The Ark before Noah: decoding the story of the flood | Irving Finkel

Segundo informa o site oficial do British Museum, o filólogo e assiriólogo Irving Finkel é o atual responsável assistente (Assistent Keeper), curador encarregado das tabuinhas com inscrições cuneiformes provenientes da Mesopotâmia, no Departamento de Oriente Médio do British Museum, encargo que envolve leitura e tradução de toda sorte de inscrições, algumas vezes trabalhando em antigos arquivos para identificar manuscritos que possuem relação entre si, ou até pertençam ao mesmo texto.

Este pesquisador experiente, com diversas publicações especializadas em seu currículo, em 2014 lançou um livro mais voltado ao grande público: The Ark before Noah: decoding the story of the flood. Este texto se encontra dividido em quatorze capítulos: About this Book (pp. 1-11); The Wedge between Us (pp. 12-29); Words and People (pp. 30-83); Recounting the Flood (pp. 84-104); The Ark Tablet (pp. 105-110); Flood Warning (pp. 111-122); The Question of Shape (pp. 123-156); Building the Arks (pp. 157-183); Life on Board (pp. 184-211); Babylon and Bible Floods (pp. 212-223); The Judaean Experience (pp. 224- 260); What Happened to the Ark? (pp. 261-297); What is the Ark Tablet? (pp. 298-309); Conclusions: Stories and Shapes (pp. 310-315).

Além destes capítulos, o livro traz mais quatro apêndices: Ghosts, the Soul and Reincarnation (pp. 316-326); Investigating the Texto of Gilgamesh XI (pp. 327332); Building the Ark – Technical Report (pp. 333-356); Reading the Ark Tablet (pp. 357- 366).

The Ark before Noah se desdobra em dois focos complementares: a tradução da Tabuinha da Arca, na qual se encontra a primeira referência conhecida aos animais entrando “de dois em dois” (p. 189), e a descrição das medidas e da forma inusitada da embarcação: não a tradicional imagem do barco fino de proa arrebitada, mas antes uma arredondada, como uma gigantesca cesta trançada. Para chegar a tais detalhes, contudo, Finkel esboçou uma longa genealogia das histórias do dilúvio, de suas representações mais primitivas, sumerianas, até sua chegada à Bíblia e sua difusão pelo mundo todo. Este segundo foco, bem mais extenso, confere àquele primeiro, mais central, a relevância historiográfica do seu achado, um cenário que cruza milênios de recontagem da narrativa do dilúvio.

A erudição do autor se mostra quando ele encontra no objeto de sua pesquisa um significado que transcende o material, o relato de uma determinada realidade. Sem deixar de combater aqueles que propugnam a veracidade histórica do dilúvio, antes narra o significado cultural dessa história, cuja “preocupação central é a fragilidade da condição humana e a incerteza a respeito dos planos divinos”, que tem inspirado “pensadores, escritores e pintores” e se deslocou “para além dos limites da escritura e do sagrado, tornando-se uma inspiração para ópera moderna e cinema” (p. 84). Em diversos momentos, sua obra soa ecos, inconfessos, de vários modelos historiográficos em voga nas últimas décadas do século XX, nomeadamente a História Cultural – uma leitura de seu livro à luz, por exemplo, de Roger Chartier, é uma experiência extremamente válida.

Um fator que merece destaque é a escrita de Finkel: não obstante boa parte de sua produção acadêmica ser voltada para textos científicos, desde há muito ele trabalha pela popularização do conhecimento, inclusive participando de programas no British Museum que, no Brasil, chamaríamos de extensão. Assim sendo, ele redigiu um livro extremamente agradável; erudito e referenciado, mas nem por isso menos deleitável. Interessante salientar que, ao tratar deste assunto, ele optou por um modelo bem conhecido do grande público, o da “busca pela arca” e subverteu-o, pois enquanto os escritores religiosos, os “caçadores”, perambulavam pelas montanhas turcas atrás artefatos materiais ou provas indiscutíveis da veracidade do texto bíblico, Finkel elaborou uma busca imaterial, cultural, da memória do dilúvio, que joga luz sobre o seu próprio achado cuneiforme.

Desde a primeira parte do livro, o autor teve a precaução de apresentar a disciplina na qual milita aos leitores menos afeitos a ela, e com o humor que é sua característica, inicia seu texto no ano de 1872 (p. 1), quando George Smith, então assistente do British Museum, conseguiu ler um trecho referente ao dilúvio numa tabuinha, fato que causoulhe tamanha emoção que gerou ataque nervoso, sofrido por julgar ter encontrado o que acreditava ser então a prova definitiva de que a gigantesca inundação realmente acontecera; não se tratava mais de uma referência tão-somente bíblica, mas apoiada em outra fonte antiga. No capítulo seguinte, Finkel segue, didaticamente, explicando a escrita cuneiforme, a razão desse termo, as formas de escrita e o processo de composição dos símbolos. Em seguida, relaciona as palavras escritas às diversas populações que as escreveram, situando a literatura mesopotâmica no contexto histórico em que se desenvolveu.

Sua busca pela arca propriamente dita a situa entre os grandes mitos da história humana, que extrapolou seus limites originais e tem influenciado solidamente nossa cultura desde então, a tal ponto que “certamente figuraria como um instigante verbete em qualquer Enciclopédia Marciana do Mundo Humano” (p. 84). Enquanto algumas narrativas antigas “reduzem tudo a um par de sentenças; outras desabrocham em literatura poderosa e dramática. Examiná-las reforça a impressão de que qualquer cultura que não reúna alguma forma de estória sobre o dilúvio deve estar em minoria” (p. 85). Finkel refaz os caminhos que levaram à canonização do mito: a natureza da região entre rios, cercada pelas águas fluviais do Tigre e do Eufrates, convidou à elaboração dos efeitos das cheias, fenômenos ecológicos que, amiúde, arrasavam campos e cidades, tornando em tábula rasa o trabalho de comunidades inteiras. Tais fatos devem ter feito parte da cultura oral desde tempos imemoriais, mas a partir do II milênio a.C. entraram no cânone literário, não mais como eventos corriqueiros, e sim como divisor de águas da história humana, um Dilúvio Primordial que agregava as angústias de múltiplas gerações de homens e mulheres, conscientes, todos, de que “se os deuses assim o quisessem, eles estariam condenados” (p. 88), e diferente dos seus congêneres anteriores por suas inigualáveis manifestações literárias, mitológicas e historiográficas.

A tradição mesopotâmica desabrochou em três avatares literários que chegaram até nós, de tal maneira que o autor propõe ser apenas “parcialmente correto” referir-se a uma única “História Mesopotâmica do Dilúvio”, pois conquanto compartilhem uma essência mesma, há diferenças não pequenas entre si. A tríade é composta pela História Sumeriana da Criação e por dois clássicos acadianos, as epopeias de Atrahasis e Gilgamesh, cada qual com seu próprio herói: o rei da antiga cidade de Shurrupak, Ziusudra (O-de-Longa-Vida); Atrahasis (Extremamente-Sábio), personagem-título de sua história; e o velho Utnapishtim, alcunhado O Longínquo, eixo de uma das narrativas do Épico de Gilgamesh. A esta frota de barqueiros salvadores de animais se juntou, muito tempo depois, Noé, cuja história permaneceu reverberando, gerando frutos dos mais diversos.

Um dos objetivos do livro é alcançar o formato que a hipotética arca teria tido, segundo as tradições escritas mesopotâmicas, e para tanto o autor historiciza o modo como a documentação mesopotâmica a representa, bem como as várias interpretações que particularmente a tradução ocidental deu à arca, ora como um barco de popa e proa, ora uma gigantesca caixa retangular. A Tabuinha da Arca que traduziu permitiu a Finkel divisar uma proposta completamente diversa de embarcação, pois trazia instruções para uma nave circular semelhante às ghuffas (barcos produzidos com canas trançadas e selados com betume, ainda utilizados no Iraque atual), só que infinitamente maior (p. 143). O texto explora a construção das casas dos pântanos iraquianos, chamadas mudhif, feitas com tecnologia e materiais semelhantes aos destas embarcações, que poderiam ter sido adaptados à produção da arca original. Finkel lê as instruções para construção da arca à luz da tecnologia mesopotâmica antiga e das modernas populações dos pântanos iraquianos, encontrando, assim, um sentido para aquele tipo específico de tecnologia descrito na tabuinha, e segue compreendendo como as milenares mudanças ocorridas na Terra Entre Rios foi transformando essa concepção original – um trajeto que acaba trazendo-o à Bíblia.

Uma questão fundamental para a análise da história da arca são os seus passageiros. A partir da Idade Média, as representações da embarcação de Noé foram incorporando mais e mais espécies, à medida que o contato entre europeus e outras áreas do globo se estabelecia; para certas visões fundamentalistas, tão em voga atualmente, a história bíblica é o relato de um fato verdadeiramente ocorrido: por exemplo, grupos cristãos nos EUA (bem como no Brasil) explicam como exemplares de todas as espécies (este termo é debatido) poderiam ter cabido no barco. Num momento de intenso debate entre laicos e religiosos fundamentalistas, a obra de Finkel vem bem a calhar: ele nos mostra como nas tradições literárias mais antigas, o rol de criaturas embarcadas modificou-se; o Atrahasis Babilônico Antigo referia-se ao gado, aos pássaros, animais domésticos e selvagens; a versão médio-babilônica de Nippur, apenas aos animais selvagens e aos pássaros; por fim, a versão assíria traduzida por George Smith fala das bestas domesticadas e das selvagens não carnívoras (192).

Estas diferenciações estão igualmente presentes na Bíblia: Gênesis 6:19-21 (da tradição Javista, mais antiga) fala dos pares de animais, enquanto Gênesis 7:2-3, (da tradição P, sacerdotal), acrescenta: “de todo animal puro, tomarás para ti 7 de cada, macho e fêmea, e de todo animal que não for puro, 2 – macho e fêmea. Também da ave dos céus, 7 de cada, macho e fêmea (…)”. As duas variantes diferem significativamente, um eco, segundo Finkel, das variações da literatura que a precedeu: o Atrahasis preocupou-se em tipificar as criaturas que embarcara, indicando ser esta uma preocupação primordial para si. Já Utnapishtim, na Epopeia de Gilgamesh, pensou em termos de propriedade, carregando tudo o que era seu (ouro, animais, família) mais os artífices – como se no texto babilônico a tônica principal residisse na preservação da vida, e no posterior na preservação da civilização (p. 191). Como se vê, o tropo bíblico mais primitivo ecoa a tradição mesopotâmica de preservação da vida, vista no Épico de Atrahasis; o mais recente, privilegia as obrigações litúrgicas, compartimentando os animais em termos utilitaristas: “puros” (aptos às oferendas e ao consumo humano) e “impuros”.

Ou seja, a visão de uma embarcação que abrigasse todas as espécies existentes no planeta é nossa contemporânea, não do mito sumeriano; o mundo descrito nos textos é outro, e o objetivo da narrativa, idem. O Dilúvio Primordial foi o marco da dissonância temporal para os antigos mesopotâmicos, pois em termos quantitativos era profundamente remoto, um quarto de milhão de anos segundo a contabilidade sumeriana. Deixamos, portanto, o terreno da crônica factual, e adentramos o da manifestação terrenal do mito e seu relato: são Idades Ancestrais, cuja contabilidade (e função) é distinta da crônica histórica, contagens diferentes que não podem ser absolutamente sincronizadas – não o eram na Antiguidade, e assim deveriam ser entendidos hoje.

O autor elabora uma arqueologia da história do Dilúvio, menciona sua remota origem mitológica e a acompanha nas transformações enquanto obra literária, trabalhada e retrabalhada ao longo de milênios, especialmente em Babilônia, de onde verteu para a Bíblia Hebraica – “vimos, também, que estórias das crianças Moisés e Sargão em seus respectivos barquinhos-cestos refletem um empréstimo similar, e que existem outros elementos, em especial no livro do Gênesis (as Grandes Idades do Homem), que sugerem este mesmo processo” (p. 224).

No capítulo “The Judaean Experience”, Finkel discute como a presença dos judeus exilados durante o conhecido “Cativeiro da Babilônia” contribuiu para a elaboração do seu livro sagrado, e mesmo da sua concepção de monoteísmo que desenvolveram: inseridos numa sociedade marcada por uma alta cultura literária, os expatriados deixaram-se influenciar e constituíram seu próprio conjunto de histórias, algo inaudito até então, “um corpus textual finito, com começo, meio e fim, no qual uma identidade religiosa se afirmou. Um padrão fora estabelecido, e perdurou através do Cristianismo e do Islã” (p. 256).

Finkel arremata seu livro com uma descrição da Tabuinha da Arca, uma peça que não contém qualquer narrativa (p. 298), apenas uma planta da construção, o tamanho e a forma que deveria possuir. Sua importância, afirma o autor, está precisamente nessa relação de materiais: quando contado para as populações ribeirinhas, tal descrição era desnecessária, pois estavam acostumados a trançar as canas dos rios e construir casas e barcos, mas à medida que a história precisou ser recontada para cidadãos urbanos, o inventário tornou-se necessário, e os padrões de grandeza refletiram a visão do novo público a quem se destinava.

Essencialmente, Finkel salienta o poder literário da história do Dilúvio: “O narrador de nossa história está recontando a História de Atrahasis, com a Arca e o Dilúvio. Provavelmente, todos a conheciam em seus rudimentos, mas em mãos de um talentoso contador de histórias seu poder e magia desconheceriam limites. Pois ele lida com o mais amplo de todos os temas: vida e morte da espécie humana, a mais restrita das escapatórias, como todos os ovos foram colocados numa única grande cesta esbofeteada por águas arremessadas das alturas, todos os seres vivos clamando em terror (por estarem enjoados ou sendo esmagados). A narrativa podia ser reforçada com adereços: uma pequena rede de caniços para Era sussurrar através, um chapéu com chifres representando o deus a falar, um barquinho-cesto para Atrahasis, uma vara para desenhar na areia. Um contador popular poderia utilizar um simples baterista, um flautista, um menino assistente. Com estas ferramentas ele poderia transportar sua audiência, contando uma história que era sempre a mesma, mas sempre diferente; algumas vezes aterrorizante com a inaceitável crueldade dos deuses e a arremetida das águas mortíferas, outras vezes calmante com tudo terminando bem, e até mesmo engraçada algumas vezes, quando um sonhador que jamais havia sujado suas mãos é informado por um deus que teria de atingir o impossível neste exato momento, mesmo sem querer. Por que eu?” (p. 302)

Sumarizando suas conclusões, Finkel afirma que a nossa versão do dilúvio, recebida via Bíblia, deita suas raízes na Mesopotâmia, e trata essencialmente da vida, “sempre à mercê dos deuses, sobrevivendo contra todas as possibilidades graças a uma única nave cuja tripulação, humana e animal suportou o cataclismo para repovoar o mundo” (p. 310). Noutras palavras, é a metáfora de esperança que foi e permanece sendo recontada por milênios, que encontra nesse nicho seu fator universal.

No decorrer da longa história mesopotâmica, públicos diferentes imaginaram arcas diferentes, e da forma cúbica original, passou-se à oblonga, depois redonda, e finalmente a retangular que a Bíblia recriou, uma linha que, na compreensão do autor, é uma “linhagem linear do cuneiforme ao hebraico, cujo traçado representa o cerne” (p. 315) do trabalho.

Nos tempos nos quais vivemos, a história do Dilúvio vem sendo disputada por grupos fundamentalistas religiosos, defensores de uma leitura factual, estrita, seguidora das instruções tais como apontadas na Bíblia. O conhecimento acadêmico, por sua vez, simplesmente rejeita a narrativa, salienta suas contradições e a impossibilidade física de sua ocorrência. Irving Finkel e seu livro abrem um outro caminho, que vai tão longe quanto possível e encontra nas populações ribeirinhas da Mesopotâmia as realidades que deram origem à semente do mito; acompanha milênios de apropriações literárias, realizadas nos mais importantes centros de conhecimento, como Nínive e, principalmente, Babilônia; e por fim refaz os caminhos que levaram os judeus exilados a incorporá-la em seus escritos sagrados, de onde permanece influenciando a Humanidade. Mais do que discutir sua veracidade, do ponto de vista científico um debate encerrado, Finkel explora seus significados, e ao fazê-lo construiu um dos livros de historiografia mais relevantes da década.

José Maria Gomes de Souza Neto – Professor adjunto da Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte. E-mail: [email protected]


FINKEL, Irving. The Ark before Noah: decoding the story of the flood. New York: Doubleday, 2014. Resenha de: SOUZA NETO, José Maria Gomes de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.1, p. 249- 254, 2017. Acessar publicação original [DR]

SILVA, Andréia. C. L. Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues da. Mártires, confessores e virgens. O culto aos santos no Ocidente Medieval. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: RAFFAELI Juliana Salgado (Res), SILVA Thalles Braga Rezende Lins da (Res),  Brathair (Btr), Mártires, Confessores, Virgens, Culto aos Santos, Ocidente Medieval

Diferentes perspectivas, abordagens e aspectos da santidade na Idade Média

O livro é uma iniciativa de vários professores doutores ligados ao Programa de Estudos Medievais da UFRJ, organizado por Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva e Leila Rodrigues da Silva. Após o prefácio que apresenta a obra, escrito pelo Prof. Dr. Ronaldo Amaral da UFMS, seguem cinco capítulos, cada um com de cerca de 30 páginas, que abordam por diferentes perspectivas e recortes espaço-temporais a temática da santidade na Idade Média. Ainda estão inclusas as Referências, informações sobre a Documentação consultada, Sugestões de Leitura e dados sobre a trajetória intelectual dos Autores do livro.

O capítulo inicial do livro, “Mártires na Antiguidade e na Idade Média”, escrito por Valtair Afonso Miranda, tem como questão central o fenômeno histórico do martírio, pensando para quem os relatos foram produzidos e a que interesses atendiam com essas representações do sofrimento e da morte. Para dar conta desse questionamento, o autor analisou a tradição cristã do martírio em suas diferentes manifestações nas comunidades cristãs antigas e medievais.

Desde sua origem etimológica, afirmou Miranda, o “mártir” era tanto aquele que deveria ser lembrado quanto quem possuía o conhecimento de algo e poderia apresentar seu testemunho. Nesse sentido, um dos primeiros documentos do cristianismo a descrever a morte de um cristão foi o “Martírio de Policarpo”. Segundo o autor, o texto já apresentava o “mártir” como a própria testemunha que morria em grande sofrimento. Para o segundo século, o termo já indicava sofrimento e/ou a morte de alguém que era, especificamente, seguidor do movimento de Jesus.

Miranda retomou diversas referências anteriores ao martírio cristão para demonstrar que, tanto no judaísmo quanto no Império Romano, a imagem de morte por um ideal já estava bem consolidada. Associada a isso, a própria morte de Jesus foi uma referência essencial para a construção do conceito de martírio, motivado pelas expectativas messiânicas, que atrelavam o perdão da humanidade a uma morte dolorosa e violenta do salvador. Uma terceira referência foi construída pelo Apocalipse de João, que promoveu a ideia de martírio como etapa necessária para o Juízo Final. Dessa forma, um dos modos dos fieis participarem da instauração do reino messiânico era por meio da morte violenta. “As mortes cristãs, quando ritualizadas segundo o modelo do mártir, eram eficientes instrumentos de propaganda para o cristianismo numa sociedade que aprendera a respeitar quem sabia morrer” (p. 42).

Após o fim das perseguições aos cristãos, não eram mais encontradas essas formas de morrer em nome da crença. O autor ressaltou, então, os aspectos principais do martírio espiritual, que assumiu o lugar do sofrimento pela tortura e a morte violenta dos períodos anteriores. Esse martírio poderia ser qualquer situação de desconforto, inclusive físico, praticado de forma voluntária e que não levava a morte. Poderiam ser realizados em casas religiosas, dentro do matrimônio, em solidão ou no exílio. Os monges comumente passaram a ser vistos como os “novos heróis” do cristianismo. De modo geral, o “martírio espiritual” era um conceito fluído, que se adaptou para explicar situações diferentes de sofrimento.

Contudo, durante a Idade Média Central, por conta de uma nova onda de propagação de heresias, martírios – no sentido inicial da concepção cristã – voltam a ocorrer e novos mártires – como Tomás Becket e os cinco franciscanos mortos no Marrocos – rapidamente passam a ser cultuados com fervor. Em vista disso, Miranda afirmou, nas suas conclusões, que era de suma importância para a construção das novas comunidades religiosas definir quem era o seu herói. Isto era “um exercício de poder, poder esse que define limites identitários, esclarece alteridade, reforças práticas e crenças religiosas, gera papéis sociais, legitima governos, socializa visões de mundo” (p. 54).

No segundo capítulo “Monges e literatura hagiográfica no Início da Idade Média”, Leila Rodrigues da Silva desenvolveu sua análise com dois objetivos principais. No primeiro, tratou da História do monacato desde suas origens orientais até os seus desdobramentos nos reinos romano-germânicos, ou seja, a partir do século IV e com especial atenção aos séculos VI e VII. No segundo, a autora associou a apresentação da tipologia documental das hagiografias com a análise dos estudos de caso de monges de três regiões, a saber: Bento de Núrsia da Península Itálica, Frutuoso de Braga da Península Hispânica e Amando de Maastricht das Gálias. Os relatos hagiográficos dos três monges expressavam o anseio geral de cristianização dos seus períodos e manifestavam a importância da construção e multiplicação de comunidades monásticas para a efetivação destas ambições.

A respeito do monacato, Rodrigues da Silva apresentou as principais hipóteses produzidas sobre a motivação inicial para tal movimento ascético no contexto do Império Romano do Oriente. Essas proposições se resumiam na ideia de que para entender a complexidade do fenômeno era necessário considerar tanto o anacoretismo como uma atitude de protesto – seja em relação ao aspecto religioso ou político – quanto uma decisão pessoal e moral do asceta. As duas formas principais de monacato que se originaram nesse contexto, o eremitismo e o cenobitismo, chegaram ao Ocidente sem que houvesse descontinuidade em relação à sua motivação original. Além disso, se associaram às formas ascéticas já praticadas localmente. Entre os séculos IV e VII, o movimento monástico foi vinculado ao episcopado, que se preocupou com a produção de regras comunitárias, normativas conciliares e a expansão da cristianização com atuação de monges nas áreas rurais.

A segunda preocupação de Rodrigues da Silva estava pautada em como a experiência monástica se expressava nos textos hagiográficos, buscando comparativamente as semelhanças e as especificidades nos três contextos eleitos. O primeiro monge analisado, Bento de Núrsia, ficou conhecido pela perspectiva de seu hagiógrafo, Gregório Magno. Segundo a narrativa, Bento teria origem em família abastada, com acesso à educação em Roma. Sua experiência religiosa incluiu um período de isolamento, disputas com os demônios, destruição de ídolos, construção de doze mosteiros, produção de uma regra e preparação de outros monges – destacando nessas obras o papel das virtudes da obediência e da humildade. O segundo hagiografado, Frutuoso de Braga, foi apresentado por um anônimo. Seu narrador indicou uma intensa participação eclesiástica e política: ele teria produzido duas regras monásticas, participado de concílios, trocado correspondências com reis e bispos e assumido duas dioceses. O monge-bispo seria totalmente dedicado à vida monástica, valorizando suas características ascéticas orientais – como o desejo pela peregrinação e a necessidade de isolamento -, fundando novas casas e promovendo o monacato de modo geral. O terceiro e último monge anunciado por uma hagiografia, Amando de Maastricht, foi relatado anonimamente. Além dessa narrativa, esteve referenciado em cartas trocadas com Martinho I, bispo de Roma. Após um período de isolamento ascético de quinze anos, sua característica monástica mais marcante foi a atividade missionária desempenhada em diversas regiões dos reinos merovíngios. Também foi sagrado bispo por sua associação com a monarquia e o episcopado local.

A autora concluiu que, comparativamente, o monacato ocidental visto a partir das narrativas hagiográficas dos reinos romano-germânicos não configurou uma contestação veemente à instituição eclesiástica. A perspectiva eremítica marcou a trajetória inicial dos monges destacados da hierarquia eclesiástica, se concretizando como um “ideal desejado”.

Passando ao terceiro capítulo “Santos e episcopado na Península Ibérica”, Paulo Duarte Silva partiu das proposições historiográficas de Peter Brown, que superou a dicotomia estabelecida sobre as documentações hagiográficas – reforçando ou rejeitando a santidade dos protagonistas – e permitiu o estudo do contato dos “eclesiásticos seculares” com outros grupos religiosos. Segundo Duarte Silva, estudiosos recentes contestaram as fronteiras entre os cuidados episcopais e o pretenso isolamento monástico. O episcopado se desenvolveu como função eclesiástica, desde o século I até as mudanças na organização e na estrutura promovidas pela aproximação do Império Romano e a ecclesia. Do ponto de vista Ocidental, o autor chamou atenção de que gradualmente as aspirações aristocráticas aos cargos eclesiásticos se aprofundaram, sendo acompanhadas pelo interesse de adesão ao monasticismo. Na Alta Idade Média, predominava o monacato beneditino. Como consequência, a partir dos séculos X e XII, consolidaram-se as ordens beneditinas de Cluny e Cister. Para a Idade Média Central surgiram novas demandas de religiosidade, que deram grande destaque às ordens mendicantes – de franciscanos e dominicanos.

Duarte Silva teve por objetivo analisar as relações entre o cursus episcopal e as ordens religiosas de bispos-santos cristãos. Partindo do recorte temporal da Alta Idade Média até a Idade Média Central, dedicou-se a análise de bispos e cônegos, especificamente que tivessem atuado na Península Ibérica. Para viabilizar a comparação, o especialista estabeleceu eixos de análise como: a trajetória institucional na fundação de mosteiros e conventos, a participação de concílios e as relações assumidas com as autoridades monárquicas. Para tanto, elegeu oito figuras de bispos considerados santos e dentro dessas especificações: Martinho de Braga (520-580); Isidoro de Sevilha (560-636); Rosendo de Celanova (907-977); Ato de Oda/Valpuesta (m. 1044); Olegário de Tarragona (1060-1137); Bernardo Calvo (1180-1243); Agno de Saragoça (1190-1260), e; Berengário de Peralta (1200-1256).

O terceiro capítulo apresentou como conclusão que, desde a Alta Idade Média, a grandiosidade dedicada à memória dos clérigos oriundos do monacato demonstrou o interesse eclesiástico em organizar, adequar e submeter a vida monástica às decisões episcopais e conciliares. Nesse sentido, surgiram novas possibilidades de consagração pública, promovendo e organizando a santidade ibérica. Com o passar dos séculos foi possível observar um processo de expansão do modelo monástico beneditino, a partir do Norte da Península Ibérica em detrimento da tradição visigótica. Gradativamente, a santidade também foi atribuída a bispos relacionados aos cônegos e aos mendicantes. Em suma, Duarte Silva afirmou que as trajetórias dos bispos santos peninsulares possuíam diversos eixos de continuidade – origem nobiliárquica, estadia em mosteiros ou em conventos, apoio das monarquias e participação dos personagens em concílios – enquanto simultaneamente era permeado por características de ruptura. Ou seja, “a santidade é histórica, e por isso, embora admita elementos comuns, deve der associada a diferentes contextos políticos e religiosos” (p. 113).

Em “As ordens mendicantes e a santidade na Idade Média”, o quarto capítulo do livro, a autora Carolina Coelho Fortes traça a relação entre os fenômenos da santidade e do surgimento das ordens mendicantes, surgidas a partir do século XIII. Para isso, o capítulo foi dividido em cinco partes: a santidade no Medievo, surgimento e formação das ordens mendicantes, a santidade mendicante, Francisco de Assis e Domingo de Gusmão.

Na primeira parte, de maneira muito densa e completa, foi apontado o que era necessário para ser considerado santo na Idade Média e quais os perfis de pessoas cultuadas conforme o Medievo avançava. Assim, embora as hagiografias apontassem que seria impossível tornar-se santo – porque a santidade começava a se manifestar desde a mais tenra idade e continuamente ao longo da vida e após a morte – a autora demonstrou o contrário. Ela destacou que é possível considerar as múltiplas dimensões da temática e abordá-la nas perspectivas espiritual, teológica, religiosa, social, institucional e política. A visibilidade, a materialidade, a corporeidade, o serviço prestado à comunidade, os sacríficos, dores e renúncias, o combate ao mal, os milagres e a esperança de redenção trazida para a comunidade, tudo isso está na lista de topoi hagiográficos que ao mesmo tempo promovia a difusão e o reconhecimento (eclesiástico ou não) da santidade, segundo Fortes. E por isso, a santidade deveria ser entendida como “uma construção social, um ideal que se desenvolveu historicamente” porque “tipos diferentes de pessoas eram percebidos como santos pelas comunidades cristãs durante períodos distintos” (p. 102).

Ainda na Antiguidade, o primeiro tipo teria sido composto por mártires e, sem que seu culto fosse eclipsado pelos modelos posteriores, durante a Idade Média juntaram-se a eles: os bispos, os ascetas, os nobres que conseguiam altos cargos na hierarquia eclesiástica, os leigos nas cidades, os mendicantes, os penitentes, a Virgem Maria e, finalmente, os leigos. A autora fez considerações que relacionam os elementos da tipologia já descrita com os diferentes contextos históricos – da Antiguidade Tardia até a fins do Medievo, passando pela Alta Idade Média e Idade Média Central – ou seja, uma duração de aproximadamente 1000 anos. Neste interim, Fortes destacou o impacto da criação dos processos de canonização, no século XIII, no controle da santidade pelo papado, bem como isto contribuiu para a “humanização” ou “popularização” da santidade. Este último fator fez das personagens santas cada vez mais conhecidas, familiares e inspiradoras de uma devoção mais afetuosa do que referencial (p. 125).

Ao tratar das ordens mendicantes, a autora fez uma síntese de como as transformações ocorridas no Ocidente, desde o século XI, possibilitaram o seu surgimento. E então, o texto abordou alguns pontos entrecruzados a este respeito principalmente da Ordem dos Frades Menores – franciscanos – e da Ordem dos Pregadores – dominicanos, a saber: como normatizar as ordens mendicantes foi útil para a consolidação da cúria papal; como franciscanos e dominicanos lidaram com o delicado e controverso voto de pobreza; como a produção hagiográfica sobre Francisco de Assis e Domingos de Gusmão promoveu ao mesmo tempo o culto destes fundadores, a institucionalização de ambas as ordens e estabilizou as relações das mesmas com Roma, além de criar modelos de frades e freiras a serem seguidos. As diferenças entre as duas ordens também ficam claras porque a autora as apresentou comparativamente. Embora a pobreza, a pregação, a obediência, os estudos, a presença de leigos e de clérigos nos quadros das ordens e o combate aos inimigos da fé fossem questões importantes para ambas, a ênfase dada a cada uma destas temáticas foi bem distinta e pautada pelos objetivos dos fundadores – e dos seus sucessores – e os ambientes onde cada uma delas atuava.

Nas partes que se seguem do capítulo, Fortes analisou e demonstrou, mais uma vez por meio das comparações entre as ordens e seus fundadores, como os processos de canonização estavam intrinsecamente conectados com a santidade mendicante e, portanto, com o culto a Francisco de Assis e a Domingos de Gusmão. Foram levantados argumentos quantitativos e relações com o contexto histórico, bem como exemplificações constantes de como funcionava uma canonização no século XIII, e como os casos de Francisco e Domingos são excepcionais, principalmente por causa da sua celeridade e impulso papal direto. Contudo, nas considerações finais, Fortes fez questão de frisar que a compreensão do fenômeno da santidade encontra-se situada em algum lugar entre as aspirações centralizadoras papais e as demandas da religiosidade leiga do período, que seguiam a efervescência filosófica, educacional, econômica e social do século XIII.

No quinto e último capítulo, “Mulheres e santidade na Idade Média”, Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva estabeleceu como objetivo “destacar, a partir das singularidades da biografia e culto das personagens, a sobrevivência e a complexidade do fenômeno da santidade feminina por todo o Medievo” (p. 150). Deste modo, as personagens referidas são mulheres que viveram entre os séculos V e XIII e que receberam variadas formas de reconhecimento público de santidade.

As motivações da autora para tal empresa foram duas ressalvas e dois pressupostos. A primeira ressalva inicia o capítulo, pois segundo Sofia Boesch Gajano, em um verbete do Dicionário Temático do Ocidente Medieval, o número de mulheres consideradas santas teria aumentado no século XIII. Porém, Frazão da Silva apontou que é necessário não superestimar este crescimento. A autora citou como base de sustentação os dados das pesquisas clássicas de André Vauchez sobre o tema e ainda os resultados do projeto coletivo de pesquisa Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade, desenvolvido no âmbito do Programa de Estudos Medievais da UFRJ. A segunda ressalva é que o fenômeno da santidade feminina se tornou mais diversificado e expressivo na Idade Média Central. Porém não foi uma inovação do período, já que uma quantidade significativa de santas cultuadas pelos medievais já eram veneradas desde a Antiguidade.

Os pressupostos da autora são de caráter historiográfico. A autora adverte que a sua concepção de santidade não é essencialista e que ela leva em conta também as expectativas e interesses daqueles que promovem os cultos. Mais importante para o entendimento do capítulo é a conceituação de biografia que ela apresenta: “um exercício que busca compreender os laços, nem sempre diretos ou simples, que ligam uma pessoa ao momento histórico em que viveu” (p. 150).

Assim, após as observações introdutórias, segue uma lista, em ordem cronológica, de pequenas biografias de mulheres consideradas santas – com ou sem reconhecimento de Roma. Em cada uma delas, a autora faz questão de mencionar como o culto de uma santa foi retomado na Idade Média, no caso das santas da Antiguidade, ou como o culto perdurou para além do Medievo, no caso das devoções iniciadas neste período. E ainda, quais são as fontes escritas que nos informam sobre as personagens, tendo elas sendo produzidas pelas próprias ou por terceiros. A lista é longa e fica evidente que o intuito da autora é apresentar personagens as mais diversas possíveis entre si, apesar das muitas semelhanças entre elas.

Santa Escolástica, monja exemplar da Península Itálica, que teria vivido entre os séculos V e VI, e irmã de São Bento, o criador da regra de vida beneditina para os monges. Santa Radegunda, uma rainha piedosa de ascendência germânica da Alta Idade Média, que se recolheu a um mosteiro. Santa Valpurga, outra dama da nobreza e abadessa que viveu nas Ilhas Britânicas, no século VIII. Santa Oria, jovem que tinha sonhos e visões e foi “emparedada” (modalidade de religiosa totalmente reclusa), em Castela, no século XI. A próxima da lista é mais famosa ainda pelas suas visões, pela sua trajetória institucional eclesiástica e pelos seus escritos. Considerada doutora da Igreja, viveu na região da atual Alemanha, no século XI, trata-se de Santa Hildegarda de Bingen. Santa Clara de Assis, filha de nobres da cidade de Úmbria, na Itália, do século XIII, a primeira franciscana e fundadora do ramo feminino da Ordem dos Frades Menores. E, por fim, Santa Guglielma, nascida na Boêmia, no século XIII, possivelmente também uma princesa, que faleceu na Itália próxima a abadia de Chiaravalle. O caso de Guglielma é um dos mais singulares, porque inicialmente ela foi cultuada por um grupo local de seguidores, mas posteriormente foi condenada pela Inquisição.

Nas considerações finais do capítulo, a autora nos apresenta uma lista muito maior de nomes que poderiam ter sido citados, o que nos permite ter uma dimensão da sua primeira conclusão: mesmo que a mulher fosse vista como débil em vários sentidos no pensamento hegemônico medieval, isto não impediu que houvesse um grande número de personagens femininas consideradas dignas de devoção pelos medievais. Também não seria possível traçar um perfil único para a santidade feminina medieval. Novos tipos de personagens vão sendo incorporadas ao rol das veneradas e, apesar da constância da vida religiosa na biografia de todas, cada uma delas seguiu passos bem diferentes nestes caminhos. Sendo assim, mais uma vez fica claro como o fenômeno da santidade não é estático, é histórico e profundamente conectado com as conjunturas, anseios sociais e relações de poder (p. 181).

Destacam-se a clareza da redação ao longo de todo o livro e a preocupação em explicitar os objetivos e metodologias das pesquisas realizadas – bem como a coerência de se manter fiel ao que foi proposto. Os capítulos dialogam entre si e evitam repetições, porém sem deixar de mencionar o que for importante para o entendimento das questões analisadas. Desta forma, o livro cumpre duas funções. Apresentar um trabalho amplo e atualizado para aqueles que desejam iniciar o estudo do culto aos santos no Ocidente Medieval, podendo assim fazer bom uso da leitura completa do livro. Ou ainda, para aqueles que já se estão se aprofundando em alguma das temáticas específicas, ler um dos capítulos possibilita o conhecimento de abordagens novas, variadas e críticas.

Juliana Salgado Raffaeli – Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada, UFRJ. E-mail: [email protected]

Thalles Braga Rezende Lins da Silva – Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada, UFRJ. E-mail: [email protected]

SILVA, Andréia. C. L. Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues da. Mártires, confessores e virgens. O culto aos santos no Ocidente Medieval. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: RAFFAELI, Juliana Salgado; SILVA, Thalles Braga Rezende Lins da. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.1, p. 255- 261, 2017. Acessar publicação original [DR]

BAUNE Colette (Aut), Joana d’Arc: Uma Biografia (T), Globo (E), FLORES Paula dos Santos (Res),  Brathair (Btr), Joana d’Arc, Biografia, Europa – França (l), Séc. 15

Em 2016, a versão em português de Joana d’Arc: uma biografia completou dez anos. Lançada no Brasil pela Editora Globo em 2006, a obra de Colette Beaune é uma das leituras fundamentais para aqueles que se interessam pela história da heroína francesa.

Joana d’Arc é uma das personagens mais icônicas do Ocidente medieval. Em apenas dois anos, período entre seu aparecimento na corte de Carlos VII e sua morte, Joana conseguiu conquistar o coração e a imaginação de seus contemporâneos e se inscrever no panteão dos personagens que transcendem seu tempo e espaço.

Fazendo um breve levantamento é possível encontrar mais de setenta obras literárias nas quais Joana d’Arc é personagem, a lista se inicia no século XV e chega até o presente. Além da literatura, Joana foi retratada em cerca de treze produções cinematográficas, da emblemática atuação de Renée Falconetti, em “La passion de Jeanne d’Arc”, filmado em 1927 e dirigido por Carl Dreyer, até a superprodução dirigida por Luc Besson em 1999, “Jeanne d’Arc” a qual contou com a brilhante interpretação de Milla Jovovich que deu vida a uma Joana ingênua e perturbada por vozes. Afora o cinema e a literatura, a Donzela aparece em jogos de videogame e quadrinhos.

Joana foi uma jovem francesa cuja existência transita entre o mito e a realidade e cuja eternidade está garantida na memória e imaginação das pessoas. Não é de surpreender que tenha sido escolhida como objeto de pesquisa por Colette Beaune, uma especialista em História da França e em História das Mulheres.

Colette Beaune é professora emérita da Universidade de Paris X, especializada em história cultural, politica e social do final da Idade Média. Entre suas publicações estão Naissance de la nation France, 1985; a edição do texto do Journal d’un Bourgeois de Paris: de 1405 à 1449, 1989; e Jeanne d’Arc, 2004 (Joana d’Arc: uma biografia, Editora Globo, 2006). A obra foi caracterizada pelo Senado francês como própria para nutrir a reflexão cívica e rendeu à Colette Beaune o Prix du Sénat du Livre d’Histoire, em 2004. Joana d’Arc: uma biografia apresenta muito mais que a história de Joana, é, em referência aos termos utilizados por Beaune, “Joana além de Joana”.

Estamos acostumados com a Joana d’Arc do universo mítico, um personagem real que foi apropriado pela ficção e representado a partir do fantástico, do maravilhoso, do extraordinário. Colette Beaune retira Joana da névoa do fantástico e a insere em seu contexto. Assim, a heroína francesa é tratada como um personagem histórico e serve como fio condutor para discussões sobre guerra, política, cultura e sociedade na Idade Média.

Partindo dos processos de condenação, que sentenciou Joana à fogueira por heresia, em 1431, e de anulação, que a reabilitou em 1456, Beaune discute aspectos da vida de Joana. A investigação também utiliza outros documentos, tais como crônicas, cartas e demais informações relacionadas à Donzela.

O texto de Beaune apresenta Joana e problematiza as características de suas várias representações. Assim como qualquer indivíduo, Joana d’Arc é um personagem multifacetado e a escolha de quais elementos são evidenciados por aqueles que a retratam, nos informam tanto sobre Joana quanto sobre os que a representam.

Sua origem obscura, no vilarejo de Domrémy, por exemplo, pode ser entendida a partir da comparação com a vida de Cristo e, de forma mais genérica, com a trajetória dos heróis. O modelo de vida heroica é compartilhado por figuras como Cristo, Ulisses, Davi e serviu de base para a construção da imagem de Joana como heroína da França.

Sua juventude em Domrémy também é cheia de misticismo e fantasia, e colocam Joana como um ser único, mágico. Beaune, entretanto, apresenta as práticas de uma sociedade rural e as insere em um conjunto mais amplo. Bem como, expõe as formas como os processos de condenação e de reabilitação se utilizaram dos ritos e práticas populares para defender posições diametralmente opostas. Grande parte dos elementos que constituíram o argumento de sua condenação foram refutados e utilizados em sua defesa.

Não foram apenas os contemporâneos de Joana que disputaram sua imagem, historiadores do século XIX e XX apresentaram diferentes opiniões sobre Joana. Letrada ou iletrada? A heroína da França teria sido uma jovem iletrada, que recebia suas ordens através de vozes divinas ou teve acesso à educação em algum momento de sua curta vida?

As vozes de Joana não escapam da perscrutação de Beaune. Um dos elementos brilhantemente explorados pelo cinema e pela literatura, a questão da inspiração divina, é abordado por Colette a partir da tradição de profetisas que surgiam em tempos de crise, anunciando a palavra de Deus. A jovem donzela de Domrémy não foi a primeira nem a última, certamente, a levar revelações divinas aos homens.

Se por um lado, Joana foi mais uma das profetisas medievais, por outro lado, suas revelações e sua participação tiveram um caráter único e extraordinário: a capacidade de mobilizar e sensibilizar a população francesa, tão desgastada pela longa guerra contra a Inglaterra.

A participação de Joana no levante do cerco de Orléans juntamente com a sagração de Carlos VII em Reims foram os pontos máximos de sua participação no conflito. Mas que de forma se deu essa participação? Joana empunhou a espada, conduziu as tropas como chefe de guerra ou apenas levantou seu estandarte como símbolo e motivação aos combatentes? Colette Beaune não se limita a discutir o papel de Joana na Guerra dos Cem Anos, a questão enunciada é mais profunda e abrangente: a guerra pode ter um rosto de mulher?

E, essa mulher em específico, inserida em uma sociedade que estava agitada por complexas disputas políticas internas e externas, atuava de forma independente? Era motivada pelo testemunho dos sofrimentos dos franceses ao longo de uma guerra sem fim ou estava agindo de acordo com um alinhamento político forjado por relações familiares e alianças políticas?

Essas problematizações de Beaune tornam o livro, além de uma brilhante biografia, uma fonte de inspirações para a pesquisa sobre o período medieval. E, para além da Idade Média, instiga a curiosidade sobre as diversas apropriações que a imagem de Joana d’Arc sofreu ao longo do tempo.

Não é sem motivos que Joana se tornou um símbolo reivindicado por diversos grupos: a insuficiência de informações registradas nos impede de uma aproximação do personagem histórico, ao mesmo tempo permite que sua imagem seja montada e reconstruída das mais diversas formas.

Em Joana d’Arc: uma biografia Colette Beaune resgata essas múltiplas facetas da Donzela para apresentar a sociedade francesa, seus valores, seus anseios e preocupações; a guerra e a política que influenciaram e foram influenciadas por Joana; o martírio de uma jovem que coroou seu rei e foi reverenciada como heroína e, poucos anos depois, queimou na fogueira inglória, acusada de heresia.

O livro de Colette Beaune é uma obra fundamental para a compreensão de Joana d’Arc como personagem histórico e é extremamente relevante para o entendimento de vários aspectos da sociedade medieval. A linguagem de fácil compreensão é acompanhada por referências bibliográficas extremamente ricas, o que o torna uma aquisição fundamental para a biblioteca de pesquisadores e de não pesquisadores.

Paula dos Santos Flores – Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]

BAUNE, Colette. Joana d’Arc: Uma Biografia. São Paulo: Globo, 2006. Resenha de: FLORES, Paula dos Santos Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 159- 162, 2017. Acessar publicação original [DR]

SCHURSTER Karl (Org); SOUZA NETO José Maria Gomes de (Org), SILVA Kalina Vanderlei (Org), Pequeno dicionário de grandes personagens históricos (T), Alta Books (E), MOERBECK Guilherme Gomes (Res),  Brathair (Btr), Personagens Históricos, Dicionário

Embora a datação convencional do Iluminismo se inicie com o final da Revolução Gloriosa e o início da Revolução Francesa, esta periodização não deve ser tomada de maneira rígida. O eixo é sempre um pouco antes e um pouco depois de 1750, estando, certamente, articulado em suas origens, à Revolução Científica do século XVII. Já o seu final pode ser visto entre a crise revolucionária e o fortalecimento do pensamento romântico (FONTANA, 1998; FALCON, 1997). Talvez fosse mais prudente se preferir falar em iluminismos no plural, ao invés de tê-lo como um movimento unificado. Segundo Kant, em seu ensaio: O que é o iluminismo, este seria “a libertação do homem de sua auto-imposta custódia”. Custódia para Kant era: “a inabilidade do homem para fazer uso de seu entendimento sem a direção de outrem” (CHENG, 2012, p.30). Kant se opunha, nesse sentido, à tutela estabelecida pela tradição por um lado e pela religião por outro. Em suma, a definição de Kant para a ilustração é a saída da minoridade, o caminho para servir-se de sua própria razão. (FONTANA, 1998)

Um dos mais importantes historiadores do iluminismo, Robert Darton, menciona que o antigo regime é posto contra a parede no século XVIII. Mas, antes mesmo de termos a Revolução Francesa – já se carregava muito de suas reflexões teóricas e de seus desdobramentos políticos. Assim sendo, palavras como razão, natureza, liberdade, felicidade e progresso davam sentido a um novo movimento intelectual, o das Luzes (DARTON, 2001). Influenciados pela revolução científica, os pensadores Iluministas, similarmente ao que aconteceu entre os filósofos pré-socráticos, os socráticos e sofistas, direcionaram a razão como elemento de compreensão do homem em sociedade. A própria noção de filósofo sofre uma mudança semântica, na qual os do iluminismo se põem numa posição de críticos e reformadores de sua sociedade. Embora a religião não seja de todo abandonada, os filósofos do iluminismo assumem uma posição mais secular, na qual o universo religioso desempenha papel secundário (CHENG, 2012).

Havia a concepção de uma natureza humana universal. Uma das preocupações dos historiadores iluministas era explicar os eventos históricos em termos da ação humana e não divina; conferir o verbete Voltaire, p.303-310. O iluminismo deu origem a uma forma de investigação histórica: desenvolveu a noção de que o presente era um momento de peso excepcional na História Mundial. A noção de que aquela época havia transcendido a período greco-romano, tão importante para os renascentistas. A História Clássica ainda era venerada, mas agora, a Europa moderna requeria graus de autonomia cultural. A História possuía uma função social para os iluministas e, geralmente, suas abordagens do passado serviam para condenar e para reafirmar a sua crença no progresso da humanidade. Assim, a abordagem era centrada no homem, padrões e crenças de sua própria época. A leitura do passado tinha como intenção promover a virtude provendo exemplos morais que deveriam ser imitados ou evitados (BENTLEY, 1997).

A leitura de um dicionário e, pode-se imaginar, todo o processo de sua confecção acaba por inspirar a essa já longa digressão sobre algumas das bases epistemológicas nas quais reside nosso impulso sistematizador do conhecimento. As fronteiras da razão humana a partir de então pareciam ilimitadas, a partir das quais os limites do progresso humano seriam incalculáveis. É nesse clima que a publicação da Enciclopédia (Encyclopedie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, 1751-1771 – Diderot e D’Alembert) se tornava uma sinédoque daquilo que se configurava, num sentido mais amplo, o próprio movimento iluminista. Entre 1751 e 1771 dezessete volumes foram organizados, nos quais estavam compilados todos os conhecimentos modernos de A até Z (DARTON, 2001).

No Pequeno dicionário de grandes personagens históricos, organizado pelos professores da Universidade de Pernambuco (UPE): José Maria Gomes de Souza Neto, Kalina Vanderlei Silva e Karl Schurster, após mais de duzentos anos do iluminismo, revisita-se, em quase quinhentas páginas, o impulso de se dedicar à sistematização do conhecimento. Neste caso, dedicado às trajetórias histórico-biográficas de personagens que tiveram papel significativo no desenrolar dos acontecimentos de seus próprios tempos e, muitas vezes, muito além da efeméride de sua própria vida. Numa empreitada como essa, torna-se quase inevitável a avaliação da relação entre trajetória biográfica e vetores de transformação socioculturais, como Karl Schurster e Leandro Couto Carreira Rincon fizeram na introdução, p.XXI-XXIII.

Em que medida o tempo de uma vida é importante para deixar marcas, por vezes indeléveis, no tecido da história? Um dos mais representativos historiadores do século XIX, Jacob Burckhardt, cuja concepção de história contrastava profundamente com o mainstream da historiografia de sua época, concedia pouco relevo aos personagens como reais agentes da transformação sociocultural, para o historiador suíço, os atores históricos eram não muito mais do que elementos representativos de uma época. Ainda que fosse assim, Burckhardt considerava uma espécie de relação entre o indivíduo e a comunidade e que um grande homem pode romper as forças estáticas que mantém a coesão cultural. São estes homens que emprestam movimento à dinâmica da História contra formas antiquadas de existência. Qual a importância de Michelangelo e Rubens para a arte do Renascimento, qual a relevância de Péricles e Alcibíades para os desdobramentos políticos da segunda metade do século V a.C.? A reposta está mais nas bases epistêmicas do conhecimento produzido por Burckhardt, pois o ponto de inflexão não era a trajetória desses homens, tornados já discurso pela própria narrativa de um Tucídides ou de um Giorgio Vasari, mas sim dos nexos mais profundos entre a cultura, o estado e a religião (MURRAY, 1998).

Os jogos de escala e propostas metodológicas da Micro-História italiana de Edoardo Grendi, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi e, em certo sentido, os estudos seminais de Edward P. Thompson, nos levam a outra forma de História Cultural que toma personagens pouco ou nada conhecidos e suas trajetórias como ponto de partida para descortinar elementos mais profundos das comunidades em que esses indivíduos estavam inseridos. Era a inversão qualitativa da história dos grandes processos e transformações para uma compreensão mais capilar das mudanças sociais que, talvez, a história de lentes mais abertas não conseguia capturar (LIMA, 2006). E como esse novo dicionário, esse ainda epíteto de uma idade da razão se coloca após pelo menos duzentos anos de crítica e reflexão dentro da Historiografia?

Do ponto de vista da organização, o Pequeno Dicionário está organizado em seis partes, a saber: Parte I – Exploradores do infinito; Parte II – Cometas e seu brilho: os líderes políticos; Parte III – Pontes com o divino; Parte IV – Os demiurgos; Parte V – Heróis da resistência; Parte VI – Senhores da guerra. Dentro de cada uma dessas partes foram inseridos os verbetes. No total, o Pequeno Dicionário conta com oitenta deles. Cada uma dessas entradas é acompanhada ainda de um subtítulo explicativo adscrito e um epíteto de cunho metafórico, por exemplo, Homero: Poeta grego século VIII a.C. – O educador da Hélade; Martinho Lutero: Teólogo alemão, 1483-1546 – O reformador; Átila: Chefe huno, c.400-454 – O flagelo de Deus, e assim por diante. Cada um dos verbetes, em suas respectivas páginas vem acompanhados de uma ilustração que faz menção a de cada uma das personagens, geralmente por meio de um busto. Este elemento reforça o caráter juvenil do Pequeno Dicionário, tornando-o mais leve para a leitura. Essa mesma função é feita pela janela curiosidades, que surge sempre ao final dos verbetes, com um fato pitoresco ou complementar sobre a trajetória ou sobre o contexto da época de cada personagem.

Como o seu próprio título indica, trata-se de um pequeno dicionário, e dizer que ao invés de Homero poderiam ter escolhido Heródoto, Jung ao invés de Freud ou ainda Ella Fitzgerald no lugar de Billie Holiday seria uma chateação indesculpável deste ou de qualquer outro leitor. O melhor a se fazer é deixar se levar na forma leve em que as linhas de vida são perfiladas no Pequeno Dicionário.

Já tendo me estendido em demasia sobre o iluminismo no início deste comentário não retornarei a essa temática dentro dos verbetes, mas sim, por meio de dois outros para tentar mostrar um pouco dos encaminhamentos dados pelos autores, seja quanto às suas formas ou conteúdos.

O verbete sobre o dramaturgo e cidadão ateniense Sófocles (p.228-234), um dos maiores nomes do teatro grego antigo, é iniciado com uma afirmação categórica de Aristóteles em sua Poética; a que punha Édipo Rei, tragédia encenada por volta de 427 a.C., como a mais perfeita obra deste gênero teatral. E é desta forma que os autores tentam explicar a obra de Sófocles, por meio da leitura de Aristóteles. O terror e a piedade, elementos da kathársis convergem numa estética da recepção característica dos helenos, que acentua o fenômeno de purificação, tida pelo filósofo como uma das funções da tragédia Ática. De uma leve guinada, estamos tomando conhecimento da vida não apenas de Sófocles, mas também de outros dramaturgos gregos e de seus próprios contextos criativos, suas lutas nas batalhas intermináveis da Guerra do Peloponeso e disputas simbólicas, no Teatro de Dioniso, na Atenas do século V a.C.

Mais adiante, é possível deter o seu tempo em muitos outros verbetes, mas por que não entender um pouco sobre uma das figuras mais celebradas, mal compreendidas e apropriadas pela cultura popular, o samurai lendário Miyamoto Musashi (p.431-435). Após brandirem suas espadas em uma enorme batalha, o clã Tokugawa iniciou um período de governo centralizador e rígido, que só seria encerrado com a transição e processo de ocidentalização do Japão na era Meiji. Entremeios, surgia a figura de Musashi, misto de ronin e filósofo de sua arte com a katana. De livro tornado célebre por Eiji Yoshikawa a releituras da figura do samurai feitas por cineastas japoneses como Akira Kurosawa, Takeshi Kitano, Yoji Iamada, Hiroshi Inagaki e Takashi Miike, podese ter um lampejo de como a figura do samurai se tornou não apenas um elemento cultural japonês. Tornado ainda mais acessível na prática do Akidô, mas cultuado mundialmente, figura do imaginário, às vezes bastante romantizado, em torno desses homens da guerra e de seus códigos de conduta e honra absolutamente inflexíveis.

Uma das poucas ressalvas que se pode fazer ao Pequeno Dicionário são atinentes à forma. Em se tratando de uma obra de projeto gráfico-editorial bastante moderno, poder-se-ia investir em indicações bibliográficas dentro de cada um dos verbetes, ainda que apenas uma ou duas referências fundamentais, isto faria a pesquisa mais dinâmica e intuitiva. Outro elemento que pode ser mencionado é quanto à taxonomia utilizada para traçar uma divisão entre as personagens do dicionário. Creio que há um nível significativo de interseção entre os líderes políticos e os senhores da guerra, por exemplo. É claro que sempre há algo de arbitrário nas escolhas e as classificações, que quase nunca são perfeitas. No limite, é apenas uma ênfase na abordagem que poderia alocar Adolf Hitler em líderes políticos e não em senhores da guerra. Na verdade, a notória e nefasta personagem do século XX faria justiça a essa “dupla-inserção”.

O interesse pela obra, pelo ser humano, pelo tempo. Qual o significado de uma vida? Qual o padrão de julgamento que os historiadores podem utilizar para fazer esse tipo de avaliação? Quiçá, chegue-se à conclusão transitória de que vida é compreendida de sentidos, geralmente expressos por uma narrativa mais ou menos coerente e orientada em torno da qual reside um projeto. Se no relato autobiográfico, como disse Pierre Bourdieu, há a busca de se “tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva”, há o risco de se mergulhar numa espécie de ilusão retórica. Se na análise do historiador as ilusões de um percurso autobiográfico podem ser desfeitas, desveladas, então qual a natureza da narrativa que se poderia criar para as grandes personagens? Em que nível a memória, a análise histórica, o viés metodológico e as orientações teóricas desaguam num texto inteligível em relação à constância nominal, ao indivíduo cujo nome próprio assegura a existência dessa personalidade no devir temporal? (BOURDIEU, 1996 p. 183-191).

Essas são perguntas muito caras aos historiadores e qualquer resposta demandaria muito mais espaço do que se poderia dispor nesse trabalho cujas pretensões são declaradamente limitadas. Uma das melhores respostas, no entanto, foi dada por um sociólogo. Ao tratar da vida de Wolfgang Amadeus Mozart, Norbert Elias em nenhum momento mostra desprezo ou pormenoriza os fatos casuísticos da atribulada vida desse notável músico. Entretanto e, sem dúvida alguma, a sinfonia de Elias começa a ganhar corpo aos ouvidos dos historiadores quando se mostra interessado em como “Mozart só emerge claramente como um ser humano quando seus desejos são considerados no contexto de seu tempo” (ELIAS, 1994, p. 15). Porque, segundo o sociólogo, as realizações e os fracassos de Mozart surgem em um contexto em que a dinâmica entre os conflitos de padrões de classe são cruciais para o entendimento da vida do músico, em talvez entendê-lo como um “burguês outsider a serviço da corte” (ELIAS, 1994, p. 16). Assim, Elias afirma que: “É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo [… e do] modelo das estruturas sociais da época, especialmente quando levam a diferenças de poder” (ELIAS, 1994, p. 18-19).

Por fim, creio que o leitor terá em mãos, no Pequeno dicionário de grandes personagens históricos um notável exemplo desse esforço, a saber: de não se perder na ilusão e nos gracejos vazios do pitoresco e do riso fácil, como em uma deliciosa comédia de costumes de Martins Penna, e de tentar dar conta dessas mudanças das estruturas sociais, do habitus, que condicionam as ações e reações dessas personagens nos mais diferentes contextos sociais em que viveram (BOURDIEU, 2009).

A obra em questão que atenderá a um amplo público, especialmente alunos de ensino médio, dos primeiros períodos de graduação e ao público leitor em geral. Representa esse esforço iluminista e convida a todos a mergulhar nas trajetórias e em tempos pretéritos. Assim, se pode ir muito além de ler o verbete como um fim em si, mas utilizá-lo como a possibilidade de ser uma janela para novas pesquisas, para a possibilidade de deixar a história orientar a vida, de se ampliar como ser humano e, a cada vez que se cruzar esse rio ter a sensação da renovação, de viver em um mundo mais consciente da sua existência pela do outro. (RÜSEN, 2001)

Referências

BENTLEY, Michael. Introduction: Approaches to modernity: Western historiography since the enlightenment. In: __________. (Ed.) A Companion to Historiography. London: Routledge, 1997.

BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009. (O original é de 1980).

__________. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M. e AMADO, J. (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 1998.

CHENG, Eileen Ka-May. Historiography: An introductory Guide. London: Continuum, 2012, p.29-

DARTON, Robert. A eclosão das Luzes. In: __________ e DUHAMEL, Olivier. (Orgs.) Democracia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, p. 21-36.

FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 61-89.

FONTANA, Josep. História: Análise do passado e projeto social. Bauru: EDUSC, 1998.

LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escala, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UNB, 2001. Vol. I

Guilherme Gomes Moerbeck – Professor adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da ESDI/UERJ Pós-doutorando do LABECA/MAE-USP. E-mail: [email protected]

SCHURSTER, Karl; SOUZA NETO, José Maria Gomes de; SILVA, Kalina Vanderlei (Orgs.). Pequeno dicionário de grandes personagens históricos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. Resenha de: MOERBECK, Guilherme Gomes. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 163- 170, 2017. Acessar publicação original [DR]

BOUREAU Alain (Aut), Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330) (T), Editora da UNICAMP (E), FLECK Luiz Otávio Carneiro (Res),  Brathair (Btr), Demonologia, Europa Medieval, Séc. 13-14, Europa (l)

Conspirações, redes de heréticos ameaçando a cristandade, demônios dotados de poder e prontos a se fundir com os humanos. Esse é o pano de fundo no qual se desenrola a construção de uma ciência dos demônios, a demonologia, entre o fim do século XIII e início do XIV. O argumento é que essa construção ocorreu no âmbito escolástico. Em síntese é assim que se pode resumir o livro Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330), de Alain Boureau.1 O livro foi publicado originalmente em 2004, na França, sob o título Satan héretique: Naissance de la démonologie dans l’Occident médiéval (1280-1330). A tradução, no entanto, é recente: em 2016, por Igor Salomão Teixeira2, na coleção Estudos Medievais, da Editora da UNICAMP. Esse é primeiro livro de Alain Boureau publicado no Brasil.

Partindo de pressupostos da história intelectual, na relação texto/contexto, Boureau desenvolve o argumento que o nascimento da demonologia ganhou força a partir do final do século XIII e nas primeiras décadas do século XIV junto aos debates escolásticos nas universidades. Demonologia essa que o autor defende ser “(…) a gênese da obsessão demoníaca (…) plenamente provida de procedimentos e de certezas por volta de 1430-1450 (…)” (BOUREAU, 2016: 19) que dá início à “caça às bruxas”. Ao longo dos sete capítulos do livro é discutido como o demônio emergiu fortalecido e capaz de ameaçar a Cristandade. O diabo, e seus poderes sobre os homens, estava cada vez mais presente nas discussões de teólogos e canonistas naquele período. Nessas considerações é possível perceber o que o autor chama de “antropologia escolástica”. A antropologia escolástica seria o entendimento de novas formas para se pensar os homens (sua natureza, sua origem) e que tem este nome de “escolástica” por ser marcadamente oriunda do âmbito universitário europeu entre 1150-1350. O “homem” teria passado a ser, segundo Boureau, o objeto privilegiado nos debates intelectuais universitários (TEIXEIRA, 2014: 3)3.

Essa “antropologia” atuou de forma decisiva na emergência de uma obsessão pelo demônio no cristianismo medieval, entre 1280 e 1330, ao se preocupar com a relação do humano com o sobrenatural e com o mundo natural. Influenciada por reflexões naturalistas e escolásticas, essa antropologia trouxe à tona um sujeito multifacetado mais propenso às ações do sobrenatural (tanto em relação às investidas de deus e suas criaturas benéficas quanto às dos demônios):

A antropologia escolástica, explorando os limites da ação e da consciência, tinha descrito as zonas de vazio e de fragilidade da personalidade humana. Ora, a sobrenatureza, longe de ter horror ao vazio humano, parecia encontrar acolhida exatamente aí. (BOUREAU, 2016: 201)

Na gênese dessa demonologia, estava presente o embate entre duas “antropologias” no âmbito escolástico. De um lado havia uma “antropologia tomista”, oriunda dos escritos de Tomás de Aquino, teólogo da Ordem dos Pregadores (OP). De outro, uma “antropologia neoagostiniana”, oriunda principalmente dos escritos de Pedro de João Olívio, teólogo da Ordem dos Frades Menores (OFM). Segundo Boureau, para Tomás de Aquino os poderes de Satã estavam confinados à manipulação do mundo natural e não tinham efeitos sobrenaturais em relação aos homens. Diferentemente, na concepção de Pedro de João Olívio, Satã era dotado de poderes sobrenaturais, sendo capaz de atuar sobre os homens.

Tomás de Aquino desenvolve sua “antropologia” na relação entre o humano e o sobrenatural em diversos tratados teológicos. O principal desses é De malo (“Sobre o mal”), redigido por volta de 1272, durante a segunda regência de Tomás em Paris. No De malo o teólogo discute a natureza dos demônios e as circunstâncias de sua queda. Além disso, Tomás se preocupa com as capacidades dos demônios após sua queda e os seus poderes sobre os homens. Nisso, os demônios são descritos como seres sem muita vivacidade, limitados na sua ação ao mundo natural. Sua incapacidade de atuar sobre os humanos de forma sobrenatural deve-se ao uso, por Tomás, de uma psicologia aristotélica. Nessa, é defendida a unidade do sujeito, com o humano composto de uma forma, dada pela alma intelectiva, e uma matéria, isto é um corpo. Portanto, para Boureau, na concepção tomista, a pessoa é vista como substância individualizada da natureza racional. Esta forma de “antropologia” é definida por Boreau como um “‘individualismo substancial’” (BOREAU, 2016: 223). O homem, então teria uma personalidade una, selada por Deus, fazendo com que possuísse uma forma substancial única. Por isso, a alienação de alguma faculdade diminui o poder espiritual e cognitivo do homem. Ou seja, a possessão anularia qualquer possibilidade de ação do sujeito.

Oposta a essa “antropologia tomista” há uma “antropologia neoagostiniana”. Nessa, Pedro de João Olívio apresenta em sua Suma sobre as Sentenças, de Pedro Lombardo, os demônios dotados de possibilidades de atuar sobrenaturalmente em relação aos homens. Neste texto Pedro Olívio ataca os pressupostos lançados por Tomás no De malo. Para o frade Menor o demônio possuía uma capacidade real de ameaçar o homem pelas suas capacidades sobrenaturais. A capacidade que o demônio tem de atuar sobre os humanos deve-se ao uso, pelo franciscano, de uma psicologia agostiniana. Essa é marcada por uma teoria pluralista na qual o sujeito possui uma estrutura federativa ou confederativa, sendo composto de diversos estratos. Além disso, a alma é concebida com certa autonomia sobre o corpo, tendo lugar no interior do indivíduo o confronto entre o divino e o mal. Nisso o homem possuiria, portanto, uma forma substancial múltipla na qual convivem diversas personalidades. O que gesta uma “antropologia” marcada pela ideia de “‘individualismo acidental’” (BOREAU, 2016: 223). Boureau complementa: Com o homem dotado de passividade e descontinuidade na sua pessoa é possível inferir que a sua alma coabitasse tanto com o divino quanto com os decaídos. O demônio, portanto, figura como uma extensão da personalidade de alguns homens. É esse limite cognitivo e espiritual que abre a possibilidade da possessão.

Segundo Boureau esses embates teológicos gestaram a demonologia no âmbito escolástico. Sendo que “(…) a oposição entre Tomás de Aquino e Pedro Olívio nos mostra os contornos da nova cartografia demonológica.” (BOREAU, 2016: 118). É, portanto, principalmente, a partir das considerações desses dois teólogos que se desenvolvem os argumentos de uma demonologia escolástica.

Para pensar como essas considerações, do final do século XIII, são recebidas nas duas primeiras décadas do século XIV, o autor parte das atas de processos de canonização para “(…) encontrar um eco das novas preocupações demonológicas que dominam o início do século XIV e (…) marcam a ação dos papas Clemente V e João XXII.” (BOREAU, 2016: 146). Nesses processos o autor identifica uma relação próxima entre o louco e o possesso. De um pontificado ao outro, casos semelhantes, que antes eram tratados como cura da loucura, passam a ser cada vez mais considerados como exorcismo de demônios.

Nos processos iniciados pelo pontífice Clemente V, como o de Tomás de Cantilupe (1307-1320) e de Luís de Anjou (1308-1317), Boureau identifica a presença de cura de casos de loucura. Porém, nenhum de possessão demoníaca. Essa situação muda durante o pontificado de João XXII com relatos de combate contra o demônio em inquéritos de canonização de santos como Tomás de Aquino (1319-1323). Outro caso, desse mesmo pontificado é o de Nicolau de Tolentino (1325-1446), com diversos casos de possessão e exorcismo, além de fraca presença de casos de loucura nas atas do inquérito, é descrita a luta do santo contra demônios.

Esse último caso, o de Nicolau, é interessante já que leva 121 anos para a finalização do processo. Boureau argumenta que isso se deve, principalmente, à prudência da cúria quanto às canonizações de santos muito envolvidos no combate aos demônios. Além disso, argumenta que, apesar das virtudes eclesiológicas de um santo, naquele período no qual ainda estava se consolidando uma demonologia, poderia levar os leigos a perigosos diálogos. Para o autor, essa mudança ocorrida entre os dois pontificados estava relacionada aos problemas que João XXII enfrentou nas décadas de 1310, 1320 e 1330:as contendas em relação ao espirituais franciscanos, defensores ferrenhos da pobreza evangélica de Cristo e grandes críticos do papado de Avignon. De ambos os lados, tanto dos frades quanto do papado, partem acusações de envolvimento com o Satã. João XXII era considerado o Anticristo místico, proposto no comentário de Pedro de João Olívio. Segundo o franciscano, o anticristo estaria disfarçado de papa e desvirtuaria a Igreja, preocupado apenas com enriquecimento desta. Uma vez que João XXII foi um dos papas que mais enriqueceu a Igreja, durante o século XIV4, os espirituais acusavam-no de ser a encarnação e Satã. Por outro lado, estes frades eram acusados de envolvimento com o demônio, por armarem conspirações e eram considerados hereges que voltavam junto ao diabo para assombrar os fiéis. Sobre os espirituais choveram condenações de heresia, sendo seis deles queimados em 1318, e ordenada a destruição da obra de Olivi em 1326.

Portanto, essa demonologia, desenvolvida no âmbito escolástico, esteve muito associada às tentativas de deslegitimar adversários políticos e ao ataque aos poderes estabelecidos. É isso o que discute Alain Boureau no capítulo um do livro, quando demonstra como o desenvolvimento teológico de uma demonologia durante as últimas décadas do século XIII foi utilizado para dar base à associação entre magia, demônio e heresia. Segundo o autor, é principalmente durante o pontificado de João XXII, no início do século XIV, que se tem “(…) um novo desenvolvimento judiciário (…)” (BOUREAU, 2016: 24).

Nesse período, o conteúdo doutrinal acerca do pacto com o diabo recebeu uma nova abordagem, na qual foi valorizada a ação universal dos demônios. Ou seja, o diabo perdia a limitação de seu poder ao mundo natural, para ganhar novos poderes, capaz de agir sobrenaturalmente, ameaçando a cristandade. Nesse desenvolvimento judiciário, Boureau demonstra a importância da bula Super illius specula e da comissão sobre a magia, reunida pelo papa João XXII, em Avignon, em 1320. A bula, promulgada entre 1326 e 1327, foi, para o autor, o texto fundador da obsessão demonológica e do interesse do papa pela magia. Nela, João XXII incrimina práticas mágicas, como o uso de imagens e utensílios, que derivavam da adoração aos demônios por meio da associação entre a invocação destes com as aquelas práticas, sendo ambos referidos como dogma. Porém, a grande novidade da Super está no desenvolvimento de um novo conceito relacionado a construção processual deste pontificado. É nessa bula que o papa traz a noção de “feito herético” (factum hereticale), a partir do qual a heresia deixava de ser apenas matéria de opinião, passando a estar relacionada também à ação. Apesar da originalidade da bula ser passível de discussão, a questão do fato herético já figurava na consulta de 1320 sobre a magia. Nessa, a noção de fato herético estava presente nas questões propostas à comissão. Na consulta o papa perguntou a teólogos e canonistas se era possível associar práticas como o batismo de imagens e outras práticas mágicas à heresia, que, poderia ser considerada crime de lesa-majestade divina, punida com o máximo de rigor pela purificação por meio das chamas. Apesar dessa associação encontrar resistência nas respostas da maior parte dos teólogos chamados para a consulta, resoluções, como a do franciscano Henrique de Carretto, deram crédito à tese do fato herético.

A essa tese estavam associadas outras práticas jurídicas de João XXII. O uso da fama para determinar a qualidade das ações dos que estavam sendo acusados de heresia, a utilização do processo sumário nos casos de julgamento relacionados à invocação de demônios e o recurso a tribunais especiais do papado, para cuidar destes casos. Segundo Boureau, essas práticas demonstram não só a desconfiança de João XXII quanto a Inquisição, mas também que frente a ameaça dos demônios era necessário uma ação rápida e eficaz. Assim, o autor propõe que a forma de agir do papa demonstrava que “(…) em matéria de sortilégios, antes de reprimir, importava (…) reunir opiniões em relatórios complexos unindo a magia, a invocação de demônios e a heresia.” (BOUREAU, 2016: 53).

O livro Satã Herético não é uma leitura simples, fazendo-se difícil para iniciantes que ainda não tiveram contato com tema das ordens mendicantes e sua relação com as universidades. Boureau traz como subentendido que seu leitor deve ter alguma noção sobre o contexto do papado de Avignon, do âmbito universitário dos séculos XIII e XIV e do método escolástico. Apesar desses pontos, que podem dificultar a leitura, a forma como autor relaciona as discussões escolásticas com o fazer político dos jogos de poder no período é interessante, e importante em termos metodológicos. Pois, permite ao historiador, que deseja se debruçar sobre as questões políticas do período, montar o contexto linguístico, do qual parte o conteúdo dos vestígios aos quais se dedica.

Notas

1Alain Boreau atualmente é diretor do Groupe d’Anthropologie Scolastique (GAS) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Também, atua como co-diretor das coleções Histoire e Bibliothèque scolastique da editora Les Belles-Lettres. Além de ser membro do comitê de redação da revista Penser/rever. Informações obtidas em: http://gas.ehess.fr/document.php?id=122

2 Igor Salomão Teixeira é professor de História Medieval no departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

3 TEIXEIRA, I. S. “Antropologia histórica e antropologia escolástica na obra de Alain Boureau”. In: Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre. Auxerre, França. Vol. 18, n. 1, 2014. pp. 1-13. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/103476 Último acesso em: 27 de abril de 2017.

4 Cf. LE GOFF, J.A Idade Média e o dinheiro: Ensaio de antropologia histórica. RJ: Civilização Brasileira, 2014. Para mais sobre o contexto do papado de João XXII e as disputas com os espirituais ver: AGAMBEN, G. Altíssima pobreza. SP: Boitempo, 2014; BÓRMIDA, J. (OFM Cap.). A não propriedade: uma proposta dos franciscanos do século XIV. Porto Alegre: Edições EST, 1997; BURR, D. “The Correctorium Controversy and the Origins of the Usus Pauper Controversy” In: Speculum. EUA: Medieval Academy of America, 1985, n. 60 (2). pp. 331-342; DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003; FLOOD, D. (OFM). “Poverty as Virtue, Poverty as Warning, and Peter of John Olivi” In: BOUREAU, A. e PIRON, S. (dirs.). Pierre de Jean Olivi (1248-1298): Pensée scolastique, dissidence spirituelle et société. France: Librairie Philosophique J. VRIN, 1999. pp. 157-173; NOLD, P. Pope John XXII and his Franciscan Cardinal: Bertrand de la Tour and the Apostolic Poverty Controversy. Oxford: Oxford University Press, 2003; e TEIXEIRA, I. S. Como se constrói um santo: A canonização de Tomás de Aquino. 1. ed. Curitiba: Prismas, 2014.

Luiz Otávio Carneiro Fleck – Mestrando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]

BOUREAU, Alain. Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Campinas: Editora da UNICAMP, 2016. Resenha de: FLECK, Luiz Otávio Carneiro. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 171- 177, 2017. Acessar publicação original [DR]