enviar bolsistas ao exterior, por conta do Estado, para estudar em centros prestigiados com o objetivo de formar quadros técnicos e intelectuais necessários ao desenvolvimento do país. Em seu “Tratado da conservação da saúde dos povos”, Sanches chamava a atenção para aspectos relacionados à higienização das cidades, que deveria ser promovida pelo Estado, esclarecendo que, sem isso, de nada valeria toda a ciência da medicina; a essa ação do poder público denominou “medicina política”. Tratando da mesma temática, recomendamos a leitura de FLECK, Eliane Cristina Deckmann; POLETTO, Roberto. ‘En este libro no hallo cosa que se oponga a los dogmas de nuestra Santa Fe ni a las buenas costumbres’: um estudo sobre dedicatórias, prólogos e censuras em tratados de cirurgia e de medicina do Setecentos. Varia História (UFMG. Impresso), v. 29, 2013, p. 125-142. E, ainda, o artigo de FLECK, Eliane Cristina Deckmann; POLETTO, Roberto. Circulação e produção de saberes e práticas científicas na América meridional no século XVIII: uma análise do manuscrito Materia Medica Misionera de Pedro Montenegro (1710). História, Ciências, Saúde-Manguinhos (Impresso), v. 19, p. 1121-1138, 2012, no qual os autores revelam que alguns missionários jesuítas dedicados às artes de curar, como o irmão Montenegro, não se limitaram à adoção de teorias médicas e procedimentos terapêuticos vigentes à época e difundidos através dos manuais médicos, realizando uma série de experimentalismos que visavam sua comprovação ou contestação. Os catálogos de botânica médica, os tratados médico-cirúrgicos e os receituários, que resultaram da sistematização de suas observações e experiências, apontam para a produção de novos conhecimentos médicos e farmacêuticos, condição fundamental para a conformação de uma original cultura científica na América hispânica colonial.

7 Da mesma autora, ver também: A geografia médica e as expedições francesas para o Brasil: uma descrição da estação naval do Brasil e da Prata (1868-1870). História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.14, n.1, p. 39-62, jan.-mar. 2007. Também Flávio C. Edler debruçou-se sobre o relatório da viagem realizada pelo médico francês Alphonse Rendu ao Brasil, entre 1844 e 1845, em artigo intitulado De olho no Brasil: a geografia médica e a viagem de Alphonse Rendu, publicado na Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol.8, supl. 2001, p. 925-943. De acordo com Edler, a obra evidencia a posição estratégica que o Império brasileiro veio a ocupar no programa de pesquisa orientado pelo paradigma etiológico ambientalista, e sua inserção em uma segunda fase da geografia médica, inaugurada a partir da criação dos Archives de Médecine Navale, na década de 1860.

8Sobre a constituição do espiritismo no Brasil, e particularmente, no Rio de Janeiro, ver: GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. Nesta publicação, o autor afirma que, no Brasil, o espiritismo se subordinou ao monopólio de cura conquistado pela medicina, aliando-se ao poder policial para garantir, no campo “religioso”, seu papel privilegiado em relação ao baixo espiritismo, à macumba, ao candomblé, ou seja, aos cultos de origem africana em geral. Sobre a introdução da homeopatia no Rio Grande do Sul, recomenda-se a leitura do artigo de Beatriz Teixeira Weber, Estratégias homeopáticas: a Liga Homeopática do Rio Grande do Sul nos anos 1940-1950, publicado na Revista História Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.2, abr.-jun. 2011, p. 291-302.

9 De acordo com Jaime Rodrigues, as moléstias que atingiam os africanos e seus descendentes na América, tais como a febre amarela e o cólera, provocaram pouca discussão intelectual entre os médicos brasileiros do século XIX e início do XX: “Nas poucas vezes em que essas doenças suscitaram debates, se tratava de discussões muito menos significativas do ponto de vista biológico e muito menos politizadas no meio médico”. Ver mais em RODRIGUES, Jaime. Reflexões sobre tráfico de africanos, doenças e relações sociais. História e Perspectivas, Uberlândia (47): 15-34, jul. / dez. 2012. Recomenda-se também a leitura de PÔRTO, Ângela. O sistema de saúde do escravo no Brasil do século XIX: doenças, instituições e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2006. v, 13, n. 4, p. 1019-1027; BARRETO, Maria Renilda Nery. Assistência ao nascimento na Bahia oitocentista. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, n.4, out.- dez. 2008, p. 901-925. Recomenda-se ainda aos interessados o livro História da saúde na Bahia: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958), organizado pelas historiadoras Christiane Maria Cruz de Souza e Maria Renilda Nery Barreto, que revela aos leitores como a Bahia construiu sua rede de assistência à saúde da população, materializada em instituições públicas, privadas, de caridade, filantrópicas, de investigação e de difusão científica. O livro foi editado pela Fiocruz e Manole, e é de 2011. Outro estudo é o que consta da edição especial da Revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos vol.19 supl.1 Rio de Janeiro Dec. 2012, cujo tema é “Saúde e Escravidão”, organizado por Tânia Salgado Pimenta, Kaori Kodama e Flávio Gomes, que reúne trabalhos de historiadores da escravidão e da saúde, que se utilizam de diferentes abordagens teóricas e metodológicas e de fontes originais ou já conhecidas, reinterpretando-as sob novos ângulos.

10 Do mesmo autor, ver: MOREIRA, Paulo R. S. Com ela tem vivido sempre como o cão com o gato. Alforria, maternidade e gênero na fronteira meridional. In: FARIAS, Juliana, GOMES, Flávio; XAVIER, Giovana. (Org.). Histórias das mulheres negras: condição feminina, escravidão e pós-emancipação no Brasil, séculos XVIII ao XX. 1ª ed. Rio de Janeiro: Selo Negro, 2012. p. 149-171. Tratando, também, desse tema, mas para Minas Gerais, vale destacar a pesquisa de pós-doutoramento realizada por Heloisa Maria Teixeira, intitulada “Entre a escravidão e a liberdade: as alforrias em Mariana no século XIX (1840-1888)”, desenvolvida em 2013, no Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, e, ainda, contemplando a situação em Mato Grosso, a Dissertação de Mestrado intitulada Filhos livres de mulheres escravas (Cuiabá: 1871 a 1888), defendida por Nancy de Almeida Araújo, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFMT, em 2001. Por abarcar o mesmo recorte temporal e tratar da morte e da mortalidade infantil e, em especial, das concepções a respeito da infância dos homens do século XIX nas cidades do sudeste, recomenda-se ver também: VAILATTI, Luiz Lima. A morte menina. Infância e morte infantil no Brasil dos Oitocentos (Rio de Janeiro e São Paulo). São Paulo: Alameda, 2010, em especial a abordagem que faz da emergência de um discurso moderno, médico-cientificizante e aburguesado a partir da década de 1850. Ver também o estudo realizado por Jorge Prata de Souza, A mão-de-obra de menores: escravos, libertos e livres nas instituições do Império. In: SOUSA, Jorge Prata de. Escravidão: ofícios e liberdade. Rio de Janeiro: APERJ, 1999, que se detém na análise dos efeitos do discurso higienista sobre as políticas de inserção da mão-de-obra infantil durante o período do Império.

11 O artigo em questão se propõe complementar estudos já realizados sobre as epidemias que grassaram no Rio de Janeiro nos anos que se seguiram à Proclamação da República. O estudo dialoga com os trabalhos de Sidney Chalhoub e Jaime Benchimol, que abordaram a campanha de saneamento comandada por Oswaldo Cruz, e a de erradicação da varíola e da febre amarela. Sobre a temática, recomendase a leitura do artigo de NASCIMENTO, D. R.; DUARTE Matheus. À caça aos ratos. Revista de História (Rio de Janeiro), v. 67, p. 33-37, 2011.

12 Sobre esta temática ver mais em: BENCHIMOL, Jaime Larry; SÁ, Magali Romero; KODAMA, Kaori (org.). Cerejeiras e cafezais: relações médico-científicas entre Brasil e Japão e a saga de Hydeyo Noguchi. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2009. Trata-se de estudo que aborda o intercâmbio científico associado a grandes fluxos migratórios e reconstitui a trajetória de cientistas japoneses em missões de pesquisa no Brasil no início do século XX, destacando as contribuições relevantes que esse intercâmbio trouxe para ambos os países. Como contribuição aos estudos sobre imigração japonesa, recomendamos a dissertação de mestrado defendida por Aldina Cássia Fernandes da Silva no Programa de Pós-graduação em História da UFMT em 2004, Nas trilhas da memória: uma colônia japonesa no norte de Mato Grosso – Gleba Rio Ferro (1950 – 1960). Neste estudo, Fernandes da Silva trata: da venda, na década de 1950, de uma grande área de terras devolutas em Mato Grosso para várias colonizadoras particulares; do discurso do governo estadual para atrair colonos japoneses; da luta dos imigrantes japoneses para se adequarem às condições da região norte do estado de Mato Grosso.

Eliane Cristina Deckmann Fleck – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected]

Leny Caselli Anzai – Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]


FLECK, Eliane Cristina Deckmann; ANZAI, Leny Caselli. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.6, n.2, ago / dez, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Antiguidade tardia / Territórios & Fronteiras / 2013

Decadência romana ou Antiguidade Tardia? O título da clássica obra do historiador francês Henri-Irénée Marrou sintetiza com simplicidade e de forma brilhante um dos maiores problemas formulados pelo conhecimento histórico, talvez mesmo o maior deles. A análise deste período se confunde com a instituição do próprio campo historiográfico, uma vez que The Decline and Fall of the Roman Empire, de Edward Gibbon, é a obra fundadora e estruturante da forma moderna de produção e escrita da História.

Durante longos anos esta etapa do devir histórico foi analisada, fundamentalmente, a partir dos conceitos de decadência e de declínio. Somente na década de 70 dos novecentos que outra obra seminal, The World of Late Antiquity from Marcus Aurelius to mohammad. AD 150-750, de Peter Brown, colocou o debate em novos termos, abrindo uma nova gama de perspectivas análiticas.

A obra de Peter Brown esta alicerçada na defesa de duas premisas fundamentais: por um lado, compreender a Antigüidade Tardia não como um momento de decadencia e declínio, mas sim como uma época de grande criatividade e inovação que se manifestam principalmente na religião e na cultura; por outro, a afirmação da existência de uma continuidade com o passado, sendo a Antigüidade Tardia a legitima herdeira do legado clássico e a perpetuadora dessa herança.

A partir desta contribuição, os estudos acerca da Antigüidade Tardia assumiram uma nova perspectiva, na qual este extenso período surge conceituado como um momento período histórico caracterizado por uma dialética entre a inovação e a conservação. Os conceitos de decadência e de declínio foram substituídos pelos de transformação e transição.

Os últimos anos marcaram a consolidação do conceito de Antiguidade Tardia e deste período como objeto historiográfico. Nas palavras de Jean-Michel Carrié: “Nos dias de hoje, nós podemos afirmar que a Antiguidade Tardia adquiriu definitivamente um direito à cidadania: não somente a expressão, mas também o período cronológico que designa e que procura reabilitar”. 1

Diferentes tradições historiográficas, inclusive a brasileira, têm refletido e produzido análises de grande densidade acerca de diversos aspectos e questões relativas à Antiguidade Tardia. O presente dossiê da Revista Território & Fronteiras reúne um conjunto de texto de destacados estudiosos do período tardo antigo. Ana Tereza Gonçalves realiza uma saborosa e densa análise da obra de Aurélio Prudêncio, Psychomachia, para discutir as estratégias retóricas utilizadas por autores pagãos e cristãos e, desta forma, refletir acerca das tensas relações entre esses dois grupos que compartilhavam o mesmo universo cultural. Em um instigante artigo, Margarida Maria de Carvalho se dedica a investigar as relações entre os princípios da filosofia neoplatônica professada pelo imperador Juliano e suas práticas militares como um elemento nas negociações com os contingentes “bárbaros” de seus exércitos. Já Gilvan Ventura da Silva explora com argúcia as principais estratégias adotadas pelas autoridades eclesiásticas na Antiguidade Tardia com a finalidade de difundir e consolidar o cristianismo nas cidades do Império Romano, bem como sobre os impasses da cristianização, enfatizando o caso da cidade de Antioquia por meio dos discursos de João Crisóstomo. A densa contribuição de Eduardo Fabbro coloca em questão o conceito de “germano” e o seu uso como instrumento de construção de um argumento historiográfico que sustenta uma parcela significativa dos estudos sobre a natureza das “invasões germânicas” e dos reinos romano-germanos. Finalmente Renan Frighetto encerra de forma exemplar esse dossiê apresentado uma fina e complexa discussão acerca do conceito de Antiguidade Tardia a partir de uma perspectiva da História Política, que tem como foco analítico a Hispania visigoda.

Este dossiê, portanto, apresenta uma ampla panorâmica dos estudos tardo antigos na historiografia brasileira, demonstrando não somente o amadurecimento deste campo de pesquisa e sua exuberante variedade temática, mas também a sua densidade, capaz de produzir análises de aliam profundo conhecimento e domínio documental com uma sólida reflexão teórico e conceitual.

Finalmente não poderíamos encerrar essa apresentar sem destacar o fato de que este dossiê é um dos primeiros frutos da recente parceria estabelecida entre o NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos e o VIVARIUM – Laboratório de Estudos da Antiguidade e Medievo.

Nota

1. CARRIE, Jean-Michel e ROUSELLE, Aline. L’Empire Romain en Mutation. Des Séveres à Constantin 192-337. Paris: Éditions Du Seuil, 1999. p.11.

Marcus Silva da Cruz – Universidade Federal de Mato Grosso


CRUZ, Marcus Silva da. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.6, n.1, jan / jul, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de história e historiografia / Territórios & Fronteiras / 2013

Viajamos não só para eludir problemas constringentes da vida pessoal, nacional ou universal, mas para tentar uma identificação com o mundo, uma nova leitura de ambientes diversos. [1]

É com grande satisfação que apresentamos aos leitores de Territórios & Fronteiras o dossiê intitulado Ensino de História e Historiografia, que congrega o esforço de tematizar a relevância da história como disciplina escolar, focalizando suas potencialidades (e dificuldades) para a formação da consciência histórica das crianças e jovens, no diálogo com a historiografia e com os diversos agentes situados no cenário político, econômico, sociocultural, educacional.

Em sociedades complexas, plurais, diversas e divergentes, como estas em que vivemos na contemporaneidade, é sempre pertinente perguntarmo-nos sobre o sentido de ensinar e aprender história. Dito de outra forma, necessário é identificar em que aspectos fundamentais residem as potencialidades formativas da história ensinada em contextos escolares. Para cumprir esse propósito, partimos do pressuposto de que os conteúdos escolares se constituem nos processos de decodificação da cultura disponível na sociedade. Essa cultura selecionada (e privilegiada) está distribuída em torno de uma dúzia de disciplinas escolares que, grosso modo, resultam do consenso possível (sempre tenso e conflituoso) sobre o que as sociedades de cada época consideram conhecimento para todos [2].

Ainda, no processo de constituição dos conteúdos escolares ocorre a descontextualização do conhecimento em relação ao locus original da produção sociocultural e da área / ciência de referência, e a recontextualização em cenários escolares. Nesse percurso de descontextualização / recontextualização atuam inúmeros agentes [3], que vão desde aqueles mais externos à escola, como as políticas educacionais públicas, a sociedade civil, a cultura dominante, o mercado editorial, como aqueles elementos / atores que incidem diretamente dentro da escola, a exemplo de assessores pedagógicos, famílias, professores, alunos, materiais didáticos, dentre outros.

Com base em tais pressupostos, precisamos saber justificar por quais razões o conhecimento histórico foi privilegiado no seleto rol de conhecimento para todos e por que a história se encontra no elenco dessas cerca de doze disciplinas escolares da educação básica. Para cumprir esse propósito, trazemos aqui alguns argumentos sumários em torno das potencialidades formativas da história escolar na atualidade [4].

Ao debruçar-se sobre as experiências das diferentes sociedades em outros tempos e espaços, a história escolar dá a conhecer as chaves de funcionamento social do passado, constituindo-se assim uma espécie de laboratório para realizar exercícios de análise dos problemas enfrentados pelos sujeitos e grupos que nos antecederam. Nessa apropriação das chaves de funcionamento do passado, os jovens se capacitam, em maior ou menor medida, para compreender a complexidade dos fenômenos atuais, para dar inteligibilidade ao tempo presente e para melhor se situar na complexidade da vida contemporânea.

Existem noções e conceitos, verdadeiras categorias de análise do mundo social, que não são tratados com centralidade por nenhuma outra disciplina escolar além da História, como, por exemplo: pensamento histórico, consciência histórica, evidência, empatia, causalidade, multicausalidade, tempo, acontecimento, contexto, processo, dentre outros. Tais noções e conceitos são essenciais para a formação dos jovens, como chaves de leitura da experiência histórica que permitem aprender que todos os fenômenos pertencem à temporalidade, que há linhas de continuidade e semelhanças, mas também há rupturas, diferenças, mudanças.

A formação para a cidadania constitui uma das finalidades primordiais dos sistemas educativos contemporâneos. A história escolar traz contribuição fundamental neste intento, na medida em que coloca os jovens em contato com outras culturas, fazendo-os dialogar com as diversas maneiras com que os homens de outras épocas e lugares responderam aos desafios do seu próprio tempo, desenvolvendo sensibilidade social e estética, além de critérios para o pensamento crítico.

Nos limites dessa apresentação, não nos é permitido seguir tematizando as finalidades e potencialidades da história nos contextos escolares, ainda que esse breve anúncio não tenha conseguido dar conta do ambicioso propósito. De tal modo, para finalizar, concedemos a palavra aos autores que trazem suas contribuições a este dossiê.

O artigo Historiografia didática e prescrições estatais sobre conteúdos históricos em nível nacional (1938-2012), de Margarida Maria Dias de Oliveira e Itamar Freitas, inaugura o dossiê. Com a indagação “o que tem a ver o Estado com a elaboração dos conteúdos dos livros didáticos de História?”, os autores perscrutam os dispositivos normatizadores da produção, avaliação, circulação e usos do livro didático ao longo de grande parte do período republicano. Adotando acurada análise documental, Margarida e Itamar disponibilizam aos leitores elementos para compreender a eficácia do “sujeito Estado no trabalho da escrita didática da História”, no recorte temporal estabelecido, mas não deixam de apontar os espaços de manobra que podem ser aproveitados pelos autores, quando produzem textos didáticos para uso na história escolar.

Na sequência, Alexsandro Donato de Carvalho e Luís Alberto Marques Alves oferecem aos leitores o artigo intitulado A cidadania e a política educacional do governo Fernando Henrique Cardoso, no qual procuram demonstrar como o conceito de cidadania se instituiu na história brasileira, em suas articulações com as políticas educacionais recentes e com a história acadêmica e escolar. Concluem os autores que os documentos orientadores da educação brasileira no período estudado contemplaram a cidadania como meta a ser alcançada em diversas propostas curriculares e disciplinas, o que não significa que a mesma tenha realmente sido efetivada nas práticas escolares cotidianas.

Mairon Escorsi Valério e Renilson Rosa Ribeiro, com o artigo Para que serve a história ensinada? A guerra de narrativas, a celebração das identidades e a morte da política, convidam os leitores a refletirem sobre as implicações subjacentes aos atuais processos de deslocamento de um viés de ensino de história atrelado ao culto do Estado-nação, para uma perspectiva que exalta as memórias biográficas das pequenas comunidades. Num tom provocativo, os autores questionam se tal deslocamento não significaria a reprodução “da mesma lógica de fazer da história um discurso produtor de identidades essencialistas”, que negam a alteridade e terminam por fomentar a “desconstrução contínua e ininterrupta da esfera pública, o que representa por fim a morte da política”.

A narrativa histórica nos livros didáticos, entre a unidade e a dispersão, de autoria de Helenice Rocha, focaliza a discursividade que consubstancia os textos dos livros didáticos de história como um dos principais fatores de complexidade deste suporte cultural. Tomando como campo de análise o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e uma coleção aprovada em seu âmbito, a autora investiga os meios e recursos mobilizados pelos produtores de livros didáticos para fazer dialogar o texto principal e os textos complementares, concluindo que suas estratégias estão predominantemente relacionadas à manutenção da unidade da narrativa histórica.

Seguindo, Flávia Eloisa Caimi e Fabiano Barcellos Teixeira apresentam o artigo O passado é imprevisível! Controvérsias historiográficas acerca da Guerra do Paraguai no livro didático de História (1910-2010), que resulta de uma pesquisa diacrônica e longitudinal, onde se cotejaram as principais interpretações historiográficas sobre a Guerra do Paraguai, com as abordagens presentes nos livros didáticos ao longo de onze décadas. Partindo do propósito de identificar mudanças, permanências, tensões e diálogos que se estabelecem nas relações entre a produção historiográfica e a produção didática, os autores apontam uma aproximação bastante sensível entre esses dois universos, colocando sob suspeita a ideia comum de que existe um abismo temporal entre eles.

No artigo de Mauro Cezar Coelho e Wilma de Nazaré Baía Coelho sob o instigante título “Jogando verde e colhendo maduro”. Historiografia e saber histórico escolar no ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira, os leitores encontram uma discussão sobre o lugar da historiografia na conformação do saber histórico em projetos escolares orientados pela instituição da Lei 10.639 / 2003. Os autores indicam como principais desafios aos professores de História, o tratamento historiográfico do tema para promover uma consciência que resulte da crítica à memória, bem como a reflexão sobre um tipo de saber histórico escolar que ultrapasse visões eurocêntricas, sem promover outros mitos, cujos desdobramentos possam ser igualmente danosos.

Por fim, Ernesta Zamboni e Sandra Regina Ferreira de Oliveira trazem o artigo Resposta para uma aluna: são muitas as possibilidades para a escola pública. As autoras adentram as especificidades do espaço da escola por meio de um projeto de pesquisa em que buscam conhecer / problematizar o que os atores que lá estão entendem por histórias de sucesso escolar. Tomando para análise um rico material empírico, Ernesta e Sandra “discorrem sobre minúcias do cotidiano escolar que interessam a professores e pesquisadores de todas as áreas de conhecimento” defendendo que, a despeito da complexidade dos problemas que emergem dos espaços escolares, existem “muitas possibilidades para se fazer da escola um lugar melhor”.

O conjunto dos artigos do presente dossiê congrega pesquisadores da área de diferentes instituições de ensino das cinco regiões do Brasil e de Portugal. A diversidade das abordagens e temáticas apresentadas aqui traduz o universo amplo e rico de estudos em desenvolvimento nos territórios do Ensino de História no país, sempre expandindo e ressignificando suas fronteiras, construindo novas formas de pensar, ensinar e pesquisar o nosso fazer na interface entre a História e a Educação.

No lugar da fronteira, onde nos encontramos, podemos vivenciar, trocar e compartilhar saberes e práticas, mas também historiar os caminhos percorridos pela historiografia do Ensino de História, evidenciando escolhas de temas, teorias, metodologias e fontes de um campo de pesquisa em permanente diálogo com ensino e vice-versa.

Para a construção do presente dossiê se constituiu uma rede de interlocutores de diferente moradas com afinidades intelectuais e afetivas – que desfrutam, conforme propõe Jacques Derrida [5], de uma hospitalidade sem propriedade.

Notas

1. MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 1071.

2. Categoria apresentada por Javier Marrero Acosta, no artigo “O currículo interpretado: o que as escolas, os professores e as professoras ensinam?” In: SACRISTÁN, José Gimeno (Org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013, p. 188-208.

3. Ibidem. p. 190.

4. Essa breve sistematização está amparada especialmente nos estudos de Joaquín Prats, a partir das seguintes referências: PRATS, Joaquin. Ensinar história no contexto das ciências sociais: princípios básicos. Educar. Curitiba, n. esp., 2006, p. 191-218; PRATS, Joaquín (coord.). Geografía e Historia: investigación, innovación y buenas prácticas. Barcelona: Editorial Graò, 2011; PRATS, Joaquín e SANTACANA, Juan. Por qué y para qué enseñar Historia? In: GUTIÉRREZ, Leopoldo F. R.; GARCÍA, Noemí G. Enseñanza y aprendizaje de la Historia en la Educación Básica. Cuauhtémoc, México, D.F: Secretaría de Educación Pública, 2011.

5. DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.

Flávia Eloisa Caimi – Universidade de Passo Fundo – UPF. E-mail: [email protected]

Renilson Rosa Ribeiro – Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. E-mail: [email protected]


CAIMI, Flávia Eloisa; RIBEIRO, Renilson Rosa. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, número especial, v.6, n.3, dez, 2013. Acessar publicação original [DR]

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História e Historiografia / Territórios & Fronteiras / 2012

O conjunto de textos que compõem o presente dossiê tem como espoco analítico abordar o campo de estudo da “historiografia” a partir de temáticas, temporalidades, prismas teóricos diversos. Há abordagens, por exemplo, que variam desde o estudo do trato dado a noção de história por Hannah Arendt até as configurações da historiografia regional de Mato Grosso. Como o leitor poderá observar, a riqueza das discussões reside justamente na tentativa de aproximação desta diversidade de olhares e de concepções sobre Teoria, Historiografia e História.

Dentro deste cenário, a proposta de Ricardo Gião Bortolotti, eminente filósofo de formação densa nos quadros da UNESP e PUS-SP e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP–Assis), em seu estudo “Vagueza e indeterminação na noção de História de Arendt” centra-se na análise de alguns escritos de Hannah Arendt a respeito da narrativa histórica à luz das leituras das teorias da cognição e do signo de Charles S. Pierce, numa lógica de aproximação entre o “modo de conceber o pensamento e a linguagem” em ambos como frutos da experiência e da indeterminação, o que lhes conferiria status de narrativa livre para além das “regras transcendentais”.

Em seguida, somos brindados com uma perspicaz discussão sobre o papel dos intelectuais no mundo social, feita com clareza ímpar pelo historiador Rodrigo Davi Almeida, professor do Departamento de História da UFMT, autor de um doutoramento e de um livro (Sartre no Brasil: expectativas e repercussões, UNESP, 2009) a respeito de ninguém menos que Jean-Paul Sartre, certamente um dos intelectuais mais expressivos e combativos do século XX. A discussão feita por Rodrigo Davi Almeida sobre esta temática contribui para os estudos historiográficos na medida em que delimita, com clareza, as posições de três importantes teóricos a respeito deste campo, a saber: o historiador Jean-François Sirinelli; o filósofo Jean-Paul Sartre e o cientista político Norberto Bobbio. As noções de engajamento e fazer político são centrais neste estudo.

Milton Carlos Costa, historiador com formação sólida entre a escola europeia (Leuven-Bélgica) e a brasileira (USP), com um diálogo inicialmente forte com o marxismo e posterior aproximação com a historiografia da Escola dos Annales, é professor Livre-Docente do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UNESP-Assis, e nos apresenta aqui um estudo intitulado “Duby: uma perspectiva histórica sobre as mulheres medievais”. Neste texto o autor aborda, de forma detalhada, uma das temáticas mais instigantes do medievo no século XII, o casamento e o papel social das mulheres. Desenvolve tal temática por meio de interpretação e análise minuciosa do livro Heloísa e Isolda e outras damas do século XII, obra de um dos mais importantes historiadores do período, Georges Duby, medievalista que expressa uma forma de historiografia francesa proveniente da Escola dos Annales e que, nesta obra, demonstra com sutileza “como as mulheres medievais foram submetidas às mentalidades e práticas de controle de uma sociedade profundamente misógina”.

O quarto texto deste dossiê é de Cândido Moreira Rodrigues, historiador vinculado ao Departamento e ao Programa de Pós-Graduação em História da UFMT, autor de A Ordem: uma revista de intelectuais católicos-1934-1945 (Autêntica, 2005) e Intelectuais & Comunismo no Brasi: 1920-1950 (EdUFMT, 2011). Formado na escola historiográfica paulista e com forte diálogo com a historiografia francesa, política e cultural, o autor apresenta aqui o texto “Notas sobre a ‘fortuna crítica’ do intelectual Alceu Amoroso Lima”, onde mapeia e descreve os alguns dos principais trabalhos (teses, dissertações e livros) a respeito do crítico literário, político e religioso Alceu Amoroso Lima produzidos recentemente. O texto serve como uma das muitas referências para os pesquisadores e estudiosos da trajetória deste importante intelectual das letras e da pólítica brasileira, embora não se pretenda e nem apresente uma recensão completa e absoluta dos trabalhos sobre este intelectual.

O estudo que encerra esta seção é fruto do trabalho coletivo dos historiadores Vitale Joanoni Neto, Maria Adenir Peraro, Otávio Canavarros e Fernando Tadeu de Miranda Borges: todos professores do Programa de Pós-Graduação em História da UFMT e com importante produção sobre a história do Brasil, com ênfase na sua interface com as especificidades do regional, neste caso a historiografia de Mato Grosso. Os autores são formados nas tradições intelectuais das escolas, paulista (USP, UNESP) e paranaense (UFPR), com trabalhos que transitam nos campos da história econômica, história social e história cultural. O texto apresentado é fundamental para a compreensão de parte da formação do campo dos estudos historiográfico sobre o Mato Grosso, neste caso com destaque para a produção dos historiadores vinculados às instituições universitárias de Mato Grosso: Universidade Federal de Mato Grosso e Universidade do Estado de Mato Grosso. Destaca-se a análise a respeito do processo de construção de parte do campo historiográfico mato-grossense, expresso tanto por meio da formação dos quadros profissionais, entre as décadas de 1980 e 2000, quanto pela consolidação das Instituições de Ensino e Pesquisa no Estado. Sendo assim, este dossiê é encerrado com este texto classicamente exemplar, onde o leitor poderá visualizar a formação do “campo” historiográfico mato-grossense por meio do olhar de alguns dos seus expoentes e igualmente depreender as mudanças no seu interior a partir das aproximações e distanciamentos, teórico-epistemológicos, entre os agentes e gerações.

Cândido Moreira Rodrigues – Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]


RODRIGUES, Cândido Moreira. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.5, n.1, jan / jul, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Mato Grosso: história e historiografia / Territórios & Fronteiras / 2012

A Territórios & Fronteiras do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, ao trazer no presente número o dossiê “Mato Grosso: História e Historiografia”, dá continuidade ao objetivo de aproximar historiadores e historiadoras de várias instituições de pesquisa e ensino do país, responsáveis pela garimpagem de temáticas recorrentes na historiografia brasileira e mundial. A localização de fontes e instrumentos de pesquisa inéditos, dispostos em acervos e arquivos nacionais e internacionais, e também disponibilizados em meios eletrônicos, permitiu a estes estudiosos e estudiosas a coleta e a feitura de cinco artigos, tidos por nós, como autênticas “gotas do melhor licor de pequi do cerrado”. A seguir, o convite para degustarem das leituras.

André Nicásio de Lima, em “Mato Grosso e a geopolítica da Independência (1821-1830)”, ao analisar a situação mato-grossense nas primeiras décadas do século XIX, traz as tensões estabelecidas entre as Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa e o Reino Unido do Brasil, particularmente no curto período de gestão do Príncipe Regente D. Pedro I, em que foram gerados, segundo o autor, novos espaços de poder e representação, e que entraram em contraposição com as estruturas políticas constituídas ao longo do período colonial. De acordo com Lima deve-se ter em conta no processo “as transformações resultantes da reorientação da geopolítica portuguesa para a fronteira Oeste na virada para o século XIX”.

Ione Aparecida Martins Castilho Pereira, João Ivo Puhll e Otávio Ribeiro Chaves, em “Indios de Mojo e Chiquitos no contexto colonial ibérico do século XVI ao XVIII”, embrenham-se na intrincada trama da memória para localizar o que para eles foi denominado de “um espaço de relações tensas de fronteira” entre portugueses e espanhóis. Para os portugueses, um espaço a ser ocupado definitivamente visando a manutenção de suas possessões no extremo oeste da Capitania Geral de Mato Grosso e Goiás e, para os espanhóis, ações de constantes oposições mediante a fundação de missões jesuíticas, com o propósito de firmar o direito de posse sobre as margens do rio Guaporé. Segundo os autores, nesse espaço “novas espacialidades foram criadas, (re) significadas e (re) elaboradas, conduzindo a novas realidades históricas e sínteses culturais”.

Maria de Lourdes Fanaia, em “O silêncio sobre a Rusga nos livros didáticos de História”, reafirma a importância da inserção dessa temática no âmbito da historiografia nacional, com vistas à ampliação do conhecimento histórico sobre as revoltas regenciais no Império Brasileiro. Ainda, segundo Fanaia, o episódio de “30 de maio de 1834”, ocorrido em Cuiabá, e em localidades próximas, não foi um fato isolado, mas parte integrante do movimento do Período Regencial, e a observação de que “as práticas do processo ensino-aprendizagem precisam ser revisadas diante das mudanças historiográficas”.

Marinete Aparecida Zacharias Rodrigues, em “Justiça e Ordem: discurso político e contexto criminal no Sul da Província de Mato Grosso de 1870 a 1889”, apresenta-nos aspectos de algumas proposições apontadas por pensadores da história do pensamento político para analisar os discursos oficiais elaborados pelas autoridades que administraram a província de Mato Grosso no período posterior a Guerra com o Paraguai. E neste sentido, segundo a autora, “a escassez de funcionários instruídos, leia-se pessoas qualificadas para cargos no judiciário, polícia e administração, criaram barreiras e conflitos ao exercício da autoridade legal e a estabilidade das posições sociais conquistadas.”

Nanci Leonzo, em “A propósito do beribéri”, lança algumas observações sobre o percurso do beribéri em várias regiões do mundo, e em que momento e como teria se manifestado em Mato Grosso. Ao refazer o trajeto percorrido pelo beribéri, a autora surpreende-nos com um criterioso levantamento de fontes e bibliografia sobre o tema, e torna o artigo uma importante contribuição à história do nosso corpo, ao dissecar a relação saúde e sociedade na história da medicina social. Na interpretação de Leonzo, “O retorno do beribéri expõe a miséria cotidiana e em certo sentido crônica de parte dos trabalhadores brasileiros esquecidos em longínquos espaços do território nacional. […] É o presente contaminado por um passado longínquo e pleno de desgraça humana”.

Nauk Maria de Jesus, em “A capitania de Mato Grosso: História, historiografia e fontes”, divulga pesquisas que por vezes, “ficam restritas aos seus locais de produção”. Após apresentar e discutir narrativas de cronistas do século XVIII, propõe uma divisão da historiografia do período colonial mato-grossense em três momentos históricos distintos: a) antes da década de 1970; b) entre as décadas de 1970 e 1990; e c) pós 2000 e, indica, para efeito de divulgação, o “Guia de Fundos e Coleções do Arquivo Público de Mato Grosso” (APMT).

Maria Adenir Peraro – E-mail: [email protected]

Fernando Tadeu de Miranda Borges


PERARO, Maria Adenir; BORGES, Fernando Tadeu de Miranda. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.5, n.2, jul / dez, 2012. Acessar publicação original [DR]

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Estudos medievais / Territórios & Fronteiras / 2011

Pela primeira vez, em mais de uma década de publicações, a revista Territórios & Fronteiras apresenta um dossiê de estudos que ultrapassam o recorte cronológico da História do Brasil, trazendo ao público um conjunto de artigos versados nos Estudos Medievais. Constituído pelas contribuições dos professores Dr. Mário Jorge da Motta Bastos (Universidade Federal Fluminense / Translation Studii), Dra. Fátima Regina Fernandes (Universidade Federal do Paraná / NEMED), Dra. Maria Filomena Coelho (Universidade de Brasília / PEM) e Dra. Maria Simone Marinho Nogueira (Universidade Estadual da Paraíba / Principium), e organizado por mim, no âmbito do Vivarium – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo da Universidade Federal de Mato Grosso -, este dossiê é emblemático, de diversas maneiras.

Composto por pesquisadores de diferentes regiões do país, ele representa, fidedignamente, a escala nacional de nosso medievalismo, que, cada vez mais, abarca a dimensão continental de nossa malha universitária continental e uma diversificação de objetos de estudo. Em segundo lugar, esta mesma amplitude do dossiê Estudos Medievais indica a crescente abrangência do leque de interlocução acadêmica cultivado pelo Vivarium, e como tal a contínua ampliação dos horizontes de pesquisa e atuação intelectual do Programa de Pós-Graduação em História da UFMT.

Todavia, o traço mais notável a ser destacado deste conjunto de estudos – traço que sintetiza todas as características mencionadas acima – consiste em sua constituição como apelo prático à contínua renovação temática e auto-reflexão no âmbito dos estudos históricos e do próprio medievalismo brasileiro. A exortação à renovação temática fica patente através da leitura do artigo da professora Maria Filomena Coelho, A Territoriarização de “Mosteiros Nobres”: experiências de assentamento e de domínio (Leão, séculos XII e XIII). A temática em questão – a instituição discursiva e prática do domínio territorial de três mosteiros de fundação nobiliárquica do antigo reino de Leão – é explorada de uma maneira que demonstra o quanto ainda podemos ser surpreendidos por problemáticas que muitos historiadores, precipitadamente, consideram superadas: a constituição e a dinâmica efetivas das instituições. Mantendo uma salutar distância crítica de uma coordenada comum ao conhecimento histórico, a autora demonstra que o institucional não é sinônimo de “impessoal” ou “relações sociais burocratizadas”, uma vez que uma das mais basilares formas institucionais da Idade Média – as redes monásticas – mantinha a regularidade de estruturação e territorialização a estratégias familiares e políticas de patrimonialização do poder.

De modo semelhante, mas sob uma perspectiva marcada por nuances irredutíveis, apresenta-se o artigo da professora Fátima Regina Fernandes, intitulado Dinis, o Infante, e Nuno, o Condestável: dois modelos de nobre na época de Aljubarrota. Neste caso, o texto mantém como temática de fundo – mas inserida no cerne das discussões – a centralização das monarquias ibéricas no século XIV, outra temática considerada “clássica” no estudo das instituições políticas medievais. Neste caso, a autora problematiza os dois personagens em questão como protagonistas de dois perfis nobiliárquicos distintos, que seriam apropriados pelas gerações seguintes na forma de modelos ideais de atuação política, respaldados e perpetuados por trabalhos cronísticos em posteriores lutas pelo controle e legitimação das relações de poder na história portuguesa.

O estímulo à renovação temática pode ser depreendido da publicação do artigo da professora e filósofa Maria Simone Marinho Nogueira, Conhecer e Amar na Carta a Albergati de Nicolau de Cusa. A autora debruça-se sobre um filósofo fundamental para a constituição do chamado Canône Filosófico Ocidental, cujo pensamento frequentemente é situado como idéias nascidas na fronteira de duas épocas: o declínio da Idade Média e os primórdios da Modernidade. O texto se detém no estudo da carta escrita pelo Cusano a Nicolau Albergati, epístola comumente considerada como um testamento filosófico-religioso do pensador do século XV, na qual são tratadas as relações intrínsecas existentes entre o amor e o conhecimento.

Por fim, o artigo do professor Mário Jorge – texto que tem como título Conflitos Sociais e Processo Histórico na Alta Idade Média – dita o tom do apelo à auto-reflexão dos historiadores. Em uma discussão calcada na proposição de uma História Global dos conflitos sociais durante a Alta Idade Média, premissa comumente estimada como superada nos quadros historiográficos atuais, o autor exorta os leitores e pesquisadores para a inadiável necessidade de oferecermos não apenas “resultados de pesquisa”, mas a efetividade de diálogos críticos sobre a explícita concepção adotada sobre o oficio do historiador. Como afirmou o professor, “a controvérsia e o debate são condições sine qua non do conhecimento científico, do seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, e é difícil até imaginar em que nível estaria o quadro geral de nossos conhecimentos se o consenso constituísse o estado normal imperante nos vários ramos do saber”. Apelo tanto mais meritório na medida em que advém de páginas calcadas não em modismos conceituais passadiços, mas em uma teoria visceral à constituição epistemológica do próprio conhecimento dos historiadores, como é o caso do materialismo histórico-dialético.

Com este rol de estudos a revista Territórios & Fronteiras sela a ampliação de sua pauta de publicações, renovando seu compromisso com a diversificação e o enriquecimento dos estudos históricos.

Cuiabá, 23 de dezembro de 2011

Leandro Duarte Rust – Universidade Federal de Mato Grosso / Vivarium


RUST, Leandro Duarte. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.4, n.2, jul / dez, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Memórias, Narrativas e Fronteiras de Gênero / Territórios & Fronteiras / 2011

“Memórias, narrativas e fronteiras de gênero” foi idealizado a partir do Simpósio Temático 45 do Seminário Internacional Fazendo Gênero 9, realizado em Florianópolis (SC) em agosto de 2010. Nesse evento encontraram-se as três historiadoras que ora assumem a organização deste dossiê. Janine e Temis eram as coordenadoras do simpósio e Ana Maria estava inscrita para apresentar trabalho, como as outras também o fizeram. Conhecíamo-nos de outros eventos acadêmicos, mas o contato naquele momento conduziu à ideia de propormos um dossiê para a revista Territórios & Fronteiras, aproveitando a noção de fronteira que permeava as nossas discussões teóricas e conceituais, a aproximação de uma de nós com o Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e a temática da revista. O propósito era utilizar a metáfora das fronteiras que nos separam fisicamente em cinco regiões geográficas e aproximar, ligar ou unir alguns artigos num debate comum sobre gênero.

A noção de fronteira inspira-se em Labache & Saint Martin* . Por um lado, as fronteiras delimitam os contornos das categorias sociais (a participação desigual dos indivíduos na vida social) e, por outro, abrem espaços de troca e de encontro para que as classes se comuniquem entre si. As fronteiras separam o “nós” do “eles” e interrompem, circunscrevem ou produzem segregações na distribuição de populações ou de atividades dentro das sociedades. Essas fronteiras não são dadas: constroem-se, ultrapassam-se e desconstroem-se no tempo e com o tempo.

Os cinco artigos, de uma forma ou de outra, abordam modos de percepção e os processos de construção ou transgressão das fronteiras de gênero. Os trabalhos das autoras que circunscrevem as cinco regiões do Brasil (aqui, fronteira no conceito tradicional de espaço) tratam de estudos bem diferentes realizados nos seus contextos específicos. Ana Maria Marques (Universidade Federal de Mato Grosso – CentroOeste) apresenta sua pesquisa sobre a revista A Violeta e problematiza o feminismo da “primeira onda” por intermédio desse periódico no âmbito de uma Cuiabá e um Brasil da primeira metade do século XX. Carolina dos Anjos Nunes de Oliveira (Universidade Federal de Pernambuco – Nordeste) mostra sua pesquisa de mestrado sobre as “profissionais do sexo” nos discursos de jornais da Bahia no período entre 1930 e 1950 e discute os conflitos que emergem da visibilidade que elas ganham no espaço urbano. Janine Gomes da Silva (Universidade Federal de Santa Catarina – Sul), em coautoria com Valéria König Esteves, aborda a dinâmica do turismo rural em Joinville (SC) na sua interface com as questões da memória e do patrimônio alimentar. Lidia M. V. Possas (Universidade Estadual de São Paulo – Sudeste), por meio de sua pesquisa literária, enfoca as fronteiras das narrativas de mulheres na década de 1930 em São Paulo. Temis Gomes Parente (Universidade Federal do Tocantins – Norte) aborda a vulnerabilidade dos(as) adolescentes na fronteira do extremo norte do Tocantins e a situação de marginalidade construída historicamente nas relações familiares e de trabalho que ali se estabeleceram.

Buscando apreender os processos de enfraquecimento de fronteiras sociais hierarquizadas e experiências de ruptura de fronteiras abordadas em cada texto, convidamos a todos e a todas a empreenderem uma viagem pelos cinco (en)cantos deste Brasilzão!

Nota

* LABACHE, Lucette; SAINT MARTIN, Monique de. Fronteiras, trajetórias e experiências de rupturas. Educação & Sociedade, v. 29, n. 103, p. 333-354, maio / ago. 2008. Centro de Estudos Educação e Sociedade Brasil.

Ana Maria Marques

Janine Gomes da Silva

Temis Gomes Parente


MARQUES, Ana Maria; SILVA, Janine Gomes da; PARENTE, Temis Gomes. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.4, n.1, jan / jul, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Territórios & Fronteiras | UFMT | 2008

Territorios e Fronteiras3 Territórios

A Revista Territórios e Fronteiras (Cuiabá, 2008-) publica artigos, resenhas, entrevistas, dossiês e edições críticas de documentos relacionados, preferencialmente, à disciplina da História e aos temas associados à constituição de territórios e fronteiras na história, em suas diferentes formas, realidades e dimensões. Administrada e apoiada financeiramente pelo Programa de Pós-graduação em História da UFMT, cuja área de concentração é “História, Territórios e Fronteiras”, a revista tem por meta constituir um espaço de debates e de divulgação da produção científica vinculada a esses temas. O periódico também recebe contribuições interdisciplinares e ligadas a áreas afins, a exemplo da Sociologia, Antropologia, Educação, Geografia, Ciência Política, Relações Internacionais etc.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 1984-9036

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