A História Medieval entre a formação de professores e o ensino na Educação Básica no século XXI: experiências nacionais e internacionais | José Luciano Vianna

Falar do Ensino de História no momento tão complicado da política e da economia do Brasil, sem esquecer dos já existentes problemas estruturais educacionais da sociedade, é um grande desafio. Vivemos em um tempo em que as narrativas de Fake News estão presentes nos meios de comunicações, e os discursos negacionistas contra a ciência ocupam espaços, plantando as discórdias sobre as teorias e os métodos utilizados pelos pesquisadores científicos de diferentes áreas do conhecimento. Leia Mais

Visões da Idade Média | Ricardo Costa

Ricardo da Costa é historiador e trabalha com diversos temas sobre o passado e o presente da humanidade. Especialista em História Medieval, publicou mais de cem trabalhos, originalmente em revistas especializadas no Brasil, assim como no exterior. Formou-se em História, na Universidade Estácio de Sá, e tem Mestrado e Doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, é Professor Titular do Departamento de Teoria da Arte e Música da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). É conhecido, sobretudo, por seus estudos acerca de Ramon Llull, tendo traduzido para o português diversas obras do filósofo catalão, o que possibilitou conhecer um pouco mais a respeito desse mundo medieval.

Em Visões da Idade Média, o (a) leitor (a) encontrará bem mais do que artigos, mas entrará em contato com as temáticas do medievo existentes nas fontes históricas, sob a ótica de um historiador, que tem se dedicado há muitos anos ao fortalecimento dos estudos medievais no Brasil. Costa dá vida às fontes pesquisadas e interpretadas, em que enchendo o leitor de curiosidade e questionamento. Cada capítulo mostra uma parcela do mundo medieval, embora não haja ali um enaltecimento do período, almejase na obra desmistificar os conceitos e interpretações equivocadas em relação à Idade Média. Trata-se de um livro instigante, que em suas mais de duzentas páginas brinda o (a) leitor (a) com uma escrita agradável e estimulante.

O livro Visões da Idade Média aborda de maneira interdisciplinar a História, a Literatura, a Filosofia e a Artes. Cada seção contém três artigos, exceto a última secção que consta quatro textos, sobre essas áreas cuja a leitura (sem esgotá-las) conduz-nos a reflexões críticas. Entre eles, há um artigo inédito escrito em coautoria com o Dr. Milton Gustavo Vasconcelos, o qual versa sobre a Inquisição, isto é, tema que, embora já muito comentado e analisado, mostrou-se passivo de interpretações questionáveis, que o apresentavam como uma espécie de resumo da Idade Média.

Neste sentido, o autor traz sua interpretação sobre a Idade Média, indo na contramão de distorções não apenas naturalizadas acerca desse período, mas por vezes aprendidas erroneamente. Trata-se de um período de mil anos, com uma variada história política, cultural, social, econômica que está presente, seja na Europa, seja nas possíveis raízes medievais observadas na história do Brasil (FRANCO JÚNIOR, 2001). Como afirma Marc Bloch, a história não é uma relojoaria, mas “[…] um esforço para um melhor conhecer uma coisa em movimento” (BLOCH, 1965, p. 29).

O texto de abertura é provocativo, porque os autores desfazem alguns mitos a respeito da Inquisição bastante cristalizados no imaginário popular. Iniciam o prólogo, em tom de brincadeira, por meio de um diálogo fictício. Nessa “conversa”, Costa e Vasconcelos são questionados por um sobre veracidade da pesquisa, e os autores prometem dizer apenas a “verdade” sobre a Inquisição. Assim, despertam no (a) leitor (a) a curiosidade de imaginar cada cena descrita no texto, pois, são analisadas com precisão de detalhes, o que torna o texto agradável e imaginativo.

Na seção História, o autor lança uma provocação, ao intitular um de seus capítulos Para que serve a História? Para nada…, através de tal indagação, não somente prende a atenção do (a) leitor (a), mas já o (a) induz a uma possível resposta. Ainda neste capítulo, Costa narra suas experiências pessoais como docente, na tentativa de responder o porquê de estudar essa disciplina tão questionada.

No mesmo capítulo, Ricardo da Costa, diz que a História possui uma grande divergência no que tange às teorias e métodos, pois não haveria um consenso sobre “a razão de ser” dessa disciplina. Para isso, lança mão de sete perguntas, ou melhor, “sete perguntas, ou melhor, sete respostas para sete perguntas criam esse impasse” (p. 64) nas palavras do autor. Em seguida, apresenta seu ponto de vista acerca desse impasse e infere que o “passado não tem relação (nem culpa) com nossas propostas utópicas de futuro. Para termos uma proposta de futuro, não é preciso conhecer o passado. Basta sonhar” (p.72).

O autor cita o historiador Eric Hobsbawm, ao destacar que atualmente a História é “revista ou inventada por gente que não deseja o passado real, mas somente um passado que sirva aos seus objetivos” (p. 72). Para Costa, esse é um ponto muito interessante, pois é defensor de que há um equívoco no uso do passado para a justificativa de uma visão de mundo.

Conclui este capítulo, afirmando que, se o conhecimento histórico não tiver como finalidade tornar melhor os indivíduos e suas relações, sua serventia será apenas de “acirrar conflitos e aumentar conflitos e aumentar a violência de uns contra outros” (p. 72). Expõe então sua opinião sobre a questão central desse capítulo: “quem ama e sempre amou a História não está, nem nunca esteve em crise. Da minha parte, eu nunca estive em crise por causa dela, muito pelo contrário, ela sempre me causou um imenso prazer, o verdadeiro prazer de conhecer” (p. 83).

No capítulo seguinte, o autor afirma que a História é fundamental para as relações cotidianas e amplia as possibilidades de sua compreensão, apresentando questões relevantes para o (a) leitor (a) se questionar e pensar sobre a “crise” dessa disciplina. Costa vai além das explicações consolidadas que concerne à função da História dentro da academia, abrindo assim um leque referente ao papel da História e do historiador. Desta maneira, chama a atenção para a ressignificação da escrita.

No último capítulo dessa seção, o autor analisa crônicas hebraicas e cristãs, por meio de um tema muito debatido na atualidade, a saber, o antijudaísmo. Sabe-se que no decorrer dos períodos históricos há episódios marcados por acontecimentos nem sempre favoráveis a determinados grupos. Nesse trecho da obra, o autor menciona as primeiras perseguições dos judeus, mostra a resistência franca contra este povo e apresenta sucintamente a relação da comunidade judaica com a Igreja Católica e as Cruzadas. Por fim, Costa trata de vários massacres sofridos por esse povo, revelando os rastros dos ressentimentos e preconceitos com o outro ao longo da História.

Na seção Literatura, Costa se debruça sobre as Sete Artes Liberais (c. 1304- 1307), de Dante Alighieri, em que o poeta por meio da alegoria trabalha filosoficamente o tema das Artes Liberais nos complexos e “imaginários céus da Astrologia”. O autor discorre sobre a poesia, a filosofia e o amor de modo reflexivo e crítico, bem como tece comentários, acerca do uso da poesia pelos medievos em seu trato com a ciência e a filosofia.

Em seguida, o autor aborda a relação entre sonho e história, a partir da obra O sonho (1399), de Bernat Metge, trazendo uma reflexão filosófica a respeito de sua relevância para a sociedade medieval. Com base ainda na obra de Metge e na novela Curial e Guelfa (c. 1460), Costa apresenta a condição feminina sobre a perspectiva dos homens, com destaque para opressão sofrida por elas, para sua personalidade medieval e a para a voz das mulheres nesta obra. Diz o pesquisador: “[…] nela são as mulheres as verdadeiras protagonistas do enredo” (p. 176).

Na penúltima seção, intitulada Filosofia, o autor escreve sobre o Inferno, uma temática indispensável para o entendimento do imaginário do homem e da mulher medievais. Diante disso, deparamo-nos com dois espaços essenciais para a compreensão de como pensavam e viviam os habitantes deste período e de suas perspectivas em relação ao Paraíso e o Inferno. A preocupação com destino após a morte era uma indagação no medievo, já que a Igreja Católica, com a sua doutrina, levava os fiéis a crer que o principal objetivo dos homens era aproximar-se do Reino Celeste (ZIERER, 2013, p. 31).

Costa analisa a visão sobre o Inferno na ótica do filósofo Ramon Llull (1232- 1316), o qual dedicou algumas de suas obras ao Além medieval. Para Costa, sem “[…] esse incisivo pano de fundo imagético, perspectiva transcendental, não é possível compreender a mentalidade medieval (grifo do autor, p. 190). Se na Contemporaneidade, e portanto, com o crescimento da laicização a descrição do Inferno ainda desperta medo e tormenta, para uma parcela da sociedade medieval, por sua vez, esse espaço era uma arma utilizada para regular o comportamento humano.

No capítulo seguinte, o autor analisa a terceira parte do Tratado da Obra dos Dias, de Teodorico de Chartres (c.1155), texto em que predomina uma abordagem filosófica acerca do criador, sob a perspectiva cristã. Para analisar a concepção da divindade nesse tratado, Costa retoma a filosofia clássica e se debruça sobre Platão, Sêneca dentre outros, que influenciaram o pensamento de Teodorico, nas questões relativas à esfera divina. Em sua investigação a respeito de Deus, Teodorico conciliaria: “[…] a verdade da Revelação cristã com a verdade científica de seu tempo (isto é, a das sete artes liberais). Para ele, não havia incompatibilidade entre a fé e a razão” (p. 222).

No último capítulo da seção Filosofia, Costa escreve sobre a disputa entre Bernardo de Claraval e Pedro Abelardo, não somente importantíssima no contexto medieval, mas portadora de reflexões interessantes no que se refere ao debate entre homens de natureza tão oposta. Nesse sentido, o autor apresenta o imenso sofrimento de Bernardo frente aos escritos de Pedro Abelardo. De acordo com Visões da Idade Média, Bernardo pediu que os bispos lessem nos escritos, pois “[…] estavam escritas coisas insólitas aos ouvidos e mentes católicas sobre a Santíssima Trindade, a geração do Filho e a precedência do Espírito Santo” (p. 228). Costa apresenta as interpretações da história que envolve Bernardo e Pedro Abelardo, na perspectiva histórica, filosófica e teológica. No mais, finaliza seu texto com o seguinte questionamento: “Até quando distorceremos a Histórica?” (p. 248).

No capítulo que abre a seção Artes, Costa discorre sobre as representações da vida camponesa na arte de Benedetto Antelami (c. 1150-1230). Essa arte dava vida às estações, às colheitas, à labuta do jovem e robusto camponês medieval. Costa ressalta que nessa produção artística há a presença do estilo românico provençal, algo presente nas obras de Antelami. Costa destaca que “[…] a história do campo, do campesinato, é a história de um mundo social quase sem história” (p. 256).

No capítulo seguinte, Costa realiza um estudo das representações do corpo no Retábulo de São João Batista (1425-1430), de Bernat Martorell. Analisa as expressões faciais, os gestos, as mãos, os detalhes de uma verdadeira obra de arte, que parecem ganhar movimento e vida diante de quem a contempla, diante dos sentimentos de medo, admiração, tristeza, dor, alegria e assombro. O penúltimo capítulo da seção Artes, Costa faz uma análise histórica do episódio bíblico de Susana e os anciãos, um texto interessante que versa sobre a contemplação da beleza.

No capítulo que encerra essa seção, o autor chama a atenção dos (as) leitores (as) e historiadores (as) para algo que ele define como importante, pois, quem se dispõe a pesquisar dada temática torna-se imperativo ter “paixão”, afinco, seriedade e não omitir os fatos. Costa ressalta a relevância de se livrar das armadilhas da seleção viciada dos textos, e o cuidado ao querer “ressuscitar” o passado, já que “[…] para se fazer uma boa e apaixonada História, o historiador deve sair de si mesmo, deve se tornar acessível e ir ao encontro do outro” (p. 325). Além disso, quem escreve tem que ter maturidade, saber observar e analisar a cultura de cada época, pois “[…] a História é para maduros” (p. 330).

Costa mantém e dá sequência à estrutura do livro anterior, intitulado Impressões da Idade Média, outra coletânea de artigos, fruto do seu trabalho intenso como pesquisador. A organização do livro contou com o auxílio de alguns dos seus alunos, que o ajudaram na escolha dos artigos e e na seleção dos textos que viriam a compor as quatro divisões da obra: História, Literatura, Filosofia e Artes, que foram divididas em quatro temas: História, Literatura, Filosofia e Artes. O autor coloca em prática, como já havia afirmado em outro texto, que a História pode extrapolar os seus limites através de áreas diversas: “Não só a Política, não só a Economia, mas a História conceitual, a Arqueologia, a Literatura, a Artes, o Clima, o Corpo, enfim, o tempo, em todas as suas ricas contradições, diversidades e paradoxos” (COSTA, 2016, p. 304, grifos do autor).

O autor aborda o que considera os principais temas que fazem parte da sua trajetória acadêmica. Deste modo, apresenta a sua perspectiva sobre a História, a sociedade e a cultura medieval, dentre outras temáticas que nos ajudam a compreender como foi forjada a sociedade ocidental. Os textos reunidos nesta coletânea de artigos têm em comum a preocupação de mostrar as inúmeras formas de interpretar o passado, assim como de compartilhar o conhecimento histórico, fruto de um trabalho árduo e minucioso, levado a cabo por meio de diversas fontes.

Sem dúvida, as reflexões do professor Ricardo da Costa contribuem para novas visões sobre a Idade Média, já que muitos categorizaram esse período como “Idade das Trevas”, negando neste a produção de conhecimentos, e a existência da cultura, do amor etc. Tais interpretações conservadoras apontavam a Igreja como detentora do saber, acusando a de esconder e barrar a ciência, com o intuito de explorar e manter os homens e mulheres medievais na ignorância. Infelizmente, muitos ainda são influenciados por essa visão preconceituosa.

Ademais, ao discorrer sobre o começo de sua trajetória acadêmica, não economiza críticas em relação à academia. Costa via-se como “um bom rebelde „pósaborrescente‟” e fala das “centenas de „leitores de orelha‟ e de resenhas de livros e que nunca leram um livro até o fim” (p. 63). A nosso ver, a afirmação do autor é parcialmente justificável e Costa recai em generalizações. Sabe-se que no Brasil, marcado pelas diversas desigualdades, muitas pessoas carecem de incentivo e condições de levar os estudos adiante, porém isso não é uma condição de escolha, mas fruto da realidade de miséria e falta de recursos.

O autor também fala da importância de relacionar o texto e imagem, sempre, no entanto, com sensibilidade e rigor. Além das ponderações aqui feitas, esta resenha é um convite à leitura da obra completa, para que os leitores tirem suas próprias conclusões e construam as suas próprias intepretações. É nesse sentido que o livro Visões da Idade Média, torna-se uma leitura indispensável para todos aqueles que pesquisam o período medieval, assim como todos (as) que são amantes do conhecimento e admiradores dessa época multifacetada e rica de transformações, conhecida como Idade Média.

Referências

BLOCH, Marc. A Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

COSTA, Ricardo da. As múltiplas Idades Médias de Jacques Le Goff (1924- 2014). Brathair, São Luís, (UEMA), v. 16, n. 2, p. 303-314, 2016.

COSTA, Ricardo da. Impressões da Idade Média. São Paulo: Livraria Resistência cultural, 2017.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade média: nascimento do ocidente, São Paulo: Brasiliense, 2001.

LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Estampa, 2004.

ZIERER, Adriana. Da ilha dos bem-aventurados à busca do Santo Graal. São Luís: Ed. UEMA, 2013.

Natasha Nickolly Alhadef Sampaio Mateus – Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História e Conexões Atlânticas: culturas e poderes (PPGHIS), da UFMA, sob financiamento Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA). Mestra em História, Ensino e Narrativas pelo programa de Pós-Graduação em História, Ensino e Narrativas (PPGHIST), UEMA; licenciada em História (UEMA); licenciada em Pedagogia e Bacharela em Teologia pela FATEH. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9634-665X E-mail: natasha_alhadef@hotmail.com


COSTA, Ricardo. Visões da Idade Média. 2ª ed. Santo André, SP: Armada, 2020. Resenha de: MATEUS, Natasha Nickolly Alhadef Sampaio. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.20, n.2, p. 275- 259, 2020. Acessar publicação original [DR]

Verités et Légendes | J.-L. Brunaux

Os gauleses aparecem em diversos livros sobre Arqueologia e História Europeia Ocidental. Eles fazem parte da História da França e também nos referimos a eles quando falamos sobre celtas. Foram populações recorrentemente selecionadas para a construção do nacionalismo francês, como fez Napoleão III, em 1865, ao projetar seu rosto em uma estátua de bronze em Alésia. Ele também justificou as ações coloniais francesas (como na Indochina e no norte da África), afirmando que a dominação romana aos gauleses teria levado a civilização e a paz a essas populações. Além disso, podemos citar durante a Segunda Guerra Mundial, o caso de Marechal Pétain, que também se associou à figura de Vercingetórix, argumentando que se sacrificou pelo país, dentre diversos outros casos.

No geral, os pesquisadores dividem-se entre os que são a favor do uso das nomenclaturas Gália e gauleses, e os que são contra. Christian Goudineau é um nome de destaque dentro de uma visão mais cética. O autor apresenta esta visão em sua obra Par Toutatis: que reste-t-il de la Gaule? (2002a), argumentando que as populações locais da França não chamavam a si próprias de gaulesas. Além disso, o que chamamos de Gália seria apenas uma concepção geográfica criada por César durante as Guerras da Gália, até mesmo pela consideração de divisões territoriais tão rígidas. E também porque o que César retrata é apenas o território que ele conquistou (cf. GOUDINEAU, 2002b, p. 37).

Enquanto isso, Jean-Louis Brunaux pertence ao grupo que adota essa nomenclatura, junto a diversos outros pesquisadores de pré e proto-história europeia da França. Podemos citar a obra de Py (1993); Les gaulois du Midi: de la fin de l’Âge de Bronze à la conquête romaine; Dedet (2018), Coutumes Funéraires en Gaule du Sud Durant la Protohistoire (IXe-IIe siècle av. J.-C.); Férnandez-Götz (2014), Identity and Power: The Transformation of Iron Age Societies in Northeast Gaul; Dessenne (2011), Celtes et Gaulois: deux chemins vers l’au-delà; dentre diversas outras obras. Esta se trata da abordagem mais tradicional e recorrente até hoje.

Podemos observar reflexos da Arqueologia Social francesa nesse livro, tendo em vista que o foco da obra é decifrar quem são as populações chamadas de gaulesas. Apesar disso, o autor propõe teorizações próprias, como veremos, e não uma descrição da cultura material, como encontramos muitas vezes na produção arqueológica do país.

Brunaux já publicou diversos livros sobre os gauleses voltados para acadêmicos, como Les religions gauloises (2016), Guerre et religion en Gaule: essai d’anthropologie celtique (2004), Les Gaulois (2005), Les Druides (2006). A grande diferença deste livro é a proposta de responder quem são os gauleses a partir da colocação de perguntas, que muitas vezes aparecem correntemente no imaginário popular sobre as populações da Idade do Ferro da França (VIII-I a.C.). Assim, o autor busca desmitificar lendas, mal-entendidos e apontar que evidências concretas existem. Dentre elas, encontram-se: se os gauleses são os ancestrais dos franceses (“Les Gaulois sont-ils les ancêtres des Français?”), se os chamados gauleses possuíam bigodes e cabelos grandes (“Les Gaulois étaint-ils moustachus et chevelus?”) e se eles se embebedavam em banquetes gigantescos (“S’enivraient-ils dans des banquets gargantuesques?”). Estas questões também se tratam de assuntos que aparecem de forma corrente na documentação textual feita por gregos e romanos.

“Les Gaulois: Vérités et legendes” possui, além de uma introdução, vinte e nove capítulos. A quantidade deles deve-se justamente ao fato de que cada capítulo propõe a resposta de uma questão, cuja resolução é feita, na grande maioria vezes, a partir do cruzamento da documentação arqueológica e textual. Consideramos este um livro introdutório, tendo em vista que responde a questões relativamente básicas sobre as populações da Idade do Ferro da França, que seria também compreendido por pessoas que não possuem informações anteriores sobre o assunto.

Dentre as perguntas colocadas, destacaremos as que consideramos mais essenciais. Logo na introdução, Brunaux defende o uso do termo gauleses para todas as populações da Idade do Ferro da França (BRUNAUX, 2018, p. 11). Essa ideia também é reforçada no segundo capítulo, “Sont-ils gaulois ou celtes?”.

No primeiro capítulo, “Marseille-la-Grecque a-t-elle adouci la civilisation gauloise?”, Brunaux fala sobre a fundação da colônia grega de Massália no sul da França, e discorre sobre as consequências da interação entre gregos e as populações locais. Já no segundo capítulo, “Sont-ils gaulois ou celtes?”, apresenta sua interpretação sobre quem são os celtas e os gauleses. Ele assinala que a concepção de que, nos séculos XIX e XX, os celtas compunham uma mesma raça já foi totalmente superada (BRUNAUX, 2018, p. 29). Segundo seu ponto de vista, a única coisa em comum entre os celtas seria uma:

[…] estreita relação que eles possuíam com os gregos, os foceus de Marselha particularmente. Todos tinham ligações diretas ou indiretas com esses comerciantes. Ou organizavam o tráfego na Gália para eles: cuidavam do transporte, da descoberta de novos mercados. Ou produziam para atender a sua demanda: extraíam minérios, refinavam metais, fabricavam produtos semiacabados e exportavam parte de sua produção agrícola” (BRUNAUX, 2018, p. 30).

Brunaux considera também que os celtas eram populações confederadas vinculadas a interesses econômicos (BRUNAUX, 2018, p. 31). De maneira que “era então provavelmente o nome genérico que esses aliados se davam” (BRUNAUX, 2018, p. 31). Segundo o autor, as alianças que eles fizeram indicariam duas fases: uma diplomática com os foceus (para fluxo de mercadoria e proteção) que se converteu também em política (criação de grandes vias por esses territórios), e outra econômica (estando o poder dessas populações conectado aos seus contatos). Ademais, Brunaux defende que os celtas seriam uma parte dos gauleses, que ele acredita que formem um grupo mais amplo, ou seja, todas as populações que residiam no território chamado de Gália (BRUNAUX, 2018, p. 34). Menciona-se que os celtas se helenizaram “superficialmente” (BRUNAUX, 2018, p. 30). Ele não considera este termo como uma perda total do que ele chama de “personalidade” das populações locais.

O capítulo três intitula-se “Les invasions gauloises étaint-elles barbares?”. Nele, o autor se propõe a desconstruir a ideia de que essas populações seriam invasores bárbaros. Ele apresenta episódios de incursões violentas relatadas pela documentação textual, mas também a ideia de uma imigração e da criação de colônias, vinculada a uma movimentação de longo prazo, nos quais os já residentes abririam o caminho para que mais pessoas chegassem (cf. BRUNAUX, 2018, p. 38-39 e 45). Igualmente, defende que a ideia de invasões célticas, como uma movimentação populacional em massa, nunca aconteceu. Como o autor aborda, sabemos que a maior parte da população local da França era composta por agricultores, ligados à terra, e que o grupo que mais se movimentaria nessa região eram os guerreiros que atuavam como mercenários (BRUNAUX, 2018, p. 43).

Dentre esses capítulos, acreditamos igualmente que o nono merece destaque. Tendo em vista que, ao lançar a questão de se a Gália seria uma invenção de César, Brunaux defende sua ideia de que as populações locais do sul da França teriam consciência dos limites do território chamado de Gália (BRUNAUX, 2018, pp. 104- 105).

Do mesmo modo, consideramos relevante a problematização da ideia de que os chamados gauleses seriam os ancestrais dos franceses (capítulo 10), tendo em vista que essa se trata de uma seleção parcial da História da França para fins nacionalistas, sendo uma construção.

O capítulo vinte e quatro contribui, desmitificando a ideia de que a França na Idade do Ferro seria coberta de florestas, e que eles seriam bons selvagens, vivendo harmonicamente na natureza. Como Brunaux (2018, p. 248) aponta, o norte da França possui mais florestas atualmente do que na Idade do Ferro, e era bastante habitada, demandando grande quantidade de terras para agricultura.

Podemos dividir o restante da obra por temas. Da forma como os capítulos 7 e 12 abordam a aparência dos chamados gauleses, que como mostra o autor, não seriam gigantes e louros, como perdura no imaginário popular (BRUNAUX, 2018, p. 87-88).

Outra temática levantada sobre essas populações são suas inovações e tecnologias. Isso aparece nos capítulos 14, 15, 16 e 17. Assim, ele menciona como essas populações criaram a colheitadeira, arado, a cota de malha (coletes de pequenos anéis para proteção dos cavaleiros), o esmalte vermelho (para substituir o coral), a colocação de uma camada de estanho para recobrir vasos e também inovações na botânica. Também reproduziram novas espécies de animais a partir do cruzamento com animais importados (BRUNAUX, 2018, p. 171). Do mesmo modo, são mencionados como ótimos artesãos com metal e madeira. Essas informações são essenciais para a desconstrução da ideia dessas populações do sul da França como bárbaros.

Alguns aspectos importantes dessas sociedades também são mencionados nos capítulos dezoito e vinte e cinco, como o fato de que algumas mulheres possuíam um lugar privilegiado e de destaque nessas sociedades. Brunaux também retoma assuntos bastante recorrentes sobre os chamados gauleses, como os serviços mercenários (capítulo 6), banquetes (capítulo 13), os druidas (capítulos 19 e 20), Vercingetórix (capítulo 11), a conquista da Gália (capítulo 26), organização social (capítulo 25), “arte” (capítulo 29), dentre tantos outros.

A obra contribui para o assunto, pois recorrentemente contesta a documentação clássica (textos gregos e romanos), até mesmo pelo cruzamento com a Arqueologia, apesar de nem sempre uma problematização ser totalmente alçada. Um exemplo disso é que o autor concorda com a ideia de Pompeu Trogo, de que “os foceus suavizaram a barbárie dos Gauleses, e lhes ensinaram uma vida mais doce” (BRUNAUX, 2018, p. 22-23), e diz que Massália era a “principal inspiradora da civilização gaulesa” (BRUNAUX, 2018, p. 24). Dessa forma, podemos observar que apesar dos avanços apontados na obra para que a visão de barbárie dessas populações seja desmitificada, o autor não questiona completamente o discurso colonial de que os gregos levariam a civilização para a barbárie. Podemos dizer o mesmo quanto à consideração de um papel ativo das populações locais nas relações com os gregos, tendo em vista a insistência em chamar as relações interculturais locais de helenização, escolhendo uma palavra que continua a enfatizar apenas um lado desse contato, ao invés de buscar alguma mais precisa e representativa, denotando claramente uma troca entre ambas as partes.

Além disso, apesar do perigo de generalização apresentado pela obra, tendo em conta seu grande escopo, que não leva em consideração até mesmo as diversidades regionais, esta é uma boa obra introdutória e atualizada sobre o tema. Inclusive porque poderia ser lida e compreendida por pessoas sem conhecimento prévio sobre o tópico, e também pela revisão de pontos clássicos.

Por fim, consideramos interessante a forma como o autor constrói a sua narrativa sobre quem eram os chamados gauleses, a partir de questões apresentadas em capítulos curtos, facilitando a leitura, enquanto nesse trajeto o pesquisador introduz o leitor a questões mais amplas, como religiosidade, contexto funerário, organização social, guerra, dentre outros. E assim, juntando as respostas dessas diversas questões, o autor nos permite a reunião da sua imagem e interpretação acerca de quem eram essas populações da Idade do Ferro da França.

Referências

BRUNAUX, Jean-Louis. (2016) Les religions gauloises. Paris: Biblis.

BRUNAUX, Jean-Louis. (2006) Les druides. Des philosophes chez les Barbares. Lonrai: Éditions du Seuil.

BRUNAUX, Jean-Louis. (2004) Guerre et religion en Gaule: essai d’anthropologie celtique. Paris: Errance.

BRUNAUX, Jean-Louis. (2005) Les Gaulois. Paris: Société d’édition Les Belles Lettres.

DESSENE, Sophie (coord.). (2011) Celtes et Gaulois: deux chemins vers l’au-delà. Soissons: Musée de Soissons.

FERNÁNDEZ-GÖTZ, Manuel. (2014) Identity and Power: The Transformation of Iron Age Societies in Northeast Gaul. Amsterdam: Amsterdam University Press.

GOUDINEAU, Christian. (2002a) Par Toutatis: que reste-t-il de la Gaule? Paris: Éditions Seul.

GOUDINEAU, Christian. (2002b) “Les Gaulois: récit d’une redécouverte.” Raison présente, n. 142, p. 31-38.

Thaís dos Santos – Mestre em História Social (PPGH/UFF/NEREIDA) ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3575-8300 E-mail: thaisrsantos@hotmail.com


BRUNAUX, J.-L. Les Gaulois. Verités et Légendes. Paris: Perrin, 2018. Resenha de: SANTOS, Thaís dos. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.20, n.1, p. 342- 348, 2020. Acessar publicação original [DR]

Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval | A. C. L. F. da Silva

O MEDIEVO OCIDENTAL A PARTIR DE CONCEITOS COMO GÊNERO, SANTIDADE E MEMÓRIA E EM DIFERENTES ABORDAGENS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Introdução

Segundo informa em sua apresentação, o livro Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval, publicado em 2018, foi o resultado do projeto “A construção medieval da memória de santos venerados na cidade do Rio de Janeiro: uma análise a partir da categoria gênero” coordenado pela Profa. Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. Tal iniciativa privilegiou a articulação entre atividades de ensino, pesquisa e extensão, com enfoque especial na temática mendicante do século XIII, a partir das categorias gênero, santidade e memória.

Decorrente de tal proposta, a publicação é uma coletânea de resultados de pesquisas de colaborados do referido projeto e vinculados ao Programa de Estudos Medievais (PEM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), totalizando dezessete capítulos. Pelo número de materiais, a apresentação esmiuçadora de cada um dos capítulos tornaria a resenha exaustiva, sem esgotá-los. Nossa proposta é, portanto, sintetizar o tema eleito por cada autor, a documentação utilizada, a abordagem teóricometodológica explícita e/ou implícita em sua redação e suas principais conclusões.

Por fim, como nossas últimas considerações, apresentamos algumas considerações sobre outros pontos de aproximação entre os capítulos, para além dos já anunciados no título e na introdução da obra.

Dezessete abordagens sobre gênero, santidade e memória no medievo ocidental

O primeiro capítulo, escrito por Flora Gusmão Martins, “Considerações sobre o culto aos santos mártires no reino visigodo dos séculos VI e VII” apresenta uma revisão sobre o modelo de santidade martirial da Alta Idade Média, considerando especificamente seu desdobramento no contexto ibérico dos séculos VI e VII.

O texto de F. G. Martins enfatiza a relação entre mártires e heróis da antiguidade e suas possíveis correlações. São priorizados, ainda, três modelos de santidade em tal contexto: o mártir, o bispo e o asceta. Para construir sua argumentação, a autora apresenta as aproximações e os distanciamentos das conceituações realizadas por autores como Andrade, Castillo Maldonado, Souza, Vauchez, Moss, Brown, Bowersock, entre outros, sem desconsiderar as leituras contemporâneas dos eventos, como as apresentadas por Isidoro de Sevilha (século VII).

A diretora e autora do livro, Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, em seu capítulo “A Ordem Dominicana na Legenda Beati Petri Gundisalvi”, apresentou um estudo sobre o documento que trata da vida do dominicano Pedro González, também conhecido como São Telmo, que teria vivido no século XIII. Como objeto explícito da sua análise, foram destacadas às referências à Ordem Dominicana na Legenda e suas possíveis relações com a forma de patrocínio utilizada na produção do referido texto.

Ao longo de seu estudo, a autora apresenta a tradição manuscrita da Legenda Beati Petri Gundisalvi, sua transmissão, as edições existentes do documento, uma do século XVIII e outra do XXI, e a ausência de análises aprofundadas pela historiografia. Para além das hipóteses levantadas a respeito da datação e da autoria do documento, A. C. L. F. Silva argumenta que a análise sistemática das referências institucionais indica que a obra teve por objetivo enaltecer a figura de Pedro González, e não da Ordem Dominicana, o que implica que esta não estaria envolvida no patrocínio de sua redação.

Analisando a Legenda Áurea, Laís Luz de Carvalho escreve o estudo “„A comemoração das almas‟ da Legenda Áurea: solidariedade entre vivos e os mortos do purgatório”. A autora utiliza o legendário dominicano para analisar todas as referências às relações entre vivos e mortos presentes no capítulo “A Comemoração das Almas”, da Legenda Áurea, com o objetivo de entender a dinâmica de solidariedade que era incentivada pela Igreja de Roma.

A partir do método de Análise da Narrativa, foram enfatizados os pecados e as penas atribuídos aos pecadores em anedotas exemplarizantes. O estudo leva em consideração o contexto do surgimento do Purgatório e das Ordens Mendicantes, os quais perpassam as questões atreladas ao documento. Nesse sentido, L. L. Carvalho sistematiza em categorias desenvolvidas para a pesquisa todas as 16 exempla, a partir da identificação dos personagens e de onde são, das suas penas e seus pecados e dos tipos de vínculos estabelecidos entre os vivos e os mortos. A autora conclui que o Purgatório permite a crença na redenção para laicos e citadinos e que a obra tem por um dos seus objetivos incentivar a solidariedade entre vivos e mortos na comunidade cristã.

Com uma proposta metodológica que privilegia a Análise da Avaliação de Laurance Bardin, o capítulo de André Rocha de Carvalho, “A representação dos imperadores da dinastia Staufen na Vida de São Pelágio da Legenda Áurea: aplicando a Análise de Avaliação”, busca identificar as abordagens apologéticas e depreciativas sobre a representação dos imperadores da dinastia Staufen, atribuindo valores em gradações numéricas para que os discursos sejam considerados positivos ou negativos. Para a categoria de representação, o autor fez usa do conceito estabelecido por Roger Chartier.

R. Carvalho parte do pressuposto que A Vida de São Pelágio transmite uma imagem dos imperadores marcada pelos interesses do autor, da ordem dominicana e da Igreja Romana. Nesse sentido, os governantes são representados como tiranos, traidores e pecadores, com o objetivo de defender a autoridade e superioridade do poder papal frente ao poder imperial. Simultaneamente, serve de ferramenta de propaganda para a Cristandade no contexto reformador.

Retornado aos debates de santidade, mas privilegiando um recorte detido nos séculos XII e XIII, a autora Ana Paula Lopes Pereira apresentou o capítulo “Maria d‟Oignies (1213) e Clara de Assis (1253): dois exemplos de santidade laica nos Prólogos de Jacques de Vitry (1160/80-1240) e Thomas de Celano (1200-1260)”.

Em tal estudo a santidade passa a ser analisada considerando os aspectos urbanos da Idade Média Central. O texto privilegia o exame de duas hagiografias de mulheres em perspectiva comparada, buscando as semelhanças nos processos iniciais do movimento beguinal e franciscano. Em tal estudo, A. P. L Pereira busca compreender o culto e a perseguição a Maria d‟Oignies, bem como o enquadramento das beguinas, contrapondo comparativamente, com o culto e a canonização de Clara de Assis. Como ponto de confluências, os dois movimentos dos quais as hagiografias são decorrentes fazem parte das novas formas de piedade laica, do século XIII. A autora conclui que a mudança de geração entre Maria d‟Oignies e Clara de Assis e dos seus hagiógrafos demonstra o poder de enquadramento e endurecimento da Igreja Romana para o afastamento das novas formas de vida apostólica e mística.

Em uma sequência de análises sobre a santidade feminina, Andréa Reis Ferreira Torres apresenta o ensaio intitulado “Os atributos conferidos à santidade feminina em dois processos produzidos na Península Itálica no século XIII – uma comparação entre Clara de Assis e Guglielma de Milão”. Mais uma vez o comparativismo é privilegiado para traçar as aproximações e os distanciamentos entre os documentos de canonização e de processo inquisitorial, com especial ênfase nos atributos de santidade relacionados às mulheres.

Ambos os documentos, produzidos na Península Itálica do século XIII, são contemporâneos ao processo de fortalecimento papal, determinante para o endurecimento do controle e reconhecimento de santidade. A análise dos atributos de santidade realizado por A. R. F. Torres foi executada tendo como aporte teórico a categoria gênero, na interpretação sistematizada por Scott. Nesse sentido, para a autora do capítulo, a questão do gênero interferiu na construção dos modelos exemplares femininos para tal sociedade, principalmente considerando a questão da mentoria masculina ou a sua ausência nos mencionados documentos.

Pensando o aspecto social da santidade, o texto “A santidade em construção: revolvendo camadas para expor as instituições atuantes na canonização de Domingos de Gusmão (1233-1234), de Thiago de Azevedo Porto, reflete sobre a canonização de Domingos de Gusmão como um processo coletivo e complexo, em que tomam parte interesses de agentes sociais diversos, que incluíam a autoridade pontifícia. Para o autor, a santidade é uma formação post mortem, desconectada das escolhas em vida de Domingo, reconhecido como santo ainda no século XIII.

O processo de reconhecimento de santidade teria sido, portanto, resultado de uma construção coletiva, com rota não linear, com avanços e contradições, que devem ser entendidas levando em consideração processos que antecedem à canonização do dominicano. Dessa forma, torna-se possível compreender como foi organizada uma campanha para viabilizar o sucesso do processo de Domingo junto a Igreja Romana.

A santidade feminina a partir de processos inquisitoriais é abordada em um novo capítulo, intitulado “Considerações sobre as Almas Simples Aniquiladas e a condenação da beguina Marguerite Porete (1250-1310) e escrito por Danielle Mendes da Costa. Em seu texto a autora busca entender como a condenação por heresia de Marguerite Porete pode ter sido motivada pela interpretação da instituição eclesiástica de que as ideias defendidas pela beguina representavam uma ameaça ao poder da Igreja Romana.

M. Costa apresenta a produção documental de Marguerite Porete, sua temática e organização, as tentativas de silenciamento por parte da Igreja Romana, por meio dos inquisidores, e a chegada dos manuscritos até os dias de hoje. Do ponto de vista conjuntural, são apresentados o contexto pontifício do século XIII e o movimento beguinal e de espiritualidade feminina dos séculos XII e XIII. Nesse sentido, a autora conclui que a defesa de um caminho para a salvação que não estava atrelada à instituição eclesiástica foi interpretada como uma ameaça e uma concorrência e, portanto, destinada à repressão por ser considerada um desvio da ortodoxia, culminando na morte de sua propositora.

Em “A influência franciscana na cidade de Pádua: um estudo sobre a narrativa da pregação antoniana na Beati Antonii Vita Prima”, o autor Victor Mariano Camacho estabelece o estudo da pregação de Antônio de Lisboa, também conhecido como de Pádua, no contexto franciscano e urbano. O estudo privilegia os sacramentos e a influência da ordem nos contextos citadinos a partir da obra Beati Antonii Vita Prima, também conhecida como Legenda Assídua, que trata da vida do então conhecido como Fernando Martins de Bulhões.

M. Camacho apresenta brevemente os dados documentais como autoria, destinação da obra e organização textual. A ação pregadora de Antônio no ambiente urbano também é sistematizada, com especial enfoque para o décimo terceiro capítulo da hagiografia, com sua ação de modificação do espaço comunal, desde a prática da usura até a prostituição. A ação antoniana em Pádua foi interpretada pelo autor como uma reprodução da influência pastoral franciscana em alinhamento com as diretrizes centralizadoras de Igreja de Roma daquele período.

Dando sequência aos estudos franciscanos com ênfase na atuação de Antônio de Pádua/Lisboa, Jefferson Eduardo dos Santos Machado, autor do capítulo “Sacramentos da confissão no discurso franciscano do século XIII, a partir dos Sermões Antonianos”, destaca a o processo de institucionalização do movimento, com a aproximação dos Frades Menores do poder pontifício. Tal como o texto de Camacho, o aspecto sacramental é enfatizado, mas neste episódio, principalmente no que diz respeito à Reconciliação e à Confissão.

Segundo J. E. S. Machado, os Sermões Antonianos estavam organizados para serem utilizados de acordo com o calendário litúrgico, o qual não estava alinhado com o da Igreja Romana. A partir da análise dos sermões da Quaresma e a Confissão, o autor afirma que como um sacramento, a confissão tinha grande importância no discurso antoniano, sendo apontada como importante elemento para a salvação da alma. A confissão passou, portanto, a ser um elemento de vigilância para a Igreja Romana, em um contexto de fortalecimento e centralização do poder pontifício.

O século XIII também foi abordado a partir dos regastes neotestamentários, como a Epístola de Tiago, tema abordado por Gabriel Braz de Oliveira em “Uma alternativa de leitura sobre a pobreza medieval no Novo Testamento: a trajetória canônica da Epístola de Tiago”. O documento foi, portanto, retomado no âmbito do debate sobre os fundamentos da pobreza evangélica e mendicante. Mesmo no contexto de formação do cânon neotestamentário, a epístola passou por uma aceitação paulatina e marcada por diversas desconfianças das autoridades eclesiásticas, que foram contrapostas pela aceitação de outros personagens de grande influência, como Eusébio de Cesaréia, Atanásio, Jerônimo e Agostinho.

B. Oliveira dividiu sua investigação sobre o texto em partes, sendo elas: as características do documento, como as temáticas, a autoria e a datação; o conteúdo histórico hermenêutico, reunindo comentários realizados pela carta em diferentes momentos, principalmente pelos autores patrísticos, e; apresentação de uma leitura da pobreza na Epístola de Tiago, como crítica ao apreço pelo materialismo, que busca normalizar a segunda geração de cristãos.

Abordando também as leituras exegéticas realizadas no período medieval, o capítulo de “Espiritualidade e milenarismo na Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore (1135-1202)”, de autoria de Valtair Afonso Miranda, analisa os escritos de Joaquim de Fiore, a partir da ideia de que há um rompimento com a tradição agostiniana na História da Igreja, dando lugar a uma nova forma de espiritualidade. Na obra Expositio in Apocalypsim, Joaquim faz um comentário do Apocalipse de João, que foi analisada para este capítulo a partir dos aspectos da espiritualidade e do milenarismo.

Segundo, V. A. Miranda, o abade cisterciense preocupou-se em correlacionar todas os episódios do texto do apocalíptico com eventos históricos atrelados a História Eclesiástica, tanto em perspectiva linear quanto cíclica. Como monge beneditino da Ordem Cisterciense, Joaquim estava inserido nos movimentos reformadores que envolveram a sociedade ocidental dos séculos XII-XIII, e que foi apropriada pelo autor da exegese para ampliar os valores monásticos para a Cristandade. O apocalipticismo de Joaquim de Fiori, portanto, conjugou-se com o milenarismo que buscava a unidade e a transformação da ecclesia.

Analisando uma narrativa produzida em um mosteiro, Alinde Gadelha Kuhner, em “A Fundação de Santa Cruz de Coimbra de acordo com a Vita Tellamos Archidiaconi”, discute a promoção da legitimidade da fundação de Santa Cruz de Coimbra e a natureza tipológica da Vida de D. Telo. Segundo a autora, tal documento não é satisfatoriamente enquadrado como hagiografia e, por este motivo, a natureza do relato é debatida no seu estudo. De autoria conhecida, o documento foi produzido no referido mosteiro.

O questionamento de A. G. Kuhner sobre a classificação da narrativa como hagiográfica esteve baseada na importância atribuída ao protagonista por seu hagiógrafo, pela ausência de dados biográficos do hagiografado, sendo estes obliterados pelos dados referentes à fundação do mosteiro, fato que acontece em momento já avançado de sua vida. Reforçando tal argumento, a autora destaca que mesmo o relato sobra peregrinação de Telo para Terra Santa é fato menor se comparado a importância desta fundação para a narrativa. Em síntese, teria sido o papel do santo na construção do mosteiro e no reconhecimento do espaço pelo poder pontifício que o qualificou à posição de santo.

As análises de narrativas hagiográficas estão presentes também no capítulo “A construção da figura feminina na Vita Sancti Theotonii”, de autoria de Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira. A partir do estudo sistemático da obra Vita Sancti Theotinii, o autor buscou entender quais escolhas discursivas foram feitas para representar a figura feminina e porque o hagiógrafo optou por tais desígnios. Em um contexto de crescente relevância da castidade, a partir da reforma dos ideais religiosos dos séculos XI e XII, a figura da mulher estava associada, em algumas narrativas, como antítese da castidade e obstáculo para a santidade.

O ensaio de J. R. S. C. Oliveira buscou analisar duas passagens da Vita Sancti Theotonii a partir da construção da imagem da mulher como agente desviante. O modelo a ser seguido era, sem dúvida, a de Teotônio, principalmente para os outros religiosos. A castidade era uma demonstração da pureza corporal transformada em base para a vida religiosa. Por sua vez, as figuras femininas foram representadas de duas formas, segundo o autor do capítulo, como ferramenta de reforço de sua santidade e como agente de desvio e fonte de vigilância para os votos.

Analisando a tradição mariana, Guilherme Antunes Junior, em “A cantiga 26 e o romeiro pecador: gênero nas imagens e nos textos nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X”, reflete sobre as implicações políticas e culturais de um milagre que recai sobre um peregrino pecador. O documento em questão foi patrocinado pelo rei Afonso X e produzido como um conjunto de quatro manuscritos, no século XIII. Em representação semelhante à apresentada por J. R. S. C Oliveira, a figura feminina também aparece como elemento de desvio e de ameaça à castidade.

Antunes Junior entende que o texto poético e as imagens contidas na Cantiga constroem discursos sobre homens e mulheres e, portanto, podem ser analisadas a partir das relações de gênero, com seus papéis sociais e relações de poder. O autor utiliza o conceito proposta por Scott para interpretar tal documentação. As conclusões do autor dizem respeito às implicações políticas, que envolvem a cantiga e as tensões entre Afonso X e o clero compostelano, e às questões de gênero, que implicam à figura da mulher má no pecado do romeiro em seu texto, mas não nas ilustrações contidas na mesma obra. Em contrapartida, também é a figura feminina de Maria que garante a salvação do personagem desviado, antagonizando, desta forma, duas representações femininas polarizadas.

As interpretações eclesiásticas sobre o tema do casamento foram analisadas por Mariane Godoy da Costa Leal Ferreira em “Uniões entre Borgonha e Leão – Castela: os casamentos de Urraca e Raimundo (1091) e de Teresa e Henrique (1096)”, considerando o contexto ibérico do final do século XI. Nesse sentido, as alianças matrimoniais entre Borgonha e Leão-Castela já estavam em prática desde o início do século XI, mas a autora tem por objetivo demonstrar que os casamentos das filhas do rei castelhano-leonês Afonso VI, Urraca e Teresa, com Raimundo e Henrique, foram vantajosos politicamente para o reino, mas acabaram por afetar o contexto peninsular na passagem do XI para o XII séculos.

G. C. L. Ferreira analisa a crônica cartulário História Compostelana, escrita em Santiago de Compostela, no século XII, com o objetivo de valorizar a vida de Diego de Gelmírez, colocando o contexto político como um elemento secundário em sua narrativa. Os casamentos de Urraca e Teresa são apenas mencionados enquanto temas do interesse eclesiástico, como adultério e o papel das viúvas. A autora afirma ainda que, do ponto de vista político, tais casamentos e seus herdeiros teriam gerado uma crise sucessória em todo o contexto peninsular, uma vez que o discurso documental culpabiliza o comportamento sexual das rainhas, com o intuito de justificar a existência de tais conflitos.

Analisando as leis suntuárias de Múrcia sobre vestimentas e adornos, Thaiana Gomes Vieira encerra a obra coletiva com o capítulo “Consumo suntuário e a sociedade Murciana dos séculos XIII e XIV”, questionando o papel dado a aparência na sociedade urbana e as necessidades de normalização apresentadas no contexto dos séculos XIII e XIV. Como pressuposto que perpassa a pesquisa, a autora defende ser possível falar em “moda” para o período, sendo as vestimentas e os adornos formas de comunicação e identificação comuns às altas camadas da sociedade. É justamente por este papel social que surge, então, a necessidade de normalização e regulamentação.

G. Vieira chama atenção para as conturbações sócio-políticas de Múrcia no século XIV, bem como a ampliação pecuária, da produção têxtil e do comércio de produtos e materiais. Nesse sentido, tais aspectos não implicaram em uma desvalorização da moda ou da ostentação nas formas de vestir, comer e habitar. As normativas murcianas indicavam o que deveria ser utilizado pelos diferentes grupos sociais, não apenas por motivações econômicas, mas para a manutenção da hierarquia social, a partir de um código de aparência.

Considerações finais

As categorias de análise anunciadas tanto no título quanto na apresentação da obra podem ser observadas individual ou combinadamente nos dezessete capítulos. Em se tratando do tema da santidade, F. G. Martins, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, T. A. Porto, tornaram o assunto um dos principais eixos de seus estudos. A partir da perspectiva de gênero, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, D. M. Costa, J. R. S. C. Oliveira e G. Antunes Junior buscaram enfatizar a categoria nas análises documentais realizadas. Por fim, o último tema explicitamente anunciado, a memória, foi trabalhado em maior ou menor medida, nos capítulos de F. G. Martins, A. C. L. F. Silva, A. R. Carvalho, A. R. Oliveira, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, T. A. Porto, V. M. Camacho, A. G. Kuhner, J. R. S. C. Oliveira, G. Antunes Junior e M. G. C. L. Ferreira.

Porém, estas podem ser consideradas apenas algumas das várias maneiras de perceber as correlações existentes entre os capítulos que compõem o livro. Do ponto de vista metodológico, o comparativismo possui grande destaque, o que pode ser justificado pela inserção e/ou status de egressos de muitos autores com o Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ. Os textos que utilizam implícita ou explicitamente tais aportes, seja na comparação de documentos, regiões, personagens, imagens e seus textos, diferentes interpretações de textos em novos contextos, dentre outras possibilidades, formam escritos por L. L. Carvalho, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, G. B. Oliveira, V. A. Miranda, G. Antunes Junior e M. G. C. L. Ferreira.

Em uma avaliação de conjunto sobre a metodologia, as análises, em geral, foram exaustivas sobre um ou dois documentos, em contraposição a possibilidade de estudos temáticos generalistas e menos metódicos – que se utilizam, superficialmente ou não, de documentações numerosas e/ou pontuais para suas pesquisas – um dos benefícios que podem ser percebidos nas abordagens aqui apresentadas seria uma análise mais completa e complexa dos textos em conexão com os seus contextos. Tal aspecto, portanto, pode ser considerado mais um pressuposto metodológico do grupo.

O livro Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval é um produto derivado de um nítido esforço coletivo de pesquisadores medievalistas brasileiros, que contribuem para a divulgação científica das ciências humanas e dos projetos de articulação de ensino, pesquisa e extensão realizados na cidade do Rio de Janeiro.

Juliana Salgado Raffaeli – Doutora PEM-PPGHC-UFRJ/ Docente UNIRIO-CEDERJ-UAB. E-mail: julianaraffaeli@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2196-922X


SILVA, A. C. L. F. da (Dir.). Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval. Rio de Janeiro: Programa de Estudos Medievais, 2018. Resenha de: RAFFAELI, Juliana Salgado. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.19, n.2, p. 272- 282, 2019. Acessar publicação original [DR]

Viagens e Espaços Imaginários na Idade Média | Vânia L. Fróes, Edmar C. Freitas, Sinval C. M. Gonçalves, Miriam C. Coser, Raquel A. Pereira, Ana Carla M. Castro

Sempre houve relatos do contínuo deslocamento da humanidade, sejam nos tempos pré-históricos, passando pelas narrativas Homéricas e relatos de Heródoto, chegando até o medievo, onde o homem desse período saía de seu lar com objetivos diversos, desde um monarca para ver suas terras, até o peregrino em expiação aos pecados.

Essa é a tônica do livro Viagens e espaços imaginários na Idade Média, lançado pela Anpuh Rio no anos de 2018, com textos dos membros do Scriptorium Laboratório de Estudos Medievais e Ibéricos, um dos mais antigos, atuantes e prestigiados grupos de pesquisa em estudos medievais do Brasil, com pesquisas que abrangem vários campos da cultura e do conhecimento do medievo, entre eles literatura, política, imaginário, iconografia e música, assuntos abordados nessa produção de 246 páginas, cuja organizadora principal é a Prof. Dra. Vânia Leite Fróes, fundadora do Scriptorium, laboratório que em 2019 completou 32 anos de existência.

O livro reforça a ideia de que o homem medieval se movimentava bastante, quebrando estereótipos de que os medievos possuíam uma vida restrita ao seu lugar de nascimento, pois segundo Jacques Le Goff:

A imagem construída pela historiografia tradicional, de uma Idade Média imóvel em que o camponês está ligado à terra e a maioria dos homens e mulheres à sua pequena pátria, com exceção de alguns monges viajantes e de aventureiros das cruzadas, foi recentemente substituída pela imagem, certamente mais justa, de uma humanidade medieval móvel, frequentemente a caminho, in via, que encarna a definição cristã do homem como viajante, como peregrino, homo viator”.1

Desta forma, o livro organizado por Fróes reforça o pensamento de Le Goff sobre os indivíduos no medievo e a ideia de viagem. Estes possuíam não somente mobilidade física, mas mobilidade em imaginário e representações, onde estes homens projetavam sua caminhada na terra, numa peregrinação que se encerraria ao chegar ao Além.

O livro está dividido em seis partes, todas tratando de diversas concepções de viagem. Na primeira parte, Viagens e o poder régio, vemos a observação do poder real, com suas várias configurações de viagens, sendo essas imaginárias ou reais, como consolidadoras de imagens úteis em captação de aliados.

A publicação tem como início, após a apresentação da Coordenadora e Pesquisadora do Scriptorium Prof. Dra. Vânia Leite Fróes, o relato da viagem feita pelo Infante D. Pedro no texto de Ana Maria S. A. Rodrigues (Centro de História/Universidade de Lisboa) e o percurso deste nobre da terra Santa até sua ascensão ao trono, numa peregrinação para legitimar e dar credibilidade a sua imagem de governante, na disputa pela memória e honra, contra a sua cunhada, D. Leonor de Aragão.

No texto seguinte, de Douglas Mota Xavier de Lima (UFOPA-Santarém/ Vivarium-Scriptorium) mostra um olhar sobre a diplomacia em Portugal do século XV, no reinado de D. Afonso V, além das próprias viagens do rei à Paris visando se encontrar com o rei Luís XI, em busca de apoio contra o reino de Aragão.

Fechando a primeira parte temos o capítulo de Priscila Aquino Silva (Faculdade de São Bento/Unilasalle, Niterói-Scriptorium), tratando da trajetória de D. João II, o Príncipe Perfeito e sua esposa D. Leonor, a construção de sua identidade régia baseada em sua devoção, onde o casal era unido nas peregrinações, mas oposto em suas posições políticas.

A segunda parte Viagens nas representações iconográficas traz uma série de textos com análises de iconografias e suas diversas significações: padrões estéticos, esculturas miraculosas, representações infernais e gravuras sobre martírio e triunfo. As imagens na Idade Média possuem uma função de formação moral e de atestar a presença e ação de Deus. Trabalham com a ligação entre o humano e o divino, pois passam uma mensagem transcendental. Como afirma Jean Claude Schimtt no seu livro O Corpo das Imagens: A imagem medieval se impõe como uma aparição, entra no visível, torna-se sensível. […] Mediadoras, as imagens estavam entre os homens e o divino.2

Abrindo essa sessão, há dois textos de Tereza Renata Silva Rocha (Scriptorium/ UFF). O primeiro analisa a coletânea cristã Legende Dorée, num percurso explicativo sobre as mudanças nos padrões estético e artístico do medievo, além de fazer uma pertinente observação sobre a luta entre bem e mal pela alma humana e tudo o que esse processo envolve, como os pactos diabólicos.

No segundo texto, a autora traz uma avaliação sobre o Volto Santo, uma escultura atribuída a Nicodemos, o qual, num percurso miraculoso, aparece na Legende Dorée, na sessão intitulada Festes Nouvelles, que traz vidas de santos e o Volto Santo, que atrai peregrinos e fiéis até os dias atuais.

No capítulo seguinte, de Patrícia Marques de Souza (CHA/UFRJ), temos uma análise da versão em latim da Ars Moriendi (Arte do Bem Morrer), e suas gravuras, que tratam da morte, mas também de anjos, santos e da Virgem Maria. A autora também mostra uma observação pormenorizada da representação da Boca do Leviatã como porta do inferno e suas diversas interpretações no medievo.

Ao fim dessa segunda parte, temos o texto de Vinícius de Freitas Morais (CHA/UFRJ/Scriptorium), tecendo uma análise sobre o beato Simão de Trento, nos diversos relatos escritos e imagéticos que tratavam das circunstancias do seu assassinato. As narrativas mencionam que os acontecimentos envolvolveram sequestro, tortura e morte, ocorridos durante a Semana Santa, além de gravuras que retratavam seu martírio e triunfo.

A parte três tem o título Viagens e Peregrinações, remetendo às falas de Jérôme Baschet: “Toda peregrinação é na Idade Média, uma aventura, um risco; se o destino é longínquo, as pessoas redigem o seu testamento antes da partida ou, ao menos, tomam o cuidado de pôr em ordem os seus negócios, como se a viagem fosse sem volta” 3 , mostrando um amplo panorama de deslocamentos expressos nas cantigas, em tradições familiares e as movimentações de uma rainha que foi consorte em duas coroas.

O primeiro texto desta sessão, escrito por Lenora Mendes (Conjunto de Música Antiga da UFF/Scriptorium), traz um a visão acerca das devoções e peregrinações expressas nas cantigas medievais e traça a rota dos principais lugares de peregrinação, especialmente em direção à Santiago de Compostela, significativamente citado nas cantigas de Santa Maria.

O escrito seguinte, de Tomás de Almeida Pessoa (Scriptorium/UFF), relata a tradição da família de Gregório de Tours em empreender peregrinações anuais a Brioude, local onde repousava o corpo decapitado de São Juliano. No texto vê-se que o itinerário da peregrinação era usado como uma jornada na terra para chegar a Deus.

O terceiro texto dessa parte é de autoria de Letícia Simmer (Unirio). Trata de Eleanor de Aquitânia, uma mulher de destaque na França e Inglaterra devido a casamentos com os monarcas dos dois territórios, que vivia em constante movimento desde a Segunda Cruzada, passando pelo território inglês, Jerusalém, Sicília, Navarra, Pisa, Roma, além de muitos territórios da França.

A sessão quatro tem como título Viagens e Escatologias, onde são expressas viagens ao Purgatório, além de como os vivos poderiam ajudar aos mortos nessa jornada, e o percurso de Maomé de Jerusalém ao céu, expresso em traduções Afonsinas.

Essas viagens eram ligadas à salvação e purgação dos pecados, que eram uma preocupação do homem medieval como explica a professora Adriana Zierer no resumo do artigo Paraíso versus Inferno: a Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (séc. XII):

A salvação na Idade Média estava ligada à idéia de viagem. O homem medieval se via como um viajante (homo viator), um caminhante entre dois mundos: a terra efêmera, lugar das tentações e o Paraíso, Reino de Deus e dos seres celestiais. Se o homem conseguisse manter o corpo puro conseguiria a salvação. Se falhasse, sua alma seria condenada, com castigos eternos no Inferno ou provisórios no Purgatório. Era um paradoxo da Idade Média que a alma pudesse ser salva somente pelo corpo, devido à esse sentimento de culpa, proveniente do Pecado Original. Caso o maculasse, sua alma sofreria a danação com castigos eternos no Inferno ou provisórios no Purgatório”. 4

O primeiro texto da parte 4 é de Tereza Renata Silva Rocha (Scriptorium/UFF),onde a autora faz uma exposição sobre o Purgatório de São Patrício na Legenda Áurea, através da jornada de um nobre chamado Nicolau e seu desejo de se penitenciar no Purgatório. Neste contexto, Rocha mostra a construção desse espaço no imaginário medieval ocidental do além, assim como seu destaque deste na Legenda Áurea, sua geografia , igualmente como a descrição do Leviatã e as bocas do Inferno.

Dando sequência, temos o texto de Viviane Azevedo de Jesuz (Cultura Inglesa/ Scriptorium), que traz uma análise sobre as visões da morte na vida cotidiana do homem medieval e qual a participação dos vivos no descanso eterno das almas dos seus. Essa participação era geralmente expressa nos testamentos, nos quais, além de obrigações aos herdeiros, faziam doações e atos de piedade com o intuito de manter a memória do morto para a família e o meio social.

No terceiro texto dessa quarta parte, Leonardo Fontes (Arquivo Nacional/Scriptorium) apresenta o percurso da viagem escatológica de Maomé por diversos lugares. Estes espaços iam de Jerusalém ao céu, expostos nos arquivos da Corte de Afonso X, através de sua Oficina Tradutória, importante scriptorium de confluência entre diferentes culturas, assim como de valorização dos ensinamentos do rei e de seus súditos, a obra, A -MI AJ, que possu a versões latina, castelhana e francesa. Tal obra difundiu o Islã pelo continente europeu e influenciou diversos escritos importantes, como a Divina Comédia.

A quinta parte do livro é intitulada Viagens e materialidade das narrativas: das bibliotecas régias às estalagens. Aqui, as viagens se iniciam na observação das estalagens e mostram que os livros são meios de expressão de viagens, caças e jogos, que suscitam deslocamentos de várias figuras importantes como D. Dinis e o contato com o Preste João.

Esta sessão traz um rico apanhado de informações sobre os livros de viagem. Conforme nos diz Paulo Lopes, professor do Instituto de Estudos Medievais de Portugal (IEM-FCSH-UNL) em seu artigo Os Livros de Viagens Medievais na revista Medievalista (p. 5): “Os livros de viagens oferecem uma visão bastante clara da concepção do mundo e da realidade na Idade Média, ao mesmo tempo que constituem uma fonte incontornável para compreender aspectos muito diversos da cultura medieval”.5

No primeiro artigo da quinta parte, de Beatris dos Santos Gonçalves (IBMEC /CÂNDIDO MENDES/ Scriptorium), há uma análise de como se dava a dinâmica da hospitalidade nas estalagens portuguesas nos séculos XV-XVI. A autora observa as tensões e cotidianos desses abrigos, além do que estas ofereciam e a quem pertenciam, assim como eram concedidos sua autorização de funcionamento, sua lógica de funcionamento e os benefícios advindos da coroa por estarem bem posicionadas.

O segundo artigo, escrito por Carolina Chaves Ferro (UniCarioca/Scriptorium), apresenta uma observação sobre o gênero de literatura de viagem e seus aspectos reais e imaginários. Dos relatos celebres religiosos e suas origens como a Viagem de São Brandão e a Legenda Aurea, assim como as narrativas presentes nas bibliotecas régias como o Livro da Cartuxa de D. Duarte, Marco Polo em latim e a Conquista d’ultramar, um outro ponto recorrente, segundo o texto, é a questão das índias e o Preste João.

O terceiro texto, de Jonathan Mendes Gomes (UEMG-Carangola|Scriptorium), destaca o papel da caça no contexto dos jogos de cavalaria, nos aspectos de espaço e movimento de folgança e também de deslocamento e itinerância régia. Os livros de caça eram aprovados pelos reis e eram usados como mecanismos de instruir ludicamente e promover o bom lazer, além de suscitar o domínio de espaços de privilégios e domesticação do meio natural, que fortaleceria a presença do monarca, no caso, D. João I.

A sexta e última sessão do livro, intitulada, Da magia à contemporaneidade: viagens no tempo e no espaço, que trabalha com a relação entre o medievo e os tempos atuais, fazendo a análise de Merlin e a magia, assim como se configura a visão do medievo, seus conceitos e estudiosos na contemporaneidade, mostrando que esse período tão rico traz ainda hoje aprendizado e relevância, como diz Hilário Franco Jr, no texto Somos Todos Idade Média, de 2008: “Assim, estudar História Medieval é tão legítimo quanto optar por qualquer outro período. (…). Neste sentido, pode ser estimulante mostrar que, mesmo no Brasil, a Idade Média, de certa forma, continua viva”6.

O artigo que inicia a sexta parte, de Átila Augusto Vilar de Almeida (ex-docente da UEPB/Devry João Pessoa e atualmente professor da UFAM/Scriptorium), propõe uma observação acerca de Merlin, suas representações contemporâneas e sua concepção no medievo especialmente nos textos de Robert de Boron, escritos entre os séculos XII e XIII, que tratavam do rei Artur e do Graal. Um Merlin, construído sob uma concepção cristã, embasando seu nascimento e origem de seus poderes mágicos sob a égide do cristianismo.

O artigo de João Batista da Silva Porto Junior (UNESA/UFF) encerra o livro, abordando o interesse do século XXI pelo medievo, e tal afirmativa se torna evidente quando se vê a produção cultural e acadêmica sobre essa temática, que o autor realiza, fazendo um apanhado de estudiosos medievalistas, assim como dos conceitos e suas ressignificações desta época.

Enfim, o livro é uma rica fonte de referências e um importante conjunto de informações sobre as diversas configurações de viagens, em suas varias formas, sendo físicas, ou simbólicas, concretas ou imaginárias, numa visita de nobres e mártires, homens e mulheres, que se aventuraram além das fronteiras, em busca de conhecimento, redenção ou legitimação.

Num contexto onde, cada vez mais, a ressignificação abre novos leques, e a reafirmação de períodos e temas relevantes são resistências contra os interditos do mundo atual, que tentam isolar, e reduzir os horizontes do conhecimento, num percurso que nem no medievo, apesar dos perigos, ameaças nas estradas e salteadores, enfrentou: o risco de cerceamento da liberdade de viajar através do saber e da ciência.

Notas

1. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2010.p.97

2. Schmitt, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradução de José Rivair Macedo. Bauru, SP: Edusc, 2007, p.16.

3. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006, p. 351.

4. ZIE E, Adriana. “Para so versus Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (Século XII)”. In: FIDO A, Alexander e PASTOR, Jordi Pardo (coord). Expresar lo Divino: Lenguage, Arte y Mística. Mirabilia. Revista de História Antiga e Medieval. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio/J.W. Goethe-Universität Frankfurt/Universitat Autònoma de Barcelona, v.2, 2003, pp. 137-162. Disponível em: Mirabilia 2 (2002). www.revistamirabilia.com. Acesso em 28 de julho de 2019.

5. LOPES, Paulo. Os Livros de Viagens Medievais. In Medievalista. Lisboa: Ano 2. Nº 2, 2006. p 1-32.

6. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Somos todos da Idade Média. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Sabin, ano 3, n. 30, p. 58-60, mar. 2008. Disponível em: http://www.editoradobrasil.com.br/portal_educacional/fundamental2/projeto_apoema/pdf/textos_comple mentares/historia/7_ano/pah7_texto_complementar01.pdf; acesso em 20 de julho de 2019.

Elisângela Coelho Morais – Doutoranda PPGHIS-UFMA/Bolsista Capes. E-mail: elishst@hotmail.com


FRÓES, Vânia Leite; FREITAS, Edmar Checon de; GONÇALVES, Sinval Carlos Mello; COSER, Miriam Cabral; PEREIRA, Raquel Alvitos; CASTRO, Anna Carla Monteiro de. (Org.) Viagens e Espaços Imaginários na Idade Média. Rio de Janeiro: Anpuh-Rio, 2018. Resenha de: MORAIS, Elisângela Coelho. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.19, n.1, p. 275- 282, 2019. Acessar publicação original [DR]

Cavalaria e Nobreza: Entre a História e a Literatura | Adriana Zierer, Álvaro Alfredo Bragança Junior

As relações entre História e Literatura já não são novidade nos corredores das universidades pelo mundo e no que diz respeito ao prazeroso ofício da medievalística, entendemos que ela se apresenta como condição sine qua non para uma percepção mais ampla dos poderes e das culturas do Ocidente e Oriente medievais. Ao mesmo tempo, é inevitável não afirmar que refletir sobre o medievo sem se atentar para os discursos historiográficos e literários seria o mesmo que partir para uma batalha desguarnecido de proteção.

Adriana Zierer, reconhecida pesquisadora e medievalista, docente da Universidade Estadual do Maranhão, e Álvaro Alfredo Bragança Jr., um dos mais importantes germanistas brasileiros e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fizeram justiça as suas longas caminhadas acadêmicas e trazem a público este fundamental Cavalaria e Nobreza: Entre a História e a Literatura (Eduem, 2017). Mais do que um apanhado revisto e aprofundado de suas reflexões sobre cavalaria e nobreza, os autores vão além e possibilitam aos seus leitores – pesquisadores formados e em formação e, por que não?, o grande público – uma pertinente abordagem que faz dos temas cavalaria, nobreza, história e literatura um laboratório de profícuo diálogo entre conceitos, métodos e teorias.

O serviço prestado na reunião de alguns trabalhos que, até então, encontravam-se em veículos diversos e a exposição de outros inéditos, é algo que deve ser exaltado e, ao mesmo tempo, uma última característica de fundo necessita de luz: a contribuição que este livro traz a um campo cada vez maior em nosso país: O estudo da guerra!

Mesmo que os professores Adriana Zierer e Álvaro Bragança Jr. não tomem a guerra como objeto principal da publicação, é inevitável não reconhecer que suas investigações a respeito das representações da cavalaria medieval e, consequentemente, da nobreza, tanto na historiografia quanto na literatura são pilares importantes para, cada vez mais, pesquisadoras e pesquisadores interessados na guerra medieval tenham uma bussola, um Norte que os guie.

Dividido em três partes, Cavalaria e Nobreza: Entre a História e a Literatura foi pensado de modo que a Idade Média não soasse como um aspecto distante da nossa própria cultura, é possível até afirmar que os textos, e seus resultados, apresentados na primeira parte, intitulada A formação da Cavalaria no Ocidente – Ethos de uma ordem e ordens para atos, são um exemplo marcante de uma arqueologia da cultura cavaleiresca. Como não aprender e apreender com as conclusões expostas por Bragança Jr. em Do guerreiro germano ao cavaleiro do século XIII – personagens históricos e modelos civilizacionais no mundo germânico continental: faces e interfaces (p. 43-56)? Ou com as reflexões de Zierer nos textos O modelo pedagógico de cavaleiro segundo Ramon Llull (p. 137-154) e O mundo da cavalaria no século XIII na concepção de Ramon Llull (p. 175-200)? Os leitores mais atentos perceberão a cada parágrafo a preocupação dos autores com o método e a teoria, logo, nos diálogos possíveis entre a História e a Literatura. A interdisciplinaridade pulsa e nos arrasta ao desafio de encarar a primeira parte do livro como um modelo a ser seguido. Ao mesmo tempo, o manejo documental e o arcabouço do estado da arte nos temas tratados servem aos mais jovens como um atalho às boas e necessárias revisões historiográficas e de literatura cobradas nas monografias e pré-projetos de mestrado e doutorado.

Como dito anteriormente, mesmo que o fazer a guerra stricto senso não tenha sido objeto de larga reflexão, isso não significa que as atuações, estratégias e mesmo a pedagogia bélica não façam parte de suas preocupações. A experiência dos autores demonstra muito bem que a mesma impossibilidade de se pensar o medievo sem a Igreja Cristã também é encontrada ao se analisar os aspectos da própria cultura política e literária oriundas da Cavalaria e que legaram para a posteridade modelos comportamentais que viajaram pelos mares e desaguaram em terras distantes de suas origens (para o bem ou para o mal).

Mas antes de partirmos para a análise do elo cultural que a publicação nos demonstra muito bem, vale relembrar que o mundo da cavalaria seria opaco sem as relações entre homens e mulheres e a isto, de certo modo, se dedica a segunda parte do livro, intitulada Entre cavaleiros e damas.

Nos quatro capítulos que a compõem, mais uma vez temos o pertinente exemplo de manejo documental e do exercício prático entre a História e a Literatura. Dessa vez, parte do leque de documentação gira em torno da Demanda do Santo Graal, conhecida novela de cavalaria redigida na França do século XIII. Zierer, tanto no primeiro como no segundo capítulos, presentes nessa segunda parte, faz valer sua afirmativa sobre o documento em questão:

Através deste livro [A Demanda do Santo Graal] podemos observar os aspectos da cavalaria, seu papel na sociedade e uma tentativa de suavização nos seus costumes, através da imagem de um cavaleiro perfeito, modelo a ser mostrado à nobreza da época, envolvida em disputas por territórios e guerras privadas (p. 233).

De fato, a literatura cavaleiresca produzida durante a Idade Média é um dos mais importantes – não o único – para podermos entender melhor as ações dos agentes históricos dedicados ou não à guerra. Não podemos nos esquecer que, no que tange às relações de poder naquele período, a tentativa de contenção do poder de violência é um tema que se arrastará continuamente e que estava presente insistentemente na literatura medieval.

Por outro lado, além da violência, a sexualidade e a religiosidade pulsantes na Idade Média eram outra margem de preocupação de tais agentes (eclesiásticos, sobretudo). Não há como ignorar que a misoginia medieval se constituía como o mote que impulsionava grande parte dos escritos religiosos cristãos. Contudo, Zierer demonstra em Entre Ave, Eva e as Fadas: as visões femininas na Demanda do Santo Graal (p. 251-273) que:

Apesar de imaginarmos que só existe a imagem feminina negativa no relato, ao analisarmos mais detidamente a visão sobre elas, percebemos que as mesmas possuem um caráter ambíguo, mesmo as consideradas pecadoras, como Guinevere (Genevra), Iseu (Isolda) e Morgana (Morgaim), em virtude de sua valorização em outras narrativas medievais e do fundo céltico do texto (p. 252).

A autora parte então para um interessante estudo de História do Imaginário aprofundando a importância da mulher na Demanda do Santo Graal e nos apresentando resultados que não deixam de ser surpreendentes.

Seguindo na mesma linha de inserção do feminino como preocupação para um melhor entendimento da cultura cavaleiresca, Álvaro Bragança Jr. se debruça analiticamente no texto Der arme Heinrich, romance em versos redigido por Hartmann von Aue. Para o germanista, Der arme Heinrich, talvez seja, a seu ver, “dentre toda a produção romanesca do autor, aquela que melhor sintetiza a união perfeita do homem d’armas ao homem de espírito cristão” (p. 276). Seguindo de perto a herança dubyniana, Álvaro Bragança Jr. vai além do que foi o tradicional e importante estudo apresentado pelo medievalista francês em O cavaleiro, a mulher e o padre (1988). O medievalista e germanista brasileiro traz luzes à uma “melhor compreensão do fazer literário em terras germanófonas, em especial no tocante aos pontos convergentes entre a vida ideal e a representação da realidade através da arte da palavra” (p. 275).

Ao mesmo tempo, ele está preocupado em entender e explicar a lógica literária e, consequentemente, a representação social da mulher no documento analisado juntamente ao masculino, neste caso, o cavaleiro. Por esse motivo o modelo de estudo de Georges Duby é importante para suas reflexões, porém, como dito, o autor abre um leque que vai muito além ao conhecido modelo da França feudal. Mais uma vez, um pertinente exemplo de embasamento metodológico é exposto aos leitores.

Em se tratando de metodologia, no último capítulo da segunda parte, intitulado Der arme Heinrich, de Hartmann von Aue – Introdução à proposta de tradução (p. 285- 329), o autor nos brinda com uma tradução sua desta riquíssima fonte do médio-altoalemão, língua que muitas vezes grande parte dos escolares, infelizmente, não domina. É uma oportunidade ímpar aos leitores de terem acesso ao documento em português.

Como procurei insistir, em Cavalaria e Nobreza: Entre a História e a Literatura, Adriana Zierer e Álvaro Bragança Jr., não se limitam apenas em dar mostras da erudição que carregam como pesquisadores reconhecidos no campo, sob suas mãos a Cavalaria vai além do que um elã histórico, ela é um verdadeiro objeto de reflexão numa longa duração sobre a Idade Média, como tão bem nos apresentou um dia Jacques Le Goff.

Seguindo em marcha os autores fecham o livro com uma terceira parte intitulada Cavalaria e Contemporaneidade.

A atenção prestada por eles ao impacto da representação cavaleiresca na sociedade contemporânea é a mostra do papel social que os historiadores devem procurar exercer. Ao mesmo tempo, é a comprovação acadêmica do quanto a História e a Literatura caminham de mãos dadas.

Os dois capítulos que finalizam o trabalho – ratifico – são a demonstração cabal da importância do estudo da Idade Média nas escolas e universidades brasileiras. Um medievo que não se limita ao seu próprio passado, mas que se reapresenta, é manuseado, refeito, redescoberto constantemente e que nos lega a nos questionarmos constantemente os limites entre o passado e o presente. Ou melhor, os passados e os presentes!

Em O Germano e os Ritter a serviço do Nacional-socialismo – Propaganda e reapropriação política dos germanos e dos cavaleiros medievais na Alemanha dos anos 40 (p. 333-349) e Coração de Cavaleiro (2001): Uma visão contemporânea do guerreiro medieval (p. 351-377), Álvaro Bragança Jr. e Adriana Zierer, respectivamente, adentram a seara do contemporâneo deixando aos leitores importantes exemplos dos usos e desusos, da mitologia e dos mitos relacionados ao período medieval, especificamente no caso da Cavalaria e dos cavaleiros.

A conclusão a que chegamos é que a pergunta colocada pelos autores em sua Apresentação: “Por que estudar a cavalaria é importante em nossos dias?” (p. 15), é devidamente respondida sem rodeios por eles. A(s) resposta(s), o(s) motivo(s), etc., nos são apresentados com a receita infalível do bom uso da erudição através da análise documental; da teoria, por meio das demonstrações do apurado conhecimento dos métodos da História e da Literatura… Mas, principalmente, por uma segurança na narrativa que somente os bons professores carregam em suas bagagens e esse tipo de característica só é possível de ser alcançada com o tempo de muito esforço e dedicação.

Cabe agora ao público leitor, com o cuidado que a obra merece, mergulhar profundamente em cada um desses capítulos e ir além, sempre.

Bruno Gonçalves Alvaro – Professor Adjunto IV de História Medieval do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: brunoalvaro@ufs.br


ZIERER, Adriana. BRAGANÇA JUNIOR, Álvaro Alfredo. Cavalaria e Nobreza: Entre a História e a Literatura. Maringá: Eduem, 2017. Resenha de: ALVARO, Bruno Gonçalves. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.2, p. 131- 135, 2018. Acessar publicação original [DR]

La Edad Media en capítulos. Panorama introductorio a los estudios medievales | Lídia Raquel Miranda

Este livro é uma introdução geral à cultura medieval, particularmente à sua literatura, destinada aos que, estudantes ou leitores comuns, precisam conhecer os traços fundamentais dessa cultura. O livro está dividido em oito capítulos, cada um deles concluindo com exercícios de análise e interpretação prática: “Manos a obra” prevendo portanto o seu uso em sala de aula ou em grupos de estudo. A Professora Lídia Raquel Miranda, editora e inspiradora da obra, redigiu cinco capítulos, pelos quais começaremos a apresentação. O primeiro tem como título (tradução nossa):” O medievo em metáforas e apreciações: a cultura popular e a cultura acadêmica na encruzilhada”, e discute como formamos mentalmente nossas ideias acerca do passado. As recordações do passado pessoal e familiar são distintas das elaborações acadêmicas acerca da história das culturas e civilizações, mas existe certa contaminação das imagens comuns, por vezes perpassadas de ideologias, mesmo em sala de aula, por preconceitos e noções deturpadas. É o que explica que a palavra Idade Média seja rodeada de conotações estranhas, mesmo entre pessoas instruídas: teria sido uma sociedade violenta, pobre, sem lei, ou então exótica, vivendo na natureza… A historiadora desenvolve a seguir sua argumentação sobre qual seria o modo mais correto de abordar a Idade Média, já que ela se constitui como a matriz do presente. Aqui radica a questão que conclui o capítulo: porque estudar a Idade Média? Mais do que respostas prontas Lídia Raquel levanta reflexões, indica bibliografia variada, e propõe dois exercícios: um de análise de um texto de autoria de um medievalista da Universidade de Córdova (Argentina), e outro de interpretação de um texto de opereta medieval. A mesma historiadora aborda, no capítulo 5º, a tradição do amor cortês na cultura ocidental. A construção e consolidação da cristandade europeia deu-se através de sucessivas realizações e conflitos, e deu origem a uma cultura diferenciada regionalmente, mas que tinha na região central da Europa seu principal foco de criação de dispersão. Foi aí, na França, que se originou um dos complexos culturais mais significativos e quase onipresentes: o amor cortês. Dele a autora descreve e analisa as variantes e características. Destaque especial merece a obra de André Capelão – Os três livros do amor – extensamente descrito e comentado. No 6º capítulo Lídia Raquel trata da retórica medieval introduzindo o tema sob uma ampla teoria semiótica, e ao mesmo tempo atenta à importância prática e às variedades do discurso medieval; para ter em conta esses diversos aspectos a autora aborda questões da retórica clássica grega e romana, da exegese cristã e da pregação dos primeiros séculos, e da posterior arte de pregar, bem como os modelos do discurso escolástico. A retórica é característica da vida pública e na Grécia nasceu com as práticas jurídicas e políticas, passando depois às educacionais; pouco a pouco nela se distinguiram as partes da comunicação, suas operações e formas. Santo Agostinho recomendava que para o orador cristão é mais importante conhecer as Escrituras (exegese) do que usar os artifícios da oratória, princípio que orientou os sermões medievais; mas o capítulo lembra também os poetas laicos, particularmente os jograis, e sua influência na fala religiosa; menos poético, mais formal e estruturado, foi o discurso acadêmico, que conhecemos como escolástica. O capítulo conclui ressaltando a importância da retórica atual, e propondo vários exercícios baseados em texto literários medievais, e sobre o marketing político (coach). No capítulo 7º Lídia Raquel estuda o surgimento dos idiomas românicos, a partir do latim, sua vulgarização e evolução por influência de outros povos que circularam no continente e ilhas. Dois tipos de idiomas se formaram, em toda a Europa romanizada: os regionais, muito variados e mesclados, e o latim erudito, que permitia a comunicação literária entre as novas nações. A autora detém-se na descrição de como se formou a língua castelhana, estudando não só os processos filológicos, mas também os políticos, que conduziram ao predomínio do castelhano como idioma espanhol, tanto na Península como na América Hispânica. Algumas propostas de exercícios, e a bibliografia auxiliam o estudante a aprofundar as questões, nomeadamente a origem dos vocábulos e as ambiguidades fonéticas. O capítulo final (8º), ainda de autoria da organizadora da obra tem como título “Um estudante perdido no museu: à procura das cores e formas do Medioevo” (tradução nossa); propõe-se ser um guia para que o iniciante se oriente no meio dos significados estéticos medievais: as cores e as formas das imagens. Resume em poucos traços o tipo de arte das várias épocas e lugares – primeiros séculos, bizantina, arte das nações germânicas, arte nos mosteiros, românico, gótico. Feita esta apresentação o capítulo discute os valores humanos transmitidos pelas imagens, pelos espaços divididos e organizados. Assim, no que se refere ao simbolismo da cidade, encontra-se a sobreposição ou justaposição de quatro modelos: Jerusalém, Babilônia, Roma e Bizâncio; conforme as intenções e propósitos o mapa medieval, ou a ilustração, trazem um ou mais desses modelos, substituindo deste modo longas explicações. Outras metáforas e símbolos do espaço são explicadas: o castelo, o labirinto, o mar, a floresta, o jardim, a água… O imaginário medieval passa ainda pelas representações de Deus, de Jesus Cristo, e dos santos, e também do homem e do corpo humano em suas atividades. Lugar importante era dado aos animais (os bestiários) e também aos animais mitológicos. Nas propostas de atividades práticas do capítulo destaca-se a intenção de relacionar entre si as diversas artes medievais e a literatura.

Passamos aos três capítulos elaborados por autores convidados. Jorge Luís Ferrari faz um percurso histórico pela economia e pela sociedade medievais (cap. 2º) dos séculos XI ao XV. Em breves pinceladas Ferrari expõe a composição social do Império Romano, seus conflitos de classe, e as causas da decadência, onde o cristianismo se insere. Entretanto os germanos invadiram o mundo romano, e de toda essa mescla surge o sistema político, social e econômico do feudalismo. Este é descrito em sua estrutura e fundamentos ideológicos e em suas fases e modificações, inclusive pela introdução de técnicas agrícolas. Mecanismos e rotas de mercado explicam o apogeu dos séculos finais da Idade Média, mas a crise do século XIV –peste negra e Guerra dos Cem anos – decretaram o declínio da civilização europeia, enquanto o feudalismo estremecia, e o poder real se fortalecia com o apoio da burguesia. Helga Maria Lell, no capítulo (o 3º) sobre as instituições jurídicas e filosóficas da Idade Média, começa por expor o nascimento das instituições do direito romano para em seguida mostrar como elas se alteraram, ou completaram, com o advento do cristianismo. Essa evolução conduz ao estudo da filosofia, e ao seu uso a serviço da religião cristã. A autora dedica então algumas páginas a expor as doutrinas dos dois principais mestres da filosofia cristã – Agostinho e Tomás – feito o que volta à Hispânia Romana, para se deter na relação entre direito, filosofia e religião durante o domínio visigótico, e apenas lembrando a fase seguinte da Península: as peculiaridades da cultura árabe/muçulmana. É também de forma breve que a autora descreve os traços do direito canônico, da organização universitária, e da consolidação do direito hispânico, sobretudo em Castela. Uma linha de tempo, ou cronologia simplificada, permite abranger em síntese rápida os principais traços destacados no capítulo. O exercício final é bastante extenso e completo, baseado na Carta Puebla, ou ordenação de repovoamento, confrontando-a com um texto de Tomás de Aquino. O capítulo 4º é de autoria de David Rodríguez Chaves; nele se descreve e comenta a literatura irlandesa e inglesa medievais, destacando no título duas características: o sincretismo pagão/cristão, e o uso da alegoria e da metáfora. Da literatura irlandesa e sua continuidade bretã são expostos temas mais conhecidos: as viagens para Ocidente e o ciclo arturiano, mas também outro menos citado: o Sonho da Cruz. As viagens dos monges irlandeses, os imrama, eram um derivado da tradição celta da aventura espiritual incerta em direção ao desconhecido; elas são símbolos da busca da perfeição repassados de fantasias, de encontros com animais fabulosos, homens estranhos, gigantes, visões e miragens, fontes milagrosas, seres meio homens meio animais. O autor não diz, mas sugere, ou subentende, que as Viagens de Gulliver podem ser descendentes desta literatura, até porque seu autor, Jonathan Swift (1667-1745) era irlandês. A narrativa de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde utiliza outro topo de simbolismo para passar do relato pagão para o cristão: os símbolos referentes aos ciclos da natureza. Neles sobressai a passagem da natureza morta para o mundo dos vivos por ação do Sol (Gawain) e da Deusa Mãe. O caso do Sonho da Cruz é inverso: o evento cristão é visto pela cosmovisão pagã celto/germânica, em que a cruz é a árvore Yggdrasil, e Cristo é um chefe guerreiro. No conjunto da obra este capítulo é importante porque é o que mais clara e consistentemente relaciona o apogeu do cristianismo com seus antecedentes da Antiguidade Tardia e com as religiões proto-históricas. Essa interpretação, realizada em poucas páginas, foi possível não só pela habilidade e conhecimentos do autor mas também pelas características da cultura celta, que manteve até aos dias atuais uma capacidade de inserção no cristianismo que lhe deu durabilidade e pervivência. Os exercícios propostos em Mãos à obra dão sequência a essa ideia de interpenetração cultural, ao usar verbos como relacionar, mesclar, amalgamar, influir apontando não só para comparações de formas externas mas de temáticas, que evoluíram sem perder seu significado original.

O livro cumpre os seus objetivos de forma muito adequada e satisfatória: mostra a grande variedade de expressões da cultura medieval, contrapondo-se à ideia comum de uma Idade Média uniforme e monótona; destaca a vitalidade das realizações medievais, e sua criatividade; sugere e desperta curiosidade para futuros estudos de quem lê o livro. Talvez por necessidade pedagógica de se ater ao que é mais usualmente discutido, e ao que é mais diretamente influente na realidade sul-americana os autores optaram por não desenvolver algumas dessas variáveis, sobretudo as que dizem respeito à primeira fase da Idade Média – ou Alta Idade Média – e as que tratam da cultura medieval na Europa do Norte e do Leste. No entanto os diversos capítulos, e o conjunto da obra, oferecem suficientes indícios para que o estudante procure colmatar essas lacunas.

João Lupi – Docente do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: lupi@cfh.ufsc.br


MIRANDA, Lídia Raquel (Editora). La Edad Media en capítulos. Panorama introductorio a los estudios medievales. Santa Rosa: Universidad Nacional de La Pampa, 2015. Resenha de: LUPI, João. “La Edad Media en capítulos” por João Lupi. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.2, p. 136- 139, 2018. Acessar publicação original [DR]

A escrita da história de um lado a outro do Atlântico | Maria Eurydice de Barros Ribeiro

“O mar uniu, mais do que o que separou”. Os versos de Fernando Pessoa inspiram a reflexão sobre unidade e diversidade entre os universos singulares aproximados pelo processo de expansão portuguesa e fornecem sentido à organização do livro A escrita da história de um lado a outro do Atlântico, projeto encabeçado por Maria Eurydice de Barros Ribeiro e Susani Silveira Lemos França.

Movidas pelo propósito de “resgatar e mensurar as faces de um processo de identificação”, as autoras aludem aos diálogos entre formações históricas situadas dos dois lados do Atlântico e expõem, no texto da introdução, o lamento frente ao fenômeno contemporâneo de abandono de categorias que, em tempos pretéritos, teriam servido ao reconhecimento dos povos e indivíduos e que hoje se vêem abandonadas em favor da difusão dos conceitos de diversidade e do desenvolvimento de ações afirmativas de identidades.

Efetivamente, votadas à resistência, conservação ou transformação, as ações afirmativas de identidades revelam-se, em nosso tempo, não somente legítimas como eficazes no processo de autoconhecimento, de organização e luta dos povos, e estão na base de princípios e de direitos conquistados. Os princípios afirmativos de identidades foram propulsores dos movimentos de descolonização desde a segunda metade do século XX e contribuem, até os nossos dias, para a ruptura com elaborações tradicionais relativas a origem e pertencimento. Em contraponto a esse movimento de dispersão, situam-se os múltiplos esforços, em campos da produção acadêmica como da arte, de identificação e reafirmação de elementos comuns aos povos e sociedades aproximados pelos fenômenos de expansão e dominação portuguesa. Mais do que acentuar as diferenças, esses esforços se orientam pela perspectiva de valoração positiva dos “pactos que foram se firmando ao longo do tempo” e são movidos pela perspectiva de identificação de um fundo patrimonial comum a esses povos e sociedades. Mas o destaque é dado às “raízes” greco-romana, judaico-cristã e árabe como “fontes de conhecimento que ajudaram a definir o mundo português”. É, pois, sobretudo no campo da escrita que essas tradições transplantadas da Europa para o “outro lado do Atlântico” no tempo de dominação colonial devem ser procuradas.

Nos territórios conquistados, o registro escrito, fundamental ao funcionamento e à ação das instituições, serviu de vetor de transmissão de valores, de difusão de práticas e, ao mesmo tempo, de registro sobre as realidades encontradas nas novas terras. Foram fundamentais, portanto, como destacam as organizadoras do livro, para o “autoreconhecimento e conhecimento do outro em um período de afirmação do reino de Portugal para além de suas fronteiras”.

O livro se organiza em duas partes: na primeira, os autores transitam por uma ampla variedade de fontes documentais, a partir das quais buscam refletir sobre distintos objetos e contextos concernentes à História de Portugal e do Brasil; a segunda parte tem como propósito fazer uma reflexão sobre o trabalho dos historiadores, com foco sobre os avanços e os limites da produção escrita portuguesa ou sobre aspectos da História de Portugal.

O texto de abertura da primeira parte, de autoria de Manuela Mendonça (Universidade de Lisboa), é dedicado ao processo de construção da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, desde o projeto inicial, levado a cabo por António Caetano de Sousa (1674-1759), fundador da Academia Real. Mendonça situa a origem da publicação na conjuntura política e cultural pós-restauração, sob o reinado de Pedro II de Portugal. De acordo com a autora, concebido no âmbito da Academia Real e entrelaçado com o projeto correlato de uma história eclesiástica do reino, a História Genealógica foi publicada, entre 1735 e 1748, em 12 tomos, e compreendeu também seis volumes de documentos, inseridos a partir de 1739. A inserção das cópias dos documentos obedecia à intenção de chancelar a obra com a existência de provas e servia, segundo os seus propositores, como garantia de verdade, objetividade e neutralidade no tratamento das matérias.

No segundo capítulo do livro, Maria Helena da Cruz Coelho (Universidade de Coimbra) propõe a abordagem da corte portuguesa enquanto “instituição política de composição tripartide representativa dos corpos da sociedade e com perfil colaborativo em relação ao monarca”. A origem das cortes portuguesas, de acordo com a autora, pode ser situada no processo de implantação das Cúrias Extraordinárias, no início do século XIII. Convocadas pelos monarcas em situação de crise política, as cúrias contemplavam, além da tradicional representação do clero e da nobreza, a presença dos representantes dos concelhos. Além de discutir os processos que resultaram na constituição das cortes, Mendonça traz importantes reflexões sobre as transformações que as afetaram até o final da Idade Média, sobre a composição social e os assuntos tratados em diferentes conjunturas.

A matéria de que trata Dulce O. Amarante dos Santos (Universidade Federal de Goiás), no capítulo seguinte, é constituída pelos prólogos que acompanham a escrita científica ibérica. A autora delimita o campo de investigação: trata-se da produção textual votada ao conhecimento sobre o mundo da natureza como criação divina. Escritos em latim, esses textos, em especial aqueles dedicados a temas compreendidos como próprios à medicina, eram quase sempre orientados a partir de critérios classificatórios, que distinguem e estabelecem correlações entre elementos variados que constituem o universo. Associado a esses textos, o prólogo é tomado como um gênero literário, cuja singularidade reside nas informações que abriga sobre o conteúdo por ele introduzido, sobre a autoria e, também, sobre o público que, no tempo inicial da produção, integra o horizonte de expectativa dos autores. Amarante dos Santos põe em destaque os métodos e os propósitos de composição dos prólogos e procura demonstrar como eles são claramente marcados por estratégias discursivas, orientadas pelos princípios da retórica, que visavam captar a atenção e modificar a percepção dos leitores sobre os conteúdos.

Francisco José Silva Gomes (Universidade Federal do Rio de Janeiro), no texto seguinte, dedica-se à análise dos Manuais de Confissão elaborados durante os séculos tridentinos. Esses manuais deveriam orientar os confessores encarregados de conduzir os fiéis na contrição e no exame de consciência, atos que deveriam anteceder à confissão. Funcionam como textos de mediação entre a doutrina e a prática. De acordo com o autor, a uniformidade desses manuais reflete o projeto unanimista, levado a cabo pela Igreja e pelo Estado, que orienta a reestruturação da Cristandade nos séculos XVI a XVIII. O seu surgimento deve ser pensado a partir da reestruturação dos conceitos de cristandade e da identidade católica desde o advento da reforma protestante, no século XVI, e o seu desenvolvimento ulterior deve ser situado no processo de secularização que acompanha a difusão do pensamento iluminista e as revoluções burguesas. Gomes põe em destaque as relações e a busca de equilíbrio entre a Igreja e os Estados, de perfil absolutista, que permaneceram ligados ao catolicismo romano. Enquanto a Igreja almejava consolidar a sua imagem como uma ordem independente, os Estados, que dela retiravam os fundamentos ideológicos do poder régio, não só pleiteavam autonomia frente à Sé Apostólica como o direito de intervenção nas estruturas eclesiásticas. É esse o pano de fundo sobre o qual, de acordo com Gomes, se consolida o regime penitencial baseado na confissão auricular. No novo modelo de espiritualidade cristã, cuja origem remonta às reformas dos séculos XII e XIII, a confissão auricular reforça os princípios de individualidade e subjetividade na experiência do arrependimento. Por outro lado, como destaca o autor, as instituições tridentinas que sustentam a introdução da confissão auricular reforçam o papel do sacerdote como mediador com o plano do sagrado e dos sacramentos como “canais de transmissão da graça divina”.

No texto intitulado “Medicina da mulher em Portugal”, Maria de Fátima Reis (Universidade de Lisboa) reflete sobre a atuação de parteiras no campo mais amplo do que se entende como medicina da mulher. Além de um rápido balanço historiográfico sobre o tema, o texto traz o resultado de investigações sobre o regimento das parteiras que, no século XVI, ordenava o trabalho dessas profissionais e definiam os parâmetros para a sua atuação sob a chancela de outros profissionais e subordinada a determinações de natureza religiosa.

Já o texto de Cintia Maria Falkenbach Rosa (Universidade de Brasília) está centrado na análise iconográfica e iconológica de uma cena de natividade – em especial dos elementos concernentes à Adoração dos Magos – que ilustra o Livro de Horas de Dom Manuel I, datado de meados do século XVI. A autora aponta para a singularidade das imagens que ilustram o documento e as associa ao claro propósito de edificação da obra do Rei Venturoso em um contexto de consolidação e expansão do Estado Português.

A primeira parte do livro se conclui com o texto de uma das organizadoras, Maria Eurydice de Barros Ribeiro (Universidade de Brasília). Intitulado “Operários do evangelho”, o capítulo trata da difusão da espiritualidade franciscana no Brasil, tendo por foco conjunto arquitetônico dedicado a Santo Antônio, na cidade de Cairu, no recôncavo baiano. O texto resulta de um exaustivo trabalho de pesquisa documental e bibliográfica sobre história, arquitetura e imagética cristã no período colonial.

O capítulo que abre a segunda parte do livro, dedicada à escrita historiográfica portuguesa e/ou sobre Portugal, é da autoria de Margarida Garcez Ventura (Universidade de Lisboa) e tem por título “O elogio do contraditório”. Em revisita à obra de Zurara, em particular às narrativas sobre a tomada de Ceuta, a autora ocupa-se de analisar os escritos do cronista no intuito de evidenciar a presença do contraditório na discussão dos temas sobre os quais se impunham deliberações por parte da realeza portuguesa no século XV. Nas justificações e objeções ao projeto de conquista de Ceuta e permanência da corte portuguesa no local, a autora identifica o uso retórico do contraditório como elemento constitutivo da memória e da consciência nacional.

A cronística de Zurara também serve de fonte às pesquisas de Susani Silveira Lemos França (Universidade Estadual Paulista), cujo texto se propõe a debater a presença de elementos de abordagem moralizante no tratamento de temas associados à expansão portuguesa. Para tanto, a autora analisa o processo de seleção, atualização e ressiginificação de virtudes exaltadas na narrativa consoante as circunstâncias históricas.

O texto seguinte, de José Rivair Macedo (UFRGS), explora as imagens e os discursos sobre a Costa da Guiné, enunciados nas narrativas portuguesas produzidas entre os séculos XV e XVII. O conjunto documental que orienta a abordagem do tema compreende narrativas memorialistas, roteiros de viagens, literatura de missionários, além de um subconjunto que o autor nomeia como narrativas locais, escritos marcados pela vivência em terras Africanas. As reflexões sobre a natureza e os indicativos de localização das fontes fazem do texto de Macedo um guia fundamental aos estudos sobre representações do continente africano no contexto da expansão portuguesa.

A natureza das fontes históricas é também matéria de discussão no texto de Armando Martins (Universidade de Lisboa). O autor parte da reflexão sobre as relações entre memória e história escrita para discutir duas acepções do termo hagiografia: por um lado, o termo é utilizado para definir a escrita medieval sobre as vidas de santos, compreendendo várias formas, como as vitae propriamente ditas, os relatos de milagres, as narrativas associadas às relíquias etc; por outro lado, a expressão serve ara nomear os estudos sobre textos hagiográficos. As hagiografias medievais, o autor as analisa no panorama das grandes transformações da espiritualidade e do conceito de santidade que ocorreram na Europa ocidental a partir do século XII. O texto se conclui com a apresentação de um quadro analítico em que, a partir de elementos estruturais próprios ao texto histórico, busca-se inferir sobre a natureza do texto hagiográfico.

Já o texto intitulado “Fernão Lopes, o rei D. João I e a historiografia lusobrasileira”, escrito por Adriana Zierer (Universidade Estadual do Maranhão), resulta de importante levantamento sobre pesquisa documental e produção bibliográfica acerca de Fernão Lopes e D. João I. A autora destaca temas, formas de abordagem e fontes relativas à Dinastia de Avis e ao seu mais importante cronista e põe em relevo os historiadores e grupos de pesquisa que, em Portugal e no Brasil, têm a elas se dedicado.

É também na perspectiva da revisão bibliográfica e de reflexão sobre natureza das fontes documentais que Douglas Mota Xavier de Lima escreve as suas notas bibliográficas sobre a história da diplomacia portuguesa do século XV

O livro se conclui com o texto de João Marinho dos Santos (Universidade de Coimbra), que tem como propósito debater a abordagem das cartas e da “relações” dos jesuítas como gênero narrativo historiográfico. O autor principia por delimitar o universo de temas que os jesuítas, em missão missionária na colônia portuguesa da América, instigados pela direção da ordem inaciana, contemplaram em seus escritos sob a designação genérica de “cousas do Brasil”. Aos temas selecionados, Marinho dos Santos procura relacionar as circunstâncias da produção e os potenciais destinatários das cartas e das relações para concluir que “os primeiros jesuítas que escreveram do e sobre o Brasil foram mais memorialistas do que historiadores”, mas que os seus escritos estão em perfeita sintonia com o que se compreende como historiografia dos séculos XVI e XII.

A riqueza do trabalho que ora se apresenta ao público resulta da diversidade de objetos e de fontes abarcados pelos textos que o compõem. Além disso, deve-se destacar o número expressivo de instituições de Portugal e do Brasil que, por meio dos pesquisadores-autores, estão a indicar a renovação permanente da produção historiográfica sobre os contextos civilizacionais que têm o Oceano Atlântico como fronteira, como espaço de interseção, no tempo alargado que remonta à consolidação do Estado Português e se estende por todo o período de dominação colonial.

Rita de Cássia Mendes Pereira – Doutora em História (USP). Pós-Doutorado na Universidade Federal da Bahia (2015-2016). Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Docente do Mestrado em Letras: Cultura, Educação e Linguagens. E-mail: ricamepe@hotmail.com


RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros; FRANÇA, Susani Silveira Lemos (Org.). A escrita da história de um lado a outro do Atlântico. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2018. Resenha de: PEREIRA, Rita de Cássia Mendes Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.2, p. 140- 144, 2018. Acessar publicação original [DR]

Impressões da Idade Média | Ricardo da Costa

Ricardo da Costa é um medievalista de um espírito inquieto.[1] Tendo sido profissional da área da Música por vinte anos, cursou História no Rio de Janeiro, na Universidade Estácio de Sá [2], Mestrado e Doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF) e depois realizou concurso para História Antiga e Medieval no Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde ingressou em 2000. Lá esteve nos departamentos de História, de Filosofia e atualmente é lotado no Departamento de Teoria da Arte e Música. Criou nos anos 90, quando a maioria de nós nem conhecia bem a Internet, uma homepage de estudos medievais que até hoje é uma referência nessas investigações e que contém documentos medievais traduzidos e textos publicados do autor em revistas especializadas no Brasil e no exterior [3]. Além disso, criou, com outros pesquisadores, em 2001, a revista Mirabilia, igualmente uma referência nas pesquisas sobre o Medievo e hoje pertencente ao Institut d’Estudis Medievals da Universitat Autònoma de Barcelona [4]. Costa fez três pósdoutorados internacionais [5] e também participa do corpo docente de doutorado internacional na área de Cultura Medieval [6].

Seu livro, Impressões na Idade Média, condensa artigos já foram publicados e contempla alguns textos inéditos. Ao ler a obra, lembrei das concepções de um importante historiador, discípulo do medievalista Jacques Le Goff (1924-2014), Jean Claude-Schmitt (1946-). De acordo com ele, no medievo o imaginário trata das relações dos homens entre si, com Deus e com o invisível. Em suas várias obras Schmitt explica que na Idade Média havia imagens visuais e mentais e que as imagens visuais muitas vezes ajudavam o espectador a se transportar para o mundo da imagem e se aproximar de Deus[7].

Podemos perceber este traço interessantíssimo no livro Impressões da Idade Média, de Ricardo da Costa. O autor possui o mérito de conseguir fazer com que seu leitor saia do “aqui e agora” e se transporte para o momento que os capítulos relatam. É, por exemplo, o caso do primeiro artigo do livro, que trata do luto na Antiguidade. Costa explica que as mulheres muitas vezes se machucavam e ele nos remete para a imagem 4 da obra (Mulheres aos prantos, eremitério de Santo André de Mahamud, Burgos, Espanha, séc. XIII). Ao ler a descrição do autor e observar a imagem, parece que nossa própria face sofre um calor e “sente” a ardência do ferimento do arranhão causado pelas viúvas sofredoras a si próprias.

O autor aproxima História e ficção e faz o leitor (cada um de nós), “viver” em outros momentos históricos, como se transportados numa verdadeira máquina do tempo, para outro momento histórico e para outros lugares. O leitor consegue viajar entusiasmado junto com o nosso autor para as paragens aonde ele nos conduz, de forma eficiente.

Ricardo da Costa escreve de forma agradável, o que nos recorda também a escrita de um importante medievalista brasileiro, que influenciou muitas gerações dos anos 80 até a atualidade: Hilário Franco Jr [8]. Este último, além de redigir de forma séria e ao mesmo tempo saborosa, também se volta para outros campos de interesse, como a História do Futebol. Costa é como ele, pois consegue abordar vários assuntos e temporalidades, sempre com o olhar central voltado para o seu objeto maior de interesse, a Idade Média.

Embora dialogue com a História, a Literatura, a Filosofia, a Arte e a Música – o livro é dividido nessas quatro áreas – Ricardo da Costa é, definitivamente, um historiador. Sua formação em História aparece na maneira de indagação dos documentos, bem como em seu olhar com relação ao momento histórico quando foi composto cada documento que analisa. O aspecto interdisciplinar do livro e da trajetória do autor seguem de perto os pressupostos da chamada Escola dos Annales, criada por Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956) em 1929, e que propunha, desde a fundação da revista Annales, a necessidade de a História dialogar com outras Ciências Sociais [9], como Costa faz com muita propriedade.

Outro elemento relacionado a esse fazer historiográfico dos primeiros annalistes foi a ampliação do uso da documentação do historiador, que considera como documentos outras fontes, como as literárias e artísticas, e a preocupação com os “modos de sentir e pensar”, depois entendidos por Le Goff, da terceira geração deste grupo, como as mentalidades [10]. Na reformulação do conceito realizada por este autor, a mentalidade é substituída pelo “imaginário” que, segundo o medievalista francês, vai além do conceito de representação, com ligações com o ideológico e o simbólico [11]. Ricardo da Costa segue essa direção, adotada por Le Goff e Duby e também trilhada por Hilário Franco Jr., entre outros medievalistas, no Brasil.

Outro traço importante do livro, relacionado à herança dos Annales é a chamada longa duração [12]. Costa consegue perceber muitos elos entre a Antiguidade e o Medievo, ao contrário da noção de ruptura entre esses dois momentos históricos, além da noção de continuidade entre Idade Média e Moderna, concordando assim com pensamento de Le Goff, que nega uma ruptura no chamado “Renascimento” e defende que a Idade Média se estende até a Revolução Francesa [13].

Também importantíssimo para a Escola dos Annales e para Ricardo da Costa é a chamada História-problema, que responde a questionamentos com base nos documentos e na análise do pesquisador; e, muito relevante em todo livro é a preocupação em responder a questões do presente. Marc Bloch em sua obra magistral, a Apologia da História, já dizia que os seres humanos olham o passado buscando compreender o presente, sendo necessário desconfiar dos documentos, fazer questionamentos a eles, além do fato de que há documentos falsos e que mesmo estes precisam ser analisados, além do fato de que o historiador precisa “ouvir” os silêncios e lacunas das fontes. Ricardo da Costa, através da sensibilidade e do uso da Arte, procura se aproximar do passado para compreender a sociedade atual.

Outro mérito do autor é o fato de conseguir dialogar com diferentes momentos históricos. Com certeza um medievalista que consegue analisar e escrever sobre diferentes períodos da História e utilizando a Filosofia, a Arte e a Literatura em suas investigações, tem a possibilidade de oferecer uma visão mais ampla do momento central que analisa, a Idade Média já que ele mesmo possui um campo de visão mais vasto. Os artigos com os quais mais me identifiquei foram os que trataram da História e da Literatura, pela minha predileção natural às relações entre História e Literatura. Mas todo o conteúdo deste livro é interessante.

O livro é harmônico em sua organização. Quatro partes, com três capítulos cada, totalizando doze. Pensando no número três, lembramos que se refere à Trindade, a união das três pessoas divinas, de acordo com o Cristianismo. Coincidência ou uma alusão do autor à religiosidade cristã?

Na primeira parte do livro, intitulada História, Costa analisa o papel do luto, abordando os períodos Antigo e Medieval. A seguir discute a visão de Maomé tecida pelo filósofo catalão Ramon Llull (1232-1316) e a relação dos cristãos no medievo com este filósofo. Já no capítulo 3, relaciona História e Música, trabalhando ao mesmo tempo com As Bodas de Fígaro, de Mozart, a música medieval e a música clássica contemporânea. Sobre este capítulo, o autor afirma a importância da sensibilidade para “recriar o passado com as palavras do presente que se arrojam no futuro” (p. 60).

A segunda parte do livro, Literatura, inicia com uma análise da formação da língua portuguesa e sua relação com o castelhano e o catalão, discutindo as cantigas galego-portuguesas e outros documentos, além de mencionar autores como de diversos momentos históricos como o Conde D. Pedro (século XIII), o Padre Antônio Vieira (século XVII) e o poeta parnasiano Olavo Bilac (séculos XIX-XX). Costa salienta sobre como trabalhar esses diferentes momentos históricos, seguindo o pensamento do medievalista Georges Duby (1919-1996): “a primeira obrigação do historiador, sua principal atividade é a imaginação” (p. 70) (grifo nosso).

No capítulo seguinte, aborda as relações entre História e Literatura na novela de cavalaria Curial e Guelfa, produzida em catalão no século XV. De acordo com o autor, sua proposta foi analisar “os sentimentos dos personagens, suas expressões proverbiais e as citações mitológicas recorrentes ao longo da narrativa” (p. 119), pois o manuscrito incorpora elementos da cultura greco-romana. Além disso, segundo o autor o texto mostra sentimentos das relações feudo-vassálicas, como a amizade e a fraternidade entre os homens desenvolvida no contexto do ideal da cavalaria medieval (p. 121).

No capítulo que fecha a parte Literatura, Costa aborda o gênero epistolar, através das cartas de Bernardo de Claraval (1091-1153). Estas, de acordo com o autor, eram voltadas ao amor ao próximo e contribuíram para o desenvolvimento da história do “Eu”, da individualidade, iniciada na Idade Média Central. Essas cartas eram ditadas, voltadas para vários assuntos e públicos e, segundo Costa, S. Bernardo em seu tempo, mais de uma vez “lamentou […] a pouca recepção de suas palavras.” (p. 143). De acordo com Impressões da Idade Média, a conversão da consciência e o apelo a esta era realizada por Bernardo através do eu amoroso: “Sem o amor, o Eu nada é, nada consegue, pois suas palavras não frutificam, suas lágrimas são inutilmente vertidas.” (p. 145).

Na parte três, intitulada Filosofia, Costa inicia com as raízes clássicas da transcendência medieval, analisando a Filosofia Medieval como profundamente arraigada na da Idade Antiga, havendo uma continuidade entre ambas. Desta forma, aborda de que maneira filósofos gregos (Platão e Aristóteles) e romanos (Sêneca) refletiram sobre Deus. Segundo Costa, para Aristóteles (384-322 a. C.): “Deus existe como bem, e por isso é o Princípio do qual dependem o céu e a natureza” (p. 173-174), concepção depois retomada por Dante Alighieri (1265-1321) em sua obra prima, a Divina Comédia.

Seguindo as reflexões sobre a figura de Deus, o capítulo seguinte do livro trata da eternidade de Deus segundo Ramon Llull. Costa salienta que, em seu propósito de modificação da fé dos islâmicos, o pensador catalão criou uma filosofia de conversão ao catolicismo que possuía a herança das três religiões monoteístas (Cristianismo, Judaísmo, Islamismo), além de absorver e recriar as meditações de Platão, Aristóteles, Agostinho, Anselmo entre outros, e de possuir analogias com as concepções de Bernardo de Claraval (p. 201).

O terceiro capítulo da parte Filosofia é dedicado ao pensamento do semiólogo Umberto Eco (1932-2016), com base em suas ideias tratadas em sua obra Arte e Beleza na Estética Medieval, que resgata o passado através da Arte e discute o simbolismo da luz (claritas) e a ideia estética do universo.

A última parte do livro, parte quatro, é dedicada à Arte. Primeiramente Costa analisa os camponeses, com base nos vitrais góticos das catedrais de Chartres e de Amiens no século XIII. Devido à invisibilidade desses grupos na maior parte das fontes escritas, é muito interessante encontrá-los em profusão nos documentos imagéticos analisados pelo autor. Costa destaca tanto a importância do trabalho do campesinato, estampado nas catedrais, como a importância destas construções e da arte gótica para os estudos de História Medieval.

Os dois últimos capítulos do livro tratam da figura do corpo medieval através da Arte [14]. O penúltimo discute as concepções defendidas por filósofos medievais em seus tratados como Hildegard de Bingen, João de Salisbury, Tomás de Aquino. Analisa o corpo em algumas imagens medievais e também as do corpo ser o cárcere da alma, o corpo como instrumento e também como desregramento.

O último texto do livro analisa o martírio de Thomas Beckett (c. 1118-1170) visto pela Arte, através de iluminuras, de vitrais do século XIII, da representação da morte daquele religioso estampada numa caixa do século XII e da análise do afresco da absidíola de Santa Maria de Terrasa, na Catalunha (1180), em comparação com relatos escritos. O capítulo aborda o corpo martirizado cujo assassinato foi encomendado pelo rei Henrique II (1133-1189), com quem o arcebispo se desentendeu, gerando a seguir essas representações que enfatizaram a lembrança do acontecimento, logo depois a canonização de Beckett e o arrependimento público do monarca.

Saliento sobre a publicação Impressões da Idade Média a qualidade do material de análise e da parte gráfica, com cada capítulo iniciando com uma letra diferente, espécie de letra gótica estilizada e uma faixa vertical com decoração floral, no canto esquerdo da página inicial de cada capítulo. Isso faz o livro lembrar um manuscrito medieval. Também é importante destacar a qualidade do Caderno de Imagens do livro, muito rico e com figuras em excelente resolução.

*

Passo agora a mencionar algumas discordâncias com o autor de Impressões da Idade Média. Em primeiro lugar, o interessantíssimo artigo sobre Ramon Llull e a questão da conversão dos muçulmanos (cap. 2 na parte 1 do livro). Com certeza, concordo com Costa sobre o fato de que Llull realmente tinha por propósito central converter os islâmicos. No entanto, o fato de ter aprendido árabe para debater com eles e de ter estudado os escritos árabes e relacionados à religião islâmica mostram que Llull apresenta uma visão mais conciliadora que inclusive a adotada nos dias atuais nos conflitos entre religiões, de forma que eu suavizaria as críticas a este pensador no tocante à relação com o Islamismo e sigo a inclinação, defendida por alguns pesquisadores, de que Ramon Llull foi uma espécie de precursor do chamado diálogo inter-religioso [15]. Só o fato de ter ouvido o “outro”, ter debatido com ele e ter procurado compreender a sua cultura, para logicamente, converter o “infiel” ao Cristianismo, demonstram, a meu ver, um certo respeito do maiorquino com relação aos islâmicos.

Outro ponto a ser salientado é que Costa possui alguma tendência à hipérbole, em determinados momentos. É o caso, por exemplo, quando ele afirma tacitamente que “ninguém” estuda música no Brasil [16]. Claro que Costa tem razão, a Música deveria ser mais utilizada pelos historiadores. Mas o que dizer daqueles que trabalham com compositores nacionais em diversos momentos históricos: a Tropicália, Carmem Miranda, a chamada música de protesto no período da Ditadura Militar, o compositor Villa Lobos, entre outras manifestações? Mas já achando que Costa poderia questionar essas formas musicais e esses momentos históricos, aponto aqui o já mencionado e destacado historiador Jean-Claude Schmitt em favor dos meus argumentos. No seu recente livro, Les Rythmes au Moyen Âge (2016), premiado no ano de 2017 como melhor obra historiográfica na França [17], Schmitt cita nos agradecimentos um brasileiro (!), Eduardo Aubert, o que pode ser depreendido pelos estudos sobre a música medieval que o auxiliaram a compor uma parte de sua premiada obra, fornecendo alguns subsídios ao capítulo “Ritmo, Música, Imagens”. [18] De forma que, concordo com Ricardo da Costa que os estudos da Música são pouco realizados no Brasil mas, ao contrário da sua concepção, alguns historiadores brasileiros se dedicam com sucesso a esta área, como apontado pelo renomado historiador francês.

Um último elemento que me levou à inquietação com relação às afirmações do autor do livro são no tocante à educação brasileira na contemporaneidade (sobre isso, especialmente o capítulo 4, da parte Literatura). Para Costa, os alunos são, via de regra, desinteressados e aprendem pouco. Ora, se nós somos professores e os nossos alunos não têm interesse, nem aprendem, será que a culpa não é nossa? É importante destacar que Ricardo da Costa atua neste momento na Graduação em Artes Plásticas e em Artes Visuais (e também na Pós-Graduação), como já atuou na área de Filosofia e História, todos esses cursos da área de Licenciatura. Portanto, isso torna ainda mais “crítico” o nosso papel enquanto docentes, na medida em que cada aluno nosso será também professor e formador de uma quantidade enorme de outros alunos, todos esses que deveriam pensar criticamente sobre o nosso contexto histórico.

Diferentemente de Costa, tenho uma visão mais positiva com relação à educação e mesmo da educação no Brasil e do papel do professor da universidade e das escolas. Uso para fundamentar meus argumentos, o próprio texto de Ricardo da Costa (cap. 4) no qual mostra que desde a Antiguidade, os docentes e filósofos se queixam do desinteresse dos alunos, da decadência moral da sociedade, entre outros incômodos.

Seguem aqui as palavras de Petrônio na obra Satyricon (século I), citadas por Costa no capítulo 4 do seu livro: “Mergulhados em vinhos e prostitutas, não ousamos sequer conhecer as artes apropriadas [….] ensinamos e aprendemos apenas vícios. […] Onde está o caminho esmeradíssimo da Sabedoria?” (p. 69) (grifos nossos). Sinal de que o mundo sofre de problemas morais, corrupção, entre outros, há muito tempo, e que esses males já chamavam a atenção dos educadores desde a Antiguidade. E nem por isso as pessoas deixaram de aprender.

Neste sentido, cito, por exemplo, Ramon Llull e toda a sua preocupação em transmitir valores positivos a Domingos, seu filho, em obra traduzida do catalão ao português por Ricardo da Costa, a Doutrina para Crianças. Neste escrito, Llull pretende através da educação ensinar seu rebento a seguir as virtudes e evitar os vícios, de forma a viver bem em sociedade e atingir a salvação na outra vida [19]. Assim como Ramon Llull ensinava Domingos, os professores nas escolas e nas universidades também têm a função de ensinar e/ou auxiliar os seus alunos a aprenderem ou “despertarem” para o conhecimento e para valores morais positivos: a ética, a bondade, a honestidade, entre outros.

A crise de valores é um problema mundial da atualidade que também atinge a educação. Neste sentido e particularmente na realidade brasileira, a competição com os recursos eletrônicos – Internet, celular e particularmente o whatsapp, bem como outras formas de manifestação da mídia, fazem com que as nossas aulas sejam vistas muitas vezes como maçantes pelos nossos alunos universitários (e a mesma coisa se dá no ensino básico), motivo pelo qual o docente precisa tentar criar e “inventar” estratégias que levem os alunos a se interessarem pelos estudos e pela História, pela Arte, pela Literatura, pela Filosofia, entre outros campos do conhecimento.

O papel que Ricardo da Costa possui com a sua homepage “História Medieval” e com a revista Mirabilia representam uma contribuição importantíssima para a educação e difusão da História Medieval no Brasil e em outros países. É por isso que podemos dizer que Costa por vezes é um pouco exagerado (lembro da canção do músico brasileiro Cazuza) e que, por vezes, suas ações como docente e pesquisador contradizem a visão pessimista que tem sobre a educação no Brasil.

De minha parte, sou uma otimista. Recentemente, uma jovem do Maranhão, Aldina Melo, filha de quebradeira de coco e que enfrentou inúmeras dificuldades para chegar ao ensino superior, mas acabou conseguindo, obteve prêmio de melhor dissertação (referente à turma de 2015) no Mestrado em História da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), onde leciono20, e foi também aprovada em primeiro lugar (2018) no ingresso ao Doutorado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Sinal de que, para muitos brasileiros, se tiverem oportunidades, irão estudar e conquistar um lugar melhor no mundo.

*

Seja como for, o certo é que não há como ler o livro Impressões na Idade Média sem sentir um questionamento, uma inquietação, o que é positivo, já que a função da História e do historiador é colocar problemas, procurar responder aos questionamentos para compreender a sociedade do presente e buscar um mundo melhor para os nossos filhos, netos e para as futuras gerações.

Caso deixemos de lado pequenos detalhes quando consideramos que Costa exagera um pouco em algumas concepções, poderemos desfrutar de um livro saboroso, erudito, bem escrito e que contribui com os estudos medievais e sua relação com a contemporaneidade.

Notas

1. Graduada, Mestre e Doutora em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Docente de História do município do Rio de Janeiro, no período de 1988 a 2001. É professora da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) desde 2003, atuando, no momento, como docente efetiva na PósGraduação em História na mesma instituição e também na Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Estágio Pós-Doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) junto ao GAHOM (Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médieval) no período de 2013-2014. É uma das coordenadoras dos laboratórios de pesquisa Brathair – Grupo de Estudos Celtas e Germânicos e Mnemosyne – Laboratório de História Antiga e Medieval, e atua como editora-chefe da revista Brathair: http://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair e uma das diretoras da revista Mirabilia https://www.revistamirabilia.com/ .

Conheci Ricardo da Costa em 1996 junto ao laboratório Scriptorium, quando do meu ingresso no Mestrado em História, sob a supervisão de Vânia L. Fróes, com quem Costa também realizou o Mestrado, depois publicado em livro (1998). No Doutorado, realizou bolsa sanduíche na Alemanha (1999) e concluiu a tese sob a supervisão de Guilherme Pereira das Neves. Ricardo da Costa e eu produzimos até o momento três artigos acadêmicos juntos (em 2000, 2001 e 2008). Também criamos a revista Mirabilia em 2001, com Moisés Romanazzi Tôrres. O nome da revista, Mirabilia em latim ou “coisas maravilhosas” em português, foi escolhido por mim, em referência ao termo “maravilha”, muito recorrente na novela de cavalaria do século XIII A Demanda do Santo Graal, uma das fontes literárias de minha predileção. Costa e eu realizamos várias parcerias até o presente como, por exemplo, a edição 2018.1, v. 26, da revista Mirabilia, coordenada por nós dois, cuja temática é Sociedade e Cultura em Portugal, com artigos de docentes nacionais e internacionais.

2. Destaca-se o apoio da avó do autor, América da Silveira Sapha, para que ele realizasse este curso em paralelo à sua atividade de músico.

3. Trata-se da homepage “Idade Média”: http://www.ricardocosta.com /

4. A Mirabilia atualmente consiste em quatro revistas em uma: a Mirabilia, a Mirablia Medicinae, Mirabilia Ars e Mirabilia Trans. Todas as quatro se encontram disponíveis na mesma homepage: https://www.revistamirabilia.com /

5. Nas áreas de História Medieval, Filosofia Medieval e Literatura Medieval, na Universitat Internacional de Catalunya (UIC), Barcelona, 2003 e 2005 e Universitat d’Alacant, (UA), em 2017.

6. Programa de Doctorado “Transferencias Interculturales e Históricas en la Europa Medieval Mediterránea” da Facultade de Filosofia e Letras da Universitat d’Alacant (UA-Espanha).

7. Sobre o conceito de imagem para Schmitt, ver SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens. São Paulo: EDUSC, 2007.

8. Dentre os numerosos livros de Hilário Franco Jr., cito alguns: A Idade Média, Nascimento do Ocidente. 2ª Ed., São Paulo: Brasiliense, 2001; As Utopias Medievais. 1ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1992 (a ser relançado, em edição revista e ampliada em 2018); Cocanha, a História de um País Imaginário. São Paulo; Companhia das Letras, 1998.

9. Sobre os pressupostos desses historiadores, ver FEBVRE, L. Combates pela História. FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa, Presença, 1989; BURKE, P. A História dos Annales. A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Ed. UNESP, 1991; REIS, José Carlos. Nouvelle Histoire e o Tempo Histórico. A contribuição de Febvre, Bloch e Braudel. São Paulo: Annablume, 2008.

10. LE GOFF, Jacques. LE GOFF, Jacques. “As Mentalidades: Uma História Ambígua”. In: História: Novos Objetos. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976, p. 68-83.

11. Sobre o conceito de imagem para Le Goff, ver LE GOFF, J. O Imaginário Medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 11-12.

12. BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa: Presença, 1989; BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo à Época de Felipe II. Extraído do Prefácio. In: Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 13-16.

13. LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; LE GOFF, Jacques. A História pode ser dividida em pedaços? São Paulo: Ed. UNESP, 2015.

14. Lembremos que o tema do corpo também foi caro a Le Goff no seu livro Historia do Corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

15. O próprio Ricardo da Costa já defendeu essa concepção de diálogo inter-religioso no passado. Ver: COSTA, Ricardo; PARDO PASTOR, Jordi. Ramon Llull (1232-1316) e o diálogo inter-religioso. Cristãos, judeus e muçulmanos na cultura ibérica medieval. O Livro dos Gentio e dos três sábios e a Vikuah de Nahmânides. In: LEMOS, Maria Teresa Toribio Brittes e LAURIA, Ronaldo Martins (org.). A integração da diversidade racial e cultural do Novo Mundo. Rio de Janeiro, UERJ, 2004. Sobre o diálogo inter-religioso, cf, entre outros: FIDORA, Alexander. Raimundo Lúlio perante a crítica atual ao diálogo inter-religioso: A Arte luliana como proposta para uma “Filosofia das religiões” (2001). Publicação em espanhol em: Revista Española de Filosofia Medieval, 10, 2003, p. 227-243; MAYER, Annemarie C. Ramon Llull y el diálogo indispensable. Quaderns de la Mediterrània 14, 2010.

16. Segundo Costa (2017, p. 45, nt. 5): “Infelizmente, em nosso país, os historiadores ainda não ‘descobriram’ a Música como tema histórico”.

17. Uma síntese desta obra está na seguinte resenha: ZIERER, Adriana. Resenha de Les Rythmes au Moyen Âge, de Jean-Claude Schmitt. In: Mirabilia. Edição Sociedade e Cultura em Portugal. Org. por Adriana Zierer e Ricardo da Costa, v. 26, 2018, v. 1, p. 222-233.

18. Trata-se do estudo de Eduardo Aubert em co-autoria com Jean-Claude Bonne: BONNE, J.C; AUBERT, E.H. Quand voir fait chanter. Images et neumes dans le tonaire du ms. BnF, lat. 1118: entre performance et performativité. In: DIERKENS, A.; BARTHOLEYNS, G.; GOLSENNE, T. (Dir.). La Performance des Images. Bruxelles: Université Livre de Bruxelles, 2009, p. 225-240. (Obra citada por Schmitt, 2016, p. 117). Aubert consta nos agradecimentos do livro de Schmitt, 2016, p. 691.

19. COSTA, Ricardo. Reordenando o conhecimento: a Educação na Idade Média e o conceito de Ciência expresso na obra Doutrina para Crianças (c. 1274-1276) de Ramon Llull. In: COSTA, R. Ensaios de História Medieval. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2009, p. 154-175. Uma dissertação recente abordando esta obra de Llull e a sua importância na formação do ser humano ideal foi realizada por Natasha Mateus: MATEUS, N. Ensino de História Medieval: A obra Doutrina para Crianças, de Ramon Llull e a produção do paradidático “Ramon Llull e a Idade Média”. 246 f. Dissertação de Mestrado em História. São Luís: Universidade Estadual do Maranhão, 2018. Disponível em: http://www.ppghist.uema.br/wpcontent/uploads/2016/12/Natasha-Disserta%C3%A7%C3%A3o-com-as-assinaturas-da-Banca..pdf ; acesso em 05/07/2018.

20. A premiação ocorreu em abril de 2018. A dissertação se encontra disponível para consulta. MELO, Aldina. A África na Sala de Aula. A Reinvenção dos Zulus. 206 f. Dissertação de Mestrado em História. São Luís: Universidade Estadual do Maranhão, 2017. Disponível em: http://www.ppghist.uema.br/wpcontent/uploads/2016/12/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Final-Aldina-Melo-PARA-DEPOSITO-1.pdf ; acesso em 05/07/2018.

Referências

BLOCH, Marc. A Apologia da História ou o Ofício do Históriador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

BONNE, Jean-Claude; AUBERT, Eduardo H. Quand voir fait chanter. Images et neumes dans le tonaire du ms. BnF, lat. 1118: entre performance et performativité. In: DIERKENS, A.; BARTHOLEYNS, G.; GOLSENNE, T. (Dir.). La Performance des Images. Bruxelles: Université Livre de Bruxelles, 2009, p. 225- 240.

BURKE, P. A História dos Annales. A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Ed. UNESP, 1991.

COSTA, Ricardo; PARDO PASTOR, Jordi. Ramon Llull (1232-1316) e o diálogo interreligioso. Cristãos, judeus e muçulmanos na cultura ibérica medieval. O Livro dos Gentio e dos três sábios e a Vikuah de Nahmânides. In: LEMOS, Maria Teresa Toribio Brittes; LAURIA, Ronaldo Martins (org.). A integração da diversidade racial e cultural do Novo Mundo. Rio de Janeiro, UERJ, 2004. COSTA, Ricardo. Reordenando o conhecimento: a Educação na Idade Média e o conceito de Ciência expresso na obra Doutrina para Crianças (c. 1274-1276) de Ramon Llull. In: COSTA, R. Ensaios de História Medieval. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2009, p. 154-175. FRANCO JR., Hilário. A Idade Média, Nascimento do Ocidente. 2ª Ed., São Paulo: Brasiliense, 2001.

FRANCO JR. As Utopias Medievais. 1ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1992 (a ser relançado, em edição revista e ampliada em 2018).

FRANCO JR., Hilário. Cocanha, a História de um País Imaginário. São Paulo; Companhia das Letras, 1998.

FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa, Presença, 1989.

FIDORA, Alexander. Raimundo Lúlio perante a crítica atual ao diálogo inter-religioso: A Arte luliana como proposta para uma “Filosofia das religiões” (2001). Disponível em: http://www.ramonllull.net/sw_comvirt/index.php?option=com_content&view=artic le&id=164%3Araimundo-lulio-perante-a-critica-atual-ao-dialogo-interreligioso&catid=50%3Adialogo-inter-religioso&Itemid=79&lang=germany; acesso em 04/04/2018; Publicação em espanhol em: Revista Española de Filosofia Medieval, 10, 2003, p. 227-243. Idade Média. Homepage de Ricardo da Costa: http://www.ricardocosta.com /; acesso em 05/07/2018. MAYER, Annemarie C. Ramon Llull y el diálogo indispensable. Quaderns de la Mediterrània 14, 2010.

LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

LE GOFF, Jacques. A História pode ser dividida em pedaços? São Paulo: Ed. UNESP, 2015.

LE GOFF, Jacques. “As Mentalidades: Uma História Ambígua”. In: História: Novos Objetos. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976, p. 68-83.

LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Estampa, 2004.

LE GOFF, Jacques. Uma História do Corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

MATEUS, Natasha N. Ensino de História Medieval: A obra Doutrina para Crianças, de Ramon Llull e a produção do paradidático “Ramon Llull e a Idade Média”. 246 f. Dissertação de Mestrado em História. São Luís: Universidade Estadual do Maranhão, 2018. Disponível em: http://www.ppghist.uema.br/wp-content/uploads/2016/12/NatashaDisserta%C3%A7%C3%A3o-com-as-assinaturas-da-Banca..pdf; acesso em 05/07/2018.

MELO, Aldina. A África na Sala de Aula. A Reinvenção dos Zulus. 206 f. Dissertação de Mestrado em História. São Luís: Universidade Estadual do Maranhão, 2017. Disponível em: http://www.ppghist.uema.br/wpcontent/uploads/2016/12/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Final-Aldina-Melo-PARADEPOSITO-1.pdf ; acesso em 05/07/2018.

REIS, José Carlos. Nouvelle Histoire e o Tempo Histórico. A contribuição de Febvre, Bloch e Braudel. São Paulo: Annablume, 2008.

SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens. São Paulo: EDUSC, 2008.

SCHMITT, Jean-Claude. Les Rythmes au Moyen Âge. Paris: Gallimard, 2016.

ZIERER, Adriana. Resenha de Les Rythmes au Moyen Âge, de Jean-Claude Schmitt. In: Mirabilia. Edição Sociedade e Cultura em Portugal. Org. por Adriana Zierer e Ricardo da Costa, Barcelona, (UAB), v. 26, 2018, jan-jun, p. 222-233. Disponível em: https://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/14.pdf ; acesso em 15/07/2018.

Adriana Zierer – Graduada, Mestre e Doutora em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Docente de História do município do Rio de Janeiro, no período de 1988 a 2001. Docente UEMA-PPGHIST/UFMA-PPGHIS. E-mail: adrianazierer@gmail.com


COSTA, Ricardo da. Impressões da Idade Média. São Paulo: Livraria Resistência Cultural, 2017. Resenha de: ZIERER, Adriana. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.1, p. 260 – 272, 2018. Acessar publicação original [DR]

Generations of feeling: a history of emotions, 600-1700 | Barbara Rosenwein

O plano das emoções e da subjetividade há muito não constitui um terreno estrangeiro para os historiadores. Basta evocar, por exemplo, a célebre obra de Johan Huizinga e sua imagem impactante de uma Idade Média tardia marcada pelo externar violento das emoções, de “uma devoção popular” ou coletiva inclinada às lágrimas e aos excessos piedosos, que exprimiam um “sentimento religioso” comum. Também Lucien Febvre e as gerações da Escola dos Annales – com nomes como Jean Delumeau e sua história do medo ou Philippe Ariès e a das atitudes perante a morte – haviam chamado a atenção para as chamadas “sensibilidades”, diluídas na noção mais ampla de “mentalidades”. No entanto, desde os anos 1980, tem sido possível demarcar a emergência de novos e promissores estudos sobre os “afetos” e “emoções”, que vieram dar forma à recente “história das emoções”, com propostas e abordagens que, decididamente, se distanciam daquelas traçadas pelos historiadores de outrora. Longe de tentar vislumbrar uma provável unidade que pudesse caracterizar um período ou sociedade no que se refere à experiência afetiva, ou de perscrutar um núcleo essencial e genuíno do sujeito – que se presume existir por detrás das normas sociais, ou como algo inefável e impossível de se historicizar –, esses estudos propõem desfazer a ideia de que as emoções e afetos são universais, de que pertencem estritamente à ordem da irracionalidade ou da intimidade, ou que foram alvo de um processo progressivo de domesticação, racional e civilizador, em relação ao qual o período medieval apareceria como tempo das paixões destemperadas – numa clara recusa da tese de Norbert Elias.

É em tal projeto de reorientação investigativa e teórica que se situa a obra de Barbara H. Rosenwein, uma das maiores responsáveis por abrir esse novo caminho, que desbrava desde finais da década de 1990 ao lado de outros estudiosos, como Piroska Nagy, Damien Boquet, Carla Casagrande, Silvana Vecchio, Simo Knuuttila, Thomas Dixon, dentre outros.1 Formada pela Universidade de Chicago, a professora Rosenwein leciona hoje na católica Loyola University of Chicago, tendo já passado, como convidada, pelas francesas École des Hautes Etudes en Sciences Sociales e École Normale Supérieure, bem como pelas universidades de Utrecht e Gotemburgo. É também membro do Centre for the History of the Emotions at Queen Mary University, em Londres, e da Medieval Academy of America. Em sua trajetória notável, constam obras de ampla divulgação como A Short History of the Middle Ages (University of Toronto Press, 2014), Reading the Middle Ages: Sources from Europe, Byzantium, and the Islamic World (University of Toronto Press, 2006), Debating the Middle Ages: Issues and Readings (Blackwell, 1998), The Making of the West: Peoples and Cultures (Martin’s Press, 2013). No âmbito da história das emoções, especificamente, cabe elencar o celebrado Emotional Communities in the Early Middle Ages, de 2006 (Cornell University).

Em Generations of Feeling: A History of Emotions 600-1700, um extenso volume publicado em 2016 pela Cambridge University Press, Barbara Rosenwein apresenta os resultados de uma pesquisa iniciada há cerca de dez anos, como ela própria destaca. A obra alinha-se à proposta de seu trabalho anterior ao fundamentar-se na ideia de emotional communities, que consagrou a historiadora. Com frequência referenciado e adotado por outros estudiosos, a designação “comunidades emocionais” tem-se mostrado uma ferramenta útil à autora em sua tentativa manifesta de se desviar de uma abordagem totalizante. Segundo Rosenwein, conquanto o potencial biológico “para sentir e expressar” o que hoje entendemos por “emoções” seja um atributo humano “universal”, um limite positivo, material, “o que essas emoções são, como são chamadas, como são avaliadas e sentidas e como são expressas (ou não), tudo isso é moldado pelas “comunidades emocionais’”. Tais comunidades são grupos com valores e modos particulares de sentir e exprimir suas emoções, segundo normas aceitas e partilhadas; podem ser variadas em um mesmo período, explica. Todavia, em que medida a autora se distanciará efetivamente da ideia de uma coerência subjacente à todas as expressões e experiências humanas em um dado momento e lugar – como implícito nas velhas noções de “mentalidades” ou “imaginário” –, é um questionamento que logo vem à mente do leitor mais cauteloso, diante daquilo que a autora promete já na introdução e que revela sua vívida preocupação teórica.

Mais precisamente, Barbara Rosenwein assinala, logo de partida, o intuito de mapear o conjunto de sentimentos, relações e valores que estão implícitos na expressão de uma determinada emoção. Um dos pontos fundamentais dessa abordagem que pretende se despir dos essencialismos, a autora ressalta não querer distinguir entre as supostas emoções “reais”, sentidas, e as emoções expressas, ou seja, entre o sincero e o dissimulado, já que o historiador das emoções apenas lida com os “sinais socias” destas, captáveis pelos gestos e palavras, não sendo possível avançar para além disso, em busca de um conteúdo oculto e supostamente mais verdadeiro – como sugerem alguns estudos, por exemplo, sobre o indivíduo.2 Uma vez que se trata, para ela, de compreender os valores que regem a vivência afetiva de uma dada comunidade, considerando a contingência da própria ideia de verdade contida na emoção, o fingimento também nos diz sobre as normas emocionais de um grupo. Da mesma maneira, os lugares-comuns, as expressões impensadas e formulaicas não são menos importantes e vazios de significado para o historiador, pois constituem as “heranças emocionais” disponíveis em um tempo.

Aprofundando seu raciocínio, Rosenwein reitera a recusa da ideia de oposição entre emoção e razão, ou afeto e cognição, como uma dicotomia invariante ou essencial da constituição humana,3 assim como a lógica teleológica que identifica o triunfo progressivo da racionalidade. Voltando-se para as diversas teorias sobre os “afetos” ou “paixões da alma”, da filosofia estoica aos teólogos e letrados cristãos, Agostinho, Gregório Magno, Alcuíno, Tomás de Aquino ou, mais tarde, Jean Gerson, o presente livro desmonta como as emoções foram codificadas, ordenadas, racionalizadas, de modos circunstanciais e contingentes, tendo em vista a efetivação de um determinado parâmetro de vida virtuosa num dado momento. O livro identifica as quebras nas configurações teóricas a partir de uma perspectiva diacrônica. Com uma orientação oposta à do ideial estóico da apatheia, da não perturbação emotiva, a autora avalia, por exemplo, como Cícero admitia a existência de bons e maus afetos e o papel fundamental dos primeiros na busca da virtude, já que, para tal, seria preciso, antes de tudo, “amar” a virtude e odiar o vício. As noções de amizade verdadeira, que para o filósofo amparavase na benevolência, na concordânica e no amor, são redefinidas mais tarde por Agostinho como sendo obra de Deus, sustentada na fé comum, cristã. A reorientação trazida pelo bispo de Hipona colocou, assim, o critério de distinção dos bons ou maus afetos ou paixões na aproximação ou afastamento em relação às coisas divinas e às virtudes. Nesse sentido, sendo as emoções um ato da vontade, seu valor, desde então, passou a depender do seu uso, e não delas em si mesmas, como pensavam os estóicos e o próprio Cícero.

No entanto, para além das sucessões temporais e de uma história das ideias, Rosenwein apresenta nesta obra o contributo de uma análise sincrônica que adentra o espaço das vivências sociais, completando seu esforço de captar as variâncias. É então que fica mais nítida a noção de “comunidades emocionais”. O livro mostra como as concepções de amor e amizade foram muito centrais para determinados grupos sociais. No primeiro momento de consolidação do poder merovíngio sob Clóvis, por exemplo, afirmava-se entre os nobres a superioridade dos laços familiares e maternais; o amor era o afeto entre irmãos, pais e filhos. Já em comunidades como a dos monges letrados vindos das famílias merovíngias, desvalorizaram-se os laços de sangue em defesa do ideal de desapego e o abandono da vida familiar; ali, o amor referia-se estritamente a Deus. Mais tarde, no século VII, novas normas emocionais conduziram a vida cortesã: quando os nobres alcançam maior independência perante os reis francos, o amor associou-se mais à amizade e à fidelidade do que aos vínculos sanguíneos. Voltando-se em seguida para os séculos XII e XIII, vemos como duas comunidades contemporâneas preocuparam-se com esses sentimentos. Entre os cistercienses ingleses de Rievaulx, o monge Aelred colocou sua ênfase no amor e na compaixão como vias para Deus, bem como na diferenciação entre amor e caritas, um mundano, e o outro mais nobre, espiritual. No mesmo período, para a comunidade guerreira dos condes de Toulouse, a afirmação das fidelidades não sanguíneas foi ainda mais decisiva e aparente nas manifestações de afeto. Enquanto para os condes o amor estava na fidelidade entre os pares, para os trovadores dessa mesma corte – transpondo as ansiedades sobre a traição do campo político para o das relações amorosas e sexuais –, referia-se à relação homem e mulher e se apresentava como fonte de desapontamento.

O atrativo de Generations of Feelings não está apenas em seu conteúdo, ou melhor, em sua elucidação de configurações históricas particulares, mas também em suas escolhas teóricas e metodológicas. Barbara Rosenwein escapa à fixidez da noção de “mentalidade” com sua proposta das “comunidades” ou “regimes emocionais”, que em seu livro não se assemelham a conceitos fixos e apriorismos, mas apresentam-se mais como formas de descrever uma dinâmica histórica que envolva a diversidade, a convivência e as sobreposições de padrões ou regimes diferentes. As comunidades emocionais não são isoladas nem homogêneas, nos termos da própria historiadora, “nenhuma sociedade fala a partir de uma única voz”; por isso, opta por explorar os grupos que considera mais representativos, a partir de um método de amostragem. Além disso, essas comunidades também são explicadas e criadas por teorias que as antecedem. Assim, sem pensar a partir de um fio trans-histórico, Rosenwein concilia sincronia e diacronia ao chamar a atenção para a disponibilidade e a potencialidade tanto das tradições mais antigas como das mais atuais, como a estoica e a cristã, que vão sendo sedimentadas em “gerações de sentimento”. Por outro lado, a autora esclarece que as persistências não excluem o fato de certas comunidades emocionais de mesmo um período não adotarem essas heranças da mesma maneira. O livro tem, portanto, o mérito de explanar as teorias sobre os afetos a partir dos parâmetros e critérios elaborados em seus tempos próprios, e não dos critérios prévios e externos do historiador, como feito por correntes historiográficas anteriores. Em outras palavras, quando fala em amor, medo ou compaixão, Rosenwein não pressupõe uma ideia sobre estes afetos, mas desdobra o que significou para um grupo específico, dentro de um enunciado específico, que relações estabelece com outros sentimentos, que carga de sentido carregam naquele contexto, relações estas que são casuais e não necessárias.

Todavia, ao explorar a subjetividade nas relações públicas e de poder, em documentos formais, como escrituras e contratos, a autora, apesar de cumprir o seu intento de abdicar da ideia de que as emoções se circunscrevem ao âmbito privado, envereda, com isso, por uma questão que já muito foi muito explorada – por exemplo, por Paul Veyne.4 A quebra do livro em capítulos que ora tratam de uma sociedade, ora descrevem longamente a teoria de um pensador, também podem constituir um ponto negativo, porque torna a obra um tanto desigual. Outro aspecto da análise que pode ser problemático, é que, embora a autora se preocupe em minimizar o peso anacrônico do termo “emoções”, inexistente até a modernidade – quando elenca, por exemplo, os termos usados na antiguidade e na Idade Média como “perturbações”, “afetos”, “afeições”, “paixões”, “movimentos da alma”, salientando que se “aproximam” do que nós hoje chamamos de “emoções” –, a insistência em falar “emoções” pode por vezes supor um conceito trans-temporal. Por outro lado, com o cuidado de evitar o anacronismo e de se desviar da impressão de que os valores e demais componentes das emoções são invariantes, o exame cuidadoso do vocabulário apresenta-se como um aspecto louvável do trabalho de Rosenwein. A historiadora oferece uma minuciosa listagem das palavras em língua latina e vernácula (inglês e francês) empregadas com mais frequência em enunciados de um grupo social, para referir a certas emoções, e elenca seus sentidos aproximados em cada situação. Assim, mesmo que as palavras sejam as mesmas, vemos como são preenchidas com significados muito diversos em cada caso.

Sendo assim, estamos diante de uma publicação importante onde se podem perscrutar os rumos da historiografia mais recente, os problemas que enfrenta e as soluções que encontra. Como definiu a autora, trata-se de uma “uma narrativa de continuidade e mudança”, sobre as maneiras nunca perenes com que se pensou a composição humana e suas disposições interiores, a psicologia e a antropologia. Qualquer que seja o seu campo de interesse, todo historiador pode se ver diante de descrições e expressões de afetos ou sentimentos, que de modo algum são irrelevantes para a compreensão de outros aspectos da sociedade que investiga; não apenas o historiador das emoções deve estar disposto a considerar os sentidos contingentes delas.

Notas

1 Destaco as publicações: BOQUET, Damien; NAGY, Piroska. Les sujets des émotions au Moyen Âge. Paris: Beauchesne, 2008; BOQUET, Damien; NAGY, Piroska. Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l´occident médieval. Paris: Seuil, 2015; KNUUTTILA, Simo. Emotions in ancient and medieval philosophy. Oxford/New York: Oxford University, 2004; DIXON, Thomas. From passions to emotions: the creation of a secular psychological category. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

2 Como é possível notar em alguns textos de Aron Gurevitch, como La naissance de l´individu dans l´Europe médiévale.

3 Como já apontado por outros estudiosos como Thomas Dixon, essa oposição é uma especificidade ocidental moderna. A ideia das emoções como algo não cognitivo, voluntário e corporal, oposto à racionalidade, é muito recente e resulta de um processo em que a tipologia dos afetos, apetites ou paixões foi condensada na categoria mais ampla das “emoções”, a partir do século XIX, com a secularização da psicologia.

4 Ver VEYNE, P.; VERNANT, J.-P; DUMONT, L.; RICOEUR, P.; DOLTO, F. VARELA, F.; PERCHERON, G. Indivíduo e Poder. Lisboa: edições 70, 1988.

Letícia Gonçalves Alfeu de Almeida – Universidade Estadual Paulista (UNESP). E-mail: leticiaalfeudealmeida@gmail.com


ROSENWEIN, Barbara H. Generations of feeling: a history of emotions, 600-1700. Cambridge: Cambridge University Press, 2016. Resenha de: ALMEIDA, Letícia Gonçalves Alfeu de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.1, p. 253- 259, 2018. Acessar publicação original [DR]

Joana d’Arc: Uma Biografia | Colette Baune

Em 2016, a versão em português de Joana d’Arc: uma biografia completou dez anos. Lançada no Brasil pela Editora Globo em 2006, a obra de Colette Beaune é uma das leituras fundamentais para aqueles que se interessam pela história da heroína francesa.

Joana d’Arc é uma das personagens mais icônicas do Ocidente medieval. Em apenas dois anos, período entre seu aparecimento na corte de Carlos VII e sua morte, Joana conseguiu conquistar o coração e a imaginação de seus contemporâneos e se inscrever no panteão dos personagens que transcendem seu tempo e espaço.

Fazendo um breve levantamento é possível encontrar mais de setenta obras literárias nas quais Joana d’Arc é personagem, a lista se inicia no século XV e chega até o presente. Além da literatura, Joana foi retratada em cerca de treze produções cinematográficas, da emblemática atuação de Renée Falconetti, em “La passion de Jeanne d’Arc”, filmado em 1927 e dirigido por Carl Dreyer, até a superprodução dirigida por Luc Besson em 1999, “Jeanne d’Arc” a qual contou com a brilhante interpretação de Milla Jovovich que deu vida a uma Joana ingênua e perturbada por vozes. Afora o cinema e a literatura, a Donzela aparece em jogos de videogame e quadrinhos.

Joana foi uma jovem francesa cuja existência transita entre o mito e a realidade e cuja eternidade está garantida na memória e imaginação das pessoas. Não é de surpreender que tenha sido escolhida como objeto de pesquisa por Colette Beaune, uma especialista em História da França e em História das Mulheres.

Colette Beaune é professora emérita da Universidade de Paris X, especializada em história cultural, politica e social do final da Idade Média. Entre suas publicações estão Naissance de la nation France, 1985; a edição do texto do Journal d’un Bourgeois de Paris: de 1405 à 1449, 1989; e Jeanne d’Arc, 2004 (Joana d’Arc: uma biografia, Editora Globo, 2006). A obra foi caracterizada pelo Senado francês como própria para nutrir a reflexão cívica e rendeu à Colette Beaune o Prix du Sénat du Livre d’Histoire, em 2004. Joana d’Arc: uma biografia apresenta muito mais que a história de Joana, é, em referência aos termos utilizados por Beaune, “Joana além de Joana”.

Estamos acostumados com a Joana d’Arc do universo mítico, um personagem real que foi apropriado pela ficção e representado a partir do fantástico, do maravilhoso, do extraordinário. Colette Beaune retira Joana da névoa do fantástico e a insere em seu contexto. Assim, a heroína francesa é tratada como um personagem histórico e serve como fio condutor para discussões sobre guerra, política, cultura e sociedade na Idade Média.

Partindo dos processos de condenação, que sentenciou Joana à fogueira por heresia, em 1431, e de anulação, que a reabilitou em 1456, Beaune discute aspectos da vida de Joana. A investigação também utiliza outros documentos, tais como crônicas, cartas e demais informações relacionadas à Donzela.

O texto de Beaune apresenta Joana e problematiza as características de suas várias representações. Assim como qualquer indivíduo, Joana d’Arc é um personagem multifacetado e a escolha de quais elementos são evidenciados por aqueles que a retratam, nos informam tanto sobre Joana quanto sobre os que a representam.

Sua origem obscura, no vilarejo de Domrémy, por exemplo, pode ser entendida a partir da comparação com a vida de Cristo e, de forma mais genérica, com a trajetória dos heróis. O modelo de vida heroica é compartilhado por figuras como Cristo, Ulisses, Davi e serviu de base para a construção da imagem de Joana como heroína da França.

Sua juventude em Domrémy também é cheia de misticismo e fantasia, e colocam Joana como um ser único, mágico. Beaune, entretanto, apresenta as práticas de uma sociedade rural e as insere em um conjunto mais amplo. Bem como, expõe as formas como os processos de condenação e de reabilitação se utilizaram dos ritos e práticas populares para defender posições diametralmente opostas. Grande parte dos elementos que constituíram o argumento de sua condenação foram refutados e utilizados em sua defesa.

Não foram apenas os contemporâneos de Joana que disputaram sua imagem, historiadores do século XIX e XX apresentaram diferentes opiniões sobre Joana. Letrada ou iletrada? A heroína da França teria sido uma jovem iletrada, que recebia suas ordens através de vozes divinas ou teve acesso à educação em algum momento de sua curta vida?

As vozes de Joana não escapam da perscrutação de Beaune. Um dos elementos brilhantemente explorados pelo cinema e pela literatura, a questão da inspiração divina, é abordado por Colette a partir da tradição de profetisas que surgiam em tempos de crise, anunciando a palavra de Deus. A jovem donzela de Domrémy não foi a primeira nem a última, certamente, a levar revelações divinas aos homens.

Se por um lado, Joana foi mais uma das profetisas medievais, por outro lado, suas revelações e sua participação tiveram um caráter único e extraordinário: a capacidade de mobilizar e sensibilizar a população francesa, tão desgastada pela longa guerra contra a Inglaterra.

A participação de Joana no levante do cerco de Orléans juntamente com a sagração de Carlos VII em Reims foram os pontos máximos de sua participação no conflito. Mas que de forma se deu essa participação? Joana empunhou a espada, conduziu as tropas como chefe de guerra ou apenas levantou seu estandarte como símbolo e motivação aos combatentes? Colette Beaune não se limita a discutir o papel de Joana na Guerra dos Cem Anos, a questão enunciada é mais profunda e abrangente: a guerra pode ter um rosto de mulher?

E, essa mulher em específico, inserida em uma sociedade que estava agitada por complexas disputas políticas internas e externas, atuava de forma independente? Era motivada pelo testemunho dos sofrimentos dos franceses ao longo de uma guerra sem fim ou estava agindo de acordo com um alinhamento político forjado por relações familiares e alianças políticas?

Essas problematizações de Beaune tornam o livro, além de uma brilhante biografia, uma fonte de inspirações para a pesquisa sobre o período medieval. E, para além da Idade Média, instiga a curiosidade sobre as diversas apropriações que a imagem de Joana d’Arc sofreu ao longo do tempo.

Não é sem motivos que Joana se tornou um símbolo reivindicado por diversos grupos: a insuficiência de informações registradas nos impede de uma aproximação do personagem histórico, ao mesmo tempo permite que sua imagem seja montada e reconstruída das mais diversas formas.

Em Joana d’Arc: uma biografia Colette Beaune resgata essas múltiplas facetas da Donzela para apresentar a sociedade francesa, seus valores, seus anseios e preocupações; a guerra e a política que influenciaram e foram influenciadas por Joana; o martírio de uma jovem que coroou seu rei e foi reverenciada como heroína e, poucos anos depois, queimou na fogueira inglória, acusada de heresia.

O livro de Colette Beaune é uma obra fundamental para a compreensão de Joana d’Arc como personagem histórico e é extremamente relevante para o entendimento de vários aspectos da sociedade medieval. A linguagem de fácil compreensão é acompanhada por referências bibliográficas extremamente ricas, o que o torna uma aquisição fundamental para a biblioteca de pesquisadores e de não pesquisadores.

Paula dos Santos Flores – Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: paulaflrs@gmail.com


BAUNE, Colette. Joana d’Arc: Uma Biografia. São Paulo: Globo, 2006. Resenha de: FLORES, Paula dos Santos Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 159- 162, 2017. Acessar publicação original [DR]

Pequeno dicionário de grandes personagens históricos | Karl Schurster e José Maria Gomes Souza Neto

Embora a datação convencional do Iluminismo se inicie com o final da Revolução Gloriosa e o início da Revolução Francesa, esta periodização não deve ser tomada de maneira rígida. O eixo é sempre um pouco antes e um pouco depois de 1750, estando, certamente, articulado em suas origens, à Revolução Científica do século XVII. Já o seu final pode ser visto entre a crise revolucionária e o fortalecimento do pensamento romântico (FONTANA, 1998; FALCON, 1997). Talvez fosse mais prudente se preferir falar em iluminismos no plural, ao invés de tê-lo como um movimento unificado. Segundo Kant, em seu ensaio: O que é o iluminismo, este seria “a libertação do homem de sua auto-imposta custódia”. Custódia para Kant era: “a inabilidade do homem para fazer uso de seu entendimento sem a direção de outrem” (CHENG, 2012, p.30). Kant se opunha, nesse sentido, à tutela estabelecida pela tradição por um lado e pela religião por outro. Em suma, a definição de Kant para a ilustração é a saída da minoridade, o caminho para servir-se de sua própria razão. (FONTANA, 1998)

Um dos mais importantes historiadores do iluminismo, Robert Darton, menciona que o antigo regime é posto contra a parede no século XVIII. Mas, antes mesmo de termos a Revolução Francesa – já se carregava muito de suas reflexões teóricas e de seus desdobramentos políticos. Assim sendo, palavras como razão, natureza, liberdade, felicidade e progresso davam sentido a um novo movimento intelectual, o das Luzes (DARTON, 2001). Influenciados pela revolução científica, os pensadores Iluministas, similarmente ao que aconteceu entre os filósofos pré-socráticos, os socráticos e sofistas, direcionaram a razão como elemento de compreensão do homem em sociedade. A própria noção de filósofo sofre uma mudança semântica, na qual os do iluminismo se põem numa posição de críticos e reformadores de sua sociedade. Embora a religião não seja de todo abandonada, os filósofos do iluminismo assumem uma posição mais secular, na qual o universo religioso desempenha papel secundário (CHENG, 2012).

Havia a concepção de uma natureza humana universal. Uma das preocupações dos historiadores iluministas era explicar os eventos históricos em termos da ação humana e não divina; conferir o verbete Voltaire, p.303-310. O iluminismo deu origem a uma forma de investigação histórica: desenvolveu a noção de que o presente era um momento de peso excepcional na História Mundial. A noção de que aquela época havia transcendido a período greco-romano, tão importante para os renascentistas. A História Clássica ainda era venerada, mas agora, a Europa moderna requeria graus de autonomia cultural. A História possuía uma função social para os iluministas e, geralmente, suas abordagens do passado serviam para condenar e para reafirmar a sua crença no progresso da humanidade. Assim, a abordagem era centrada no homem, padrões e crenças de sua própria época. A leitura do passado tinha como intenção promover a virtude provendo exemplos morais que deveriam ser imitados ou evitados (BENTLEY, 1997).

A leitura de um dicionário e, pode-se imaginar, todo o processo de sua confecção acaba por inspirar a essa já longa digressão sobre algumas das bases epistemológicas nas quais reside nosso impulso sistematizador do conhecimento. As fronteiras da razão humana a partir de então pareciam ilimitadas, a partir das quais os limites do progresso humano seriam incalculáveis. É nesse clima que a publicação da Enciclopédia (Encyclopedie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, 1751-1771 – Diderot e D’Alembert) se tornava uma sinédoque daquilo que se configurava, num sentido mais amplo, o próprio movimento iluminista. Entre 1751 e 1771 dezessete volumes foram organizados, nos quais estavam compilados todos os conhecimentos modernos de A até Z (DARTON, 2001).

No Pequeno dicionário de grandes personagens históricos, organizado pelos professores da Universidade de Pernambuco (UPE): José Maria Gomes de Souza Neto, Kalina Vanderlei Silva e Karl Schurster, após mais de duzentos anos do iluminismo, revisita-se, em quase quinhentas páginas, o impulso de se dedicar à sistematização do conhecimento. Neste caso, dedicado às trajetórias histórico-biográficas de personagens que tiveram papel significativo no desenrolar dos acontecimentos de seus próprios tempos e, muitas vezes, muito além da efeméride de sua própria vida. Numa empreitada como essa, torna-se quase inevitável a avaliação da relação entre trajetória biográfica e vetores de transformação socioculturais, como Karl Schurster e Leandro Couto Carreira Rincon fizeram na introdução, p.XXI-XXIII.

Em que medida o tempo de uma vida é importante para deixar marcas, por vezes indeléveis, no tecido da história? Um dos mais representativos historiadores do século XIX, Jacob Burckhardt, cuja concepção de história contrastava profundamente com o mainstream da historiografia de sua época, concedia pouco relevo aos personagens como reais agentes da transformação sociocultural, para o historiador suíço, os atores históricos eram não muito mais do que elementos representativos de uma época. Ainda que fosse assim, Burckhardt considerava uma espécie de relação entre o indivíduo e a comunidade e que um grande homem pode romper as forças estáticas que mantém a coesão cultural. São estes homens que emprestam movimento à dinâmica da História contra formas antiquadas de existência. Qual a importância de Michelangelo e Rubens para a arte do Renascimento, qual a relevância de Péricles e Alcibíades para os desdobramentos políticos da segunda metade do século V a.C.? A reposta está mais nas bases epistêmicas do conhecimento produzido por Burckhardt, pois o ponto de inflexão não era a trajetória desses homens, tornados já discurso pela própria narrativa de um Tucídides ou de um Giorgio Vasari, mas sim dos nexos mais profundos entre a cultura, o estado e a religião (MURRAY, 1998).

Os jogos de escala e propostas metodológicas da Micro-História italiana de Edoardo Grendi, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi e, em certo sentido, os estudos seminais de Edward P. Thompson, nos levam a outra forma de História Cultural que toma personagens pouco ou nada conhecidos e suas trajetórias como ponto de partida para descortinar elementos mais profundos das comunidades em que esses indivíduos estavam inseridos. Era a inversão qualitativa da história dos grandes processos e transformações para uma compreensão mais capilar das mudanças sociais que, talvez, a história de lentes mais abertas não conseguia capturar (LIMA, 2006). E como esse novo dicionário, esse ainda epíteto de uma idade da razão se coloca após pelo menos duzentos anos de crítica e reflexão dentro da Historiografia?

Do ponto de vista da organização, o Pequeno Dicionário está organizado em seis partes, a saber: Parte I – Exploradores do infinito; Parte II – Cometas e seu brilho: os líderes políticos; Parte III – Pontes com o divino; Parte IV – Os demiurgos; Parte V – Heróis da resistência; Parte VI – Senhores da guerra. Dentro de cada uma dessas partes foram inseridos os verbetes. No total, o Pequeno Dicionário conta com oitenta deles. Cada uma dessas entradas é acompanhada ainda de um subtítulo explicativo adscrito e um epíteto de cunho metafórico, por exemplo, Homero: Poeta grego século VIII a.C. – O educador da Hélade; Martinho Lutero: Teólogo alemão, 1483-1546 – O reformador; Átila: Chefe huno, c.400-454 – O flagelo de Deus, e assim por diante. Cada um dos verbetes, em suas respectivas páginas vem acompanhados de uma ilustração que faz menção a de cada uma das personagens, geralmente por meio de um busto. Este elemento reforça o caráter juvenil do Pequeno Dicionário, tornando-o mais leve para a leitura. Essa mesma função é feita pela janela curiosidades, que surge sempre ao final dos verbetes, com um fato pitoresco ou complementar sobre a trajetória ou sobre o contexto da época de cada personagem.

Como o seu próprio título indica, trata-se de um pequeno dicionário, e dizer que ao invés de Homero poderiam ter escolhido Heródoto, Jung ao invés de Freud ou ainda Ella Fitzgerald no lugar de Billie Holiday seria uma chateação indesculpável deste ou de qualquer outro leitor. O melhor a se fazer é deixar se levar na forma leve em que as linhas de vida são perfiladas no Pequeno Dicionário.

Já tendo me estendido em demasia sobre o iluminismo no início deste comentário não retornarei a essa temática dentro dos verbetes, mas sim, por meio de dois outros para tentar mostrar um pouco dos encaminhamentos dados pelos autores, seja quanto às suas formas ou conteúdos.

O verbete sobre o dramaturgo e cidadão ateniense Sófocles (p.228-234), um dos maiores nomes do teatro grego antigo, é iniciado com uma afirmação categórica de Aristóteles em sua Poética; a que punha Édipo Rei, tragédia encenada por volta de 427 a.C., como a mais perfeita obra deste gênero teatral. E é desta forma que os autores tentam explicar a obra de Sófocles, por meio da leitura de Aristóteles. O terror e a piedade, elementos da kathársis convergem numa estética da recepção característica dos helenos, que acentua o fenômeno de purificação, tida pelo filósofo como uma das funções da tragédia Ática. De uma leve guinada, estamos tomando conhecimento da vida não apenas de Sófocles, mas também de outros dramaturgos gregos e de seus próprios contextos criativos, suas lutas nas batalhas intermináveis da Guerra do Peloponeso e disputas simbólicas, no Teatro de Dioniso, na Atenas do século V a.C.

Mais adiante, é possível deter o seu tempo em muitos outros verbetes, mas por que não entender um pouco sobre uma das figuras mais celebradas, mal compreendidas e apropriadas pela cultura popular, o samurai lendário Miyamoto Musashi (p.431-435). Após brandirem suas espadas em uma enorme batalha, o clã Tokugawa iniciou um período de governo centralizador e rígido, que só seria encerrado com a transição e processo de ocidentalização do Japão na era Meiji. Entremeios, surgia a figura de Musashi, misto de ronin e filósofo de sua arte com a katana. De livro tornado célebre por Eiji Yoshikawa a releituras da figura do samurai feitas por cineastas japoneses como Akira Kurosawa, Takeshi Kitano, Yoji Iamada, Hiroshi Inagaki e Takashi Miike, podese ter um lampejo de como a figura do samurai se tornou não apenas um elemento cultural japonês. Tornado ainda mais acessível na prática do Akidô, mas cultuado mundialmente, figura do imaginário, às vezes bastante romantizado, em torno desses homens da guerra e de seus códigos de conduta e honra absolutamente inflexíveis.

Uma das poucas ressalvas que se pode fazer ao Pequeno Dicionário são atinentes à forma. Em se tratando de uma obra de projeto gráfico-editorial bastante moderno, poder-se-ia investir em indicações bibliográficas dentro de cada um dos verbetes, ainda que apenas uma ou duas referências fundamentais, isto faria a pesquisa mais dinâmica e intuitiva. Outro elemento que pode ser mencionado é quanto à taxonomia utilizada para traçar uma divisão entre as personagens do dicionário. Creio que há um nível significativo de interseção entre os líderes políticos e os senhores da guerra, por exemplo. É claro que sempre há algo de arbitrário nas escolhas e as classificações, que quase nunca são perfeitas. No limite, é apenas uma ênfase na abordagem que poderia alocar Adolf Hitler em líderes políticos e não em senhores da guerra. Na verdade, a notória e nefasta personagem do século XX faria justiça a essa “dupla-inserção”.

O interesse pela obra, pelo ser humano, pelo tempo. Qual o significado de uma vida? Qual o padrão de julgamento que os historiadores podem utilizar para fazer esse tipo de avaliação? Quiçá, chegue-se à conclusão transitória de que vida é compreendida de sentidos, geralmente expressos por uma narrativa mais ou menos coerente e orientada em torno da qual reside um projeto. Se no relato autobiográfico, como disse Pierre Bourdieu, há a busca de se “tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva”, há o risco de se mergulhar numa espécie de ilusão retórica. Se na análise do historiador as ilusões de um percurso autobiográfico podem ser desfeitas, desveladas, então qual a natureza da narrativa que se poderia criar para as grandes personagens? Em que nível a memória, a análise histórica, o viés metodológico e as orientações teóricas desaguam num texto inteligível em relação à constância nominal, ao indivíduo cujo nome próprio assegura a existência dessa personalidade no devir temporal? (BOURDIEU, 1996 p. 183-191).

Essas são perguntas muito caras aos historiadores e qualquer resposta demandaria muito mais espaço do que se poderia dispor nesse trabalho cujas pretensões são declaradamente limitadas. Uma das melhores respostas, no entanto, foi dada por um sociólogo. Ao tratar da vida de Wolfgang Amadeus Mozart, Norbert Elias em nenhum momento mostra desprezo ou pormenoriza os fatos casuísticos da atribulada vida desse notável músico. Entretanto e, sem dúvida alguma, a sinfonia de Elias começa a ganhar corpo aos ouvidos dos historiadores quando se mostra interessado em como “Mozart só emerge claramente como um ser humano quando seus desejos são considerados no contexto de seu tempo” (ELIAS, 1994, p. 15). Porque, segundo o sociólogo, as realizações e os fracassos de Mozart surgem em um contexto em que a dinâmica entre os conflitos de padrões de classe são cruciais para o entendimento da vida do músico, em talvez entendê-lo como um “burguês outsider a serviço da corte” (ELIAS, 1994, p. 16). Assim, Elias afirma que: “É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo [… e do] modelo das estruturas sociais da época, especialmente quando levam a diferenças de poder” (ELIAS, 1994, p. 18-19).

Por fim, creio que o leitor terá em mãos, no Pequeno dicionário de grandes personagens históricos um notável exemplo desse esforço, a saber: de não se perder na ilusão e nos gracejos vazios do pitoresco e do riso fácil, como em uma deliciosa comédia de costumes de Martins Penna, e de tentar dar conta dessas mudanças das estruturas sociais, do habitus, que condicionam as ações e reações dessas personagens nos mais diferentes contextos sociais em que viveram (BOURDIEU, 2009).

A obra em questão que atenderá a um amplo público, especialmente alunos de ensino médio, dos primeiros períodos de graduação e ao público leitor em geral. Representa esse esforço iluminista e convida a todos a mergulhar nas trajetórias e em tempos pretéritos. Assim, se pode ir muito além de ler o verbete como um fim em si, mas utilizá-lo como a possibilidade de ser uma janela para novas pesquisas, para a possibilidade de deixar a história orientar a vida, de se ampliar como ser humano e, a cada vez que se cruzar esse rio ter a sensação da renovação, de viver em um mundo mais consciente da sua existência pela do outro. (RÜSEN, 2001)

Referências

BENTLEY, Michael. Introduction: Approaches to modernity: Western historiography since the enlightenment. In: __________. (Ed.) A Companion to Historiography. London: Routledge, 1997.

BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009. (O original é de 1980).

__________. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M. e AMADO, J. (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 1998.

CHENG, Eileen Ka-May. Historiography: An introductory Guide. London: Continuum, 2012, p.29-

DARTON, Robert. A eclosão das Luzes. In: __________ e DUHAMEL, Olivier. (Orgs.) Democracia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, p. 21-36.

FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 61-89.

FONTANA, Josep. História: Análise do passado e projeto social. Bauru: EDUSC, 1998.

LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escala, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UNB, 2001. Vol. I

Guilherme Gomes Moerbeck – Professor adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da ESDI/UERJ Pós-doutorando do LABECA/MAE-USP. E-mail: gmoerbeck@yahoo.com.br


SCHURSTER, Karl; SOUZA NETO, José Maria Gomes de; SILVA, Kalina Vanderlei (Orgs.). Pequeno dicionário de grandes personagens históricos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. Resenha de: MOERBECK, Guilherme Gomes. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 163- 170, 2017. Acessar publicação original [DR]

O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330) | Alain Boureau

Conspirações, redes de heréticos ameaçando a cristandade, demônios dotados de poder e prontos a se fundir com os humanos. Esse é o pano de fundo no qual se desenrola a construção de uma ciência dos demônios, a demonologia, entre o fim do século XIII e início do XIV. O argumento é que essa construção ocorreu no âmbito escolástico. Em síntese é assim que se pode resumir o livro Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330), de Alain Boureau.1 O livro foi publicado originalmente em 2004, na França, sob o título Satan héretique: Naissance de la démonologie dans l’Occident médiéval (1280-1330). A tradução, no entanto, é recente: em 2016, por Igor Salomão Teixeira2, na coleção Estudos Medievais, da Editora da UNICAMP. Esse é primeiro livro de Alain Boureau publicado no Brasil.

Partindo de pressupostos da história intelectual, na relação texto/contexto, Boureau desenvolve o argumento que o nascimento da demonologia ganhou força a partir do final do século XIII e nas primeiras décadas do século XIV junto aos debates escolásticos nas universidades. Demonologia essa que o autor defende ser “(…) a gênese da obsessão demoníaca (…) plenamente provida de procedimentos e de certezas por volta de 1430-1450 (…)” (BOUREAU, 2016: 19) que dá início à “caça às bruxas”. Ao longo dos sete capítulos do livro é discutido como o demônio emergiu fortalecido e capaz de ameaçar a Cristandade. O diabo, e seus poderes sobre os homens, estava cada vez mais presente nas discussões de teólogos e canonistas naquele período. Nessas considerações é possível perceber o que o autor chama de “antropologia escolástica”. A antropologia escolástica seria o entendimento de novas formas para se pensar os homens (sua natureza, sua origem) e que tem este nome de “escolástica” por ser marcadamente oriunda do âmbito universitário europeu entre 1150-1350. O “homem” teria passado a ser, segundo Boureau, o objeto privilegiado nos debates intelectuais universitários (TEIXEIRA, 2014: 3)3.

Essa “antropologia” atuou de forma decisiva na emergência de uma obsessão pelo demônio no cristianismo medieval, entre 1280 e 1330, ao se preocupar com a relação do humano com o sobrenatural e com o mundo natural. Influenciada por reflexões naturalistas e escolásticas, essa antropologia trouxe à tona um sujeito multifacetado mais propenso às ações do sobrenatural (tanto em relação às investidas de deus e suas criaturas benéficas quanto às dos demônios):

A antropologia escolástica, explorando os limites da ação e da consciência, tinha descrito as zonas de vazio e de fragilidade da personalidade humana. Ora, a sobrenatureza, longe de ter horror ao vazio humano, parecia encontrar acolhida exatamente aí. (BOUREAU, 2016: 201)

Na gênese dessa demonologia, estava presente o embate entre duas “antropologias” no âmbito escolástico. De um lado havia uma “antropologia tomista”, oriunda dos escritos de Tomás de Aquino, teólogo da Ordem dos Pregadores (OP). De outro, uma “antropologia neoagostiniana”, oriunda principalmente dos escritos de Pedro de João Olívio, teólogo da Ordem dos Frades Menores (OFM). Segundo Boureau, para Tomás de Aquino os poderes de Satã estavam confinados à manipulação do mundo natural e não tinham efeitos sobrenaturais em relação aos homens. Diferentemente, na concepção de Pedro de João Olívio, Satã era dotado de poderes sobrenaturais, sendo capaz de atuar sobre os homens.

Tomás de Aquino desenvolve sua “antropologia” na relação entre o humano e o sobrenatural em diversos tratados teológicos. O principal desses é De malo (“Sobre o mal”), redigido por volta de 1272, durante a segunda regência de Tomás em Paris. No De malo o teólogo discute a natureza dos demônios e as circunstâncias de sua queda. Além disso, Tomás se preocupa com as capacidades dos demônios após sua queda e os seus poderes sobre os homens. Nisso, os demônios são descritos como seres sem muita vivacidade, limitados na sua ação ao mundo natural. Sua incapacidade de atuar sobre os humanos de forma sobrenatural deve-se ao uso, por Tomás, de uma psicologia aristotélica. Nessa, é defendida a unidade do sujeito, com o humano composto de uma forma, dada pela alma intelectiva, e uma matéria, isto é um corpo. Portanto, para Boureau, na concepção tomista, a pessoa é vista como substância individualizada da natureza racional. Esta forma de “antropologia” é definida por Boreau como um “‘individualismo substancial’” (BOREAU, 2016: 223). O homem, então teria uma personalidade una, selada por Deus, fazendo com que possuísse uma forma substancial única. Por isso, a alienação de alguma faculdade diminui o poder espiritual e cognitivo do homem. Ou seja, a possessão anularia qualquer possibilidade de ação do sujeito.

Oposta a essa “antropologia tomista” há uma “antropologia neoagostiniana”. Nessa, Pedro de João Olívio apresenta em sua Suma sobre as Sentenças, de Pedro Lombardo, os demônios dotados de possibilidades de atuar sobrenaturalmente em relação aos homens. Neste texto Pedro Olívio ataca os pressupostos lançados por Tomás no De malo. Para o frade Menor o demônio possuía uma capacidade real de ameaçar o homem pelas suas capacidades sobrenaturais. A capacidade que o demônio tem de atuar sobre os humanos deve-se ao uso, pelo franciscano, de uma psicologia agostiniana. Essa é marcada por uma teoria pluralista na qual o sujeito possui uma estrutura federativa ou confederativa, sendo composto de diversos estratos. Além disso, a alma é concebida com certa autonomia sobre o corpo, tendo lugar no interior do indivíduo o confronto entre o divino e o mal. Nisso o homem possuiria, portanto, uma forma substancial múltipla na qual convivem diversas personalidades. O que gesta uma “antropologia” marcada pela ideia de “‘individualismo acidental’” (BOREAU, 2016: 223). Boureau complementa: Com o homem dotado de passividade e descontinuidade na sua pessoa é possível inferir que a sua alma coabitasse tanto com o divino quanto com os decaídos. O demônio, portanto, figura como uma extensão da personalidade de alguns homens. É esse limite cognitivo e espiritual que abre a possibilidade da possessão.

Segundo Boureau esses embates teológicos gestaram a demonologia no âmbito escolástico. Sendo que “(…) a oposição entre Tomás de Aquino e Pedro Olívio nos mostra os contornos da nova cartografia demonológica.” (BOREAU, 2016: 118). É, portanto, principalmente, a partir das considerações desses dois teólogos que se desenvolvem os argumentos de uma demonologia escolástica.

Para pensar como essas considerações, do final do século XIII, são recebidas nas duas primeiras décadas do século XIV, o autor parte das atas de processos de canonização para “(…) encontrar um eco das novas preocupações demonológicas que dominam o início do século XIV e (…) marcam a ação dos papas Clemente V e João XXII.” (BOREAU, 2016: 146). Nesses processos o autor identifica uma relação próxima entre o louco e o possesso. De um pontificado ao outro, casos semelhantes, que antes eram tratados como cura da loucura, passam a ser cada vez mais considerados como exorcismo de demônios.

Nos processos iniciados pelo pontífice Clemente V, como o de Tomás de Cantilupe (1307-1320) e de Luís de Anjou (1308-1317), Boureau identifica a presença de cura de casos de loucura. Porém, nenhum de possessão demoníaca. Essa situação muda durante o pontificado de João XXII com relatos de combate contra o demônio em inquéritos de canonização de santos como Tomás de Aquino (1319-1323). Outro caso, desse mesmo pontificado é o de Nicolau de Tolentino (1325-1446), com diversos casos de possessão e exorcismo, além de fraca presença de casos de loucura nas atas do inquérito, é descrita a luta do santo contra demônios.

Esse último caso, o de Nicolau, é interessante já que leva 121 anos para a finalização do processo. Boureau argumenta que isso se deve, principalmente, à prudência da cúria quanto às canonizações de santos muito envolvidos no combate aos demônios. Além disso, argumenta que, apesar das virtudes eclesiológicas de um santo, naquele período no qual ainda estava se consolidando uma demonologia, poderia levar os leigos a perigosos diálogos. Para o autor, essa mudança ocorrida entre os dois pontificados estava relacionada aos problemas que João XXII enfrentou nas décadas de 1310, 1320 e 1330:as contendas em relação ao espirituais franciscanos, defensores ferrenhos da pobreza evangélica de Cristo e grandes críticos do papado de Avignon. De ambos os lados, tanto dos frades quanto do papado, partem acusações de envolvimento com o Satã. João XXII era considerado o Anticristo místico, proposto no comentário de Pedro de João Olívio. Segundo o franciscano, o anticristo estaria disfarçado de papa e desvirtuaria a Igreja, preocupado apenas com enriquecimento desta. Uma vez que João XXII foi um dos papas que mais enriqueceu a Igreja, durante o século XIV4, os espirituais acusavam-no de ser a encarnação e Satã. Por outro lado, estes frades eram acusados de envolvimento com o demônio, por armarem conspirações e eram considerados hereges que voltavam junto ao diabo para assombrar os fiéis. Sobre os espirituais choveram condenações de heresia, sendo seis deles queimados em 1318, e ordenada a destruição da obra de Olivi em 1326.

Portanto, essa demonologia, desenvolvida no âmbito escolástico, esteve muito associada às tentativas de deslegitimar adversários políticos e ao ataque aos poderes estabelecidos. É isso o que discute Alain Boureau no capítulo um do livro, quando demonstra como o desenvolvimento teológico de uma demonologia durante as últimas décadas do século XIII foi utilizado para dar base à associação entre magia, demônio e heresia. Segundo o autor, é principalmente durante o pontificado de João XXII, no início do século XIV, que se tem “(…) um novo desenvolvimento judiciário (…)” (BOUREAU, 2016: 24).

Nesse período, o conteúdo doutrinal acerca do pacto com o diabo recebeu uma nova abordagem, na qual foi valorizada a ação universal dos demônios. Ou seja, o diabo perdia a limitação de seu poder ao mundo natural, para ganhar novos poderes, capaz de agir sobrenaturalmente, ameaçando a cristandade. Nesse desenvolvimento judiciário, Boureau demonstra a importância da bula Super illius specula e da comissão sobre a magia, reunida pelo papa João XXII, em Avignon, em 1320. A bula, promulgada entre 1326 e 1327, foi, para o autor, o texto fundador da obsessão demonológica e do interesse do papa pela magia. Nela, João XXII incrimina práticas mágicas, como o uso de imagens e utensílios, que derivavam da adoração aos demônios por meio da associação entre a invocação destes com as aquelas práticas, sendo ambos referidos como dogma. Porém, a grande novidade da Super está no desenvolvimento de um novo conceito relacionado a construção processual deste pontificado. É nessa bula que o papa traz a noção de “feito herético” (factum hereticale), a partir do qual a heresia deixava de ser apenas matéria de opinião, passando a estar relacionada também à ação. Apesar da originalidade da bula ser passível de discussão, a questão do fato herético já figurava na consulta de 1320 sobre a magia. Nessa, a noção de fato herético estava presente nas questões propostas à comissão. Na consulta o papa perguntou a teólogos e canonistas se era possível associar práticas como o batismo de imagens e outras práticas mágicas à heresia, que, poderia ser considerada crime de lesa-majestade divina, punida com o máximo de rigor pela purificação por meio das chamas. Apesar dessa associação encontrar resistência nas respostas da maior parte dos teólogos chamados para a consulta, resoluções, como a do franciscano Henrique de Carretto, deram crédito à tese do fato herético.

A essa tese estavam associadas outras práticas jurídicas de João XXII. O uso da fama para determinar a qualidade das ações dos que estavam sendo acusados de heresia, a utilização do processo sumário nos casos de julgamento relacionados à invocação de demônios e o recurso a tribunais especiais do papado, para cuidar destes casos. Segundo Boureau, essas práticas demonstram não só a desconfiança de João XXII quanto a Inquisição, mas também que frente a ameaça dos demônios era necessário uma ação rápida e eficaz. Assim, o autor propõe que a forma de agir do papa demonstrava que “(…) em matéria de sortilégios, antes de reprimir, importava (…) reunir opiniões em relatórios complexos unindo a magia, a invocação de demônios e a heresia.” (BOUREAU, 2016: 53).

O livro Satã Herético não é uma leitura simples, fazendo-se difícil para iniciantes que ainda não tiveram contato com tema das ordens mendicantes e sua relação com as universidades. Boureau traz como subentendido que seu leitor deve ter alguma noção sobre o contexto do papado de Avignon, do âmbito universitário dos séculos XIII e XIV e do método escolástico. Apesar desses pontos, que podem dificultar a leitura, a forma como autor relaciona as discussões escolásticas com o fazer político dos jogos de poder no período é interessante, e importante em termos metodológicos. Pois, permite ao historiador, que deseja se debruçar sobre as questões políticas do período, montar o contexto linguístico, do qual parte o conteúdo dos vestígios aos quais se dedica.

Notas

1. Alain Boreau atualmente é diretor do Groupe d’Anthropologie Scolastique (GAS) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Também, atua como co-diretor das coleções Histoire e Bibliothèque scolastique da editora Les Belles-Lettres. Além de ser membro do comitê de redação da revista Penser/rever. Informações obtidas em: http://gas.ehess.fr/document.php?id=122

2. Igor Salomão Teixeira é professor de História Medieval no departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

3. TEIXEIRA, I. S. “Antropologia histórica e antropologia escolástica na obra de Alain Boureau”. In: Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre. Auxerre, França. Vol. 18, n. 1, 2014. pp. 1-13. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/103476 Último acesso em: 27 de abril de 2017.

4. Cf. LE GOFF, J.A Idade Média e o dinheiro: Ensaio de antropologia histórica. RJ: Civilização Brasileira, 2014. Para mais sobre o contexto do papado de João XXII e as disputas com os espirituais ver: AGAMBEN, G. Altíssima pobreza. SP: Boitempo, 2014; BÓRMIDA, J. (OFM Cap.). A não propriedade: uma proposta dos franciscanos do século XIV. Porto Alegre: Edições EST, 1997; BURR, D. “The Correctorium Controversy and the Origins of the Usus Pauper Controversy” In: Speculum. EUA: Medieval Academy of America, 1985, n. 60 (2). pp. 331-342; DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003; FLOOD, D. (OFM). “Poverty as Virtue, Poverty as Warning, and Peter of John Olivi” In: BOUREAU, A. e PIRON, S. (dirs.). Pierre de Jean Olivi (1248-1298): Pensée scolastique, dissidence spirituelle et société. France: Librairie Philosophique J. VRIN, 1999. pp. 157-173; NOLD, P. Pope John XXII and his Franciscan Cardinal: Bertrand de la Tour and the Apostolic Poverty Controversy. Oxford: Oxford University Press, 2003; e TEIXEIRA, I. S. Como se constrói um santo: A canonização de Tomás de Aquino. 1. ed. Curitiba: Prismas, 2014.

Luiz Otávio Carneiro Fleck – Mestrando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: lotaviocf@gmail.com


BOUREAU, Alain. Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Campinas: Editora da UNICAMP, 2016. Resenha de: FLECK, Luiz Otávio Carneiro. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 171- 177, 2017. Acessar publicação original [DR]

Mártires, confessores e virgens. O culto aos santos no Ocidente Medieval | Andréia Silva, C. L. Frazão da

Diferentes perspectivas, abordagens e aspectos da santidade na Idade Média

O livro é uma iniciativa de vários professores doutores ligados ao Programa de Estudos Medievais da UFRJ, organizado por Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva e Leila Rodrigues da Silva. Após o prefácio que apresenta a obra, escrito pelo Prof. Dr. Ronaldo Amaral da UFMS, seguem cinco capítulos, cada um com de cerca de 30 páginas, que abordam por diferentes perspectivas e recortes espaço-temporais a temática da santidade na Idade Média. Ainda estão inclusas as Referências, informações sobre a Documentação consultada, Sugestões de Leitura e dados sobre a trajetória intelectual dos Autores do livro.

O capítulo inicial do livro, “Mártires na Antiguidade e na Idade Média”, escrito por Valtair Afonso Miranda, tem como questão central o fenômeno histórico do martírio, pensando para quem os relatos foram produzidos e a que interesses atendiam com essas representações do sofrimento e da morte. Para dar conta desse questionamento, o autor analisou a tradição cristã do martírio em suas diferentes manifestações nas comunidades cristãs antigas e medievais.

Desde sua origem etimológica, afirmou Miranda, o “mártir” era tanto aquele que deveria ser lembrado quanto quem possuía o conhecimento de algo e poderia apresentar seu testemunho. Nesse sentido, um dos primeiros documentos do cristianismo a descrever a morte de um cristão foi o “Martírio de Policarpo”. Segundo o autor, o texto já apresentava o “mártir” como a própria testemunha que morria em grande sofrimento. Para o segundo século, o termo já indicava sofrimento e/ou a morte de alguém que era, especificamente, seguidor do movimento de Jesus.

Miranda retomou diversas referências anteriores ao martírio cristão para demonstrar que, tanto no judaísmo quanto no Império Romano, a imagem de morte por um ideal já estava bem consolidada. Associada a isso, a própria morte de Jesus foi uma referência essencial para a construção do conceito de martírio, motivado pelas expectativas messiânicas, que atrelavam o perdão da humanidade a uma morte dolorosa e violenta do salvador. Uma terceira referência foi construída pelo Apocalipse de João, que promoveu a ideia de martírio como etapa necessária para o Juízo Final. Dessa forma, um dos modos dos fieis participarem da instauração do reino messiânico era por meio da morte violenta. “As mortes cristãs, quando ritualizadas segundo o modelo do mártir, eram eficientes instrumentos de propaganda para o cristianismo numa sociedade que aprendera a respeitar quem sabia morrer” (p. 42).

Após o fim das perseguições aos cristãos, não eram mais encontradas essas formas de morrer em nome da crença. O autor ressaltou, então, os aspectos principais do martírio espiritual, que assumiu o lugar do sofrimento pela tortura e a morte violenta dos períodos anteriores. Esse martírio poderia ser qualquer situação de desconforto, inclusive físico, praticado de forma voluntária e que não levava a morte. Poderiam ser realizados em casas religiosas, dentro do matrimônio, em solidão ou no exílio. Os monges comumente passaram a ser vistos como os “novos heróis” do cristianismo. De modo geral, o “martírio espiritual” era um conceito fluído, que se adaptou para explicar situações diferentes de sofrimento.

Contudo, durante a Idade Média Central, por conta de uma nova onda de propagação de heresias, martírios – no sentido inicial da concepção cristã – voltam a ocorrer e novos mártires – como Tomás Becket e os cinco franciscanos mortos no Marrocos – rapidamente passam a ser cultuados com fervor. Em vista disso, Miranda afirmou, nas suas conclusões, que era de suma importância para a construção das novas comunidades religiosas definir quem era o seu herói. Isto era “um exercício de poder, poder esse que define limites identitários, esclarece alteridade, reforças práticas e crenças religiosas, gera papéis sociais, legitima governos, socializa visões de mundo” (p. 54).

No segundo capítulo “Monges e literatura hagiográfica no Início da Idade Média”, Leila Rodrigues da Silva desenvolveu sua análise com dois objetivos principais. No primeiro, tratou da História do monacato desde suas origens orientais até os seus desdobramentos nos reinos romano-germânicos, ou seja, a partir do século IV e com especial atenção aos séculos VI e VII. No segundo, a autora associou a apresentação da tipologia documental das hagiografias com a análise dos estudos de caso de monges de três regiões, a saber: Bento de Núrsia da Península Itálica, Frutuoso de Braga da Península Hispânica e Amando de Maastricht das Gálias. Os relatos hagiográficos dos três monges expressavam o anseio geral de cristianização dos seus períodos e manifestavam a importância da construção e multiplicação de comunidades monásticas para a efetivação destas ambições.

A respeito do monacato, Rodrigues da Silva apresentou as principais hipóteses produzidas sobre a motivação inicial para tal movimento ascético no contexto do Império Romano do Oriente. Essas proposições se resumiam na ideia de que para entender a complexidade do fenômeno era necessário considerar tanto o anacoretismo como uma atitude de protesto – seja em relação ao aspecto religioso ou político – quanto uma decisão pessoal e moral do asceta. As duas formas principais de monacato que se originaram nesse contexto, o eremitismo e o cenobitismo, chegaram ao Ocidente sem que houvesse descontinuidade em relação à sua motivação original. Além disso, se associaram às formas ascéticas já praticadas localmente. Entre os séculos IV e VII, o movimento monástico foi vinculado ao episcopado, que se preocupou com a produção de regras comunitárias, normativas conciliares e a expansão da cristianização com atuação de monges nas áreas rurais.

A segunda preocupação de Rodrigues da Silva estava pautada em como a experiência monástica se expressava nos textos hagiográficos, buscando comparativamente as semelhanças e as especificidades nos três contextos eleitos. O primeiro monge analisado, Bento de Núrsia, ficou conhecido pela perspectiva de seu hagiógrafo, Gregório Magno. Segundo a narrativa, Bento teria origem em família abastada, com acesso à educação em Roma. Sua experiência religiosa incluiu um período de isolamento, disputas com os demônios, destruição de ídolos, construção de doze mosteiros, produção de uma regra e preparação de outros monges – destacando nessas obras o papel das virtudes da obediência e da humildade. O segundo hagiografado, Frutuoso de Braga, foi apresentado por um anônimo. Seu narrador indicou uma intensa participação eclesiástica e política: ele teria produzido duas regras monásticas, participado de concílios, trocado correspondências com reis e bispos e assumido duas dioceses. O monge-bispo seria totalmente dedicado à vida monástica, valorizando suas características ascéticas orientais – como o desejo pela peregrinação e a necessidade de isolamento -, fundando novas casas e promovendo o monacato de modo geral. O terceiro e último monge anunciado por uma hagiografia, Amando de Maastricht, foi relatado anonimamente. Além dessa narrativa, esteve referenciado em cartas trocadas com Martinho I, bispo de Roma. Após um período de isolamento ascético de quinze anos, sua característica monástica mais marcante foi a atividade missionária desempenhada em diversas regiões dos reinos merovíngios. Também foi sagrado bispo por sua associação com a monarquia e o episcopado local.

A autora concluiu que, comparativamente, o monacato ocidental visto a partir das narrativas hagiográficas dos reinos romano-germânicos não configurou uma contestação veemente à instituição eclesiástica. A perspectiva eremítica marcou a trajetória inicial dos monges destacados da hierarquia eclesiástica, se concretizando como um “ideal desejado”.

Passando ao terceiro capítulo “Santos e episcopado na Península Ibérica”, Paulo Duarte Silva partiu das proposições historiográficas de Peter Brown, que superou a dicotomia estabelecida sobre as documentações hagiográficas – reforçando ou rejeitando a santidade dos protagonistas – e permitiu o estudo do contato dos “eclesiásticos seculares” com outros grupos religiosos. Segundo Duarte Silva, estudiosos recentes contestaram as fronteiras entre os cuidados episcopais e o pretenso isolamento monástico. O episcopado se desenvolveu como função eclesiástica, desde o século I até as mudanças na organização e na estrutura promovidas pela aproximação do Império Romano e a ecclesia. Do ponto de vista Ocidental, o autor chamou atenção de que gradualmente as aspirações aristocráticas aos cargos eclesiásticos se aprofundaram, sendo acompanhadas pelo interesse de adesão ao monasticismo. Na Alta Idade Média, predominava o monacato beneditino. Como consequência, a partir dos séculos X e XII, consolidaram-se as ordens beneditinas de Cluny e Cister. Para a Idade Média Central surgiram novas demandas de religiosidade, que deram grande destaque às ordens mendicantes – de franciscanos e dominicanos.

Duarte Silva teve por objetivo analisar as relações entre o cursus episcopal e as ordens religiosas de bispos-santos cristãos. Partindo do recorte temporal da Alta Idade Média até a Idade Média Central, dedicou-se a análise de bispos e cônegos, especificamente que tivessem atuado na Península Ibérica. Para viabilizar a comparação, o especialista estabeleceu eixos de análise como: a trajetória institucional na fundação de mosteiros e conventos, a participação de concílios e as relações assumidas com as autoridades monárquicas. Para tanto, elegeu oito figuras de bispos considerados santos e dentro dessas especificações: Martinho de Braga (520-580); Isidoro de Sevilha (560-636); Rosendo de Celanova (907-977); Ato de Oda/Valpuesta (m. 1044); Olegário de Tarragona (1060-1137); Bernardo Calvo (1180-1243); Agno de Saragoça (1190-1260), e; Berengário de Peralta (1200-1256).

O terceiro capítulo apresentou como conclusão que, desde a Alta Idade Média, a grandiosidade dedicada à memória dos clérigos oriundos do monacato demonstrou o interesse eclesiástico em organizar, adequar e submeter a vida monástica às decisões episcopais e conciliares. Nesse sentido, surgiram novas possibilidades de consagração pública, promovendo e organizando a santidade ibérica. Com o passar dos séculos foi possível observar um processo de expansão do modelo monástico beneditino, a partir do Norte da Península Ibérica em detrimento da tradição visigótica. Gradativamente, a santidade também foi atribuída a bispos relacionados aos cônegos e aos mendicantes. Em suma, Duarte Silva afirmou que as trajetórias dos bispos santos peninsulares possuíam diversos eixos de continuidade – origem nobiliárquica, estadia em mosteiros ou em conventos, apoio das monarquias e participação dos personagens em concílios – enquanto simultaneamente era permeado por características de ruptura. Ou seja, “a santidade é histórica, e por isso, embora admita elementos comuns, deve der associada a diferentes contextos políticos e religiosos” (p. 113).

Em “As ordens mendicantes e a santidade na Idade Média”, o quarto capítulo do livro, a autora Carolina Coelho Fortes traça a relação entre os fenômenos da santidade e do surgimento das ordens mendicantes, surgidas a partir do século XIII. Para isso, o capítulo foi dividido em cinco partes: a santidade no Medievo, surgimento e formação das ordens mendicantes, a santidade mendicante, Francisco de Assis e Domingo de Gusmão.

Na primeira parte, de maneira muito densa e completa, foi apontado o que era necessário para ser considerado santo na Idade Média e quais os perfis de pessoas cultuadas conforme o Medievo avançava. Assim, embora as hagiografias apontassem que seria impossível tornar-se santo – porque a santidade começava a se manifestar desde a mais tenra idade e continuamente ao longo da vida e após a morte – a autora demonstrou o contrário. Ela destacou que é possível considerar as múltiplas dimensões da temática e abordá-la nas perspectivas espiritual, teológica, religiosa, social, institucional e política. A visibilidade, a materialidade, a corporeidade, o serviço prestado à comunidade, os sacríficos, dores e renúncias, o combate ao mal, os milagres e a esperança de redenção trazida para a comunidade, tudo isso está na lista de topoi hagiográficos que ao mesmo tempo promovia a difusão e o reconhecimento (eclesiástico ou não) da santidade, segundo Fortes. E por isso, a santidade deveria ser entendida como “uma construção social, um ideal que se desenvolveu historicamente” porque “tipos diferentes de pessoas eram percebidos como santos pelas comunidades cristãs durante períodos distintos” (p. 102).

Ainda na Antiguidade, o primeiro tipo teria sido composto por mártires e, sem que seu culto fosse eclipsado pelos modelos posteriores, durante a Idade Média juntaram-se a eles: os bispos, os ascetas, os nobres que conseguiam altos cargos na hierarquia eclesiástica, os leigos nas cidades, os mendicantes, os penitentes, a Virgem Maria e, finalmente, os leigos. A autora fez considerações que relacionam os elementos da tipologia já descrita com os diferentes contextos históricos – da Antiguidade Tardia até a fins do Medievo, passando pela Alta Idade Média e Idade Média Central – ou seja, uma duração de aproximadamente 1000 anos. Neste interim, Fortes destacou o impacto da criação dos processos de canonização, no século XIII, no controle da santidade pelo papado, bem como isto contribuiu para a “humanização” ou “popularização” da santidade. Este último fator fez das personagens santas cada vez mais conhecidas, familiares e inspiradoras de uma devoção mais afetuosa do que referencial (p. 125).

Ao tratar das ordens mendicantes, a autora fez uma síntese de como as transformações ocorridas no Ocidente, desde o século XI, possibilitaram o seu surgimento. E então, o texto abordou alguns pontos entrecruzados a este respeito principalmente da Ordem dos Frades Menores – franciscanos – e da Ordem dos Pregadores – dominicanos, a saber: como normatizar as ordens mendicantes foi útil para a consolidação da cúria papal; como franciscanos e dominicanos lidaram com o delicado e controverso voto de pobreza; como a produção hagiográfica sobre Francisco de Assis e Domingos de Gusmão promoveu ao mesmo tempo o culto destes fundadores, a institucionalização de ambas as ordens e estabilizou as relações das mesmas com Roma, além de criar modelos de frades e freiras a serem seguidos. As diferenças entre as duas ordens também ficam claras porque a autora as apresentou comparativamente. Embora a pobreza, a pregação, a obediência, os estudos, a presença de leigos e de clérigos nos quadros das ordens e o combate aos inimigos da fé fossem questões importantes para ambas, a ênfase dada a cada uma destas temáticas foi bem distinta e pautada pelos objetivos dos fundadores – e dos seus sucessores – e os ambientes onde cada uma delas atuava.

Nas partes que se seguem do capítulo, Fortes analisou e demonstrou, mais uma vez por meio das comparações entre as ordens e seus fundadores, como os processos de canonização estavam intrinsecamente conectados com a santidade mendicante e, portanto, com o culto a Francisco de Assis e a Domingos de Gusmão. Foram levantados argumentos quantitativos e relações com o contexto histórico, bem como exemplificações constantes de como funcionava uma canonização no século XIII, e como os casos de Francisco e Domingos são excepcionais, principalmente por causa da sua celeridade e impulso papal direto. Contudo, nas considerações finais, Fortes fez questão de frisar que a compreensão do fenômeno da santidade encontra-se situada em algum lugar entre as aspirações centralizadoras papais e as demandas da religiosidade leiga do período, que seguiam a efervescência filosófica, educacional, econômica e social do século XIII.

No quinto e último capítulo, “Mulheres e santidade na Idade Média”, Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva estabeleceu como objetivo “destacar, a partir das singularidades da biografia e culto das personagens, a sobrevivência e a complexidade do fenômeno da santidade feminina por todo o Medievo” (p. 150). Deste modo, as personagens referidas são mulheres que viveram entre os séculos V e XIII e que receberam variadas formas de reconhecimento público de santidade.

As motivações da autora para tal empresa foram duas ressalvas e dois pressupostos. A primeira ressalva inicia o capítulo, pois segundo Sofia Boesch Gajano, em um verbete do Dicionário Temático do Ocidente Medieval, o número de mulheres consideradas santas teria aumentado no século XIII. Porém, Frazão da Silva apontou que é necessário não superestimar este crescimento. A autora citou como base de sustentação os dados das pesquisas clássicas de André Vauchez sobre o tema e ainda os resultados do projeto coletivo de pesquisa Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade, desenvolvido no âmbito do Programa de Estudos Medievais da UFRJ. A segunda ressalva é que o fenômeno da santidade feminina se tornou mais diversificado e expressivo na Idade Média Central. Porém não foi uma inovação do período, já que uma quantidade significativa de santas cultuadas pelos medievais já eram veneradas desde a Antiguidade.

Os pressupostos da autora são de caráter historiográfico. A autora adverte que a sua concepção de santidade não é essencialista e que ela leva em conta também as expectativas e interesses daqueles que promovem os cultos. Mais importante para o entendimento do capítulo é a conceituação de biografia que ela apresenta: “um exercício que busca compreender os laços, nem sempre diretos ou simples, que ligam uma pessoa ao momento histórico em que viveu” (p. 150).

Assim, após as observações introdutórias, segue uma lista, em ordem cronológica, de pequenas biografias de mulheres consideradas santas – com ou sem reconhecimento de Roma. Em cada uma delas, a autora faz questão de mencionar como o culto de uma santa foi retomado na Idade Média, no caso das santas da Antiguidade, ou como o culto perdurou para além do Medievo, no caso das devoções iniciadas neste período. E ainda, quais são as fontes escritas que nos informam sobre as personagens, tendo elas sendo produzidas pelas próprias ou por terceiros. A lista é longa e fica evidente que o intuito da autora é apresentar personagens as mais diversas possíveis entre si, apesar das muitas semelhanças entre elas.

Santa Escolástica, monja exemplar da Península Itálica, que teria vivido entre os séculos V e VI, e irmã de São Bento, o criador da regra de vida beneditina para os monges. Santa Radegunda, uma rainha piedosa de ascendência germânica da Alta Idade Média, que se recolheu a um mosteiro. Santa Valpurga, outra dama da nobreza e abadessa que viveu nas Ilhas Britânicas, no século VIII. Santa Oria, jovem que tinha sonhos e visões e foi “emparedada” (modalidade de religiosa totalmente reclusa), em Castela, no século XI. A próxima da lista é mais famosa ainda pelas suas visões, pela sua trajetória institucional eclesiástica e pelos seus escritos. Considerada doutora da Igreja, viveu na região da atual Alemanha, no século XI, trata-se de Santa Hildegarda de Bingen. Santa Clara de Assis, filha de nobres da cidade de Úmbria, na Itália, do século XIII, a primeira franciscana e fundadora do ramo feminino da Ordem dos Frades Menores. E, por fim, Santa Guglielma, nascida na Boêmia, no século XIII, possivelmente também uma princesa, que faleceu na Itália próxima a abadia de Chiaravalle. O caso de Guglielma é um dos mais singulares, porque inicialmente ela foi cultuada por um grupo local de seguidores, mas posteriormente foi condenada pela Inquisição.

Nas considerações finais do capítulo, a autora nos apresenta uma lista muito maior de nomes que poderiam ter sido citados, o que nos permite ter uma dimensão da sua primeira conclusão: mesmo que a mulher fosse vista como débil em vários sentidos no pensamento hegemônico medieval, isto não impediu que houvesse um grande número de personagens femininas consideradas dignas de devoção pelos medievais. Também não seria possível traçar um perfil único para a santidade feminina medieval. Novos tipos de personagens vão sendo incorporadas ao rol das veneradas e, apesar da constância da vida religiosa na biografia de todas, cada uma delas seguiu passos bem diferentes nestes caminhos. Sendo assim, mais uma vez fica claro como o fenômeno da santidade não é estático, é histórico e profundamente conectado com as conjunturas, anseios sociais e relações de poder (p. 181).

Destacam-se a clareza da redação ao longo de todo o livro e a preocupação em explicitar os objetivos e metodologias das pesquisas realizadas – bem como a coerência de se manter fiel ao que foi proposto. Os capítulos dialogam entre si e evitam repetições, porém sem deixar de mencionar o que for importante para o entendimento das questões analisadas. Desta forma, o livro cumpre duas funções. Apresentar um trabalho amplo e atualizado para aqueles que desejam iniciar o estudo do culto aos santos no Ocidente Medieval, podendo assim fazer bom uso da leitura completa do livro. Ou ainda, para aqueles que já se estão se aprofundando em alguma das temáticas específicas, ler um dos capítulos possibilita o conhecimento de abordagens novas, variadas e críticas.

Juliana Salgado Raffaeli – Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada, UFRJ. E-mail: julianaraffaeli@hotmail.com

Thalles Braga Rezende Lins da Silva – Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada, UFRJ. E-mail: thalles1107@gmail.com


SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues da Silva. Mártires, confessores e virgens. O culto aos santos no Ocidente Medieval. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: RAFFAELI, Juliana Salgado; SILVA, Thalles Braga Rezende Lins da. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.1, p. 255- 261, 2017. Acessar publicação original [DR]

The Ark before Noah: decoding the story of the flood | Irving Finkel

Segundo informa o site oficial do British Museum, o filólogo e assiriólogo Irving Finkel é o atual responsável assistente (Assistent Keeper), curador encarregado das tabuinhas com inscrições cuneiformes provenientes da Mesopotâmia, no Departamento de Oriente Médio do British Museum, encargo que envolve leitura e tradução de toda sorte de inscrições, algumas vezes trabalhando em antigos arquivos para identificar manuscritos que possuem relação entre si, ou até pertençam ao mesmo texto.

Este pesquisador experiente, com diversas publicações especializadas em seu currículo, em 2014 lançou um livro mais voltado ao grande público: The Ark before Noah: decoding the story of the flood. Este texto se encontra dividido em quatorze capítulos: About this Book (pp. 1-11); The Wedge between Us (pp. 12-29); Words and People (pp. 30-83); Recounting the Flood (pp. 84-104); The Ark Tablet (pp. 105-110); Flood Warning (pp. 111-122); The Question of Shape (pp. 123-156); Building the Arks (pp. 157-183); Life on Board (pp. 184-211); Babylon and Bible Floods (pp. 212-223); The Judaean Experience (pp. 224- 260); What Happened to the Ark? (pp. 261-297); What is the Ark Tablet? (pp. 298-309); Conclusions: Stories and Shapes (pp. 310-315).

Além destes capítulos, o livro traz mais quatro apêndices: Ghosts, the Soul and Reincarnation (pp. 316-326); Investigating the Texto of Gilgamesh XI (pp. 327332); Building the Ark – Technical Report (pp. 333-356); Reading the Ark Tablet (pp. 357- 366).

The Ark before Noah se desdobra em dois focos complementares: a tradução da Tabuinha da Arca, na qual se encontra a primeira referência conhecida aos animais entrando “de dois em dois” (p. 189), e a descrição das medidas e da forma inusitada da embarcação: não a tradicional imagem do barco fino de proa arrebitada, mas antes uma arredondada, como uma gigantesca cesta trançada. Para chegar a tais detalhes, contudo, Finkel esboçou uma longa genealogia das histórias do dilúvio, de suas representações mais primitivas, sumerianas, até sua chegada à Bíblia e sua difusão pelo mundo todo. Este segundo foco, bem mais extenso, confere àquele primeiro, mais central, a relevância historiográfica do seu achado, um cenário que cruza milênios de recontagem da narrativa do dilúvio.

A erudição do autor se mostra quando ele encontra no objeto de sua pesquisa um significado que transcende o material, o relato de uma determinada realidade. Sem deixar de combater aqueles que propugnam a veracidade histórica do dilúvio, antes narra o significado cultural dessa história, cuja “preocupação central é a fragilidade da condição humana e a incerteza a respeito dos planos divinos”, que tem inspirado “pensadores, escritores e pintores” e se deslocou “para além dos limites da escritura e do sagrado, tornando-se uma inspiração para ópera moderna e cinema” (p. 84). Em diversos momentos, sua obra soa ecos, inconfessos, de vários modelos historiográficos em voga nas últimas décadas do século XX, nomeadamente a História Cultural – uma leitura de seu livro à luz, por exemplo, de Roger Chartier, é uma experiência extremamente válida.

Um fator que merece destaque é a escrita de Finkel: não obstante boa parte de sua produção acadêmica ser voltada para textos científicos, desde há muito ele trabalha pela popularização do conhecimento, inclusive participando de programas no British Museum que, no Brasil, chamaríamos de extensão. Assim sendo, ele redigiu um livro extremamente agradável; erudito e referenciado, mas nem por isso menos deleitável. Interessante salientar que, ao tratar deste assunto, ele optou por um modelo bem conhecido do grande público, o da “busca pela arca” e subverteu-o, pois enquanto os escritores religiosos, os “caçadores”, perambulavam pelas montanhas turcas atrás artefatos materiais ou provas indiscutíveis da veracidade do texto bíblico, Finkel elaborou uma busca imaterial, cultural, da memória do dilúvio, que joga luz sobre o seu próprio achado cuneiforme.

Desde a primeira parte do livro, o autor teve a precaução de apresentar a disciplina na qual milita aos leitores menos afeitos a ela, e com o humor que é sua característica, inicia seu texto no ano de 1872 (p. 1), quando George Smith, então assistente do British Museum, conseguiu ler um trecho referente ao dilúvio numa tabuinha, fato que causoulhe tamanha emoção que gerou ataque nervoso, sofrido por julgar ter encontrado o que acreditava ser então a prova definitiva de que a gigantesca inundação realmente acontecera; não se tratava mais de uma referência tão-somente bíblica, mas apoiada em outra fonte antiga. No capítulo seguinte, Finkel segue, didaticamente, explicando a escrita cuneiforme, a razão desse termo, as formas de escrita e o processo de composição dos símbolos. Em seguida, relaciona as palavras escritas às diversas populações que as escreveram, situando a literatura mesopotâmica no contexto histórico em que se desenvolveu.

Sua busca pela arca propriamente dita a situa entre os grandes mitos da história humana, que extrapolou seus limites originais e tem influenciado solidamente nossa cultura desde então, a tal ponto que “certamente figuraria como um instigante verbete em qualquer Enciclopédia Marciana do Mundo Humano” (p. 84). Enquanto algumas narrativas antigas “reduzem tudo a um par de sentenças; outras desabrocham em literatura poderosa e dramática. Examiná-las reforça a impressão de que qualquer cultura que não reúna alguma forma de estória sobre o dilúvio deve estar em minoria” (p. 85). Finkel refaz os caminhos que levaram à canonização do mito: a natureza da região entre rios, cercada pelas águas fluviais do Tigre e do Eufrates, convidou à elaboração dos efeitos das cheias, fenômenos ecológicos que, amiúde, arrasavam campos e cidades, tornando em tábula rasa o trabalho de comunidades inteiras. Tais fatos devem ter feito parte da cultura oral desde tempos imemoriais, mas a partir do II milênio a.C. entraram no cânone literário, não mais como eventos corriqueiros, e sim como divisor de águas da história humana, um Dilúvio Primordial que agregava as angústias de múltiplas gerações de homens e mulheres, conscientes, todos, de que “se os deuses assim o quisessem, eles estariam condenados” (p. 88), e diferente dos seus congêneres anteriores por suas inigualáveis manifestações literárias, mitológicas e historiográficas.

A tradição mesopotâmica desabrochou em três avatares literários que chegaram até nós, de tal maneira que o autor propõe ser apenas “parcialmente correto” referir-se a uma única “História Mesopotâmica do Dilúvio”, pois conquanto compartilhem uma essência mesma, há diferenças não pequenas entre si. A tríade é composta pela História Sumeriana da Criação e por dois clássicos acadianos, as epopeias de Atrahasis e Gilgamesh, cada qual com seu próprio herói: o rei da antiga cidade de Shurrupak, Ziusudra (O-de-Longa-Vida); Atrahasis (Extremamente-Sábio), personagem-título de sua história; e o velho Utnapishtim, alcunhado O Longínquo, eixo de uma das narrativas do Épico de Gilgamesh. A esta frota de barqueiros salvadores de animais se juntou, muito tempo depois, Noé, cuja história permaneceu reverberando, gerando frutos dos mais diversos.

Um dos objetivos do livro é alcançar o formato que a hipotética arca teria tido, segundo as tradições escritas mesopotâmicas, e para tanto o autor historiciza o modo como a documentação mesopotâmica a representa, bem como as várias interpretações que particularmente a tradução ocidental deu à arca, ora como um barco de popa e proa, ora uma gigantesca caixa retangular. A Tabuinha da Arca que traduziu permitiu a Finkel divisar uma proposta completamente diversa de embarcação, pois trazia instruções para uma nave circular semelhante às ghuffas (barcos produzidos com canas trançadas e selados com betume, ainda utilizados no Iraque atual), só que infinitamente maior (p. 143). O texto explora a construção das casas dos pântanos iraquianos, chamadas mudhif, feitas com tecnologia e materiais semelhantes aos destas embarcações, que poderiam ter sido adaptados à produção da arca original. Finkel lê as instruções para construção da arca à luz da tecnologia mesopotâmica antiga e das modernas populações dos pântanos iraquianos, encontrando, assim, um sentido para aquele tipo específico de tecnologia descrito na tabuinha, e segue compreendendo como as milenares mudanças ocorridas na Terra Entre Rios foi transformando essa concepção original – um trajeto que acaba trazendo-o à Bíblia.

Uma questão fundamental para a análise da história da arca são os seus passageiros. A partir da Idade Média, as representações da embarcação de Noé foram incorporando mais e mais espécies, à medida que o contato entre europeus e outras áreas do globo se estabelecia; para certas visões fundamentalistas, tão em voga atualmente, a história bíblica é o relato de um fato verdadeiramente ocorrido: por exemplo, grupos cristãos nos EUA (bem como no Brasil) explicam como exemplares de todas as espécies (este termo é debatido) poderiam ter cabido no barco. Num momento de intenso debate entre laicos e religiosos fundamentalistas, a obra de Finkel vem bem a calhar: ele nos mostra como nas tradições literárias mais antigas, o rol de criaturas embarcadas modificou-se; o Atrahasis Babilônico Antigo referia-se ao gado, aos pássaros, animais domésticos e selvagens; a versão médio-babilônica de Nippur, apenas aos animais selvagens e aos pássaros; por fim, a versão assíria traduzida por George Smith fala das bestas domesticadas e das selvagens não carnívoras (192).

Estas diferenciações estão igualmente presentes na Bíblia: Gênesis 6:19-21 (da tradição Javista, mais antiga) fala dos pares de animais, enquanto Gênesis 7:2-3, (da tradição P, sacerdotal), acrescenta: “de todo animal puro, tomarás para ti 7 de cada, macho e fêmea, e de todo animal que não for puro, 2 – macho e fêmea. Também da ave dos céus, 7 de cada, macho e fêmea (…)”. As duas variantes diferem significativamente, um eco, segundo Finkel, das variações da literatura que a precedeu: o Atrahasis preocupou-se em tipificar as criaturas que embarcara, indicando ser esta uma preocupação primordial para si. Já Utnapishtim, na Epopeia de Gilgamesh, pensou em termos de propriedade, carregando tudo o que era seu (ouro, animais, família) mais os artífices – como se no texto babilônico a tônica principal residisse na preservação da vida, e no posterior na preservação da civilização (p. 191). Como se vê, o tropo bíblico mais primitivo ecoa a tradição mesopotâmica de preservação da vida, vista no Épico de Atrahasis; o mais recente, privilegia as obrigações litúrgicas, compartimentando os animais em termos utilitaristas: “puros” (aptos às oferendas e ao consumo humano) e “impuros”.

Ou seja, a visão de uma embarcação que abrigasse todas as espécies existentes no planeta é nossa contemporânea, não do mito sumeriano; o mundo descrito nos textos é outro, e o objetivo da narrativa, idem. O Dilúvio Primordial foi o marco da dissonância temporal para os antigos mesopotâmicos, pois em termos quantitativos era profundamente remoto, um quarto de milhão de anos segundo a contabilidade sumeriana. Deixamos, portanto, o terreno da crônica factual, e adentramos o da manifestação terrenal do mito e seu relato: são Idades Ancestrais, cuja contabilidade (e função) é distinta da crônica histórica, contagens diferentes que não podem ser absolutamente sincronizadas – não o eram na Antiguidade, e assim deveriam ser entendidos hoje.

O autor elabora uma arqueologia da história do Dilúvio, menciona sua remota origem mitológica e a acompanha nas transformações enquanto obra literária, trabalhada e retrabalhada ao longo de milênios, especialmente em Babilônia, de onde verteu para a Bíblia Hebraica – “vimos, também, que estórias das crianças Moisés e Sargão em seus respectivos barquinhos-cestos refletem um empréstimo similar, e que existem outros elementos, em especial no livro do Gênesis (as Grandes Idades do Homem), que sugerem este mesmo processo” (p. 224).

No capítulo “The Judaean Experience”, Finkel discute como a presença dos judeus exilados durante o conhecido “Cativeiro da Babilônia” contribuiu para a elaboração do seu livro sagrado, e mesmo da sua concepção de monoteísmo que desenvolveram: inseridos numa sociedade marcada por uma alta cultura literária, os expatriados deixaram-se influenciar e constituíram seu próprio conjunto de histórias, algo inaudito até então, “um corpus textual finito, com começo, meio e fim, no qual uma identidade religiosa se afirmou. Um padrão fora estabelecido, e perdurou através do Cristianismo e do Islã” (p. 256).

Finkel arremata seu livro com uma descrição da Tabuinha da Arca, uma peça que não contém qualquer narrativa (p. 298), apenas uma planta da construção, o tamanho e a forma que deveria possuir. Sua importância, afirma o autor, está precisamente nessa relação de materiais: quando contado para as populações ribeirinhas, tal descrição era desnecessária, pois estavam acostumados a trançar as canas dos rios e construir casas e barcos, mas à medida que a história precisou ser recontada para cidadãos urbanos, o inventário tornou-se necessário, e os padrões de grandeza refletiram a visão do novo público a quem se destinava.

Essencialmente, Finkel salienta o poder literário da história do Dilúvio: “O narrador de nossa história está recontando a História de Atrahasis, com a Arca e o Dilúvio. Provavelmente, todos a conheciam em seus rudimentos, mas em mãos de um talentoso contador de histórias seu poder e magia desconheceriam limites. Pois ele lida com o mais amplo de todos os temas: vida e morte da espécie humana, a mais restrita das escapatórias, como todos os ovos foram colocados numa única grande cesta esbofeteada por águas arremessadas das alturas, todos os seres vivos clamando em terror (por estarem enjoados ou sendo esmagados). A narrativa podia ser reforçada com adereços: uma pequena rede de caniços para Era sussurrar através, um chapéu com chifres representando o deus a falar, um barquinho-cesto para Atrahasis, uma vara para desenhar na areia. Um contador popular poderia utilizar um simples baterista, um flautista, um menino assistente. Com estas ferramentas ele poderia transportar sua audiência, contando uma história que era sempre a mesma, mas sempre diferente; algumas vezes aterrorizante com a inaceitável crueldade dos deuses e a arremetida das águas mortíferas, outras vezes calmante com tudo terminando bem, e até mesmo engraçada algumas vezes, quando um sonhador que jamais havia sujado suas mãos é informado por um deus que teria de atingir o impossível neste exato momento, mesmo sem querer. Por que eu?” (p. 302)

Sumarizando suas conclusões, Finkel afirma que a nossa versão do dilúvio, recebida via Bíblia, deita suas raízes na Mesopotâmia, e trata essencialmente da vida, “sempre à mercê dos deuses, sobrevivendo contra todas as possibilidades graças a uma única nave cuja tripulação, humana e animal suportou o cataclismo para repovoar o mundo” (p. 310). Noutras palavras, é a metáfora de esperança que foi e permanece sendo recontada por milênios, que encontra nesse nicho seu fator universal.

No decorrer da longa história mesopotâmica, públicos diferentes imaginaram arcas diferentes, e da forma cúbica original, passou-se à oblonga, depois redonda, e finalmente a retangular que a Bíblia recriou, uma linha que, na compreensão do autor, é uma “linhagem linear do cuneiforme ao hebraico, cujo traçado representa o cerne” (p. 315) do trabalho.

Nos tempos nos quais vivemos, a história do Dilúvio vem sendo disputada por grupos fundamentalistas religiosos, defensores de uma leitura factual, estrita, seguidora das instruções tais como apontadas na Bíblia. O conhecimento acadêmico, por sua vez, simplesmente rejeita a narrativa, salienta suas contradições e a impossibilidade física de sua ocorrência. Irving Finkel e seu livro abrem um outro caminho, que vai tão longe quanto possível e encontra nas populações ribeirinhas da Mesopotâmia as realidades que deram origem à semente do mito; acompanha milênios de apropriações literárias, realizadas nos mais importantes centros de conhecimento, como Nínive e, principalmente, Babilônia; e por fim refaz os caminhos que levaram os judeus exilados a incorporá-la em seus escritos sagrados, de onde permanece influenciando a Humanidade. Mais do que discutir sua veracidade, do ponto de vista científico um debate encerrado, Finkel explora seus significados, e ao fazê-lo construiu um dos livros de historiografia mais relevantes da década.

José Maria Gomes de Souza Neto – Professor adjunto da Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte. E-mail: zemariat@uol.com.br


FINKEL, Irving. The Ark before Noah: decoding the story of the flood. New York: Doubleday, 2014. Resenha de: SOUZA NETO, José Maria Gomes de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.1, p. 249- 254, 2017. Acessar publicação original [DR]

SILVA, Andréia. C. L. Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues da. Mártires, confessores e virgens. O culto aos santos no Ocidente Medieval. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: RAFFAELI Juliana Salgado (Res), SILVA Thalles Braga Rezende Lins da (Res),  Brathair (Btr), Mártires, Confessores, Virgens, Culto aos Santos, Ocidente Medieval

Diferentes perspectivas, abordagens e aspectos da santidade na Idade Média

O livro é uma iniciativa de vários professores doutores ligados ao Programa de Estudos Medievais da UFRJ, organizado por Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva e Leila Rodrigues da Silva. Após o prefácio que apresenta a obra, escrito pelo Prof. Dr. Ronaldo Amaral da UFMS, seguem cinco capítulos, cada um com de cerca de 30 páginas, que abordam por diferentes perspectivas e recortes espaço-temporais a temática da santidade na Idade Média. Ainda estão inclusas as Referências, informações sobre a Documentação consultada, Sugestões de Leitura e dados sobre a trajetória intelectual dos Autores do livro.

O capítulo inicial do livro, “Mártires na Antiguidade e na Idade Média”, escrito por Valtair Afonso Miranda, tem como questão central o fenômeno histórico do martírio, pensando para quem os relatos foram produzidos e a que interesses atendiam com essas representações do sofrimento e da morte. Para dar conta desse questionamento, o autor analisou a tradição cristã do martírio em suas diferentes manifestações nas comunidades cristãs antigas e medievais.

Desde sua origem etimológica, afirmou Miranda, o “mártir” era tanto aquele que deveria ser lembrado quanto quem possuía o conhecimento de algo e poderia apresentar seu testemunho. Nesse sentido, um dos primeiros documentos do cristianismo a descrever a morte de um cristão foi o “Martírio de Policarpo”. Segundo o autor, o texto já apresentava o “mártir” como a própria testemunha que morria em grande sofrimento. Para o segundo século, o termo já indicava sofrimento e/ou a morte de alguém que era, especificamente, seguidor do movimento de Jesus.

Miranda retomou diversas referências anteriores ao martírio cristão para demonstrar que, tanto no judaísmo quanto no Império Romano, a imagem de morte por um ideal já estava bem consolidada. Associada a isso, a própria morte de Jesus foi uma referência essencial para a construção do conceito de martírio, motivado pelas expectativas messiânicas, que atrelavam o perdão da humanidade a uma morte dolorosa e violenta do salvador. Uma terceira referência foi construída pelo Apocalipse de João, que promoveu a ideia de martírio como etapa necessária para o Juízo Final. Dessa forma, um dos modos dos fieis participarem da instauração do reino messiânico era por meio da morte violenta. “As mortes cristãs, quando ritualizadas segundo o modelo do mártir, eram eficientes instrumentos de propaganda para o cristianismo numa sociedade que aprendera a respeitar quem sabia morrer” (p. 42).

Após o fim das perseguições aos cristãos, não eram mais encontradas essas formas de morrer em nome da crença. O autor ressaltou, então, os aspectos principais do martírio espiritual, que assumiu o lugar do sofrimento pela tortura e a morte violenta dos períodos anteriores. Esse martírio poderia ser qualquer situação de desconforto, inclusive físico, praticado de forma voluntária e que não levava a morte. Poderiam ser realizados em casas religiosas, dentro do matrimônio, em solidão ou no exílio. Os monges comumente passaram a ser vistos como os “novos heróis” do cristianismo. De modo geral, o “martírio espiritual” era um conceito fluído, que se adaptou para explicar situações diferentes de sofrimento.

Contudo, durante a Idade Média Central, por conta de uma nova onda de propagação de heresias, martírios – no sentido inicial da concepção cristã – voltam a ocorrer e novos mártires – como Tomás Becket e os cinco franciscanos mortos no Marrocos – rapidamente passam a ser cultuados com fervor. Em vista disso, Miranda afirmou, nas suas conclusões, que era de suma importância para a construção das novas comunidades religiosas definir quem era o seu herói. Isto era “um exercício de poder, poder esse que define limites identitários, esclarece alteridade, reforças práticas e crenças religiosas, gera papéis sociais, legitima governos, socializa visões de mundo” (p. 54).

No segundo capítulo “Monges e literatura hagiográfica no Início da Idade Média”, Leila Rodrigues da Silva desenvolveu sua análise com dois objetivos principais. No primeiro, tratou da História do monacato desde suas origens orientais até os seus desdobramentos nos reinos romano-germânicos, ou seja, a partir do século IV e com especial atenção aos séculos VI e VII. No segundo, a autora associou a apresentação da tipologia documental das hagiografias com a análise dos estudos de caso de monges de três regiões, a saber: Bento de Núrsia da Península Itálica, Frutuoso de Braga da Península Hispânica e Amando de Maastricht das Gálias. Os relatos hagiográficos dos três monges expressavam o anseio geral de cristianização dos seus períodos e manifestavam a importância da construção e multiplicação de comunidades monásticas para a efetivação destas ambições.

A respeito do monacato, Rodrigues da Silva apresentou as principais hipóteses produzidas sobre a motivação inicial para tal movimento ascético no contexto do Império Romano do Oriente. Essas proposições se resumiam na ideia de que para entender a complexidade do fenômeno era necessário considerar tanto o anacoretismo como uma atitude de protesto – seja em relação ao aspecto religioso ou político – quanto uma decisão pessoal e moral do asceta. As duas formas principais de monacato que se originaram nesse contexto, o eremitismo e o cenobitismo, chegaram ao Ocidente sem que houvesse descontinuidade em relação à sua motivação original. Além disso, se associaram às formas ascéticas já praticadas localmente. Entre os séculos IV e VII, o movimento monástico foi vinculado ao episcopado, que se preocupou com a produção de regras comunitárias, normativas conciliares e a expansão da cristianização com atuação de monges nas áreas rurais.

A segunda preocupação de Rodrigues da Silva estava pautada em como a experiência monástica se expressava nos textos hagiográficos, buscando comparativamente as semelhanças e as especificidades nos três contextos eleitos. O primeiro monge analisado, Bento de Núrsia, ficou conhecido pela perspectiva de seu hagiógrafo, Gregório Magno. Segundo a narrativa, Bento teria origem em família abastada, com acesso à educação em Roma. Sua experiência religiosa incluiu um período de isolamento, disputas com os demônios, destruição de ídolos, construção de doze mosteiros, produção de uma regra e preparação de outros monges – destacando nessas obras o papel das virtudes da obediência e da humildade. O segundo hagiografado, Frutuoso de Braga, foi apresentado por um anônimo. Seu narrador indicou uma intensa participação eclesiástica e política: ele teria produzido duas regras monásticas, participado de concílios, trocado correspondências com reis e bispos e assumido duas dioceses. O monge-bispo seria totalmente dedicado à vida monástica, valorizando suas características ascéticas orientais – como o desejo pela peregrinação e a necessidade de isolamento -, fundando novas casas e promovendo o monacato de modo geral. O terceiro e último monge anunciado por uma hagiografia, Amando de Maastricht, foi relatado anonimamente. Além dessa narrativa, esteve referenciado em cartas trocadas com Martinho I, bispo de Roma. Após um período de isolamento ascético de quinze anos, sua característica monástica mais marcante foi a atividade missionária desempenhada em diversas regiões dos reinos merovíngios. Também foi sagrado bispo por sua associação com a monarquia e o episcopado local.

A autora concluiu que, comparativamente, o monacato ocidental visto a partir das narrativas hagiográficas dos reinos romano-germânicos não configurou uma contestação veemente à instituição eclesiástica. A perspectiva eremítica marcou a trajetória inicial dos monges destacados da hierarquia eclesiástica, se concretizando como um “ideal desejado”.

Passando ao terceiro capítulo “Santos e episcopado na Península Ibérica”, Paulo Duarte Silva partiu das proposições historiográficas de Peter Brown, que superou a dicotomia estabelecida sobre as documentações hagiográficas – reforçando ou rejeitando a santidade dos protagonistas – e permitiu o estudo do contato dos “eclesiásticos seculares” com outros grupos religiosos. Segundo Duarte Silva, estudiosos recentes contestaram as fronteiras entre os cuidados episcopais e o pretenso isolamento monástico. O episcopado se desenvolveu como função eclesiástica, desde o século I até as mudanças na organização e na estrutura promovidas pela aproximação do Império Romano e a ecclesia. Do ponto de vista Ocidental, o autor chamou atenção de que gradualmente as aspirações aristocráticas aos cargos eclesiásticos se aprofundaram, sendo acompanhadas pelo interesse de adesão ao monasticismo. Na Alta Idade Média, predominava o monacato beneditino. Como consequência, a partir dos séculos X e XII, consolidaram-se as ordens beneditinas de Cluny e Cister. Para a Idade Média Central surgiram novas demandas de religiosidade, que deram grande destaque às ordens mendicantes – de franciscanos e dominicanos.

Duarte Silva teve por objetivo analisar as relações entre o cursus episcopal e as ordens religiosas de bispos-santos cristãos. Partindo do recorte temporal da Alta Idade Média até a Idade Média Central, dedicou-se a análise de bispos e cônegos, especificamente que tivessem atuado na Península Ibérica. Para viabilizar a comparação, o especialista estabeleceu eixos de análise como: a trajetória institucional na fundação de mosteiros e conventos, a participação de concílios e as relações assumidas com as autoridades monárquicas. Para tanto, elegeu oito figuras de bispos considerados santos e dentro dessas especificações: Martinho de Braga (520-580); Isidoro de Sevilha (560-636); Rosendo de Celanova (907-977); Ato de Oda/Valpuesta (m. 1044); Olegário de Tarragona (1060-1137); Bernardo Calvo (1180-1243); Agno de Saragoça (1190-1260), e; Berengário de Peralta (1200-1256).

O terceiro capítulo apresentou como conclusão que, desde a Alta Idade Média, a grandiosidade dedicada à memória dos clérigos oriundos do monacato demonstrou o interesse eclesiástico em organizar, adequar e submeter a vida monástica às decisões episcopais e conciliares. Nesse sentido, surgiram novas possibilidades de consagração pública, promovendo e organizando a santidade ibérica. Com o passar dos séculos foi possível observar um processo de expansão do modelo monástico beneditino, a partir do Norte da Península Ibérica em detrimento da tradição visigótica. Gradativamente, a santidade também foi atribuída a bispos relacionados aos cônegos e aos mendicantes. Em suma, Duarte Silva afirmou que as trajetórias dos bispos santos peninsulares possuíam diversos eixos de continuidade – origem nobiliárquica, estadia em mosteiros ou em conventos, apoio das monarquias e participação dos personagens em concílios – enquanto simultaneamente era permeado por características de ruptura. Ou seja, “a santidade é histórica, e por isso, embora admita elementos comuns, deve der associada a diferentes contextos políticos e religiosos” (p. 113).

Em “As ordens mendicantes e a santidade na Idade Média”, o quarto capítulo do livro, a autora Carolina Coelho Fortes traça a relação entre os fenômenos da santidade e do surgimento das ordens mendicantes, surgidas a partir do século XIII. Para isso, o capítulo foi dividido em cinco partes: a santidade no Medievo, surgimento e formação das ordens mendicantes, a santidade mendicante, Francisco de Assis e Domingo de Gusmão.

Na primeira parte, de maneira muito densa e completa, foi apontado o que era necessário para ser considerado santo na Idade Média e quais os perfis de pessoas cultuadas conforme o Medievo avançava. Assim, embora as hagiografias apontassem que seria impossível tornar-se santo – porque a santidade começava a se manifestar desde a mais tenra idade e continuamente ao longo da vida e após a morte – a autora demonstrou o contrário. Ela destacou que é possível considerar as múltiplas dimensões da temática e abordá-la nas perspectivas espiritual, teológica, religiosa, social, institucional e política. A visibilidade, a materialidade, a corporeidade, o serviço prestado à comunidade, os sacríficos, dores e renúncias, o combate ao mal, os milagres e a esperança de redenção trazida para a comunidade, tudo isso está na lista de topoi hagiográficos que ao mesmo tempo promovia a difusão e o reconhecimento (eclesiástico ou não) da santidade, segundo Fortes. E por isso, a santidade deveria ser entendida como “uma construção social, um ideal que se desenvolveu historicamente” porque “tipos diferentes de pessoas eram percebidos como santos pelas comunidades cristãs durante períodos distintos” (p. 102).

Ainda na Antiguidade, o primeiro tipo teria sido composto por mártires e, sem que seu culto fosse eclipsado pelos modelos posteriores, durante a Idade Média juntaram-se a eles: os bispos, os ascetas, os nobres que conseguiam altos cargos na hierarquia eclesiástica, os leigos nas cidades, os mendicantes, os penitentes, a Virgem Maria e, finalmente, os leigos. A autora fez considerações que relacionam os elementos da tipologia já descrita com os diferentes contextos históricos – da Antiguidade Tardia até a fins do Medievo, passando pela Alta Idade Média e Idade Média Central – ou seja, uma duração de aproximadamente 1000 anos. Neste interim, Fortes destacou o impacto da criação dos processos de canonização, no século XIII, no controle da santidade pelo papado, bem como isto contribuiu para a “humanização” ou “popularização” da santidade. Este último fator fez das personagens santas cada vez mais conhecidas, familiares e inspiradoras de uma devoção mais afetuosa do que referencial (p. 125).

Ao tratar das ordens mendicantes, a autora fez uma síntese de como as transformações ocorridas no Ocidente, desde o século XI, possibilitaram o seu surgimento. E então, o texto abordou alguns pontos entrecruzados a este respeito principalmente da Ordem dos Frades Menores – franciscanos – e da Ordem dos Pregadores – dominicanos, a saber: como normatizar as ordens mendicantes foi útil para a consolidação da cúria papal; como franciscanos e dominicanos lidaram com o delicado e controverso voto de pobreza; como a produção hagiográfica sobre Francisco de Assis e Domingos de Gusmão promoveu ao mesmo tempo o culto destes fundadores, a institucionalização de ambas as ordens e estabilizou as relações das mesmas com Roma, além de criar modelos de frades e freiras a serem seguidos. As diferenças entre as duas ordens também ficam claras porque a autora as apresentou comparativamente. Embora a pobreza, a pregação, a obediência, os estudos, a presença de leigos e de clérigos nos quadros das ordens e o combate aos inimigos da fé fossem questões importantes para ambas, a ênfase dada a cada uma destas temáticas foi bem distinta e pautada pelos objetivos dos fundadores – e dos seus sucessores – e os ambientes onde cada uma delas atuava.

Nas partes que se seguem do capítulo, Fortes analisou e demonstrou, mais uma vez por meio das comparações entre as ordens e seus fundadores, como os processos de canonização estavam intrinsecamente conectados com a santidade mendicante e, portanto, com o culto a Francisco de Assis e a Domingos de Gusmão. Foram levantados argumentos quantitativos e relações com o contexto histórico, bem como exemplificações constantes de como funcionava uma canonização no século XIII, e como os casos de Francisco e Domingos são excepcionais, principalmente por causa da sua celeridade e impulso papal direto. Contudo, nas considerações finais, Fortes fez questão de frisar que a compreensão do fenômeno da santidade encontra-se situada em algum lugar entre as aspirações centralizadoras papais e as demandas da religiosidade leiga do período, que seguiam a efervescência filosófica, educacional, econômica e social do século XIII.

No quinto e último capítulo, “Mulheres e santidade na Idade Média”, Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva estabeleceu como objetivo “destacar, a partir das singularidades da biografia e culto das personagens, a sobrevivência e a complexidade do fenômeno da santidade feminina por todo o Medievo” (p. 150). Deste modo, as personagens referidas são mulheres que viveram entre os séculos V e XIII e que receberam variadas formas de reconhecimento público de santidade.

As motivações da autora para tal empresa foram duas ressalvas e dois pressupostos. A primeira ressalva inicia o capítulo, pois segundo Sofia Boesch Gajano, em um verbete do Dicionário Temático do Ocidente Medieval, o número de mulheres consideradas santas teria aumentado no século XIII. Porém, Frazão da Silva apontou que é necessário não superestimar este crescimento. A autora citou como base de sustentação os dados das pesquisas clássicas de André Vauchez sobre o tema e ainda os resultados do projeto coletivo de pesquisa Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade, desenvolvido no âmbito do Programa de Estudos Medievais da UFRJ. A segunda ressalva é que o fenômeno da santidade feminina se tornou mais diversificado e expressivo na Idade Média Central. Porém não foi uma inovação do período, já que uma quantidade significativa de santas cultuadas pelos medievais já eram veneradas desde a Antiguidade.

Os pressupostos da autora são de caráter historiográfico. A autora adverte que a sua concepção de santidade não é essencialista e que ela leva em conta também as expectativas e interesses daqueles que promovem os cultos. Mais importante para o entendimento do capítulo é a conceituação de biografia que ela apresenta: “um exercício que busca compreender os laços, nem sempre diretos ou simples, que ligam uma pessoa ao momento histórico em que viveu” (p. 150).

Assim, após as observações introdutórias, segue uma lista, em ordem cronológica, de pequenas biografias de mulheres consideradas santas – com ou sem reconhecimento de Roma. Em cada uma delas, a autora faz questão de mencionar como o culto de uma santa foi retomado na Idade Média, no caso das santas da Antiguidade, ou como o culto perdurou para além do Medievo, no caso das devoções iniciadas neste período. E ainda, quais são as fontes escritas que nos informam sobre as personagens, tendo elas sendo produzidas pelas próprias ou por terceiros. A lista é longa e fica evidente que o intuito da autora é apresentar personagens as mais diversas possíveis entre si, apesar das muitas semelhanças entre elas.

Santa Escolástica, monja exemplar da Península Itálica, que teria vivido entre os séculos V e VI, e irmã de São Bento, o criador da regra de vida beneditina para os monges. Santa Radegunda, uma rainha piedosa de ascendência germânica da Alta Idade Média, que se recolheu a um mosteiro. Santa Valpurga, outra dama da nobreza e abadessa que viveu nas Ilhas Britânicas, no século VIII. Santa Oria, jovem que tinha sonhos e visões e foi “emparedada” (modalidade de religiosa totalmente reclusa), em Castela, no século XI. A próxima da lista é mais famosa ainda pelas suas visões, pela sua trajetória institucional eclesiástica e pelos seus escritos. Considerada doutora da Igreja, viveu na região da atual Alemanha, no século XI, trata-se de Santa Hildegarda de Bingen. Santa Clara de Assis, filha de nobres da cidade de Úmbria, na Itália, do século XIII, a primeira franciscana e fundadora do ramo feminino da Ordem dos Frades Menores. E, por fim, Santa Guglielma, nascida na Boêmia, no século XIII, possivelmente também uma princesa, que faleceu na Itália próxima a abadia de Chiaravalle. O caso de Guglielma é um dos mais singulares, porque inicialmente ela foi cultuada por um grupo local de seguidores, mas posteriormente foi condenada pela Inquisição.

Nas considerações finais do capítulo, a autora nos apresenta uma lista muito maior de nomes que poderiam ter sido citados, o que nos permite ter uma dimensão da sua primeira conclusão: mesmo que a mulher fosse vista como débil em vários sentidos no pensamento hegemônico medieval, isto não impediu que houvesse um grande número de personagens femininas consideradas dignas de devoção pelos medievais. Também não seria possível traçar um perfil único para a santidade feminina medieval. Novos tipos de personagens vão sendo incorporadas ao rol das veneradas e, apesar da constância da vida religiosa na biografia de todas, cada uma delas seguiu passos bem diferentes nestes caminhos. Sendo assim, mais uma vez fica claro como o fenômeno da santidade não é estático, é histórico e profundamente conectado com as conjunturas, anseios sociais e relações de poder (p. 181).

Destacam-se a clareza da redação ao longo de todo o livro e a preocupação em explicitar os objetivos e metodologias das pesquisas realizadas – bem como a coerência de se manter fiel ao que foi proposto. Os capítulos dialogam entre si e evitam repetições, porém sem deixar de mencionar o que for importante para o entendimento das questões analisadas. Desta forma, o livro cumpre duas funções. Apresentar um trabalho amplo e atualizado para aqueles que desejam iniciar o estudo do culto aos santos no Ocidente Medieval, podendo assim fazer bom uso da leitura completa do livro. Ou ainda, para aqueles que já se estão se aprofundando em alguma das temáticas específicas, ler um dos capítulos possibilita o conhecimento de abordagens novas, variadas e críticas.

Juliana Salgado Raffaeli – Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada, UFRJ. E-mail: julianaraffaeli@hotmail.com

Thalles Braga Rezende Lins da Silva – Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada, UFRJ. E-mail: thalles1107@gmail.com

SILVA, Andréia. C. L. Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues da. Mártires, confessores e virgens. O culto aos santos no Ocidente Medieval. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: RAFFAELI, Juliana Salgado; SILVA, Thalles Braga Rezende Lins da. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.1, p. 255- 261, 2017. Acessar publicação original [DR]

BAUNE Colette (Aut), Joana d’Arc: Uma Biografia (T), Globo (E), FLORES Paula dos Santos (Res),  Brathair (Btr), Joana d’Arc, Biografia, Europa – França (l), Séc. 15

Em 2016, a versão em português de Joana d’Arc: uma biografia completou dez anos. Lançada no Brasil pela Editora Globo em 2006, a obra de Colette Beaune é uma das leituras fundamentais para aqueles que se interessam pela história da heroína francesa.

Joana d’Arc é uma das personagens mais icônicas do Ocidente medieval. Em apenas dois anos, período entre seu aparecimento na corte de Carlos VII e sua morte, Joana conseguiu conquistar o coração e a imaginação de seus contemporâneos e se inscrever no panteão dos personagens que transcendem seu tempo e espaço.

Fazendo um breve levantamento é possível encontrar mais de setenta obras literárias nas quais Joana d’Arc é personagem, a lista se inicia no século XV e chega até o presente. Além da literatura, Joana foi retratada em cerca de treze produções cinematográficas, da emblemática atuação de Renée Falconetti, em “La passion de Jeanne d’Arc”, filmado em 1927 e dirigido por Carl Dreyer, até a superprodução dirigida por Luc Besson em 1999, “Jeanne d’Arc” a qual contou com a brilhante interpretação de Milla Jovovich que deu vida a uma Joana ingênua e perturbada por vozes. Afora o cinema e a literatura, a Donzela aparece em jogos de videogame e quadrinhos.

Joana foi uma jovem francesa cuja existência transita entre o mito e a realidade e cuja eternidade está garantida na memória e imaginação das pessoas. Não é de surpreender que tenha sido escolhida como objeto de pesquisa por Colette Beaune, uma especialista em História da França e em História das Mulheres.

Colette Beaune é professora emérita da Universidade de Paris X, especializada em história cultural, politica e social do final da Idade Média. Entre suas publicações estão Naissance de la nation France, 1985; a edição do texto do Journal d’un Bourgeois de Paris: de 1405 à 1449, 1989; e Jeanne d’Arc, 2004 (Joana d’Arc: uma biografia, Editora Globo, 2006). A obra foi caracterizada pelo Senado francês como própria para nutrir a reflexão cívica e rendeu à Colette Beaune o Prix du Sénat du Livre d’Histoire, em 2004. Joana d’Arc: uma biografia apresenta muito mais que a história de Joana, é, em referência aos termos utilizados por Beaune, “Joana além de Joana”.

Estamos acostumados com a Joana d’Arc do universo mítico, um personagem real que foi apropriado pela ficção e representado a partir do fantástico, do maravilhoso, do extraordinário. Colette Beaune retira Joana da névoa do fantástico e a insere em seu contexto. Assim, a heroína francesa é tratada como um personagem histórico e serve como fio condutor para discussões sobre guerra, política, cultura e sociedade na Idade Média.

Partindo dos processos de condenação, que sentenciou Joana à fogueira por heresia, em 1431, e de anulação, que a reabilitou em 1456, Beaune discute aspectos da vida de Joana. A investigação também utiliza outros documentos, tais como crônicas, cartas e demais informações relacionadas à Donzela.

O texto de Beaune apresenta Joana e problematiza as características de suas várias representações. Assim como qualquer indivíduo, Joana d’Arc é um personagem multifacetado e a escolha de quais elementos são evidenciados por aqueles que a retratam, nos informam tanto sobre Joana quanto sobre os que a representam.

Sua origem obscura, no vilarejo de Domrémy, por exemplo, pode ser entendida a partir da comparação com a vida de Cristo e, de forma mais genérica, com a trajetória dos heróis. O modelo de vida heroica é compartilhado por figuras como Cristo, Ulisses, Davi e serviu de base para a construção da imagem de Joana como heroína da França.

Sua juventude em Domrémy também é cheia de misticismo e fantasia, e colocam Joana como um ser único, mágico. Beaune, entretanto, apresenta as práticas de uma sociedade rural e as insere em um conjunto mais amplo. Bem como, expõe as formas como os processos de condenação e de reabilitação se utilizaram dos ritos e práticas populares para defender posições diametralmente opostas. Grande parte dos elementos que constituíram o argumento de sua condenação foram refutados e utilizados em sua defesa.

Não foram apenas os contemporâneos de Joana que disputaram sua imagem, historiadores do século XIX e XX apresentaram diferentes opiniões sobre Joana. Letrada ou iletrada? A heroína da França teria sido uma jovem iletrada, que recebia suas ordens através de vozes divinas ou teve acesso à educação em algum momento de sua curta vida?

As vozes de Joana não escapam da perscrutação de Beaune. Um dos elementos brilhantemente explorados pelo cinema e pela literatura, a questão da inspiração divina, é abordado por Colette a partir da tradição de profetisas que surgiam em tempos de crise, anunciando a palavra de Deus. A jovem donzela de Domrémy não foi a primeira nem a última, certamente, a levar revelações divinas aos homens.

Se por um lado, Joana foi mais uma das profetisas medievais, por outro lado, suas revelações e sua participação tiveram um caráter único e extraordinário: a capacidade de mobilizar e sensibilizar a população francesa, tão desgastada pela longa guerra contra a Inglaterra.

A participação de Joana no levante do cerco de Orléans juntamente com a sagração de Carlos VII em Reims foram os pontos máximos de sua participação no conflito. Mas que de forma se deu essa participação? Joana empunhou a espada, conduziu as tropas como chefe de guerra ou apenas levantou seu estandarte como símbolo e motivação aos combatentes? Colette Beaune não se limita a discutir o papel de Joana na Guerra dos Cem Anos, a questão enunciada é mais profunda e abrangente: a guerra pode ter um rosto de mulher?

E, essa mulher em específico, inserida em uma sociedade que estava agitada por complexas disputas políticas internas e externas, atuava de forma independente? Era motivada pelo testemunho dos sofrimentos dos franceses ao longo de uma guerra sem fim ou estava agindo de acordo com um alinhamento político forjado por relações familiares e alianças políticas?

Essas problematizações de Beaune tornam o livro, além de uma brilhante biografia, uma fonte de inspirações para a pesquisa sobre o período medieval. E, para além da Idade Média, instiga a curiosidade sobre as diversas apropriações que a imagem de Joana d’Arc sofreu ao longo do tempo.

Não é sem motivos que Joana se tornou um símbolo reivindicado por diversos grupos: a insuficiência de informações registradas nos impede de uma aproximação do personagem histórico, ao mesmo tempo permite que sua imagem seja montada e reconstruída das mais diversas formas.

Em Joana d’Arc: uma biografia Colette Beaune resgata essas múltiplas facetas da Donzela para apresentar a sociedade francesa, seus valores, seus anseios e preocupações; a guerra e a política que influenciaram e foram influenciadas por Joana; o martírio de uma jovem que coroou seu rei e foi reverenciada como heroína e, poucos anos depois, queimou na fogueira inglória, acusada de heresia.

O livro de Colette Beaune é uma obra fundamental para a compreensão de Joana d’Arc como personagem histórico e é extremamente relevante para o entendimento de vários aspectos da sociedade medieval. A linguagem de fácil compreensão é acompanhada por referências bibliográficas extremamente ricas, o que o torna uma aquisição fundamental para a biblioteca de pesquisadores e de não pesquisadores.

Paula dos Santos Flores – Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: paulaflrs@gmail.com

BAUNE, Colette. Joana d’Arc: Uma Biografia. São Paulo: Globo, 2006. Resenha de: FLORES, Paula dos Santos Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 159- 162, 2017. Acessar publicação original [DR]

SCHURSTER Karl (Org); SOUZA NETO José Maria Gomes de (Org), SILVA Kalina Vanderlei (Org), Pequeno dicionário de grandes personagens históricos (T), Alta Books (E), MOERBECK Guilherme Gomes (Res),  Brathair (Btr), Personagens Históricos, Dicionário

Embora a datação convencional do Iluminismo se inicie com o final da Revolução Gloriosa e o início da Revolução Francesa, esta periodização não deve ser tomada de maneira rígida. O eixo é sempre um pouco antes e um pouco depois de 1750, estando, certamente, articulado em suas origens, à Revolução Científica do século XVII. Já o seu final pode ser visto entre a crise revolucionária e o fortalecimento do pensamento romântico (FONTANA, 1998; FALCON, 1997). Talvez fosse mais prudente se preferir falar em iluminismos no plural, ao invés de tê-lo como um movimento unificado. Segundo Kant, em seu ensaio: O que é o iluminismo, este seria “a libertação do homem de sua auto-imposta custódia”. Custódia para Kant era: “a inabilidade do homem para fazer uso de seu entendimento sem a direção de outrem” (CHENG, 2012, p.30). Kant se opunha, nesse sentido, à tutela estabelecida pela tradição por um lado e pela religião por outro. Em suma, a definição de Kant para a ilustração é a saída da minoridade, o caminho para servir-se de sua própria razão. (FONTANA, 1998)

Um dos mais importantes historiadores do iluminismo, Robert Darton, menciona que o antigo regime é posto contra a parede no século XVIII. Mas, antes mesmo de termos a Revolução Francesa – já se carregava muito de suas reflexões teóricas e de seus desdobramentos políticos. Assim sendo, palavras como razão, natureza, liberdade, felicidade e progresso davam sentido a um novo movimento intelectual, o das Luzes (DARTON, 2001). Influenciados pela revolução científica, os pensadores Iluministas, similarmente ao que aconteceu entre os filósofos pré-socráticos, os socráticos e sofistas, direcionaram a razão como elemento de compreensão do homem em sociedade. A própria noção de filósofo sofre uma mudança semântica, na qual os do iluminismo se põem numa posição de críticos e reformadores de sua sociedade. Embora a religião não seja de todo abandonada, os filósofos do iluminismo assumem uma posição mais secular, na qual o universo religioso desempenha papel secundário (CHENG, 2012).

Havia a concepção de uma natureza humana universal. Uma das preocupações dos historiadores iluministas era explicar os eventos históricos em termos da ação humana e não divina; conferir o verbete Voltaire, p.303-310. O iluminismo deu origem a uma forma de investigação histórica: desenvolveu a noção de que o presente era um momento de peso excepcional na História Mundial. A noção de que aquela época havia transcendido a período greco-romano, tão importante para os renascentistas. A História Clássica ainda era venerada, mas agora, a Europa moderna requeria graus de autonomia cultural. A História possuía uma função social para os iluministas e, geralmente, suas abordagens do passado serviam para condenar e para reafirmar a sua crença no progresso da humanidade. Assim, a abordagem era centrada no homem, padrões e crenças de sua própria época. A leitura do passado tinha como intenção promover a virtude provendo exemplos morais que deveriam ser imitados ou evitados (BENTLEY, 1997).

A leitura de um dicionário e, pode-se imaginar, todo o processo de sua confecção acaba por inspirar a essa já longa digressão sobre algumas das bases epistemológicas nas quais reside nosso impulso sistematizador do conhecimento. As fronteiras da razão humana a partir de então pareciam ilimitadas, a partir das quais os limites do progresso humano seriam incalculáveis. É nesse clima que a publicação da Enciclopédia (Encyclopedie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, 1751-1771 – Diderot e D’Alembert) se tornava uma sinédoque daquilo que se configurava, num sentido mais amplo, o próprio movimento iluminista. Entre 1751 e 1771 dezessete volumes foram organizados, nos quais estavam compilados todos os conhecimentos modernos de A até Z (DARTON, 2001).

No Pequeno dicionário de grandes personagens históricos, organizado pelos professores da Universidade de Pernambuco (UPE): José Maria Gomes de Souza Neto, Kalina Vanderlei Silva e Karl Schurster, após mais de duzentos anos do iluminismo, revisita-se, em quase quinhentas páginas, o impulso de se dedicar à sistematização do conhecimento. Neste caso, dedicado às trajetórias histórico-biográficas de personagens que tiveram papel significativo no desenrolar dos acontecimentos de seus próprios tempos e, muitas vezes, muito além da efeméride de sua própria vida. Numa empreitada como essa, torna-se quase inevitável a avaliação da relação entre trajetória biográfica e vetores de transformação socioculturais, como Karl Schurster e Leandro Couto Carreira Rincon fizeram na introdução, p.XXI-XXIII.

Em que medida o tempo de uma vida é importante para deixar marcas, por vezes indeléveis, no tecido da história? Um dos mais representativos historiadores do século XIX, Jacob Burckhardt, cuja concepção de história contrastava profundamente com o mainstream da historiografia de sua época, concedia pouco relevo aos personagens como reais agentes da transformação sociocultural, para o historiador suíço, os atores históricos eram não muito mais do que elementos representativos de uma época. Ainda que fosse assim, Burckhardt considerava uma espécie de relação entre o indivíduo e a comunidade e que um grande homem pode romper as forças estáticas que mantém a coesão cultural. São estes homens que emprestam movimento à dinâmica da História contra formas antiquadas de existência. Qual a importância de Michelangelo e Rubens para a arte do Renascimento, qual a relevância de Péricles e Alcibíades para os desdobramentos políticos da segunda metade do século V a.C.? A reposta está mais nas bases epistêmicas do conhecimento produzido por Burckhardt, pois o ponto de inflexão não era a trajetória desses homens, tornados já discurso pela própria narrativa de um Tucídides ou de um Giorgio Vasari, mas sim dos nexos mais profundos entre a cultura, o estado e a religião (MURRAY, 1998).

Os jogos de escala e propostas metodológicas da Micro-História italiana de Edoardo Grendi, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi e, em certo sentido, os estudos seminais de Edward P. Thompson, nos levam a outra forma de História Cultural que toma personagens pouco ou nada conhecidos e suas trajetórias como ponto de partida para descortinar elementos mais profundos das comunidades em que esses indivíduos estavam inseridos. Era a inversão qualitativa da história dos grandes processos e transformações para uma compreensão mais capilar das mudanças sociais que, talvez, a história de lentes mais abertas não conseguia capturar (LIMA, 2006). E como esse novo dicionário, esse ainda epíteto de uma idade da razão se coloca após pelo menos duzentos anos de crítica e reflexão dentro da Historiografia?

Do ponto de vista da organização, o Pequeno Dicionário está organizado em seis partes, a saber: Parte I – Exploradores do infinito; Parte II – Cometas e seu brilho: os líderes políticos; Parte III – Pontes com o divino; Parte IV – Os demiurgos; Parte V – Heróis da resistência; Parte VI – Senhores da guerra. Dentro de cada uma dessas partes foram inseridos os verbetes. No total, o Pequeno Dicionário conta com oitenta deles. Cada uma dessas entradas é acompanhada ainda de um subtítulo explicativo adscrito e um epíteto de cunho metafórico, por exemplo, Homero: Poeta grego século VIII a.C. – O educador da Hélade; Martinho Lutero: Teólogo alemão, 1483-1546 – O reformador; Átila: Chefe huno, c.400-454 – O flagelo de Deus, e assim por diante. Cada um dos verbetes, em suas respectivas páginas vem acompanhados de uma ilustração que faz menção a de cada uma das personagens, geralmente por meio de um busto. Este elemento reforça o caráter juvenil do Pequeno Dicionário, tornando-o mais leve para a leitura. Essa mesma função é feita pela janela curiosidades, que surge sempre ao final dos verbetes, com um fato pitoresco ou complementar sobre a trajetória ou sobre o contexto da época de cada personagem.

Como o seu próprio título indica, trata-se de um pequeno dicionário, e dizer que ao invés de Homero poderiam ter escolhido Heródoto, Jung ao invés de Freud ou ainda Ella Fitzgerald no lugar de Billie Holiday seria uma chateação indesculpável deste ou de qualquer outro leitor. O melhor a se fazer é deixar se levar na forma leve em que as linhas de vida são perfiladas no Pequeno Dicionário.

Já tendo me estendido em demasia sobre o iluminismo no início deste comentário não retornarei a essa temática dentro dos verbetes, mas sim, por meio de dois outros para tentar mostrar um pouco dos encaminhamentos dados pelos autores, seja quanto às suas formas ou conteúdos.

O verbete sobre o dramaturgo e cidadão ateniense Sófocles (p.228-234), um dos maiores nomes do teatro grego antigo, é iniciado com uma afirmação categórica de Aristóteles em sua Poética; a que punha Édipo Rei, tragédia encenada por volta de 427 a.C., como a mais perfeita obra deste gênero teatral. E é desta forma que os autores tentam explicar a obra de Sófocles, por meio da leitura de Aristóteles. O terror e a piedade, elementos da kathársis convergem numa estética da recepção característica dos helenos, que acentua o fenômeno de purificação, tida pelo filósofo como uma das funções da tragédia Ática. De uma leve guinada, estamos tomando conhecimento da vida não apenas de Sófocles, mas também de outros dramaturgos gregos e de seus próprios contextos criativos, suas lutas nas batalhas intermináveis da Guerra do Peloponeso e disputas simbólicas, no Teatro de Dioniso, na Atenas do século V a.C.

Mais adiante, é possível deter o seu tempo em muitos outros verbetes, mas por que não entender um pouco sobre uma das figuras mais celebradas, mal compreendidas e apropriadas pela cultura popular, o samurai lendário Miyamoto Musashi (p.431-435). Após brandirem suas espadas em uma enorme batalha, o clã Tokugawa iniciou um período de governo centralizador e rígido, que só seria encerrado com a transição e processo de ocidentalização do Japão na era Meiji. Entremeios, surgia a figura de Musashi, misto de ronin e filósofo de sua arte com a katana. De livro tornado célebre por Eiji Yoshikawa a releituras da figura do samurai feitas por cineastas japoneses como Akira Kurosawa, Takeshi Kitano, Yoji Iamada, Hiroshi Inagaki e Takashi Miike, podese ter um lampejo de como a figura do samurai se tornou não apenas um elemento cultural japonês. Tornado ainda mais acessível na prática do Akidô, mas cultuado mundialmente, figura do imaginário, às vezes bastante romantizado, em torno desses homens da guerra e de seus códigos de conduta e honra absolutamente inflexíveis.

Uma das poucas ressalvas que se pode fazer ao Pequeno Dicionário são atinentes à forma. Em se tratando de uma obra de projeto gráfico-editorial bastante moderno, poder-se-ia investir em indicações bibliográficas dentro de cada um dos verbetes, ainda que apenas uma ou duas referências fundamentais, isto faria a pesquisa mais dinâmica e intuitiva. Outro elemento que pode ser mencionado é quanto à taxonomia utilizada para traçar uma divisão entre as personagens do dicionário. Creio que há um nível significativo de interseção entre os líderes políticos e os senhores da guerra, por exemplo. É claro que sempre há algo de arbitrário nas escolhas e as classificações, que quase nunca são perfeitas. No limite, é apenas uma ênfase na abordagem que poderia alocar Adolf Hitler em líderes políticos e não em senhores da guerra. Na verdade, a notória e nefasta personagem do século XX faria justiça a essa “dupla-inserção”.

O interesse pela obra, pelo ser humano, pelo tempo. Qual o significado de uma vida? Qual o padrão de julgamento que os historiadores podem utilizar para fazer esse tipo de avaliação? Quiçá, chegue-se à conclusão transitória de que vida é compreendida de sentidos, geralmente expressos por uma narrativa mais ou menos coerente e orientada em torno da qual reside um projeto. Se no relato autobiográfico, como disse Pierre Bourdieu, há a busca de se “tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva”, há o risco de se mergulhar numa espécie de ilusão retórica. Se na análise do historiador as ilusões de um percurso autobiográfico podem ser desfeitas, desveladas, então qual a natureza da narrativa que se poderia criar para as grandes personagens? Em que nível a memória, a análise histórica, o viés metodológico e as orientações teóricas desaguam num texto inteligível em relação à constância nominal, ao indivíduo cujo nome próprio assegura a existência dessa personalidade no devir temporal? (BOURDIEU, 1996 p. 183-191).

Essas são perguntas muito caras aos historiadores e qualquer resposta demandaria muito mais espaço do que se poderia dispor nesse trabalho cujas pretensões são declaradamente limitadas. Uma das melhores respostas, no entanto, foi dada por um sociólogo. Ao tratar da vida de Wolfgang Amadeus Mozart, Norbert Elias em nenhum momento mostra desprezo ou pormenoriza os fatos casuísticos da atribulada vida desse notável músico. Entretanto e, sem dúvida alguma, a sinfonia de Elias começa a ganhar corpo aos ouvidos dos historiadores quando se mostra interessado em como “Mozart só emerge claramente como um ser humano quando seus desejos são considerados no contexto de seu tempo” (ELIAS, 1994, p. 15). Porque, segundo o sociólogo, as realizações e os fracassos de Mozart surgem em um contexto em que a dinâmica entre os conflitos de padrões de classe são cruciais para o entendimento da vida do músico, em talvez entendê-lo como um “burguês outsider a serviço da corte” (ELIAS, 1994, p. 16). Assim, Elias afirma que: “É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo [… e do] modelo das estruturas sociais da época, especialmente quando levam a diferenças de poder” (ELIAS, 1994, p. 18-19).

Por fim, creio que o leitor terá em mãos, no Pequeno dicionário de grandes personagens históricos um notável exemplo desse esforço, a saber: de não se perder na ilusão e nos gracejos vazios do pitoresco e do riso fácil, como em uma deliciosa comédia de costumes de Martins Penna, e de tentar dar conta dessas mudanças das estruturas sociais, do habitus, que condicionam as ações e reações dessas personagens nos mais diferentes contextos sociais em que viveram (BOURDIEU, 2009).

A obra em questão que atenderá a um amplo público, especialmente alunos de ensino médio, dos primeiros períodos de graduação e ao público leitor em geral. Representa esse esforço iluminista e convida a todos a mergulhar nas trajetórias e em tempos pretéritos. Assim, se pode ir muito além de ler o verbete como um fim em si, mas utilizá-lo como a possibilidade de ser uma janela para novas pesquisas, para a possibilidade de deixar a história orientar a vida, de se ampliar como ser humano e, a cada vez que se cruzar esse rio ter a sensação da renovação, de viver em um mundo mais consciente da sua existência pela do outro. (RÜSEN, 2001)

Referências

BENTLEY, Michael. Introduction: Approaches to modernity: Western historiography since the enlightenment. In: __________. (Ed.) A Companion to Historiography. London: Routledge, 1997.

BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009. (O original é de 1980).

__________. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M. e AMADO, J. (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 1998.

CHENG, Eileen Ka-May. Historiography: An introductory Guide. London: Continuum, 2012, p.29-

DARTON, Robert. A eclosão das Luzes. In: __________ e DUHAMEL, Olivier. (Orgs.) Democracia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, p. 21-36.

FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 61-89.

FONTANA, Josep. História: Análise do passado e projeto social. Bauru: EDUSC, 1998.

LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escala, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UNB, 2001. Vol. I

Guilherme Gomes Moerbeck – Professor adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da ESDI/UERJ Pós-doutorando do LABECA/MAE-USP. E-mail: gmoerbeck@yahoo.com.br

SCHURSTER, Karl; SOUZA NETO, José Maria Gomes de; SILVA, Kalina Vanderlei (Orgs.). Pequeno dicionário de grandes personagens históricos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. Resenha de: MOERBECK, Guilherme Gomes. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 163- 170, 2017. Acessar publicação original [DR]

BOUREAU Alain (Aut), Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330) (T), Editora da UNICAMP (E), FLECK Luiz Otávio Carneiro (Res),  Brathair (Btr), Demonologia, Europa Medieval, Séc. 13-14, Europa (l)

Conspirações, redes de heréticos ameaçando a cristandade, demônios dotados de poder e prontos a se fundir com os humanos. Esse é o pano de fundo no qual se desenrola a construção de uma ciência dos demônios, a demonologia, entre o fim do século XIII e início do XIV. O argumento é que essa construção ocorreu no âmbito escolástico. Em síntese é assim que se pode resumir o livro Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330), de Alain Boureau.1 O livro foi publicado originalmente em 2004, na França, sob o título Satan héretique: Naissance de la démonologie dans l’Occident médiéval (1280-1330). A tradução, no entanto, é recente: em 2016, por Igor Salomão Teixeira2, na coleção Estudos Medievais, da Editora da UNICAMP. Esse é primeiro livro de Alain Boureau publicado no Brasil.

Partindo de pressupostos da história intelectual, na relação texto/contexto, Boureau desenvolve o argumento que o nascimento da demonologia ganhou força a partir do final do século XIII e nas primeiras décadas do século XIV junto aos debates escolásticos nas universidades. Demonologia essa que o autor defende ser “(…) a gênese da obsessão demoníaca (…) plenamente provida de procedimentos e de certezas por volta de 1430-1450 (…)” (BOUREAU, 2016: 19) que dá início à “caça às bruxas”. Ao longo dos sete capítulos do livro é discutido como o demônio emergiu fortalecido e capaz de ameaçar a Cristandade. O diabo, e seus poderes sobre os homens, estava cada vez mais presente nas discussões de teólogos e canonistas naquele período. Nessas considerações é possível perceber o que o autor chama de “antropologia escolástica”. A antropologia escolástica seria o entendimento de novas formas para se pensar os homens (sua natureza, sua origem) e que tem este nome de “escolástica” por ser marcadamente oriunda do âmbito universitário europeu entre 1150-1350. O “homem” teria passado a ser, segundo Boureau, o objeto privilegiado nos debates intelectuais universitários (TEIXEIRA, 2014: 3)3.

Essa “antropologia” atuou de forma decisiva na emergência de uma obsessão pelo demônio no cristianismo medieval, entre 1280 e 1330, ao se preocupar com a relação do humano com o sobrenatural e com o mundo natural. Influenciada por reflexões naturalistas e escolásticas, essa antropologia trouxe à tona um sujeito multifacetado mais propenso às ações do sobrenatural (tanto em relação às investidas de deus e suas criaturas benéficas quanto às dos demônios):

A antropologia escolástica, explorando os limites da ação e da consciência, tinha descrito as zonas de vazio e de fragilidade da personalidade humana. Ora, a sobrenatureza, longe de ter horror ao vazio humano, parecia encontrar acolhida exatamente aí. (BOUREAU, 2016: 201)

Na gênese dessa demonologia, estava presente o embate entre duas “antropologias” no âmbito escolástico. De um lado havia uma “antropologia tomista”, oriunda dos escritos de Tomás de Aquino, teólogo da Ordem dos Pregadores (OP). De outro, uma “antropologia neoagostiniana”, oriunda principalmente dos escritos de Pedro de João Olívio, teólogo da Ordem dos Frades Menores (OFM). Segundo Boureau, para Tomás de Aquino os poderes de Satã estavam confinados à manipulação do mundo natural e não tinham efeitos sobrenaturais em relação aos homens. Diferentemente, na concepção de Pedro de João Olívio, Satã era dotado de poderes sobrenaturais, sendo capaz de atuar sobre os homens.

Tomás de Aquino desenvolve sua “antropologia” na relação entre o humano e o sobrenatural em diversos tratados teológicos. O principal desses é De malo (“Sobre o mal”), redigido por volta de 1272, durante a segunda regência de Tomás em Paris. No De malo o teólogo discute a natureza dos demônios e as circunstâncias de sua queda. Além disso, Tomás se preocupa com as capacidades dos demônios após sua queda e os seus poderes sobre os homens. Nisso, os demônios são descritos como seres sem muita vivacidade, limitados na sua ação ao mundo natural. Sua incapacidade de atuar sobre os humanos de forma sobrenatural deve-se ao uso, por Tomás, de uma psicologia aristotélica. Nessa, é defendida a unidade do sujeito, com o humano composto de uma forma, dada pela alma intelectiva, e uma matéria, isto é um corpo. Portanto, para Boureau, na concepção tomista, a pessoa é vista como substância individualizada da natureza racional. Esta forma de “antropologia” é definida por Boreau como um “‘individualismo substancial’” (BOREAU, 2016: 223). O homem, então teria uma personalidade una, selada por Deus, fazendo com que possuísse uma forma substancial única. Por isso, a alienação de alguma faculdade diminui o poder espiritual e cognitivo do homem. Ou seja, a possessão anularia qualquer possibilidade de ação do sujeito.

Oposta a essa “antropologia tomista” há uma “antropologia neoagostiniana”. Nessa, Pedro de João Olívio apresenta em sua Suma sobre as Sentenças, de Pedro Lombardo, os demônios dotados de possibilidades de atuar sobrenaturalmente em relação aos homens. Neste texto Pedro Olívio ataca os pressupostos lançados por Tomás no De malo. Para o frade Menor o demônio possuía uma capacidade real de ameaçar o homem pelas suas capacidades sobrenaturais. A capacidade que o demônio tem de atuar sobre os humanos deve-se ao uso, pelo franciscano, de uma psicologia agostiniana. Essa é marcada por uma teoria pluralista na qual o sujeito possui uma estrutura federativa ou confederativa, sendo composto de diversos estratos. Além disso, a alma é concebida com certa autonomia sobre o corpo, tendo lugar no interior do indivíduo o confronto entre o divino e o mal. Nisso o homem possuiria, portanto, uma forma substancial múltipla na qual convivem diversas personalidades. O que gesta uma “antropologia” marcada pela ideia de “‘individualismo acidental’” (BOREAU, 2016: 223). Boureau complementa: Com o homem dotado de passividade e descontinuidade na sua pessoa é possível inferir que a sua alma coabitasse tanto com o divino quanto com os decaídos. O demônio, portanto, figura como uma extensão da personalidade de alguns homens. É esse limite cognitivo e espiritual que abre a possibilidade da possessão.

Segundo Boureau esses embates teológicos gestaram a demonologia no âmbito escolástico. Sendo que “(…) a oposição entre Tomás de Aquino e Pedro Olívio nos mostra os contornos da nova cartografia demonológica.” (BOREAU, 2016: 118). É, portanto, principalmente, a partir das considerações desses dois teólogos que se desenvolvem os argumentos de uma demonologia escolástica.

Para pensar como essas considerações, do final do século XIII, são recebidas nas duas primeiras décadas do século XIV, o autor parte das atas de processos de canonização para “(…) encontrar um eco das novas preocupações demonológicas que dominam o início do século XIV e (…) marcam a ação dos papas Clemente V e João XXII.” (BOREAU, 2016: 146). Nesses processos o autor identifica uma relação próxima entre o louco e o possesso. De um pontificado ao outro, casos semelhantes, que antes eram tratados como cura da loucura, passam a ser cada vez mais considerados como exorcismo de demônios.

Nos processos iniciados pelo pontífice Clemente V, como o de Tomás de Cantilupe (1307-1320) e de Luís de Anjou (1308-1317), Boureau identifica a presença de cura de casos de loucura. Porém, nenhum de possessão demoníaca. Essa situação muda durante o pontificado de João XXII com relatos de combate contra o demônio em inquéritos de canonização de santos como Tomás de Aquino (1319-1323). Outro caso, desse mesmo pontificado é o de Nicolau de Tolentino (1325-1446), com diversos casos de possessão e exorcismo, além de fraca presença de casos de loucura nas atas do inquérito, é descrita a luta do santo contra demônios.

Esse último caso, o de Nicolau, é interessante já que leva 121 anos para a finalização do processo. Boureau argumenta que isso se deve, principalmente, à prudência da cúria quanto às canonizações de santos muito envolvidos no combate aos demônios. Além disso, argumenta que, apesar das virtudes eclesiológicas de um santo, naquele período no qual ainda estava se consolidando uma demonologia, poderia levar os leigos a perigosos diálogos. Para o autor, essa mudança ocorrida entre os dois pontificados estava relacionada aos problemas que João XXII enfrentou nas décadas de 1310, 1320 e 1330:as contendas em relação ao espirituais franciscanos, defensores ferrenhos da pobreza evangélica de Cristo e grandes críticos do papado de Avignon. De ambos os lados, tanto dos frades quanto do papado, partem acusações de envolvimento com o Satã. João XXII era considerado o Anticristo místico, proposto no comentário de Pedro de João Olívio. Segundo o franciscano, o anticristo estaria disfarçado de papa e desvirtuaria a Igreja, preocupado apenas com enriquecimento desta. Uma vez que João XXII foi um dos papas que mais enriqueceu a Igreja, durante o século XIV4, os espirituais acusavam-no de ser a encarnação e Satã. Por outro lado, estes frades eram acusados de envolvimento com o demônio, por armarem conspirações e eram considerados hereges que voltavam junto ao diabo para assombrar os fiéis. Sobre os espirituais choveram condenações de heresia, sendo seis deles queimados em 1318, e ordenada a destruição da obra de Olivi em 1326.

Portanto, essa demonologia, desenvolvida no âmbito escolástico, esteve muito associada às tentativas de deslegitimar adversários políticos e ao ataque aos poderes estabelecidos. É isso o que discute Alain Boureau no capítulo um do livro, quando demonstra como o desenvolvimento teológico de uma demonologia durante as últimas décadas do século XIII foi utilizado para dar base à associação entre magia, demônio e heresia. Segundo o autor, é principalmente durante o pontificado de João XXII, no início do século XIV, que se tem “(…) um novo desenvolvimento judiciário (…)” (BOUREAU, 2016: 24).

Nesse período, o conteúdo doutrinal acerca do pacto com o diabo recebeu uma nova abordagem, na qual foi valorizada a ação universal dos demônios. Ou seja, o diabo perdia a limitação de seu poder ao mundo natural, para ganhar novos poderes, capaz de agir sobrenaturalmente, ameaçando a cristandade. Nesse desenvolvimento judiciário, Boureau demonstra a importância da bula Super illius specula e da comissão sobre a magia, reunida pelo papa João XXII, em Avignon, em 1320. A bula, promulgada entre 1326 e 1327, foi, para o autor, o texto fundador da obsessão demonológica e do interesse do papa pela magia. Nela, João XXII incrimina práticas mágicas, como o uso de imagens e utensílios, que derivavam da adoração aos demônios por meio da associação entre a invocação destes com as aquelas práticas, sendo ambos referidos como dogma. Porém, a grande novidade da Super está no desenvolvimento de um novo conceito relacionado a construção processual deste pontificado. É nessa bula que o papa traz a noção de “feito herético” (factum hereticale), a partir do qual a heresia deixava de ser apenas matéria de opinião, passando a estar relacionada também à ação. Apesar da originalidade da bula ser passível de discussão, a questão do fato herético já figurava na consulta de 1320 sobre a magia. Nessa, a noção de fato herético estava presente nas questões propostas à comissão. Na consulta o papa perguntou a teólogos e canonistas se era possível associar práticas como o batismo de imagens e outras práticas mágicas à heresia, que, poderia ser considerada crime de lesa-majestade divina, punida com o máximo de rigor pela purificação por meio das chamas. Apesar dessa associação encontrar resistência nas respostas da maior parte dos teólogos chamados para a consulta, resoluções, como a do franciscano Henrique de Carretto, deram crédito à tese do fato herético.

A essa tese estavam associadas outras práticas jurídicas de João XXII. O uso da fama para determinar a qualidade das ações dos que estavam sendo acusados de heresia, a utilização do processo sumário nos casos de julgamento relacionados à invocação de demônios e o recurso a tribunais especiais do papado, para cuidar destes casos. Segundo Boureau, essas práticas demonstram não só a desconfiança de João XXII quanto a Inquisição, mas também que frente a ameaça dos demônios era necessário uma ação rápida e eficaz. Assim, o autor propõe que a forma de agir do papa demonstrava que “(…) em matéria de sortilégios, antes de reprimir, importava (…) reunir opiniões em relatórios complexos unindo a magia, a invocação de demônios e a heresia.” (BOUREAU, 2016: 53).

O livro Satã Herético não é uma leitura simples, fazendo-se difícil para iniciantes que ainda não tiveram contato com tema das ordens mendicantes e sua relação com as universidades. Boureau traz como subentendido que seu leitor deve ter alguma noção sobre o contexto do papado de Avignon, do âmbito universitário dos séculos XIII e XIV e do método escolástico. Apesar desses pontos, que podem dificultar a leitura, a forma como autor relaciona as discussões escolásticas com o fazer político dos jogos de poder no período é interessante, e importante em termos metodológicos. Pois, permite ao historiador, que deseja se debruçar sobre as questões políticas do período, montar o contexto linguístico, do qual parte o conteúdo dos vestígios aos quais se dedica.

Notas

1Alain Boreau atualmente é diretor do Groupe d’Anthropologie Scolastique (GAS) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Também, atua como co-diretor das coleções Histoire e Bibliothèque scolastique da editora Les Belles-Lettres. Além de ser membro do comitê de redação da revista Penser/rever. Informações obtidas em: http://gas.ehess.fr/document.php?id=122

2 Igor Salomão Teixeira é professor de História Medieval no departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

3 TEIXEIRA, I. S. “Antropologia histórica e antropologia escolástica na obra de Alain Boureau”. In: Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre. Auxerre, França. Vol. 18, n. 1, 2014. pp. 1-13. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/103476 Último acesso em: 27 de abril de 2017.

4 Cf. LE GOFF, J.A Idade Média e o dinheiro: Ensaio de antropologia histórica. RJ: Civilização Brasileira, 2014. Para mais sobre o contexto do papado de João XXII e as disputas com os espirituais ver: AGAMBEN, G. Altíssima pobreza. SP: Boitempo, 2014; BÓRMIDA, J. (OFM Cap.). A não propriedade: uma proposta dos franciscanos do século XIV. Porto Alegre: Edições EST, 1997; BURR, D. “The Correctorium Controversy and the Origins of the Usus Pauper Controversy” In: Speculum. EUA: Medieval Academy of America, 1985, n. 60 (2). pp. 331-342; DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003; FLOOD, D. (OFM). “Poverty as Virtue, Poverty as Warning, and Peter of John Olivi” In: BOUREAU, A. e PIRON, S. (dirs.). Pierre de Jean Olivi (1248-1298): Pensée scolastique, dissidence spirituelle et société. France: Librairie Philosophique J. VRIN, 1999. pp. 157-173; NOLD, P. Pope John XXII and his Franciscan Cardinal: Bertrand de la Tour and the Apostolic Poverty Controversy. Oxford: Oxford University Press, 2003; e TEIXEIRA, I. S. Como se constrói um santo: A canonização de Tomás de Aquino. 1. ed. Curitiba: Prismas, 2014.

Luiz Otávio Carneiro Fleck – Mestrando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: lotaviocf@gmail.com

BOUREAU, Alain. Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Campinas: Editora da UNICAMP, 2016. Resenha de: FLECK, Luiz Otávio Carneiro. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 171- 177, 2017. Acessar publicação original [DR]

 

L’Époque romaine ou la Mediterranée au nord des Alpes | Flutsch

No final do século V a.C. os celtas ocuparam o território da atual Suíça, sobrepondo-se às antigas populações lacustres, agrícolas e de pastores. Nova invasão ocorreu no final do séc. II a.C., quando os helvécios – também celtas – liderados por Divico, avançaram do sul da Germânia em direção à Gália. Em 61, então já estabelecidos no território alpino, que os romanos englobavam no nome genérico de gaulês, prepararam-se para nova migração em direção ao oeste, comandados por Orgétorix, migração fracassada pelo assassinato do líder. Entretanto os romanos já haviam dominado parcialmente esse território, isto é, todo o sul da Gália, e o conflito foi inevitável, terminando com a vitória dos romanos sobre os helvécios em 58 a.C.. Tomando partido desse fato Júlio César obriga os helvécios a permanecer na região alpina e dá início à conquista completa da Gália. Estas e outras circunstâncias, afirma Flutsch, têm impedido os suíços contemporâneos de reconhecer Divico ou Orgétorix como heróis nacionais, e leva o autor a falar da cultura ou do legado da romanização mais em termos de galo-romanos (mais abrangente) do que helveto-romanos – mais restrito e discutível, já que os helvécios não defenderam uma “pátria” contra os romanos, mas foram por eles impedidos de sair de onde se tinham estabelecido. Após a vitória sobre os helvécios os romanos iniciaram o estabelecimento de colônias e legiões: por volta de 44 a.C. foi criada a Colonia Julia Equestris (atual Nyon, próximo a Genebra, na margem do lago), e por volta de 20 a. C. começaram as construções na Colonia Raurica, em território dos rauraques, outra população celta – é a atual Augst, próxima a Basiléia, cujos vestígios estão hoje em muito bom estado de recuperação. Portanto no I século a.C. a presença romana embora marcante deixava quase total independência às populações alpinas. Com a chegada do Império as terras da atual Suíça foram ocupadas pelas legiões e pelas instituições políticas e administrativas romanas, que, contudo, não eliminaram as estruturas sociais e a organização dos vários grupos celtas. Nessa fase o território estava dividido por cinco distintas províncias romanas: o norte pertencia à Germânia Superior, o oeste à Narbonense, o sul aos Alpes e à Itália, e o leste à Récia. Ao destacar este fato Flutsch faz notar que a romanização, embora não tenha contribuído para criar uma consciência de unidade no que veio a ser o povo suíço, definiu a “cantonização” que hoje constitui a Confederação Helvética (em que pese a dubiedade deste termo, que ele evitou). De fato, na confederação o norte e centro é de língua alemã, o oeste de língua francesa, o sul de língua italiana, e o sudeste romanche. Depois do seu apogeu no século II d.C. o Império Romano entrou em decadência e em meados do séc. III a crise econômica da Itália atingiu as províncias: as guerras e a anarquia, aliadas aos impostos escorchantes fizeram os agricultores desistir da lavoura, e engrossar as turbas de ociosos e bandidos. Fome e peste provocaram a baixa demográfica, e os germanos, aproveitando-se da fraqueza imperial, começaram a atacar as fronteiras e fazer suas primeiras incursões em território alpino. Apesar da recuperação sob Diocleciano, e depois sob Constantino, os romanos continuaram a sofrer os embates com os invasores, e repetidas vezes os alamanos (354, 365, 375) atacaram as legiões e penetraram no território rauraque. Mas o território dito gaulês, ou helvécio, da posterior Suíça não recebeu, antes do séc.VI, invasões maciças germânicas, mesmo quando as legiões abandonaram o território em 401. Quando os Borguinhões, em 443, se instalaram na região de Genebra, rapidamente se incorporaram à cultura galo-romana. Já os alamanos, que ocuparam o norte no século seguinte, impuseram seu idioma germânico, que se mantém até hoje. Depois dessa revisão histórica do período romano (I a.C. a V d.C.) que ocupa metade do livro, o autor dedica um capítulo à “globalização econômica”, ou seja, às marcas deixadas pela romanização no modo de vida material. A incorporação das regiões alpinas gaulesas e helvéticas à economia do Império trouxe estruturas administrativas eficientes; todos os tipos de produção usual da época floresceram, novas profissões surgiram, estradas foram construídas – definindo em seus cruzamentos e passagens quase todas as principais cidades suíças da atualidade. A ligação dos Alpes com o Mediterrâneo (razão do subtítulo da obra) não só exportava os produtos locais, mas propiciava à população das montanhas consumir produtos até então desconhecidos ou reservados à elite celta: vinho, azeite, frutas e conservas de peixe passaram a estar ao alcance de grande parte da população alpina. Percorrendo diversos aspectos da vida comum, desde a tecnologia de construção à produção agrícola, Flutsch vai mostrando como o período romano lançou as bases da sociedade suíça; contudo adverte: a romanização operou-se principalmente nos centros urbanos, enquanto nas regiões rurais a cultura celta permaneceu; por outro lado, após o desmoronamento do Império muitas de suas características desapareceram, como certos tipos de bens de consumo e de conforto, que só voltaram à Suíça no séc. XX. Se ao falar de economia Flutsch mostra sua formação e pendor de arqueólogo, apoiando-se freqüentemente nos vestígios materiais da romanização, o último capítulo – “o casamento das culturas” – é ainda mais objetivo e concreto na apresentação de elementos materiais: para comprovar a importância das construções civis e da urbanização como modeladoras e ao mesmo tempo indicadores da vida social; ao trazer inscrições latinas que denotam peculiaridades da continuidade da cultura celta, inclusive familiar, sob capa romana, ou a presença das mulheres nas atividades da elite; receitas médicas evidenciando a introdução da medicina greco-romana; mosaicos e esculturas caseiras mostrando a aceitação da mitologia e da religião romanas; a completa alteração dos hábitos de alimentação pela importação de muitos produtos e dos modos de cozinhar mais sofisticados. Os exemplos que aduz são muitos bastando completá-los com os traços referentes ao que é menos material: as crenças. Uma cabeça de touro tricórnio celta esculpida em estilo romano; as inúmeras estatuetas de Lug disfarçado de Mercúrio; Caturix, deus protetor dos helvécios, que surge como Marte Caturix; Taranis empunhando o raio de Júpiter; o culto às novas divindades orientais que tinham entrado no Império, inclusive o cristianismo, cuja presença em território suíço é atestada desde o final do séc. IV, ou ainda os costumes celtas de velório e sepultamento modificados pelos romanos. Na conclusão, intitulada “um parêntese que não se fechou” o autor retoma e resume as principais aportações da romanização à Helvécia galo-romana desde o latim e a telha ao gato doméstico e ao alho, para defender as suas teses, entre as quais destacamos: 1. a arqueologia é uma ciência bem fundamentada em técnicas de interpretação de vestígios materiais, mas não está imune a influências doutrinais e ideológicas, nem à percepção do antigo pelos olhos da atualidade; é assim que discretamente alude à integração alpina na cultura mediterrânica e na globalização imperial para sugerir (129) que essa antiga abertura conduz a Suíça à integração na União Européia; 2. a romanização lançou os fundamentos do modo de vida suíço da atualidade, mas não construiu uma consciência de nacionalidade unificada, que é muito recente; daí as suas críticas às alusões do passado como criador dessa identidade de povo, que ele considera um erro de interpretação que falseia a própria visão da Suíça – aliás o autor continuamente se dirige a seus patrícios, pois usa muito o termo “nós” e “nosso” para falar da região. Deste modo, um pequeno volume de introdução a um período histórico é de fato, como toda a coleção Savoir Suisse, um chamado à revisão da percepção que os suíços têm de si mesmos e do seu papel na atualidade. De alguma forma a arqueologia de Laurent Flutsch, diretor de escavações, de exposições e do Museu romano de Lausanne-Vidy, é uma ciência de intervenção política.

João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br


FLUTSCH, Laurent. L’Époque romaine ou la Mediterranée au nord des Alpes. Lausana: Presses polytechniques; Universitaires romandes, col. Le Savoir Suisse, 2005. Resenha de: LUPI, João. A Suíça e o Mediterrâneo. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.7, n.1, p. 101-103, 2007. Acessar publicação original [DR]

Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada | Jacques Le Goff

O livro A la recherche du temps sacré ou, na edição brasileira, Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada foi uma das últimas obras produzidas pelo historiador Jacques Le Goff a ser traduzida para o português. Lançada originalmente em francês no ano de 2011, a produção foi mais uma contribuição do autor para os estudos medievais. O texto foi traduzido e publicado no Brasil apenas em 2014, pela editora Civilização Brasileira.

Jacques Le Goff é considerado pela comunidade acadêmica como um dos principais historiadores do século XX. Foi diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales – sucedendo Fernand Braudel – e, ao lado de nomes como Georges Duby, Pierre Chaunu, Le Roy Ladurie, entre outros, esteve à frente da chamada terceira geração da Escola dos Annales. No campo bibliográfico, Le Goff desenvolveu uma vasta produção – entre artigos, capítulos, livros, etc. – dentre a qual podemos mencionar, apenas para citar alguns títulos já traduzidos para o português: Os Intelectuais na Idade Média; O nascimento do purgatório; São Francisco de Assis; Homens e mulheres na Idade Média; A Civilização do Ocidente Medieval. Como reconhecimento de sua atuação, recebeu, em 2004, o prêmio Dr. A. H. Heineken de História, atribuído pela Academia Real das Artes e Ciências dos Países Baixos. Leia Mais

Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente | Jacques Le Goff

Jacques Le Goff, um dos historiadores mais influentes do século XX, trouxe com seus mais de 40 livros, novos olhares sobre a Idade Média, não só no meio acadêmico mas entre aqueles interessados em outras perspectivas sobre o Medievo, além de tratar da religiosidade e das tendências econômicas, usou a Antropologia Histórica no Ocidente Medieval, além da Sociologia e Psicanálise, buscou a cultura e a mentalidade do homem do Medievo, visitando o imaginário não somente das grandes personalidades, mas também daqueles que faziam parte do cotidiano desse período.

Vemos, em sua trajetória nessa seara de possibilidades, a análise do Medievo em várias frentes, desde a econômica em sua primeira obra de 1956, Mercadores e Banqueiros na Idade Média, e A Bolsa e a Vida, de 1997, à religiosidade em O Nascimento do Purgatório, de 1981 e São Francisco de Assis, de 2001, passando pelo imaginário na obra O Imaginário Medieval, de 1985, chegando a aspectos como trabalho, cultura e o tempo. Leia Mais

A História deve ser dividida em pedaços? | Jacques Le Goff

Em um dos seus últimos trabalhos, Jacques Le Goff discute a propriedade ou não de se dividir a História em períodos ou, como consta do título, em pedaços. O livro encontrase distribuído em doze itens: Preâmbulo (pp.7-9); Prelúdio (pp.11-14); Antigas Periodizações (pp.15-23); Aparecimento Tardio da Idade Média (pp.25-32); História, ensino, períodos (pp.33-43); Nascimento do Renascimento (pp.45-58); O Renascimento atualmente (pp.59-73); A Idade Média se torna “os tempos obscuros” (pp.75-95); Uma Longa Idade Média (pp.97-129); Periodização e Mundialização (pp.131-134); Agradecimentos (pp.135-136) e Referências Bibliográficas (pp.137-149).

Nesse trabalho, Le Goff postula claramente a favor da ideia de uma Longa Idade Média e/ou, se desejarmos, uma Idade Média Tardia, que seria encerrada com as chamadas “revoluções” Industrial e Francesa no século XVIII. Em contrapartida, contesta a ideia de um Renascimento que teria rompido com o período medieval nos séculos XV e XVI. Leia Mais

A Idade Média e o Dinheiro – ensaio de antropologia histórica | Jacques Le Goff

O último livro do historiador francês Jacques Le Goff foi publicado originalmente em 2010. Traduzido por Marcos de Castro, foi publicado no Brasil em 2014. “A Idade Média e o Dinheiro” não deve ser interpretado como uma obra que contém uma reviravolta na historiografia de Le Goff, mas como uma síntese das ideias que nortearam o autor em sua carreira acadêmica. Desta forma, os elementos que compuseram seus traços característicos se expressam na obra de forma bem clara: o interesse em problemas e questões de longa duração; a proeminência e o impacto das questões subjetivas ou mentais; a ênfase nas instituições e transformações urbanas; a relação entre a mentalidade e a religião; as ordens eclesiásticas; a relação com o dinheiro e o tempo (a partir da usura); uma Idade Média de longa duração e sua possível relação com o capitalismo.

Conforme o subtítulo anuncia, sua preocupação é estabelecer um ‘ensaio de antropologia histórica’. Desta forma, compreende-se que a obra priorize os elementos culturais (ou mentais) do significado do dinheiro para o medievo. Isso não significa, no entanto, que a materialidade seja totalmente descartada na obra. A forma como esta é trabalhada, contudo, ficará mais clara ao longo da exposição da obra. Leia Mais

Como se constrói um santo: a canonização de Tomás de Aquino | Igor Salomão Teixeira (R)

TEIXEIRA Igor Salomao a canonização de Tomás de Aquino
TEIXEIRA I Como se constroi um santo a canonização de Tomás de AquinoIgor Salomão Teixeira | Foto: AracneTV |

O fenômeno de santidade, marcado pela sua complexidade e pelo ânimo que alimenta a espiritualidade cristã ocidental, traz consigo toda a densidade que o comporta no que tange ao seu processo de desenvolvimento. Sendo o santo o expoente máximo, cuja vivência terrena lhe confere o acesso irrestrito ao plano sagrado, seu caráter intercessor o torna um importante elemento mediador entre a instância divina e o fiel.

Pensando-o como construção, isto é, imergindo mais profundamente em seu caráter sócio-cultural de concepção, ele é o produto de um intento individual ou coletivo. Nessa linha de raciocínio, ele segue um sentido de ser, encontrando seu delineamento a partir de determinados interesses. O santo reúne em si uma confluência de elementos característicos que ocupam, na lógica social na qual tem origem, finalidades específicas.

Levando em conta o acima exposto, trabalhar o processo de construção de um santo não se torna um exercício de simples execução, dado as múltiplas dimensões que envolvem seu desenvolvimento. Nesse sentido, Igor Salomão Teixeira encontra em sua empreitada um espinhoso, mas interessante caminho de buscar entender como se deu o processo de canonização de Tomás de Aquino e seus consequentes interessados.

Publicado no ano de 2014, o livro de Teixeira traz como objeto de pesquisa o desenvolvimento do processo de canonização de Tomás de Aquino, levado a cabo no papado de João XXII, bem como os possíveis interessados na santificação do dominicano. Trabalhando com o conceito de tempo de santidade (intervalo compreendido entre a morte da personalidade e sua efetiva canonização, de modo retroativo), o autor analisa comparativamente tais lapsos entre figuras contemporâneas e/ou próximas a Tomás de Aquino, buscando realçar semelhanças e diferenças entre elas e possíveis motivações ao resultado obtido no processo.

Sete questões norteiam o desenvolvimento da proposta: quem seriam os interessados na canonização de Tomás? Qual a santidade de Tomás de Aquino entre os dominicanos? Os interrogados conheceram Tomás de Aquino? Que relação tiveram com o candidato a santo? Qual a atuação do papa João XXII no processo? Ao final, canonizado, que santo é Tomás de Aquino? Como se deu a operação da construção narrativa que resultou na Ystoria? O que a canonização de Tomás de Aquino explica sobre o período e sobre as pessoas envolvidas? Outras tantas questões, de cunho secundário, são apresentadas, servindo de pontos de apoio para progressões mais detalhadas que auxiliam na costura do todo.

Procurando alicerçar seu posicionamento, buscando base no alinhamento ou refutação do que a bibliografia viabiliza ao tema, Teixeira estabelece diálogos com autores, como, por exemplo: Sylvain Piron, Andrea Robiglio, Roberto Wielockx, Isabel Iribarren, André Vauchez, etc. Em relação ao último, seu conceito de santidade seria contestado por Teixeira a partir da reflexão por ele feita tomando por base a noção de tempo de santidade, identificando com isso o que o processo de Tomás de Aquino carregaria de mais singular.

O livro se desenvolve basicamente em três capítulos, sendo cada um deles responsável por uma parte relevante na composição argumentativa do autor. O primeiro, voltado aos Inquéritos efetuados em 1319 e 1321, destaca, entre outros, uma não aproximação de João XXII com os dominicanos, dado sua negativa em iniciar o processo do também dominicano Raimundo de Peñafort, o que poderia indicar um possível favorecimento à Ordem. Nele também é destacada a predileção por um teólogo a um jurista, assim como era Peñafort. O alcance da santidade de Aquino é apresentado como sendo circunscrito ao local de seu sepultamento, assim como também é realçado o fato de as Ordens religiosas não comporem o corpo massivo nas oitivas, sendo os Pregadores inclusive menos numerosos que os cistercienses.

O segundo capítulo é direcionado para a questão da santidade de Tomás de Aquino em relação à Ordem dos dominicanos. Nele, Teixeira conclui que não havia uma unanimidade no que diz respeito ao posicionamento da Ordem em relação a Tomás de Aquino, sendo as variações produto dos diversos momentos experimentados pelos Pregadores. Nesse sentido, ganha ênfase o fato de no contexto da canonização nem todos estarem de acordo com os posicionamentos de Aquino. Em linhas gerais, por mais que o resultado comparativo efetuado entre as hagiografias de Pedro Mártir, Domingos de Gusmão e Tomás de Aquino indicassem um alinhamento deste ao propósito dominicano, assim como os demais, a carência de milagres e o desenvolvimento de um culto na Sicília dariam indícios de uma canonização que excede os interesses dominicanos.

Já no terceiro capítulo, trilhou-se o caminho de trabalhar o reconhecimento papal da santidade de Aquino a partir de aspectos teológicos. Havia, segundo Teixeira, um interesse, por parte do papado, em promover a canonização do dominicano em virtude da disposição existente entre ambos em relação à questões teológicas pontuais que favoreciam João XXII.

As necessidades alimentadas por um contexto turbulento (século XIV), no qual a autoridade papal se via em meio a constantes reviravoltas, fez com que João XXII, ao assumir um trono vacante (desde a morte de Clemente V, em 1314), iniciasse uma série de reformas, o que teria elevado as finanças papais. As diretrizes centralizadoras implementadas por ele, expropriando bens, aumentando taxas, aumentariam ainda mais o patrimônio eclesiástico. Para Teixeira, a canonização de Tomás de Aquino seria motivada dada a posição do teólogo em relação à pobreza radical da Igreja, sendo ele contrária a ela. Tal linha de pensamento, alinhada aos interesses de João XXII, teria feito com que este, buscando legitimação de suas ações, promovesse o processo de reconhecimento da santidade de Aquino.

Em linhas conclusivas, respondendo às questões principais de seu livro, destaca o autor que três seriam os possíveis interessados na canonização de Tomás: os dominicanos, sua família de nobres da região de Nápoles e o Papa João XXII, sendo o último o que de fato a procedera. Em relação à santidade de Aquino junto aos dominicanos, o autor percebe um posicionamento discreto destes no processo de canonização, com certa divergência dentro do grupo acerca das linhas de pensamento tomistas. No que diz respeito ao processo de canonização, poucos foram, dos que participaram do Inquérito, os que tiveram contato com Tomás de Aquino em vida.

A rapidez da canonização de um teólogo e não de um jurista, entre outras posições, desponta como resposta à atuação do papa João XXII no processo. Ao que se relaciona ao santo que é Aquino, bem como à construção narrativa que originou a Ystoria (sua hagiografia, de Guilherme de Tocco), destaca Teixeira que o santo tinha todos os caracteres dos demais santos da “Igreja Católica” (castidade, virgindade, virtuosidade, etc.), sendo a obra elaborada a partir de uma inserção de seu autor, Guilherme de Tocco, na própria narrativa, destacando os elementos que dariam conta de confirmar a santidade em proposta.

No que tange ao que a canonização de Aquino explica sobre o período e as pessoas envolvidas, o autor destaca as tensões existentes entre o papado e as Ordens religiosas, e mesmo entre estas, nos séculos XIII-XIV. Explica que a criação de uma crença e seu devido reconhecimento leva em conta um emaranhado complexo de elementos de ordem política, social, doutrinária, etc. Tais elementos formariam uma conjuntura que favorece os posicionamentos tomados para o desenvolvimento do processo e para a canonização.

O livro de Igor Salomão Teixeira, ao trabalhar os liames que envolveram a canonização de Tomás de Aquino, levando em conta os interesses envolvidos, traz a necessidade de pensar o próprio processo não unicamente como fonte para o estudo da santidade, mas primeiro como peça jurídica dentro de uma lógica que transcende exclusivamente esta questão. Só assim, os interesses envolvidos no reconhecimento da santidade puderam ficar evidentes, dando noção dos intentos que poderiam mover os agentes em tais processos.

Assim, ao trabalharmos com o fenômeno de santidade, seja através do estudo dos inquéritos desenvolvidos, ou das produções hagiográficos em si, entre outros, levando em conta o sentido dado a partir da construção discursiva, a necessidade de considerar as múltiplas dimensões que envolvem a constituição do santo se fará presente. Nesse sentido, pensar a densidade que os estudos hagiográficos, por exemplo, possam conter, considerando-os também como um elemento que compõe a peça jurídica, elevam em importância o teor narrativo que a obra traz consigo, demandando do pesquisador um fôlego a mais para além da pura santificação.

Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira – Mestrando PPGHC-UFRJ/Bolsista Capes. E-mail: Jonathas_hist@yahoo.com.br


TEIXEIRA, Igor Salomão. Como se constrói um santo: a canonização de Tomás de Aquino. Curitiba: Prismas, 2014. Resenha de: OLIVEIRA, Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.15, n.2, p. 229-233, 2015. Acessar publicação original [DR]

The Rock Basins of Serra do Cume: Azores megalithic rocks and enigmatic inscriptions rearrange the old Atlantic geography / Maria Antonieta Costa

A formação vulcânica do arquipélago dos Açores apresenta uma admirável variedade de litologias (composições rochosas) com propriedades mineralógicas interessantes – assim começa o Abstract introdutório do livro. E continua: no que respeita à formação geológica da ilha Terceira encontram-se presentes quantidades notáveis de sílica, elemento que parece ser fundamental também na composição das construções megalíticas do continente europeu. Seja ou não uma coincidência esse fato dá a impressão de ser ele a razão explicativa segundo a qual os indícios (sinais) encontrados na ilha Terceira, tais como marcas em forma de cortes e de taças, construções megalíticas, “inscrições”, sugerindo que intercâmbios semelhantes entre seres humanos e seu ambiente, que se sabe ocorrerem no continente, podem surgir em lugares mais improváveis, como no meio do Oceano Atlântico. A escolha de tais rochas para construir as ocorrências descritas também implica a existência de um “plano” anterior à sua implantação.

Até aqui o Abstract. O projeto desta investigação faz parte das atividades da Autora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde atua em estágio de pós-doutorado, e onde conta com o apoio da Professora Doutora Alice Duarte, tutora do projeto. Embora a presença de formações rochosas de configuração incomum, e em grande quantidade, desde longa data tenha despertado a atenção de moradores e visitantes da ilha Terceira nunca um estudo sistemático fora empreendido, até que Maria Antonieta Costa, pesquisadora de História da Cultura, resolveu dedicar-se ao tema. Para levar a cabo uma investigação detalhada, cuidadosa, e em larga escala, ela convidou geólogos e arqueólogos, e pesquisadores de áreas afins, e com eles fez o levantamento completo de todo o conjunto. Uma vez que não se encontraram (ainda) vestígios de ocupação humana anteriores à presença portuguesa a atenção voltou-se para definir a sua maior probabilidade através de dois caminhos: comparação com sítios arqueológicos similares em outros locais da Europa (quase todos na Escandinávia), e a análise/interpretação do conjunto em termos de Antropologia do Espaço, ou Antropologia da paisagem cultural. Segundo este ponto de vista certas configurações do ambiente natural (flora, geologia) oferecem à observação um potencial de imaginário cultural que atraem a presença humana, ou, quando menos, a suspeita fundamentada dessa presença.

Uma das questões mais destacadas pela autora é a forte presença de sílica na composição rochosa da Serra do Cume: essa presença não existe em outros locais dos Açores, mas é conhecida em rochas de outros lugares do mundo, onde as propriedades “mágicas” (curativas) da sílica fazem as populações atribuir poderes sobrenaturais às formações rochosas. Há ainda outros aspectos (sinais) destacados no texto e muitos deles fotografados: os riscos e sulcos nas rochas, as formações que lembram animais, ou humanos, as construções de pedras sobrepostas em muros, as taças aparentemente esculpidas na pedra, e o conjunto todo dessas rochas, algumas das quais dificilmente se podem imaginar sem a ação humana, que parece demonstrar uma intencionalidade na sua disposição.

Redigindo a conclusão do livro (agosto de 2014) a Autora afirma que as taças na rocha (rock basins), que foram o pretexto inicial para conduzir a pesquisa, passaram a segundo plano perante a importância que entretanto se revelou no conjunto. Ao preparar uma nova etapa da pesquisa, com o apoio de mais especialistas, e ampliando o campo de ação, Costa já estava também iniciando outras abordagens e consolidações do projeto: o convite a antropólogos europeus para visitarem a Serra do Cume, e a publicação de crônicas em jornais locais – em ambos os casos com a intenção de captar a atenção e o interesse do público, estudiosos, e autoridades, e garantir meios de investigação e credibilidade aos seus resultados.

Sir Barry Cunliffe, professor em Oxford, é um dos antropólogos europeus mais respeitados da atualidade;nos últimos anos ele vem defendendo a hipótese da existência de uma cultura megalítica atlântica muito anterior (nove mil anos a.C.) à suposta “chegada” dos celtas ao extremo ocidente europeu. Pelo contrário, segundo ele – no que é secundado, senão antecipado, por investigadores espanhóis como Ramon Sainero – teria sido nesse extremo ocidente que se teria originado a cultura depois conhecida como celta. Não é pois de admirar que Sir Barry Cunliffe atendesse prontamente o convite, visitasse a Serra do Cume, e no dia 15 de outubro de 2014, ao proferir palestra na Câmara de Vereadores de Angra do Heroísmo (Terceira) se mostrasse muito favorável à continuação das pesquisas. Além disso indicou o antropólogo George Nash para também ele visitar a ilha Terceira, o que o professor britânico aceitou, permanecendo na ilha de 15 a 25 de fevereiro de 2015, e apresentando relatório com suas conclusões.

George Nash percorreu os locais e observou as evidências rochosas mais destacadas: grutas, petroglifos, muros de pedra, rochas zoomórficas, sulcos nas lajes do solo, e concluiu que há possibilidade de serem sinais de ação humana. Constatou, porém, que não há nenhuma prova concreta da presença humanas na ilha anterior aos europeus (portugueses e flamengos); e que o pote de moedas fenícias e cartaginesas encontrado na ilha do Corvo (distante da Terceira) em 1749 só por si não garante que os fenícios tenham visitado as ilhas – as moedas podem ter sido um trote, colocado lá intencionalmente. Por isso ele recomenda que se realize um amplo projeto paleoambiental, procurando, por exemplo, sinais de pólen exótico, ou indícios de corte de floresta; mas aceita a viabilidade de resultados positivos, ao concluir pelo seu engajamento nesse futuro projeto.

As crônicas, onde a autora traduz e detalha diversos aspetos do livro, foram iniciadas no final de novembro de 2014, e no início de abril de 2015 somavam 17 textos publicados, quase todos de cerca de uma página, e sempre com o mesmo título: “Crónicas de uma causa mal-amada” – mal amada porque tem sido rejeitada, ou pelo menos desconsiderada pelo público açoriano. Pelos moradores, que dizem: “Quem gostaria de vir de longe, ver pedras?” (Crónica 9); pelas autoridades, particularmente do Geoparque dos Açores, que se mostram “relutantes” e mesmo “irredutíveis” a propor a candidatura do local investigado para ser classificado de forma diferenciada (Crónica 10); e pelos especialistas, nomeadamente arqueólogos, que têm sido “cegos” (Crónica 11) para as evidências que contrariam a história oficial: a de que o arquipélago era desabitado e não tinha recebido presença humana antes da chegada dos portugueses. Mas, tanto as crônicas como o livro destacam a colaboração que a A. tem recebido de profissionais e especialistas, não só no levantamento completo do sítio (mapas, fotografias, descrições) como na análise e interpretação de alguns aspetos e no seu enquadramento teórico mais amplo. Contudo essas colaborações voluntárias, e os esforços da autora – apresentando-se em congressos, fazendo palestras, e seriados na televisão – não alcançaram ainda um objetivo fundamental do projeto: o de ter aprovada a realização de uma pesquisa arqueológica profunda e vasta, e com ela o reconhecimento da importância do sítio pelas autoridades e público interessados. É notável, porém, que uma obra composta numa ilha no meio do Atlântico, com pouco mais de cinqüenta páginas de texto, e 90 fotografias, tenha despertado a atenção de uma editora alemã e o interesse de dois importantes antropólogos europeus. Há nele certamente mais do que uma ingênua curiosidade, duas qualidades que fazem de Maria Antonieta uma descobridora de mundos novos, ou de novas maneiras de ver o mundo.

João Lupi – Docente do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: lupi@cfh.ufsc.br.


COSTA, Maria Antonieta. The Rock Basins of Serra do Cume: Azores megalithic rocks and enigmatic inscriptions rearrange the old Atlantic geography. Saarbrücken: LAP/Lambert Publ., 2014, 73p. Resenha de: Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luis, v.15, n.2, 2015. Acessar publicação original. [IF]

A Fraseologia Medieval Latina | Álvaro Alfredo Bragança Júnior

Há décadas, o professor e acadêmico Álvaro Alfredo Bragança Júnior vem demonstrando como poucos, uma dedicação constante aos estudos latinos e medievais, tanto nos estudos linguísticos e filológicos, quando nos estudos históricos. Exatamente no momento em que cada vez mais se redescobre o legado cultural celta e germânico para a formação do espaço geográfico e linguístico europeu, em que a revista Brathair se constitui em um dos melhores exemplos no cenário acadêmico brasileiro, o filólogo, professor e pesquisador de Língua e Literaturas de Língua Alemã da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de docente do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da mesma universidade, faz o percurso inverso: volta ao latim para mostrar suas marcas proverbiais no espaço germanófono do medievo!

Este é mais um dos seus brilhantes trabalhos que envolvem os estudos latinos (linguísticos e filológicos), a Lexicologia e a Medievística, absolutamente desprovido dos ranços de eruditismo descabido em trabalhos similares.

Em outra oportunidade, eu mesmo já havia dito que esse livro vai nos mostrar o quanto as palavras refletem a vida de uma sociedade, tanto no presente quanto no passado, visto que as frases feitas (ou a fraseologia) são uma espécie de discurso repetido utilizado pela sociedade para abonar as crenças mais generalizadas de uma época ou de uma comunidade, sem necessidade (e sem possibilidade, quase sempre) de indicar a fonte ou autoria.

Nos estudos históricos, por exemplo, é possível reinterpretar grande número de fatos a partir dos conceitos populares que se difundem nos provérbios mais frequentemente utilizados na época, visto que eles refletem, seguramente, as crenças daquele momento. Tanto que, citando e traduzindo Hans Walther em seus Proverbia sententiaeque latinitatis Medii Aevi, o Prof. Álvaro Alfredo Bragança Júnior nos lembra que, na Idade Média, “o saltério e o provérbio são recomentados antes das fábulas e de outros autores romanos como leituras iniciais para o aprendizado da língua” (Cf. p. 87).

Isto ocorre porque tais frases ou expressões são tão conhecidas nas comunidades em que são utilizadas que a mera repetição ou alusão basta para abonar um argumento, como uma citação de autoridade da mais alta competência na especialidade em questão.

Outra coisa que reforça a autoridade de um provérbio ou frase feita é a referência à antiguidade de sua utilização, que também costuma ser feita através de outras expressões similares, como “no tempo em que se amarrava cachorro com linguiça…”, “no tempo do onça…” etc.

Sendo assim, o estudo da fraseologia latina para conhecer as crenças e costumes da Idade Média é uma ideia genial que o Prof. Álvaro desenvolveu brilhantemente nesse livro, que teve origem em sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Além de uma substanciosa Introdução de nove páginas, uma Conclusão de seis páginas, e uma Bibliografia de oito páginas, desenvolveu seu estudo em seis capítulos: 1) A fraseologia e sua conceituação, 2) A Idade Média, 3) O latim medieval, 4) A rima: criação medieval, 5) O corpus paremiológico de Werner e 6) Provérbios latinos medievais rimados: exemplos de temáticas (Provérbios ligados ao mundo animal, Provérbios referentes à religião católica, provérbios remissivos à Antiguidade greco-romana).

Uma das formas mais eficazes de fornecer rudimentos culturais aos discípulos consistia na compilação de exercícios escolares que continham uma fundamentação eminentemente teológica presa aos preceitos da Igreja, sempre rimados, para facilitar a memorização, assim como continuou no Brasil até o final do século XVIII (Cf. SOARES & FERÃO, [2009], p. 82-142), mesmo depois da expulsão dos jesuítas.

Na Idade Média, o latim e a rima presentes nos provérbios nos permitem reconhecer os reflexos sociopolíticos e culturais da mensagem da Igreja como guia espiritual, tornando-se o motivo condutor de parte significativa do cristianismo ocidental, visto que o latim continuou, até início do século XX, como a única língua internacional de cultura e, até hoje, língua oficial da Igreja Católica Romana.

O Prof. Álvaro foi extremamente feliz ao descrever a Idade Média, o latim medieval e, mais especificamente, a rima como criação medieval latina, trazendo-nos sínteses da melhor qualidade para esses três fatos da cultura cristã ocidental.

Para avaliar a influência da Igreja em nossa cultura (e do latim, por extensão), é preciso considerar também que em todo o período colonial brasileiro, o governo era também eclesiástico, no qual o rei era intitulado de Fidelíssimo e recebia o tratamento de Sua Majestade Fidelíssima, assim como na Espanha era o de Sua Majestade Católica. E isto era tão forte na Península Ibérica que o árbitro do Tratado de Tordesilhas, que dividiu a América do Sul e Central entre os espanhóis e os portugueses foi o papa Alexandre VI, ratificado posteriormente pelo papa Júlio II.

Aliás, como recomenda Dag Norberg, “é bom lembrar que é nesta época que a poesia rítmica começou a desenvolver formas novas, que o emprego da rima se sistematizou e que nasceram as criações mais originais da Idade Média latina, os tropos e as sequências”. (NORBERG, 2007, p. 73)

Enfim, quem desejar conhecer uma avaliação segura da fraseologia medieval latina e seus reflexos na cultura ocidental moderna, não pode deixar de ler esta excelente produção de Bragança Júnior, principalmente em relação aos provérbios rimados.

Referências

NORBERG, Dag. Manual prático de latim medieval: I – Breve história do latim medieval. Trad.: José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2007. Disponível em: . Acesso em: 25/05/2014.

SOARES, José Paulo Monteiro; FERRÃO, Cristina (Orgs.). Rendas & fiados do Nordeste Brasileiro 1760-1761: Documentos do Arquivo Histórico Ultramarino – AHU – Rendas e Fiados da Capitania de Pernambuco, Rio Grande e Ceará. Revisão técnica e atualização ortográfica de José Pereira da Silva. [s.l.]: Kapa Editorial, [2009].

José Pereira da Silva – Docente do Departamento de Letras da UERJ. Diretor-Presidente do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos. E-mail: pereira@filologia.org.br


BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. A Fraseologia Medieval Latina. Vitória: DLL-UFES, 2012. Resenha de: SILVA, José Pereira da. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.15, n.1, p. 186-189, 2015. Acessar publicação original [DR]

The Idea of Order: The Circular Archetype in Prehistoric Europe | Richard Bradley

Richard Bradley é professor de Arqueologia na Universidade de Reading, especializado em estudos da pré-história europeia, focando em paisagens pré-históricas, organização ritual e social e arte rupestre. Entre seus últimos livros publicados estão The Prehistory of Britain and Ireland (2007) e Image and Audience: Rethinking Prehistoric Art (2009). Sua maior contribuição à área é o livro The Significance of Monuments: On the Shaping of Human Experience in Neolithic and Bronze Age Europe (1998). Neste livro, é lançada a ideia de que a escolha e a predominância de um formato circular para a construção de monumentos na Europa Atlântica durante o Neolítico estaria ligada à cosmovisão comum das populações pré-históricas em contato.

A busca para compreender a escolha do que o autor denomina como “arquétipo circular” [1] é constante em suas publicações, e é ela que pauta todo o livro, afastando-se um pouco da noção de cosmovisão, e observando fatores mais práticos e do cotidiano, como, por exemplo, a influência do ambiente habitado e conhecido na construção de casas e monumentos. Como o próprio autor pontua: este não é um livro sobre um período ou um lugar; é sobre uma ideia (BRADLEY, 2012:3).

As ideias de um padrão circular, assim como seus questionamentos do início do livro, na verdade, costuram toda a obra, por entre seus dez capítulos: por que tantos povos na pré-história europeia construíram monumentos circulares? Por que escolher as casas redondas enquanto outras comunidades as rejeitavam? Por que havia pessoas que habitavam casas retangulares e frequentemente enterravam seus mortos em montículos circulares ou cultuavam seus deuses e ancestrais em templos circulares? (BRADLEY, 2012: 3).

Obviamente, o leitor que procura respostas acabará o livro sobrecarregado, devido à quantidade de detalhes e levemente frustrado: há mais questionamentos do que respostas. É uma recorrência ao longo do livro. As inquietações de Richard Bradley perpassam estudos etnográficos na América e África além de análises comparativas que vão desde o Neolítico à Irlanda Medieval, passando por sítios da Espanha, Portugal, França, Sardenha, Irlanda, Inglaterra e Escandinávia. Lembrando que seu foco de análise é a forma circular e o seu longo período de existência, não negligenciando o tipo de suporte material: seja na construção de casas e monumentos, ou na decoração de objetos (em cerâmica e metal).

Devido à complexidade do assunto em questão e até como uma forma de crítica às duas posições entendidas como antagônicas nos estudos de pré-história, o autor faz um julgamento claro em relação à divisão ainda existente na abordagem dos estudos na área. Os processualistas, que tendem sempre às generalizações e à construção de grandes modelos de análise; e os pós-processualistas, que enfatizam sempre estudos de caso e análises particulares, que acabam por demonstrar que o modelo generalizante se encontra equivocado. Assim, R. Bradley preferiu seguir uma sequência lógica, movendo-se sempre de um questionamento generalizante para os estudos de caso (o particular), não deixando nunca de levantar os pontos de interesse mais amplos e de esquematizar melhor suas exposições ao final dos capítulos da maneira mais didática possível.

O autor, ainda, demonstra sua preocupação com a autocrítica em relação à escolha dos seus métodos de análise, dedicando um espaço nos capítulos para questioná-los antes mesmo que o leitor o faça – como é o caso, por exemplo, do segundo capítulo, no qual ele questiona o uso de dados etnográficos. Este tipo de abordagem só faz com que a obra se torne irritantemente genial, pois mostra o trabalho massivo para a construção do livro, a preocupação com os dados e a erudição do autor, assim como incita o leitor a pensar – uma proliferação de questionamentos ao longo de todo o livro.

Tendo em vista a amplitude espaço-temporal da sua análise, Richard Bradley teve a preocupação de esquematizar, no seu primeiro capítulo, como funciona a organização do seu argumento, partindo da análise de casas circulares e sua distribuição pela Europa, utilizando dados etnográficos e observando artisticamente os estilos curvilíneo e linear, correlacionando-os com escolhas de moradia do mesmo período.

Na segunda parte do livro, é observada a relação entre as moradias (casas e assentamentos) e a construção de monumentos e, na terceira parte, foi analisada a relação e a concomitância das estruturas curvilíneas e retilíneas, não deixando de investigar as circunstâncias em que o modelo circular foi abandonado.

O autor inicia seu livro descrevendo e analisando um sítio na Irlanda, um local conhecido pela possível ocorrência do festival Céltico de Beltane, um lugar antigo para reuniões, associado ao culto Druídico do Fogo e ao trono dos Reis Irlandeses. Hill of Uisneach, um centro sagrado da Irlanda em tempos pagãos, de acordo com o folclore e evidências literárias. Esse sítio está situado em uma colina que domina a paisagem que a cerca, como o centro da mesma. De seu topo, pode-se observar os vários condados irlandeses. Possui mais de 20 monumentos antigos, entre tumbas megalíticas, montículos funerários, aterros e fortificações anelares, com datações que variam entre o Neolítico e a Idade do Bronze no caso das construções, e da Idade do Ferro ao Medievo no caso das (re)utilizações encontradas.

Recentemente, o sítio teve uma tradição inventada [2] : o Fire Festival (Festival do Fogo) que envolve a construção de uma série de prédios de madeira circulares (temporários), com algumas estruturas decoradas com desenhos curvilíneos – uma decisão deliberada dos criadores do evento para refletir a configuração dos monumentos do lugar, que, não por coincidência, é a configuração tradicional em toda Irlanda, desde as tumbas do Neolítico, passando pelos centros reais da Idade do Ferro até os monastérios mais antigos.

Ao adentrar pela análise da construção dos monumentos antigos, o autor expõe um problema: a sequência extensa desses monumentos. Eles possuem uma longa história, e como o autor explicita, não é fácil analisá-los quando muitos pré-historiadores são especialistas em períodos específicos. Torna-se clara sua crítica, talvez um pouco generalista e exagerada, aos pós-processualistas e ao seu alto grau de especialização. Ele entende que o problema deve ser sanado ao se olhar mais largamente, espacialmente e temporalmente – o que, a exemplo deste livro, é fruto de um trabalho árduo que poucos provavelmente têm interesse em fazer.

A partir da análise dos eixos de preferências entre os padrões retilíneos e curvilíneos, fica claro seu posicionamento. Para o autor, a construção da arquitetura curvilínea seria uma escolha; uma alternativa aos modelos lineares “tradicionais”. A noção de escolha deve ser entendida relacionada ao conceito de agência – que engloba outros diversos conceitos e enfoques, tais como ritual, monumentalização, práticas funerárias, apreensão do mundo via sentidos, cadeia operatória, noções de memória, ancestralidade e identidade.

Deve-se considerar no conceito de agência que o corpo é o principal locus físico da experiência e a cultura material é o meio pelo qual se estabelece a comunicação, cria e reproduz o simbólico. É, portanto, um meio para compreender as relações sociais e os mapas cognitivos e, quando aplicado ao coletivo, implica em força para a construção de noções partilhadas do social e do simbólico, por meio da monumentalização e da construção ritual (OWOC, 2005; CUMMINGS, 2003; BAHN & RENFREW, 2005). Deste modo, o autor entende que o contraste entre as formas era significativo, uma vez que elas indicam ideias particulares de ordem, não estando, necessariamente, ligadas somente à questão da funcionalidade, mas com forte carga simbólica.

Assim, as construções seriam a concretização da experiência humana e do pensamento simbólico na cultura material, refletindo os componentes do ambiente construído que cercava as populações. Se faz crucial, entretanto, atentar para o fato que as percepções variam, mesmo entre comunidades que habitam um mesmo espaço: a interpretação de um fenômeno, assim como do ambiente ao seu redor, varia. Seguindo esse raciocínio, a construção dos monumentos seria consequência direta de crenças compartilhadas para a construção e utilização de edificações domésticas: elas teriam influenciado as percepções de mundo das populações pré-históricas [3].

No terceiro capítulo, é analisado o contraste entre as formas curvilíneas e retilíneas na arte. Poderiam, por exemplo, estar ligadas a noções de sagrado e secular, público e privado. A observação vem a partir da reinterpretação da “arte Celta” [4 ]elaborada em metal, da Idade do Ferro. Os objetos desse período que contém temática curvilínea são provenientes de contexto religioso/ritual, mesma característica dos contextos de construção de monumentos circulares no Neolítico e Idade do Bronze.

  1. Bradley afirma sua posição exemplificando uma “continuidade” do padrão curvilíneo com a construção do Catolicismo na Irlanda Medieval e o padrão circular associado à na construção de igrejas e monastérios, assim como da criação da “Irish Cross”. Acredito, entretanto, que seja necessário considerar a possibilidade de ser somente uma continuidade de uma tradição para adaptação local e não, necessariamente, uma escolha deliberada baseada em um simbolismo milenar que tenha sobrevivido sem grandes alterações desde a pré-história.

Um questionamento interessante é feito no capítulo quatro: é necessário levar em consideração a audiência para a qual o monumento foi feito – entendendo que a maioria das pessoas só teria acesso à parte externa dos monumentos e a maioria dos estudos não leva isso em consideração; há uma crítica excessiva à muita atenção prestada ao interior dos monumentos e à pouca ênfase dada ao exterior – formato e direcionamento, que muitas vezes lembram moradias e ocupações domésticas. Neste ponto, se faz necessário abrir uma ressalva, pois a crítica do autor está inserida no contexto de estudos da arqueologia da paisagem e é consequência direta da forma como ele entende e analisa os monumentos. A arqueologia da paisagem é um campo da Arqueologia que estuda a forma como as pessoas do passado moldavam sua paisagem e nela viviam. Assim, ao ter como foco os monumentos e assentamentos que se integram aos traços geográficos e ambientais, é possível buscar entender o âmbito socioeconômico para, consequentemente, chegar-se ao cultural. A paisagem, desse modo, é entendida como uma construção sociocultural. Assim, analisa-se a inter-relação entre os sítios e os espaços físicos que os separam a partir da análise extra-sítio (ver Anshuetz et al 2001; INGOLD, 1993; TILLEY, 1994; BENDER, 1992).

Ao introduzir no capítulo cinco a análise dos monumentos em pedra, trabalhando com noção de intencionalidade e escolha do material [5], leva em consideração a sua durabilidade (ver PEARSON & RAMILSONINA, 1998) e os compara com os monumentos de madeira, deixando explícita a diferenciação do foco de cada tipo de monumento: os de madeira seriam feitos para reuniões entre os vivos, e os de pedra, teriam ligação com os mortos e ancestrais. Além disso, é introduzido o questionamento sobre a datação das marcações feitas em terrenos (trabalhos de terraplanagem e construção de fossos) reconhecidas como henges: alguns deles seriam posteriores aos monumentos (círculos de pedra e madeira) que estão atualmente relacionados (ou assim era entendido).

Dessa forma, a inserção dos henges no contexto dos círculos de pedra, por exemplo, demonstra uma provável mudança no foco ritual desses locais, provavelmente ligados aos ritos de passagem (ver GENNEP, 1909; TURNER, 1969) com inversão de convenções sociais, transformação do estado pessoal e manutenção de forças dentro do círculo. Indo além, alguns desses henges e trabalhos de terraplanagem teriam o intuito de barrar a visão do interior dos monumentos, revelando a necessidade de uma audiência fechada, caracterizando uma hierarquia social, onde muitos construíam, mas poucos tinham acesso direto (seja visual, seja físico) ao centro do ritual [6] – e, por que não, da paisagem ritualizada.

Um dos exemplos usados pelo autor é o caso de Stonehenge, provavelmente o círculo de pedra mais conhecido, localizado na Inglaterra. Sua fama vem do fato de ser uma construção massiva em monólitos, que chama a atenção como centro de um microcosmo do mundo e dominando a paisagem que o cerca. A comoção maior surgiu no século XVIII com os antiquários [7], como John Aubey e William Stukley, que interpretaram o monumento erroneamente e acabaram criando uma tradição na qual ele seria construção feita pela população celta, voltado para atividades rituais: um templo dos druidas, popularmente conhecidos como “sacerdotes celtas” [8].

Os antiquários foram percussores/fomentadores de um movimento conhecido como Celtomania, intrinsecamente ligada ao Celtismo, conhecido como a invenção de uma “tradição” celta a partir dos antiquários do século XVIII, que influenciou fortemente os movimentos nacionalistas na Europa e desencadeou o fenômeno da Celtomania, no século XIX. Ligada ao imaginário popular, ao mítico, ao fantástico, baseou-se no Celtismo e nas lendas medievais. Atualmente, existe uma cultura pop com distorções ainda maiores, com ampliação das imagens criadas e com uma forte idealização mítica. Como consequência, foi criada uma alegoria do que teria sido a sociedade celta, com implicações políticas e identitárias fortes e que até hoje influencia religiosidades neopagãs – que (re)interpretam e (re)utilizam monumentos pré-históricos como sendo representantes de uma crença milenar e ancestral.

Apesar de sua importância indiscutível ao longo de séculos, Richard Bradley oferece muito pouco espaço para analisar Stonehenge. Com monólitos massivos moldados e cuidadosamente conectados, como peças de carpintaria, fazendo a ocorrência incomum para o tipo de círculo de pedras, o autor traz uma nova ideia, de que Stonehenge teria sido concebido como uma cópia de um edifício de madeira doméstico, mas infelizmente deixa o leitor perdido, no meio do questionamento, sem desenvolver mais sua teoria e sem proporcionar maiores detalhes.

Na penúltima parte do livro, que engloba os capítulos sete, oito e nove, o autor trabalha com a análise da existência das construções em formas retilíneas e retangulares em concomitância com as circulares. Seja por justaposição ou interação dessas estruturas, examina o motivo de a construção circular ter sido afetada à medida que a construção retangular fica mais proeminente. Essa análise se dá pelo estudo de caso em diferentes espacialidades no mesmo recorte temporal: Idade do Ferro na Sicília e nas Ilhas Britânicas, além da cultura dos Castros na Península Ibérica; e por meio de estudos etnográficos utilizando exemplos africanos.

No último capítulo, o autor faz um apanhado geral das ideias expostas em seu trabalho, traçando um elo comum entre os casos analisados: a experiência de viver em casas redondas seria uma ideia particular nas comunidades da pré-história europeia e seu formato seria uma escolha importante, uma vez que os monumentos circulares não foram substituídos por monumentos retilíneos e, quando a forma circular foi suprimida das casas, teria provavelmente ocorrido por pressão política; e teria sido direcionada, então, para a construção de templos. Apesar de possuírem um layout mais prático, as casas retangulares não foram completamente adotadas por comunidades sedentárias.

A escolha do autor pelo estudo e ênfase nas moradias e construções domésticas, (as casas), pode não ficar muito clara para o leitor até o final do livro. Ele parte sempre das casas como unidade principal de análise, mesmo para casos comparativos. Isto se deve ao fato que, para ele, é possível enxergar nos monumentos uma tentativa de utilizar o “protótipo” doméstico em escala aumentada. Como já exposto, esse modelo original doméstico influenciaria toda a visão de mundo e as escolhas simbólicas e rituais das populações, fazendo com que fosse massivamente reinterpretado ao longo do tempo, por diversas comunidades.

Após esta afirmação, permanece o questionamento: não seria simplificar em demasia o motivo e o poder de escolha de uma população a partir única e exclusivamente da influência do padrão de construção que a moradia possuía? Como é mostrado no próprio livro, as escolhas dos tipos de moradia são influenciadas também pela relação do homem no ambiente e na paisagem que o cerca. Se levarmos em consideração os estudos de paisagem, é possível percebê-la como dinâmica: o ambiente influencia a ação humana, as casas influenciam os monumentos, os monumentos influenciam as casas … e vice-versa.

Sendo assim, não seria mais lógico considerar a paisagem, na qual as casas e os monumentos estão inseridos, como uma plataforma interativa para a experiência humana, constantemente recriada por meio de construções físicas, metafísicas e simbólicas que alterariam continuamente o relacionamento e a percepção daqueles que nela se engajavam, criando a percepção humana de estar no mundo (TILLEY, 1994; INGOLD, 1993) e, isso sim, influenciar no padrão de construção das casas e monumentos?

Essa exposição só vem demonstrar o uso diferenciado do espaço na Europa, que tem a ver com o ambiente, a paisagem, a economia e o assentamento das populações – o que levou a reiterar uma das poucas conclusões do livro: há um padrão para as construções e uma dualidade – já exposta por Cunliffe (2008) – entre dois eixos da Europa. A arquitetura curvilínea é mais comum nas áreas conectadas pelo mar: oeste do Mediterrâneo e a costa do Atlântico, com poucos exemplos na França. Essas áreas eram extremamente conectadas durante o Neolítico e a Idade do Bronze e depois por contatos transoceânicos na Idade do Ferro e no Período Romano (CUNLIFFE, 2001). Sua caracterização não concretiza um dado que as comunidades ali presentes possuíam, reconheciam e partilhavam de uma origem comum, mas evidencia as trocas de longas distância. Já a arquitetura retilínea é mais comum no eixo da Europa continental, central e norte, enfatizada pelos contatos por terra, exemplificando uma diferença na forma de conceber e lidar com o mundo: na terra, contatos em redes, caminhos e trilhas; enquanto no eixo marítimo a paisagem é mais aberta, com o contato diferenciado entre o indivíduo, o horizonte e o céu – o que, certamente, influenciou na forma de construir, idealizar e habitar das populações.

The Idea of Order: The Circular Archetype in Prehistoric Europe é uma obra extensa, extremamente detalhada e descritiva, exigindo atenção e dedicação total do leitor, de preferência, com uma leitura lenta, atentando sempre para as correlações e os questionamentos que seguem encadeados ao longo dos nove capítulos e que são amarrados no capítulo final do livro. Ao finalizá-lo, o leitor dificilmente irá concluir, devido à enxurrada de questionamentos explicitados ao longo do texto, se existiu (ou não) um padrão circular presente no inconsciente coletivo e partilhado pelas populações préhistóricas através de gerações ou ainda se a ideia particular de ordem que sintetizaria a concepção circular do espaço seria fruto de uma consciência comum às populações préhistóricas da faixa Atlântica. O máximo que se poderá concluir é, como o próprio autor expõe: que não é possível afirmar, mas é válido fazer a pergunta.

Notas

1. Vale à pena salientar que para R. Bradley, a noção de arquétipo ultrapassa o significado basilar ligado a: padrão, modelo ou até paradigma. No curso de suas obras, o autor vai indicando que sua escolha se aproxima mais do conceito Junguiano de arquétipo, que seria um modelo de construção circular presente no (in)consciente coletivo das populações pré-históricas da faixa atlântica.

2. Sobre tradição inventada ver HOBSBAWM & RANGER, 1992.

3. Para o estudo mais aprofundado sobre a vida doméstica e sua influência, ver BRADLEY, 2005.

4. Tradicionalmente conhecido como arte do período La Tène (ver CUNLIFFE, 1997). 5 Relacionamento entre sujeito e objeto ver HODDER, 1995.

6. Entende-se como ritual atos que não fazem parte de atividades cotidianas e, em alguns casos, não domésticas que se comunicam através de mídia distinta para criar uma noção de tempo diferenciada: a fusão do passado no presente, com intuito de manter a ordem social (BELL, 1992).

7. Antiquarismo: movimento do século XVIII/XIX, anterior à arqueologia, composto por estudiosos, curiosos e colecionadores que tinham interesse nas relíquias do passado (Cf Trigger, 2004).

8. Para maiores informações, ver CUNLIFFE, 2010.

Referências

BENDER, B. Theorizing Landscapes, and the Prehistoric Landscapes of Stonehenge. Man, 27, 1992, pp.735-755.

BRADLEY, R. Rock art and the Prehistory of Atlantic Europe. London: Routledge, 1997.

____________. The Significance of Monuments: On the shaping of Human Experience in Neolithic and Bronze Age Europe. London: Routledge, 1998.

____________. Ritual and Domestic Life in Prehistoric Europe. Abingdon: Routledge, 2005.

____________. Prehistoric Britain and Ireland. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

____________. Image and Audience – Rethinking prehistoric Art. Oxford: Oxford University Press, 2009.

CUMMINGS, V. Building from Memory, Remembering the past at Neolithic monuments. In WILLIANS, H. (ed.). Western Europe in Archaeologies of Remembrance: Death and Memory in Past Societies. New York: Plenum Publishes, 2003, pp.24-29.

CUNLIFFE, B. The Ancient Celts. Oxford: Oxford University Press, 1997.

CUNLIFFE, B. (ed.). The Oxford Illustrated Prehistory of Europe. Oxford: Oxford University Press, 2001.

__________. The Celts: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2003.

__________. Europe Between the Oceans: themes and variations: 9000 BC to AD 1000. Yale: Yale University Press, 2008.

__________. The Druids: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010.

HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (ed.). The Invention of Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

HODDER, Ian. Theory and Practice in Archaeology (Material Cultures). London: Routledge, 1995.

INGOLD, T. The Temporality of the Landscape. World Archaeology, 25 (2), 1993, pp. 152-174.

LEERSSEN, Joep. Celticism. In: BROWN, T. (ed.) Celticism. Editions Rodopi: Amsterdam, 1996, pp. 3-19.

OWOC, Mary-Ann. From the Ground Up: Agency, Practice, and Community in the Southwestern British Bronze Age. Journal of Archeological Method and Theory, 12 (4), 2005, pp. 257-281.

PEARSON, P.; RAMILSONINA. Stonehenge for the ancestors. The Stones pass on the message. Antiquity, 72, 1998, pp.308–26.

TILLEY, C. A Phenomenology of Landscape – places, paths and monuments. Oxford: Oxford University Press, 2006.

RENFREW, A. C.; BAHN, P. Archaeology: The Key Concepts. London: Routledge, 2005.

TRIGGER, B. História do Pensamento Arqueológico, São Paulo: Odysseus, 2004.

Ana Carolina Moliterno Lopes de Oliveira – Mestranda em História Social na Universidade Federal Fluminense (UFF) NEREIDA/UFF. E-mail: anacarol.moliterno@gmail.com


BRADLEY, RICHARD. The Idea of Order: The Circular Archetype in Prehistoric Europe. Oxford. Oxford University Press, 2012. Versão e-book. Resenha de: OLIVEIRA, Ana Carolina Moliterno Lopes de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.14, n.2, p. 129-138, 2014. Acessar publicação original [DR]

O comercio tardoantigo no Noroeste Peninsular: unha análise da Gallaecia Sueva e Visigoda a través do rexistro arqueolóxico | Adolfo Fernández Fernández

La Antigüedad Tardía es, a nivel general, una de las épocas menos estudiadas, sobre todo en lo que atañe a Hispania y especialmente a la zona del Noroeste. La obra que aquí reseñamos, titulada O comercio tardoantigo no Noroeste Peninsular: unha análise da Gallaecia Sueva e Visigoda a través do rexistro arqueolóxico [1] , viene a suplir, en cierta medida, un vacío que existía en uno de los campos menos estudiados y a los que menor atención se le había prestado, el comercio, focalizando su atención en una zona (la Gallaecia) y una época (siglos IV-VII) marcados por la irrupción en la Península Ibérica de diversos grupos bárbaros, destacando sobre todos ellos el grupo Suevo, que suplantó al Imperio Romano como dominador del Noroeste de Hispania desde comienzos del siglo V. Es por tanto una obra fundamental que permite contextualizar los pocos datos y la poca información que sobre la irrupción de este pueblo bárbaro tenemos y sobre las consecuencias intrínsecas que su instalación sobre el territorio hispano noroccidental supuso.

La obra, de Adolfo Fernández Fernández, surge como resultado de su tesis de doctorado, titulada El Comercio Tardoantiguo (ss. IV-VII) en el Noroeste peninsular a través del Registro Arqueológico de la Ría de Vigo, leída en el año 2011 en la Universidad de Vigo. Arqueólogo-ceramólogo especialista en economía y comercio de época romana, el propio autor indica en las páginas iniciales de su libro, escrito en gallego, de poco menos de 300, que este estudio surge de la ausencia de artículos y estudios científicos referidos al comercio en el Noroeste hispano desde la publicación de la obra de Naveiro López, El comercio antiguo en el NW peninsular, publicada en 1991. Debido al boom económico y urbanístico que vivió España (y en cierta medida también Portugal) las excavaciones arqueológicas, y por tanto nuevos materiales susceptibles de ser estudiados, han salido a la luz, y es por ello que el autor puso sus ojos en ofrecer a la comunidad científica este estudio tan interesante.

El libro se divide en cuatro apartados diferentes de desigual tamaño, más allá de una pequeña introducción donde nos deja entrever brevemente en el origen de sus investigaciones y su libro.

El primero de estos apartados se titula Os xacementos arqueolóxicos de Vigo: a base principal do estudo [2], en el cual Adolfo Fernández nos hace un recorrido por los diferentes yacimientos arqueológicos de los que provienen la mayor parte de los materiales que van a ser estudiados en el grueso de su obra. Todos ellos se encuentran en el núcleo urbano de Vigo (Pontevedra, España), excepto uno que está fuera, y aparecen englobados por el autor en tres categorías diferentes, basándose para ello en los diferentes grados de estudio de su material arqueológico: yacimientos con estratigrafía (Villa de Toralla, Unidad de Actuación Rosalía de Castro I, Marqués de Valladares y la Unidad de Actuación Rosalía de Castro II), yacimientos sin datos estratigráficos (Hospital nº 5, parcela 14, parcela 23, colector da rúa Colón y Areal 6-8) y yacimientos con materiales tardíos parcialmente estudiados (Parcela 13, túnel del Areal y Rosalía nº 5).

El segundo de estos apartados se titula Unha breve aproximación ás relación comerciais do Noroeste con anterioridade á Antigüidade Tardía. (Séc. V/VI a.C. – Séc. III d.C.) [3]. Al igual que el anterior, estamos ante un capítulo que podemos denominar introductorio, en tanto en cuanto su función no es otra que la de contextualizar los dos siguientes apartados, que conforman el grueso de la obra. Dado que, como bien indica el título, esta obra tiene como marco cronológico la Antigüedad Tardía, el autor consideró necesario este capítulo para establecer un marco de partida, de referencia, para poder entrever las rupturas o las continuidades de los sistemas mercantiles y comerciales en el Noroeste con la época anterior, de ser el caso.

Tras estos dos apartados, entramos de lleno en su estudio, con un tercer apartado de poco más de 120 páginas, el de mayor tamaño del libro con diferencia, titulado As relacións do noroeste e as rutas de comercio durante a Antigüidade Tardía. (Sécs. IV – VII.) [4] . Dado su volumen y su importancia, el autor lo ha dividido en cinco capítulos, abordando en cada uno de ellos las características del sistema comercial del Noroeste hispano a lo largo de diferentes periodos de tiempo, caracterizados cada uno de ellos por peculiaridades propias. Estas fases del sistema comercial del Noroeste abarcan desde el siglo IV hasta el VII, analizados siguiendo un orden cronológico.

Una de las claves más interesantes de este libro radica en el estudio de los sistemas comerciales en la época de llegada de los pueblos bárbaros a Hispania, y especialmente en la época del asentamiento de los Suevos en la zona estudiada, el Noroeste. Por tanto, las conclusiones que de este trabajo se extraigan serán indispensables para conocer mejor las relaciones de este nuevo poder bárbaro con los poderes locales galaicorromanos, y para desmentir o afirmar la tan manida cuestión de si este grupo bárbaro arrasó violenta y cruentamente estos lugares.

En las últimas décadas se ha venido aseverando por parte de historiadores y arqueólogos, a través de una actitud más crítica hacia las fuentes y de mayores estudios arqueológicos sobre esta época, la actitud más o menos pacífica, o por lo menos no destructiva, de los grupos bárbaros en su llegada y asentamiento en el Noroeste. Este estudio por tanto se convertirá en un argumento más para reafirmar este “pacifismo” de los grupos bárbaros, o al contrario, para mostrar cierto rupturismo consecuencia de su llegada.

Del mismo modo, este estudio cronológico, con sus rupturas o sus continuidades, nos ofrece importante información sobre épocas para las cuales no tenemos apenas información en en la Gallaecia, como por ejemplo el último tercio del siglo V, donde a partir del fin de la Crónica de Hidacio de Chaves no tenemos información alguna. Así pues, a través de este estudio podemos acercarnos mínimamente a esta época para comprobar si, en un sentido general, se producen continuidades con la época anterior o si por el contrario existe alguna ruptura importante que nos esté dando cuenta de algún suceso que motivó ese cambio, pero que no conocemos por ninguna fuente escrita.

Por otra parte, es también interesante el análisis del siglo VI, donde a través del estudio del autor se confirman cambios producidos por el nuevo panorama político del momento, como es el avance militar bizantino en Italia y el sur de Hispania, que provocan que los materiales provenientes del Mediterráneo oriental sean superiores a los productos tradicionales venidos del Norte de África. Asimismo, se constata una ruptura en esta época del comercio entre el Noroeste y las Islas Británicas, un hecho que a priori se desconocía y que el autor concluye producto de la peste de esta época.

Finalmente, como último capítulo de este apartado, el autor, en unas siete páginas finaliza el apartado haciendo referencia a la segunda mitad del siglo VII, en una especie de epílogo del mismo donde nos dice que, a pesar de no haber contextos arqueológicos para esta época en Vigo o en el Noroeste, se puede apreciar a nivel general en Occidente un repliegue sobre sí mismo debido al avance de los árabes por el Mediterráneo Oriental y Norteafricano, que puede suponer una verdadera ruptura en el sistema comercial heredado de época romana.

Llegamos así al último apartado del libro, titulado As mercadorías e os protagonistas do comercio [5] , en donde el autor pretende mostrar la información no desde una óptica cronológica como en el capítulo anterior, sino desde un punto de vista que podemos denominar como temático, estudiando así por ejemplo las mercancías por un lado, los protagonistas del comercio por otro, etc.

En general, este apartado es dividido por el autor en tres capítulos. El primero dedicado las mercancías exportadas e importadas en Vigo en particular y en el Noroeste en general, donde el autor contextualiza todos los materiales hallados en las excavaciones, afirmando que estos no serían el objeto principal del comercio, sino al contrario. La cerámica, el maíz, etc., serían mercancías de valor secundario que acompañarían a otras mercancías de lujo, más lucrativas, que serían el verdadero motor del comercio a larga distancia, mercancías que obviamente no se suelen encontrar en la mayoría de yacimientos arqueológicos, como serían joyas, textiles, perfumes, o incluso metales. En este sentido, el autor concluye que el verdadero motor que llevaría a los comerciantes a llegar hasta el Noroeste sería el alumbre. Por su parte, del Noroeste se llevarían probablemente metales como estaño o incluso plomo, y también probablemente madera.

El segundo capítulo de este cuarto y último apartado hace referencia a los protagonistas de los intercambios, es decir, aquellas personas que eran los promotores del comercio en el Noroeste. Adolfo Fernández hace un buen análisis incidiendo no sólo en los encargados del comercio de larga distancia, que estaría dominado por mercaderes extranjeros (griegos, judíos, sirios) sino también hace referencia a la importancia de los comerciantes locales de los emporios de distribución del Noroeste, dominados por galaicorromanos o suevos, encargándose estos de la captación de los productos orientados a la exportación y también de la redistribución de los productos mediterráneos hacia el resto del mundo atlántico.

Finalmente, termina este apartado, y también su obra, con un tercer capítulo titulado O porto de Vigo durante a Antigüidade Tardía: Un emporio atlántico [6], donde en unas nueve páginas concluye reafirmando la importancia del puerto de Vigo durante esta época, con un momento de especial esplendor durante el siglo VI y primera mitad del VII. Este puerto sería el último puerto en el que se detendrían los comerciantes de larga distancia, y funcionaría como lugar de redistribución de las mercancías para todo el Noroeste Peninsular.

La obra culmina con una extensa bibliografía sobre la temática del libro, que abarca poco menos de cuarenta hojas, lo que se puede considerar un gran acierto para quien esté interesado en indagar más aún sobre esta temática.

En definitiva, estamos delante de una obra de gran importancia que viene a llenar un hueco existente, una laguna en el conocimiento sobre la Antigüedad Tardía del Noroeste Peninsular y que no solo es importante desde el punto de vista de que se amplía el conocimiento de los sistemas comerciales en la Época Antigua, sino que es un argumento más para contextualizar un lugar y una época marcada, sin lugar a dudas, por cambios políticos en la zona de gran calado, como fue sobre todo la llegada del grupo bárbaro suevo a la Gallaecia.

O comercio tardoantigo no Noroeste Peninsular viene, en definitiva, a ser un argumento a favor de los nuevos planteamientos que sugieren que la llegada y el asentamiento de los Suevos en el Noroeste no fue en absoluto un momento de caos y destrucción por su parte sino que, al contrario, supusieron la continuidad de los sistemas económicos y comerciales heredados de la Antigüedad, con las obvias variaciones y fluctuaciones propias de un mundo en constante cambio, pero que no tienen que ver con una acción directa y premeditada por parte de los grupos bárbaros.

Notas

1. Dado que la obra está escrita en gallego, traduciremos al castellano, en notas a pié de página, los títulos, apartados y capítulos que en la obra vienen en este idioma, para que el lector los entienda sin dificultad. El título de la obra, en castellano, El comercio tardoantiguo en el Noroeste Peninsular: un análisis de la Gallaecia Sueva y Visigoda a través del registro arqueológico.

2. En castellano, Los yacimientos arqueológicos de Vigo: la base principal del estudio.

3. En castellano, Una breve aproximación a las relaciones comerciales del Noroeste con anterioridad a la Antigüedad Tardía. (Séc. V/VI a.C. – Séc. III d.C.).

4. En castellano, Las relaciones del Noroeste y las rutas de comercio durante la Antigüedad Tardía. (Sécs. IV – VII.).

5. En castellano, Las mercancías y los protagonistas del comercio.

6. En castellano, El puerto de Vigo durante la Antigüedad Tardía: Un emporio atlántico.

Benito Márquez Castro – Doctorando del Programa de Doctorado Historia, Territorio y Recursos Patrimoniales de la Universidad de Vigo Diputación de Pontevedra. E-mail: bieitomarquescastro@live.com


FERNÁNDEZ FERNÁNDEZ, Adolfo. O comercio tardoantigo no Noroeste Peninsular: unha análise da Gallaecia Sueva e Visigoda a través do rexistro arqueolóxico. Noia: Toxosoutos, 2013. Resenha de: CASTRO, Benito Márquez. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.14, n.2, p. 129-138, 2014. Acessar publicação original [DR]

Ireland in the Medieval World Ad 400- 1000 Landscape, kingship and religion | Edel Bhreathnach

As formas utilizadas para narrar o passado irlandês precisam ser lidas com cuidado e reflexão, pois possuem diversas nuances que as distinguem da maneira brasileira de escrever a história. Referências à Irlanda como um “país celta”, por exemplo, embora algo atrativo do ponto de vista do imaginário, geralmente acompanham posicionamentos políticos, princípios epistemológicos e juízos estéticos que podem trazer mais complicações que elucidações. Além disso, “celta” é uma nomenclatura inapropriada para narrar inúmeras questões da história irlandesa (SANTOS & FARRELL, 2011; SANTOS, 2013). O mesmo acontece com formas como “Medieval World”, que também precisam ser historicizadas. Na maior parte dos livros sobre história da Irlanda, as narrativas dão um salto perceptível da “Pré-História” à “Idade Média”, fenômeno que pode ser explicado, pelo menos de duas maneiras: na própria experiência histórica, pelo fato de o surgimento da escrita na Irlanda estar relacionado com a chegada do cristianismo à Ilha, o que faz com que a história irlandesa produzida a partir de documentos escritos tenha seu início associado com igrejas, monastérios, conversão, cuidado pastoral, missionários, santos etc; e por uma tentativa de contextualizar a história irlandesa em relação à Europa continental, que, no século V, não estava mais vivendo uma “História Antiga”, mas sim sua “Antiguidade Tardia” ou “Alta Idade Média” (dependendo da abordagem historiográfica).

É recomendável que o leitor esteja atento a estas questões quando da leitura da obra aqui apresentada, pois em Ireland in the Medieval World Ad 400 – 1000 – Landscape, kingship and religion é possível encontrar referências a fenômenos que ultrapassam os limites de um “Medieval World”, mas, na maioria dos casos, eles estão associados com acontecimentos históricos que envolvem outras sociedades; no que diz respeito à Irlanda, a visão predominante é a de que a História na Irlanda começa com a chegada do cristianismo. Isto é perceptível na parte da obra dedicada ao tema dos Ogans, por exemplo, na qual lê-se que estas inscrições em pedra datam dos séculos V e VI da história irlandesa e que correspondem, portanto, “ao início do período histórico” (páginas 42-44). Esta questão encontra ressonância também na análise sobre a realeza sacra de Tara, que é abordada em um arco cronológico que se estende “da Pré-História ao período Medieval” (página 56). A passagem de tempo demarcada é: “Neolítico, Idade do Bronze, Idade do Ferro, e Primeira Idade Média”. O mesmo raciocínio também aparece quando a autora faz suas comparações entre momentos distintos da sociedade irlandesa. Ela escreve que “as sociedades pré-históricas e medievais não possuem uma distinção incisiva entre os aspectos políticos e os religiosos ou sacros da vida como as sociedades modernas tendem a fazer” (página 59).

É este o salto que interessa destacar aqui, algo que não é frequente na historiografia produzida no Brasil. É difícil encontrar nos livros de história produzidos neste lado do Atlântico uma comparação “pré-histórica” com uma “medieval”, sem qualquer referência à Antiguidade. Assim, apesar das reflexões historiográficas apresentadas na Introdução da obra da autora irlandesa, que atingem nível de excelência, seu “Medieval World” deve ser examinado de forma pormenorizada pelo leitor brasileiro, sobretudo no que diz respeito a uma crítica das formas e das periodizações historiográficas. É a partir de questões assim que o leitor poderá compreender o porquê no site da editora, Fourt Courts Press, na parte dedicada à venda da obra, o título aparece em vermelho destacado “Ireland in The Medieval World, AD 400-1000…” e logo abaixo lê-se que o livro pretende analisar o povo, a paisagem e o lugar da Irlanda no mundo “da Antiguidade Tardia ao Reino de Brian Bórama”.

Edel Bhreathnach graduou-se em Celtic Studies em 1979 e defendeu sua tese de doutorado em 1991, sob a supervisão do professor Francis John Byrne, estudando o que ela chama de Early Irish History. Desde 2013, ela é chefe executiva do Discovery Programme, uma instituição pública irlandesa que, instituída em 1991 como uma iniciativa particular do então Taoiseach Charles J. Haugley, é responsável por investigações arqueológicas. Bhreathnach investiga há algum tempo questões relacionadas com morte e práticas funerárias na Irlanda; a realeza na Pré-História e na Primeira Idade Média; historiografia da escrita da história na Irlanda; a história intelectual da Irlanda Medieval e do início do período moderno; e a história da coleção franciscana irlandesa de manuscritos e livros raros. A autora teve como professores alguns dos principais nomes dos estudos irlandeses na área de história, arqueologia, e literatura, tais como Charles Doherty, Marie Therese Flanagan e Thomas Charles-Edwards, além de seu orientador, já mencionado. Bhreathnach ainda dialogou de forma constante com Elizabeth O’Brien e Muireann Ní Bhrolcháin, além de, para a realização da obra, ter contado com assistência dos monges beneditinos de Glenstal Abbey, Co. Limerick, principalmente para o acesso à biblioteca dirigida pelos mesmos. Importante mencionar estas questões, pois a obra aqui apresentada é resultado da experiência destes vários anos de estudos e discussões, pesquisas, e da publicação de inúmeros artigos sobre o tema, sempre a partir de uma perspectiva pluridisciplinar, característica da formação de Bhreathnach. Por isso, ela consegue, de forma intensa, cumprir o objetivo de abordar vários aspectos da cultura e sociedade irlandesa neste “Medieval World”, ou como na caracterização da Fourt Courts Press “da Antiguidade Tardia ao reino de Brian Bórama”, a partir da análise sistemática e detalhada de manuscritos, monumentos arqueológicos, evidências toponímicas, geográficas, onomásticas; e dialogando com problemáticas antropológicas, folclorísticas, de mitologia comparada etc.

Ireland in the Medieval World Ad 400 – 1000 – Landscape, kingship and religion é dividida em três capítulos. Após uma introdução sobre a tradição da escrita da história na Irlanda Medieval, na qual Bhreathnach aborda as formas irlandesas de reflexão sobre o passado, reunidas a partir de história, mito e tradição no termo gaélico seanchas e na figura de seus historiadores, os seanchaide (página 1-8), no primeiro capítulo, intitulado “The landscapes of early medieval Ireland”, a autora destina 31 páginas à reflexão e sistematização de informações sobre o meio-ambiente natural da Irlanda, com suas paisagens rurais, semi-rurais e urbanas e para compreender a função do comércio desde os polos comerciais tardo-antigos até as cidades costeiras vikings. O segundo capítulo, por sua vez, é dedicado ao estudo dos reinos, seus reis e seu povo (página 40-123). Nesta parte, bem mais extensa que a primeira, o leitor encontrará uma profunda análise dos conceitos de realeza; a função das leis, com suas distâncias e aproximações da realidade irlandesa do período, bem como as obrigações que estas atribuíam aos reis, conferindo-lhes e/ou restrigindo-lhes o poder; a casa real e a extensão da família real, com sua estrutura de parentesco; e a vida e a morte dos reis, tal como os simbolismos e a ritualística envoltos nestes cerimoniais, uma deixa para a última parte da obra. No terceiro e último capítulo (página 130-236), então, há um estudo detalhado da religião e dos rituais, desde antes do cristianismo até a chegada da nova religião, com a introdução do monasticismo na Irlanda, sua estruturação e, paralelamente, as transformações da sociedade irlandesa a partir destas novas práticas religiosas, sociais e culturais. A autora conclui sua obra escrevendo sobre a importância de se estudar a Irlanda no mundo medieval. A historiografia sobre este período da história irlandesa remonta a Eoin MacNeill, que escreveu no início do século XX e é considerado por muitos o “pai” da historiografia irlandesa moderna. Recorrendo e apoiando-se nesta tradição, a explicação que a autora apresenta para justificar os estudos medievais na Irlanda é que, compreendendo a paisagem, a cultura e a sociedade irlandesa destes períodos mais remotos, como é o caso da Idade Média, o passado do país poderá ser melhor apreciado (240-243).

Apesar da concentração nestes três tópicos específicos (a paisagem, a realeza e a religião), de forma alguma a obra de Edel Bhreathnach se restringe a estes aspectos ou os analisa de forma isolada, pois nela há também inúmeras referências a outras particularidades muito importantes da sociedade irlandesa do período, estudadas de maneira sistemática e relacional com o eixo principal da obra. Como exemplo, podem ser mencionados os costumes do cotidiano; a temática do exílio e a presença e função dos estrangeiros na cultura irlandesa; os diversos usos irlandeses da cultura clássica romana e das tradições bíblicas pelos autores irlandeses; e a presença de mulheres e crianças na história irlandesa. O leitor pode estar certo de que trata-se de uma obra a ser lida de forma rigorosa por todos aqueles interessados em conhecer alguns dos acontecimentos fundamentais da história da Irlanda do período abordado.

Referência

SANTOS, D. Forma e narrativa- uma reflexao sobre a problemática das periodizaçoes para a escrita de uma história dos celtas. Nearco (Rio de Janeiro), v. VI, 2013, p. 203-228

FARRELL, E; SANTOS, D. Early Christian Ireland- Uma reflexão sobre o problema da periodização na escrita da História da Irlanda. In: BAPTISTA, L. V; SANT’ANNA, Henrique Modanez de; SANTOS, D. V. C (Orgs.). História antiga: estudos, revisões e diálogos. Rio de Janeiro: Publit, 2011, v., p. 185-213.

Dominique Santos – FURB – Universidade de Blumenau www.furb.br/labeam. E-mail: dvcsantos@furb.br


BHREATHNACH, Edel. Ireland in the Medieval World Ad 400- 1000 Landscape, kingship and religion. Dublin: Four Courts Press, 2014. Resenha de: SANTOS, Dominique. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.14, n.1, p. 140-145, 2014. Acessar publicação original [DR]

O Pacto das Fadas na Idade Média Ibérica | Aline Dias da Silveira

“O objetivo desta obra – diz a Autora, p.18 – é identificar a estrutura simbólica das narrativas feéricas, comparando-a com a estrutura ritualística e simbólica dos pactos vassálico e matrimonial”. Nesta frase concisa encontramos o núcleo fundamental do trabalho: como é que as narrativas medievais sobre fadas (e feiticeiras) revelam a estrutura do feudalismo – ou, mais exatamente: do casamento na sociedade feudal, mostrado através dos seus ritos e imagens. O estudo de Aline Silveira é um trabalho de análise e interpretação do Livro de Linhagens, escrito na década de 1340, por Dom Pedro, Conde de Barcelos (c.1285-1354). Filho bastardo do rei Dom Diniz (1279-1325), e de Glória Anes, (natural de Torres Vedras), D. Pedro viveu num reino que pela primeira vez estava livre de guerras com os sarracenos, e governado por um monarca educado, culto, e bom administrador: a D. Diniz se devem, entre outras obras que permanecem até hoje, a plantação do pinhal de Leiria (que forneceu madeira para caravelas e naus), a fundação da Universidade de Lisboa/Coimbra, e a criação das Festas do Divino Espírito Santo, além de ter sido compositor de peças de poesia e música na Corte.

Educado nesse meio por sua madrasta, a Rainha Santa Isabel, irmã do reio de Aragão, D. Pedro desenvolveu importante atividade literária, reunindo e compondo poesias trovadorescas, e também se lhe atribui, além do Livro de Linhagens, uma Crônica de Espanha (1344) – Espanha não designava então o país ainda inexistente, mas a Hispania, lembrança dos períodos romano e visigótico, quando a Península Ibérica estava unificada. D. Pedro, que se desentendeu com o pai e algum tempo viveu em Castela, interessava-se especialmente por questões de legitimidade feudal e genealógica, razão pela qual se colocou ao lado da Rainha Santa, como intermediário nas disputas entre seu meio-irmão Afonso (primogênito e herdeiro do reino) e o rei seu pai. Temos assim o esboço do porquê de alguns traços da personalidade daquele que, no Livro de Linhagens, faz remontar os laços de fidelidade e ascendência feudal aos arquétipos e às fontes da mitologia, e da religiosidade popular. O que Aline Silveira faz no seu livro é trazer à tona e desvendar essas ligações de certo modo ocultas pelas metáforas e lendas, particularmente as que mostram o poder feminino, que o patriarcalismo feudal e guerreiro parece minimizar, mas que a literatura apresenta disfarçadas de fadas e feiticeiras, tipificadas na Dama Pé de Cabra. Esta mulher, filha de um ser meio humano (de quem herdara os pés ungulados), vivia na Biscaia (Euzkadi, País Basco, ou Vasco) e casou com Diego Lopes de Haro, da mais importante família basca. Com ele teve filhos, e iniciou uma dinastia, que deste modo legitimou sua origem não só numa lenda, mas numa sucessão de ligações míticas que fazem remontar a família Haro a antepassados préhistóricos e, na interpretação da Autora, a concepções fundamentais da visão histórica e mítica do mundo.

Ampliando seu comentário pela comparação com outras narrativas lendárias medievais – a Melusina de João de Arras, e o romance de Froiam da Galiza com Marinha – a interpretação busca raízes na cultura celta, e procura ainda contatos com outras mitologias, particularmente a grega. No Livro de Linhagens há outra idéia norteadora, complementar à anterior – que O Pacto das Fadas explica e comenta: o reforço dos laços feudais de vassalagem pelo parentesco e o casamento; neste caso as “fadas“ são as esposas, aquelas que fazem a ligação entre duas casas nobres, ou reais. A esse propósito a Autora discute a opinião de historiadores portugueses que consideram o feudalismo em Portugal diferente do “modelo francês”.

Ora, na realidade, se observarmos bem a Europa medieval, o feudalismo francês (restrito ao norte da França), só foi modelo porque era mais central, mais influente na época, e porque os historiadores franceses do século XIX foram mais competentes para analisá-lo e propô-lo como modelo; mas de fato cada reino, e cada época, teve suas peculiaridades. Mesmo que, ao tempo de D. Diniz, o feudalismo em Portugal já fosse distinto da estrutura política do reino quando D. Afonso Henrique (1109-1185) liderou a independência, é preciso também ter em conta que o feudalismo, com seus laços de vassalagem e relações de poder, não é só uma estrutura social, política, econômica e guerreira, mas, como a Autora muito bem salienta, é uma maneira de pensar. E é esse pensar que Aline procura descobrir no Conde D. Pedro de Barcelos, o qual entendia que a sociedade se mantinha coesa não só pelas relações de poder, mas também pelas de amor e amizade. Talvez D. Pedro apelasse para esta questão porque estava presenciando mudanças perceptíveis, embora ainda não definitivas: pelos casamentos reais Portugal estava recebendo influências diretas de Castela (de onde era sua avó Beatriz), de Aragão (então a maior potência marítima do Mediterrâneo ocidental) e da França: seu avô. D. Afonso III (1210-1279), fora casado (1238) com Dona Matilde condessa de Bolonha, até assumir o trono de Portugal após a deposição ( 1247) de seu irmão Sancho II, que se desentendera com o clero e a nobreza; no reinado de Afonso III Portugal completou a sua formação territorial, pela conquista definitiva do Algarve (1249), e, ao contrário de seu irmão, o rei conseguiu conter em parte o poder da nobreza nas Cortes de Leiria, e pelas inquirições contra os abusos da nobreza e do clero; se lembrarmos que o pai de D. Pedro, além das realizações que anotamos acima, afrontou o poder da Igreja em diversas ocasiões, mas principalmente ao criar a Ordem de Aviz, na qual recebeu os monges templários condenados e expulsos pelo Papa e pelo rei de França, veremos os indícios de uma concentração do poder real, que se tornará forte na dinastia fundada (1385) por D. João I, Mestre de Aviz.

Finalmente Aline Silveira relaciona a fada (a Dama) com o nobre (o Conde), e o arquétipo mítico com o imaginário social, através de um pano de fundo constituído pelo mito das origens. É o mito, resultado narrativo das idéias presentes no imaginário fundamental e permanente da humanidade, mas realizado em cada cultura regional, que dá sentido à relação entre a fada e o nobre, e portanto à solidez da estrutura social da nobreza. Neste ponto a historiadora amplia e aprofunda o que já estava fazendo desde o início, ao reconhecer a insuficiência da História, como ciência humana narrativa e factual, para se explicar a si mesma, e portanto recorre a outras ciências, como Antropologia, Ciências da Religião, Crítica literária e Psicologia, para descobrir o que há de mais íntimo na humanidade, que faz da história humana regional e local um reflexo da existência humana como um todo. Esta combinação de ideias diversas a Autora realiza com detalhe, perfeição e competência. E nesse pano de fundo ela mostra que o imaginário vassálico era comum não só a toda a Europa, mas se estendia além Europa – ou de lá provinha. Resta perguntar aos jovens historiadores: essas representações sociais, esses arquétipos tipificados e concretizados na Ibéria, que prolongações tiveram na América Latina?

João Lupi – Professor Voluntário do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia – UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br


SILVEIRA, Aline Dias da. O Pacto das Fadas na Idade Média Ibérica. Apresentação de José Rivair Macedo. São Paulo: Annablume, 2013. Resenha de: LUPI, João. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.14, n.1, p. 146-149, 2014. Acessar publicação original [DR]

Da Ilha dos Bem-Aventurados à busca do Santo Graal: uma outra viagem pela Idade Média | Adriana Zierer

Os estudos históricos sob a perspectiva do imaginário vêm se revelando uma tendência cada vez mais presente nas investigações sobre o medievo, incentivada, sem sombra de dúvida, pelos trabalhos de Jacques Le Goff acerca do imaginário medieval, que ele aborda em obras como O imaginário medieval, O nascimento do Purgatório e, mais recentemente, Heróis e maravilhas da Idade Média. No seu entender, entre as fontes passíveis de serem utilizadas pelos historiadores, são as obras literárias e artísticas que despontam como documentos privilegiados para o estudo do imaginário.[1]

Tal influência se encontra em Da Ilha dos Bem-Aventurados à busca do Santo Graal: uma outra viagem pela Idade Média, livro da Prof. Dra. Adriana Zierer, docente da UEMA e professora colaboradora do Mestrado em História Social da UFMA. O subtítulo, ao fazer alusão à obra coletiva anterior, publicada em 2010 sob sua coordenação, é indício de sua constante jornada pelos caminhos do maravilhoso e das representações simbólicas e imaginárias da Idade Média, uma vez que as fontes literárias e artísticas constituem o ponto de partida da autora. O livro reúne 21 trabalhos publicados em periódicos e livros diversos entre 2000 e 2011, que estão distribuídos nas seis grandes temáticas sobre as quais Adriana Zierer se debruçou ao longo desse período, a saber: Ilhas Míticas e Paraíso Terreal; Viagens Imaginárias ao Além; Diabo na Idade Média; O Rei Artur, o Graal e o Uso Político; Simbolismo do Rei Medieval; e Santidade, Guerra e Paganismo na Antiguidade e Idade Média. Do total de artigos, dois foram escritos em coautoria com o Prof. Dr. Ricardo da Costa, da UFES, e um foi realizado em conjunto com Solange Pereira Oliveira, mestranda da UFMA.

E o que era a Ilha dos Bem-Aventurados que dá nome ao livro? Segundo a mitologia de povos de fundo céltico, era o local da abundância e da imortalidade (p. 25), sendo que alguns sinônimos também desfilam ao longo do livro. Ilha Afortunada, noção que já existia entre os gregos, explicada depois por Isidoro de Sevilha e na Baixa Idade Média, se fundiu com a noção da Ilha Céltica de Avalon, a Ilha das Maçãs (Insula Pomorum) (p. 26). Ou Ilhas Abençoadas (p. 38); ou, ainda, Outro Mundo – terra dos seres feéricos e da abundância infinita (p. 38). Quanto ao Paraíso Terreal, a concepção cristã o situava em algum lugar do Oriente, mas em local inacessível aos seres humanos (p. 31).

A preocupação com a morte era uma constante, e os modelos de salvação estão exemplificados através das narrativas sobre São Brandão (Navigatio Sancti Brendani Abbatis) e Santo Amaro (Vida de Sancto Amaro), ambas permeadas pela influência dos imrama, relatos irlandeses de navegação pelo mar (p. 43). Igualmente preocupada com a salvação da alma estava a viagem imaginária Visio Tundali (Visão de Túndalo), obra produzida no século XII em latim e traduzida para o português no século XV. Ao explicar os tormentos do Além através do diálogo entre o nobre cavaleiro Túndalo e o anjo, o caráter didático da obra fica evidenciado, levando Adriana Zierer à conclusão de que a salvação “[…] era a preocupação fundamental dos medievos mais pelo pavor do castigo que pelo anseio do Céu. Quanto a atingi-la, representava uma árdua batalha para a alma humana, que se debatia entre o desejo dos prazeres e o terror do abismo infernal”. (p. 103). Esse Além cristão, inicialmente dividido em Paraíso e Inferno (p. 32), foi ampliado no século XII quando da criação de um lugar intermediário, o Purgatório (p. 33). A salvação da alma realizava-se, portanto, através de deslocamentos espaciais, e estes incluíam as peregrinações em busca de relíquias (p. 31). Mas a incerteza quanto ao destino final – Paraíso ou Inferno – de cada indivíduo também podia se fazer representar pela Roda da Fortuna, metáfora medieval da instabilidade e da fugacidade do tempo, e objeto do artigo escrito em conjunto com Ricardo da Costa a partir de um estudo comparado entre a Consolatio Philosophiae de Boécio (séc. VI) e a Ars de Ramon Lull (séc. XIII), e que conclui com a afirmação de que “[…] todas as glórias do mundo terrestre serão um dia julgadas pelo Juiz Supremo, e os que estavam no alto da Roda, poderão cair no Inferno, ao passo que as almas dos bons viverão na eterna bemaventurança, ao lado de Deus” (p. 329).

Mas o personagem que ocupa uma parte bastante significativa nos trabalhos de Adriana Zierer é aquele que, no entender de Jacques Le Goff, foi, entre os séculos VI e XVI, um personagem novo e específico da história: o rei medieval.[2] De fato, este personagem é objeto de nove artigos, dos quais oito giram em torno do que a autora identifica como a “lenda do rei perfeito” (p. 156): o rei Artur. Seu uso político estaria vinculado aos reis anglo-normandos, em especial Henrique I (1100-1135) e, principalmente, seu neto, Henrique II (1154-1189), conhecido como Plantageneta. Muito embora a figura de Artur possa ser encontrada já no século VIII, na Historia Brittonum, de Nennius, foi no século XII, a partir da Historia regum Britanniae, de Geoffrey de Monmouth, que Artur recebeu um papel de destaque na literatura ocidental (p. 157). Adriana Zierer sustenta que tal obra, realizada por encomenda de Henrique I, passou a ser usada para fins políticos, uma vez que objetivava estabelecer uma associação entre os reis anglonormandos e a antiga linhagem bretã através de Artur, seu mais nobre representante (p. 158). Quanto à cristianização do mito arturiano, esta tem no Graal seu elemento mais expressivo. Introduzido por Chrétien de Troyes no romance Perceval, o Graal, inicialmente uma escudela, foi cristianizado ainda no final do século XII por Robert de Boron, que o transformou no cálice usado por Jesus na Última Ceia, e onde José de Arimatéia recolheu o sangue de Cristo na cruz (p. 161). Apenas Galaaz, o cavaleiro perfeito, porque puro, consegue encontrar o Graal, que para Zierer era “[…] ao mesmo tempo um alimento corporal e espiritual, uma visão indescritível banhada de luz, que ascendeu ao céu, juntamente com Galaaz, após a visão dos seus mistérios” (p. 162).

A santidade, crença tão marcante no medievo, também recebeu a atenção de Adriana Zierer, que juntamente com Ricardo da Costa, se dedicou ao estudo da Vida de Macrina, em artigo que analisa o conceito de santidade e de ascetismo feminino, bem como a importância da virgindade para o Cristianismo do século IV. Mas a Antiguidade também fornece elementos para outros estudos de Adriana Zierer sobre o período medieval, como no artigo sobre a imagem do herói no poema Waltharius, produzido entre os séculos IX e X, e no qual Zierer identifica atributos de heróis clássicos – como Ulisses e Enéias – nos principais personagens masculinos, Valtário da Aquitânia e Hagen, guerreiro franco. Ou, ainda, através das analogias entre a simbologia da cabeça cortada entre os celtas e o mito grego da Medusa, no artigo que encerra a publicação.

A par dos documentos literários, vários artigos incluem imagens, cuja inserção não se restringe a um caráter meramente ilustrativo, uma vez que são utilizadas como fontes de cunho artístico para a análise das temáticas abordadas, como por exemplo, no artigo sobre os significados medievais da maçã, cujo ponto de partida consiste em documentos iconográficos, no caso duas obras de Lucas Cranach, o Velho, ambas do século XVI: Adão e Eva e A Virgem e o Menino (p. 20 e 22). Entre as imagens selecionadas, predominam as produzidas no século XV, tais como Os Sete Pecados Capitais, de Hieronymus Bosch (p. 92); O Juízo Final, de Fra Angelico (p. 96 e 99); Túndalo e o Anjo com os fiéis no casamento (p. 121); e O Santo Graal na corte do rei Artur (p. 223), só para mencionar algumas, confirmando a permanência de imaginários medievais sobre o Além e sobre o ciclo arturiano no alvorecer da cultura renascentista.

As análises de Adriana Zierer contém, ainda, um viés comparativo, sintetizado pela autora em forma de quadros bastante elucidativos, como O Além em Obras dos Séculos II e III (p. 80), no qual compara os Apocalipses de Baruch, Esdras, Pedro, Paulo e o IV Livro de Esdras; ou no quadro sobre Artur como Guerreiro e Rei Cristão (p. 168), onde compara a trajetória dos atributos do referido rei nos séculos VIII, XII e XIII na Historia Brittonum, na Historia regum Brathair Britanniae e em La Queste del Saint Graal, respectivamente; ou o papel de Artur nas fontes ibéricas medievais, através de comparações entre o Libro de las Generaciones e o Nobiliário do Conde Dom Pedro (p. 245, 246, 247, 253 e 259).

Da Ilha dos Bem Aventurados à Busca do Santo Graal alcança, portanto, o intuito de sua autora, para quem o livro “[…] contribui com a constante necessidade de formação e aperfeiçoamento dos pesquisadores dos estudos medievais e que contribuirá com o surgimento de novas pesquisas na área” (p. 18).

Notas

1. LE GOFF, Jacques. L’imaginaire médiéval. Paris: Gallimard, 1985, p. III.

2. LE GOFF, Jacques. Rei. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário temático do Ocidente medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, v. II, p. 395.

Maria de Nazareth Corrêa Accioli Lobato – Doutoranda em História Comparada – UFRJ nazalobato1@gmail.com


ZIERER, Adriana. Da Ilha dos Bem-Aventurados à busca do Santo Graal: uma outra viagem pela Idade Média. São Luís: Editora UEMA, 2013. Resenha de: LOBATO, Maria de Nazareth Corrêa Accioli. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.2, p. 129-132, 2013. Acessar publicação original [DR]

The Texts and Contexts of Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108. The Shaping of English Vernacular Narrative | Kimberly K. Bell

Em 1635, William Laud, arcebispo de Canterbury e chanceler da Universidade de Oxford, doou à Bodleian Library, biblioteca da universidade, uma série de manuscritos com obras diversas compiladas em diferentes línguas (latim, grego e alguns vernáculos). Dentre eles estava uma coletânea de obras compiladas sob um mesmo códice que tinham uma característica em comum, todas estavam em inglês médio, o vernáculo falado no território insular entre meados do século XII ao XV, período em que linguistas demarcam a transição para o inglês moderno, aquele mais próximo do inglês corrente hoje. Tal códice foi catalogado como Laud Miscellaneous Manuscript, ou, apenas, Laud Misc. MS, e o termo ‘miscellaneous’ (miscelânea) é tema do primeiro ponto crítico levantado por Kimberly K. Bell e Julie Nelson Couch ainda na introdução. Segundo as autoras, a nomenclatura gerou, e ainda gera, interpretações equivocadas por parte de críticos e leitores, que tendem a ler o termo como referência à falta de primor artístico ou de organização do compilador das obras. Todavia, nesse códice, encontram-se algumas das primeiras compilações de obras em inglês médio já catalogadas e o fato do mesmo não incluir textos em outras línguas mostra exatamente a falta de ‘miscelânea’ e uma rígida estruturação e organização, segundo as autoras. Sua característica monolinguística o coloca em destaque no contexto histórico ao qual pertence, uma vez que manuscritos de tal período raramente reuniam obras numa única língua, mas a reconhecida ‘estranheza’ de tal característica linguística deve-se ao fato do inglês médio, naquele contexto, ainda ser percebido e mantido quase que exclusivamente como língua oral, ao contrário do anglo-normando que era lecionado e pautado na escrita.

Em Laud encontram-se a mais antiga versão do The South English Legendary, uma referenciada coletânea de hagiografias de santos insulares e continentais, e duas das primeiras versões dos romances King Horn e Havelok the Dane, os mais antigos romances em inglês médio, além de outras obras religiosas e laicas. A presença das referidas obras primevas daquele vernáculo por si só já agrega enorme valor ao manuscrito, todavia, conforme discute Anne B. Thompson, escrever em inglês médio no século XIII – data de confecção das obras – é considerado uma inovação, dada a relevância do anglo-normando como vernáculo de prestígio, especialmente na corte de Henrique III (1216-1272).[1] Assim segue a introdução de The Texts and Contexts of Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108. The Shaping of English Vernacular Narrative, localizando no tempo e no espaço a produção do manuscrito Laud, partindo do seu processo de catalogação e doação à biblioteca da Universidade de Oxford, passando pelo seu processo de confecção, manutenção e circulação no período medieval.

A obra organizada por Bell e Couch, tema da presente resenha, dedica-se exclusivamente ao estudo do presente manuscrito, reunindo artigos que abordam diferentes metodologias, elencando uma série de ensaios interdisciplinares e intertextuais. O volume divide-se em duas partes, a saber, Part I: The Manuscript and its Provenance, que conta com cinco artigos, e Part II: The Manuscript and its Texts, abrangendo oito artigos, além de doze páginas com imagens de fólios dos diferentes textos do Laud. No anexo segue o sumário com a ordem dos artigos, seus títulos e respectivos autores a fim de que a estrutura da obra se torne mais clara e palpável durante a leitura da presente resenha.

Tal estrutura reflete bastante a intenção analítica das organizadoras; não se tratam apenas de discussões lançadas sobre as especificidades instrumentais e os jargões dos estudos textuais e de manuscritos (Manuscript Studies). Ao contrário, o objetivo da coletânea é trazer à tona uma série de novas perspectivas investigativas que apontam para a complexidade, pluralidade e, não por acaso, unidade do códice como um ‘conjunto’ e não um montante de manuscritos esparsos aleatoriamente reunidos – este último fator sendo, todavia, pertinente a vários dos manuscritos medievais que resistiram até o século XX. Algumas acepções cristalizadas sobre Laud são questionadas não apenas na introdução, mas também em outros ensaios, é o caso da ideia de miscelânea, que transforma-se em contraponto questionado pelo argumento central das autoras de que o códice é, na verdade, um ‘whole book’ [livro como um todo] (p. 7) e também funciona como ponto de partida para os artigos de A.S.G. Edwards, Murray J. Evans e Christina Fitzgerald.

O material reunido na primeira parte do livro centra-se mais no trabalho textual de rastreamento de elementos linguísticos, sintáticos, retóricos (a ‘evocação da performance do menestrel na produção hagiográfica’ presente em Laud, conforme Andrew Taylor; a presença de uma possível ‘autoria masculina’, segundo Christina M. Fitzgerald ) e materiais (datação, constituição física – dimensões, método de agrupamento dos fólios e sua proveniência – e os possíveis ‘rastros’ de sua circulação através de glosas e outras demarcações textuais, temas discutidos por Thomas R. Liszka, Murray J. Evans e A.S.G. Edwards, respectivamente). Já a segunda parte, que concentra a maioria dos textos, introduz o leitor a um universo de perspectivas interdisciplinares e extremamente criativas, porém cautelosas quanto à demarcação de suas metodologias e embasamentos teóricos, sem que tais preocupações tornem os textos autoreferenciais ou quebrados em blocos de “teoria/metodologia” seguido de “análise textual”. O apuramento argumentativo e a flexibilidade com a qual os autores transitam por diferentes referenciais disciplinares fazem da segunda parte, talvez, mais atraente ao pesquisador interessado em trabalhos que versem sobre as especificidades de Laud (ou de um manuscrito medieval, de maneira genérica), sem abusar da proximidade paleográfica para ratificar suas problemáticas, utilizando-a, no entanto, como referência tangencial num movimento analítico que transita entre o dentro e o fora dos textos estudados – isto é, textos e contextos. Ressalto como exemplo de tal iniciativa a análise primorosa de Robert Mills que, em seu ensaio, coloca em diálogo, de forma problemática e provocadora, estudos sobre o corpo, etnia, geografia (numa leitura quase etnogeográfica), linguagem e espiritualidade. O que, à princípio, soa quase como uma colcha de retalhos temática, se transforma, em seu texto, numa cadência coerente e convincente de elementos fundamentais à constituição hagiográfica do The South English Legendary.

Hagiografia e literatura laica, aliás, são constantemente postas lado a lado nos textos de diferentes autores, num intuito discursivo que acompanha, de perto, a própria organização de Laud, na qual dois romances seculares – King Horn e Havelok – aparecem em meio a inúmeras vidas de santos. Muito já se discutiu no âmbito da academia anglo-saxã sobre as proximidades e os afastamentos entre vidas de santos e romances, Neil Cartlidge dedicou especial atenção ao tema. Todavia, o que se discute na obra aqui resenhada não são as proximidades que nós, acadêmicos pós-modernos (ou modernos ou do século XXI), projetamos sobre os dois gêneros textuais, mas, sim, as evidências próprias de cada tipo de texto que os coloca em posição horizontal, tal como nos são apresentados pelo compilador (ou compiladores) de Laud. Uma inversão de olhares que pode parecer irrelevante ou quase tautológica, mas que resulta em significativas mudanças de perspectiva analítica e de sensibilidade sobre hagiografia e romance, gêneros tão próximos, porém tão distantes.

Todos os autores que colaboraram para a confecção do volume são doutores (alguns eméritos) na cadeira de English – disciplina comum nos cursos de English Studies em universidades do Reino Unido e dos Estados Unidos. A natureza interdisciplinar do referido curso está intimamente vinculada à formação e atuação dos profissionais a ele ligados (e à sua própria localização como cadeira acadêmica), cujos trabalhos transitam entre os campos da História Cultural (e da Leitura) e da análise textual-literária, passando por elementos da disciplina paleográfica. Tal interdisciplinaridade, por vezes super-utilizada, como é o caso dos trabalhos de Robert Mills, Julie Nelson Couch, Susanna Fein e Andrew Lynch, não funciona apenas como força motriz na confecção de The Texts and Contexts of Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108. The Shaping of English Vernacular Narrative, mas, sobretudo, a transforma num conjunto textual de referência para pesquisadores de diferentes disciplinas e contextos acadêmicos (especialmente aos interessados em textos em inglês médio do século XIII e de períodos posteriores), pluralizando não somente os olhares sobre o manuscrito de Laud, mas também refratando o que de mais múltiplo tal manuscrito nos oferece: sua própria ‘essência’ constitutiva e textual.

Anexo

Part I

The manuscript and its Provenance

  1. Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108: Contents, Construction and Circulation, A.S.G. Edwards
  2. Talk in the Camps: On the Dating of The South English Legendary, Havelok the Dane and King Horn in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108, Thomas R. Liszka

III. “Very Like a Whale?”: Physical Features and the “Whole Book” in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108, Murray J. Evans

  1. “Her Y Spelle”: The Evocation of Minstrel Performance in a Hagiographical Context, Andrew Taylor
  2. Miscellaneous Masculinities and a Possible Fifteenth-Century Owner of Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108, Christina M. Fitzgerald

Part II

The Manuscript and Its Texts

  1. A Text for Its Time: The Sanctorale of The Early South English Legendary, Diane Speed

VII. The Audience and Function of the Apocryphal Infancy of Jesus Christ in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108, Daniel T. Kline

VIII. The Eschatological Cluster – Sayings of St. Bernard, Vision of St. Paul, and Dispute Between the Body and the Soul – in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108, J. Justin Brent

  1. Genre, Bodies and Power in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108: King Horn, Havelok and The South English Legendary, Andrew Lynch
  2. The Early South English Legendary and Difference: Race, Place, Language and Belief, Robert Mills
  3. The Magic of Englishness in St. Kenelm and Havelok the Dane, Julie Nelson Couch

XII. “holie mannes liues”: England and its Saints in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108’s King Horn and South English Legendary, Kimberly K. Bell

XIII. Somer Soneday: Kingship, Sainthood and Fortune in Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108, Susanna Fein

Nota

1. Cf. Thompson, Anne B., Robert K. Upchurch e E. Gordon Whatley. Lives in Middle English Collections (Kalamazoo: Medieval Institute Publications, 2004), p. 22

Gabriela Cavalheiro – Doutoranda em Medieval Studies, King’s College London. E-mail: gabriela.cavalheiro@kcl.ac.uk


BELL, Kimberly K.; COUCH, Julie Nelson. The Texts and Contexts of Oxford, Bodleian Library, MS Laud Misc. 108. The Shaping of English Vernacular Narrative. Leiden, Boston: Brill, 2011. Resenha de: CAVALHEIRO, Gabriela. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.2, p. 133-137, 2013. Acessar publicação original [DR]

Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII) | Ruy de Oliveira Andra de Filho

A Península Ibérica sempre ocupou dentro do mundo romano um espaço importante no tocante não apenas a sua localização, mas também como um dos mais ricos celeiros do Imperium. Com o fim político do Império Romano do Ocidente, a região, que, no passado, abrigou povos de etnias várias como lusitanos, iberos, celtas e celtiberos, vivenciaria até o século VIII a ocupação de seu território por dois povos de origem germânica, os quais para lá estenderam seus domínios após sua migração, a saber, suevos e visigodos. Estes últimos assentaram-se preferentemente na Hispânia romana, em um contexto sócio-histórico e religioso bastante peculiares. Exatamente sobre estas singularidades do mundo germânico em um território antes celta e romano debruça-se Ruy de Oliveira Andrade Filho.

Cada vez mais estudos historiográficos sobre a Alta Idade Média (ou Primeira Idade Média) [como queiram] realizados por pesquisadores brasileiros concentram-se sobre a movência, assentamento e contribuições de toda a ordem legados, apropriados, fundidos e refundidos pelo estrato populacional germânico no ocidente europeu. Vinícius Dreger, Mário Jorge Bastos, Leila Rodrigues da Silva, Renan Friguetto, apenas para citar alguns nomes, compõem esse espectro de investigadores. Caso nos ocupemos em especial com a Espanha medieval, o nome do professor da Universidade do Estado de São Paulo, citado no primeiro parágrafo, deve assomar como um dos principais e Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VIVIII) preenche uma lacuna cronológica e historiográfica nesses estudos.

O medievista sintetiza em cinco capítulos e 253 páginas os acontecimentos sobre a relação Monarquia-Igreja presentes no desenvolvimento do reino visigodo de Toledo ao longo de três séculos e para alcançar este objetivo, divide seu trabalho em cinco capítulos teórico-práticos, nos quais expõe não apenas seu instrumental de trabalho e análise das fontes investigadas, como também seu vasto arcabouço teórico que subjaz as suas práticas de pesquisa.

No primeiro capítulo, “Uma Hispânia convertida?”, evidencia-se um levantamento crítico com opiniões de diversos renomados estudiosos acerca da extensão, penetração e aceitação do cristianismo na região, preferentemente entre os séculos IV e VIII. Ao lado da superstitio e das gentes que professavam o judaísmo e defendiam as heresias, assiste-se também a presença dos innumeri christiani (p. 40). O historiador aponta, com sólida erudição, as questões que perpassavam os citadinos de então, bem como a massa de camponeses, com suas visões e práticas muitas vezes diferenciadas da própria experiência cristã, em que escolhas (heresias) não ligadas à ortodoxia, como o caso do priscilianismo, também encontraram espaço de circulação dentro do território majoritariamente hispânico. Esse estado de coisas, assevera Ruy, serviu também como circunstâncias, nas quais as estruturas de Sippe visigodas foram lentamente sofrendo modificações em favor de uma monarquia consolidada. Para isso, a influência da Igreja e sua habilidade em amalgamar na imagem de unus Dei populus, unumque regnum, expressa no Terceiro Concílio de Toledo, foram fundamentais. O paulatino mas inexorável avanço do cristianismo sobre as práticas pagãs dos rustici fora aberto.

“Cultura e Religião no Reino de Toledo” é o título do segundo capítulo, no qual o binômio “cultura/religião” é abordado no reino de Toledo, porém até chegar no medievo, o autor elabora um percurso histórico dessa relação, iniciando sua viagem na Tardoantiguidade, mais precisamente, no século III, com a sacralização do poder imperial, reafirmado e remoldado a partir da implantação do cristianismo como religião oficial do império um século depois. Contudo, ainda sentia-se na Hispânia uma forte presença de traços pagãos dentre os senadores e os camponeses, o que, a posteriori, com o fortalecimento da monarquia dos visigodos e em especial após a conversão do rei Recaredo, ainda tenderia a se manifestar. Um fator que contribui sobremaneira para a difusão da religião “oficial” foi, sem dúvida, uma rede de “escolas episcopais, paroquiais e monásticas, cuja finalidade principal era … a formação de clérigos” (p. 80). Igreja e Monarquia apoiam-se mutuamente em Toledo, porém no tocante à saúde, física e d´alma, sente-se uma simbiose de práticas e costumes populares com a utilização de elementos cristãos, configurando uma união perene entre corpo/alma e lhe dando juízo de fé pública. Interessante notar que o historiador ressalta dois aspectos importantes nesse processo: o primeiro prende-se à conversão dos monarcas e de seu séquito mais próximo; já o segundo, a cristianização, ainda necessitava de uma implementação maior, pois o maravilhoso, o insólito, o estranho que fugiam à compreensão dos eclesiásticos ainda rodeavam e povoavam estratos significativos da população visigótica da Hispânia e de Toledo.

Nada mais justo, portanto, que o próximo capítulo “Religiosidade ou Religiosidades?” também apresentasse uma indagação como tema central. A questão do encontro entre modos de vivenciar o sagrado expresso pela dicotomia paganismo X cristianismo no território hispânico é debatida e o historiador aponta desde o início para o fato de que obras como os Capitula Martini ou o De correctione rusticorum, de Martinho de Braga, “não parecem estar dotadas de uma intenção apenas preventiva ou lutando contra lembranças residuais ou obscuras, ´meras impurezas´” (p. 103). Tais textos demonstrariam a coexistência de duas formas de religiosidade, uma oficial e outra ´popular`.

Para Ruy Andrade, o termo `religiosidade popular` situa-se na esfera de um embate que oporia o cristianismo, uma religião da cultura escrita, a um conjunto de crenças e práticas, que sobressaiu exatamente a partir da expansão dominadora do credo cristão, pois o estudioso defende para o período “a religiosidade como elemento catalisador dos descontentamentos, e não seu agente elaborador.” (p. 109) Portanto, vislumbrar-se-ia uma antinomia campo X cidade, em que o meio rural manteria tradições e expressões de religiosidade dissonantes daquelas das cidades, ligadas ao círculo real e de certa forma aliadas ao poder eclesiástico. Esta “cisão de fé”, se é que assim podemos denominar tal fenômeno no reino visigodo de Toledo, colocava em lados opostos a magia pagã e o milagre cristã, embora, afirma o historiador, questionando-se ao fim do capítulo, se é realmente possível falarmos de ´religiosidade popular´, na medida em que este termo parece englobar mais que simplesmente uma escolha ou prática não referendada pela Mater Ecclesia, revelando-se como um outro viés da religião do Cristo.

No próximo capítulo, “A Utopia Monárquica Visigoda”, discute-se a partir da conversão ao cristianismo dos visigodos do reino de Toledo ocorrida no ano 589 o projeto de referendo da organização monárquica do reino em consonância com a esfera religiosa, já que “A unidade política assentava-se, pois, na unidade religiosa.” (p. 132) A coesão política do reino atrelava-se agora ao apoio eclesiástico, que ensejava e ansiava por uma “utopia monárquica”, em que bispos e nobres visigóticos possuiriam papel de destaque nos assuntos régios em Toledo.

Para a realização em terra de um ideal cristocêntrico até o fim do reino visigótico de Toledo em 711, a Igreja lança mão da metáfora do corpus Christi para direcionar os papéis sociais de todos, reis e súditos, no céu e na terra com a intermediação dos clérigos, representantes do Criador entre os homens. Para o historiador, uma aliança é estabelecida, tanto em nível civil quanto em teológico, entre realeza e igreja, a ponto de, cita o pesquisador brasileiro, se chegar em certos momentos “à promulgação pelos reis da lex in confirmatione concilii” (p.142). A lei e a Lei fundem-se, e a consagração em Toledo do rei Wamba, em 672, é marco na história ocidental.

A sacralização da monarquia, as etapas, as funcionalidades e as características deste momento histórico descritas no capítulo IV somam-se agora no capítulo V, Religiosidade e Monarquia no Reino de Toledo os resultados visíveis e depreensíveis de tal processo. Partindo de Paulo e Isidoro de Sevilha ter-se-ia a divisão do homem em sua integralidade em três instâncias: “espírito/pneuma, que corresponderia à parte que estava reservada para a imortalidade; alma/psykhe, que animaria o corpo; e corpo/soma, [este último par apenas para Paulo] a parte degradável que desapareceria.” (p. 166) O historiador analisa com argúcia a inserção do homem – visigodo – dentro do plano cosmológico cristão, em que a teia cultural do cristianismo e suas expressões de religiosidade servem de base e de argamassa para ordenar o mundo, já que, como bem explica Ruy Andrade, “´Cosmo´, significando ordem, estrutura, mundo, universo, também é uma palavra entendida como ´caos´…” (p. 171), o que logicamente pressuporia a existência prévia de uma falta de coesão. As uerba Dei mostram, num mundo ordenado, as belezas da Criação e caberia ao homem ser o espelho deste ordenamento e deste encanto. A natureza deve se sujeitar ao melhor specimen forjado por Deus, a cidade é eleita o seu melhor abrigo, embora sobre a terra ainda pairasse o a possibilidade da sedição do Mal.

Tal perigo, que lembraria ao ser humano a presença do demônio, pode ser polarizado pelos binômios catolicismo/arianismo devido à associação ao Mal de reis visigodos que professavam a doutrina de Ário. Todavia, o rei cristão verdadeiro traria a salvação e a saúde ao seu povo, sendo ambos os termos derivados etimologicamente de salus. Enfim, o Homem e o Reino do plano divino ver-se-iam então personificados e revividos na figura do monarca e seu reino terrestre. Nesse momento entende-se o porquê do título Imagem e Reflexo, como bem sumariza o historiador: “É uma condição básica: a moldura do espelho não lhe distorce a imagem, confere-lhe uma forma.” (p. 192)

Em suma, lançando questões, propondo interpretações aos moldes de uma História Argumentativa, amparado em sólida bibliografia e em uma linguagem acessível a estudiosos e leigos, Ruy de Oliveira Andrade filho leva-nos ao reino visigodo de Toledo, em uma viagem que se encerra no “eterno retorno” do mundo germânico medieval à plasmação da Europa que em grande parte ora conhecemos e que cada vez mais é objeto de investigação de historiadores brasileiros.

Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Departamento de línguas Anglo-Germânicas. E-mail: alvabrag@uol.com.br


FILHO, Ruy de Oliveira Andrade. Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. Resenha de: BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Germanos na Espanha medieval – entre Reis e Deus (es). Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.1, p. 114-119, 2013. Acessar publicação original [DR]

Kalevala. O poema épico finlandês | Elias Lönnrot

A obra e o autor

O Kalevala é a representação poética mais destacada da cultura tradicional dos povos fin – os finlandeses. Tal como outros poemas clássicos “nacionais”, ou étnicos ele é o resultado da composição, em uma obra só, de relatos poéticos variados e dispersos. Mas, ao contrário da maioria desses poemas, cuja composição remonta a épocas arcaicas, a redação do Kalevala é recente, e seu autor é bem conhecido: o médico e etnólogo Elias Lönnrot (1802-1884). Formado em medicina pela Universidade de Turku trabalhou como secretário de saúde em Kainuu, e aproveitou sua profissão, que o levava a percorrer o meio rural, para coletar poesias regionais tradicionais. Com elas compilou diversas obras, entre as quais Kantele (1831) – o título é uma referência ao instrumento de cordas tradicional – a primeira versão do Kalevala (Antigo: 1835), Kanteletar (1840) e Kalevala (o Novo: de 1849, sendo esta a versão aqui traduzida). Lönnroth selecionou narrativas míticas e lendárias, simplificou os relatos, procurou dar-lhes unidade de conjunto, se necessário inventando um ou outro trecho ou traço poético a fim de organizar o poema final; este processo foi semelhante ao que quase na mesma data (1848) Richard Wagner usaria para dar início à composição do Anel do Nibelungo a partir das mitologias nórdicas. A estrutura do poema em sua versão atual é composta de cinquenta cantos, ou capítulos, de dimensões variáveis, num total de 22.795 versos. O conjunto não forma uma narrativa única, mas uma sucessão de relatos cuja unidade é realizada não só pelo estilo e referências contextuais, mas por um grupo de personagens que vão se sucedendo e entrosando ao longo do poema. A ação, ou ações, passa-se em diversos territórios, que em tempos préhistóricos eram ocupados por povos distintos, mas no poema abrangem praticamente todo o território (e apenas ele) atualmente constituído pelo país Finlândia, e unificado também pelo idioma finlandês contemporâneo, o que fez do Kalevala um símbolo e um “tônico” espiritual na luta dos finlandeses (final do século XIX e início do XX) pela sua independência contra as nações vizinhas e particularmente contra a Rússia (1917).

Estrutura do poema

As narrativas passam-se num contexto de “antes do tempo”, quando os seres humanos conviviam com os animais, e neste sentido elas são mitológicas; todos os seres possuíam poderes superiores aos comuns da humanidade e natureza atual. Mas o Kalevala não é uma narrativa mítica no sentido de Jung e Eliade – em que o fato acontecido no “mundo dos deuses” é o protótipo e arquétipo do que acontece no mundo dos humanos – a não ser, como dissemos, como possível arquétipo da cultura e modo de pensar dos finlandeses. Considerando o Kalevala sob o aspecto das narrativas temáticas temos três grupos principais, constituídos pelas narrativas referentes a cada um dos heróis dominantes – Väinämöinen e Lemminkäinen – e o “coadjuvante” que é Ilmarinen, interrompidas, porém, por dois episódios: o referente à noiva de Ilmarinen, com as recomendações à mulher que vai casar (XX – XXV) e o referente a Kulervo, escravo de Ilmarinen (XXXI – XXXVI) que se compõe de uma sucessão de vinganças e tragédias. Outro tema é um objeto especial, que percorre e unifica todo o poema: o Sampo – algo que é indefinido, talvez indefinível, do qual depende, ao menos em parte, a ordem do mundo e a felicidade das pessoas, algo que se pode perder, ou quebrar, mas que pode ser reconstituído, mas que não se sabe, ou não se diz, o que é. Mas o tema da busca do misterioso Sampo começa no canto VII (310) e só termina com a sua destruição nos últimos cantos (XLVIII a L).

Os personagens

Os heróis do Kalevala, tal como os deuses e heróis da mitologia grega e nórdica, não são modelos das virtudes tradicionais, clássicas ou cristãs, mas são modelos de astúcia, como Ulisses, e de uso de poderes mágicos. São heróis “nacionais”, mas não são modelos morais nem arquétipos míticos. São fantasias da vida popular rural, talvez representem aspirações, talvez indiquem traços da mentalidade, ou do subconsciente coletivo. Todos os heróis têm que realizar tarefas difíceis para conseguir a mão das donzelas pretendidas: capturar um alce, derrubar um urso, construir um barco… Os dois personagens mais constantes e significativos – Väinämöinen e Lemminkäinen- são um velho feiticeiro (o primeiro), e um jovem estouvado (o outro). Väinämöinen aparece já no canto I, quando Ukko, o Criador, dá origem ao mundo, e, depois do surgimento do Sol, da Lua e das estrelas, a mãe-d’água Ilmatar dá à luz o herói. As circunstâncias deste nascimento, e o fato de estar colocado no início do poema mostram que Lönnroth destacou Väinämöinen como personagem principal de toda a narrativa; essa importância vem ainda dos poderes do herói semideus, que completa a criação do mundo como um demiurgo prometéico. Ao longo dos 50 cantos ele é citado e atuante em pelo menos trinta; além de demiurgo ele combate adversários, conquista mulheres, realiza prodígios, canta músicas encantadoras, e cura doenças. Lemminkäinen é o resultado da sobreposição de diversos personagens das poesias populares, e por isso aparece ao longo do poema com diversos nomes; mas sempre como o jovem estouvado; é citado na criação do mundo, mas só começa a ser atuante nos cantos XI – XV; vai ao casamento de Ilmarinen sem ser convidado; mata o amo de Pohja, e foge: perseguido, esconde-se numa ilha, conquista todas as mulheres, foge de novo, volta para casa, e vai fazer a guerra contra Pohja (XXVI – XXX); sua atividade “preferida” é conquistar donzelas, que persegue ao longo do poema, acabando por ter uma merecida fama de “garanhão” (Canto XXIX 243-246). Por isso e por ser arrogante e dado a brigas e bravatas, sofre perseguições, é morto, mas ressuscitado por sua mãe. Ilmarinen, o terceiro herói, é o ferreiro com poderes extraordinários, consegue forjar até um novo Sol; ele aparece em diversas passagens, mas só começa a ter papel destacado quando disputa com Väinämöinen, a mesma donzela de Pohja (ou Pohjola), e realiza proezas como lavrar um campo de víboras e capturar um urso (XIX). Finalmente Ilmarinen descobre que em Pohjola se vive bem porque têm o Sampo, e o conta a Väinämöinen (XXXVIII); é então que os três heróis principais se encontram (XXXIX) para juntos irem à procura do Sampo; enfrentam perigos de peixes gigantes, mas, morto o peixe (XL), Väinämöinen fabrica com as espinhas um kantele e com ele toca uma música que encanta o mundo inteiro (XLI) e adormece o povo de Pohja, a quem os heróis roubam o Sampo (XLII). Perseguidos pela dama de Pohjola, o Sampo se quebra e cai ao mar. Com sua música, poderes e unções Väinämöinen traz felicidade ao mundo, e Kalevala vence Pohjola. Numa sucessão de breves episódios finais (quase como adendos) Väinämöinen vence o urso (um ritual arcaico siberiano) e com Ilmarinen vai à procura do Sol, da Lua e do fogo, roubados pela dama de Pohja, conseguindo recuperálos. No final um velho batiza um menino como rei da Carélia; Väinämöinen retira-se deixando para o povo o seu kantele, seus cânticos, e a esperança de reaver o Sampo. Dos personagens haveria que destacar muitos outros elementos masculinos, mas há que referir sobretudo a presença de mulheres, algumas delas com ação importante, sobretudo a dama de Pohjola; dizer que a figura da mulher aparece sempre num papel secundário e submisso ao homem seria bastante óbvio, mas isso nem sempre é assim, e haveria que analisar o poema de maneira mais atenta para perceber que as ideias referentes à mulher não são sempre machistas. Entre os personagens não humanos há os animais, que na maioria dos casos são agentes passivos, e os sobrenaturais, como fadas, e semideuses, que não têm ação preponderante; apenas o criador, Ukko, é chamado algumas vezes para intervir, sabendo-se que tem poder decisivo, que pode modificar a sequencia dos acontecimentos.

Poema étnico

O lugar de origem das narrativas poéticas que compõem o Kalevala, onde Lönnroth os recolheu, é a Carélia, região que se divide entre o Sudeste da atual Finlândia, e a correspondente região fronteiriça da Rússia. Mas ao longo dos diversos cantos faz-se referência não só às outras regiões do atual país, inclusive até à Lapônia, no extremo norte, como a povos vizinhos, particularmente alemães, russos e estonianos. Na pré e proto-história o território da atual Finlândia era habitado por diversos povos, que foram sendo unificados, embora ainda subsistam evidências da diversidade: o país que conhecemos como Terra dos Fin, ou Finlândia, designa-se a si mesmo como Suomi, nome de outro povo. Mas desde antes da Idade Média as influências nórdicas, ou vikings, na maioria suecas e dinamarquesas, estão bem atestadas, por exemplo, pela fundação, no século XII, de Talin (capital da Estônia) com o nome de Tanikka (canto XXV 613) abreviatura provável de Tanimerki (Dinamarca, nota 219). Foi nesse período da Baixa Idade Média que se reforçou e consolidou a influência do cristianismo nos povos da Carélia e seus vizinhos do Báltico. Os especialistas consideram que de fato a mitologia e em geral a cultura da Escandinávia germânica, e a doutrina cristã, deixaram traços no Kalevala, mas só uma análise comparativa atenta pode destacar aquilo que para o leitor comum é sutil e passa despercebido.

A tradução

A linguagem original dos textos que compõem o Kalevala seria certamente o finlandês arcaico, ou mesmo outro idioma dos muitos povos que habitavam a região do Báltico; mas Lönnroth os recolheu em finlandês do século XIX, e deu-lhe ainda algumas características peculiares para reforçar o estilo poético-lendário, como a inclusão de muitas expressões onomatopaicas. A primeira tradução para o inglês é a de John Martin Crawford em 1888: ela acompanha rigorosamente o ritmo original do poema, que já está traduzido em mais de sessenta idiomas. No caso da tradução para português a principal dificuldade a resolver é o fato de o idioma finlandês ser uma língua do grupo uralo-altaico (correspondendo a alguns povos da Sibéria e do Altai, na Ásia Central), aparentada com o húngaro (magiar) e o estoniano, mas muito distinto, em estrutura gramatical, e vocabulário, dos idiomas indo-europeus; os vocábulos finlandeses possuem até dezesseis declinações, e as frases podem ser construídas sem verbo; além disso, a terminologia refere-se constantemente, e de modo particularmente expressivo na sua singularidade musical, a um contexto ambiental (natureza) diferente do português. As tradutoras procuraram resolver esses problemas mantendo o formato poético, a estrutura rítmica, e sempre que possível a rima dos versos; além disso realizaram um trabalho se não exaustivo pelo menos muito completo de apresentação de informações e complementos por meio de notas. O convite a um desenhista – Rogério Ribeiro – bom conhecedor da cultura finlandesa, permitiu, através de ilustrações, ampliar o aspecto figurativo da linguagem, infelizmente, porém, o ilustrador faleceu antes de concluir sua obra, que, em alguns casos, ficou apenas nos esboços.

Os povos eslavos, e, em parte, os bálticos, são aparentados com os celtas e germanos, e suas culturas e, particularmente, as literaturas, têm muito em comum; mas os europeus fino-úgrios, como uralo-altaicos que são, têm afinidades mais afastadas. Porém a história e a vizinhança criaram tantas interferências e intercâmbios que não podemos considerar o Kalevala uma literatura distante: ele nos é próximo, e, se nas semelhanças, podemos com ele recuar a traços comuns meso e neolíticos, nas diferenças podemos destacar os componentes do mosaico cultural que compõe a humanidade.

João Lupi – Departamento de Filosofia – UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br

LÖNNROT, Elias. Kalevala. O poema épico finlandês. Introdução de Seppo Knuuttila. Tradução de Merja de Mattos-Parreira e Ana Isabel Soares. Desenhos de Rogério Ribeiro. Alfragide (Lisboa): Dom Quixote, 2013. Resenha de: LUPI, João. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.1, p. 120-124, 2013. Acessar publicação original [DR]

The Druids: A Very Short Introduction | Barry Cunliffe

Quem teriam sido os druidas? A pergunta aparentemente simples tem provocado debates e polêmicas na historiografia contemporânea. Pode-se dizer que esses personagens cercados pelas brumas de antigos mistérios no imaginário popular continuam a despertar, em pleno século XXI, o fascínio e admiração de muitas pessoas.

O livro escrito por Barry Cunliffe, The Druids: A Very Short Introduction busca apresentar ao público e discutir algumas das principais questões envolvendo os múltiplos universos do “druidismo”, a partir de uma perspectiva conciliadora entre Arqueologia, História e Literatura. A obra faz parte de uma coleção da editora da Universidade de Oxford que busca disponibilizar para o público (acadêmico ou não) manuais introdutórios de temas clássicos e atuais escritos por especialistas através de abordagens inovadoras. Os livros que pertencem à série intitulada A Very Short Introduction se caracterizam por um preço acessível, um formato prático e leve (estilo pocket) e, sobretudo, uma linguagem de fácil entendimento. The Druids é o segundo livro publicado pelo autor nesta série, precedido por The Celts (2003). Cunliffe é professor Emérito da Universidade de Oxford onde ocupava a cadeira de titular de Arqueologia Europeia, além de manter vínculos variados com diversas instituições britânicas de pesquisa e de preservação do patrimônio histórico como o British Museum e o English Heritage, dentre outros. De suas obras mais recentes destacam-se: Facing the Ocean (2001), The Extraordinary Voyage of Pytheas the Greek (2001); The Celts: A very short introduction (2003), Europe Between the Oceans (2008) e Celtic from the West: Alternative Perspectives from Archaeology, Genetics, Language and Literature (2010), esta última editada junto com J. T. Koch.

Em The Druids, o autor traça um panorama histórico em relação à figura dos druidas, em um misto de construção e desconstrução. Explora desde os primeiros relatos históricos, que datam do séc. IV a.C. em língua grega, passando pelos textos latinos, os mitos e fragmentos de uma tradição oral antiga cristianizados na literatura vernácula galesa e irlandesa do séc. VIII-XI d.C., até as produções intelectuais mais recentes do séc. XVII e dos românticos dos séculos XVIII e XIX. Aliada a isso, encontra-se uma arqueologia das práticas religiosas a partir da cultura material encontrada na Gália e nas Ilhas Britânicas ao longo de aproximadamente cinco séculos antes da ocupação romana. Desta forma, é apresentada ao leitor uma análise das evidências arqueológicas ressaltando a vida intelectual e os sistemas de crenças dessas populações europeias ao longo da Idade do Ferro – tradicionalmente chamadas de celtas –, a partir de ritos mortuários, sacrifícios, calendários, santuários e estatuetas votivas dentre outros. O que se busca é propor uma reflexão conjunta, aliando os “druidas históricos” descritos nos textos gregos e latinos às evidências materiais de atividades rituais encontradas ao longo da Europa antiga, com textos medievais irlandeses e galeses que representam e evidenciam resquícios de algumas práticas culturais antigas compartilhadas.

Da Proto-História à Antiguidade clássica passando pelo Medievo, Cunliffe apresenta a seguir parte significativa dos movimentos intelectuais de redescoberta do passado a partir do séc. XVII. São destacados os trabalhos de autores tais como John Aubrey, George Buchanan, Aylett Sammes, Paul-Yves Pezron e alguns outros. Assim, o leitor passa a ser gradualmente apresentado ao contexto histórico das principais discussões intelectuais em regiões como a França (e, sobretudo, a Bretanha: região do noroeste francês), a Inglaterra, a Irlanda e a Escócia. O objetivo é mostrar ao leitor a partir de documentos da época (textuais e visuais) como parte considerável do imaginário atual associado aos druidas foi gradualmente construída de uma releitura dos textos clássicos.

A ideia de druidas detentores de mistérios mágicos, construtores de Stonehenge e praticantes de sacrifícios humanos em larga escala como no famoso “Wicker Man” [1], todos esses elementos são explorados por Cunliffe. O autor analisa esses estereótipos a partir de seus locais e contextos de produção, em um jogo de desconstrução de anacronismos que são, de certa forma, duplamente históricos: primeiro, por se proporem a representar sociedades históricas antigas, modelos de representação estes ainda presentes em larga escala no imaginário atual (cf. BIRKHAN, 2009); segundo, porque (por mais anacrônicos que sejam) esses olhares são, eles próprios, dotados de historicidade (cf. LEERSSEN, 1996).

Cunliffe explora a relação entre as artes, a literatura, o Romantismo e os nacionalismos na virada do XVIII, XIX e início do XX, mostrando partes importantes dos usos (políticos) do passado. Chega a apresentar e discutir também o surgimento de novas seitas, grupos neopagãos e ordens neodruídicas, como a United Ancient Order of Female Druids, fundada em 1876 como reflexo das novas dinâmicas de gêneros existentes no interior da sociedade Vitoriana e a Ancient Order of Druids, na qual Winston Churchill foi introduzido em 1908. Boa parte desses grupos existe ainda nos dias atuais, além de muitos outros mais recentes que surgiram nas últimas décadas e se espalharam pelo mundo inteiro – inclusive, no Brasil.

Ao longo desse livro e, sobretudo, em sua conclusão, Cunliffe deixa claro, no entanto, que “os Druidas foram um fenômeno do passado e que esses indivíduos que, desde o século XVII, vêm se denominando de tal forma não são capazes de reivindicar nenhum grau de continuidade com a antiga prática druídica” (CUNLIFFE, 2010: 131). Em outras palavras, as ordens neodruídicas do século XVIII ou dos dias atuais nada têm a ver com os druidas mencionados pelas fontes textuais da Antiguidade ou com os indivíduos que nos deixaram alguns vestígios materiais de atividades rituais realizadas ao longo da Idade do Ferro europeia. Não se tratam, portanto, de perpetuadores de uma tradição ininterrupta ancestral, mas, sim, de releituras sobre esse passado. Talvez este seja um dos maiores méritos da obra: permitir ao público entender, ainda que de forma indireta e não tão explícita, que o termo “druida” é um conceito histórico e plural, cuja acepção varia de acordo com a época. Postura semelhante, aliás, foi defendida pelo mesmo autor a respeito do conceito “celta” (cf. CUNLIFFE, 2003). De certa forma, The Druids: A Very Short Introduction se assemelha ao livro de Detienne (2008): ainda que possua uma estrutura, organização, linguagem, metodologia e propostas completamente distintas ambos permitem entender como partes de um passado antigo se tornam historicamente partes do nosso passado; como identidades são construídas a partir de [re]leituras da Antiguidade e estão enraizadas em nossas percepções e projeções culturais.

Do livro escrito por Cunliffe surge um retrato mais complexo em relação à figura dos antigos druidas e que vai além da representação historiográfica tradicional associada à figura exclusiva de sacerdotes religiosos. Se por um lado a documentação disponível nos dias atuais pode ser considerada lacunar e desafiadora sob vários aspectos, por outro o autor é capaz de relacionar o druidismo antigo com um conjunto maior de transformações sociais, religiosas, políticas e econômicas na região Atlântica da Europa, atestadas desde a metade do segundo milênio antes da era comum (CUNLIFFE, 2010: 134-5). Os druidas aparecem como indivíduos detentores de saberes, que vão desde o domínio da arte do cultivo, dos ciclos naturais e dos calendários lunares, até serem compositores de canções e poemas, intérpretes, adivinhos, professores, filósofos e intermediadores entre os homens e os deuses. Tratava-se muito mais, portanto, de uma elite intelectual que poderia acumular em si diferentes funções que, na Antiguidade, estavam interligadas (CUNLIFFE, 2010: 136).

Outras publicações acadêmicas também direcionadas à discussão da temática dos druidas entre os celtas antigos vêm sendo publicadas ao longo das últimas décadas. Dentre elas se destacam as de Guyonvarc’h e Le Roux (1986), Lonigan (1997), Ellis (2003), Ross (2004), Brunaux (2006), Hutton (2007) e Green (1997; 2010). Tratam-se de diferentes abordagens, com diferentes enfoques. A obra de Cunliffe, por sua vez, se apresenta em meio a esse debate maior como uma contribuição de enriquecimento, redigida de uma forma simples e acessível. Apesar de ser relativamente curta (não mais de 145 páginas), The Druids: A Very Short Introduction representa um livro original na medida em que aborda a figura dos druidas de uma maneira complexa e problematizada, ousando articular diferentes suportes de informação a partir de dados e questões atuais. Particularmente interessante é o modo como o autor é capaz de fazer dialogar evidências históricas que datam da metade do segundo ao primeiro milênios a.C. em uma zona Atlântica de contatos pré-históricos, a fim de mostrar a existência de contatos (religiosos, econômicos, sociais, culturais), trocas e circulações (de pessoas e de ideias) entre diferentes populações – uma característica marcante e recorrente em diversos outros trabalhos do autor.

Discutir o papel histórico dos druidas requer certa sensibilidade e cuidados, não apenas do ponto de vista histórico ou arqueológico, mas também social–contemporâneo. De certa forma, os “druidas” ainda vivem, mesmo sem possuírem quaisquer vínculos com as populações da Idade do Ferro, senão os desejados e sonhados. Parece certo pensar que se toda a tradição e identidade são, de alguma forma, inventadas (HOBSBAWM, RANGER, 2002; MEGAW & MEGAW, 1996: 180), The Druids: A Very Short Introduction, com seu formato modesto, é uma pequena, mas bela contribuição, como Megaw (2005: 66) se referiu ao livro publicado em 2003 pelo mesmo autor, ao entendimento de como os Druidas foram sendo inventados ao longo da História: desde a Antiguidade aos dias atuais.

Nota

1. “O homem de vime” é descrito por César (DBG,VI, 16) como sendo supostamente uma estrutura gigante feita de palha no formato de um homem, onde pessoas seriam aprisionadas e queimadas vivas, como parte de um ritual de sacrifício organizado pelos antigos druidas gauleses. Nenhuma outra referência semelhante é encontrada em nenhum texto antigo. A temática foi amplamente revisitada na modernidade. Na contemporaneidade, o ícone do “Homem de vime” se faz presente em produções cinematográficas de terror com os filmes “The Wicker Man” (1973 e 2006); em um single de 1999-2000 da banda britânica Iron Maiden e em festivais neopagãos.

Referências

Documentação antiga

CAESAR. C. J. The Gallic War. Trad: H. J. Edwards. Cambridge: Harvard University Press/Loeb Classical Library, 2004.

Instrumentais ou específicas

BIRKHAN, H. Por que nos encantamos tanto com os celtas e a ‘elfização’ do mundo?. In: TACLA, A. B.; TÔRRES, M. R. (et alii). Livro de Atas do III Simpósio Nacional e II Internacional de Estudos Celtas e Germânicos. São João Del Rei: UFSJ, 2009, p.15-36.

BRUNAUX, J.L. Les druides: des philosophes chez les Barbares. Seuil: Editions du Seuil, 2006.

CUNLIFFE, B. Europe Between the Oceans: themes and variations: 9000 BC to AD 1000. Yale: Yale University Press, 2008.

____________. Facing the Ocean: The Atlantic and Its Peoples 8000 BC-AD 1500. Oxford: OUP, 2001.

____________. The Celts: A very short introduction. Oxford: OUP, 2003.

____________. The Extraordinary Voyage of Pytheas the Greek. Oxford: OUP, 2001.

CUNLIFFE, B.; KOCH, J. (eds). Celtic from the West: Alternative Perspectives from Archaeology, Genetics, Language and Literature. Oxford: Oxbow Books, 2010.

DETIENNE, M. Os Gregos e Nós: Uma antropologia comparada da Grécia Antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

ELLIS, P. B. A Brief History of the Druids. New York: Carroll & Graf, 2003.

GREEN, M. J. Caesar’s Druids. Yale: Yale University Press, 2010.

_________. Exploring the World of the Druids. London: Thames & Hudson, 1997.

GUYONVARC’H, C.; LE ROUX, F. Les Druides. Rennes: Ouest-France,1986.

HOBSBAWM, E; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

HUTTON, R. The Druids. London: Hambledon Continuum, 2007.

LEERSSEN, Joep. Celticism. In: BROWN, T. Celticism. Amsterdan-Atlanta: Rodopi, 1996, p. 3-20.

LONIGAN, P. R. The Druids: Priests of the Ancient Celts. Westport: Greenwood Press, 1997.

MEGAW, J. V. S. The European Iron Age with – and without – Celts: a bibliographical essay. European Journal of Archaeology, 2005, Vol. 8 (1): 65-78.

MEGAW, J. V. S.; MEGAW, M. R. Ancient Celts and modern ethnicity. Antiquity, 70, 1996: 175-181.

ROSS, A. Druids: Preachers of Immortality. Gloucestershire: Tempus, 2004.

Pedro Vieira da Silva Peixoto – Universidade Federal Fluminense. Mestrando do PPGH-UFF. Bolsista do CNPq. Professor-tutor UNIRIO-CEDERJ. E-mail: ito_pedro@hotmail.com


CUNLIFFE, Barry. The Druids: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010. (vol. 232 de Very Short Introductions series). Resenha de: PEIXOTO, Pedro Vieira da Silva. Os Druidas: um passado presente. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.12, n.2, p. 118-122, 2012. Acessar publicação original [DR]

Continental Saxons from the Migration Period to the Tenth Century: An Ethnographic Perspective | Dennis Green e Frank Siegmund

O volume The Continental Saxons from the Migration Period to the Tenth Century foi editado por Dennis H. Green e Frank Siegmund, dois especialistas em questões ligadas à História dos povos germânicos no período medieval. A área específica de Dennis Green encontra-se nas relações entre Linguagem, Literatura e História no período medieval, especialmente entre os povos germânicos, como exemplificado nas seguintes obras: Medieval Listening and Reading: The Primary Reception of German Literature 800-1300 – Cambridge, 1994; Language and History in the Early Germanic World – Cambridge, 2000; The Beginnings of Medieval Romance: Fact and Fiction, 1150-1220 – Cambridge, 2002 e Woman and Marriage in German Medieval Romance – Cambridge, 2009 entre outras. Por sua vez, Frank Siegmund é um arqueólogo especializado nos povos germânicos durante o período Merovíngio, podendo-se conhecer mais de sua prolífica produção nos seguintes websites: http://www.frank-siegmund.de e http://independent.academia.edu/ Frank Siegmund (acessado em 10/07/2012).

Este volume sobre os Saxões Continentais continua a série anual de discussões no Center for Interdisciplinary Research on Social Stress em San Marino, realizadas por iniciativa de seu diretor, Dr. Giorgio Ausenda. Elas têm como objeto de estudo o impacto dos “bárbaros” germânicos no Império Romano e nos reinos sucessores. Desde o início, a metodologia adotada para estas discussões foi a interdisciplinaridade: História, Arqueologia, Filologia e Etnografia. O primeiro encontro (cujas discussões foram publicadas sob o título After Empire: Towards an Ethnology of Europe’s Barbarians, editado por Giorgio Ausenda) foi devotado a vários aspectos gerais do problema, enquanto que os encontros subsequentes foram concentrados em tópicos específicos. Assim, os volumes posteriores foram: The Anglo-Saxons from the Migration Period to the Eighth Century: An Ethnographic Perspective (editado por John Hines), Franks and Alamanni in the Merovingian Period: An Ethnographic Perspective (editado por Ian Wood), The Visigoths from the Migration Period to the Seventh Century: An Ethnographic Perspective (editado por Peter Heather), The Scandinavians from the Vendel Period to the Tenth Century: An Ethnographic Perspective (editado por Judith Jesch). Após a publicação do volume dedicado aos Saxônios, foram publicados The Ostrogoths from the Migration Period to the Sixth Century: An Ethnographic Perspective (editado por Sam Barnish e Federico Marazzi) e The Langobards from the Migration Period to the Eighth Century: An Ethnographic Perspective (editado por Paolo Delogu e Chris Wickham), sendo que ainda aguardam a realização (e posterior publicação) as discussões voltadas aos Vândalos e Suábios (volume conjunto), aos Burgúndios e aos Bávaros.

Uma das vantagens destes encontros, além do estímulo causado pela reunião de estudiosos de diferentes disciplinas e países, sempre foi o reduzido número de participantes que, em conjunto com o considerável período de tempo dedicado à discussão de textos pré-distribuídos, permite uma amigável e animada troca de opiniões, mas, inevitavelmente, isso significa que nada semelhante a uma avaliação completa de cada tópico pode ser obtida.

Isto está refletido neste volume, onde somente algumas das questões relativas aos Saxônios, sua etnogênese, seus encontros com vizinhos diversos como os Frísios, os Daneses, os Eslavos e os Francos (além de suas conexões com os Anglo-Saxões), assim como seu encontro com os Carolíngios e sua ascensão posterior com os Otônidas, puderam encontrar espaço nesta discussão.

Este tomo inicia-se com “Location in Space and Time” (p. 11-36), uma análise crítica de Matthias Springer acerca da localização dos Saxônios tanto no tempo quanto no espaço. O texto está apropriadamente no início do volume porque o autor não apenas polemiza contra as opiniões tradicionais sobre as origens dos Saxônios, mas também, como parte deste questionamento, submete a uma análise crítica o emprego do termo Saxones na Antiguidade Clássica e o que se reporta como sua localização geográfica no mesmo período. A partir disso somos levados sistematicamente pelo que foi relatado na Antiguidade Tardia, nas fontes merovíngias, nas carolíngias e nas do século X.

Ptolomeu (s. II d.C.) é a primeira fonte cuja confiabilidade histórica, geográfica e etnográfica foi questionada. Springer dúvida da validade do senso comum acerca da expansão meridional dos Saxônios (a partir de onde Ptolomeu os localizou), seja através da subjugação de outros povos, seja pela formação de uma confederação. Ele ainda argumenta que a expansão da designação de um grupo étnico nem sempre significa que os portadores originais do mesmo tenham migrado, nem que a denominação étnica sempre se expanda de dentro para fora (cita como exemplo os imigrantes germânicos que se estabeleceram na Transilvânia húngara em fins do período medieval, mas chamados pelo monarca magiar de “Saxônios”). Para complicar a situação, o mesmo nome pode ser utilizado em relação a povos muito diferentes (como no caso dos Serby em Eslavônico, mas Serben e Sorben em Alemão, que designam, respectivamente, aos Sérvios e aos Sorbos, uma população eslava nativa da região da Lusatia). Em muitos casos fica claro que os autores posteriores aplicaram denominações conhecidas, como a de Francos e Saxônios, a grupos populacionais que lhes eram desconhecidos.

A partir destes casos complicados Springer prosseguiu analisando referências que, embora indisputadas em relação à sua aplicação aos Saxônios, são problemáticas em relação ao período em questão. Ademais, como os termos “Vikings” e “Normandos”, a palavra Saxones pode ter sido utilizada inicialmente para descrever saqueadores vindos do mar ao invés de um grupo étnico, quanto mais um grupamento geográfico específico. O resultado é tal que na Antiguidade Tardia os Saxônios podem ser localizados no tempo, mas não em seu espaço original. Uma anomalia final é apresentada pelo termo Anglisaxones. Pelo contraste com estes, os Saxões Continentais são os “verdadeiros” Saxões, dos quais os invasores da Britânia tinham que ser distinguidos pelo prefixo Angli-, ao passo que para Beda, os “verdadeiros” Saxões eram aqueles da Inglaterra, e as contrapartes continentais é que precisavam ser referidas por um atributo: Antiqui Saxones. Aliás, deve-se notar que as dificuldades para denominar esta população estendem-se à Língua Portuguesa, já que, seguindo o uso dado por Beda, denominam-se como Saxões (aliado ao prefixo “Anglo”) aos habitantes germânicos das ilhas britânicas e aos do norte da “Alemanha”, como Saxônios. Por outro lado, dentro do mesmo padrão estabelecido por Beda, também é perfeitamente aceitável denominá-los como Saxões Continentais.

Em “The North Sea Coastal Area: Settlement History from Roman to Early Medieval Times” (p. 37-76), Dirk Meier dedica sua atenção ao litoral do Mar do Norte e a história de seus assentamentos dos tempos romanos à Alta Idade Média. Ele dividiu seu ensaio em quatro seções, analisando primeiro a paisagem, depois a área costeira entre os períodos Romano e das Migrações, a seguir o mesmo para o período medieval inicial e, finalmente, um “epílogo” sobre a herança cultural das zonas costeiras e pantanosas.

O autor inevitavelmente confronta nesta região problemas relativos à história dos assentamentos tanto dos Saxônios quanto dos Frísios, cuja diferenciação arqueológica nem sempre é fácil. A área costeira estava próxima o suficiente da fronteira renana do Império para interessar aos Romanos, que mantiveram boas relações comerciais com seus habitantes, como atestado pelos muitos achados Romanos provenientes da região. A localidade de Feddersen Wierde (talvez o melhor exemplo de um assentamento do período romano) foi discutida neste contexto. Meier também volta sua atenção para a área do rio Eider e seu estuário: aqui o recuo do mar tornou possível a construção de assentamentos no nível do mar nas margens do rio durante os dois primeiros séculos d.C., fato que incrementou a importância da área em termos comerciais e logísticos.

Este sistema econômico (e político) entrou em colapso com a queda do Império Romano; com isso, muito pouco sabe-se a respeito do padrão de ocupação da região durante a instabilidade do período das Migrações. Contudo, o dramático declínio populacional ocorrido entre os séculos IV e VI pode estar relacionado a uma piora do clima. Afinidades arqueológicas entre as regiões costeiras do norte da Alemanha, sul da Dinamarca e Inglaterra definem as duas primeiras como áreas de origem e a última como área de destino das migrações dos Anglos, Saxões e Jutos.

Em sua seção relativa à Alta Idade Média, Meier considera os Frísios e seu relacionamento com os Saxônios, mas também a migração destes para a região costeira entre o Eider e o sul da Dinamarca (norte da Frísia). É sobretudo neste período que o Mar do Norte (compreendendo o continente, a Inglaterra e a Escandinávia) se tornou uma importante via de tráfego e comércio. Aqui o importante centro comercial de Dorestad e o assentamento viking de Ribe alcançaram mais do que importância simbólica.

Com o ensaio “Social Relations among the Old Saxons” (p. 77-112) Frank Siegmund trata o objeto das relações sociais entre os Saxônios, levando em consideração os seguintes tópicos: a questão étnica, o decréscimo nos assentamentos nos séculos V e VI, a disposição dos cemitérios, a demografia, os gêneros e a elite.

Siegmund inicia destacando que as diferentes tradições de pesquisa significam que as fontes arqueológicas disponíveis acerca dos Saxões continentais diferem daquelas que concernem aos Alamanos e aos Francos. Sobre a etnicidade ele aponta que as atuais ideias arqueológicas a respeito da história inicial dos Saxônios procedem de uma tentativa de reconciliar as fontes clássicas (Tácito e Ptolomeu) com a Arqueologia, mas os registros arqueológicos devem ser verificados de maneira mais independente possível de fontes escritas supostamente confiáveis.

Ele pergunta se algumas das características consideradas como tipicamente saxãs talvez não estejam baseadas em tradições mais antigas, oriundas de um fundo germânico comum, sobrevivendo entre os Francos a leste do Reno, mesmo se não entre os do oeste. Uma complicação extra encontra-se no fato de que, em contraste com outros grupos mais unidos, talvez seja mais correto falarmos de “povos Saxões”, no plural, já que contavam entre seus componentes populações diversas como os Angrarii, os Nordalbingii, os Westfálios e os Ostfálios.

Como outros contribuintes neste volume, o autor também procura por possíveis indicadores da emigração dos Saxões para a Inglaterra, mas compartilha das dúvidas surgidas pelo exame recente da região dos Anglos na Jutlândia, onde o declínio populacional foi menos severo e pode ser analisado de modo cronologicamente diferente, sem o recurso à teoria da migração. Resultados similares, agora disponíveis para a área saxônia, fortalecem estas dúvidas. Ademais, o mesmo fenômeno pode ter ocorrido em outros lugares (como com os Alamanos ou os Francos), sem a necessidade da utilização de complexas hipóteses migratórias para explicá-los.

Também deve ser notada como bem-vinda a atenção dispensada às mulheres, para as quais o risco de morte na pré-história sempre foi maior que para os homens. A civilização Romana trouxe algumas melhoras para a condição das mulheres nas províncias ocidentais, como testemunhado pelos achados nos cemitérios escavados que apresentaram tanto considerável diminuição no número de restos mortais pertencentes a mulheres em idade parturiente quanto na elevação da sua expectativa de vida. Dados como estes evidenciam o que Siegmund apresenta como um risco de morte mais balanceado entre ambos os sexos.

Em “Jural relations among the Saxons before and after Christianization” (p. 113-132) Giorgio Ausenda inicia sua contribuição sobre as relações jurídicas entre os Saxônios antes e depois de sua conversão ao Cristianismo, argumentando que antes deste ponto de inflexão os saxões continentais constituíam uma “sociedade simples” ágrafa e regulada por costumes. Após a conversão eles fizeram a transição para uma sociedade complexa, fazendo uso de leis escritas. Portanto, neste texto Ausenda procura detectar sobrevivências de leis costumárias anteriores nas primeiras leis escritas concernentes aos Saxônios. Como a discussão posterior demonstra amplamente, isto provocou um debate animado e prolongado acerca do que constituiria uma “sociedade simples”, sobre o relacionamento de tal sociedade com a oralidade e a escrita (rúnica ou outra) e, de fato, sobre os diferentes significados que devemos agregar ao termo “alfabetização” quando aplicado às runas e à escrita romana.

O artigo começa observando as leis escritas de duas outras sociedades relacionadas aos Saxões Continentais em período anterior ou a seus vizinhos. Os Anglo-saxões são discutidos em relação às leis de Æthelbert de Kent e os Longobardos (só denominados como Lombardos após o fim de seu reino independente) em relação ao Édito de Rothari. As respectivas compensações por ferimentos (wergeld) estabelecidas por estes dois códigos são comparadas de forma tabular. Iluminados por estes dois paralelos, foram discutidos os três conjuntos de “leis saxônicas”, ou melhor, de leis aplicáveis aos Saxões Continentais mas emitidas pelos Francos. O primeiro conjunto (e também mais severo) é o Capitula de partibus Saxoniae (com suas medidas de cumprimento de ordem pública e conversão compulsória), o segundo – e menor – é o Capitulare Saxonicum (rascunhado durante um concílio ocorrido em Aachen, com a participação dos Saxônios) e, por último, a Lex Saxonum (possivelmente elaborada com um olho na legislação costumária dos saxônios).

No ensaio “Rural Economy of the Continental Saxons from the Migration Period to the Tenth Century” (p. 133-158), Walter Dörfler baseou-se nas escavações realizadas em assentamentos rurais para recuperar informações acerca de suas estruturas, diferenciações sociais e econômicas, a função do comércio e a extensão da auto-suficiência econômica. Embora algumas destas informações possam ser inferidas dos artefatos encontrados (tais como foices, pás e arados), as principais fontes são as análises pedológicas, botânicas e zoológicas. Sua argumentação enquadra-se em diversos aspectos: primeiramente, a arqueozoologia e a pedologia; e então, a arqueobotânica; atividades agrícolas na Era do Ferro romana e na Idade Média inicial; finalmente, um sumário e conclusões.

A partir deste levantamento surgem numerosas questões, concernentes não apenas aos Saxões Continentais, mas também aos Anglo-saxões. Dörfler estabelece a partir de suas evidências que houve um claro rompimento nos assentamentos na Saxônia entre os séculos VI e VIII (contudo, o autor aponta que o abandono dos campos na região já havia iniciado por volta do século III), com um considerável declínio nos indicadores de assentamentos entre 450 e 600, coincidindo com o período das Migrações. A maior parte dos assentamentos desapareceu na segunda metade do século V. Contudo, o número de saxões que podem ter ficado para trás é incerto (todavia, certamente o suficiente para justificar a fortificação de Danevirke no início do século VIII). Para alcançar suas conclusões, Dörfler utilizou-se de “micro-resquícios” botânicos para reconstruir a paisagem natural deste período e as mudanças conectadas às atividades de assentamento.

No ensaio “The Beginnings of Urban Economies among the Saxons” (p. 159-192), Heiko Steuer argumenta que antes da incorporação do território dos Saxônios ao império Carolíngio, a nobreza saxônia monopolizava o comércio e a produção artesanal, além de supervisionar a distribuição dos bens. O território saxônio encontrava-se cercado por economias mais desenvolvidas, voltadas para formas pré-urbanas de organização, nas quais existiam formas monetárias de circulação da riqueza e possuíam o comércio regulado por mercadores. A Saxônia manteve-se na periferia até a segunda metade do século VIII, quando foi influenciada pelo império Carolíngio e sua estrutura econômica; Steuer primeiro analisa os Saxônios e os Carolíngios, estendendo sua discussão até o império Otônida, que viu os Saxônios em uma nova posição: o centro político de um Império Romano revigorado.

Daí segue uma seção sobre a rede de centros pré-urbanos e a circulação de bens, outra sobre a reforma Carolíngia da cunhagem e outra sobre novos mercados. O ensaio é concluído com um levantamento de fortalezas, mosteiros e sés diocesanas ou episcopais como centros pré-urbanos em território saxônio.

Desde o início fica claro que havia uma considerável diferença entre a Saxônia e os domínios dos Francos antes da integração da primeira na grande esfera econômica e política dos segundos. O trabalho missionário junto aos saxônios foi preparado não apenas para o proselitismo, mas também como um veículo para a incorporação dos conversos em novas atividades políticas e econômicas, resumidas no estabelecimento de laços comerciais, grandes concentrações populacionais e novos distritos legais, juntamente com fortificações exercendo funções centralizadoras. A reforma da cunhagem é vista como uma mudança especialmente importante e iluminada, de numerário baseado em ouro (entesourado e difícil de ser obtido) para um padrão baseado em prata (muito mais acessível), que tornou possível a transição de uma economia de escambos locais para atividades comerciais de longa distância. Este processo também compreendeu centros de comércio marítimo, sobretudo nos dois extremos da região friso-saxônia: os portos de Dorestad (no oeste) e Haithabu na Jutlândia.

No ensaio “Saxon Art between Interpretation and Imitation: the Influence of Roman, Scandinavian, Frankish, and Christian Art on the Material Culture of the Continental Saxons AD 400-1000” (p. 193-246), Karen Høilund Nielsen baseou-se em diferentes tipos de arte e artesanato para traçar as influências romanas, escandinavas, francas e cristãs na cultura material dos Saxões continentais entre os anos 400 e 1000. Ela apresenta esta sequência em quatro estágios: primeiro, uma tentativa saxã de criar uma identidade particular a partir da tradição romana. Em segundo, a influência escandinava no norte da área saxônia, que nunca levou à produção local. Em terceiro, a influência franca no sul que, provavelmente, também nunca ocasionou produção local. Finalmente, as influências carolíngias/cristãs que submergiram o que havia sido a cultura material tradicional saxônia.

Em concordância com esta visão essencialmente negativa de qualquer independência cultural dos saxônios, sua argumentação inicia com a forte influência da tradição romana tardia na região do Elba-Weser. A despeito desta dependência em modelos romanos, ela enfatiza que a qualidade do material saxônio é geralmente superior. Uma seção mais ampla discute as influências impostas de direções diferentes: Escandinávia e Frância, com a escandinava bem atestada nas bracteates (moedas mais leves, cunhadas em apenas um lado, que demandavam menores quantidades de metal, em média 0,9g). Já a influência franca pode ser detectada em peças que apresentam estilos semelhantes aos encontrados na Austrásia (mas também na Nêustria e mesmo na Alemânia). A estas influências foi acrescentada a tradição cristã, representada pelo assim chamado estilo Tassilo (que não era distintamente Saxônio, mas muito disseminado), pelo relicário de Enger (que dificilmente foi produzido na Saxônia) e broches com santos ou animais sagrados. Esta última seção resume a rendição final dos Saxônios à religião e política do império Carolíngio.

Dennis H. Green, em seu texto “Three Aspects of the Old Saxon Biblical Epic, The Heliand” (p. 247-270) lida, evidentemente, com o anônimo épico literário bíblico Heliand, uma vida de Cristo composta no século IX em versos aliterativos tradicionais germânicos. Green realiza uma comparação e ao mesmo tempo uma contrastação entre esta obra e o que Beda reporta acerca da composição do Hino de Cædmon em Inglês Antigo. Ambas as obras empregam a técnica de acomodação linguística na busca de equivalentes vernaculares para os conceitos bíblicos (por exemplo, descrevendo Cristo como o líder de poucos escolhidos em termos que sugerem que eles eram membros de um bando guerreiro germânico). O que parece ser uma concessão cristã ao passado germânico é, contudo, muito diferente de uma Germanização do Cristianismo, mas, em efeito, uma Cristianização dos Germânicos, sendo que aqui o autor adota uma postura francamente hostil a James C. Russell (The Germanization of Early Medieval Christianity, Oxford: OUP, 1994) e G. Ronald Murphy (The Saxon Savior, Oxford: OUP, 1989 e The Heliand – The Saxon Gospel, Oxford: OUP, 1992).

Isto fica claro nos três aspectos sob os quais o Heliand foi discutido. O primeiro trabalha com o relacionamento entre as literaturas em Inglês e Saxão Antigos, com foco na forma em que as obras foram entregues às suas audiências e por estas recebidas (por recital público aos ouvintes ou como texto para a leitura individual – grande preocupação de outra obra do autor, Medieval Listening and Reading – The primary reception of German literature 800-1300, Cambridge: CUP, 1994). O Hino de Cædmon é visto em termos da primeira possibilidade, enquanto que o Heliand combina ambas. O segundo aspecto abre com a questão da relação entre a visão pagã do destino e o conceito cristão de Providência (o autor do Heliand subordina termos da esfera mais antiga para expressar visões posteriores). Finalmente, o Heliand proporciona evidências mostrando como a Cristandade reagiu aos valores heroicos e marciais do mundo germânico. Aqui também a mensagem cristã impôs-se à tradição germânica.

Em “Beyond Satraps and Ostriches: Political and Social Structures of the Saxons in the Early Carolingian Period” (p. 271-298), Ian Wood expressa insatisfação com a maneira com que as evidências relativas aos Saxônios muitas vezes são tratadas com desrespeito em relação à cronologia. Para remediar esta situação ele considera as evidências escritas acerca das estruturas políticas e sociais dos Saxônios em sequência histórica, esperando assim iluminar atitudes cambiantes nestas fontes ou sua prontidão em emprestar ou adaptar material mais antigo.

Partindo de Beda como a fonte substancial mais antiga em sua descrição dos Antiqui Saxones, Wood ilumina o uso que o Venerável fez da palavra satrapae, observando suas ocorrências bíblicas, mas também em dois comentários bíblicos do próprio monge anglo-saxão, assim como em outras fontes latinas. A descrição de Beda destaca-se por sua relevância em relação à missão dos anglo-saxões no continente, apresentando um mundo ainda por ser convertido. Bonifácio também estava ciente das muitas entidades populacionais cobertas pelo termo “Saxônia”. Todavia, a despeito da óbvia importância de sua missão entre os Saxônios, nenhuma obra hagiográfica importante os descreve ou ao seu território com detalhes.

O próximo grupo de fontes consideradas provém do período carolíngio, como seus anais e sua legislação, portadores da reveladora distinção entre três povos na Saxônia: Westfálios, Angrarii e Ostfálios. Os próximos textos considerados são as Historiae de Nithard e a Vita Lebuini antiqua (com suas referências à assembleia dos Saxônios em Marklo). De grande interesse, se bem que não confiável, é a obra de Rodolfo de Fulda, com sua surpreendente afirmação de que ao invés dos Saxões terem migrado para a Britânia, na verdade eles é que de lá migraram para a Germânia, proporcionando assim aos Saxônios uma etnogênese similar à de outras tribos, ao menos no topos relacionado ao deslocamento marítimo, derivado da Eneida.

Widukind de Corvey (um descendente do guerreiro saxônio Widukind do século VIII) dedicou sua obra a Matilda, filha de Otto I, identificando-a como uma descendente do mesmo ancestral. Sua Res gestae Saxonicae também providencia aos Saxônios uma respeitável etnogênese de acordo com seu status imperial de fins do século X. Este historiador, por duvidoso que seja, nos provê com a mais completa descrição das origens dos Saxônios.

Questões religiosas, incluindo seu possível reflexo na literatura em Saxão Antigo, são discutidas no ensaio de John Hines, “The Conversion of the Old Saxons” (p. 299-328). Ele também inicia com Beda, uma testemunha considerada como confiavelmente informada acerca da organização social dos Saxões Continentais e sobre o que ele diz a respeito de seus satrapae no lugar de um monarca. Se isto implica em alguma medida de fraqueza política (e assim pode ter sido), tivesse a estrutura social saxônia sido mais centralizada, os resultados de suas lutas contra Carlos Magno e contra a conversão ao Cristianismo poderiam ter sido bem diferentes.

Nosso conhecimento do paganismo Saxônio foi contaminado pela presença dos Francos, já que as fontes disponíveis a este respeito revelam um duplo ponto de partida: elas são tanto Cristãs quanto Francas. Já que é o reino Franco que detalha o que descrevia o que estava confrontando, estas fontes precisam ser tratadas com grande cuidado.

Um aspecto desta questão que dominou a discussão subsequente a este ensaio, foi a forma com que a historiografia franca apresentou a conversão dos saxônios em termos altamente individualizados, como um conflito entre Carlos Magno, o governante do imperium christianum, e Widukind, o líder pagão local. Esta visão estreita foi muito ampliada por Hines, referindo-se ao apoio que Widukind recebeu do rei danês; assim, o saxônio pode ser visto como um lutador pertencente a um sistema político e religioso (não Cristão e mesmo “norte-germânico”) ao invés de outro, o império Carolíngio.

Em seu tratamento da literatura em Saxão Antigo, Hines ressalta que como os scriptoria onde estas obras foram compostas (Corvey, Fulda e Verden), estão localizados no oeste e no sul da Saxônia (portanto afastados das áreas que permaneceram pagãs por mais tempo), então estes textos acabam assumindo aspectos marginais e intrusivos em relação à questão. Também enfatizou o fato de que esta literatura não pode, de maneira alguma, ser interpretada como uma “Germanização do Cristianismo”, em consonância com as ideias expressas anteriormente por Dennis Green.

Como foi dito no início desta resenha, muitas questões permaneceram não discutidas, tanto pelo tempo limitado do colóquio quanto pelo número restrito de especialidades representadas em San Marino. Isto fica patente nas discussões subsequentes a cada ensaio, mas de forma muito mais contundente em boa parte do último dia do evento, reservado para um olhar mais prolongado aos temas abordados e as probabilidades de trabalhos futuros. Isto foi resumido no fim do volume sob o título “Current Issues and Suggested Future Directions in the Study of the Continental Saxons” (p. 329-352) de F. Siegmund e G. Ausenda.

Toda a série Studies in Historical Achaeoethnology possui um valor extraordinário para os medievalistas em geral, mas ainda maior para os pesquisadores voltados para o estudo das populações germânicas que moldaram a Europa após o Império Romano. Nas últimas décadas houve um crescimento considerável no número e na qualidade das obras dedicadas à análise da etnogênese dos povos germânicos, como as séries Transformations of the Roman World (atualmente com treze volumes) e sua continuação Early Middle Ages (contando com sete volumes) editadas pela neerlandesa Brill, a série Studies in the Early Middle Ages (atualmente com trinta e sete volumes) pela belga Brepols, além de outros.

Porém, nenhum outro volume foi dedicado exclusivamente aos saxônios, embora as perspectivas reveladas neste volume, particularmente em relação à publicação de futuros trabalhos, especialmente relativos às escavações arqueológicas realizadas na Saxônia, prometam novos desdobramentos e publicações futuras. Assim, o valor de The Continental Saxons from the Migration Period to the Tenth Century como um compêndio acerca dos saxônios, mantém-se intacto.

Vinicius Cesar Dreger de Araujo – Centro Educacional Anhanguera – Pós-graduação (Santo André e Osasco). E-mail: viniciusdreger@hotmail.com


GREEN, Dennis H.; SIEGMUND, Frank (Ed.). Continental Saxons from the Migration Period to the Tenth Century: An Ethnographic Perspective. Woodbridge: Boydell, 2003. (Studies in Historical Archaeoethnology 6). Resenha de: ARAUJO, Vinicius Cesar Dreger de. Contribuições para a elucidação da etnogênese saxônia. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.12, n.1, p. 152-160, 2012. Acessar publicação original [DR]

Churches in Early Medieval Ireland: Architecture, Ritual and Memory | Tomás Ó Carragáin

This book emanates from a doctoral thesis completed in 2002 by Tomás Ó Carragáin. He is currently a lecturer at the Department of Archaeology, University College Cork, Ireland. It is a very elegant edition, printed on large pages, it literally looks like a History of Art book due to the many beautiful photographs it contains of the early Irish churches and their surrounding landscapes. It would be a suitable adornment for any coffee table. The contents can equally interest archaeologists, historians, historians of art, and even well informed tour guides in Ireland who want to gather information about particular sites. Its Appendix provides a descriptive list of Irish PreRomanesque Churches and its bibliography is very useful for both historians and archaeologists of early Christian Ireland. The fact that the notes have been published as endnotes rather than footnotes, while enhancing the visual attractiveness of the text, renders them rather unhelpful to the reader; particularly because the full reference of the works are not given in the notes. Consequently, every time the reader wants to check a reference it is necessary to look up the notes at the end and the bibliography, turning a huge volume of large heavy pages in the process.

Ó Carragáin’s study is about the pre-Romanesque churches built in Ireland from the arrival of Christianity in the island in the fifth century to the early stages of the Romanesque style around 1100 [1]. Therefore, far from being simply an exhaustive descriptive work of churches and monasteries and their respective architectures, or of excavation reports, it provides some interesting and updated analysis of the usage of those religious sites, analysing its social and political associations. The chosen structure for the book is both chronological and thematic. Consequently, I found it easy to follow the arguments. In the process, the author has crafted a fruitful balance between the material culture and the textual historical evidence.

In the first part of his Introduction he locates his work within a historiographical framework in which he discusses previous writings and interpretations of these churches’ architectures. An interesting aspect of this work derives from how he positioned himself in the middle-ground when discussing whether Ireland was an odd place in the Middle Ages or whether it was completely in line with other European countries and its movements [2], in terms of its art and architecture style, aspects of Christianity and it’s politics. He concluded that Ireland is not completely different from the rest of Western Europe but as differences are realities ‘they are often more revealing than similarities’ (p. 8). I do not agree entirely with that sentence, as such a determination depends on the focus and aims of a given piece of research. In many cases the study of similarities could provide lots of interesting insights. Even though, in this particular book we are offered an equilibrated use of comparative observations between Ireland, England and the Continent identifying both disparities and similarities.

In his discussion on early Irish Church organization, he has tended to agree with recent studies which argue that the Church did not suffer cycles of corruption and reform but experienced continuity throughout the period. This perspective departs from an older orthodoxy that the Irish Church in Patrick’s time was based on an episcopal model which was superseded by a monastic model. He agrees that the highest rank of churches were multi-functional and that the Irish church settlements, especially the bigger ones, such as Clonmacnoise, Glendalough, Kildare, and Armagh, were in fact episcopal-monastic centres rather than purely monasteries [3], thus both bishops and abbots were important figures in these contexts (p. 9).

In chapter one, “Opus Scoticum: Churches of Timber, Turf and Wattle”, (p. 15‒47), he analyses the architectural structure of the churches made with these materials. Most of the churches built before c. 900 were probably not made of stone, and certainly after this period these materials were used as well as stone to build churches. Ó Carragáin has acknowledged that little is known archaeologically about them. His argument in that informs the entire book. It is that some of these churches were modelled according to a Romano-British style; while others were designed to allude to the tomb of Christ in Jerusalem. So, they were read by the Irish literati [4] as representations of the Jerusalem temple and were associated with their founding saints. Subsequently, its quadrangular form was monumentalized by the Irish who in later periods keep this style relinquishing any search for other complex types of buildings.

The very short chapter two, “Drystone Churches and Regional Identity in Corcu Duibne”, (p. 48‒55), as the title suggests, is about the drystone type of churches which are only found in the south-west area of Ireland, (facing the Atlantic), area of Co. Kerry, as shows on maps 1 and 4. They date from the eight century onwards and are not found elsewhere. It used to be believed that they were a step in an evolutionary typology of the double-vaulted roof, a theory disregarded by Ó Carragáin. He suggests that 86% of such churches are distributed on the Iveragh peninsula and western end of the Dingle peninsula, regions which formed the early medieval kingdom or Corcu Duibne. The other 14% is spread around the Corcu Duibne’s domains. He concludes that those churches positioned within the Corcu Duibne area should not be understood as a material strategy of differentiation representing their association with St. Brendan the Navigator’s cult, because the Corcu Duibne geographical area was dedicated to a number of other saints. Nevertheless, the other sparsely located churches may be evidence of St. Brendan’s cult expanding beyond the immediate Corcu Duibne area. Though his interpretation is based on some previous works but the claim is underdeveloped, while this may be because there are not enough archaeological or textual sources to support the claim, thus it remains rather speculative rather than warranted by available evidence.

Chapter Three, “Relics and Romanitas: Mortared Stone Churches to c. 900”, (p. 57‒85), is about the important sites where mortared stone churches were built during the eighth and ninth centuries while most of the other churches were still being built with other materials. They constitute symbolic architecture and therefore, symbolic places. For the sacrality of those sites he returns to some discussions developed by some scholars, especially by Charles Doherty and Nicholas Aitchison whose work avails of concepts from comparative religion. His argument is that the first large stone church built in the eight century in Armagh, was associated with the ideal of Romanitas [5], as an imitatio Romae. While the other early stone churches built at other important religious centres, Iona and Clonmacnoise, were inspired by biblical cities of refuge, such as, Jerusalem, and in particular with the Jerusalem temple, and with the Holy Sepulchre Complex, carrying the ideal of imitatio Hierusalem. In these sites a novelty was also built, little shrine-chapels, where the remains of the dead founder saints were deposited. They were usually built on top of the original tombs of the saints, but some saint’s remains may had been transferred to shrine-chapels. From a political perspective, it appears that the construction of these stone churches had been supported by local kings thus contributing to the rivalries among these churches and their prominence in Ireland. The positioning of these sites on the landscape and their architecture carried cosmological value, as centres of the world, or microcosms.

In the following chapter, “Pre-romanesque churches of mortared stone, circa 900‒1130: form, chronology, patronage”, (p. 87‒142), Ó Carragáin has described their form, their distribution in the country and the involvement of kings in commissioning the earlier ones. In Chapter 5 “Architecture and Memory”, (p. 143‒166), he discusses the concept of social memory and analysed it in the Irish context in order to comprehend the conservative form of these churches. Tension between continuity and change within a building tradition is analysed and associated with the disconnection between immutable form and mutating social context, revealing conscious manipulation of the past in order to suit the needs of the present. In the construction of this argument he accessed a study of a Chinese village in the second half of the twentieth century, as a mode of comparison. Within this logic he observes a preoccupation with the past as expressed through the medium of medieval art. He highlights that from c. 900 onwards Ireland was suffering political, economic, social and military changes which stimulated among the Irish literati a desire to preserve the past, and this was reflected in the conservatism of the churches and the style in which they were built by the early saints. He affirms that “like the historical writing of the tenth to twelfth centuries, the stone churches were intended to make the past continuous with the present”, (p. 149).

“Architecture and Ritual” is the theme of the chapter 6, (p. 167‒214) and here the author searches the material for evidence of the nexus between the architecture of these sites and the ritual enacted on them. As part of this process, he attempts to observe how Mass, consecration ceremonies, baptism, and processions were celebrated. In Chapter 7, “Sacred cities and pastoral centre after 900”, (p. 215‒234), he continues to explore the usage and function of these churches. He opens the chapter by returning to the discussion as to whether or not the big church groups such as Armagh and Clonmacnoise were simply monasteries or cities. In Latin hagiography, the Irish scholars have referred to these sites as civitates, locus and monasterium, (p. 216). Based on Doherty’s and Bradley’s arguments, Ó Carragáin seems to agree that these ecclesiastical sites experienced substantial nucleation. Here the author returns to Cólman Etchingham’s argument that these sites varied in function and affirms that the archaeological evidence supports it. The early Irish churches, although all built in the same quadrangular format, served different purposes. According to him, the term “monastery” is not the most useful one to describe these sites, and posits that “episcopal-monastic centres” or simply civitas may more accurately reflect their multiplicity of functions (p. 216‒217). Although he explains the particularity of what the term civitas meant for the Irish, I consider that since this term is often associated with the Roman concept and structure of civitas and the episcopal centres later developed in them, the term “episcopal-monastic centres” seems most appropriated for the Irish context.

The study of pastoral care in Ireland is a field which continues to require further study and this work is an exciting contribution to the subject. A very interesting argument developed in this seventh chapter is that church sizes cannot be directly associated with the number of people frequenting them, as many factors may have influenced the size of the churches built in the early middle ages. Therefore, little churches may have had a considerable amount of people sharing the space, while bigger churches may have not been filled with people. This means that it is hard to know with certainty the number of dependents of a given church.[6] Therefore, he argues, the amount of small churches built in Ireland may indicate that a larger number of lay people had access to pastoral care than had been thought previously. Because it was believed that only monasteries provided pastoral care, it used to be supposed that the majority of society did not have access to it. However, he argues differently that “because the power structures in Ireland were relatively diffused, a higher proportion of the lay population were entitled to found their own churches”, (p. 226). Consequently, he agrees with recent historians such as Richard Sharpe that, because of this, Ireland may have experienced in the early Middle Ages one of the best structures of pastoral provision in Northern Europe (Blair, J.; Sharpe, R. 1992: 109).

In chapter 8, “Architecture and Politics: Dublin and Glendalough around 1100” (p. 235‒253) he analyses the building of churches in these two sites with Romanesque influences. In this and the following chapter, “Relics and Recluses: Double-vaulted Churches around 1100” (p. 255‒291), he develops a model for the relationship between three phenomenon: architecture, politics and reform. These new style of churches were used to fulfil certain functions, but they were still associated with previous church models discussed throughout the book and also with the past, but with a particular view of this past, as emphasized in his epilogue “social memory is as much about forgetting as it is about remembering”, (p. 302). This interpretation of the Irish church architecture as modelled according to a social memory construct based on a reading of the past situates this work within the field of History of Memory, and therefore, very much in tune with a new trend within Cultural History which has been increasingly explored since the 1970s [7].

In general, Churches in Early Medieval Ireland is an impressive work with considerable potential to contribute to understanding the history of the churches built in Ireland during the Middle Ages, to the motivations behind their erection and to their social function. Many important satellite discussions and arguments around these issues were considered en route by the author and these intellectual detours have provided evidence that enabled him to support or disregard some of his central theses. Whether one agrees or disagrees with Ó Carragáin postulations, this book is definitely indispensable reading material for the researcher of early Christian Ireland engaged in the different fields, archaeology, history, history of art [8].

Notas

1. The author has explained that the term pre-Romanesque church is used for churches without Romanesque features, but it does not necessarily mean that all of these churches predate the arrival of the Romanesque in Ireland. After the construction of the first Romanesque church (c. 1080‒1094) preRomanesque churches were still been built for another half century, (p. 8), and the Romanesque buildings were expressions of the Gregorian reform movement, (p. 235).

2. To follow these discussions Ó Carragáin has suggested: Thomas, 1971; Hughes, 1973; Wormald, 1986; Brown, 1999.

3. For the discussions on the conflict of episcopal and monastic models see: Hughes, 1966; 1972; 2008. For the opposition to this view and updated studies on the subject: Sharpe, 1984; Blair e Sharpe, 1992, in particular Sharpe’s article in this work; Etchingham, 1991; 1993; 1994; 2002; Kehnel, 1997: 28‒46; Charles-Edwards, 2000: 241‒281; Blair, 2005: 43-49;73‒78; Foot, 2006: 265‒268.

4. Ó Carragáin did not define what he is undestanding by the term literati but it has been defined by Bart Jaski as: “a term used in a general sense to refer to those men of learning engaged in composing and writing literary matter, without implying that they formed a uniform body”, p. 329.

5. The concept of Romanitas is also not directly defined, but it is understood in the context. He puts it in terms of opposition such as “in the Roman manner” versus “wooden churches” or “in the Irish manner”, affirming that this dichotomy is evident in Bede’s Historia Ecclesiastica, it seems that in Bede’s opinion a Roman style of church was one built with stones, (p.60‒66).

6. He also supported this argumentation in an article published after the completion of his thesis but before its publication in the book format: Ó Carragáin, 2006: 114.

7. For discussions on this field see Innes, 2000: 6

8. I am thankful to Professor Ciaran Sugrue (UCD) for reading a draft of this review and providing me with some corrections and helpful observations. Therefore any inaccuracy is of my own responsibility

Referências

BLAIR, J. The Church in Anglo-Saxon society. Oxford; New York: Oxford University Press, 2005.

_____; SHARPE, R. (Eds.) Pastoral Care Before the Parish Leicester, London and New York: Leicester University Press, p.298ed. 1992.

BROWN, P. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Tradução de NOGUEIRA, E. Lisbon: Editorial Presença, 1999. (Construir a Europa). This has originally been published in English: BROWN, P. The Rise of Western Christendom: Triumph and Diversity. Cambridge: Blackwell, 1996. (The Making of Europe).

CHARLES-EDWARDS, T. M. Early Christian Ireland. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

ETCHINGHAM, C. Bishops in the Early Irish Church: A Reassessment. Studia Hibernica, n. 28, p. 35-62, 1994.

_____ Church Organization in Ireland A.D. 650 to 1000. 2nd. ed. Maynooth: Laigin Publications, 2002.

_____ The Early Irish Church: Some Observations on Pastoral Care and Dues. Ériu, v. 42, p. 99-118, 1991.

_____ The Implications of Paruchia. Ériu [S.I.], v. 44, n. A, p. 139-162, 1993.

FOOT, S. Monastic Life in Anglo-Saxon Englan, c. 600‒900. Cambridge: Cambridge University Press 2006.

HUGHES, K. Early Christian Ireland: Introduction to the Sources. The sources of History Limited and Hodder and Stoughton Limited 1972. (The Sources of History: Studies in the Uses of Historical Evidence).

_____ Sanctity and secularity in the early Irish Chruch. In: BAKER, D. (Ed.). Studies in Church History. New York, 1973

. _____ The Church in Early Irish Society. London: Methuen & Co. Ltd, 1966.

_____ The Church in Irish Society, 400‒800. In: Ó CRÓINÍN, D. (Ed.). A New History of Ireland: Prehistoric and Early Ireland. Oxford: Oxford University Press, 2008. Cap.ix. p. 301-330. (A New History of Ireland).

INNES, Mathew “Introduction: Using the Past, Interpreting the Present, Influencing the Future”. In: INNES, M.; HEN, Y. (eds.) The Uses of the Past in the Early Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. p. 1‒8.

JASKI, Bart. “Early Medieval Irish Kingship and the Old Testament.” Early Medieval Europe 7 (1998): 329‒44.

KEHNEL, A. Clonmacnois— the Church and Lands of St. Ciarán: Change and Continuity in an Irish Monastic Foundation (6th to 16th Century). Münster: Lit Verlag, 1997. (Vita Regularis: Ordnungen und Deutungen religiosen Lebens im Mittelalter).

Ó CARRAGÁIN, T. Church Buildings and pastoral care in early medieval Ireland. In: FITZPATRICK, E.; GILLESPIE, R. (Ed.). The Parish in Medieval and Early Modern Ireland. Dublin: Four Court Press, 2006. p. 91‒123.

SHARPE, R. Some problems concerning the organization of the church in early medieval Ireland. Peritia, v. 3, p. 230‒270, 1984.

THOMAS, C. The early Christian archaeology of North Britain. London, 1971.

WORMALD, P. Celtic and Anglo-Saxon kingship: some further thoughts. In: SZARMACH, P. E. (Ed.). Sources of Anglo-Saxon Culture. Kalamazoo, 1986.

.Elaine C. dos S. Pereira Farrell – PhD scholar University College Dublin (UCD). Funded by the Irish Research Council for Humanities and Social Sciences (IRCHSS). Laboratório Interdisciplinar de Teoria da História, Antiguidade e Medievo (LITHAM). Translatio Studii—Núcleo Dimensões do Medievo. E-mail: elainecristineuff@hotmail.com Elaine.pereira-farrell@ucdconnect.ie


Ó CARRAGÁIN, Tomás. Churches in Early Medieval Ireland: Architecture, Ritual and Memory. New Haven and London: Yale University Press, 2010. (Paul Mellon Centre for Studies in British Art Series). Resenha de: FARRELL, Elaine C. dos S. Pereira. Early Irish Churches: form and functions. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.11, n.2, p. 85-90, 2011. Acessar publicação original [DR]

Hávamál. La voce di Odino. Il testo degli antichi vichinghi | Antonio Gostanzo

Il est difficile de faire le compte-rendu d’un ouvrage sans prétention scientifique… Bien bâti, joliment présenté et agréablement traduit, le livre d’Antonio Costanzo jouira certainement d’un bon accueil auprès du public italien. La rareté des traductions de textes norrois en italien nous invite à louer l’initiative de cet amateur, qui propose non seulement une traduction de l’un des fleurons de cette littérature, le Hávamál, mais qui a également participé à la conception de cet ouvrage puisqu’il en est à la fois l’auteur, le traducteur et l’éditeur. Vivant en Islande et travaillant pour le muse national (Þjóðminjasafn Íslands), ce physicien d’origine napolitaine occupe son temps libre à étudier les textes islandais médiévaux à l’Institut Arnamagnéen de Reykjavik et se consacre actuellement à une traduction inédite en italien de la Fóstbræða saga, qui paraîtra prochainement dans la même maison d’édition.

Cette traduction du Hávamál, sous-titrée « la voix d’Odin, le texte des anciens vikings » s’ouvre sous les auspices de l’Institut Arnamagnéen de Reykjavik par une préface de Gísli Sigurðsson (l’éditeur du recueil de poésie eddique Eddukvæði où se trouve notamment le Hávamál). Celle-ci offre une synthèse sur les traditions manuscrites et les tentatives d’explications du poème, que ce soit par l’oralité, le fond germanique ancien ou bien l’influence de la culture cléricale (VII-IX). Le livre comporte également une introduction détaillée de l’auteur, à propos de ses choix de présentation, notamment pour la première partie. Il précise en effet l’existence d’une abondante literature secondaire présentant le texte sous un angle philologique, historique ou social, et explique ainsi que cette étude suit un angle qu’il qualifie de philosophique. Dans l’espoir de percevoir la vision du monde du Hávamál, A. Costanzo accompagne sa traduction, lorsque cela est possible, de passages qu‘il juge similaires, tirés de la pensée stoïcienne de Sénèque ou bien du bouddhisme (XII-XIII). Ainsi, l’essentiel du livre se compose de deux grandes parties: le texte en vieil-islandais normalisé accompagné de sa traduction italienne et augmenté d’une étude à caractère philosophique (pp.3-125), puis à nouveau le texte original et sa traduction, accompagnée cette fois-ci d’une analyse critique du texte (pp.129-247). Si ce choix de présentation peut surprendre le spécialiste, il permettra au public curieux de faire la part entre un commentaire sur l’oeuvre qui lui permettra de découvrir ce beau texte et un commentaire linguistique, qui lui donnera le loisir d’apprécier la traduction et de comprendre les choix de l’auteur. Enfin, le livre se conclut par une bibliographie (pp. 249-255) et par deux appendices très utiles. En effet, le premier rédigé par un hôte de l’Institut Arnamagnéen de Reykjavik, Giovanni Verri, porte sur la normalisation du texte original et sur le système vocalique du vieil-islandais (pp. 257-258) tandis que le second offre au lecteur de belles photographies du manuscrit (GKS 2365 4to fol. 3r – 7v) fournies par Jóhanna Ólafsdóttir, du même institut.

Dans la première partie, le spécialiste s’étonnera de trouver des références explicites à Sénèque (texte original accompagné de sa traduction) pour illustrer le commentaire d’une strophe du poème islandais (par exemple l’extrait de la lettre 13 à Lucilius qui illustre la strophe LVI du Hávamál, p. 40). C’est probablement grâce à sa qualité d’amateur que l’auteur se permet ces parallèles et va même plus loin en considérant la culture bouddhiste comme moyen d’expliquer la vision du monde des anciens Scandinaves (par exemple les strophes VIII et IX pp. 8-9). Notons que si cette partie plaira beaucoup au lecteur, elle pourra irriter un public plus averti puisque l’auteur n’hésite pas à faire part de ses conceptions philosophiques – parfois simplistes – sur la pensée dês anciens scandinaves. En considérant le but du livre, on peut difficilement lui faire grief de ne pas véritablement apporter un élément de plus à la réflexion sur le paganisme nordique. Par contre, Il aurait pu avantageusement se servir des passages tirés de la culture latine pour éclairer de manière plus précise et rigoureuse, comme l’a très bien fait Dumézil, les invariants et les originalités de ce texte par rapport à un fond indo-européen.

Pour illustrer sa méthode de travail dans l’analyse critique du texte, arrêtons-nous un instant sur ce qu’il écrit sur la traduction du mot þorp (pp. 162-163). Si ce choix peut être contestable puisqu’il opte pour l’italien landa, qui selon lui parle plus au lecteur, notons qu’il n’ignore pas malgré tout la recherche. Après avoir remarqué la confusion et les diverses traditions d’interprétation qui se sont succédées pour ce mot, il présente une synthèse de quatre explications qu’il juge révélatrices des difficultés inhérentes à la traduction. Les deux premières portent sur l’étymologie tandis que lês suivantes s’intéressent à l’analyse du mot dans ce passage précis. A. Costanzo offre à son lecteur des traductions des notices et des extraits d’articles portant sur ce mot. Saluons ici la place qu’il accorde à un article mémorable de Stefán Karlsson qui porte sur le mot þorp, même s’il ne s’est pas décidé à adopter les vues de ce dernier dans sa propre traduction.

Félicitons enfin la parution du livre d’Antonio Costanzo qui relève de l’honnête vulgarisation, en offrant outre une élégante traduction, un très utile manuel d’initiation aux croyances des anciens scandinaves.

Grégory Cattaneo – Doutorando em História Medieval Universidades de Paris IV Sorbonne e Islândia. gregory.cattaneo@gmail.com


COSTANZO, Antonio. Hávamál. La voce di Odino. Il testo degli antichi vichinghi. Nápoles: Diana edizioni, 2010. Resenha de: CATTANEO, Grégory. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.11, n.1, p. 105-106, 2011. Acessar publicação original [DR]

Os Três Dedos de Adão. Ensaios de mitologia medieval II | Hilário Franco Júnior

Com esse seu novo livro, Os Três Dedos de Adão, Hilário Franco Júnior dá continuidade aos estudos sobre a mitologia medieval iniciado com seu livro de 1996, A Eva Barbada. Desta vez, nos apresenta mais 12 artigos, subdivididos em 6 tópicos: Mito e Método, que engloba os artigos “O Fogo de Prometeu e o Escudo de Perseu: Reflexões sobre Mentalidade e Imaginário” (p. 49-91) e “Modelo e Imagem: O ensamento Analógico Medieval” (p. 93-128). O segundo tópico, Mito e Sociedade trabalha com “O Conceito de Tempo da Epístola de Preste João” (p. 131-154) e “A Escravidão desejada: Santidade e Escatologia na Legenda Áurea” (p. 155-169). No terceiro, Mito e Identidade Coletiva reúne os artigos intitulados “O Retorno de Artur: o Imaginário da Política e a Política do Imaginário no Século XII” (p. 173-192) e “Joana, Metáfora da Androginia Papal” (p. 193-215). O quarto tópico, Mito e Utopia, reúne os artigos “As Abelhas Heréticas e o Puritanismo Milenarista Medieval” (p. 219- 241) e “O Porco, o Homem e Deus: a Utopia Panteísta da Cocanha” (p. 243-269). No quinto, Mito e Exegese, “Entre o Figo e a Maçã: a Iconografia Românica do Fruto Proibido” (p. 273-301) e “Ave Eva! Inversão e Complementaridade Míticas” (p. 303- 329). No último, Mito e Liturgia Hispânica, “A Circularidade do Quadrado: Uma Hipótese Interpretativa do Claustro de Silos” (p. 333-362) e o artigo que nomeia o livro “Os Três dedos de Adão: Liturgia e Metáfora Visual no Claustro de San Juan de la Pena” (p. 363-397). O livro ainda elenca Índices Míticos (p. 399- 402) que muito nos auxilia para uma visão mais articulada dos artigos.

Para muitos, ainda parece estranha a idéia de uma mitologia cristã. Todavia, mitos, crenças, costumes, ritos, não sobreviveram ou morreram, mas vivem porque ainda fazem sentido para muitos. É interessante pensarmos que o logos cristão, em suas origens, encontrou-se perante “a contradição de ter de desembaraçar-se do mito recorrento à mitologia”1. Os Três Dedos de Adão, é apresentado por Franco Cardini que comenta ser “legítima, oportuna e necessária uma <>, entendida como <>” (p. 19). Cardini ainda afirma, referindo-se aos mitos greco-romanos, que “a recusa consciente a uma coisa não significa a inexistência dela” (p. 22). “Basta-nos, prossegue, partir de uma base mínima – narrativa anônima e coletiva que condensa metaforicamente os conhecimentos intuitivos de uma sociedade sobre sua origem, caráter e destino – para chegarmos aos problemas centrais” (p. 27-28).

A continuação de manifestações culturais, presentes em épocas bem posteriores à sua origem, sofreu a tentativa da Igreja de desqualifica-las, sob o epíteto de “sobrevivências”, de “superstições” sem se aperceber que muito de suas práticas prolongava essas manifestações culturais. Dentre outras, o culto aos santos, que visa preparar para a salvação, não deixa de ser um ato supersticioso entre os crentes, prolongando de uma maneira inadvertida para a Igreja, a questão do culto aos heróis do paganismo. Assim, nos deparamos com a “Mentalidade”, no singular, “(…) instância que abarca a totalidade humana” (p. 63). “o nível mais estável, mais imóvel das sociedades´” revelando assim “seu papel de ‘inercia, força histórica capital’”(p. 59).

É, pois, “(…) a instância que abarca a totalidade humana” (p. 63). Disto se conclui que, tentar vislumbra-la em sua totalidade seria como olhar diretamente os olhos de Medusa, sem o reflexo no Escudo de Perseu. Melhor seria ter essa intermediação clareada pelo Fogo de Prometeu. Sempre utilizado de forma “mais intuitiva e vaga que propriamente conceitual” (p. 68) o imaginário, é “o espelho da mentalidade: revela, mas deforma” (p. 72). Ou, ainda, de maneira mais sintetica, imaginário é um tradutor histórico e segmentado do intemporal e do universal” (p. 70). Isto torna seu estudo “(…) mais exeqüível do que o da mentalidade com sua subjetividade quase etérea” (p. 90).

Devemos ter em mente que, na Idade Média, “prevalecia o gosto pelo semelhante, não pelo idêntico” (p. 95). Tal gosto, por seu turno, não excluiria o raciocínio lógico, que era estimulado pelo cristianismo. Também porque, em toda sociedade, “pensamento analógico e pensamento lógico são complementares, não excludentes” (p. 99). Assim, “(…) pensar por analogia significava estabelecer conexões entre o mundo divino e o mundo humano, entre o Modelo e suas imagens” (p. 105). Por seu turno, a Imagem “torna-se ela mesma modelo e passa a funcionar como mediadora para que todas as imagens alcancem o Modelo” (p. 128).

Após essas considerações, Hilário Franco Júnior passa a investigar a idéia de tempo questionando o conceito de Utopia (lugar nenhum) que “como qualquer criação humana, não sabe trabalhar fora de parâmetros temporais”. Mesmo se estes sejam “usados para marcar justamente a condição intemporal da sociedade utópica, por definição colocada no além-história” (p. 132), que seria o caso da Epístola de Preste João. A investigação de Hilário segue ainda a idéia da escravidão espiritual na Legenda Áurea, entrecruzando escatologia e urbanização, onde “O bom cristão deixa de ser vassalo e torna-se escravo, entrega-se totalmente ao Senhor” (p. 165) não importando aí as hierarquias sociais humanas. Por sua vez, o personagem Artur rei, que para alguns teólogos, “é também Deus e Cristo” (p. 181) através da sagração e da unção. Este Artur, por fim, demonstra que, “na longa duração histórica, o imaginário da política mantinha autonomia em relação à política do imaginário” (p. 192).

A sequência dos artigos passa pela metáfora da androginia papal, com o famoso caso da papisa Joana, crença que foi generalizada até o século XVI e permaneceria não “fosse a controvérsia gerada pela Reforma Protestante” (p. 195). Prossegue com a simbologia de certos animais como a abelha em narrativas de Raul Glaber e Landolfo, o velho, e que, metaforicamente aproximava-se do igualitarismo, da pureza e androginia, num contexto de heresias, de uma espiritualidade moralizante em que “católicos e hereges pensavam numa vida evangélica, num retorno ao passado que criticava o presente e acentuava a espera escatológica” (p. 223). A efervescência e transformações do século XII traz à tona a questão panteísta. Hilário argumenta que o aparecimento oral do Fabliau de Cocagne pertence a meados desse século (p. 252), onde ganha destaque a figura do porco. O animal é visto na perspectiva antropológica, econômica, literária, escatológica e religiosa buscando-se assim as razões de sua sacralidade (p. 256-258).

Quanto à iconografia do fruto proibido, Hilário apresenta várias possibilidades e, inclusive, com mistura de características. Mas “mesmo assim hesitava entre o figo e a maçã” (p. 277). O primeiro, estava ligado ao simbolismo do fígado (o que nos lembra o mito de Prometeu Acorrentado); mas a iconografia românica “usou como fruto proibido principalmente a maçã” (p. 283), (que também nos faz lembrar do Jardim das Hespérides) escolha ainda não muito clara, mas que “possivelmente estava ligada à sua forma arredondada e à sua cor vermelha, que a aproximavam do coração (…)” (p. 284- 285). A seguir, com artigo Ave-Eva, Hilário transporta-nos para o binômio Eva-Maria, acompanhando o crescimento da figura de Maria dentro do cristianismo a partir do século XII. Nesse mesmo século, um hino trata o binômio Eva-Maria como “a primeira mãe que abriu as portas da morte, a segunda mãe que as fechou” (p. 310), encerrando suas especulações com a idéia de que Maria era “mais uma complementação que uma negação da primeira mulher” (p. 329).

Em seu último segmento, no penúltimo artigo, Hilário avança suas análises sobre a simbologia numérica que inspirou a edificação do claustro do mosteiro de Silos. A proposta é a de que, apesar da imposição da liturgia romana, a leitura iconográfica resgatava antigos elementos da liturgia moçárabe. Sinal disso seria o baixo relevo do ângulo Sudeste, no qual a mão divina recorre aos dois dedos estendidos. A explicação pode estar no fato do escultor optar por uma mensagem “antigregoriana do claustro” (p. 338) pensa Hilário. O número oito é mysticum numerum (p. 346), cuja força simbólica é muito antiga, ligado à idéia de “rito de passagem” (p. 346). Com um sentido ritual, encantatório, sacramental e até mesmo mágico, as interpretações de Hilário poderiam ser acrescidas aí pela análise da harmonia musical.

Por fim, o artigo que dá título ao livro. Trata do gesto de Adão em um dos capitéis de San Juan de la Peña levando apenas três dedos entre o pescoço e o peito. Hilário se questiona se não haveria aí uma arbitrariedade do escultor e, mesmo com essa hipótese, aprofunda algumas possíveis interpretações. Também considera a polissemia dos símbolos e o conhecimento executor do capitel sobre “as imagens canônicas do pecado” (p. 366). Situado na rota de peregrinação a Santiago de Compostela, em nenhum outro mosteiro encontra-se uma iconografia que se aproxime, que seja ao menos semelhante. Seria uma forma de protesto contra a imposição do rito romano (1080) e uma confissão de fé no dogma trinitário? (p. 382) Certo é que trata-se de uma forma de se evocar o pecado original. Seria, pois, uma forma de “resistência cultural”? (p. 383). Após diversas considerações, Hilário levanta a hipótese de que “o inusitado gesto do capitel de San Juan de la Peña funcionava de fato como crítica velada à nova liturgia [a imposição do rito de Roma] e todas suas implicações” (p. 385).

Dessa forma, Hilário encerra esse brilhante arrazoado sobre a mitologia medieval. De fato, com Os Três Dedos de Adão, ele não apenas solidifica a existência dessa mitologia como possibilita também uma compreensão mais densa de seus primeiros ensaios em A Eva Barbada. Percebemos, na verdade, que essa “mitologia cristã” apresentou-se, inicialmente, como uma mitologia cristianizada, pois o cristianismo não se ergueu sozinho no Ocidente e não se constituiu a partir do nada. Teve que realizar diversas negociações religiosas em razão das quais, fica difícil distinguir o que corresponde à ortodoxia cristã e aquilo que foi importado de outras diversas tradições. Livro muito denso, Os Três Dedos de Adão representam um marco extremamente significativo e importantíssimo na evolução dos estudos sobre a Idade Média Ocidental.

Notas

1. CAPRETTINI, G.P. et. al. “Mythos/logos” in ROMANO, R. (Dir) Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987, p. 91, v. 12.

Ruy de Oliveira Andrade Filho – UNESP-ASSIS. E-mail: ruy.andrade@uol.com.br


FRANCO JR., Hilário. Os Três Dedos de Adão. Ensaios de mitologia medieval II. São Paulo: EDUSP, 2010. Resenha de: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Mitologia medieval. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.11, n.1, p. 107-109, 2011. Acessar publicação original [DR]

Warum weint der König? Eine Kritik des mediävsitischen Panritualismu | Peter Dinzelbacher

Nos últimos anos, a área de Medievística na Alemanha tem assistido a um renascimento dos estudos de ritual. Pode-se apontar como grandes responsáveis por esta rápida expansão o medievista alemão Gerd Althoff, que publica constantemente artigos versando sobre a temática ritual dentro do contexto medieval, e o Sonderforschungsbereich [1] 619, intitulado Ritualdynamik,[2] fundado em 2002 na Universidade de Heidelberg, que tem como finalidade fomentar a discussão interdisciplinar sobre a questão da origem, propagação e ‘morte’ das práticas ritualísticas, bem como os motivos para as críticas acerca do conceito e do estudo do ritual. Relacionadas a esse projeto de pesquisa, foram lançadas inúmeras publicações, nas quais não apenas uma vertente antropólogica pode ser verificada, mas também diálogos nos vários campos do conhecimento.

Na contra-mão dessa tendência de focar o ritual como parte integrante da sociedade medieval, Peter Dinzelbacher apresenta o seu livro com o intuito de alertar medievistas de todas as áreas para a utilização inflacionária e não crítica das teorias de ritual na Medievística moderna, “onde aquelas simplesmente não são detectáveis nas fontes” (“wo sie in den Quellen schlichtweg nicht nachweisbar sind”, p. 7). Para tanto, Dinzelbacher assevera haver um “Panritualismo de origem histórica e germanística” (“‚Panritualismus’ historischer und germanistischer Provenienz”, p. 8). Embora o autor não defina explicitamente o que entende por Panritualismo, subentende-se que esse signifique a utilização exagerada das teorias de ritual aplicadas às fontes medievais. Para tanto, Dinzelbacher propõe a análise de dois campos de estudo, respectivamente o choro público de monarcas/governantes e heróis (Parte I) e os rituais de cura (Parte II).

Seria de se esperar que ao tratar da análise de rituais, o autor definisse o que compreende ou como utilizará os conceitos de rito, ritual e cerimônia, mas este afirma que os três são sinônimos e que na pesquisa internacional ainda não foi elaborada nenhuma definição diferencial (cf. p. 9).

Voltando-se contra os ‘modimos’ acadêmicos, Dinzelbacher mostra que muitas vezes é preciso relativizar os resultados encontrados e não partir para afirmações genéricas. Nesse sentido, a sua crítica refere-se diretamente à obra de Gerd Althoff, que interpreta o choro de monarcas de acordo com a teoria da encenação e remete ao valor dessa(s) cena(s) como um ritual. Para Dinzelbacher, contudo, é possível que em alguns casos haja demonstração de ‘sentimentos’ reais, que são expressos através das lágrimas, sendo assim possíveis expressões espontâneas. Desta forma, o autor demonstra através da análise de casos como morte, contrição religiosa, pedido de ajuda, demonstração de compaixão e clemência, cenas de despedida, no caso da perda da honra e em momentos de luto, que o choro é aceito socialmente. Todavia, em casos de choro masculino público por causa de dor, não há a mesma aceitação.

O que a princípio parece tratar-se de uma ‘pequena história das lágrimas/do choro’ transforma-se num ataque direto e pessoal à obra de Gerd Althoff, perdendo, assim, o caráter científico da crítica. Em dois momentos fica mais do que claro esse ataque pessoal desvelado a Gerd Althoff. Numa das passagens do texto, Dinzelbacher ironiza a teoria de Althoff das ‘lágrimas encenadas’ através da pergunta: “Em casos de necessidade, os reis mandaram, então, buscar uma cebola na cozinha da corte?” (“Haben sich die Könige im Bedarfsfall denn eine Zwiebel aus ihrer Hofküche holen lassen?”, p. 43). Em outro trecho, Dinzlebacher se questiona os porquês do modelo ‘althoffiano’ ter-se propagado tão rápido e de forma tão eficaz, questões essas, que o próprio autor se esmera em responder. A primeira relaciona-se ao fato do caráter inovativo da abordagem e ao fato de Althoff oferecer “uma explicação funcional para componentes, que para nós são estranhos, do agir medieval” (“das Angebot einer funktionalen Erklärung für uns fremde Komponenten mittelalterlichen Agierens”, p. 67). A segunda é apresentada em uma nota de rodapé com ares de teoria da conspiração. Dizelbacher alega que o grande responsável pela recepção bem-sucedida das teorias de Althoff é o ‘Münsterander Institut für Frühmittelalterforschung’ (Instituto de Münster para Pesquisa da Idade Média Primeva) (cf. p. 67).

Gerd Althoff, por sua vez, acredita, contudo, que tenha havido algum malentendido em toda a polêmica levantada por Peter Dinzelbacher, pois o primeiro nunca teria afirmado que não há choro espontâneo. Althoff afirma ainda que, embora no período medieval tenha havido sim expressões espontâneas de sentimentos, essas não foram e não são seu objeto de estudo, asseverando ainda que no caso dos rituais, não se reagia espontaneamente. E somente nessa prerrogativa se baseia seu estudo.[3]

Na segunda parte de seu estudo, Dinzelbacher foca os rituais de cura na Idade Média, mais uma vez para atentar para o fato de que os novos medievistas devem estar atentos ao perigo de superestimar as ‘descobertas’, uma vez que há curas e ou tentativas de cura que seriam ritualísticas e outras que, simplesmente, abordam os discursos médicos medievais, as quais não devem ser incluídas “sob o pretenso Panritualismo da Idade Média” (“unter dem angeblichen Panritualismus des Mittelalters”, p. 133). Sendo assim, a crítica de Peter Dinzelbacher aos chamados ‘modismos acadêmicos’ deve extender-se para todos os campos do saber e ser lida como um alerta geral aos futuros pesquisadores.

Notas

1. Sonderforschungsbereich (SFB) são projetos de pesquisa com prazos de duração de até doze anos, que unem pesquisadores de diferentes universidades e disciplinas, a fim de alcançarem novos conhecimentos para temas pré-determinados. Na Alemanha, tais grupos de pesquisa são fomentados pela Sociedade Alemã de Pesquisa (DFG) (Cf. http://www.dfg.de/foerderung/programme/koordinierte_programme/sfb/ , acessado em 23 de agosto de 2010).

2. Para mais informações sobre as linhas de pesquisas, os professores colaboradores, as publicações e os eventos ver http://www.ritualdynamik.de/ , acessado em 23 de agosto de 2010.

3. ALTHOFF, Gerd. Aufgeführte Gefühle. Die Rolle der Emotionen in den öffentlichen Ritualen des Mittelalters. In: Passions in Context I 2010/1.

Daniele Gallindo Gonçalves Silva – Doutoranda, Otto-Friedrich-Universität Bamberg Bolsista DAAD danigallindo@yahoo.de


DINZELBACHER, Peter. Warum weint der König? Eine Kritik des mediävsitischen Panritualismus. Badenweiler: Wissenschaftlicher Verlag Bachmann, 2009. Resenha de: SILVA, Daniele Gallindo Gonçalves. Panritualismo, a crítica desvelada aos Estudos de Ritual na Idade Média. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.10, n.2, p. 100-102, 2010. Acessar publicação original [DR]

Les royaumes barbares en Occident | Magali Coumet e Bruno Dumézil

O estudo dos povos germânicos, entre a Antiguidade e a Alta Idade Média, tem passado por renovação acentuada, à luz das discussões epistemológicas das últimas décadas. Este volume, por dois estudiosos do tema, inicia-se por um exame da formação da historiografia sobre o tema, no século XIX, com a ligação umbilical entre os recémcriados estados nacionais e as antigas tribos e reinos germânicos: anglos, francos, germanos, entre outros. A publicação da obra Monumenta Germaniae Historica (Berlim, 1826) deu-se sob a significativa divisa sanctus amor patriae dat animum (“o sagrado amor da pátria dá ânimo”). O nacionalismo moderno forjou, portanto, a percepção daqueles povos e da sua importância para a gênese dos modernos estados. A abordagem dos autores parte, desta forma, de uma observação de como o discurso historiográfico alterou-se e como, em nossos dias, as fontes arqueológicas, por um lado, e a teoria social, conforma as discussões recentes sobre um tema tão essencial para a nossa própria época.

Os autores, de maneira programática, apresentam diversos modelos interpretativos, o que permite ao leitor formar suas próprias opiniões. Assim, a tese dominante a partir da década de 1970, denominada de etnogênese progressiva, considera que haveria povos que se formariam em algum momento e continuariam por muitos séculos, como os godos. A teoria da etnogênese, contudo, foi criticada desde a década seguinte, tanto em termos teóricos, com empíricos, pela falta de elementos que comprovassem a continuidade ao longo do tempo. Nas últimas décadas, passou a predominar a tese da identidade bárbara adquirida na interação com os romanos e, para isso, a Arqueologia tem sido fundamental. A adoção de elementos da cultura material romana, bem atestada, nada tem a ver com migração ou etnogênese. Ao contrário, a ligação entre cultura material e identidades fixas deriva do nacionalismo moderno, de pressupostos atuais de que haveria populações homogêneas. Criticam, portanto, os modelos normativos de cultura compartilhada e, ao contrário, enfatizam a fluidez e constante mutação das identidades e apropriações culturais. Não houve, para os autores e boa parte a historiografia recente, uma origem étnica (etnogênese), mas formulações identitárias sucessivas, em constante mutação.

Após essas considerações epistemológicas de fundo, desmistificam termos como “grandes invasões” ou “tomada de Roma” (não por acaso, o livro lançado nos 1600 anos do saque de Roma não reconhece qualquer relevância ao evento). Enfatizam as negociações, no lugar do que chama de mito “mito das grandes invasões” (p. 31). Os bárbaros no império são vistos como uma solução para a crise do século terceiro, com brilhantes carreiras individuais de germanos. A partir das últimas décadas do século IV, generaliza-se o sistema de alianças (foedera) e hospitalidade (hospitalitas) e o fim do Império Romano no Ocidente, no último quartel do século V dará lugar a reinos germânicos, com seus reges gentium.

A Arqueologia continua importante para perscrutar a cultura bárbara no século V, com sua demonstração da relevância da guerra e de uma organização social hierárquica, com um paganismo pouco ligado às identidades, enquanto o arianismo serve a estratégias de distinção como Lex Gothica por contraposição à religio romana (o catolicismo romano). Houve um processo de aculturação recíproca, de mestiçagem (métissage) e os estados bárbaros forma reinos vários e instáveis, com produção literária reduzida e em latim, à exceção da Bretanha, com os anglo-saxões. O papel do direito germânico, escrito em latim, consagra a relevância da identidade étnica e da vingança (faida). Por fim, a conversão ao catolicismo pelos diversos reis germânicos marcou, a partir do franco Clóvis, no início do século VI, a fusão acelerada dos germanos com os indígenas e o nascimento de novas identidades.

Observa-se uma renovação dos estudos sobre o tema dos povos bárbaros, à luz das discussões da teoria social das últimas décadas. Abandonam-se as perspectivas de matrizes positivistas e normativas e parte-se para um estudo dos germanos como grupos humanos fluidos e em relação simbiótica com outras coletividades. Esta obra mostra a importância das discussões teóricas para uma visão menos tradicional e convencional de um dos aspectos mais importantes da História ocidental.

Pedro Paulo A. Funari – Professor Titular. Departamento de História. Centro de Estudos Avançados UNICAMP. www.gr.unicamp.br/ceav


COUMET, Magali; DUMÉZIL, Bruno. Les royaumes barbares en Occident. Paris: Presses Universitaires de France, 2010. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Reinos Bárbaros do Ocidente. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.10, n.2, p. 98-99, 2010. Acessar publicação original [DR]

Roman Barbarians: The Royal Court and Culture in the Early Medieval West | Yitzhak Hen

No livro em questão, Yitzhak Hen, professor da Ben-Gurion University of the Negev, em Israel, procurou demonstrar de que forma a alta cultura greco-romana permaneceu viva, mesmo depois de o Império Romano do Ocidente ter se “transformado” nos reinos bárbaros. A obra se inscreve, assim, na tradição historiográfica que acentua as continuidades entre as civilizações greco-romana e medieval, que discutimos de forma mais pormenorizada no número 9 (2) desta revista.[1]

O capítulo 1 (Introduction: A Series of Unfortunate Events) serve de introdução, discutindo sobretudo os entendimentos que, desde a Renascença, foram produzidos por historiadores e intelectuais a respeito do período entre os séculos III e VIII, hoje conhecido como “Antiguidade Tardia”.

Segundo o autor, a Antiguidade Tardia teria sido associada, durante a Renascença, através das obras de autores como Francesco Petrarca, Leonardo Bruni, Flavio Biondo e Andrea Bussi ao caos e à decadência. Essa visão pessimista teria sido reforçada no fim do século XVIII pela obra de Edward Gibbon (The History of the Decline and Fall of the Roman Empire). Somente no início do século XX, através do austríaco Alfons Dopsch (Wirtschaftliche und soziale Grundlagen der europäischen Kulturentwicklung von der Zeit Caesars bis auf Karl den Großen) e do belga Henri Pirenne (Mahomet et Charlemagne), tal perspectiva teria sido desafiada. Desde então, graças ao trabalho de historiadores como Henri-Iréneé Marrou (Saint Augustin et la Fin de la Culture Antique), teria surgido uma escola continuísta, cuja tese principal é a de que os reinos bárbaros que sucederam o Império Romano do Ocidente seriam resultado sobretudo de uma transformação no mundo romano e não da conquista militar. É nela que o autor se inscreve, reconhecendo, não obstante, que as recentes obras de Bryan Ward-Perkins (The Fall of Rome and the End of Civilization) e Peter Heather (The Fall of the Roman Empire. A New History) exigem que se pinte um quadro mais sangrento dessa transformação.

No capítulo 2 (Adaptation: The Ostrogothic Court of Theoderic the Great), o autor trata do papel do rei como patrono das artes na Itália ostrogoda. Teodorico teria sido capaz de manter viva a cultura romana ao convidar intelectuais eminentes como Boécio e Cassiodoro para o convívio na corte. A repercussão da produção intelectual desses homens teria feito com que o soberano ostrogodo se tornasse um modelo a ser emulado por reis “bárbaros” posteriores até o período de Carlos Magno.

O capítulo 3 (Out of Africa: The Vandal Court of Thrasamund) discute tanto a atitude do rei vândalo Trasamundo frente à tradição cultural clássica como seu papel de patrono das artes. Buscando apresentar-se como um autêntico romano, Trasamundo teria adotado a tradição imperial de patrocínio da alta cultura e fomentado até mesmo uma espécie de “renascença vândala”. Esta, por seu turno, teria sido caracterizada especialmente pela poesia, com destaque para a coleção de poemas conhecida como “Anthologia Latina” (produzida antes da conquista bizantina de 533), além das obras de Blóssio Emílio Dracôntio e Fabio Claudio Gordiano Fulgêncio.

No capítulo 4 (Before and After: The Frankish Court of Chlothar II and Dagobert I), o autor aborda a Gália Merovíngia. Para ele, os reinados de Clotário II e Dagoberto I, durante a primeira metade do século VII, teriam sido especialmente importantes na continuidade cultural entre os mundos romano e medieval. A aliança então estabelecida entre as cortes reais, as elites locais e o movimento monástico iniciado por Columbano teria resultado em uma explosão da produção literária. Esta, por sua vez, teria permitido uma estável transição da vida intelectual da esfera laica para a eclesiástica no reino franco.

O capítulo 5 (Music of the Heart: The Unusual Case of King Sisebut) trata do reino dos visigodos na Hispânia durante o primeiro quartel do século VII. Os visigodos, recém convertidos ao catolicismo, teriam sido os primeiros entre os sucessores dos romanos a buscar um consenso de base político-religiosa. Esse projeto teria sido levado a cabo através de uma estreita aliança entre o rei e a Igreja, na qual se destacaram personagens como o rei Sisebuto e o arcebispo Isidoro de Sevilha. Como a Igreja controlava a produção intelectual, o patrocínio da alta cultura teria passado a estar diretamente relacionado com a legitimação da autoridade do monarca.

No capítulo 6 (Postcards from the Edges: A Prelude to the Carolingian Renaissance), o autor discute como Desidério (rei dos lombardos), Tassilo III (duque da Bavária), Offa (rei da Mércia), Alfonso II (rei de Galícia e Astúrias) e mesmo Harun aRashid (califa abássida de Bagdá) puderam ter sido tomados por Carlos Magno como exemplos recentes de sucesso no patrocínio das artes. Todos eles, em conjunto com os soberanos bizantinos, teriam sido os principais responsáveis pela manutenção da produção literária e artística de alto nível nos séculos VIII e IX.

O breve capítulo 7 (Conclusion) conclui a obra e nele o autor reitera sua tese de que a continuidade da produção intelectual nos séculos que se seguiram à “transformação” do Império Romano do Ocidente nos reinos bárbaros deu-se sobretudo graças ao patrocínio dos soberanos ostrogodos, vândalos, francos e visigodos. Cada um deles teria dado seguimento à tradição romana na qual o imperador assumia o papel de patrono das artes. Tais esforços, embora muitas vezes colocados em segundo plano quando comparados aos de Carlos Magno, teriam resultado no estabelecimento dos múltiplos centros de ensino que foram indispensáveis para que ocorresse a chamada “renascença carolíngia”.

A obra não deixa qualquer dúvida quanto ao amplo conhecimento e à visão de conjunto de seu autor. Há, contudo, algo a se dizer sobre a generosidade de sua avaliação da produção intelectual pós-romana. É no mínimo curioso como, para ele, algo aparentemente prosaico como a produção de um conjunto de poemas (como no caso da “Anthologia Latina”, no reino dos vândalos) possa implicar na continuidade da tradição clássica. É como se, para ele, a cultura greco-romana, que mesmo na Antiguidade Tardia produzira sistemas de pensamentos complexos como os neoplatonismos de Plotino e Proclo, ou mesmo um historiador do calibre de Amiano Marcelino, pouco tivesse perdido nos séculos seguintes, a despeito da relativa simplicidade da produção intelectual dos reinos de ostrogodos, vândalos, francos e visigodos. Diante disso, nos parece inevitável a dúvida sobre se o autor não tem a cultura greco-romana na devida conta ou se supervaloriza a produção intelectual da Europa ocidental nos séculos VI, VII e VIII.

Nota

1. SARTIN, Gustavo H. S. S. O surgimento do conceito de “Antiguidade Tardia” e a encruzilhada da historiografia atual. Brathair, n. 9 (2), 2009, pp. 15-40. Disponível em: http://www.brathair.com

Gustavo H. S. S. Sartin – Mestrando em História e Espaços UFRN. E-mail: ghsartin@gmail.com


HEN, Yitzhak. Roman Barbarians: The Royal Court and Culture in the Early Medieval West. Basingstoke and New York: Palgrave Macmillan, 2007. Resenha de: SARTIN, Gustavo H. S. S. Yitzhak Hen e a continuidade cultural nas cortes bárbaras pós-romanas. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.10, n.1, p. 145-147, 2010. Acessar publicação original [DR]

Vikings: a Era dos conquistadores | Philip Wilkinson

Dentre todas as culturas do passado ocidental, sem sombra de dúvida, os vikings ocupam um lugar especial no imaginário social do mundo contemporâneo. São temas de jogos, brinquedos, filmes, quadrinhos, festivais e letras de música pop e rock. [1] Em parte devido a esse sucesso, grande quantidade de livros de popularização são publicados com muita freqüência. Isso acarreta duas conseqüências básicas: uma positiva, onde temos o interesse inicial dos jovens leitores direcionados para o estudo da Idade Média, levandoos a terem cada vez mais contato com outras obras, essas sim, resultados diretos de estudos acadêmicos; e outra negativa, pois nem sempre os livros de divulgação são escritos por especialistas, ocasionando alguns equívocos e a persistência de erros interpretativos.[2]

Dentro deste contexto, temos a publicação de Vikings: a Era dos conquistadores, do britânico Philip Wilkinson. O autor é um destacado escritor, editor e roteirista de dezenas de títulos envolvendo temas históricos de divulgação, tanto da Antiguidade e medievo quanto de assuntos modernos, e até mesmo enciclopédias e recursos áudiovisuais.

Uma das suas últimas obras, Vikings: a Era dos conquistadores, é visualmente magnífica, repleta de belas ilustrações, gráficos, fotografias e maquetes tridimensionais, o que certamente colaborará para o sucesso do livro entre crianças e pré-adolescentes. A divisão da obra segue um modelo tradicional de obras congêneres, em três partes: a primeira, que reconstitui a história dos escandinavos na Era Viking; uma segunda, recontando alguns mitos e aspectos religiosos; e uma terceira, que aborda o cotidiano, a vida material e o progresso tecnológico e artístico.

A primeira parte (Primórdios, Barcos de guerra, Invasões, Exploradores navais, Jornadas pelo interior,) analisa a origem e a constituição das principais características que definiram o modo de ser e viver dos vikings, em especial, abordando os aspectos náuticos e a estrutura das embarcações – a principal arma de guerra e propiciadora das colonizações e explorações longínquas. O maior elemento caracterizador dos vikings – seus equipamentos de guerra e suas técnicas de combate – foi amplamente descrito em duas páginas com encarte lateral, detalhando inclusive nomes e designações. Mas os aspectos de interiorização comercial, mercantil e política dos vikings pela Europa não foram esquecidos, aprofundando outros aspectos além do caráter guerreiro e exploratório dos escandinavos, o que certamente contribuirá para uma representação mais equilibrada e positiva dos vikings no imaginário do leitor.

O capítulo “sagas e lendas” reconstitui algumas facetas da literatura medieval nórdica, mas é a mitologia que possui os maiores atrativos: uma bela ilustração entre as páginas 17 e 18, reproduz a estrutura cosmogônica do universo, e a página posterior concede informações sobre as deidades mais famosas. Neste momento, ocorrem alguns lapsos. Primeiro, em termos iconográficos: Odin é representado em um elmo com asas laterais e Thor utilizando um elmo com chifres. Nenhuma fonte medieval permite esse tipo de caracterização, e certamente o ilustrador foi influenciado pelo moderno imaginário sobre os vikings e seus deuses, criado durante o Oitocentos e permanecendo como imagem icônica e estereotipada até nossos dias (Langer 2002: 7-9; 2009a: 133- 147). Outro equívoco, muito comum, é considerar Loki como “deus da maldade”. Na realidade, a percepção desta entidade no pensamento nórdico era extremamente complexa e distante dos referencias do ocidental moderno, e era geralmente apoiada no eixo ordem e caos – em alguns momentos Loki era necessário à manutenção da ordem do universo; em outras, ele era necessário para causar desordem e conflitos. Em todo caso, é uma figura ambígua, complexa e enigmática, impossível de ser entendida apenas pelo referencial maniqueísta e simplista do homem contemporâneo (Dumézil 1986: 9- 53).

A sociedade viking foi abordada em uma seção sobre “Reis e leis”, enfocando as formas básicas de legislação e dominação política nas diversas áreas da Escandinávia. E de forma muito comum em outros livros similares, a mulher e a criança foram enfocados numa seção denominada “Vida diária’, abrangendo também a alimentação, a habitação e as diversões dos nórdicos durante o medievo. Um aspecto pouco comum na literatura de popularização sobre os nórdicos – a informação sobre o artesanato e as sofisticadas fases artísticas dos escandinavos – foi enfatizada na seção “Artes vikings”, com belas reproduções fotográficas.

Os aspectos religiosos são tratados no capítulo “morte e sepultamento”, com menções às práticas funerárias, como a inumação e a cremação, as runas e as estelas rúnicas. Mas outros aspectos importantes da religiosidade, como a magia, os centros cerimoniais, os festivais e os sacrifícios foram omitidos. Deixando pouco espaço para que o leitor possa ter mais familiaridade e conhecimento de um tema tão distante dos tempos atuais, as crenças e valores pagãos que existiam antes da cristianização da Escandinávia (Langer 2009b: 143)

A última parte do livro, “Desfechos”, explora a introdução de novos valores na Escandinávia, ocasionando diversas transformações sociais, políticas e culturais. Entre elas, a influência do processo de centralização monárquica, o feudalismo e o cristianismo, este último ocasionador não somente da presença de novos elementos sociais, mas também arquitetônicos, como a construção de igrejas de aduelas na Noruega.

O livro possui outros méritos, como uma excelente cronologia visual, abordando as mais importantes etapas e acontecimentos da Era viking (p. 29); recursos interativos, como a reconstituição de uma habitação nórdica, que permite ao mesmo tempo vislumbrar tanto o exterior quanto o interior da mesma (p. 20); um disco de decodificação da escrita rúnica e um barco viking em alto relevo, ambos extremamente atrativos para o público infanto-juvenil. Além disso, houve a inclusão de dois mini livros colados ao texto, cada um com 10 páginas. O primeiro, uma adaptação da Crônica anglo-saxônica (p. 4), uma das mais importantes crônicas históricas da alta Idade Média, e o outro, fragmentos adaptados da Saga de Njal (p. 16), importante documento literário da Islândia Medieval. Sendo ambas inéditas em língua portuguesa, as suas inclusões certamente proporcionarão uma excelente introdução a dois tipos diferentes de fontes históricas, uma produzida por povos não escandinavos, e a outra, realizada por nórdicos após a cristianização e vários séculos após a Era Viking – mas se reportando tematicamente a ela, um exemplo de saga de família do período feudo-cristão.

Em um momento onde a criança e o jovem estão cada vez mais distantes dos métodos tradicionais de obtenção do conhecimento, como a ida a bibliotecas, a pesquisa e a leitura de livros, certamente o livro de Wilkinson pode constituir um excelente meio de divulgação e até mesmo de recurso paradidático no ensino de história. No aguardo da publicação de obras mais especializadas e da tradução de fontes primárias da Era Viking, certamente os livros de popularização são sempre bem vindos ao grande público.

Notas

1. Em nosso país existem muitos poucos estudos traduzidos sobre o impacto dos vikings no mundo contemporâneo. Para um panorama deste tema, consultar especialmente: Glot 2002: 188-191; Mjöberg 1980: 207-239; Langer 2009a: 133-147.

2. Existem várias obras de popularização sobre vikings em língua portuguesa, com variados níveis de qualidade, a exemplo de Clarke 1983; Gibson 1990; Clare 1993; Brochard & Krähenbühl 1996; MacDonald 1996; Guy 1998; Táti s.d.

Referências

BROCHARD, Philippe & KRÄHENBÜHL, Eddy. Os vikings: senhores dos mares. São Paulo: Editora Augustos, 1996.

CLARKE, Helen. Os vikings. Lisboa: Editorial Verbo, 1983.

CLARE, John D. Vikings. São Paulo: Editora Manole, 1993.

DUMÉZIL, Georges. Loki. Paris: Flammarion, 1986.

GIBSON, Michael. Os vikings. São Paulo: Melhoramentos, 1990.

GLOT, Claudine. Drakkars sur grand écran. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel. L´Europe des Vikings. Paris: Hoebeke, 2002, pp. 188-191.

GUY, John. Como viviam os vikings. Lisboa: Didáctica Editora, 1998.

LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage 4, 2002. Disponível em: http://www.abrem.org.br/viking.pdf Acessado em 10 de abril de 2010.

_____ Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião viking. Brasília: Editora da UNB, 2009a.

_____ Vikings. In: FUNARI, Pedro (org.). As religiões que o mundo esqueceu. São Paulo: Contexto, 2009b, pp. 130-143.

MAcDONALD, Fiona. Vikings. São Paulo: Editora Moderna, 1996.

MJÖBERG, Jöran. Romanticism and revival. In: WILSON, David (org.). The northern world: the history na heritage of Northern Europe. New York: Harry Abrams, 1980, pp. 207-239.

TÁTI, Miécio. Os vikings. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.

Johnni Langer – Departamento de História – UFMA. E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br


WILKINSON, Philip. Vikings: a Era dos conquistadores. São Paulo: Ciranda Cultural, 2008. Resenha de: LANGER, Johnni. Popularizando os Nórdicos. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.9, n.2, p. 41-43, 2009. Acessar publicação original [DR]

III Simpósio Nacional e II Internacional de Estudos Celtas e Germânicos | Moisés R. Tôrres e Adriene B. Tacla

De 8 a 11 de julho de 2008, na Universidade Federal de São João Del Rei, Minas Gerais, realizou-se o III Simpósio Nacional (2ºinternacional) de Estudos Celtas e Germânicos, subordinado ao tema “Saber e poder entre celtas e germanos: formação, representação e transformação” que figura como subtítulo deste Livro de Atas. O Promotor do evento foi o grupo Brathair de Estudos Celtas e Germânicos, que, iniciado em 9 de julho de 1999 numa Reunião Nacional da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) cumpria então nove anos de criação, mas que, embora recente, mantinha uma linha de atuação que começava a se constituir em tradição. Não sendo uma associação, mas um grupo de pesquisa, o GECG tem primado pela seriedade e cientificidade não só dos trabalhos do grupo, mas também dos convidados a participar na revista Brathair e nos simpósios e colóquios. É o que transparece neste volume de atas, onde o nível e qualidade dos textos dos contribuintes de outros países – Klaus Millitzer, Ramón Sainero, e Helmut Birkhan (ausente do simpósio por doença) – valoriza e ressalta os trabalhos dos convidados nacionais – Norma M. Mendes, Elisa Abrantes, Mônica Amim, e Rita C. M. Pereira – bem como dos membros do próprio grupo organizador.

Um livro de atas, porém, não reflete toda a amplitude do seu evento; neste caso há, além de conferencistas que por motivos alheios à sua e à nossa vontade não incluíram seu trabalho nas atas, mas sobretudo as dezenas de contribuições de estudantes que representaram um dos maiores objetivos e resultados do grupo Brathair: o estímulo aos jovens acadêmicos brasileiros para que se interessem pelos estudos celtas e germânicos e os incluam em seus projetos de vida intelectual, ao menos como parte de objetivos mais amplos, como os estudos medievais, e as influências da pré-história na cultura atual. Neste aspecto o Livro de Atas reflete bem o simpósio: são duas seções – Saber, poder e religiosidade (8 textos) e Literatura e preservação do saber (5 textos) abrangendo quatro momentos bem definidos ao longo da história cultural européia. No primeiro vemos a formação das tribos germânicas (Millitzer) e a organização do poder celta na Idade do Ferro (Tacla); no segundo sente-se o impacto do Império Romano (Mendes) e a proto-história romano-celta (Olivieri); no terceiro vemos a permanência forte dos celtas e germanos na formação da Europa medieval, quer na política (Lupi), quer na literatura (Amim, Pereira, Zierer) e na filosofia (Tôrres) com temáticas que se definem na cultura medieval a partir de fontes pré-históricas, indo até às raízes sânscritas (Sainero); e finalmente no período contemporâneo ressaltando a presença das tradições quer na imaginação de elfos e fadas (Birkhan) quer no romance (Abrantes).

Vejamos alguns traços gerais, ou mais marcantes, das duas áreas nas quais se distribuíram as pesquisas/palestras: política, e literatura. A formação da Europa a partir da desintegração do Império teve como um de seus fatores constantes e determinantes a consolidação de nações a partir da aglutinação de grupos, ou etnias (etnogênese); os elementos, ou focos aglutinadores foram diversos: na Idade do Ferro destacaram-se as chefias, embora a concepção sobre seu domínio seja contestada, mas que em diversas formas permaneceu ao longo dos séculos; no caso da Escócia as chefias foram importantes, mas a ação dos monges irlandeses (ou seus discípulos) foi preponderante para reforçá-las ideologicamente; entre as tribos germânicas pode destacar-se a importância da nobreza guerreira, enquanto na Lusitânia o sistema de economia imperial romano redefiniu a comunidade nativa.

Por outro lado, as forças que atuaram na formação das nacionalidades, e consequentemente da Europa como um todo, não foram apenas as lideranças mais evidentes, como os chefes, os monges, os nobres, e os comerciantes/empresários, mas também forças mais discretas, quase ocultas, que mantiveram identidades tradicionais, como as druidesas (ou o que a elas pode equivaler). Assim decorreu a Alta Idade Média, quando as tradições celtas e germânicas convergiram para a constituição das nacionalidades e reinos; posteriormente a consolidação destes reinos deu lugar a uma convivência, em que, no seio do cristianismo, na Baixa Idade Média, as lendas e contos antigos foram refeitos e recompostos em literatura escrita com abrangência mais ampla. É o caso do Mabinogion, coletânea de narrativas originárias do País de Gales, e da literatura em torno da demanda do Graal, esta de muito mais ampla circulação na Europa; nela se reflete e configura um conjunto de fontes – bíblica, heróica, cavalheiresca, cortês – que constitui uma das obras pedagógicas da cultura européia e ocidental.

Outro aspecto importante da contribuição celta e germânica para a formação da identidade européia está na Filosofia, já que, em questões antigas, como a existência de conceitos universais (que de fato respondem à pergunta: como pensamos?) problema que já vinha desde os filósofos de Atenas, a contribuição de teólogos de diversas origens étnicas, convergindo para uma discussão comum, mostrou como na Baixa Idade Média os celtas e germanos já eram, junto com italianos e outros povos, plenamente europeus, e parte integrante e atuante da civilização ocidental. Uma questão destacada em diversos trabalhos é a peculiar e forte presença da mulher nas sociedades celtas, revelada por diversos tipos de literatura e personagens: rainhas irlandesas e seus triângulos amorosos, adivinhas e videntes que deram continuidade à memória dos druidas, fadas e ondinas que ainda povoam a imaginação de crianças e adultos – “dominam o universo”, no dizer do Professor Birkhan – e estão presentes na literatura irlandesa contemporânea personificando a identidade celta.

Este Livro de Atas tem muitos méritos, e certamente um deles é o fato de ser a primeira publicação brasileira, em livro, com textos de pesquisadores brasileiros, sobre temas celtas e germânicos, antecipando-se assim às publicações de outros simpósios e colóquios do grupo Brathair que o precederam. Além disso, apresenta um panorama deste estudos, como se viu, tanto em amplitude histórica quanto temática, que, apesar do exíguo número (13) de títulos consegue ser uma introdução geral para quem se interessar pelo assunto. Finalmente as metodologias, pacientes e cautelosas, fundamentadas em extensas bibliografias e notas (num total de 33 páginas, 13% do texto, e 380 obras citadas) são o plano aval e garantia da seriedade e espírito científico com que se deve trabalhar, e se trabalha no Brasil, os estudos das culturas celtas e germânicas.

João Lupi – UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br


TÔRRES, Moisés Romanazzi; TACLA, Adriene B., e outros (coordenadores). Livro de Atas. III Simpósio Nacional e II Internacional de Estudos Celtas e Germânicos. São João Del Rei: UFSJ e Brathair, 2008. Resenha de: LUPI, João. Saber e Poder entre Celtas e Germanos. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.9, n.2, p. 46-47, 2009. Acessar publicação original [DR]

A Galicia celta | Antonio Balboa Salgado

Quem estudou, mesmo que brevemente, algumas questões da história e da cultura dos celtas já se deparou com as grandes divergências que aparecem entre os investigadores, sobretudo nos últimos anos. Os estudiosos dos celtas da Galiza (os castelhanos preferem que se diga Galícia) não fogem à regra, e não será difícil encontrar entre eles opiniões diferentes em pontos importantes da história dos celtas galegos (ou calaicos). Duas coisas são certas: que há hoje em dia muitos pesquisadores com trabalhos sérios e pesquisas alentadas, e que o acervo de conhecimentos obtido ainda não é suficiente para se dirimirem as divergências, algumas delas das mais relevantes e fundamentais, como as que Balboa Salgado coloca no início do seu livro: qual o conceito de celtas? Os galegos têm origens celtas?

Três são as posições básicas com que o A. abre a discussão: para os estudiosos mais conservadores, e para os nacionalistas galegos do século XIX, os celtas constituíam um povo que, em invasões e migrações, disseminou pela Europa ocidental uma cultura bem identificada e distinta das demais – mas hoje, tais invasões são muito discutíveis, e as idéias de povo e de cultura celta devem entender-se com muita variedade de concretizações, e flexibilidade de definição. A reação contrária seria a segunda opinião, e consistiu em negar a própria existência dos povos e culturas celtas, que não seriam mais do que construções literárias, às vezes com propósitos políticos separatistas; também esta posição cética radical não é mais aceitável, frente à convergência de inúmeros testemunhos e pesquisas, que constituem o arcabouço da metodologia do autor. Embora ainda se encontrem estudiosos que mantêm opiniões próximas a estas duas antagônicas a posição atual, que Balboa segue, é crítica sem ser negativa. É neste sentido, cuidadoso, e procedendo por análises precisas dos vestígios encontrados, que Balboa empreende seu trabalho de exposição geral do celtismo galego. Nele recolhe e completa três publicações suas sobre religião, guerra, e língua, que permanecem como os capítulos do livro. Como é de praxe em obras desta natureza o autor começa por apresentar as narrativas de antigos escritores gregos e romanos – Estrabão, Pompônio Mela, Plínio, Floro – sobre os diversos povos calaicos; passa ao estudo das inscrições em estelas funerárias e tésseras; como nestas os indivíduos se dizem celtas, da comparação entre elas e as narrativas, e outros dados arqueológicos, Balboa conclui que na Galiza Romana (a Galécia) e pré-romana existiram povos que se consideravam, e eram considerados, celtas. Destes dados iniciais retira ainda o autor duas hipóteses: a existência de chefias locais, e a importância da hospitalidade na sociedade galega antiga.

É sobre tais elementos preliminares que Balboa vai construindo o esboço geral da Galiza celta, sempre confirmando a celticidade com novos dados obtidos, sobretudo pela arqueologia. Na religião o A. destaca os santuários esculpidos na rocha no alto dos montes, mostrando a existência de sacrifícios e daí a possível existência de uma classe religiosa; analisando porém as referências ao tema supõe que as pessoas encarregadas do culto teriam organização e poderes inferiores aos dos druidas de outras regiões célticas. As poucas alusões aos deuses – nomeadamente Lug, em Lugo – que se encontram, mormente epigráficas, mostram também certa afinidade com o panteão de outros povos celtas. Muitos outros topônimos e termos referentes a objetos têm origem evidentemente celta, e é destes paralelismos que o A. se serve amplamente para confirmar sua suposição de que os galegos têm origem celta indiscutível.

Balboa faz constantes referências aos celtiberos e particularmente aos lusitanos, que viviam em estreita vizinhança com os calaicos do sul, o atual Norte de Portugal, entre Douro e Minho. Faz muitas alusões à Irlanda, tanto no vocabulário como em aspectos da sociedade (juramentos, irmandades) – relação histórica que conhecemos bem através de Raimón Sainero, palestrante do simpósio do Brathair em São João Del Rei (cf. resenha do Livro de Atas). Tal como Sainero e outros pesquisadores, Balboa procura por vezes enquadrar os traços celtas da Galiza no quadro mais amplo indoeuropeu. Mas por vezes deixa passar, ou esquece, alusões que poderiam reforçar esse paralelismo, como no topônimo Eburia, e Eburus, que ele cita e que corresponde ao de Évora em Portugal e a York na Nortúmbria; ou o gaulês Dumnorix, o Rei da Fortaleza, que poderia ter comparado com dun, ou duns, povoado fortificado, na Escócia. Aparte estas e outras falhas menores (falta de mapas com os nomes das atuais localidades e rios que ele cita) o livro é muito bem documentado com imagens e mapas antigos, e é de elogiar a variedade de fontes e, sobretudo, o uso criterioso dos textos.

João Lupi – UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br


BALBOA SALGADO, Antonio. A Galicia celta. 2ª edição. Santiago: Edicións Lóstrego, 2007. Resenha de: LUPI, João. Os galegos têm origens celtas? Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.9, n.2, p. 44-45, 2009. Acessar publicação original [DR]

Norse warfare: unconventional battle strategies of the ancient viking | Martina Sprague

Os escandinavos são alguns dos mais famosos guerreiros do medievo. Suas ações de pirataria e feitos militares são popularizadas pelo imaginário e cultura de massa até nossos dias, ao mesmo tempo em que constituem temáticas de investigações pelos acadêmicos contemporâneos, sempre buscando compreender o impacto nórdico no continente europeu: “Os vikings estavam entre os povos mais belicosos e resistentes que jamais assaltaram a civilização” (Keegan 2006: 372).[1] A maior parte dos pesquisadores vêm buscando explicações para o sucesso das empreitadas nórdicas, geralmente dentro de dois referenciais, um interno – que procura as motivações dentro dos próprios valores sociais e culturais da Escandinávia, e outro externo, relacionado principalmente com os fatores econômicos, políticos e sociais da Europa cristã.[2]

Em sua recente obra, Norse warfare, a historiadora Martina Sprague [3] estrutura a maior parte de suas problemáticas de investigação dentro do referencial internalista. Deste modo, o livro pode ser dividido em três partes distintas: a que engloba os capítulos 1 ao 4, referente às características gerais da sociedade escandinava e do estilo de vida dos vikings; uma segunda abrangendo a tecnologia náutica, equipamentos militares e técnicas de batalha (capítulos 5 a 7) e a terceira, exemplificando o tema com guerreiros famosos (capítulos 8 a 15).

O primeiro capítulo (Raids on the Christian world) trata do impacto causado pelas incursões de pirataria e pilhagem dos nórdicos pela Europa nos séculos VIII e IX d.C. A autora reconstrói as incursões por meio de diversas fontes não escandinavas (como os Anais de São Bertin, As crônicas anglo-saxãs, cartas de Alcuino, a Gesta Normannorum, entre outras), mas procurando sempre contrastá-las com fontes escandinavas (especialmente as sagas), buscando assim uma reflexão histórica que consiga atingir as motivações sociais e culturais destas atividades – não ficando apenas nos estereótipos e imagens degradantes fornecidos pelos povos atingidos. Inclusive, a imagem dos raids vikings como desorganizados – muito comum nas fontes nãoescandinavas – é contestada pela autora: os ataques surpresas realizados por pequenos grupos criavam uma idéia de caos a povos acostumados com a presença de exércitos regulares, seja para manutenção da ordem quanto em ações militares. O modus operandi típicos destes grupos atacantes (entrar, assaltar, enriquecer e sair) é competentemente comparado por Sprague aos soldados de forças especiais dos tempos contemporâneos, onde o ataque de pequenas unidades com objetivos específicos e bem determinados, o uso de táticas, maneabilidade, flexibilidade, rapidez, surpresa e boa comunicação fazia toda a diferença: deixou boa parte das forças militares européias sem ação, alterou o panorama político e intranquilizou boa parte das populações européias da Alta Idade Média.

Os capítulos 2 (Live hard, Die with honor) e 3 (Going a-Viking) aprofundam o entendimento do papel do guerreiro na cultura nórdica, especialmente como os ideais de força, lealdade e coragem encontravam respaldo na religiosidade, na política e nas leis. A experiência de “sair como um viking”[4] não somente concedia oportunidade aos jovens para obterem uma melhor formação e experiência militar, mas também um melhor status na sociedade. No caso dos adultos, tanto o enriquecimento quanto as motivações religiosas eram impulsionadoras destas participações. A figura do líder demonstra essa ideologia: o guerreiro mais forte, de maior coragem e com mais sucesso nas batalhas era o indicado ao papel de comando, sempre coadunado com os modelos heróicos da tradição oral e religiosa.

A autora também concede um pequeno vislumbre na questão dos mais polêmicos guerreiros da Escandinávia Viking, os berserkers (no nórdico antigo – plural: berserkir; sing.: berserkr). Estes constituíam um grupo militar de elite, associado diretamente às crenças odínicas (da qual seriam inspirados no momento de fúria alucinada) e utilizados em operações terrestres no front da formação (para um primeiro ataque e choque) e em batalhas náuticas para proteger o navio real.[5] A autora preocupa-se em tentar explicar o estado alterado de consciência destes guerreiros pela teoria mais tradicional, surgida durante a década de 1950, a de que estes utilizariam bebidas e substâncias alucinógenas (como o fly acaris e a Amanita muscaria), mas não elenca os experimentos mais recentes que a questionam totalmente, comprovando a limitação da capacidade de batalha pelos efeitos colaterais provocados no guerreiro. A historiadora conclui o tema, afirmando que os berserkers eram muito admirados e temidos, mas o seu emprego militar foi limitado no período viking, devido à exigência de lealdade e confiança para os padrões sociais verificados no período, algo questionável, visto que a representação destes personagens nas sagas é variável e algumas vezes pode ter sido influenciada pelo referencial do período cristão em sua elaboração textual. De qualquer maneira, algumas fontes (como a Egil saga einhenda ok Ásmundar berserkjabana 8) apresentam os berserkers como soldados de extrema confiança do rei, realizando operações especiais a seu mando. A relação entre a percepção social e o registro histórico-literário é algo ainda passível de várias abordagens para o futuro (as formas de representação literária dos berserkers não dependeriam originalmente de sua percepção para os camponeses da Escandinávia viking, que os temiam, e a aristocracia, que contratava seus serviços e os enaltecia?)

Os capítulos 4 (Building the ship) e 5 (Seamanship and navigation) aprofundam a questão do grande referencial tecnológico dos escandinavos em relação aos métodos europeus do período, o navio de guerra, “um recurso contra o qual nenhum reino europeu tinha antídoto” (Keegan 2006: 371). O sucesso das empreitadas dos vikings não se explica somente pela sua superioridade tecnológica, mas também pelo grande conhecimento de navegação, orientação e sobrevivência pelo litoral (navegação de cabotagem) e alto mar, especialmente pelo Atlântico Norte. O navio adapta-se perfeitamente ao tipo de guerra anti-convencional praticada pelos soldados – naves robustas, espaçosas e flexíveis, importantes tanto para uma aproximação num curto espaço de tempo, como também imprescindíveis para uma rápida e segura saída de regiões pouco favoráveis em termos geográficos ou militares. Um pequeno detalhe omitido pela autora é referente à fabricação das velas (como também das roupas para alto-mar): elas não somente eram revestidas de alcatrão e gordura animal, mas originalmente feitas de um tipo de lã impermeável, obtidas de carneiros das altas montanhas.

O capítulo seguinte (weapons and armor) detalha a questão do armamento nórdico: os escudos de madeira e sua utilização como principal defesa corporal; as espadas com a média de dois quilos, simples e funcionais; lanças e dardos, utilizados a distância ou corpo a corpo; o machado de batalha e seu efeito devastador para a psicologia do inimigo; arcos e flechas como retardadores do avanço das tropas opositoras. As cotas de malha e os capacetes eram pouco utilizados, geralmente pelos aristocratas e pessoas mais ricas. Para Sprague, os equipamentos de batalha eram muito pouco diferentes dos outros povos europeus do período e o que explicaria o sucesso dos vikings seria muito mais a sua capacidade de comando, estratégia e liderança nos ataques.

Sem dúvida, o capítulo mais importante é o sétimo (Military organization and battlefield tactis), demonstrando que a formação do guerreiro nórdico provinha essencialmente de uma sociedade baseada na honra, bravura e no preparo para a guerra, muito mais do que um treinamento organizado, extensivo e disciplinado. A estratégia básica para qualquer tipo de operação militar era o conhecimento prévio do local a ser atingido (seja por informações de comerciantes, espiões ou mercenários), antecipando- se ao inimigo e preparando-se previamente para a batalha. No caso das pilhagens, tanto a inexistência de defesa permanente quanto os conflitos internos das regiões a serem atacadas (como Irlanda, Inglaterra e França) colaboraram para o triunfo escandinavo.

A população, geralmente camponeses, era responsável pela manutenção dos navios e da provisão do exército. Com o avanço das conquistas, da colonização nórdica e da centralização monárquica em várias regiões, a necessidade de armadas profissionais – incluindo oficiais, guarnições fortificadas e equipamentos mais padronizados – tornou-se freqüente. Alguns guerreiros e seus oficiais chegaram a viver periodicamente em guarnições separadas das cidades.

A descrição do cenário de batalha é aprofundada pela autora em diversos momentos, como, e.g., a situação do líder – considerado o homem mais forte e corajoso– que comanda o front da formação junto ao seu melhor subordinado e protegido por uma formação circular de escudos, sendo o primeiro homem a confrontar o inimigo. Quanto mais intrépido e audaz fosse o chefe, mais eficiente seria seu exército. Nos confrontos internos da Escandinávia, a probabilidade de confusão e acidente pelo fogo inimigo ou amigo era muito comum, como na famosa batalha de Stiklestad (Stiklarstaðir) na Noruega em 1030.

Outra preocupação da autora é com a descrição dos métodos de batalha naval, muito pouco explorados pelo cinema e literatura, consistindo desde a preparação das embarcações até em como podiam ser movimentadas umas com relação às outras, além do tipo de armamento utilizado (arcos e flechas, dardos, projéteis).

O capítulo oitavo descreve os mais renomados guerreiros profissionais da Escandinávia medieval, os jomsvikings, que serviam basicamente na fortaleza de Jomsborg, no Báltico. Realizavam duros testes de admissão e viviam sob um estrito código de ética e comportamento, sendo extremamente fiéis a seus companheiros e sem nenhum medo da morte. Participaram de uma das mais sangrentas batalhas dos vikings, a de Hjörungavágr (entre noruegueses e dinamarqueses, século X).

Outro renomado grupo militar nórdico, os varegues, são analisados no capítulo seguinte. Após a instalação dos suecos na área eslava oriental, formaram-se várias cidades e centros comerciais, que constituíram a base para os futuros ataques escandinavos à cidade de Bizâncio, na época a mais importante do medievo euroasiático. Logo, o sucesso dos vikings os colocou a serviço mercenário de outros povos, como foi o caso da guarda do próprio imperador de Bizâncio. Neste caso, o serviço estrangeiro constituía um meio de se obter prosperidade e fama para o referencial interno da Escandinávia, como foi o caso do rei norueguês Harald Hardrada. A principal função da guarda vareguiana era o de escolta, guarnição e policiamento da cidade.

Outros casos históricos e legendários analisados por Sprague são os de Ragnar Lodbrok e seus filhos (campanhas na Inglaterra anglo-saxônica); Rollo (pirataria e posteriormente colonização feudal na França); Erik Segersäll (o vitorioso), triunfante na batalha de Fýrisvellir (980, Suécia); Olaf Trygvason, o cristianizador da Noruega; Canuto (Knut), o Grande, construtor do maior império viking, unificando temporariamente a Inglaterra, Dinamarca e Noruega; Harald Hardrada, o último líder viking.

O livro de Sprague, enquanto manual sistematizador, não tem a competência e o detalhamento da obra de Paddy Griffith (The Viking Art ofWwar), mas certamente é uma ótima leitura recomendada aos iniciantes nas investigações sobre a história, cultura e literatura da Escandinávia Medieval.[6] Seu grande mérito é demonstrar que os vikings não foram mais cruéis do que os outros povos de sua época, nem que “a brutalidade é exclusiva dos não cristãos” (Sprague 2007: 309), diz a autora, citando as ações de Carlos Magno no processo de evangelização forçada dos saxões. Apesar da reputação dos nórdicos como uma cultura violenta, sua herança cultural ainda fascina o homem moderno por sua audácia, dinamismo e mobilidade.

AGRADECIMENTO

Ao Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ) pelos comentários e sugestões ao presente texto.

Notas

1. O historiador John Keegan possui uma visão extremamente tradicional sobre os nórdicos, impregnado do referencial britânico e francês sobre os povos ditos “bárbaros”, contrapostos aos civilizados: “(…) os vikings e magiares pagãos ainda viviam no mundo primitivo de deuses vingativos ou distantes ao qual pertenciam os povos teutônicos e da estepe antes de ouvirem a palavra de Cristo ou Maomé (…) cristãos, tal como o inglês São Bonifácio, apóstolo dos germânicos, também morreram como mártires no esforço de implantar o evangelho entre povos selvagens (…) Com efeito, uma Europa pós-romana sem a Igreja romana teria sido um lugar bárbaro” (Keegan 2006: 373, 374). A percepção sobre os antigos germanos vem sofrendo modificações, advindas da tradição acadêmica alemã, como podemos perceber na recente obra do historiador francês Jérôme Baschet: “ Bárbaro (…) a conotação negativa adquirida por este termo torna difícil empregá-lo hoje sem reproduzir um julgamento de valor que faz de Roma o padrão da civilização e de seus adversários os agentes da decadência, do atraso e da incultura (…) Interrogar-se sobre as noções de barbárie e de civilização e pôr em dúvida a possibilidade de julgar as sociedades humanas em função de tal oposição: é também isso que nos convida a história da Idade Média” (Baschet 2006: 49, 26). Também historiadores britânicos vêm questionando o antigo modelo de perceber as culturas não-romanas: “O declínio do Império romano não deve ser considerado a derrota da ‘cultura’ pelo ‘barbarismo’, mas sim um choque de culturas. Os Ostrogodos, Visigodos, Vândalos e outros grupos tinham suas próprias culturas (valores, tradições, práticas, representações e assim por diante). Por mais paradoxal que possa parecer a expressão, houve uma ‘civilização dos bárbaros’” (Burke 2000: 246). O referencial de Keegan sobre uma suposta superioridade religiosa do cristianismo em relação ao paganismo nórdico também é questionável: “nenhuma religião ou crença conduz à barbárie ou é uma proteção contra ela (…) O discurso do civilizador tem sempre esta estrutura: ‘Vamos levar a civilização (ou a verdadeira religião) aos povos bárbaros. Nossa superioridade nos autoriza a tratá-los como inferiores. Eles nos devem gratidão, já que contribuímos para arrancá-los de sua barbárie – ou da ignorância, ou do paganismo’. De modo geral, a noção de civilização serve tanto para valorizar a si mesmo como para justificar a sujeição de outros povos (ou sociedades)” (Wolf 2004: 28). O próprio ato do pesquisador em emitir juízos de valor sobre o passado tem uma longa tradição de questionamentos: “A função do historiador é compreender, não julgar o passado. Logo, o único referencial possível para se ver a Idade Média é a própria Idade Média” (Franco Júnior 1986: 20). Algumas vezes, referenciais sobre as religiosidades do passado remetem às próprias convicções pessoais dos acadêmicos, como no caso de John Keegan: “ (…) o ângulo de abordagem de religiões que já desapareceram costuma ser bastante diferente do que se aplica às religiões cuja vigência continua no presente (…) se vincula às repercussões das militâncias e vivências religiosas presentes hoje em dia” (Cardoso 2005: 209).

2. Para uma visão sistemática e crítica da arte da guerra entre os vikings, o melhor autor é Griffith 1995, que possui detalhados gráficos, tabelas, ilustrações, esquemas e uma competente descrição das fontes mais importantes para o estudo da temática, ao final da obra. Outros estudos complementares para a história militar escandinava são: Whittock 1997; Siddorn 2003; Short 2009.

3. Martina Sprague nasceu em Estocolmo e é mestre em História Militar pela Universidade de Norwich, Estados Unidos. É também autora do livro Sweden: an illustrated history.

4. O termo víkingr refere-se no contexto centro-medieval (fontes a partir do século XI) a toda pessoa que saía além mar para atividades de navegação, comércio, mas especialmente aos atos relacionados à pilhagem ou pirataria e atividades militares. A concepção original parece estar relacionada aos habitantes do fiorde de Vik (Hall 2007: 8).

5. Para um referencial genérico da temática dos berserkers, consultar Langer 2007b: 44-47. Uma excelente sistematização do tema com farta bibliografia é disponível em Ward 2004. Sobre a questão da inexistência histórica da conexão entre o deus Odin e os berserkers e a polêmica das fontes literárias medievais, verificar Liberman 2004: 97-101. Aqui questionamos o autor: sua idéia de que somente a Heimskringla associa este deus aos berserkers (portanto, o escritor Snorri Sturluson teria se apropriado de forma fantasiosa do folclore de seu tempo) e que os guerreiros alucinados não tem nenhuma relação com cultos religiosos é limitada. Existem fontes materiais para comprovar isso: a plaqueta de Torslunda; o fragmento de Gutenstein; capacetes pré-vikings e saxões com gravuras de guerreiros portando máscara de lobo e urso e em posição de dança. O imperador bizantino Constantino VII no Livro das cerimônias descreveu o que ele denominou de “dança gótica”, realizada pela guarda vareguiana com máscaras e peles (Barry 2003: 3). Como a série de fontes imagéticas sobre os berserkers está conectada aos simbolismos do deus Odin (muitas possuem dois pássaros, representações de Hugin e Munin), confirma-se o relato de Snorri como sendo originalmente de tradição pagã e não uma criação do período cristão. Outro erro de Liberman é procurar vestígios dos berserkers diretamente na mitologia: realmente os einherjar e a caça selvagem não têm nenhuma relação direta com os berserkers. Contudo, uma coisa são as narrativas mitológicas e outra os cultos: enquanto os einherjar, as valquírias e o valhala são temas imaginários, os berserkers são personagens históricos e enquadrados dentro da religiosidade, dos cultos e crenças da Era Viking. Por este motivo foram excluídos pelas leis islandesas de 1123 – pela associação aos ritos odínicos, e não simplesmente por serem enquadrados como fora da lei ou bandidos sociais, como quer Liberman 2004: 101. A respeito das transformações mítico-religiosas e dos estados alterados de consciência dos berserkers, verificar: Grundy 1998: 103-120. Para um excelente estudo comparativo das atividades dos berserkers entre os antigos germanos e na Escandinávia da Era Viking: Birro & Fiorio 2008. Porém, apresentamos algumas correções a esta última pesquisa. Reiterando Benjamin Blaney, o artigo afirma que a figura 2, plaqueta de Torslunda, com a imagem de um guerreiro com duas lanças – seria uma representação do deus Odin (Birro & Fiorio 2008: 60, 61).Trata-se de um equívoco interpretativo. Na maioria das fotografias e reconstituições ilustrativas deste objeto, a figura em questão não é caolha, mas possui dois olhos com o mesmo tamanho e forma. Todas as representações antigomedievais que permitem uma identificação objetiva de que são figuras desta deidade – pingentes, esculturas em madeira de igrejas norueguesas, etc, possuem um dos olhos fechados (para um panorama, ver Boyer 2004: 5-12). Somente algumas que não possuem este detalhe são consideradas como Odin pelos especialistas – como a estela gotlandesa de Ardre VIII – um resultado obtido pela análise de toda a cena/conjunto: pelo fato do deus montar o cavalo de oito patas, Sleipnir (se bem que existe a possibilidade de ser um morto em batalha, montado no dito cavalo, bebendo hidromel que recebera de uma Valquíria ao lado…); ou de figuras sendo devoradas por um lobo (como esculturas em igrejas e o relevo na cruz de Gosforth). Para estes temas, consultar Langer 2006, 2007a. Outro fato que desacredita esta interpretação de Blaney, e conseqüentemente também Birro & Fiorio, é o contexto da cena da plaqueta de Torslunda. Além de duas lanças, a figura porta uma espada – algo inusitado em se tratando de imagens de Odin, tanto para o período pré-viking quanto viking (a espada não é um dos objetos/atributos do deus caolho). Além disso, a figura está nitidamente em caracterização de dança, o que confirma algumas fontes bizantinas para o culto odínico dos berserkes. O capacete da dita figura não apresenta “duas serpentes gêmeas”, como afirma o artigo (Birro & Fiorio 2008: 61), e sim contém a figura de dois corvos na extremidade de um par de chifres. Isso é confirmado pela presença de outros objetos semelhantes encontrados em Starayja Ladoga e relevos em capacetes anglo-saxões e pré-vikings. Também em diversas imagens do período de migrações da antiguidade germânica foram representados guerreiros com lança e acompanhados por dois pássaros. A serpente não tem ligação direta com os cultos odínicos e a maior parte dos especialistas em mitologia-religiosidade viking (Régis Boyer, Rudolf Simek) e cultura material (Richard Hall 2007: 219, James Graham-Campbell), entre outros, identificam as duas figuras da plaqueta de Torlunsda como sendo dois guerreiros “dançando” para Odin. O artigo também relaciona uma interessante problemática investigativa: “A imagem dos combatentes acometidos pelo berserkgangr sofreu transformações à medida que o cristianismo penetrou na Escandinávia, pois os berserks passaram a despontar na literatura, ora como heróis, ora como vilões – um exemplo é a luta entre Egill e Ljótr; o oponente do herói era um berserk perverso e viciado em batalhas que desposou forçosamente a filha de um camarada de Egill” (Birro & Fiorio 2008: 65) Dependendo da fonte analisada, os berserkers podem ter conotação positiva, e em outros momentos negativa. Todavia, não poderia ser simplesmente a reprodução ou conservação de uma tradição oral escandinava dos tempos vikings, onde os guerreiros possuíam certa temeridade entre os camponeses e mais prestígio entre os aristocratas? Tal questão necessita de maiores aprofundamentos críticos.

6. A obra possui um excelente glossário terminológico, notas detalhadas e um eficiente índice remissivo. A bibliografia é genérica e não contém todos os títulos consultados: para isso é necessária uma revisão às notas dos capítulos. As fotografias são em preto em branco e não possuem muita qualidade de resolução.

Referências

BARRY, Stacy. Berserker: a ferocius viking warrior. Lambda Alpha Journal 33, 2003. Disponível em http://soar.wichita.edu/dspace/bitstream/10057/868/1/LAJv.33%2Cp2- 9.pdf  Acessado em 05 de janeiro de 2009.

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.

BIRRO, Renan Marques & FIORIO, Jardel Modenesi. Os cynocephalus e os úlfheðnar: a representação do guerreiro canídeo na Historia Langobardorum (séc. VIII) e na Egils saga (c. 1230). Mirabilia 8, 2008. Disponível em: www.revistamirabilia.com Acessado em 05 de janeiro de 2009.

BOYER, Régis. Ódinn: guia iconográfico. Brathair 4 (1) 2004. Disponível em: www.brathair.com Acessado em 05 de janeiro de 2009.

BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia. Bauru: Edusc, 2005.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1986.

GRIFFITH, Paddy. The Viking Art of War. London: Greenhill Books, 1995.

GRUNDY, Stephan. Shapeshifting and berserkergang. Disputatio 3, 1998. Disponível em: http://books.google.com/books?hl=ptBR&lr=&id=nn0zubJW264C&oi=fnd&pg=PA104&dq=berserkir&ots=- iDPcBdRe4&sig=uoeTI7rn6CpsmHIKjyxKg6lxk30 Acessado em 05 de janeiro de 2009.

HALL, Richard. Exploring the World of the Vikings. London: Thames and Hudson, 2007.

KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo: Cia das Letras, 2006.

LANGER, Johnni. The origins of the imaginary viking. Viking Heritage 4, 2002. Disponível em: http://www.abrem.org.br/viking.pdf Acessado em 05 de janeiro de 2009.

_______. Técnicas de guerra dos vikings. Valholl, 2005. Disponível em: http://www.ljosalfaheim.org/valholl/costumes_tecnicas-batalha.htm Acessado em 05 de janeiro de 2009.

_______. As estelas de Gotland e as fontes iconográficas da mitologia Viking. Brathair 6 (1) 2006. Disponível em: www.brathair.com Acessado em 05 de janeiro de 2009.

_______. O mito do dragão na Escandinávia: parte dois – as Eddas e o sistema ragnarokiano. Brathair 7(1) 2007a. Disponível em: www.brathair.com Acessado em 05 de janeiro de 2009.

_______. Fúria e sangue: os berserkers. Desvendando a História 3 (16), 2007b. Disponível em: Templo do conhecimento: http://www.templodoconhecimento.com/portal/modules/smartsection/item.php?itemid=227 Acessado em 05 de janeiro de 2009.

LIBERMAN, Anatoly. Berserkir: a double legend. Brathair 4(2) 2004. Disponível em: http://www.brathair.com/revista/numeros/04.02.2004/berserkir.pdf Acessado em 05 de janeiro de 2009.

SHORT, William R. Viking weapons and combat techniques. London: Westholme Publishing, 2009.

SIDDORN, J. Kim. Viking weapons and warfare. London: Tempus Publishing, 2003.

WARD, Christie. Berserkergang, 2004. Disponível em: http://www.vikinganswerlady.com/berserke.shtml Acessado em 05 de janeiro de 2009.

WHITTOCK, Martyn. Wars of the Vikings. London: Heinemann Educational Books, 1997.

WOLF, Francis. Quem é bárbaro? In: NOVAES, Adauto (org.). Civilização e barbárie. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

Johnni Langer – Departamento de História UFMA. E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br


SPRAGUE, Martina. Norse warfare: unconventional battle strategies of the ancient vikings. New York: Hippocrene Books, 2007. Resenha de: LANGER, Johnni. Guerra ao modo viking. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.8, n.2, p. 85-93, 2008. Acessar publicação original [DR]

Pratiques funéraires et sociétés. Nouvelles approches en archéologie et en anthropologie sociale | L. Baray, P. Brun e A. Testart

O homem olha a morte com medo, curiosidade e reverência. Ela desperta, ao mesmo tempo, a sensação de termo e de recomeço, sendo interpretada de diversas formas pelas diferentes culturas e religiões ao longo de toda a história. De fato, o desconhecido e o âmbito do sobrenatural representados pela morte têm provocado e alimentado a imaginação humana em todas as sociedades e épocas. Inúmeros estudos de antropologia, sociologia e psicologia têm demonstrado que os enterramentos representam importantes marcos na vida social, porque pontuam a memória pessoal e coletiva, impõem uma ruptura na ordem social e suprem a necessidade de reorganização das relações pessoais e sociais ante a morte. Criam eles elos entre gerações presentes e pretéritas, fundando pontes entre o mundo dos mortos e dos vivos, dando a alguns mortos um lugar na memória e na vida de sua sociedade e a outros relegando ao total esquecimento e obliteração.

Os estudos sobre morte e funerais não são novidade na arqueologia francesa, nem tampouco nos estudos da Idade do Ferro Européia em geral. Em verdade, constituem os enterramentos o tipo de documentação arqueológica mais explorada e melhor conhecida, representando, pois, a base de nossos conhecimentos acerca dessas sociedades, sobretudo no que diz respeito à primeira Idade do Ferro na Europa Centro-Ocidental. Desde os primeiros inventários de monumentos publicados no século XIX que as tumbas em montículo, sobretudo as faustosas, têm despertado o interesse tanto de leigos quanto de pesquisadores profissionais. Então, assim como hoje, a pergunta central era a mesma: Como lidavam essas populações com a morte e com a perda de seus entes queridos, líderes e heróis?

A princípio, o principal foco de análise estava na descrição simples da forma e caráter desses enterramentos. Uma tal abordagem sempre se manteve aliada aos estudos de inventários locais e regionais, dominados pela descrição densa de sítios. Se por um lado não podemos dizer que essa abordagem tenha sido completamente descartada, por outro, é preciso destacar que novas abordagens foram se afirmando a partir dos anos 70, sobretudo ante os avanços das técnicas de análise e de novas metodologias de pesquisa, além das abordagens interdisciplinares. Essas se tornaram características da chamada “Nova Arqueologia”, onde a obra The Archaeology of Death (Chapman, Kinnes & Randsborg 1981) se tornou um dos grandes marcos. Seguia ela a trilha indicada pelos trabalhos de Ucko (1969) e Tainter (1978), que entendiam os enterramentos como prática social, para tanto defendendo o uso da etnografia para analisar os ritos e achados funerários, evitando, por conseguinte, uma análise simplista desses achados.

Na França, inúmeros foram os volumes e teses dedicados ao tema, tal como La Mort, les morts dans les sociétés anciénnes (Gnoli & Vernant 1982), e também inúmeros foram os congressos que o debateram; a exemplo dos colóquios Anthropologie physique et archéologie: méthodes d’étude des sépultures. Toulouse 1982 (Duday & Masset 1987), Monde des morts, monde des vivants en Gaule rurale. Orléans 1992 (Ferdière 2000), Archéologie de la mort, archéologie de la tombe au premier âge du Fer. XXIe colloque international de l’AFEAF, Conques – Montrozier 1997 (Dedet et al. 2000), e Archéologie des pratiques funéraires. Approches critiques. Glux-en-Glenne 2001 (Baray 2004), para só citar alguns. Mas, então, por quê novo evento sobre essa mesma temática? O quê, afinal, nos traz esta coletânea de novo?

Em poucas palavras: ação humana e abordagem interdisciplinar. Pode-se dizer que tal perspectiva não é em si uma inovação, mormente se considerarmos os trabalhos da academia de língua anglo-saxã, onde não só há um constante debate com a antropologia, como também uma ampla tradição de pesquisa acerca do que a morte nos diz sobre as sociedades viventes, isto é, acerca do que podemos inferir das sociedades a partir dos dados funerários; como postularam os trabalhos de Fleming (1972, 1973) para a pré-história inglesa (bem como todos que o sucederam – e não foram poucos) e, mais recentemente, para a Grécia Antiga, as publicações de Ian Morris (1987, 1992). Contudo, esses trabalhos não encontraram grande repercussão na arqueologia francesa, que até muito recentemente privilegiou abordagens dominadas por sítios e com poucos recursos ao diálogo com a antropologia. Assim é que a coletânea Pratiques funéraires et sociétés possui um forte diferencial.

Ela se originou de um seminário que reuniu etnólogos e arqueólogos no Laboratório de antropologia social do Collège de France, realizado em colaboração com a Unité Mixte de Recherche (UMR) Archéologie et Sciences de l’Antiquité (ArScAn) de Nanterre e a UMR 5594 Archéologie, Cultures et Sociétés de Dijon, de 2001 a 2003. Seu objetivo era aprofundar a compreensão do das práticas funerárias e seus usos e relevância sociais, trazendo um novo olhar que não estivesse preso tão somente às escavações. Contudo, como destacam os organizadores no prefácio da obra, a reflexão etnológica ficou restrita ao trabalho de Testart (pp.9-13), com os demais versando sobre a arqueologia funerária de diferentes períodos e sociedades, a saber: do Egito antigo (pp. 229-244, 245-256, 257-266), de Tell Shiukh Fawqâni (pp. 267-276, 277-284, 285-294), da Idade do Bronze em Oman (pp.295-319), da China da realeza Chu (pp.359-369), do México pré-colombiano (pp.371-390), de Fidji no séc. XIX (pp. 391-407), Chipre na Antigüidade e medievo (pp.409-415), da Antigüidade grega (pp.321-349, 351-358), da Europa mesolítica (pp.15-35) e neolítica (pp.37-67, 69-76, 77-90, 91-99), da França nas Idades do Bronze (pp.101-114, 115-132) e do Ferro (pp.133-154, 155-167, 169-189) e conquistada por Roma (pp.191-205, 207- 228).

A questão central desse amplo debate é: O que se pode dizer das sociedades a partir de seus vestígios funerários? Como destaca Testart (pp.9-10), uma tal pergunta apresenta grandes dificuldades de resposta. Primeiramente, por conta da grande diversidade de práticas funerárias e pelas diferenças de conhecimento e procedimento das próprias disciplinas, haja vista a resistência dos etnólogos em lidar com os dados materiais e também a raridade desses dados para as sociedades com que eles costumam lidar (p.9). Depois, porque, tradicionalmente, esse questionamento implicaria tratar de desigualdade social, produção, acúmulo ou redistribuição de riqueza, implicando que: a) no que se refere à construção das tumbas, que “…para a maior parte dos etnólogos e historiadores da religião (…) [se deveria a] razões religiosas” (p.10), mas que para os cientistas sociais aludiria também a questões sociais; b) no tocante aos depósitos funerários, se apresentaria o debate acerca deles como propriedade ou não do morto e de seu grupo de parentesco. Para responder a essas questões não se pode fazer conclusões preconcebidas ou descontextualizadas. Ao contrário, “é preciso hipóteses fortes, um conhecimento mínimo das variações etnográficas em matéria de política funerária e uma elaboração de critérios arqueológicos novos” (p.11). Logo esse o debate desse seminário, tal como de toda a arqueologia interpretativa, se coloca na definição dos limites de interpretação e dos critérios de análise e de comparação.

No tocante às sociedades celtas (área de concentração do presente periódico), nos interessam, particularmente os capítulos acerca da França proto-histórica e galoromana. Essas contribuições se dividem em dois grupos: 1) estudos de casos, 2) estudos regionais, e 3) reflexões amplas, propondo modelos gerais.

No primeiro grupo, encontramos dois trabalhos sobre necrópoles no Aisne, um sobre a região do Languedoc ocidental e outro sobre um caso de Luxembrugo. Le Guen e Pinard (pp.101-114) nos apresentam os resultados preliminares das práticas funerárias da necrópole da Idade do Bronze de Presles-et-Boves, “Les Bois Plantés” (Aisne). Com uma detalhada análise de antropologia física associada ao estudo da tipologia e cronologia dos demais depósitos, mostram eles a diversidade existente nas práticas de cremação dessa necrópole. Diferentemente, Desenne, Auxiette, Demoule e Thouvenot (155-167) fazem um estudo mais denso do caso da necrópole de Bucy-leLong “La Héronnière” no período de La Tène A (cerca de 475 a 300 a.C.), propondo a análise da forma das prática funerárias (considerando as etapas de preparação do morto, da tumba e dos depósitos) como via de percepção da estrutura social. Eles mostram que, se por um lado, os achados de Bucy-le-Long não diferem das demais necrópoles do vale do Aisne, por outro, eles se destacam pela maior concentração de tumbas com carros (quatro no total) – e por serem todas elas femininas; vale destacar que “na cultura do Aisne-Marne, só 5% das tumbas com carros (…) contêm um mobiliário claramente feminino” (p.166). Nessa necrópole, como no restante daquelas da Idade do Ferro francesa encontra-se uma combinação de práticas locais (com seleções específicas de objetos), aliadas a regras funerárias mais amplas, com a organização por grupos familiares e regras estipuladas de deposições funerárias.

Também tratando das necrópoles da Idade do Ferro, Florent Mazière (pp.133- 154) examina a questão da morte no sul da França a partir do caso do Languedoc ocidental no séc. VII a.C. Centrando suas observações na transformação social da passagem do bronze final para a Primeira Idade do Ferro, Mazière se debruça sobre a questão do aumento de complexidade social, a construção de uma sociedade fortemente hierarquizada e de uma chefia forte, se propondo a apontar as nuanças e complementos desse esquema tradicional. Para tanto, traçando um rápido balanço da documentação funerária dessa região e dos recentes trabalhos de escavação, Mazière vem mostrar como é possível ter um novo olhar acerca desses achados. Sua análise traça desde os detalhes das formas de enterramento e violação de tumbas ainda na Antigüidade até a emergência de uma pequena elite (cujos enterramentos se encontram nas proximidades das necrópoles tradicionais) e suas relações com o Mediterrâneo. Trata-se de abordagem que bebe na tradição, mas que também explora novas possibilidades; tem, pois, grande potencial e avança no debate.

Por outro lado, enveredando pelo período galo-romano, Polfer (pp.191-205) propõe uma reflexão sobre os problemas metodológicos para a análise social de enterramentos, tomando por base o estudo do caso da necrópole de Septfontaines (Luxemburgo). Dentre os pontos por ele levantados destaca-se o questionamento do postulado tradicional que considera os depósitos funerários como expressão direta da riqueza e do status sócio-político do morto quando em vida; ponto este também debatido por diversos contribuintes da presente coletânea e que se mostra de vital importância para os estudos de pré- e proto-história, onde não há documentação textual de época para contrapor-se à material.

No segundo grupo, encontramos, não por acaso, os trabalhos de Brun e Baray, que não apenas possuem vasta produção na área (o primeiro como grande nome da área de estudos proto-históricos franceses e o segundo que tem despontado desde idos de 2000 como especialista de práticas funerárias da Idade do Ferro francesa), mas que se destacam, sobremaneira, pela criação de modelos téoricos. Patrice Brun (pp.115- 132) propõe, aqui, uma reflexão sociológica mais ampla para as práticas funerárias da Europa da Idade do Bronze. Em verdade, ele vem debater alguns dos grandes problemas – e limitações – com que se deparam os arqueólogos ao analisar os vestígios funerários e suas implicações para a análise sociológica de sociedades da proto-história. Traçando um breve panorama das diferentes regiões européias na Idade do Bronze, Brun mostra que à primeira vista, apesar das trocas interregionais, deparamo-nos com fenômenos regionais que não estão interligados e não são interdependentes; donde, configuram variabilidades de hierarquização tanto a nível temporal quanto espacial. Porém, alerta ele que, numa análise macroscópica sincrônica (que por sinal é a marca de seu trabalho intelectual), temos um mesmo fenômeno: o aumento de complexidade social, com a formação de elites emergentes. Em linhas correlatas, Baray (pp.169-189) se propõe a compreender o aumento de complexidade e as transformações sociais na Europa ocidental da Idade do Ferro. Lançando mão de uma análise que correlaciona a materialidade dos depósitos e da questão da riqueza, Baray cria um modelo tripartite da riqueza na Europa ocidental da Idade do Ferro, calcado no prestigio e num sistema de clientela. Para ele, os depósitos funerários revelam não somente o estatuto do morto, mas, acima de tudo uma ideologia política. No seu próprio dizer, para o período da primeira Idade do Ferro (principalmente da segunda metade do séc.VI a.C. ao primeiro quartel do séc. V a.C.), “o depósito de riqueza age como metáfora do sucesso social do morto” (p.186). Assim, ele traça dois ideais funerários: o ideal do valor guerreiro e de competição sócio-política, que predomina nos enterramentos (do séc. VIII a meados do séc.VI a.C. e do segundo quartel do séc. V ao fim do séc.IV a.C.), e o ideal da sociabilidade e das redes de clientela personificadas pelo banquete, que vigora nos períodos de meados do séc.VI ao primeiro quartel do séc. V a.C. e do IIIº ao Iº séculos a.C.

A esses dois trabalhos, vem se unir a contribuição de Blaizot, Bonnet e Batigne Vallet (pp.207-228). Analisando o uso de depósitos de cerâmica em enterramentos galo-romanos, voltam-se eles para as práticas e gestos rituais; temática pouco explorada, posto que a maioria dos arqueólogos se preocupa mais com a questão desses depósitos como oferenda para o morto e expressão de sua condição estatutária (p.207). Para tanto, os autores não enveredam pelo tradicional exame da funcionalidade e qualidade dos vasos, preferindo, ao invés, tratar dos usos rituais desses objetos. Eles observam uma distinção entre depósitos primários (vasos com oferendas sólidas) e depósitos secundários (vasos com oferendas líquidas) (pp.209- 210), cuja deposição sugere uma seqüência de deposição na cerimônia fúnebre. Como esperado, eles mostram que os conjuntos de depósitos não são homogêneos na Gália romana e que vários desses artefatos passavam por um tratamento especial (queima, quebra ou mutilação) quando incluídos no depósito ritual (pp.218-220); procedimento de fato corrente em depósitos votivos e funerários em toda a Europa proto-histórica. Contudo, sua principal contribuição está em chamar a atenção dos pesquisadores para o fato de que os estudos cerâmicos podem nos fornecer mais dados do que somente a cronologia dos enterramentos ou o status do morto, permitindo-nos “reconstruir” parte significativa da seqüência ritual que envolvia atos de deposição. Como vários estudos recentes têm destacado, é na ação humana que se encontra nossa nova fronteira de pesquisa.

Apesar desse termo “ação humana” não estar claramente afirmado nessa obra, e de ainda estar pouco presente no debate acadêmico francês, ao contrário do anglosaxão onde tem proliferado a reflexão sobre o tema (cf. Dobres 2000, Gardner 2004), essa é, a nosso ver, a grande contribuição dessa coletânea. É em si um primeiro passo rumo a esse debate, procurando demonstrar que não é preciso abandonar os perfis tradicionais de pesquisa da arqueologia funerária francesa, mas sim associá-lo a novas formas de pensar e de inquirir os vestígios materiais.

Se retomarmos, então, a questão central desse livro, vemos que os trabalhos acerca das sociedades da proto-história da Europa ocidental vêm também nos chamar a atenção para o fato de que os enterramentos não devem ser vistos como um mero reflexo nem das crenças no Outro Mundo, nem da estrutura social ou das formas de sociabilidade. É preciso (e possível) ir além.

Referências

BARAY, L. (dir.) Archéologie des pratiques funéraires. Approches critiques. Actes de la table ronde organisée par l’UMR 5594 du CNRS, université de Bourgogne “Archéologie, cultures et societés. LaBourgogne et la France orientale du Néolithique au Moyen Âge” et BIBRACTE, Centre archéologique européen. Glux-en-Glenne, 7-9 juin 2001. Glux-en-Glenne: BIBRACTE, Centre archéologique européen (Collection Bibracte, 9), 2004.

CHAPMAN, R., KINNES, I., RANDSBORG, K. (eds.) The Archaeology of Death. Cambridge, Cambridge University Press (New Directions in Archaeology), 1981.

DEDET, B., GRUAT, P., MARCHAND, G., PY, M., SCHWALLER, M. (eds.) Archéologie de la mort, archéologie de la tombe au premier âge du Fer. Actes du XXIe colloque international de l’AFEAF, Conques – Montrozier 8-11 mai 1997. Lattes, CNRS (Monographies d’Archéologie Méditerranéenne), 2000.

DOBRES, M.-A., ROBB, J.E. (eds.) Agency in Archaeology. London: Routledge, 2000.

DUDAY, H., MASSET, C. (eds.) Anthropologie physique et archéologie: méthodes d’étude des sépultures. Actes du colloque de Toulouse, 4, 5 et 6 novembre 1982. Paris, Éditions du Centre national de la Recherche scientifique: Presses du CNRS diffusion, 1987.

FERDIÈRE, A. (ed.) Monde des morts, monde des vivants en Gaule rurale. Actes du Colloque ARCHÉA/AGER (Orléans, Conseil Régional, 7-9 février 1992). Tours, FÉRACF/LA SIMARRE, 2000.

FLEMING, A. Vision and Design: Approaches to Ceremonial Monument Typology. Man (N.S.) 7(1), 1972, pp. 57-73.

______. Tombs for the Living. Man (N.S.) 8 (2), 1973, pp. 177-193.

GARDNER, A. (ed.) Agency Uncovered: Archaeological Perspectives on Social Agency, Power, and Being Human. London: UCL Press, 2004.

GNOLI, G., VERNANT, J.P. (eds.) La Mort, les morts dans les sociétés anciénnes. Cambridge: Cambridge University Press & Editions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1982.

MORRIS, I. Burial and Ancient Society: The Rise of the Greek City-State. Cambridge: Cambridge University Press (New Studies in Archaeology), 1987.

_______. Death-ritual and Social Structure in Classical Antiquity. Cambridge: Cambridge University Press (Key Themes in Ancient History), 1992.

TAINTER, J.R. Mortuary practices and the study of prehistoric social systems. Advances in Archaeological Method and Theory 1, 1978, pp. 105-141.

UCKO, P. J. Ethnography and archaeological interpretation of funerary remains. World Archaeology 1 (2), 1969, pp. 262-280.

Adriene Baron Tacla – Pós-doutoranda, LABECA MAE/USP. E-mail: adrienebt@yahoo.com.br


BARAY, L., BRUN, P. et TESTART, A. (Eds.). Pratiques funéraires et sociétés. Nouvelles approches en archéologie et en anthropologie sociale. Dijon: Éditions Universitaires de Dijon, 2007. (Collection Art, Archéologie & Patrimoine). Resenha de: TACLA, Adriene Baron. Arqueologia funerária francesa: Novas perspectivas. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.8, n.1, p. 111-116, 2008. Acessar publicação original [DR]

As moradas secretas de Odin: um estudo esotérico sobre a tradição nórdica | Mirella Faur

Os deuses nórdicos vêm fascinando o homem moderno desde a invenção da imprensa e a publicação das Eddas e das Sagas após o Renascimento. Em especial, com o advento do esoterismo e do ocultismo, os antigos cultos e mitologias foram retomados, recriados e interpretados segundo referenciais que muitas vezes afastam-se do que era concebido originalmente pelos escandinavos. É o caso do livro Mistérios nórdicos: deuses, runas, magias, rituais, de Mirella Faur, que propõe uma recuperação da antiga tradição nórdica, mas que na realidade é uma obra que mescla informações acadêmicas contemporâneas com diversos anacronismos criados por pensadores da atualidade. Um inventário de todos os erros, fantasias e equívocos de interpretação do livro transcenderia o espaço desta coluna, motivo que nos limita a apresentar apenas alguns destes lapsos e, principalmente, a refletir sobre a ideologia wiccana que esteve envolvida por trás da elaboração do texto de Mirella.

Ao caracterizar os sacrifícios realizados pelos Vikings, a autora afirma que estas práticas foram oriundas de contatos com as “tribos sanguinárias das estepes russas” (p.35), uma afirmação sem nenhuma comprovação histórica. As imolações já eram comuns desde os germanos da antiguidade, como atestam muitas das fontes clássicas (Langer 2004: 61-85). Também a respeito de registros visuais sobre os mitos, Faur equivoca-se: “Várias das imagens do Ragnarök existiam nas lendas escandinavas muito antes da cristianização. Existem pedras antigas na Suécia gravadas com cenas do Ragnarök” (p. 44). Na realidade, não existem imagens originalmente pagãs desta cena mítica. Em nosso levantamento sobre as estelas da ilha sueca de Gotland, o maior acervo visual pré-cristão da mitologia germânica disponível, não encontramos sequer uma imagem desta cena (Langer 2006: 10-41). Todas as esculturas sobre o Ragnarök foram produzidas em regiões e períodos de contato do paganismo com o cristianismo, no final da Era Viking (como as imagens produzidas em cruzes da área britânica). Em síntese, as antigas tradições orais sobre a batalha final dos deuses foram preservadas em manuscritos e seu núcleo básico talvez contenha muito do pensamento pagão original, mas as cenas visuais que restaram já possuem uma forte interferência e seleção cristã. Ainda no tema de imagens, a autora faz uma sistematização de símbolos que possuem realmente caráter pagão (como o valknut, o fylfot, o mjöllnir), mas enganou-se ao representar alguns, como um coração (segundo ela, “antiga representação dos atributos femininos”, p. 410)– que não ocorre no período germano antigo ou viking, ao menos em estelas e monumentos sagrados; e a espiral, que existiu somente na Escandinávia préviking.

Em relação ao simbolismo religioso das embarcações, novamente Mirella Faur equivocou-se: “Antes que os barcos se tornassem símbolos das conquistas vikings ou servissem como túmulos dos guerreiros, eles reproduziam nos petróglifos a Deusa como a doadora de vida e luz; o barco simbolizava a sua yoni (vulva) ou o veículo da deusa solar” (p. 426). Nada comprova isso: nas gravuras em rochas da Idade do Bronze sueca de Karlslund, os barcos estão associados a homens portando peles e chifres de animais, muitos com pênis eretos, portanto, associados à fertilidade e ao poder sexual masculino. Algumas destas gravuras também contém rodas solares junto a barcos, mas não sabemos se o Sol já era neste período considerado uma deidade feminina. No período pré-Viking da ilha de Gotland, muitas estelas funerárias contém espirais e rodas solares representadas acima de embarcações, uma clara alusão à morte e a passagem do morto para o outro mundo.

A autora preserva a equivocada concepção de que o culto aos Vanes foi mais antigo que o dos Ases: “o mundo pacífico dos adoradores dos Vanir foi dominado pela cobiça e violência dos conquistadores indo-europeus, cujo panteão formado por senhores do céu, dos raios, dos trovões e das batalhas foi se sobrepondo às divindades autóctones que regiam a terra, as forças da natureza, a fertilidade e a sexualidade” (p. 428), algo sem nenhuma comprovação histórico-arqueológica. Na realidade, divindades masculinas conectadas com o céu e com a guerra já apareciam na Escandinávia Neolítica, muito antes das invasões indo-européias, e eram simbolizados por figuras fálicas portando machados e lanças (Davidson 1987: 21).

Outro erro de Mirella é em relação à influência política das deusas: “Existem registros detalhados da devoção de certos reis, que dedicavam templos, estátuas e homenagens às suas madrinhas e protetoras. Posteriormente, o lugar dessas deusas responsáveis pelas dinastias reais e as vitórias nos combates foi outorgado a Odin, Frey, Thor e Tyr” (p. 429). Que registros são esses? Infelizmente a autora não concede maiores detalhes. Todas as fontes disponíveis (obras de Saxo Gramaticus, Snorri Sturlusson, etc) apontam que tanto as dinastias reais pré-Vikings quanto do período Viking eram consideradas influenciadas objetivamente pelo deus Odin (e em alguns poucos casos, por Freyr). Aliás, até mesmo os antigos reis germanos se consideravam descendentes diretos de Wotan e tinham muito orgulho disso (Davidson 1987: 31).

A maior parte da obra dedica-se ao estudo e interpretação das runas (p. 139-379), dentro de uma caracterização muito comum também em outros livros disponíveis em português sobre divinação, sem muitas novidades.[1] A associação de algumas runas a asteróides como Ceres e Vesta e planetas como Urano e Netuno (p. 143, 164, 273), todos invisíveis a olho nu e desconhecidos pelos escandinavos medievais, é ridícula. Não se sabe exatamente que runas eram utilizadas para previsão do futuro e nem que métodos de leitura eram empregados, ao menos durante a Era Viking. Os manuscritos medievais conhecidos como galdraboks são muito posteriores e contém influências mágico-esotéricas alheias à religiosidade pré-cristã. Em especial, o método de divinação apresentado como cruz rúnica (p. 319), nada mais é que uma adaptação do conhecido método da cruz celta do Tarot, transposto para as runas. Outras aplicações mágicas com as runas descritas no livro, como a relação com os pranaiamas da ioga e o stadhagaldr (a ioga rúnica), popularizados pelos esotéricos Ralph Blum e Edred Thorsson (p. 399), são concepções contemporâneas, sem relação direta com a religiosidade Viking.

Durante a descrição da prática mágica do seiðr, a autora possui uma postura ambígua. Primeiro adota a concepção de que o caráter negativo desta magia foi devido ao registro tardio de algumas sagas, já influenciadas pelo cristianismo, sendo seu caráter positivo o verdadeiro aspecto existente na sociedade viking (p. 413). Em um momento posterior do livro, ela apresenta uma outra visão, a de que o seiðr já era considerado negativo pelos escandinavos pagãos, devido a sua relação com os homens efeminados (p. 420). Apesar de ser um tema complexo ainda sujeito a maiores pesquisas, algumas investigações revelam que o verdadeiro poder religioso e social da mulher escandinava era o da esfera privada, onde o seiðr era fundamental, oposto à esfera pública, dominada pelo odinismo e posteriormente pelo cristianismo. Isso foi revelado magistralmente pela pesquisa de Borovsky 1999: 6-39. Já para Schurbein (2003: 129), o xamanismo foi a primeira forma de poder entre as escandinavas, enquanto Dommasnes (2005: 104) reforça os conflitos existentes entre a magia feminina doméstica e a religiosidade pública (todas afirmações de mulheres e pesquisadoras acadêmicas, então, não é uma conspiração masculina de minha parte…).

Na verdade, o intento maior de Mirella Faur é transmitir ao leitor a idéia de que a religiosidade nórdica original era a efetuada por mulheres ou pelo sagrado feminino: “Prevaleciam os ritos e rituais femininos em relação aos masculinos, por ser o universo das mulheres muito mais complexo, amplo e diversificado” (p. 430). Uma afirmação totalmente errônea, se levarmos em conta que desde a pré-história os cultos de divindades masculinas eram os mais preponderantes e importantes na sociedade escandinava em seus aspectos públicos: “As cenas representadas nas rochas mostram rituais de um culto predominantemente masculino, indicado para guerreiros e agricultores, nos quais a mulher desempenha pequeníssimo papel, sendo-lhe apenas permitido aplaudir as procissões” (Davidson 1987: 26). Isso não desmerece de maneira nenhuma a importância das mulheres para a sociedade escandinava, sendo elas no período Viking as transmissoras de quase todo o conhecimento e cultura (Jochens 2005: 217-232).

Em todo momento de seu livro, Mirella Faur leva o leitor a pensar que tanto o pequeno papel das divindades femininas nos mitos e na religiosidade foi causado por uma misoginia dos transcritores dos manuscritos: “O advento do cristianismo levou a uma perseguição intensa do princípio sagrado feminino” (p. 431), quanto do próprio trabalho dos acadêmicos modernos (!), em sua maioria homens: “iniciei a árdua tarefa de procurar a verdade primeva, soterrada sob a poeira dos tempos e fragmentada pelas interpretações tendenciosas dos monges cristãos e dos historiadores e pesquisadores do sexo masculino” (p. 15). Mas o que se percebe de forma geral nos manuscritos transcritos durante o período cristão, no tocante à feitiçaria nórdica masculina e feminina, é que seus praticantes não foram necessariamente descritos como sinistros ou satanizados, mas caracterizados dentro de regras de micro-política das comunidades (Ogilvie 2006: 1-8).

A própria mitologia nórdica, em sua forma como nos foi legada pelas fontes medievais, é questionada por Mirella:

“Da mesma maneira que o mito da criação, a descrição do Ragnarök foi feita pela ótica masculina (…) Nenhuma outra deusa, nem mesmo as Valquírias, é mencionada na grande batalha final (…) A guerra e a destruição jamais foram provocadas ou sustentadas por manifestações do princípio sagrado feminino, pois nenhuma deusa provocou o Ragnarök, participou dele ou colaborou para que ele ocorresse” (p. 44, 45).

Para se entender a batalha final, é preciso estudar o próprio fenômeno da cosmologia e cosmogonia nórdica, sendo que todas as ações realizadas pelos deuses no início dos tempos e em sua trajetória colaboraram para o caos futuro, devido à própria ambigüidade e contradições das divindades masculinas e femininas – neste caso, incluindo desde a “promiscuidade” de Freyja até o ato de Frigg para tentar salvar Balder, não sendo, portanto, as deusas omissas na ordem dos acontecimentos. Para um melhor aprofundamento, ver o estudo de Jesch (2003: 133-140).

Mas qual seria a causa deste posicionamento da autora? Em seu capítulo “O princípio feminino na tradição nórdica” (p. 425) encontramos as respostas. Mirella foi influenciada diretamente pela esoterista Diana Paxson, que auxiliou Marion Bradley a escrever o romance As Brumas de Avalon, durante os anos 1970 e uma das divulgadoras da wicca diânica. Surgido na Califórnia, esse ramo wiccano é conhecido pelo seu radicalismo feminista, propagador da utopia do matriarcado (que nunca foi comprovado historicamente em nenhuma sociedade, vide Georgoudi 2007: 24-27) e pela falsa concepção de que existiu uma poderosa magia feminina européia e um culto a uma única deusa desde a pré-história, perseguida pelo poder masculino pagão e depois pelo cristão, mas que sobreviveu na forma da bruxaria medieval [2].

Em outro livro, As moradas secretas de Odin: um estudo esotérico sobre a tradição nórdica, de Valquíria Valhalladur, encontramos muitos dos mesmos equívocos de Mirella Faur, especialmente o uso da stadhagaldr e ativação de chacras com as runas (p. 79-150), além da idéia de uma ancestralidade autóctone do culto aos vanires (“eram pacíficas, sedentárias e, provavelmente, matriarcais e apologistas da igualdade dos sexos”, p. 66). Alguns novos erros: “Ao contrário dos alfabetos gregos e romanos, as runas nunca se tornaram um sistema fonético fixo” (p. 14). Mas e as centenas de textos em estelas e monumentos na Escandinávia? Antes de tudo, as runas eram uma forma de escrita alfabética, sendo a magia uma aplicação secundária, assim como sua ligação com a cura e relacionadas diretamente ao culto das dísir (Nasstrom 2000: 361). Erros históricos também são comuns: “os barcos Knörr eram temidos por quem cruzasse na sua rota” (p. 157). Esse era o termo empregado para os barcos cargueiros e comerciais, que não utilizavam carrancas, nem escudos ou remos, portanto, não infligiam medo a ninguém. A autora desconhece cronologias sobre os Vikings: “Esses guerreiros desbravaram territórios até se instalarem como um temível império rival dos romanos” (p. 157).

As obras esotéricas, desta maneira, acabam criando muitas falsas interpretações sobre a história, a religiosidade e a sociedade da Escandinávia da Era Viking, confundindo especialmente os neófitos em leituras sobre estes temas. Tanto para os estudantes e pesquisadores quanto para os interessados na reconstituição das antigas práticas religiosas e mitos pré-cristãos, só resta aguardar a publicação de livros mais sérios e fundamentados em nosso país ou recorrer a bibliografia acadêmica em línguas estrangeiras.

Notas

1. O estudo das runas ainda é extremamente precário em nosso país, mesmo dentro da academia. Como exemplo, em uma recente monografia de bacharelado em História na cidade de Vitória (ES), a pesquisadora Mila Marques cometeu vários equívocos sobre o tema da Escandinávia Medieval, entre eles atribuindo a autoria do poema éddico Hávamál, integrante da Edda Poética, ao poeta islandês Snorri Sturlusson: “A intenção foi pesquisar as representações rúnicas no poema Hávamál na obra Textos Mitológicos das Eddas (1220) de Snorri Sturluson”. O poema em questão é anônimo, mais antigo que a Edda Prosaica de Snorri, do qual ele próprio faz citações (Cf. Hall 2007: 211). Outro equívoco de Mila Marques é a respeito da estrutura do poema: “O maior interesse desta pesquisa foi analisar o capitulo 4 do Hávamál intitulado: A História das Runas de Odin”. Cf. Marques, Mila. Defesa de pesquisa acadêmica. Na trilha das runas. Disponível em: http://www.milarunas.net Último acesso: 2 de dezembro de 2008. O Hávamál não possui títulos ou divisões nas estrofes do manuscrito medieval. Esses lapsos demonstram que os estudos sobre runas em nosso país ainda necessitam de maior seriedade e referências bibliográficas de obras acadêmicas, bem como a co-orientação de especialistas nos estudos escandinavísticos.

2. Sobre esse assunto e uma reflexão historiográfica para a wicca diânica, consultar o artigo de Campos e Langer (2007: 12-18).

Referências

BOROVSKY, Zoe. Never in public: Women and Performance in Old Norse Literature. Journal of American Folklore 112 (443), 1999, pp. 6-39.

CAMPOS, Luciana de & LANGER, Johnni. The wicker man: reflexões sobre wicca e o neo-paganismo. Fênix 4 (2), 2007, pp. 1-21. Disponível em: http://www.revistafenix.pro.br/PDF11/ARTIGO.2.SECAO.LIVRE-JOHNNI.LANGER.pdf Último acesso: 31 de outubro de 2008.

DAVIDSON, Hilda. Escandinávia. Lisboa: Editorial Verbo, 1987.

DOMMASNES, Liv Helga. Su corazón se modeló sobre una rueda: las mujeres entre la ideologia y la vida en el pasado nórdico. Treballs d’Arqueologia 11, 2005, pp. 91- 113. Disponível em: http://ddd.uab.es/pub/tda/11349263n11p96.pdf Último acesso: 31 de outubro de 2008.

GEORGOUDI, Stella. L’invention d’un mythe: le matriarcat. Les collections de L’Histoire 34, 2007, pp. 24-27.

_____. Bachofen, o matriarcado e a antiguidade: reflexões sobre a criação de um mito. In: PANTEL, Pauline (dir.). História das mulheres, vol 1. Lisboa: Edições Afrontamento, 1993, pp. 569-590.

HALL, Richard. Exploring the World of the Vikings. London: Thames and Hudson, 2007.

JESCH, Judith. Sexuality, wisdom and heroism: female figures in Norse myth and legend. Women in the Viking Age. London: The Boydell Press, 2003, pp. 133-147.

JOCHENS, Jenny. La femme Viking en avance sur son temps. In: BOYER, Régis. Les Vikings, premiers européens. Paris: Éditions Autrement, 2005, pp. 217-233.

LANGER, Johnni. Midvinterblot: o sacrifício humano entre os Vikings e no imaginário moderno. Brathair 4 (2), 2004, pp. 61-85. Disponível em: www.brathair.com Último acesso: 31 de outubro de 2008.

_____. Religião e magia entre os Vikings. Brathair 5 (2), 2005, pp. 55-82. Disponível em: www.brathair.com Último acesso: 31 de outubro de 2008.

_____. As estelas de Gotland e as fontes iconográficas da mitologia Viking. Brathair 6 (1), 2006, pp. 10-41. Disponível em: www.brathair.com Último acesso: 31 de outubro de 2008.

MARQUES, Mila. Na trilha das runas. Disponível em: http://www.milarunas.net/ Último acesso: 3 de dezembro de 2008.

NASSTROM, Britt-Mari. Healing hands and magical spells. In: BARNES, Geraldine & ROSS, Margaret. Old Norse Myths, Literature and Society. Sydney: Centre for Medieval Studies, 2000, pp. 356-362. Disponível em: http://www.arts.usyd.edu.au/departs/medieval/saga/pdf/0000-all.pdf Último acesso: 14 de novembro de 2008.

OGILVIE, Astrid. Weather and Wichcraft in the Sagas of Icelanders. The Thirteenth International Saga Conference. Durham University, 2006, pp. 1-8. Disponível em: http://www.dur.ac.uk/medieval.www/sagaconf/home.htm Último acesso: 17 de outubro de 2008.

SCHNURBEIN, Stefanie. Shamanism in the Old Norse tradition. History of Religion 43 (2), 2003, pp. 116-138.

Johnni Langer – Departamento de História UFMA. E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br


FAUR, Mirella. Mistérios nórdicos: deuses, runas, magias, rituais. São Paulo: Madras, 2007. VALHALLADUR, Valquíria. As moradas secretas de Odin: um estudo esotérico sobre a tradição nórdica. São Paulo: Editora Madras, 2007. Resenha de: LANGER, Johnni. Runas e Magia. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.8, n.1, p. 106-110, 2008. Acessar publicação original [DR]

The quest for the shaman: shape-shifters, sorcerers and spirithealers of Ancient Europe | Miranda Aldhouse-Green

O fenômeno do xamanismo vem atraindo intensamente a atenção de acadêmicos há cerca de duas décadas, além de ser praticado por muitos adeptos em grandes cidades do mundo e até mesmo no Brasil. Neste contexto, a recente publicação dos arqueólogos Miranda e Stephen Aldhouse-Green, The quest for the shaman, é emblemática por realizar uma sistematização do tema, além de apontar várias outras perspectivas para os estudos das práticas mágico-religiosas. Este livro se insere em uma nova perspectiva dos estudos arqueológicos, não tendo apenas uma preocupação com os objetos materiais em si mesmo, mas também preocupados com sua inserção em uma ampla rede de significados sócio-culturais: “O estudo da cultura material, de todo o imenso artesanal de artefatos que fazem parte do cotidiano do ser humano depende, em muitos casos, da interação da arqueologia com outras áreas” (Funari 2003: 85).1 Miranda Jane Green é uma das mais conceituadas celtólogas e especialistas em Idade do Ferro européia, enquanto Stephen Aldhouse-Green é pesquisador de pré-história do Velho Mundo. Além de considerações teóricas advindas do estudo de sítios arqueológicos, mitologia, literatura e história comparada, os autores também investigaram o fenômeno do xamanismo in loco, entre os Mapuche no Chile, utilizando metodologia antropológica.

A introdução (Shamanism, p. 9-18), elabora uma discussão conceitual e bibliográfica sobre o tema. Os autores propõem novas perspectivas de abordagem pelo viés da cultura material e psicológica, preocupando-se mais em tratar o xamanismo como uma visão de mundo do que como um sistema religioso no sentido tradicional. A discussão de que esta prática teria sido uma construção discursiva de acadêmicos foi abandonada,2 em detrimento da concepção de que é um fenômeno relacionado com a feitiçaria, o ritual e o curandeirismo. Também a visão tradicional de que o conceito do transe ou estado alterado de consciência é fundamental para circunscrevermos os cultos xamânicos3 permanece no livro, mas atrelado a recentes estudos de neuropsicologia, simbolismo e performance social. Este último aspecto é tratado com mais detalhes: o “teatro” do xamã é essencial para a construção de sua figura pública, criando condições materiais para a eficácia simbólica de um contato espiritual. Desta maneira, os objetos arqueológicos encontrados no sítio são delineados também dentro desta perspectiva sócio-cultural, procurando reconstruir o fenômeno europeu com analogias vindas da América, Ásia, Austrália e Sibéria.

O segundo capítulo (Beyond the stone Gates, p. 19-64), explora as possibilidades do registro xamânico durante o Paleolítico, contrastando os registros fósseis e materiais com as teorias de William Davies e David Lewis-Williams. Aqui as supostas origens dos cultos estão atreladas diretamente com o nascimento da arte, da consciência de uma cosmologia, enfim, da criação da própria religiosidade humana – uma conseqüência, segundo os autores, da fixação e intervenção de imagens cerebrais. E a capacidade de entrar em transe seria limitada a um pequeno número de pessoas, que passam a controlar a religião ao mesmo tempo em que a sociedade torna-se estratificada. Assim, percebemos uma profícua união teórica entre o pensamento biológico-psicológico com as considerações da arqueologia e da sociologia. A última parte deste capítulo, realiza um interessante debate sobre o fenômeno da therantropia – o último estágio do estado alterado de consciência, segundo a teoria de William Davies, que produziria visões de monstros e criaturas antropomórficas, especialmente relacionada com as narrativas mitológicas e literárias do lobo e do lobisomem.

O capítulo seguinte (Swan’s wings and chamber tombs, p. 65-88), discute o xamanismo durante os períodos Mesolítico e Neolítico, especialmente entre os vestígios megalíticos da Irlanda. Neste momento os autores fazem uso especialmente das pesquisas de Jeremy Dronfield, segundo o qual a arte megalítica (constituída de motivos geométricos, dando destaque para a figura do espiral) teria sido criada para realizar experiências religiosas nas tumbas. Estudando a distribuição, tipologia e identidade dos motivos artísticos, Dronfield criou a hipótese da “experiência do túnel”, associando os estados alterados de consciência e visões da morte com as passagens nas câmaras megalíticas. Apesar de Miranda e Stephen Aldhouse-Green considerarem esta idéia complexa e polêmica (a união entre arte e práticas mortuárias), referenciam a mesma como hipótese em sua sistematização.

O quarto capítulo (Rock and gold, p. 89-110), examina o tema na Idade do Bronze européia. Os principais sítios arqueológicos examinados nesta análise são os provenientes da Escandinávia, especialmente os importantes conjuntos petroglíficos de Bohuslän, Boglösa, Scania e Litslena, todos situados na Suécia. A grande maioria das representações destes locais é figurativa, mostrando em especial cenas de homens dançando, portanto máscaras, equipamentos de guerra, cenas de fertilidade e consagração, barcos, animais e variados desenhos geométricos como círculos raiados. Seguindo certa tradição analítica, os autores dedicam sua interpretação para mitos relacionados com o transcurso solar e os ritos funerários. Alguns objetos que também são associados a motivos celestes e a mitos solares são o cone de Etzelsdorf e o recentemente polêmico disco de Nerbra, ambos da Alemanha, e o carro solar de Trundholm, da Dinamarca.

Os capítulos quinto e sexto (Priests, politics and power, p. 111-142 e Monsters, gender-benders and ritualist in the roman empire and beyond, p. 143-178) examinam com detalhes as fontes arqueológicas da Idade do Ferro e as literárias greco-romanas. Os temas mais explorados pela dupla de pesquisadores são as visões de explorações de outros mundos – típica de relatos de experiências xamânicas durante o transe – e as questões relacionadas com o status dúbio destes praticantes, tanto a nível social quanto sexual. Um dos momentos mais interessantes é o confronto entre o relato clássico de Tirésias com Odin, deus dos escandinavos, especialmente no que diz respeito às suas ambivalências sexuais e o papel de negociadores de outros mundos. Outros relatos igualmente mencionados com destaque são os de Plínio, o velho, Tácito e a Saga de Erik, o vermelho.4 Tanto na literatura romana quanto na celta e nórdica, os autores identificam a importância do triplismo a nível simbólico e cosmológico – refletindo o imaginário religioso original da Eurásia, onde os mitos xamânicos dividem o cosmos em três níveis e nove mundos. A nível material, o triplismo é manifestado especialmente na arte escultural, por exemplo, nas representações de deuses latinos com três faces ou três chifres, e a nível simbólico nas figuras do triskelion, triqueta e valknut, estes últimos da área celto-nórdica.5

O último capítulo (Myths and magic, p. 179-202), detalha várias análises sobre a literatura e mitologia de origem céltica, em especial, as fontes literárias galesas e irlandesas da Idade Média. Diversos personagens dos manuscritos Mabinogi e Táin Bó Cúailnge, como Pwyll, Math, Lleu, Gwydion e Cu Chulainn, são analisados dentro de uma perspectiva de conexões com o xamanismo,6 especialmente em seus contatos com outros mundos e metamorfoses animais. Em outro momento, os autores debatem o tema das profetisas e profetas nas ilhas britânicas, como Fedelma e Cathbadh, estabelecendo algumas relações entre magia e política, entre as quais as advindas da realeza e da sucessão dinástica.7 Também relacionado a poderes proféticos e xamanismo é o fenômeno do druidismo, onde os sacerdotes ligam-se a múltiplas funções no mundo Celta.8 Alguns dos mais peculiares casos de druidismo-xamânico são os denominados “homens pássaros”, profetas que vestiam peles de pássaros, conectados ao simbolismo destes animais como intermediários do outro mundo, do poder sobrenatural e do “vôo xamânico”.

Na conclusão do livro (p. 203-211), talvez o ponto mais importante destacado pelos autores seja a respeito de uma revisão do conceito diacrônico de xamanismo e em problematizar como os elementos tradicionais deste fenômeno mágico-religioso foram manifestados em diferentes modelos de expressão na arte, na sociedade e nas culturas européias. Em particular, a possibilidade de futuros estudos sobre tradições religiosas sobrevivendo abaixo da romanistas e reputadas como superstições na Idade Média, e, de que forma a herança do paganismo foi manipulada ou “filtrada” pelos redatores cristãos dos manuscritos.

O livro possui uma bela e bem cuidada estrutura iconográfica. Dezenas de gráficos, mapas, tabelas, ilustrações e fotografias coloridas e em preto e branco tornam o texto muito mais acessível ao leitor. Em especial, as ilustrações de Anne Leaver reconstituindo as atividades da profetisa Veleda (p. 117) e do uso de runas entre os germanos antigos (p. 123), ambas descritas por Tácito, foram bem pesquisadas.

A obra é recomendável não apenas aos interessados em história da religião e da magia na Antiguidade e Idade Média. É um valioso instrumento reflexivo para os pesquisadores interessados na documentação arqueológica enquanto reflexo de práticas, ideologias e simbolismos sócio-culturais. Neste sentido, a Arqueologia não se torna excludente do conhecimento produzido em outras áreas das ciências humanas, mas cria a possibilidade de uma interação entre as várias vias de interpretação do passado. Investigando o tema do xamanismo dos remanescentes pré-históricos à literatura de origem Celta, Miranda e Stephen Aldhouse-Green também tornam possível o diálogo interdisciplinar, algo muito necessário aos atuais estudos acadêmicos em nosso país.

Notas

1. Um exemplo do recente interesse arqueológico pelos estudos xamânicos: Price (2001; 2004: 109-126).

2. Sobre o xamanismo em geral e sua relação com as religiosidade e mitologias da Europa pré-cristã, conferir a sistematização de alguns debates críticos recentes (como limites metodológicos e conceituais de abordagem, além da questão da construção discursiva da academia), especialmente os vinculados à Antropologia e história da religião: Stuckard (2005: 123-128). Para recentes discussões sobre o xamanismo urbano no Brasil e suas implicações teórico-metodológicas, verificar: Magnani (1999: 113- 140).

3. Para um debate clássico sobre esta perspectiva, conferir: Eliade 1998 (originalmente escrito durante os anos 1950).

4. O historiador Carlo Ginzburg demonstra a sobrevivência folclórica de mitos e símbolos de origem xamânica euro-asiáticas em plena Idade Média, que constituíram a base das imagens sobre bruxaria e o fenômeno imaginário do sabá das bruxas: “um único esquema mítico foi retomado e adaptado em sociedades muito diferentes entre si, do ponto de vista ecológico, econômico e social” Ginzburg (2001: 162).

5. Para um debate sobre o xamanismo entre os germanos, especialmente na Escandinávia da Era Viking, verificar: Schnurbein (2003: 116-138); Langer (2004: 98-102).

6. Para o historiador francês Christian-J Guyonvarc’h (1997: 218-219) é um erro associar o xamanismo aos Celtas, citando como reforço a esse posicionamento o clássico de Mircea Eliade, Le chamanisme et les techniques archaiques de l’extase, 1951. Porém, constatamos que neste referido livro (Eliade 1998: 416- 417), o autor cita algumas narrativas confirmando mitos e ritos de caráter extático, portanto xamânicos, entre os Celtas. Também o historiador italiano Carlo Ginzburg, em sua formidável obra sobre mitos medievais, faz um detalhado levantamento de diversas fontes confirmando o xamanismo céltico: Ginzburg 2001: 111-112, 115-118, 121-123, 128, 191-193.

7. Vários acadêmicos atuais acabam perpetuando fantasias, anacronismos e interpretações equivocadas em se tratando de temas relacionados com a mulher nas sociedades antigas, especialmente a céltica. Um dos mais correntes destes erros é o vínculo com a utopia do matriarcado: “O dragão pagão é antes de tudo um símbolo de poder; símbolo da mulher que já possuiu um lugar social garantido pelo matriarcado céltico em épocas remotas” (Rocha, 2003). Em uma perspectiva ainda mais equivocada, a pesquisadora canadense Manon Dufour (Mestre em Ciências da Religião pela Universidade de Quebec) analisou os supostos aspectos sacerdotais da mulher celta antigo-medieval por meio da obra literária contemporânea As Brumas de Avalon, além de também defender uma feminilidade sagrada e o matriarcado entre os Celtas, mesclando as teorias de tripartição de Dumézil com um referencial feminista radical e o simbolismo dos arquétipos (cf. Dufour 1999: 5-21). Para um referencial da construção da utopia do matriarcado entre o academismo oitocentista e sua inexistência de um ponto de vista arqueoantropológico para qualquer período da História, verificar a sistematização de Georgoudi (1990: 569-590, 2007: 24-27).

8. A respeito do druidismo entre os Celtas, ver: Lupi 2004: 70-79.

Referências

DUFOUR, Manon B. L’existence de la druidesse: une perception renouvelée du concept de féminité en Occdent. Recherches féministes 12 (2), 1999, pp. 5-21.

ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998 (originalmente escrito durante os anos 1950).

FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003.

GEORGOUDI, Stella. Bachofen, o matriarcado e a Antiguidade: reflexões sobre a criação de um mito. In: DUBY, Georges & PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente, vol. 1. Porto: Edições Afrontamento, 1990. pp. 569-590.

_____ L’invention d’un mythe: le matriarcat. Les collections de L’Histoire 34, 2007, pp. 24-27.

GINZBURG, Carlo. História noturna: a origem do sabá. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

GUYONVARC’H, Christian-J. Magie, medicine et divination chez les Celtes. Paris: Payot, 1997.

LANGER, Johnni. Poder feminino, poder mágico. Brathair 4 (1), 2004, pp. 98-102. Disponível em: http://www.brathair.com/Revista/N7/review_magia_seid.pdf Acessado em 13 de maio de 2007.

LUPI, João. Os druidas. Brathair 4 (1), 2004, pp. 70-79. Disponível em: http://www.brathair.com/Revista/N7/druidas.pdf Acessado em 02 de maio de 2007.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. O xamanismo urbano e a religiosidade contemporânea. Religião e Sociedade 20 (2), 1999, pp. 113-140.

PRICE, Neil (ed.). The archaeology of shamanism. London: Routledge, 2001.

_____ The archaeology of seiðr: circumpolar traditions in Viking pre-Christian religion. Brathair 4 (2), 2004, pp. 109-126. Disponível em: http://www.brathair.com/Revista/N8/archaeology_seidr.pdf Acessado em 02 de maio de 2007.

ROCHA, Fábio Libório. A bruxa, a serpente, e as fadas: a discriminação feminina e o conceito de maravilhoso na Europa Medieval. Monografias.com, 2003. Disponível em: http://br.monografias.com/trabalhos/discriminacao-feminina/discriminacaofeminina.shtml Acessado em 04 de junho de 2007.

SCHNURBEIN, Stefanie V. Shamanism in the Old Norse tradition: a theory between ideological camps. History of Religions 43 (2), 2003, pp. 116-138.

STUCKARD, Kocku von. Constructions, normativities, identities: recent studies on shamanism and neo-shamanism. Religious Studies Review 31 (3/4), 2005, pp. 123- 128.

Luciana de Campos – Professora Mestra. Doutoranda em Letras UNESP. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br

Johnni Langer – Pós-doutor em História pela USP bolsista da FAPESP. E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br


ALDHOUSE-GREEN, Miranda; ALDHOUSE-GREEN, Stephen. The quest for the shaman: shape-shifters, sorcerers and spirithealers of Ancient Europe. London: Thames and Hudson, 2005. Resenha de: CAMPOS, Luciana de; LANGER, Johnni. O Xamanismo do Paleolítico aos Celtas. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.7, n.2, p. 164-168, 2007. Acessar publicação original [DR]

Ambiorix. La résistance des Belges face aux Romains. Racontée aux enfants… et aux grands qui l’ont oublié | Dominique Bockstael

Dominique Bockstael é professor e tradutor de latim em Bruxelas, e assíduo leitor da obra de Júlio César; baseado nela publicou em 1960 um livro sobre Ambiorix, intitulado O javali das Ardenas (cognome do personagem), e refez agora esse texto para inseri-lo numa coleção de vários títulos sobre a História da Bélgica contada às crianças. O caráter didático transparece não só no estilo romanceado, mas também nas notas explicativas, nos mapas de povos gauleses, nas imagens, completadas por uma cronologia e um breve dossiê sobre o modo de vida dos gauleses; no final são ainda listados, com endereços, os museus históricos da Bélgica, particularmente os galoromanos.

A narrativa segue fielmente o texto de César no De Bello Gallico (livro 5, cap. 24 a 41; livro 6: 2 a 43; livro 8: 24 e 25), sem uso aparente de outras fontes. Vejamos a história. Júlio César submeteu os celtas das Gálias, porém a conquista e ocupação do território não se processou facilmente: a resistência à invasão foi seguida em toda a parte de revoltas contra Roma. Ou como diriam as aventuras de Astérix e Obélix: “Toda a Gália está ocupada pelos romanos… Toda? Não! Uma aldeia habitada por irredutíveis gauleses resiste ainda e sempre ao invasor.” De fato depois da vitória decisiva contra Bogduognat e os nérvios em 57 a.C. César estabeleceu na Gália Belga sete legiões reforçadas por cinco coortes; elas impuseram o domínio romano sobre a confederação dos povos belgas, que se estendia entre os rios Reno e Sena. Mas o próprio Júlio César dizia: “De todos os povos da Gália os belgas são os mais fortes” e a revolta eclodiu em 54 a.C. liderada pelo rei dos eburões, Ambiorix.

A coligação gaulesa, reunindo guerreiros de diversos povos, infligiu aos romanos uma derrota esmagadora em Aduatuca (atual Tongeren ou Tongres, um pouco ao norte de Liège). Mas Cícero – o irmão do orador e político – que comandava a legião acampada entre os nérvios, apelou a Júlio César, então a caminho da Itália; César retrocedeu e derrotou os belgas, perseguindo e massacrando os fugitivos. Apenas Ambiorix e uns poucos fiéis companheiros de armas conseguiram se refugiar na floresta, onde nunca foram encontrados. E por alguns anos Ambiorix permaneceu na esperança e na lenda como aquele rei que um dia voltará das brumas para, qual Dom Sebastião, libertar seu povo – até ser esquecido por muitos séculos.

O livro de Bockstael relata essa rebelião transpondo para uma linguagem romanceada a Guerra da Gália na explícita intenção, presente no subtítulo, de tornar acessível às crianças belgas um dos fatos fundadores da sua identidade nacional. Mas o texto não se limita a expor campanhas militares e batalhas, e aproveita as narrações fictícias para descrever a vida quotidiana dos belgas: como eram as casas, quais os trabalhos domésticos, o papel das mulheres na guerra, as relações de família, as virtudes admiradas, o que se comia e bebia, onde e como se dormia, os trabalhos do campo.

O fio condutor da ação é o pequeno grupo que se forma em torno de Ambiorix e que ao final vai compor a escolta que se esconde com ele na floresta; esta é a trama de ficção com diálogos e detalhes que dão vivência ao desenrolar do romance. Mas a didática e a imaginação literária têm uma direção doutrinária e ideológica: defender a unidade e a identidade da Bélgica atual; o teor da empolgação da narrativa e dos adjetivos é não apenas patriótico e épico, mas ufanista: os belgas são (caps. II a IV) intrépidos e dispostos a todos os riscos na revolta contra o opressor; seus valorosos guerreiros são heróicos, seus chefes indomáveis, e na luta morrem como bravos. Em contrapartida (ibidem) os romanos são cruéis, brutais, ladrões gananciosos que pilham tudo o que encontram; a vergonhosa rapina dos legionários não poupa sequer os tesouros sagrados; foi com assassinatos e incêndios que eles sujeitaram, humilharam e ultrajaram um povo altivo e livre, atacado sem motivo; e os gauleses que se aliam aos romanos são traidores detestados e infames. Daí a sede de vingança dos que escaparam dos ataques das legiões, vingança que acorda as virtudes ancestrais, desperta a raiva e acende a coragem.

O bardo canta louvores aos valorosos filhos dos nobres, “de um povo orgulhoso e forte cujas vitórias ressoarão por toda a Gália”. É neste estilo encomiástico que prossegue toda a primeira parte do livro (até ao capítulo VII); mas já aqui se assinala o ponto fraco dos gauleses: estão divididos na oposição ao dominador, não têm disciplina, não têm um plano de ataque, suas ações são isoladas e sem envergadura. O texto abre assim o caminho para uma segunda parte (caps. VIII a XIV e epílogo) em que aparece o ponto de vista do adversário e dominante: a inteligência e tática de comando, e o valor dos legionários; os soldados extenuados e feridos são, perante Júlio César que lhes passa revista, heróicos e firmes combatentes, e o comandante se emociona com os “belos legionários” estropiados mas de pé no seu posto, e lhes diz que o Senado e o povo romanos lhes devem “ a mais bela conquista da sua história” (95). A partir do cap. X a derrota total é inevitável, e começam a ser acusados aqueles que compactuam com os romanos: eles são pérfidos, traidores, usurpadores; Júlio César conseguiu até que certos gauleses menos escrupulosos ajudassem as legiões a pilhar os bens dos vencidos. Os legionários, quase sem oposição, destroem tudo, arrasam as povoações, e para os sobreviventes só existe a servidão ou a morte: “é o fim do mundo” (cap.XII, 113, e 117).

O patriotismo desta narrativa, que pode parecer um tanto ingênuo e excessivo, tem seu sentido numa Europa que aboliu as fronteiras e onde a identidade nacional precisa ser reforçada (aos olhos de muitos); como a Bélgica vive há um século a fratura de sua unidade nacional, devido à luta dos flamengos contra o poder dos valões, a identidade começa pela unidade. Por isso o autor insiste em usar os nomes que assinalam a existência secular de uma entidade que antecipa a nação, referindo-se ao povo em geral ora como gauleses, ora como belgas, e lembra, sempre que vem a propósito, que o território onde se desenrola a ação se chamava Gália Belga; marca a cada página a diluição das diferenças entre os povos que compõem a coligação belga: nérvios, aduatas, eburões, trevinos… todos se uniram contra o invasor, todos são “filhos de brenn” isto é nobres guerreiros gauleses. Na trama da história, eles são belgas e, longinquamente, lançaram as raízes da Bélgica moderna. Assinale-se ainda que o fato de a Bélgica ser um país novo (sua independência data de 1831) obriga a um certo esforço, perante as nações milenares da Europa, de procurar antepassados e origens tão antigas quanto as dos outros.

O recuo até aos belgas é estratégico, pois quando no século IV a.C. eles entraram na região depois chamada Flandres já traziam uma importante miscigenação germânica – curiosamente o autor não o assinala – sinalizando assim, na convivência atual entre valões e flamengos, um objetivo de unidade nacional, se não étnica. É importante destacar que foi só depois da independência que os belgas “descobriram” o seu herói Ambiorix, através do poema de Joannes Nolet de Brauwere van Steeland, datado de 1841; e a primeira estátua ao herói nacional foi erigida em Tongeren (Atuatuca Tongorum) em 1866 (inaugurada em 5 de setembro). Aliás, os eburões eram etnicamente mais germânicos do que celtas, e numa pesquisa de 2005 Ambiorix o gaulês goza de mais popularidade entre flamengos (germânicos) do que entre valões (de língua e cultura francesa). Como disse João Ameal: cada povo escolhe os antepassados que quer e lhe convêm. Ambiorix foi convocado, a posteriori, a unificar a Bélgica – à custa dos romanos; ele não imaginava, quando se refugiou na floresta, que sua ação ia ser tão importante e de tão longo prazo.

João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br


BOCKSTAEL, Dominique. Ambiorix. La résistance des Belges face aux Romains. Racontée aux enfants… et aux grands qui l’ont oubliée. Fléron: Éditions Jourdain Le Clercq, 2005. Resenha de: LUPI, João. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.7, n.2, p. 169-171, 2007. Acessar publicação original [DR]

A lenda de diamante: Sete lendas do mundo celta | Edmond Baily

A tradução de obras celtológicas, tanto de estudos acadêmicos quanto de fontes históricas e literárias, sempre são bem-vindas, pois infelizmente os pesquisadores brasileiros deparam-se com a dificuldade de encontrar tais obras em língua materna nas estantes das bibliotecas e livrarias. Mas o que percebemos é que há um interesse do mercado editorial em publicar obras antigas que, na maioria das vezes, trazem representações equivocadas a respeito dos Celtas, mas que podem fazer grande sucesso apelativo com o público. A tradução de A lenda de diamante, do francês Edmond Bailly, vem justamente de encontro a esse propósito.

A obra apresenta sete narrativas – as sete lendas – e um capítulo intitulado “Notas e esclarecimentos”, onde são arroladas explicações tanto de termos que aparecem nas narrativas como “consciência”, “eternidade das almas”, “religião”, entre outras como também de termos diretamente ligados à cultura celta: “druidismo”, “Ogham” e “vates”. Muitas dessas definições estão permeadas de idéias esotéricas, espíritas e algumas advindas da celtomania francesa dos séculos XVIII e XIX.

Publicada pela primeira vez na França em 1909 (La légend de diamant), quando a Doutrina Espírita já estava consolidada, o livro apresenta a sociedade celta e, em particular os Druidas como monoteístas, preocupados com o “bem da humanidade” e em viverem única e exclusivamente para realizar a vontade do Pai Celestial. Essas construções são fictícias e não correspondem às descrições dos druidas feitas por autores clássicos como Júlio César, Cícero e Plínio, para citar alguns.[1] Essas idealizações, tanto dos celtas, como dos druidas presentes na obra, vinham de encontro às intenções de um determinado grupo que, procurava projetar no passado, suas concepções de mundo, de vida, de religião e de fé. A França por fazer uma exaltação ao seu passado gaulês e, por vezes, buscar ali inspiração para o seu forte nacionalismo, foi o cenário perfeito para que florescessem obras como A lenda de Diamante.

A primeira lenda “O encantamento da harpa” apresenta logo no terceiro parágrafo um equívoco quanto ao panteão celta. Há a menção da deusa do mundo inferior Hela, que pertence ao panteão escandinavo! Os celtas não possuíam divindades guardiãs dos mundos subterrâneos. Esse equívoco cometido pelo autor e por outros autores do mesmo período deve-se à ausência de conhecimentos e de uma pesquisa mais aprofundada sobre os mitos e o panteão celta que, infelizmente ainda não existia no final do século XIX e início do XX,[2]

e reflete parte das fantasias que, lamentavelmente ainda povoam o imaginário contemporâneo.

A terceira narrativa “O único amor” traz a estória de uma desilusão amorosa e dos transtornos ocasionados por ela. A jovem Gwennola, filha de uma grande “colar de ouro” – essa é denominação que os grandes chefes e guerreiros recebem nas narrativas de Bailly – tem o seu amor recusado por Yvor um exímio harpista. Com a recusa de Yvor em aceitar Gwennola como esposa, é desencadeada uma terrível guerra entre os demais pretendentes e a moça é obrigada a vagar sem rumo até encontrar Niod, que lhe mostra uma perspectiva: ela deve deixar o orgulho e o egoísmo e sair pelo mundo levando alento, conforto e cura a todos que necessitarem. Seguindo as ordens de Niod, Gwennola parte e, por onde passa, não deixa de oferecer ajuda a quem necessita. Passa então a ser conhecida como a “viúva virgem”. Todos esses elementos contidos na narrativa estão repletos de ensinamentos cristãos onde é preciso sofrer para conquistar as glórias eternas. Há uma passagem já no final da narrativa que reflete não só os preceitos cristãos, mas também a crença em uma reencarnação evolucionista como meio de purificação e elevação do espírito:

“- Levante-se, minha irmã bem-amada. E não perca a confiança, sua grandeza á superior à minha, pois lhe foi dado se humilhar e se arrepender. Doravante, você não estará mais sujeita à servidão dos sentidos, embora sua libertação ainda não seja completa, pois você recaiu no Abred de Necessidade e está exposta ao Mal e à Morte. Será preciso que você renasça ainda duas vezes, nesse mundo de dor, nessa mesma pátria da qual a faço protetora. Duas vezes ainda o artesão do orgulho estenderá para você os frutos envenenados de seu pomar. Duas vezes ainda você será a carne para o holocausto. Então, eu a levarei, finalmente liberta, para a luz da morada eterna de nossa perpétua felicidade!…” (Bailly 2006:52).

Nesta mesma narrativa há a menção aos eubages que, são descritos como uma “espécie de adivinho da antiga Gália. Hierarquicamente abaixo dos Druidas, encarregava-se da parte externa dos cultos” (p. 46). Segundo autores clássicos latinos como Diodoro, explica que o vate realizaria os sacrifícios (humanos, por exemplo) e interpretaria os augúrios. Mas, essa função também é atribuída aos druidas. Na verdade, o vate poderia estar numa hierarquia inferior ao druida. Na antiga Irlanda, o ensino máximo era reservado à formação em druida, portanto, o vate/eubage seria responsável pelo ofício do sacrifício, enquanto o druida teria funções de cunho mais teológico/filosófico, e seria o responsável pela doutrina e interpretaria os sacrifícios. Na verdade, ambas as funções se confundem, pois druida não deixa de ser um termo geral. Essa nota da tradução merecia um cuidado maior na sua elaboração para elucidar com mais clareza o leitor que pode não estar familiarizado com as terminologias da religiosidade celta.

Na narrativa “Os do Carvalho” encontramos a descrição de uma legião romana tentando a golpes de machado derrubar um grande carvalho sagrado. Para tentar impedir tal ato os druidas permanecem nos galhos da árvore recitando as tríades e os demais ensinamentos. Os sacerdotes são apresentados ao leitor como homens benevolentes que estão sendo vítimas da intolerância romana que procura não só exterminar sua religião, mas também todo o seu conhecimento. O desfecho da narrativa mostra a redenção dos druidas em um sacrifício:

“Quando o sacrifício foi consumado, quando vítimas e algozes dormiam, quietos, na reconciliação do sono da morte, as almas dos Do Carvalho voaram, puras e santas, sobre as asas impetuosas da fogosa cotovia. E enquanto os eleitos de Gwynfyd saldavam a feliz libertação de seus irmãos bem-aventurados, aqui embaixo, maravilhosas rosas de cor púrpura desabrochavam sobre as brancas túnicas dos sacrificados, chamando os Da Terra para a comunhão de Sabedoria e de Amor!” (p. 118).

Essa representação dos druidas lembra em muito o martírio sofrido por muitos cristãos que, por defenderem a sua fé, morreram assim como os druidas nas mãos dos romanos. Percebe-se claramente um juízo de valor do autor onde apresenta os druidas como homens bons e puros e apresentados como os eleitos de Deus e, os romanos como vilões que, tinham como missão exterminar os escolhidos e, que por isso mesmo eram severamente punidos. Uma visão maniqueísta de celtas e de romanos.

A última narrativa “Os do Awen” traz uma personagem muito conhecida das estórias arturianas: Merlin. Este é apresentado como um sábio e talentoso bardo que, em companhia de mais outros dois igualmente geniais travam uma disputatio com o Demônio, o artesão de todos os males. Enquanto há o embate, o próprio Jesus Cristo assiste a tudo e, glorioso no final defende e acolhe os três bardos como novos emissários da boa nova. Ao colocar o Cristo como personagem de uma narrativa de suposta origem celta, o autor procura conceder aos druidas um perfil cristão. Essa construção anacrônica deste povo como precursor do cristianismo muito tempo antes deste surgir, faz com que alguns pesquisadores sejam adeptos do que convencionou-se denominar como “cristianismo druídico”.[3] Uma fantasia que procura conferir aos druidas uma imagem de pureza e benevolência, para tentar desconstruir a imagem descrita nas fontes clássicas como executores de sacrifícios humanos e incitadores de guerra. Infelizmente essa representação dos druidas é ainda apresentada em muitos cursos e livros esotéricos e, por mais que as pesquisas arqueológicas, históricas e literárias apresentem uma visão contrária, ainda há resistência em aceitá-la. E, essa resistência muitas vezes tem sido um grande entrave para uma divulgação de pesquisas sérias sobre os celtas. Além essas fantasias há outras como a das avós-druidas, que nada mais são do que invenções de ditos pesquisadores que baseiam suas investigações em uma visão distorcida e envolta em brumas das fontes clássicas, aliadas é claro, à sua relutância em admitir que seus argumentos, muitas vezes, nada mais são do que frutos de sua fértil imaginação.

Com relação ao pensamento de Bailly, esse tem fortes raízes na celtomania e no esoterismo francês. Durante o final do século XVIII, diversas publicações literárias popularizaram o interesse pela língua e religiosidade dos antigos habitantes da Gália. E, apesar do sucesso das coleções de antiquários pela Europa, a Arqueologia desta época ainda era muito insipiente em termos metodológicos, popularizando várias fantasias relacionadas aos Celtas: os grandes megálitos (como Carnac e Stonehenge) foram considerados de origem druídica. O sucesso destas hipóteses arqueológicas vão se somar a uma perspectiva nacionalista pela França, e regionalista na Grande Bretanha, especialmente no início do Oitocentos, onde a memória a respeito dos gauleses foi cristalizada sob a forma de culto do passado (Launay 1978: 11-18). Um dos mais emblemáticos livros desta tendência é Monuments celtiques, 1805, de Jacques Cambry (Cunliffe 1999: 12). Mas essa valorização extremada de um passado idealizado também teve diversos momentos anacrônicos, e um dos mais contundentes foi a idéia fantasiosa entre os escritores da primeira metade do século XIX de que os druidas e Celtas foram adoradores de uma única divindade (Ellis 2001: 132), nas palavras do próprio Bailly: “(…) Druidismo, nada esteve mais ausente dessa grande crença que o Politeísmo” (p. 144).

Em particular, um texto do escritor M. Édouard Fourmier obteve um certo êxito nos meios intelectuais franceses. Publicado originalmente na revista Siècle em 1847, e posteriormente num livro de 1859 (Le vieux neuf), o texto seria uma espécie de registro folclórico de antigas tradições dos bardos da Gália, mas na realidade possuía diversos anacronismos: monoteísmo, crença na reencarnação evolucionista, dogma dos druidas para com a caridade humana e divina, entre outros aspectos. O mesmo texto de Fourmier foi publicado no primeiro ano da Revista Espírita, de 1858, periódico editado por Allan Kardec, o codificador do Espiritismo. Kardec havia se interessado pelo fenômeno do mesmerismo e das mesas girantes a partir de 1854, e adotado esse nome que teria origem em uma suposta vida passada que teve como druida na Gália. Seu túmulo, datado de 1869, foi construído imitando um dólmen. As influências da celtomania no Espiritismo Kardecista ainda são objetos de poucos estudos, mas as conexões existiram.[4] O druida, neste caso, seria uma espécie de antecipador do modelo de pureza de conduta e dos valores morais idealizados para os religiosos do Oitocentos, transfigurados em um passado nacional de cunho heróico (a Gália). O fato é que a idéia de um monoteísmo druídico sobreviveu tanto no Espiritismo quanto no esoterismo francês. No primeiro caso, o exemplo mais famoso é o livro de Leon Denis, O gênio céltico e o mundo invisível, publicado em 1927.

Outra forte influência no livro de Bailly advém do esoterismo, a exemplo da citação: “herança dos antepassados, o Arquidruida que, ele próprio, havia recebido do grande sacerdote atlante” (p. 9). A imagem dos druidas como descendentes dos atlantes foi criada pela teosofista Helena Blavatsky, especialmente em A doutrina secreta, de 1888.[5] A obra de Bailly, desta maneira, foi influenciada diretamente pelas idéias existentes desde Fourmier, mas radicalizou ainda mais os elementos monoteístas, originando o que podemos considerar de druidismo cristão (ou cristianismo druídico), o ápice do anacronismo em escritores populares da França. Muitas obras esotéricas modernas ainda perpetuam fantasias e anacronismos advindos dos séculos passados,[6] prejudicando uma popularização de idéias corretas sobre os Celtas.

As editoras brasileiras, ao invés de publicarem qualquer material sem nenhum critério, poderiam traduzir obras clássicas ou de investigadores renomados, a exemplo das dezenas de livros de Miranda Green, ainda inéditos em nosso país. Apesar deste panorama editorial, os estudos acadêmicos sobre Celtas no Brasil estão aumentando qualitativa e quantitativamente, deixando cair por terra algumas afirmações preconceituosas daqueles que insistem em afirmar que os estudos celtas se constituem como mero apêndice dos estudos clássicos, germânicos e medievais. A busca por informações de maior qualidade pelo público leigo já é um sinal dessa transformação.

AGRADECIMENTOS: Ao professor Fillipo Olivieri, pelas informações preciosas sobre os Druidas e a Gália.

Notas

1. Para referenciais bibliográficos e acadêmicos sobre o druidismo, consultar: Lupi 2004: 70-79.

2. “Mas, pouco mais bem informados do que os antigos, os amantes do celtismo perpetuam as velhas confusões. É preciso citar esta frase de Malo Corret de La Tour d’Auvergne, nativo de Carhaix, extraída de seu ‘Origens Gaulesas’, aparecido no ano da ponte de Lodi, onde ele se mostra menos bom lingüista do que intrépido granadeiro: ‘Vários dos hinos gauleses… estão contidos num poema erse, chamo a Edda… Esse monumento rúnico… seria próprio para nos esclarecer sobre os Celtas…’ Ele visivelmente ignorava que a palavra ‘erse’ designa o dialeto gaélico da Escócia, que a Edda é uma coletânea de lendas escandinavas e que as runas constituem o antigo alfabeto germânico”. Launay 1978: 12.

3. O termo é muito popular em textos espanhóis, para contextualizar o cristianismo praticado em povos germânicos e celtas logo após a conversão: http://www.nuevorden.net/r_204.html; http://www.elamigobuster.c.telefonica.net/aurelius.htm Acessados em 18 de junho de 2007. 4 Em termos sócio-históricos, o Espiritismo kardecista foi uma influência de idéias do mesmerismo, celtomania, esoterismo, cristianismo e ciência popular do século XIX. Para algumas reflexões sobre as origens do Espiritismo, especialmente as influências anglo-americanas na formação das novas idéias religiosas e funerárias da França, consultar Cuchet 2007: 74-90.

5. Blavatsky rompeu com algumas tradições do período, por exemplo, creditando os monumentos megalíticos diretamente aos atlantes e não aos druidas e Celtas (Blavatsky 1888: vol. 2: 756). Outra idéia inovadora da teósofa no imaginário da época foi a de que os atlantes possuíam uma tecnologia muito sofisticada, como o uso de aeroplanos e inventos motorizados, uma idéia muito utilizada depois por videntes e escritores. Mas uma imagem sobre os druidas permaneceu: a de sacerdotes com alto grau de moralidade e ética. Para considerações acadêmicas sobre as relações do atlantismo com o esoterismo oitocentista consultar: Vivante & Imbelloni 1939: 175-186.

6. A exemplo do escritor Cláudio Crow Quintino, que entre outras considerações, perpetua representações idílicas e moralistas da sociedade Celta e do druidismo, herdeiras do esoterismo oitocentista, mas com alguns novos elementos da literatura New Age pós-Brumas de Avalon: “(…) a sociedade celta (…) vivia em harmonia com o mundo à sua volta (…) Entrevê-se nesse procedimento a elevação de consciência ecológica dos celtas (…) uma sociedade em que tanto homens quanto mulheres desfrutavam dos mesmos direitos e prerrogativas (…) sem Roma, teriam os celtas formado um império e se corrompido da mesma forma? É provável (…) Os celtas (…) não eram bárbaros iletrados, tampouco apreciadores de sanguinários sacrifícios humanos”. Quintino 2002: 23, 239, 240, 241; “Ser celta é viver intensamente, é vencer desafios, é cantar quando um ente querido morre (…) Ser celta é, no fim das contas, ser humano”. http://druidismo.com.br/m_ensaios-secelta.htm Acessado em 21 de junho de 2007.

Referências

BLAVATSKY, Helena Petrovna. The secret doctrine, 6 vol., 1888. Edição completa online: http://www.theosociety.org/pasadena/sd/sd-hp.htm#pt23 Acessado em 25 de junho de 2007.

CUCHET, Guillaume. Le retour des esprits, ou la naissance du spiritisme sous le second empire. Revue d’histoire moderne et contemporaine 54 (2), 2007, pp. 74-90.

CUNLIFFE, Barry. Celtomania and Nationalism: c.1700-1870. In: ______. The Ancient Celts. London: Penguin Books, 1999, pp. 11-16.

ELLIS, Peter Berresford. Druidas: el espíritu del mundo Celta. Madrid: Oberon, 2001.

GREGÓRIO, Sérgio Biagi. Druidismo e espiritismo, 1998. http://www.ceismael.com.br/artigo/artigo001.htm Acessado em 20 de junho de 2007.

LAUNAY, Olivier. A civilização Celta. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1978. Le spiritisme chez les druides, 1858. http://perso.orange.fr/charles.kempf/rs1858/18580402.htm Tradução impressa disponível em: A revista espírita: jornal de estudos psicológicos, 1858. São Paulo: Edicel, s.d.

LUPI, João. Os druidas. Brathair 4 (1), 2004, pp. 70-79. http://www.brathair.com/Revista/N7/druidas.pdf Acessado em 02 de maio de 2007.

QUINTINO, Claudio Crow. O livro da mitologia Celta: vivenciando os deuses e deusas ancestrais. São Paulo: Hi-Brasil, 2002.

VIVANTE, Armando & IMBELLONI, J. Libro de las Atlantidas. Buenos Aires: Jose Anesi, 1939.

Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/SJRP. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br


BAILY, Edmond. A lenda de diamante: Sete lendas do mundo celta. São Paulo: Madras, 2006. Resenha de: CAMPOS Luciana de. Druidismo Cristão? Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.7, n.1, p. 96-100, 2007. Acessar publicação original [DR]

Os príncipes da Irlanda. Livro 1: a saga de Dublin | Edward Rutherfurd

O romance escrito pelo autor inglês radicado há mais de dez anos nas terras irlandesas – Edward Rutherfurd que, ao longo de suas quase setecentas páginas procura recontar a história da formação tanto de Dublin como da Irlanda, possui certa base de pesquisa histórica, alguma atualização nas discussões acadêmicas e historiográficas, mas, preservou em sua narrativa, imagens estereotipadas e temas polêmicos.

As duas primeiras partes do romance, Dubh Linn e Tara, envolvem o passado céltico da ilha, enfatizando os aspectos religiosos e sociais. A religiosidade pagã é mostrada com respeito e reverência, porém, com certo referencial da literatura esotérica atual, possuindo pouca ou nenhuma semelhança com as narrativas míticas irlandesas, embora conserve alguns nomes próprios que aparecem em textos como “Deidre” e “Noise”, por exemplo. Na questão do sacerdócio, o autor, ao mesmo tempo em que se mostra conhecedor de bibliografia especializada – ao descrever os druidas portando roupas e acessórios de pássaros, portanto realizando práticas xamânicas (ver AldhouseGreen, 2005: 195-197) em outras passagens da obra acaba cometendo erros (a posição de druida era hereditária, p. 30) ou assumindo posições equivocadas (as druidesas tendo o mesmo poder dos druidas e a mesma tonsura, p. 84, ou mesmo tendo um poder maior que os reis, p. 87).

Sobre polêmicas envolvendo o papel das druidesas ver Ellis (2001: 105-130). Na realidade, em nenhuma sociedade antiga a mulher teve papel religioso predominante em relação ao masculino, sendo essa representação da sacerdotisa amplamente poderosa um referencial anacrônico. Em seu estudo The World of the Druids, Miranda Green apresenta uma análise das fontes clássicas onde são descritas as funções dos druidas. Nessa obra, Green menciona que existiam mulheres sábias que poderiam ser aliadas dos druidas, mas, em hipótese alguma, podem ser consideradas druidesas. O uso da tonsura druídica por mulheres como aparece descrita no romance é uma licença poética do autor que, dentro do universo ficcional tem liberdade para criar, mas jamais pode conferir um caráter verdadeiro a essas criações. Essas descrições parecem estar aliadas ao discurso esotérico atual que procura mostrar que as mulheres eram realmente poderosas e detentoras de um conhecimento que foi perdido e que precisa ser resgatado.

Outras situações envolvendo mulheres também apresentam problemas, como a suposta liberdade feminina em relação à escolha do casamento (p. 42), outro anacronismo muito comum nos escritos contemporâneos e esotéricos sobre os Celtas. Essa liberdade feminina descrita e defendida no romance de Rutherfurd pode ter sido influenciada pelo romance As brumas de Avalon, onde a autora Marion Zimmer Bradley confere às personagens femininas um grande poder de decisão e de autoridade interferindo nas decisões de governantes e reis e subordinando os druidas ao seu comando. Essa visão da mulher é extremamente fantasiosa, pois descreve um poder feminino que nunca existiu, transformando a vida das mulheres radicalmente para melhor, mostrando assim que, no passado, as sociedades realmente eram harmônicas porque viviam sob uma ginecocracia e, tudo se degradou depois que as mulheres foram destituídas. Essa visão equivocada é infelizmente hoje defendida por correntes esotéricas que instigam as mulheres modernas a buscarem àquela liberdade; utopia essa que seria um retrocesso para as mulheres. Essa reivindicação de um grande poder feminino que foi perdido, mas que ainda persiste em alguma regiões, é defendido ferozmente por alguns acadêmicos que insistem em atribuir um poder druídico a algumas mulheres da Armórica atual. Conhecidas como “avós druidas”, essas mulheres seriam as detentoras e guardiãs de todo o saber que fora extinto com a chegada do cristianismo. O mais apropriado a dizer dessas mulheres é que elas não são os receptáculos do conhecimento advindo dos druidas, mas sim guardiãs das tradições folclóricas que podem sim ter reminiscências da cultura celta. Afirmações como estas partindo de acadêmicos estão travestidas de uma militância semelhante ao discurso esotérico que querem provar a todo custo que a cultura celta ainda se mantém pura e viva como nos séculos que antecederam a cristianização e que cabe às mulheres estabelecer esse resgate no presente. Teses como essas figuram muito bem no campo da ficção, não devendo em hipótese alguma ser levadas a sério no campo da investigação científica comprometida com a análise séria e criteriosa das fontes.

O terceiro capítulo, São Patrício, envolve o processo de cristianização da região. Neste momento, o autor mostra-se bem atualizado, demonstrando que o conhecimento sobre este personagem histórico é controverso e muito polêmico. Rutherfurd constrói a narrativa seguindo a atual concepção de que Patrício não teria sido o primeiro evangelizador da Irlanda, sendo antecedido por várias comunidades e até bispos, que após sua morte foram transformados em seus discípulos. Ou seja, uma construção hagiográfica dos fatos históricos (p. 220). A estratégia de evangelização adotada, primeiro converter os druidas e membros importantes para depois o restante das comunidades, também está presente no romance. Mesmo o intenso conflito entre mosteiros rivais foi citado (p. 202), demonstrando que o escritor não adotou nenhuma concepção idealista da fé cristã. No romance há uma perfeita integração entre cristão e pagãos, principalmente por parte dos druidas convertidos que aceitam a nova religião de forma pacífica encontrando pontos em comum com a antiga crença e até exaltando o cristianismo como a verdadeira religião e que só ela é capaz de conduzir os homens ao único criador. Uma passagem interessante da narrativa apresenta um diálogo entre a personagem Deirdre e o druida convertido Larine, onde este relata à sua interlocutora que “(…) a Igreja Cristã contém todo o saber do mundo romano”. (p.166). Essa afirmação do personagem demonstra o cristianismo como possuidor de uma herança do mundo clássico, e, aqueles que se convertem têm acesso a toda verdade humana. Por essa passagem é possível perceber uma clara exaltação ao cristianismo e da figura do bispo Patrício em detrimento da antiga religião e do conhecimento druídico.

O processo de invasão e colonização dos Vikings foi desenvolvido nos capítulos 4 e 5. O contexto social foi bem descrito, mostrando tanto os conflitos entre noruegueses e irlandeses, quanto suas interações e casamentos interétnicos. A descrição da famosa batalha de Clontarf, envolvendo o também famoso líder Brian Boru, ao contrário, foi pouco explorada em termos de narrativa militar, sendo por isso muito decepcionante.

Os piores momentos da obra foram a permanência de dois estereótipos. O primeiro é referente aos Celtas usarem um crânio como taça para brinde em comemorações e festas (p. 34). Trata-se de uma imagem literária fantasiosa, criada pelos gregos e perpetuada pelo medievo em diante (Langer 2003: 32). O segundo estereótipo, mais grave ainda, é a caracterização dos guerreiros Vikings portando elmos com chifres (p. 191). Uma fantasia criada e popularizada no Oitocentos, totalmente desmentida pela pesquisa acadêmica (Langer 2002: 07).

O romance de Rutherfurd possui muito mais qualidades que as obras do escritor brasileiro Orlando Paes Filho (como a série Angus), que deixa explícito em suas linhas uma profunda militância cristã mostrando desprezo por outras crenças que não estejam subordinadas à Igreja Católica, fato esse que compromete em muito a narrativa. Desagradando àqueles que, admiradores da literatura de aventura, não professam a mesma religião defendida com tanta veemência nos romances de Paes Filho, que jamais pode ser comparado a outros romances históricos como os escritos por Margareth Yourcenar, Bernard Cornwell ou José Saramago, deve este livro ser lido com critério.[1]

Nota

1. Esta resenha contou com a colaboração do Prof. Dr. Johnni Langer, especialmente nos capítulos 4 e 5, referentes aos Vikings na história da Irlanda.

Referências

ALDHOUSE-GREEEN, Miranda & Stephen. The Quest for the Shaman: shapeshifters, sorcerers and spirit-healers of Ancient Europe. London: Thames & Hudson, 2005.

CORRÁIN, Donnchadh Ó. Ireland, Wales, Man, and the Hebrides. In: SAWYER, Peter (Org.). The Oxford Illustrated History of the Vikings. London: Oxford Press, 1997, pp. 83-109.

ELLIS, Peter Berresford. Mujeres druidas. In: Druidas: el espíritu del mundo Celta. Madrid: Oberon, 2001, pp. 105-130.

GREEN, Miranda. The World of the Druids. London: Ed. Thames and Hudson, 1997.

LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine 4, 2002, p. 07-09. Disponível em: http://www.abrem.org.br/viking.pdf Acessado em 20 de setembro de 2006.

_____ Mitos e verdades sobre um povo guerreiro. Universo fantástico da Idade Média 1 (1), 2003, pp. 31-33.

LANGER, Johnni & CAMPOS, Luciana de. Mini-curso: história da Irlanda Celta e Viking. Resumos, II Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais/VIII Ciclo de Estudos Antigos e Medievais. Assis: UNESP, 2006, pp. 58.

LUPI, João. Os druidas. Brathair 4 (1), 2004, pp. 70-7. Disponível em: www.brathair.com Acessado em 05 de Janeiro de 2007.

GUYONVARC’H, Christian-J. Magie, médicine et divination chez les Celtes. Paris: Éditions Payot, 1997.

OLIVIERI, Filippo Lourenço. A literatura irlandesa e as fontes clássicas e arqueológicas. Brathair 5 (1), 2005, pp. 45-55. Disponível em: www.brathair.com Acessado em 05 de Janeiro de 2007.

RAFTERY, Barry. Ireland: a world without the Romans. In: GREEN, Miranda J. (org.). The Celtic world. London: Routledge, 1996, pp. 636-653.

Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/SJRP. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br


RUTHERFURD, Edward. Os príncipes da Irlanda. Livro 1: a saga de Dublin. São Paulo: Record, 2006. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. A História da Irlanda, dos Celtas ao Medievo1. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.2, p. 122-124, 2006. Acessar publicação original [DR]

Sangue de gelo | Orlando Paes Filho

Desde o século XIX a literatura vem tomando a História como locus privilegiado de inspiração. O denominado romance histórico sempre encontrou sucesso entre os leitores ávidos de aventuras, em detrimento de narrativas puramente fantasiosas, a exemplo da ficção científica. Mas essa aproximação entre história e literatura nem sempre rendeu bons frutos: “A literatura apropriou-se tanto dos fatos quanto dos personagens históricos, modificando-os de maneira a, muitas vezes, perpetuar falsas representações” (Campos 2005: 106) [1]. Nesta perspectiva, os romances envolvendo os escandinavos da Era Viking algumas vezes mantiveram estereótipos e em outras ocasiões refletiram uma boa reconstituição sócio-histórica. No primeiro caso, temos a narrativa Vikingaliv (de Vinje 1860), repleta de moralismos cristãos e preconceitos, enquanto The long journey (Johannes Jensen 1924), Gryningsfolket (Jan Fridegard 1944), The long ships (Frans G. Bengtsson 1941-1945) incluem-se no segundo caso: ótimas reconstituições, unindo qualidade narrativa com as pesquisas acadêmicas disponíveis no período (Mjöberg 1980: 237-238; Lönnroth 1999: 247-249).

No primeiro caso, também podemos incluir o novo romance de tema nórdico do escritor Orlando Paes Filho, Sangue de gelo. Nesta obra, são narradas as aventuras da personagem Seawulf Yatlansson num período anterior ao romance Angus, o primeiro guerreiro. O escandinavo é convocado para resgatar a filha de um rei, capturada por um traficante de escravos, sob ordens do danês Ivar, o sem-ossos, durante o ano de 843 d.C. O estilo narrativo de Orlando Paes Filho não evoluiu em nada desde o primeiro romance publicado em 2003, com descrições de batalha, situações cotidianas, conflitos e rivalidades entre os nórdicos, que em muitos momentos tornam-se cansativas e até enfadonhas. A estrutura geral do livro é dividida entre o romance (p. 13 a 158), seguido de um anexo e de muitas ilustrações (p. 159 a 253), aqui residindo um dos seus primeiros pontos fracos: mesmo para os fãs da série, ele mostra-se decepcionante, visto que entre as 253 páginas do livro, somente 88 páginas de texto são dedicadas à narrativa romanceada em si. Para os leitores que já possuem Angus, o primeiro guerreiro, os livros Vikings e Artur da coleção universo Angus, a decepção é ainda maior: praticamente todas as ilustrações de Sangue de gelo são repetidas destas três edições. O autor parece não estar interessado numa obra qualitativa e sim, em muito lucro e expansão comercial de seu produto. Isso é nítido quando analisamos a obra de um ponto de vista acadêmico.

Na contra-capa, Paes afirma que este romance em questão foi produto de uma longa pesquisa: “Ao longo desses anos, Orlando trabalhou incessantemente na pesquisa histórica e religiosa”. Mas os erros textuais e iconográficos apontam para uma outra conclusão. Por exemplo, na descrição do guerreiro chamado Hagarth, este aparece portando “um machado duplo nas mãos” (p. 25). Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento em armamentos medievais sabe que os nórdicos empregavam somente machados de uma lâmina, ao qual o próprio escritor faz referência em ilustração do anexo (p. 240). Esse dado pode ser obtido mesmo em publicações traduzidas ao português (como Graham-Campbell 1997: 54; para maiores detalhes ver Griffith 1995: 176-177). Infelizmente, o imaginário artístico é que tratou de popularizar o estereótipo do imenso guerreiro Viking portando machados de dois gumes descomunais – vide a ilustração Duelo entre Seawulf e Wulfgar (Paes Filho 2003: 35) e Ataque surpresa (idem: 340).

Outro estereótipo é a suposta presença de uma bússola magnética primitiva entre os escandinavos, a exemplo da popularizada pelo filme Vikings, os conquistadores, de 1958: “Seawulf confirmou a rota, consultando sua pedra mágica. Se um pedaço de ferro fosse nela esfregado, ele apontaria para o norte” (p. 70). Na realidade, a Arqueologia nunca confirmou este tipo de material e sim, de uma bússola solar (gnômon), que seria um disco de madeira cujo ângulo da sombra determinaria a latitude e o norte geográfico. Vestígios deste equipamento foram descobertos nos anos 1960 na Groelândia e mais recentemente no Báltico, e reconstituições imagéticas podem ser vislumbradas no Brasil até mesmo em ilustrações de livros paradidáticos (como Brochard 1996: 47).

Alguns erros históricos também estão presentes no romance. Na descrição da alimentação durante as travessias marítimas, estas são basicamente mingau de aveia (p. 101). Na realidade, este era um alimento específico para a vida cotidiana em terra, durante todo o ano (Graham-Campbell 2001: 123-124) e que não era útil para a vida no mar, visto que a umidade poderia facilmente estragá-lo: “a vida a bordo, eu já comentei, não devia ser fácil, em particular no caso de grandes travessias. A comida – peixe seco, carne seca e salgada, manteiga salgada, algas secas, pão torrado, reserva de água potável – era escassa” (Boyer 2000: 117).

Algumas terminologias estão equivocadas como: “uma armada de nórdicos poderia ser facilmente confundida com uma frota de daneses” (p. 91). Na realidade, tanto dinamarqueses (na Era Viking: Danes, Heruls), quanto suecos (Gottar, Svear) e noruegueses (Raumariki, Granii, Aetelrugi, Arothi e Raumi) são indistintamente povos nórdicos (Haywood 1995: 25).

Alguns erros com imagens sugerem uma edição publicada com muita pressa e sem nenhum critério de revisão. Por exemplo, as notas 32, 33, 34, 40 e 41 (referindo-se às ilhas bálticas de Öland e Gotland) remetem ao mapa inserido na página 164 (que contém apenas a Dinamarca e sul da Suécia), mas na realidade, o correto seria os mapas das páginas 167 e 168 (com detalhes do Báltico sueco).

Outro erro, muito pior se levarmos em conta a credibilidade do leitor e fã da série, é a utilização da mesma imagem para diferentes cidades nórdicas. Entre as páginas 112- 113, a ilustração refere-se à“cidade mercantil de Paviken” (situada no oeste de Gotland), e na página 244, a mesma ilustração (em tamanho diminuído) é descrita como “cidade de Dublin” (capital da Irlanda). A imagem foi anteriormente utilizada também nos livros Angus: o primeiro guerreiro (p. 252) e Vikings (Universo Angus, p. 29) para representar Dublin. Para uma análise crítica dos erros da representação desta cidade viking pela equipe do livro, consultar Langer (2006a).

Desta maneira, o ponto mais fraco do livro acaba sendo mesmo as imagens. Entre as poucas ilustrações inéditas inseridas no romance, encontramos a proliferação de estereótipos criados durante o século XIX: Odin (p. 14), apresenta a divindade nórdica com uma estética advinda das óperas germânicas, com um machado de guerra imenso (o correto seria uma lança), cota de malha, um capacete com asas laterais (outra fantasia oitocentista) e pior, com os dois olhos intactos (ele perdeu um segundo as Eddas); a ilustração Jovem Seawulf (p. 36) repete a fantasia do capacete com asas, assim como a do deus Thór (p. 182). A fraca inspiração e qualidade artística da equipe de ilustradores é demonstrada pela reutilização de imagens clássicas: Guerreiros vikings (p. 50), repete fielmente a pintura de N. Wyeth The first Cargo, de 1910, mas deixando os guerreiros do primeiro plano com cabelos loiros. Trata-se de uma representação também estereotipada, principalmente pelo uso dos capacetes com chifres, algo totalmente em desuso na arte contemporânea com temática escandinava e, de maneira muito estranha, incluída em uma obra que se diz realizada após “anos de pesquisa”.[2] Em outra ilustração (Funeral de Thorsfastr, p. 44) percebemos um plágio de má qualidade da pintura The Viking funeral, do britânico Franck Dicksee, 1893. Aliás, no primeiro volume da série Angus, esta mesma imagem recebeu o título de Funeral de Wulfgar (p. 40), mostrando um reaproveitamento iconográfico também para outras ilustrações: Chegada de Seawulf em Cait (p. 27, em Angus), tornou-se Batalha contra vikings daneses (p. 83, em Sangue de gelo); Armada de Seawulf (p. 28) transforma-se em Desembarque em Öland (p. 98); Sítio de York (p. 90), torna-se Batalha contra Ivar (p. 140); Ataque a Cait (p. 30), é rebatizada de Batalha contra saxões (p. 32); Armada de Angus (p. 272) vira Rothger lidera o desembarque (p. 136). Economia de artistas gráficos? Ou um recurso para diminuir despesas e ter mais lucro?

Acreditamos que a literatura possui grande importância para a divulgação dos estudos acadêmicos: “os romances têm o poder de provocar nos leitores o interesse e a busca por uma perspectiva científica dos fatos históricos” (Campos 2005: 106). Mas esse não é o caso de Sangue de gelo e da coleção Angus [3], que procura através de uma linguagem e pesquisa medíocre atrair somente o interesse de adolescentes fãs de RPG, perpetuando estereótipos e falsas imagens sobre Idade Média. Nosso país merece a tradução de romances sobre nórdicos medievais com maior qualidade literária, como as séries do espanhol Manuel Velasco e do sueco Frans Bengtsson, além do recente O último reino, de Bernard Cornwell (publicado no Brasil pela Record), que com certeza vão ampliar muito mais o conhecimento dos interessados na fascinante Era Viking.

Notas

1. Mas as fronteiras entre história e literatura são muito nítidas, sendo a primeira uma ciência e a segunda uma forma de manifestação artística: “O historiador copia o que aconteceu; o poeta, o que poderia ter acontecido” (Teixeira 2004: 98); “Desde Aristóteles, história e ficção se avizinham, mas os compromissos de uma e outra são distintos. Da ficção, se espera o uso sistemático da imaginação, e, no caso do romance, em geral um compromisso com a verossimilhança; da história, se pretende a verdade” (Pimentel Pinto 2006: 98).

2. Para uma análise do estereótipo dos Vikings portando chifres, ver Langer (2002: 6-9, 2005: 89).

3. Para detalhes de outros erros históricos, anacronismos e estereótipos na coleção Angus, consultar Langer (2003: 67-70). Para uma análise dos referenciais de moralidade cristã do historiador Ricardo da Costa na obra paradidática Vikings (coleção Universo Angus), consultar Langer (2006a, 2006b).

Referências

BOYER, Régis. La vida en el barco. In: _____ La vida cotidiana de los vikingos (800- 1050). Barcelona: Hachette, 2000.

BROCHARD, Philippe & KRÄHENBÜL, Eddy. Os Vikings, senhores dos mares. São Paulo: Editora Augustus, 1996.

CAMPOS, Luciana de. Entre glórias muitas e grandes feitos de heróis. História Viva 23, 2005, p. 106.

CORNWELL, Bernard. O último reino (Primeiro volume da trilogia Crônicas Saxônicas). São Paulo: Editora Record, 2006.

GRAHAM-CAMPBELL, James. Os viquingues: origens da cultura escandinava, vol. I. Madrid: Del Prado, 1997.

_____ (org.). The Viking World. London: Frances Lincoln, 2001.

GRIFFITH, Paddy. The Viking Art of War. London: Greenhill Books, 1995.

HAYWOOD, John. Historical Atlas of the Vikings. London: Penguin, 1995.

LANGER, Johnni. The origin of imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, Centre for Baltic Studies/Gotland University, n. 4, 2002, p. 6-9

_____ Resenha de Angus: o primeiro guerreiro, de Orlando Paes Filho. Brathair 3 (1), 2003, p. 67-70. www.brathair.com Acessado em 31 de outubro de 2006.

_____ O perigo dos estereótipos. História Viva 18, 2005, p. 98.

_____ Os nórdicos e a academia: resenha de Vikings (coleção Universo Angus), parte I e II. Necult: Nordeste & Cultura, 2006a. www.necult.com Acessado em 31 de outubro de 2006.

_____ O historiador e o julgamento: respostas ao professor Ricardo da Costa. Necult: Nordeste & Cultura, 2006b. www.necult.com . Acessado em 31 de outubro de 2006.

LÖNNROTH, Lars. The Vikings in History and legend. In: SAWYER, Peter (ed.). The Oxford Illustrated History of the Vikings. Oxford: Oxford University Press, 1999.

MJÖBERG, Jöran. Romanticism and revival. In: WILSON, David M. The Northern World: the history and heritage of Northern Europe: AD 400-1100. New York: Harry N. Abrams, 1980.

PAES FILHO, Orlando. Angus: o primeiro guerreiro. São Paulo: Arxjovem, 2003.

PIMENTEL PINTO, Júlio. De história e de ficção. História Viva 29, 2006, p. 98.

TEIXEIRA, Ivan. Literatura e História. História Viva 4, 2004, p. 98.

Johnni Langer – Pós-doutorando em História pela USP bolsista da FAPESP. E-mail: johnnilanger@yahoo.com.br


PAES FILHO, Orlando. Sangue de gelo (Coleção Angus Saga). São Paulo: Prestígio editorial, 2006. Resenha de: LANGER, Johnni. A Volta do Romance Viking à Brasileira. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.2, p. 125-128, 2006. Acessar publicação original [DR]

La Geste du Prince Igor | Christiane Pighetti

Obra destinada ao grande público, apresentada e traduzida do russo para o francês com grande maestria, por Cristiane Piqhetti.

Trata-se de um dos documentos mais importantes da literatura medieval Ucraniana, escrito em eslavo eclesiástico por volta de 1185, o poema traz referências a épocas muito mais remotas, tornando-se uma importante fonte para o estudo deste período.

Os documentos mais antigos da literatura ucraniana surgidos em tempo do esplendor político e cultural do Estado de Kiev e do Estado da Galícia e Volínia mostram grande riqueza de formas e possuem elevado valor artístico. São marcados pelo espírito heróico de uma nação que, embora ainda se alimente de antigas tradições eslavas pagãs, com orgulho toma consciência da nova fé cristã.

O original do “Canto sobre a campanha de Igor”, durante vários séculos ficou desaparecido, sendo redescoberto em 1795 pelo Barão Alexij Mussin Púshkin, sendo feita uma cópia com a qual foi presenteada a imperatriz Catarina II. O Barão Púshkin logo se deu conta do valor da obra, traduzindo-o para o russo da época, e tratando de fazer uma edição tipográfica deste documento. Contou com a colaboração dos historiógrafos Malinovski e Ramenski, editando a obra em Moscou, em 1800.

Em 1812, o incêndio ocorrido durante a ocupação Napoleônica em Moscou, destruiu a biblioteca Púshkin, desaparecendo para sempre o manuscrito. Assim para fins de estudo existe somente a copia oferecida a Catarina II, reescrita várias vezes, com todas as implicações e decorrências desta transmissão.

Porém as referências ao “Slovo” em outros documentos da época, atestam sua autenticidade, corroborada por Roman Jakobson ainda em 1948. Atualmente não há ninguém que coloque sob suspeita a certeza de que a obra é de fato do séc. XII e reflete acontecimentos históricos reais.

Trata-se de uma obra que registra o ápice da rica criação literária dos tempos do Principado da Rus´ de Kiev, um paralelo dos poemas épicos do mundo Romano-Greco-Escandinavo, com quem a Ucrânia de então, mantinha estreitas relações.

O poema “Canto sobre a campanha de Igor”, extravasa os limites da literatura Ucraniana, para se tornar uma obra prima da cultura eslava oriental rutena, e um dos tesouros da literatura universal.

Em meados do séc. XI a poderosa e terrível tribo dos cumanos, governada por Khans, invadiu a Ucrânia, denominada então Rutênia, pelas fronteiras do sudeste tendo ocupado dentro de pouco tempo as regiões dos rios Volga e Don, do Mar de Azov e do Mar Negro até o Danúbio.

Em 1185, os príncipes Igor Sviatoslavytch, seu filho Volodymyr Ihorevytch, e o filho menor Oleg Ihorevytch, seu irmão Vsévolod e seu sobrinho Sviatoslaw, empreenderam uma expedição contra os cumanos que eram chefiados pelos Khans Kontchák e Gzá. A expedição terminou em desastre total. Os príncipes rutenos foram cercados, derrotados e caíram prisioneiros. Somente Igor teve a sorte de escapar da prisão. Todos os outros com seus exércitos jamais recuperaram a liberdade, com exceção de Volodynyr que se casou com a filha do Khan Kontchák e voltou à Ucrânia em 1187.

Esta expedição contra os cumanos serviu de tema para a epopéia heróica do “Canto sobre a campanha de Igor”, escrita – segundo novas pesquisas – no séc. XIII por um autor anônimo.

“La Geste du Prince Igor” é um poema heróico, cavalheiresco, fundamentado na honra e na fé, que são os dois grandes princípios da sociedade medieval.

Este poema atinge o nível da genialidade da criação literária. Ele retrata a própria alma do povo ucraniano em estado de permanente angústia, frente a constante ameaça da perda da liberdade, como também atinge o âmago do ser humano em suas complexas relações com as forças transcendentais da natureza e do universo.

Oksana Boruszenko – Universidade Federal do Paraná e Universidade de Kiev. E-mail: boruszenko@yahoo.com.br


PIGHETTI, Christiane (Trad.). La Geste du Prince Igor. Paris: La Différence, 2005. Resenha de: BORUSZENKO, Oksana. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 42-43, 2006. Acessar publicação original [DR]

Thor: filho de Asgard | Geraldo Cantarino

Essa fantástica ilha do Brasil, tão estreitamente vinculada a toda mitologia de São Brandão, pertence, com esta à antiga tradição céltica preservada até os dias de hoje. Richard Henning.

Nos bancos escolares, aprendemos que o nome do nosso país, Brasil advém da abundância de determinada madeira existente no litoral, chamada pau-brasil onde se extraia um corante vermelho de grande valor comercial na Europa que entrava no Renascimento, mas ainda respirava ares medievais. Este corante púrpura, como nos esclarece Sérgio Buarque de Holanda na clássica obra da historiografia brasileira Visão do Paraíso, “desde o século IX era conhecido no comércio árabe e italiano sob os nomes de Brasil e verzino” (Holanda, 1994: 173). Desde o Oitocentos, alguns estudos já demonstravam que o nome Brasil não proveio da cor da madeira em brasa, mas teria raízes mais antigas, provenientes de mitos celtas. Constante na cartografia européia dos séculos XIII ao XVI, a fabulosa ilha de Hy-Brazil possivelmente foi inspiração para que o imaginário português preterisse esse nome aos oficiais Vera e Santa Cruz, de caráter mais político e religioso: “primeiro houve o nome, depois o lugar que foi nomeado” (Souza, 2004: 35). As denominações burocráticas cederam lugar à terminologia mítica, apesar de posteriormente alguns autores coloniais acreditarem que este nome teria advindo da madeira homônima, um engano que se perpetua até nossos dias. Durante os anos 1940 a 1960, alguns estudos historiográficos fizeram levantamentos preliminares e algumas conclusões sobre as raízes deste passado filológico (a exemplo de Sérgio Buarque de Holanda e Gustavo Barroso), acabaram não criando outras pesquisas ou influenciando novas perspectivas. Em 2000, em um pequeno verbete para o livro Dicionário do Brasil colonial, o historiador Ronaldo Vainfas afirmou que o vocábulo Brasil teria provindo do imaginário europeu pré-cabralino e que teria sido utilizado pelos portugueses como mito geopolítico. Desta maneira, as referências sobre o tema nunca passaram de pequenas citações ou estudos rápidos, não originando dissertações ou teses, nem mesmo artigos mais detalhados ou a busca de fontes confiáveis nos arquivos europeus.

É neste contexto que foi publicado o livro Uma ilha chamada Brasil, do jornalista Gerlado Cantarino. Aproveitando-se da falta de interesse genérico dos acadêmicos e dentro de uma perspectiva estritamente comercial, Cantarino publicou uma obra que peca pela linguagem extremamente coloquial, pela falta de seriedade documental e pelo grande apelo esotérico e mesmo fantasioso de seu autor.2 Mitos tradicionais do Ocidente, como a Atlântida, a presença de fenícios e vikings na América do Sul3 , entre outros, foram tratados como fatos ou possibilidades, em detrimento da “verdade oficial” mantida pela academia, num tom verdadeiramente conspiratório especialmente pelos antigos escritores de 1850 a 1940. Uma ideologia típica desde o século XIX: tentar demonstrar o verdadeiro passado nacional, originando o que muitos denominam de “Arqueologia Fantástica” ou “Neodifusionismo”, teoria que procurou demonstrar o contato transoceânico entre os europeus e americanos antes das viagens de Colombo e Cabral. Reciclando antigas narrativas de autores coloniais, estes teóricos afirmavam que diversos povos, entre eles hebreus, africanos, escandinavos e fenícios, haviam estado no Brasil e América do Sul há vários séculos. Para isso baseavam-se em supostas inscrições misteriosas encontradas nas florestas ou sertões (na realidade, arte pré-histórica dos indígenas) ou enviadas para os grandes centros (como as famosas inscrições fenícias, que com o tempo provaram ser apenas falsificações)4. Com o início do século XX, todas estas teorias demonstraram ser apenas idéias fantasiosas, sem comprovações arqueológicas e carregadas de preconceito, racismo e intolerância pelo verdadeiro passado brasileiro, o povoamento indígena. A citação de Cantarino do livro Antiga História do Brasil, de Ludwig Schwennhagen – onde afirmava que o sítio de “7 Cidades” no Piauí seria o vestígio de uma antiga cidade fenícia, na realidade, formações geológicas naturais – beira simplesmente o ridículo (Cantarino, 2005: 85-86). A reiteração da famosa pedra da Paraíba (2005: 92-93), supostamente encontrada em 1872, já foi estudada por vários especialistas, tanto epigrafistas quanto historiadores, que demonstraram ser uma fraude realizada no Brasil Imperial. Até nossos dias, existem diversos escritores, quadrinistas e roteiristas de cinema que empregam essas idéias neodifusionistas, procurando convencer o grande público de que este passado mítico realmente existiu. Infelizmente, o jornalista Geraldo Cantarino perpetua esse procedimento, criando obstáculos para que um estudo realmente sério e acadêmico possa ser efetuado sobre as origens celto-irlandesas do nome do nosso país, esse sim passível de estudo e que infelizmente foi tema apenas de abordagens parciais. O caminho para pesquisas futuras está aberto, mas resta o cuidado para os investigadores não serem atraídos para referências enganadoras e sem qualidade, a exemplo do livro Uma ilha chamada Brasil.

O jornalista Geraldo Cantarino se dispôs a desenvolver uma extensa pesquisa sobre as origens celtas do nome Brasil e, como autor da pós-modernidade tanto suas leituras e pesquisas mereciam ser mais densas e profundas como exige o período em questão – há menções à obra de autores consagrados, como Capistrano de Abreu e Gustavo Barroso – e não se fixar em autores praticamente desconhecidos e a panfletos como citados no primeiro capítulo da obra: “(…) e encontrei-me, outra vez, com aunt Caitlín que havia feito uma cópia do material distribuído na palestra de Tralee” (Cantarino, 2004: 19) esquecendo-se de pesquisas já consolidadas como a realizada nos anos 1950 por Sérgio Buarque de Holanda e que se mantém atuais.

Logo no prefácio de Uma ilha chamada Brasil, encontramos alguns problemas que denotam o desconhecimento do autor ao tratar do tema. Na página 13, o autor escreve: “(…)observatórios lunares abandonados que, embora inativos, repousam em isolamento esplêndido ao longo do litoral ocidental celta” (Cantarino, 2004: 13 – grifo nosso). Há aqui uma informação equivocada, que o leitor desconhecendo que os celtas foram povos que habitavam a Europa desde a Ásia Menor (Galácia) até a Irlanda, podem acreditar que só este último país foi um reduto celta, como, atualmente muito esotéricos querem acreditar e, pior ainda, difundir essa falsa idéia. Um outro equívoco ainda relacionado à Irlanda diz que o Brasil deve seu nome à Irlanda (Cantarino, 2004: 14). Existe uma confusão feita pelo autor, pois este nome não está associado ao folclore irlandês, mas sim aos celtas que originalmente habitaram aquele país. Mais grave ainda é observar que estas informações constantes no prefácio da obra foram escritas por um autor escocês!

A narrativa de Cantarino vai se construindo de forma extremamente informal e jocosa utilizando a primeira pessoa do singular, transparecendo que o autor está escrevendo um diário e tratando o leitor como um infante recém alfabetizado, que descobre o prazer de descobrir um novo texto. Há ainda um tom “memorialista” na narrativa extremamente parcial e não condizente com a linguagem jornalística que o autor parece quer empregar em sua obra. Ainda no primeiro capítulo há uma menção aos irlandeses que durante o século XIX migraram para o Brasil fugindo da grande fome. Este episódio foi tema de um artigo intitulado “Cego furor homicida”, escrito pelo editor Christopher Burden e publicado na revista Nossa História. O artigo em questão é muito mais completo e elucidativo do que a descrição de Cantarino e apresenta qual foi a verdadeira razão da presença irlandesa nas terras brasileiras durante o Primeiro Império.

A narrativa que em primeira instância propunha-se a apresentar aos leitores uma abordagem séria das origens celto-irlandesas do nome Brasil vai-se construindo como obra de ficção e não como narrativa jornalística comprometida com a realidade e nem como um relato histórico sério já que o autor utiliza-se de construções condizentes com as narrativas ficcionais:

“Zarpei rumo ao desconhecido. (…) Desviei da correnteza por onde passa a história oficial para percorrer antigos atalhos e rotas marginais, inclusive aquelas por onde fluem as águas mágicas do realismo fantástico. Pelo caminho, fadas, semideuses e figuras mitológicas surgiram na minha frente em aparições virtuais” (Cantarino: 2004, 37).

A jocosidade utilizada pelo autor para tratar de temas que são fontes de estudos como o realismo fantástico e a mitologia de pesquisadores como Fraçoise Le Roux e Christian Guyonvarc’h que dedicaram suas pesquisas para comporem trabalhos detalhados e extremamente sérios sobre a mitologia celta aqui parecem serem estes temas daqueles que insistem em descobrir uma outra verdade que parece se apresentar somente aos esotéricos. Cantarino, a exemplo da máxima da célebre série de TV dos anos 1990 “Arquivo X”, busca a verdade lá fora e não a aprofunda nas obras sérias dedicadas ao tema e nem apresenta novas perspectivas realmente comprometidas com a cientificidade. A descrição apresentada da ilha de Hy-Brasil não aparece como a de um paraíso, mas sim de um lugar recorrente nas narrativas infantis:

“É a morada escolhida por fadas, dragões e deuses aposentados. Ou, ainda, duendes, gnomos e antigas tribos, quando não mais encontram um lugar para ficar no mundo contemporâneo” (Cantarino, 2004: 43).

Afirmando que Hy-Brasil é o local escolhido pelos “deuses aposentados” o autor parece, mais uma vez caracterizar a ilha mítica como um objeto a ser explorado apenas pela ficção não merecendo ser o foco de estudo de historiadores e mitólogos, por exemplo.

Mas, infelizmente os equívocos do autor não transparecem apenas nas análises e interpretações sobre as origens celtas do nome Brasil, pois também ele transmite ao leitor dados errados sobre pesquisadores quando afirma ser paulista a arqueóloga Niède Guidon (Cantarino, 2004: 73). A pesquisadora em questão é francesa e trabalha no Brasil há muitos anos realizando pesquisas no Parque Nacional da Serra da Capivara no Piauí onde luta bravamente contra as intempéries e os parcos recursos governamentais para manter um dos grandes legados do homem pré-histórico brasileiro.

Uma idiossincrasia cometida pelo autor é denominar celta como raça: “(…) definir o que passou a ser chamado Raça Celta” (Cantarino, 2004: 112). Do ponto de vista da Antropologia moderna, o conceito de raças está ultrapassado, só existe uma raça há cerca de 30 mil anos na Terra, o Homo sapiens sapiens. Os celtas podem ser definidos por um conceito etno-lingüístico, como um povo falante de uma mesma língua indo-européia.

O capítulo seis do livro, intitulado “Significado religioso”, se detém a uma longa descrição de narrativas das viagens de São Brandão e sua busca pelo Paraíso. O autor ao apresentar versões da Navigatio não procura analisá-las em profundidade, apresentando ao leitor as impressões sobre a busca do paraíso de Hy-Brasil que foram construídas por poetas desde a Idade Média até o século XIX. Não há análise ou discussão densa acerca das narrativas destas viagens, somente traduções livres e pequenas conclusões inócuas sobre a busca do paraíso terreal, seja pelo santo ou por aqueles que enveredam na leitura.

Há um capítulo dedicado as representações de Hy-Brasil nas diversas artes como sugere o título “Arte e Literatura” onde o autor mais uma vez apresenta uma relação da várias representações que a busca da ilha paradisíaca recebeu desde da Idade Média até a contemporaneidade. Especificamente em um parágrafo Cantarino traça um paralelo entre a ilha de Avalon que, segundo Jean Markale trata-se de “uma ilha maravilhosa da tradição céltica, uma espécie de terra das bem-aventuranças onde há maçãs que dão frutos o ano todo e que explica seu nome derivado de uma palavra galesa e bretã, aval, maçã” (Markale, 1999: 29). O simbolismo da “Ilha das Maçãs” ou o paraíso celta foi bem analisado no artigo “Significados medievais da maçã: fruto proibido, fonte do conhecimento, ilha paradisíaca” de Adriana Zierer. Neste texto, a pesquisadora de estudos célticos faz não só uma análise pormenorizada do simbolismo da maçã nas artes plásticas e na literatura como também as representações de Avalon em diversas narrativas de origem celta e, principalmente no mito arturiano.

O tema das origens celtas do nome Brasil é, ainda, infelizmente pouco explorado por pesquisadores brasileiros, sejam eles historiadores ou críticos literários e, este desinteresse muitas vezes abre precedentes para que diletantes façam pesquisas com qualidade sofrível ou, pior sem qualidade alguma e a divulguem e perpetuem estereótipos e imagens fantasiosas. A obra em questão enquadra-se nesta descrição. Há ainda muito a ser pesquisado tanto sobre as origens celtas do nome da Terra brasilis como das raízes medievais que estão presentes e impregnadas na cultura popular e no cotidiano deste os tempos da colônia e que são constantemente desprezados pelos pesquisadores, que parecem ainda relutar em aceitar que somos fruto de uma mentalidade medieval.

Geraldo Cantarino em sua pesquisa pecou pelo uso excessivo da linguagem coloquial que é inadmissível numa pesquisa mesmo que essa seja de popularização. As descrições tornam a obra ainda mais enfadonha e denotam falta de critério por parte do autor na escolha das suas fontes. Esperamos que os estudantes universitários que ora iniciam suas pesquisas nos estudos celtas (que segundo alguns somente poucos escolhidos merecem realizá-los, o que ao nosso ver é um erro) não se inspirem nesta obra e muito menos a tomem como referência.

Notas

1. A presente resenha recebeu a colaboração do Prof. Dr. Johnni Langer (PD-USP, bolsista da FAPESP). Conceitos e idéias integrantes do texto são de co-autoria do colaborador.

2. Outro autor que recentemente retoma as teorias neo-difusionistas é o explorador norte-americano Jim Woodman, em duas obras: Ancient New World: A Journey Across Medieval América. Xlibris Corporation, 2001 e The ancient inscriptions of Paraguay. Epigraphic Societu, 1989. No primeiro livro (pp. 75-82), o pesquisador analisa o mito da ilha Hy-Brazil e no segundo, supostas inscrições existentes no Paraguai que ele interpreta como sendo de origem Celta. Por sua vez, o francês Jacques de Mahieu interpretava as ditas inscrições como sendo de origem Viking. Na realidade, elas têm origem pré-histórica indígena, sendo, portanto, fantasiosa qualquer outra interpretação. Em uma série de fotografias em um site que atualmente não está mais disponível em conteúdo pela internet (Arthur Franco: A Idade das Luzes e os Megalitos de HyBrasil), o esotérico gaúcho Arthur Franco tentava demonstrar que no Rio Grande do Sul encontravam-se diversos megálitos gigantescos, alguns com até 100 metros de altura, supostamente realizados pelos Celtas em incursões pelo Brasil. Pelo exame nas fotografias, percebemos que se tratavam de formações geológicas naturais, tomadas como artificiais. No Brasil e na América, existem casos de megalitismo, mas de origem indígena com dimensões modestas, sem nenhuma relação com o de origem européia e muito menos Carnac e Stonehenge. Este autor também publicou uma obra de cunho esotérica com conteúdo parcialmente disponível na internet: A idade das luzes. Porto Alegre: Editora Wodan, 1997 (Disponível em: http://www.bibliotecavirtual.pro.br/historia/hebreus4.html Acessado em 20 de setembro de 2006). Outro pesquisador brasileiro que defende a presença Celta no passado brasileiro é Luiz Caldas Tibiriçá, sem nenhuma comprovação científica por parte da comunidade acadêmica. Sobre suas pesquisas ver: http://www.terra.com.br/istoegente/50/testemunha/index.htm . Acessado em 20 de setembro de 2006. A internet ainda disponibiliza vários textos sobre o encontro de inscrições Celtas (ogâmicas) na América, todas sem nenhuma viabilidade científica: Irish in América before Columbus http://www.aislingmagazine.com/aislingmagazine/articles/TAM17/Columbus.html Acessado em 20 de setembro de 2006.

3. Para considerações sobre os Vikings na América do Norte, ver Langer, 2006: 28-30; sobre os navegantes nórdicos no Brasil pré-cabralino, do qual não ocorre nenhuma evidência científica até nossos dias, vide Langer, 2004: 22-25.

4. A respeito da antiga teoria de que navegadores fenícios e hebreus teriam estado no Brasil e do qual não existem comprovações arqueológicas, ver os estudos de Langer, 2002: 87-108; 2003: 75-102. Sobre os conceitos racistas, eurocêntricos e preconceituosos destas antigas teorias, ver Langer, 2001: 222-228.

Referências

BARROSO, Gustavo. O Brasil na lenda e na cartografia antiga. São Paulo: GRD, 2000, p. 97-155.

BURDEN, Christopher. Cego furor homicida. Nossa História 2 (18), 2005.

CARRARA, Angelo Alves. O mistério das inscrições fenícias. Nossa História 1 (7), 2004.

FUNARI, Pedro Abreu. A origem do nome Brasil. Ultratextos: leitura e conhecimento. Disponível em: http://www.ultratextos.com.br/?template=ultratextos&link=exibetexto&id=1170. Acessado em 20 de setembro de 2006.

HOLLANDA, Sérgio Buarque. Visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 173.

JOFFILY, Geraldo. A inscrição fenícia da Paraíba. Revista de História, USP, 46, 1973.

LANGER, Johnni. As cidades imaginárias do Brasil. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, 1997.

_____ Ruínas e Mitos: a Arqueologia no Brasil Imperial. Tese de doutorado em História pela UFPR, Curitiba, 2001.

_____ Signos petrificados e civilização: a inscrição fenícia da Paraíba e outras questões arqueológicas no Brasil Imperial. Pós-História 10, 2002.

_____ Ciência e imaginação: a pedra da Gávea e a Arqueologia no Brasil Imperial. Habitus 1 (1), 2003.

_____ Vikings no Brasil? Nossa História 1 (3), 2004.

_____ Vikings na América. Desvendando a História 2 (10), 2006.

_____ O porquê de se estudar Celtas e Vikings no Brasil. Necult, 08/07/2006. Disponível em: www.necult.com Acessado em 20 de setembro de 2006.

MAGASICH-AIROLA, Jorge & DE BEER, Jean-Marc. América Mágica. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 2001.

MARKALE, Jean. Nouveau dictionnaire de mythologie celtique. Paris: Pygmalion, 1999.

SOUZA, Laura de Mello e. O nome do Brasil. Nossa História 1 (6), 2004.

VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 81.

ZIERER, Adriana. Significados medievais da maçã: fruto proibido, fonte do conhecimento, ilha paradisíaca. Mirabilia 1, 2001. Disponível em: www.revistamirabilia.com Acessado em 20 de setembro de 2006.

Luciana de Campos – Professora Mestre. Doutoranda em Letras, UNESP1 fadacelta@yahoo.com.br

CANTARINO, Geraldo. Uma ilha chamada Brasil: o paraíso irlandês no passado brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2004. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. As raízes celtas do Brasil. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 44-49, 2006.

CANTARINO, Geraldo. Uma ilha chamada Brasil: o paraíso irlandês no passado brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2004. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. As raízes celtas do Brasil. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 44-49, 2006. Acessar publicação original [DR]

YOSHIDA Akira (Aut) et ali, Thor: filho de Asgard (T), Panini Comics (E), LANGER Johnni (Res),  Brathair (Btr), Representações (l), Thor, História em Quadrinhos

Johnni Langer – Pós- doutorando em História pela USP, bolsista da FAPESP. E-mail: Johnnilanger@yahoo.com.br


YOSHIDA, Akira et alli. Thor: filho de Asgard. São Paulo: Panini Comics, 2005. Volume 1-12. Resenha de: LANGER, Johnni. As representações do deus Thor nas HQs. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 50-54, 2006. Acesso apenas do link original [DR]

Les Lacustres. Archéologie et mythe national | Marc-Antoine Kaeser

A coleção “Le savoir suisse” (www.lesavoirsuisse.ch ) conta atualmente 34 títulos dedicados a tornar acessíveis ao grande público as pesquisas universitárias da área francófona suíça, com temas históricos e questões pertinentes à identidade nacional da Confederação Helvética – mas, por estranho que pareça, não há ainda um volume dedicado aos helvécios. A presente obra, n. 14 da coleção, tem por objetivo refazer e criticar o mito da origem dessa mesma identidade nacional: os povos lacustres, os habitantes pré-históricos cujas características peculiares teriam marcado o ponto de partida da cultura alpina nessa região de montanhas e lagos que hoje se conhece pelo nome de Suiça.

Marc-Antoine Kaeser tem um perfil que o assinala como um cientista que há tempos vem se debruçando sobre o tema: entre suas publicações estão as que versam sobre a ideologia do suposto pacifismo lacustre (1997), a busca de antepassados operacionais (1998), o mito do fantasma lacustre (2000), as representações coletivas e construção da identidade nacional (2002) – temas que se destacam nos títulos que já publicou, e que mostram uma intenção clara de corrigir o discurso e a mentalidade políticas alimentadas por teorias científicas mais idealistas do que realistas. A frase com que abre este volume é bem explícita: “Há um século e meio a aldeia lacustre ocupa um lugar privilegiado na representação coletiva do passado pré-histórico da Suíça” (p. 9). E, contudo, hoje em dia os suíços se perguntam: esse povo lacustre existiu mesmo, dessa maneira como nos descrevem os historiadores? E eles são de fato os nossos antepassados? A resposta vem logo (ib.) radical: “A arqueologia contemporânea responde simplesmente com uma negação categórica – porém circunstanciada”. De fato ao longo do livro M.A. Kaeser tempera bastante essa negação: os povos pré-históricos alpinos não viviam em aldeias lacustres de palafitas, mas as povoações construídas nas margens dos lagos tinham algumas casas edificadas sobre postes dentro de água. Não existiram aquelas grandes plataformas que avançavam lago adentro, suportadas por colunas de madeira, e por sua vez suportando toda a aldeia. No sentido tradicional do termo não houve povo lacustre nem civilização lacustre entre as montanhas alpinas, mas houve uma população dispersa e variada, subsistindo com diversos tipos de economia além da pesca no lago, que construiu aldeias junto aos lagos – não sobre eles.

O autor passa a descrever a origem e evolução da “mitologia nacionalista”, começando pela grande seca de 1853/54 que, tendo posto a descoberto extensos trechos nas margens dos lagos, permitiu aos estudiosos identificar e reconstituir as populações ditas lacustres; e coube ao Presidente da Associação dos Antiquários de Zurique, Ferdinand Keller, iniciar uma série de publicações que constituíram o início da construção desse mito da origem nacional suíça. Numa época em que, após os tumultos das invasões francesas, a consciência nacional se afirmava por toda a Europa, a descoberta de que a Suíça também tinha um passado pré-romano, e que esse passado era digno de memória, dava aos suíços antepassados dos quais podiam se orgulhar. Daí até à representação gráfica idealizada das aldeias lacustres foi um passo. Kaeser ilustra a sua obra com muitos desenhos desse período, quando os “proto-helvécios” apareciam como vivendo em paz e harmonia com a natureza. Inspirados em Rousseau os historiadores suíços discípulos de Ferdinand Keller repassaram para esses ancestrais imaginários as virtudes que os suíços contemporâneos se atribuem: austeridade, pureza, não contaminação pelos males da civilização, cultivo da paz; o povo lacustre teria ainda sido o criador da linguagem, e, portanto, seria a sociedade humana mais antiga – um oásis de tranqüilidade no meio do mundo agitado (p. 62), um paraíso perdido para os demais, mas preservado para os suíços.

O autor vai descrevendo a construção popular dessa identidade nacional, mostrando o papel político da arqueologia. Contudo na década de 1920 os arqueólogos alemães, na seqüência dos trabalhos de Hans Reinerth, iniciaram o combate à “ideologia lacustre suíça”, negando a originalidade dessa sociedade e até sua existência; os suíços viram na destruição da representação dos lacustres uma agressão não só à pré-história nacional, mas à própria identidade nacional suíça, e, portanto, um atentado perpetrado pelo imperialismo alemão, secundado pelas ambições nazistas. A reação nacionalista não se fez esperar, mas a retomada das pesquisas arqueológicas sob outras perspectivas acabou dando razão, parcial, às críticas. Concluiu-se que os povos pré-históricos que ocuparam o atual território da Suíça viviam em diversos tipos de meios físicos (não só nos lagos), portanto em culturas diferenciadas (não homogêneas), e apenas alguns deles construíram algumas casas sobre plataformas de palafitas. As pesquisas arqueológicas de Emil Vogt na década de 1950 estabeleceram novos parâmetros de investigação que foram se afirmando até hoje, e que o autor vai apresentando numa narrativa acessível mesmo para quem não conhece arqueologia nem está a par dos embates doutrinários do nacionalismo suíço; mapas, gráficos, uma breve cronologia (desde o fim da glaciação de Würm até à submissão dos helvécios em 58 a.C.) além de uma bibliografia sucinta ajudam o leitor a acompanhar a argumentação de Marc-Antoine Kaeser.

A obra termina com algumas considerações e retrospectivas: por um lado o “mito da civilização lacustre” persiste, mas, menos ingênuo e menos “crença” adaptou-se eficazmente a idéias recentes incarnando o ideal de uma Suíça “harmoniosa, pacífica, igualitária e solidária”: mais ainda, a aldeia lacustre passou a ser uma referência para a doutrina ecológica (p. 132). Por outro lado, a arqueologia tomou suas distâncias com respeito a essa representação coletiva: “a arqueologia deve reconhecer e assumir o fato de que a interpretação do passado comporta quase inevitavelmente uma dimensão ideológica”; porém onde essas representações incluem visões errôneas e imaginações fictícias o arqueólogo tem obrigação de intervir e desmenti-las. Deve fazê-lo, contudo, de maneira pontual, e não atacar o mito como um todo, pois este é um saber que dá significado ao presente. O arqueólogo, ao contrário, deve abster-se do presente e dos saberes não científicos “para interrogar e compreender o passado” (p. 133).

João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br


KAESER, Marc-Antoine. Les Lacustres. Archéologie et mythe national. Lausanne: Presses polytechniques; Universitaires romandes, 2004. Resenha de: LUPI, João. Povos lacustres: arqueologia, história ou mito? Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 55-56, 2006. Acessar publicação original [DR]

Ritual and Domestic Life in Prehistoric Europe | R. Bradley

O conceito de “ritual” tem sido largamente debatido por antropólogos desde a criação da Antropologia como disciplina. Em arqueologia, o âmbito do ritual, bem como aquele da religião, foi, até recentemente, considerado como vago, impreciso, irracional e incerto, e, por conseguinte, amplamente evitado por grande parte dos arqueólogos. Em verdade, ritual era mais freqüentemente empregado sem claros critérios e aleatoriamente para nomear estruturas e achados cuja função era, a princípio, obscura para os arqueólogos, a ponto de se tornar “anedota” – tudo o que não tinha função prática aparente, passava, então, a ser designado como “ritualístico” (cf. Orme 218-19; Whitehouse 1996). A década de 90 trouxe, porém, um largo manancial de estudos, sobretudo na academia de língua anglo-saxã, preocupados com questões referentes à religião e às formas rituais, visando “reabilitar” o âmbito do ritual para a pesquisa acadêmica, rompendo com a visão do sagrado como epifenômeno e demonstrando sua relevância para a interpretação da cultura material. Entre os préhistoriadores, destacou-se sobremaneira o trabalho de Parker Pearson (1996) [1], que descortinou novas possibilidades de análise, tornando-se grande divisor de águas. Seguindo a linha de análise apontada por Parker Pearson, a tese de doutoramento de J.D. Hill (1995) tornou-se, sem sombra de dúvida, um marco no campo. Hill questionou profundamente os modelos de análise de hillforts para os assentamentos da Idade do Ferro em Wessex (Sul da Inglaterra). Refutando a idéia desses assentamentos como centros controladores da produção e de redistribuição nessas sociedades, propôs ele que tais assentamentos eram, em verdade, centros cerimoniais. Isto porque os depósitos em poços/covas nos assentamentos eram resultado de rituais e não de restos de lixo residencial, de modo que tais depósitos constituíram vias de ritualização da vida cotidiana.

É justamente na trilha indicada por Hill, que Bradley (doravante referido como B.), desenvolve seu Ritual and Domestic Life in Prehistoric Europe. Rompendo com a visão bipolar de “sagrado” x “profano”, “irracional” x “racional”, procura B. demonstrar a profunda relação entre o sagrado e a vida cotidiana, entre práticas rituais e a vida nos assentamentos da Europa pré-histórica desde o Neolítico até a Idade do Ferro. Fazendo uso dos trabalhos de Bell (1992) e de Humphrey e Laidlaw (1994), prefere ele, tal como Hill, o uso do conceito de “ritualização” ao de “ritual”, pois que se trata de prática, que, como define Bourdieu (1977), consiste em habitus, isto é, um conjunto de disposições habituais que define e in-forma as convenções sociais. Tal fornece ao pesquisador meios de compreender a performance ritual não como algo distante e/ou a parte do cotidiano, mas sim como permeando todas as instâncias da vida de uma comunidade.

Para tanto, B. estrutura seu argumento em sete capítulos, organizados em duas partes – “Parte 1 – a importância das coisas comuns” (capítulos 1 a 3) e “Parte 2 – onde incide a ênfase” (capítulos 4 a 7). Parte 1 consiste, em verdade, no desenvolvimento do artigo “A life less ordinary: the ritualisation of the domestic sphere in later prehistoric Europe” publicado por B. em 2003, e originalmente apresentado como palestra em Cambridge em 2002. No capítulo 1, B. define a problemática e abordagem teórica adotada no livro, propondo que, ao invés da tradicional distinção entre sítios sagrados e assentamentos, encontra-se, na Europa pré-histórica, uma união desses âmbitos. No capitulo 2 “A consagração da casa”, ele aponta como aspectos da vida doméstica (e, sobretudo, das estruturas de habitat) da Europa pré-histórica estão marcados por um significado ritual que os distingue e torna não-ordinários, a ponto de em Heuneburg o local de uma habitação de alto status ter sido utilizado como base para a construção de um montículo funerário (p. 57). No capitulo 3 “Uma questão de Cuidado”, ele demonstra como “na pré-história, o ritual deu à vida doméstica sua força, e [como], em retorno, a vida doméstica proveu uma organização de referência para rituais públicos. [Donde,] ritual e vida doméstica (…) formavam duas camadas que parecem ter sido precisamente superimpostas” (p.120).

A parte 2 procura, então, pontuar: 1) os contextos e locais onde tal superposição pode ser encontrada: agricultura (cap. 4), enterramentos, depósitos votivos e metalurgia (cap. 5); e 2) as performances de rituais públicos e rituais domésticos (cap.6). Neste último, B. mostra ser impossível traçar uma distinção entre oferendas rituais e o conjunto doméstico, posto que as atividades em assentamentos, monumentos e santuários não estavam dissociadas e seguiam o mesmo padrão.

A título de conclusão, o capítulo 7 desvenda novos pontos a serem abordados em pesquisas futuras seguindo esta forma de abordagem. Primeiramente, a transformação da relação homem-ambiente e da noção de propriedade com o desenvolvimento do processo de domesticação e sedentarização das sociedades pré-históricas européias. Depois, a inter-relação entre assentamentos, monumentos e santuários, a construção de enterramentos sobre assentamentos e/ou terras aráveis nas Ilhas Britânicas (no continente, ao contrário, os enterramentos encontram-se em terras não-aráveis), e o significado dos celeiros e poços de estocagem de alimentos, bem como sua relação com o sagrado, isto é, com a arquitetura de certas fontes sagradas e com os enterramentos em poços (muitas vezes realizados em antigos poços de estoque de grãos, haja vista os achados de Danebury). Finalmente, alerta ele para a necessidade de futura reflexão acerca das categorias teóricas empregadas para o estudo tanto da esfera ritual quanto da doméstica.

B. vem, com maestria, unir pontos que têm sido amplamente debatidos para o estudo das sociedades “pré-históricas” européias na academia de língua inglesa, a saber: 1) entender que ritual não se encontra vinculado tão somente à religião, mas que permeia toda a vida de uma sociedade; 2) a necessidade de compreender que grande parte dos achados arqueológicos de que dispomos advêm de contextos rituais (não somente em santuários e enterramentos, mas em fundações de casas, atividades artesanais, poços de estocagem e extração); e 3) a necessidade de abandonarmos a lógica simplista do “utilitário” x “simbólico” na interpretação desses achados.

Eis, pois, que uma nova forma de abordagem se consolida, oferecendo-nos a possibilidade de compreender as estruturas de assentamentos através de um viés menos simplista, menos corriqueiro, ressaltando, no dizer de B. (2003), “uma vida menos ordinária”.

Nota

1 Apesar de só ter sido publicado em 1996, este trabalho circulou entre os colegas ingleses desde 1990, causando grande impacto (Woodward 2002: 71).

Referências

BELL, C. Ritual Theory, Ritual Practice. New York/ Oxford: Oxford University Press, 1992.

BOURDIEU, P. Outline of a Theory of Practice. Cambridge: Cambridge University Press, Cambridge studies in social anthropology – 16, 1977.

BRADLEY, R. A life less ordinary: the ritualisation of the domestic sphere in later prehistoric Europe. Cambridge Archaeological Journal 13 (1), 2003, pp. 5-23.

HILL, J.D. Ritual and Rubbish in the Iron Age of Wessex: a Study on the Formation of a Specific Archaeological Record. Oxford: Tempus Reparatum, BAR British Series 242, 1995.

HUMPHREY, C. & LAIDLAW, J. The Archetypal Actions of Ritual: A Theory of Ritual Illustrated by the Jain Rite of Worship. Oxford: Clarendon Press, 1994.

ORME, B. Anthropology for Archaeologists: an Introduction. London: Duckworth, 1992, Chap. 5, pp.218-254.

PARKER PEARSON, M. Food, fertility and front doors in the first millennium BC. In: CHAMPION, T.C. & COLLIS, J.R. (eds.) The Iron Age in Britain and Ireland. Sheffield: University of Sheffield; J.R. Publications, 1996, pp.117-129.

RENFREW, C. (ed.) The Archaeology of Mind. Cambridge: Cambridge University Press, New Directions in Archaeology, 2001.

WHITEHOUSE, R.D. Ritual objects – archaeological joke or neglected evidence? In: WILKINS, J.B. (ed.) Approaches to the Study of Ritual. London: Accordia Research Institute/University of London, 1996, pp. 9-30.

WOODWARD, A. Sherds in Space: pottery and the analysis of site organisation. In: HILL, J.D. & WOODWARD, A. Prehistoric Britain: the Ceramic Basis. Oxford: Oxbow, Prehistoric Ceramics Research Group/Occasional publication 3, 2002, pp. 62-74.

Adriene Baron Tacla – Doutoranda em Arqueologia St Cross College, Oxford. E-mail: adrienebt@yahoo.com.br


BRADLEY, R. Ritual and Domestic Life in Prehistoric Europe. London: Routledge, 2005. Resenha de: TACLA, Adriene Baron. Práticas Rituais e Assentamentos Pré-históricos na Europa. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.6, n.1, p. 57-59, 2006. Acessar publicação original [DR]

A Sombra dos Homens: A Saga de Tajarê: Livro I | Roberto de Sousa Causo

Persiste no Brasil, pelo menos desde o final do século XIX, o mito arqueológico correspondente a uma possível colônia Viking no país. Tal mito nasce por volta de 1839, quando os membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro recebem uma carta que faz menção à existência de inscrições feitas em uma montanha próxima por povos possivelmente anteriores a Cabral [1].

Desde então, as especulações e fantasias sobre navegadores perdidos nunca cessaram de ocorrer até nossos dias no imaginário popular e nas obras de alguns intelectuais. Ainda que nenhum historiador ou arqueólogo leve tais teorias a sério, elas continuam a ser exploradas pelos escritores “esotéricos” e também por escritores de fantasia.

É justamente o que faz Roberto de Sousa Causo no livro: A Sombra dos Homens – A Saga de Tajarê: Livro I. Não é intenção do autor tentar provar a veracidade destas teorias, mas sim usá-las para contar uma boa história de fantasia. Sua narrativa é fluente, direcionada ao publico jovem, que tem na obra uma boa oportunidade de conhecer um pouco das lendas e mitos vikings e brasileiros.

É justamente esta mistura de criaturas mitológicas de continentes e matrizes culturais tão diferentes que torna este pequeno livro uma pérola para iniciar os jovens no conhecimento da mitologia, tanto a de matriz viking européia quanto a de matriz ameríndia brasileira.

A narrativa tem semelhanças estéticas com aquelas desenvolvidas pela fantasia heróica internacional – J. R. R. Tolkien, Robert Howard e Marion Zimmer Bradley. Nos vemos, assim, imersos nesta paisagem de magos, espadachins, monstros, reis e feiticeiros. Um universo onde o herói, Tajarê, à semelhança de Conan o bárbaro, personifica certos traços humanos, no caso, bravura aliada à força física.

Roberto Causo, com bastante competência, faz interagir em sua narrativa diferentes criaturas mitológicas: Caaporas (os homens dos pés virados), Anhangá (deus indígena), Loki (deus nórdico), Guaranguás (peixes-boi), botos e etc. Também faz interagir concepções místicas / religiosas de ambas as culturas através dos personagens Sjala (uma feiticeira nórdica) e Sotowái (pajé indígena).

Na parte final do livro descreve uma batalha entre duas criaturas mitológicas: o Kraken [2] e o Mboitatá (criatura mitológica brasileiro-ameríndia). Outro destaque são as guerreiras amazonas avistadas por Carvajal em 1541, as Icamiabas, que segundo tradição folclórica, seriam guerreiras de uma sociedade matriarcal. Estas têm um papel importante no desenrolar da narrativa.

O autor, entretanto, comete alguns erros ao apresentar os Vikings, baseando algumas de suas descrições em lugares comuns difundidos pela mídia e não em pesquisa histórica mais detalhada, como ao apresentar, tanto em suas descrições quanto nas ilustrações que compõe o livro, os guerreiros Vikings com elmos adornados com chifres.

Segundo o professor Johnni Langer:

“A maior diferença entre o estereótipo moderno e o verdadeiro guerreiro, reside no uso de capacetes. Um dos únicos exemplares recuperados, em um túmulo norueguês, é abobadado com um penacho central e uma viseira para proteger o nariz e as faces. Em desenhos gravados em megalíticos, pedras decoradas e estatuetas, todas apontam para uma mesma conclusão: o capacete era de formato cônico, liso e sem qualquer protuberância, especialmente cornos” (LANGER, 2005).

Na verdade foram os povos escandinavos que evoluíram durante a Idade do Bronze (2000 a 500 a.C.), que “muitas vezes usavam os capacetes com cornos, que se tornaram símbolos das caricaturas dos vikings. Quando a era viking chegou, entretanto, essas coberturas já estavam em desuso havia muito tempo” (HALE, 2005: 75).

Estes pequenos erros históricos acontecem durante a sua narrativa, mas na mão de um professor competente podem se tornar aliados importantes no ensino-aprendizagem, pois possibilitam ao professor confrontar tais descrições com descobertas arqueológicas, construindo assim um conhecimento crítico e não apenas “empanturrando” o aluno de datas e dados poucos significativos para eles, ainda que possam ser inestimáveis e interessantes para o professor.

Outro elemento importante a destacar nesta obra é a forma como diferentes culturas apresentam-se umas às outras, ou seja, aquele estranhamento do primeiro contato entre povos distintos. Em tempos de guerras étnicas e religiosas, a forma com que Roberto Causo aborda este primeiro contato é bastante significativa, ao evidenciar em sua narrativa que sempre olhamos o outro a partir de nossa própria matriz cultural. Vejamos um exemplo:

“Tajarê viu que das tantas-águas surgiam grandes monstros maiores que um jacaré-açu ou uma jibóia-gigante e que só podiam ser cobras-mboi que eram contadas nas lendas. Tajarê sentiu medo, porque tinha pensado que não mais habitava as feituras mágicas,.

As cobras-mboi foram chegando mais perto e rastejaram com muitas pernas pra areia e então Tajarê entendeu que estes não podiam ser bichos-vivos. Quando homens esquisitos saíram das cobras-mboi, Tajarê de igual entendeu que esses eram na verdade canoas muito grandes cheias de remos e com uma cara feia como devia ser a de uma cobra-mboi entalhada no alto de um pau bem na frente” (CAUSO, 2004: 22).

Este relato da chegada de um drakkar [3] , barco nórdico com proa em forma de dragão as praias brasileiras na visão de um indígena, é bastante significativo ao evidenciar tanto a forma como diferentes culturas podem se “olhar” e “ver” o outro a partir de suas próprias matrizes culturais. Contudo, também evidencia o cuidado do autor com a linguagem, sempre tentando não usar termos e referências lingüísticas modernas para descrever ambientes, pessoas e criaturas mitológicas.

Já foi demonstrado por diversas pesquisas históricas que mitos arqueológicos de uma possível colonização Viking ou Fenícia no Brasil não passaram de projeções culturais dos intelectuais da jovem nação brasileira, esperando com isso construir um passado glorioso e europeu que justificaria a possibilidade de se formar uma civilização de matriz européia nos trópicos.

Ainda que estes mitos não tenham se confirmado podem ser bem trabalhados pela literatura de fantasia, possibilitando tanto a constituição de uma literatura brasileira de gênero, quanto um ponto de partida para o ensino de história, principalmente para aqueles professores que têm a difícil tarefa de despertar o interesse dos alunos do ensino fundamental e médio para questões históricas. Afinal, nada como uma boa “estória” para despertar a vontade de conhecer a história.

Notas

1. Para maiores detalhes aconselhamos a leitura do artigo: Vikings no Brasil? do professor Johnni Langer, disponível em: http://www.nossahistória.net/default.aspx?pagid=EPKCNQRK. Acesso em: 16/10/2005.

2. No livro, o escritor apresenta o Kraken como uma criatura mitológica supostamente Viking, suposição esta que se mostra errônea. Na verdade, este mito surge após a Idade Média durante as grandes navegações da Idade Moderna, provavelmente nos séculos XVI e XVII. Ver: The Kraken http://www.unmuseum.org/kraken.htm.

“Ele é produto direto da mentalidade cristã medieval, não tendo subsídios na mitologia viking. Teria sido influenciado pelo Leviatã hebraico e por narrativas reais de polvos e lulas gigantes. Segundo a lenda teria sido a causa de vários naufrágios, onde seus tentáculos levavam os navios para o fundo do mar, especialmente no norte europeu.” Cf: RONECKER, Jean-Paul. O simbolismo animal. Paulus: SP, 1997, 205-207.

O relato do kraken tornou-se mais popular a partir do século XVIII, com a intensificação da navegação, especialmente na Noruega. Um relato muito famoso é o do bispo de Pontoppidan, de Bergen, 1755. No século XIX, poetas românticos ajudaram a popularizar o kraken, como Lorde Tennyson. Cf. O grande livro do maravilhoso e do fantástico. Seleções do Reader’s Digest, Lisboa: 1977, p. 421.” Informações gentilmente cedidas por Luciana de Campos, na lista de discussão CeltasVikings@yahoogrupos.com.br.

3. Segundo o professor Johnni Langer, “Drakkar, é uma denominação latinizada de origem francesa, empregada para os navios Vikings. O termo escandinavo original para navio de guerra era Langskip”.

(LANGER, 2003: 60. Nota 16). No caso especifico de um navio Viking que pudesse navegar até o continente americano, como é narrado no livro, o modelo a ser usado seria o Knorrer, já que: “Barcos à vela foram construídos para comércio, exploração e colonização: por exemplo, os pesados navios de calado profundo, os Knorrer, transportavam os vikings, através do Atlântico, até o continente americano”. (HALE, 2005: 77).

Referências

HALE, John. Os Navios Vikings. Scientific American História – Ciência na Idade Média. São Paulo: Segmento-Duetto, 2005 (01): 72-77.

LANGER, Johnni. O Mito do Dragão na Escandinávia (Primeira parte: Período Préviking). Revista Brathair 3 (1), 2003: 42-64. Disponível em: http://www.brathair.com

____________. Os Vikings na História e na Arte Ocidental. 2005. http://www.nethistoria.com/index.php?pagina=ver_texto&titulo_id=137&secao_id=460&imageField 222.x=19&imageField222.y=8.

Edgar Indalecio Smaniotto – Filósofo. Professor do ensino fundamental, Mestrando em Ciências Sociais, UNESP/Marília. E-mail: edgarsmaniotto@yahoo.com.br


CAUSO, Roberto de Sousa. A Sombra dos Homens: A Saga de Tajarê: Livro I. São Paulo: Devir, 2004. Resenha de: SMANIOTTO, Edgar Indalecio. Mitologias vikings e ameríndias encontram-se numa emocionante história de fantasia heroica. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.5, n.2, p. 117-120, 2005. Acessar publicação original [DR]

Nachklassische Romane und höfische “Novellen” | Helmut Birkhan

Como produto de suas aulas ministradas durante o semestre de inverno de 2003- 2004, Helmut Birkhan apresenta ao público leitor o quinto volume da série História da antiga literatura alemã à luz de textos escolhidos, um manual dividido em oito volumes que contém, de maneira sucinta, porém bem embasada lingüística, literária e historicamente as principais obras escritas e ou compiladas no espaço germanófono continental durante a Idade Média. Neste número, o autor preocupa-se em discutir sobre textos menos conhecidos dos germanistas, tanto de língua alemã quanto estrangeiros.

À guisa de introdução ao volume, Birkhan circunscreve a época de sua análise, isto é, mais ou menos entre 1200 e 1300. O erudito austríaco abarca neste volume as obras, cuja temática se prende à Antigüidade ou a Bizâncio. É interessante notarmos que normalmente nos curricula universitários dos cursos de língua e literaturas de língua alemã muito pouco espaço é dado à produção literária em alemão anterior ao século XVIII [1], menos ainda ao período de tempo abarcado pela pesquisa do autor de Romances pós-clássicos e “novelas” corteses.

A partir de uma discussão sobre o desenvolvimento dos conceitos metodológicos referentes às obras, primeiramente classificadas como “epigonais” e hoje em dia como pós-clássicas, Birkhan (2004, 10) discute e afirma a existência de “novos juízos valorativos em favor daquelas obras anteriormente difamadas”. Do mesmo modo são apresentados romances menos conhecidos com temática arturiana, mitológica [2], poemas com forma similar à das canções de gesta, alguns excertos de romances de amor e romances de aventura, trechos de quatro “novelas” em versos e, por fim, trechos de um drama medieval em médio-alto-alemão.

Como este volume, de número 5, integra a série História da antiga literatura alemã à luz de textos escolhidos e devido à temática ser circunscrita ao período cronológico visto no volume precedente, o autor prescinde de informações de cunho histórico-social, optando, pois, por uma análise das obras à luz das informações retiradas dos próprios textos, o que configura uma escolha metodológica, em nosso ver, pertinente, na medida em que sua análise literária traz consigo os elementos culturais da época em questão.

Aspecto importante para facilitar a apreensão dos dados acadêmicos sobre as obras e momento histórico estudados é a preocupação do autor em apensar ao fim do volume uma série de reproduções de iluminuras, fotos, capas de fac-símiles e páginas de manuscritos, quadros genealógicos, esboços arquitetônicos e até mesmo uma discutível partitura do Titurel de Wolfram. No trabalho com a Idade Média, para nós brasileiros distante e praticamente alheia ao nosso passado, é fundamental a disponibilização da maior quantidade possível de dados, a fim de tornar menos incompleto o painel do objeto que estudamos.

O cuidado de Helmut Birkhan não apenas com a apresentação do conteúdo, porém com sua efetiva e merecida valoração está expressa no comentário da última capa do volume, que traduzimos:

“O livro é dirigido àqueles que querem uma introdução na criação romanesca medieval (em especial no romance arturiano). Serão analisadas aquelas obras, que freqüentemente são desqualificadas como romances de aventuras, as quais, porém, são extremamente interessantes sob uma perspectiva psicológica, da ciência da cultura e sob várias outras.”

No tocante às obras em mittelhochdetusch com reminiscências da Antigüidade Clássica são arrolados autores como Herbort von Fritzlar, Albrecht von Halberstadt, Konrad von Würzburg, dentre outros. Um texto que nos chama a atenção pelo seu quase total desconhecimento pelos medievistas brasileiros é Eraclius, de Otte, de quem não há praticamente informação alguma. A obra, de datação provável entre 1190 e 1230, apresenta temática bizantina. Birkhan inicia sua análise com um resumo do texto, entremeado com comentários da mais variada ordem acerca da originalidade do fazer poético de Otte, composição da obra, intertextualidade e informações de cunho histórico contidos no conto.

Com relação aos temas arturianos encontram-se listados e discutidos pelo pesquisador de Viena os seguintes títulos: [3]

1 O Lanzelet de Ulrich von Zatzikhoven

2 O romance de Segremors em médio-alto-alemão

3 Os “fragmentos de Titurel” de Wolram von Eschenbach

4 Titurel mais recente de Albrecht – Merlin de Albrecht von Scharfenberg [4]

5 O Lancelote em prosa

6 Diu Crône [5] de Heinrich von dem Türlin

7 O casaco

8 O Wigalois de Wirnt von Grâvenberc [6]

A matéria mitológica, presente por exemplo em Gauriel e Muntabel, de Konrad von Stoffeln, traz o universo das fadas e elfos [7] ao leitor moderno, no que personagens humanos se envolvem sentimentalmente com seres pertencentes ao mundo místico. Nesse momento podem ser inferidos comentários intertextuais com relação ao Tannhäuser, romance em alemão do século XIII sobre um cavaleiro, que decide se dedicar exclusivamente ao amor venal, optando por viver com Vênus, depois de desventuras no mundo social perfeito da cavalaria cristã.

As canções de gesta, embora de tradição mais antiga no continente europeu e de influência predominantemente francesa, foram bem representadas entre os séculos XII a XIV no espaço germanófono. Uma outra vertente da produção de gesta liga-se às sagas com a personagem Guilherme – em francês Guillaume d´Orange – 8, cujos primeiros textos remontam à primeira metade do século XII! Em alemão, a obra Willehalm de Wolfram von Eschenbach tematiza essa personagem e dentre todas as outras é a mais conhecida.

Os romances de amor e de aventura, bem como as novelas corteses em verso e como também o drama medieval são analisados através de exemplos textuais, nos quais Birkhan atenta pra detalhes lingüísticos, exegéticos e filológicos das obras.

Na História da antiga literatura em alemão à luz de textos escolhidos – parte V: romances pós-clássicos e “novelas” corteses há a versão completa de todos os fragmentos textuais para o Neuhochdeutsch, moderno-alto-alemão, o que acreditamos ser de capital importância não apenas para o leitor germanofalante, porém principalmente para os discentes de língua portuguesa, interessados em acompanhar a evolução histórica do idioma alemão, investigar suas características e ter, com isso, facilitado seu acesso às fontes primárias.

Por fim, se lembrarmos que as aulas de Saussure serviram de base à Lingüística Moderna e guardando as devidas proporções, somos de opinião de que a obra de Helmut Birkhan ora resenhada se inscreve dentro daquelas que podem se constituir entre nós como marco para o início de uma tradição de pesquisa com textos quase que totalmente desconhecidos, conferindo à Medievística Germanística e à Filologia Germânica o velho motto latino Labor omnia vincit. O trabalho tudo vence!

Notas

1. Para um maior detalhamento sobre o assunto cf. BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Deutschsprachige Literatur des Mittelalters – Beispiel einer methodischen Perspektive zur Behandlung von älteren Texten im Literaturunterricht. In: WIESINGER, Peter et alii. Akten des X. Internationalen Germanistenkongresses Wien 2000. Bern: Peter Lang, 2002. Jahrbuch für Internationale Germanistik, Reihe A, Volume 57, p. 203-209.

2. Trata-se neste caso de contos, cujos temas giram ao redor de problemas no casamento de seres humanos com seres femininos da “baixa mitologia”, como fadas e elfos. Cf. BIRKHAN, 2004, p. 159.

3. Não nos esqueçamos de que no volume

4. são trabalhados textos arturianos vistos pelo cânone como modelares, acompanhados por uma concisa, mas eficiente listagem com dados sobre o surgimento do mito e sua comprovação histórica. Cf. BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Literatura romanesca da época dos Staufer. In: SILVA, José Pereira da. (Org). Revista Philologus. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2005. Ano 11, nº 32, p.156-159.

4. A obra de Scharfenberg é vista por Birkhan como continuação da estruturação estrófica temática de Titurel. Cf. BIRKHAN, 2004, p. 99-100.

5. Em português, “A coroa”.

6. Para a listagem completa remetemos o leitor interessado a Birkhan, 2003, p.5.

7. Convém lembrar que elfos pertencem à mitologia germânica, diferenciando-se de duendes, de fundo celta.

8. Orange, aqui, é uma cidade do provençano Departamento de Vaucluse, cuja etimologia provém do galoromano Arausio. Cf. BIRKHAN, 2004, p. 195.

Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Departamento de Letras Anglo-Germânicas Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em História Comparada UFRJ. E-mail: alvabrag@letras.ufrj.br


BIRKHAN, Helmut. Geschichte der altdeutschen Literatur im Licht ausgewählter Texte. Wien: Edition Praesens, 2004. 296 Seiten. Band 12, Teil V: Nachklassische Romane und höfische “Novellen”. Resenha de: BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Romances Pós-Clássicos e “Novelas” Corteses. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.5, n.2, p. 114-116, 2005. Acessar publicação original [DR]

Mittelhochdeutsche, vor – und frühhöfische Literatu | Helmut Birkhan

Atualmente, onde cada vez mais é incrementado o diálogo interdiscursivo, interdisciplinar e interepistemológico, percebe-se a necessidade de revitalização de estudos de base diacrônica, que procurem ajudar ao homem contemporâneo entender os processos e mecanismos de desenvolvimento social, no que a linguagem literária possui uma forte participação como repositório cultural. Consoante essa assertiva, pesquisadores de História, Literatura, Antropologia, Arqueologia, dentre outras ciências, devem procurar o estabelecimento de Grupos de Trabalho Integrados, os quais, com a utilização das metodologias específicas de pesquisa, contribuem para uma melhor apreensão do objeto comum em análise. Talvez, nesse momento, no campo dos estudos germânicos ligados a uma proposta de Germanística Intercultural, encontre-se na Medievística Germanística a episteme necessária que integralize uma junção de lingüistas, teóricos das literaturas germanófonas, historiadores – para apenas citar alguns profissionais – com o intuito de trazer ao homem do século XXI as riquezas do homem medieval expressas em seus textos. [1]

Um dos mais respeitados eruditos, professor catedrático da Universidade de Viena, germanista, celtólogo e medievalista, Helmut Birkhan lega-nos uma série de oito Studienbücher – livros de iniciação ao estudo universitário -, publicada pela Editora Praesens, a saber: parte I –Literatura em antigo-alto-alemão e em antigo-saxão; parte II – Literatura em médio-alto-alemão pré-palaciana e em seus primórdios corteses; parte III – Trovadorismo e poesia sentenciosa da época dos Staufer; parte IV – Literatura romanesca da época dos Staufer; parte V – Romances pós-clássicos e “novelas” corteses; parte VI – Épica heróica da época dos Staufer e no início dos Habsburgos; parte VII – Trovadorismo, poesia sentenciosa e contos versificados da última fase dos Staufer e dos primeiros Habsburgos.[2] Pelo exposto através dos títulos, Birkhan pretende fornecer aos estudantes de Germanística manuais de iniciação à literatura medieval em alemão, conjugando a isso em sua obra elementos de ordem histórica, em nosso ver indispensáveis para uma melhor compreensão da época estudada.

O texto é dividido em capítulos, que sempre são precedidos de uma contextualização histórica sobre as dinastias, de onde as obras são provenientes, i.e., os sálios (p.8-14) e os Staufer (p.130-135). Posteriormente têm-se comentários elementares sobre os principais textos, de ordem religiosa no tocante aos sálios (p.18-109) e acerca das duas obras consideradas como “literatura histórica”, (p.109). Ao apresentar a primeira delas, a Canção de Anno, Birkhan demonstra quão indispensável é a união entre discurso literário e contexto histórico no mundo medieval:

“A Canção de Anno é a primeira epopéia contemporânea em língua alemã. Ela reúne história da humanidade, história cristã da salvação e história mundial com uma apresentação tipológica da vida do bispo Anno de Colônia.”(p.109)

Ao tratar da segunda, a Crônica dos Imperadores, (p.117-129) o estudioso austríaco discorre sobre as características da obra, desde a transmissão do texto, com dados sobre o compilador ou autor da obra, tece comentários sobre a datação da mesma e sobre as fontes para a sua composição com alguns excertos textuais.

Se durante o período dos Sálios há a predominância de uma literatura religiosa, vêse, por outro lado, o início da afirmação de um tipo de escrita, que se centra nas práticas e costumes, no modus vivendi e modus cogitandi dos bellatores. Canções, Lieder, que descrevem heróis da Antigüidade e suas façanhas, Alexandre, Rolando, temas que lidam com o Oriente, Flôre e Blanscheflûr, assim como as épicas trovadorescas Duque Ernesto e Rei Rother e epopéias trovadorescas lendárias [3], Oswalt, Orendel e Salomão e Markolf, configuram esta nova arte da palavra, que tem na corte seu modelo.

Como por nós mencionado em resenha previamente feita [4], Birkhan não se preocupa com uma introdução ao seu texto, mas sim arrola a bibliografia por ele analisada. Já que os fragmentos textuais estão em médio-alto-alemão, estágio segundo do desenvolvimento do idioma alemão, não há a versão para o Neuhochdeutsch, o que demonstra a natureza da obra voltada para alunos e estudiosos nativos. Entretanto, por considerarmos o trabalho meritório, ficaria aqui uma sugestão para a preparação de um glossário com os principais termos do médio-alto-alemão em alemão moderno, à guisa de facilitação para o pesquisador estrangeiro.

No que diz respeito à organização do volume, nota-se a observância ao aspecto cronológico, que leva o leitor a relacionar mais seguramente o mundo das idéias e o mundo dos homens em mudança nos séculos XI e XII.

Preocupações com o conteúdo (p.42 et alii) e com a paráfrase de excertos originais (p.39-40 et alii) perpassam a obra, com o intuito de fornecer as informações lingüísticas, estilísticas e literárias básicas sobre os textos. No entanto, os Anexos merecem comentário à parte.

De significativa importância para a visualização das informações transmitidas, os Anexos colocam à disposição mapas lingüísticos, excertos de manuscritos, documentos e testemunhos em runas e língua alemã. Uma genealogia dos otônidas, sálios e Staufer, além de um gráfico sobre os romances alexandrinos medievais em alemão, latim e francês completam o quadro, que une Iconografia, Arqueologia, Língua e Literatura a partir do mundo germânico pagão até à época abarcada no volume.

Neste volume há uma presença ínfima de textos em língua latina, o que corroboraria o vernáculo como língua de prestígio dentro do fazer artístico no Sacro Império. Como o título da série prende-se à Geschichte der altdeutschen Literatur im Licht ausgewählter Texte, História da antiga literatura em alemão à luz de textos escolhidos, tal seleção nos induz à pergunta, não formulada na Parte I: quais os critérios para selecionar e indexar determinados textos em detrimento de outros? Cremos que o cânon, aliado à experiência docente do pesquisador, tenha sido os fatores decisivos para a escolha. Somos, outrossim, de opinião que o autor deveria discorrer a respeito em uma reedição da obra.

Por fim, Mittelhochdeutsche, vor- und frühhöfische Literatur, volume II da série supra citada, apesar da linguagem mais simples, é extremamente útil, organizada com precisão e muito bem fundamentada, prestando à Medievística Germanística uma valiosa ajuda para tornar contemporâneo o medievo germanófono, daí ser para nós indispensáveis as palavras anônimas

Quidquid homo nescit, vix discit, quando senescit.

O que o homem desconhece, dificilmente aprende quando envelhece!

Notas

1. Cf. BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo.Resenha de BIRKHAN, Helmut.Geschichte der altdeutschen Literatur im Licht ausgewählter Texte. Wien: Edition Praesens, 2002. 217 Seiten. Teil I: Althochdeutsche und altsächsische Literatur.. In: KESTLER, IZABELA (Org.) Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2005. Volume IX (no prelo).

2. A parte VIII ainda não foi publicada.

3. Epos, no original, equivalendo à epopéia clássica, ao narrar a história de um herói ou coletividade

4. Cf. nota ii.

Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Departamento de Letras Anglo-Germânicas Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em História Comparada UFRJ. E-mail: alvabrag@letras.ufrj.br


BIRKHAN, Helmut. Geschichte der altdeutschen Literatur im Licht ausgewählter Texte. Wien: Edition Praesens, 2002. 217 Seiten. Band 7, Teil II: Mittelhochdeutsche, vor – und frühhöfische Literatu. Resenha de: BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.5, n.1, p. 141-143, 2005. Acessar publicação original [DR]

Curso de literatura inglesa | Jorge Luís Borges

Originário de aulas ministradas na Universidade de Buenos Aires durante a década de 1960 [1], o livro ainda mantém um interesse vivo pelas valiosas conclusões que Borges sugere de seus conhecimentos em fontes manuscritas e impressas de línguas germânicas. Os sete primeiros capítulos – ou aulas – referem-se aos períodos da Antigüidade e Idade Média. Neles, o professor explicita sobre as técnicas poéticas, as características e os princípios da literatura dos antigos saxões e dos escandinavos. Também demonstra em suas aulas que o panorama político europeu, especialmente da Inglaterra, foi muito favorecido pelas invasões nórdicas. É justamente neste aspecto que Borges revela muito mais que uma simples admiração por estes povos, identificando as personagens com um passado glorioso e heróico: “Os Vikings talvez tenham sido a gente mais extraordinária entre os germanos da Idade Média. Foram os melhores navegantes da sua época (…) à maneira de muitos escandinavos cultos, não era apenas guerreiro mas, além disso, era poeta” (p. 22).

Simplificadores do moderno idioma inglês, os antigos escandinavos possibilitaram a consolidação do futuro império britânico, segundo as mesmas idéias de Borges (pp.100-102).[2] Essa visão heróica e gloriosa dos bárbaros pode ser percebida pelo espaço concedido à análise dos épicos anglo-saxões, como Beowulf e das sagas islandesas. Para o escritor, o período em que viveram estes aventureiros não era simplesmente uma época de desordem e caos, mas um momento extremamente propício para a formação de estruturas literárias complexas: “uma época bárbara mas que propendia à cultura, que gostava da cultura”(p.20). Assim, podemos incluir os estudos teóricos de Borges como a culminação de um processo de recuperação da imagem do bárbaro que teve início no século XVIII e que foi essencialmente centrada na literatura.

Ao contrário do Renascimento e sua revalorização da cultura clássica, o Setecentos foi marcado pelo ressurgimento dos estudos da literatura dos povos da Europa Setentrional, especialmente os de origem Celta e Germânica [3]. Manuscritos foram traduzidos e publicados nas línguas modernas, obras teóricas surgiram, novos poemas e narrativas foram criadas ao estilo das arcaicas. Esta adaptação e reinterpretação literária esteve atrelada à concepções de fundo nacionalista, tão em voga na época. Os intelectuais, na realidade, estavam preocupados em resgatar valores tais como identidade social e demarcar as origens do que eles então definiam como sendo suas nações. A literatura servia diretamente tanto como marco simbólico desta consciência nacional, como um instrumento de propaganda dos valores antigos que deveriam ser resgatados.

Um caso especialmente estudado por Borges diz respeito ao Ciclo Ossiânico [4]. Durante o século XVIII, a Escócia procurou criar uma identidade diferenciada da Inglaterra (de origem histórica anglo-saxônica), mas que o mesmo fosse alternativa ao passado Celta comum aos irlandeses. James Macpherson [5] foi incumbido de recolher lendas na Escócia, de origem irlandesa mas que foram alteradas e sintetizadas para que sua região tivesse uma identidade nacional própria. O resultado foi a obra Fingal: Ancient Epic Poem in Six Books (1762), que fez grande sucesso em toda a Europa pré romântica. [6] O Ciclo Ossiânico também conhecido como Ciclo de Finn apresenta narrativas supostamente ambientadas no século III d.C. O ciclo de narrativas traz longas composições muito populares entre as gentes simples da Irlanda durante a Idade Média. Essas narrativas de cunho popular em muito se assemelham as narrativas do Ciclo Arturiano ou Bretão [7] compostas a partir do século XII principalmente na França. Esses dois ciclos de narrativas mais se aproximam do que se distanciam pois, além do caráter popular e folclórico de suas narrativas têm em comum as aventuras de suas personagens. Os Fiannas são considerados uma espécie de guarda de elite do grande rei da Irlanda. Entre as suas tarefas estão o recolhimento de impostos e a proteção dos mais fracos. As incumbências dos Fiannas são praticamente as mesmas dos Cavaleiros do Távola Redonda, fiéis servidores do rei Artur. Muitas das aventuras narradas no Ciclo Ossiânico podem ser comparadas com as do Ciclo Arturiano. Acreditamos que a semelhança narrativa mais próxima seja uma aventura vivida pelo próprio Finn, na aventura amorosa intitulada Diarmaid e Grinné. Grinné é uma jovem que vai ser entregue como concubina para o rei Finn mas ela se apaixona por Diarmaid, jovem cavaleiro e fiel servidor de Finn. Sabendo da paixão dos jovens o rei Finn finge que desistiu de manter a jovem como concubina, mas durante uma caçada ele constrói uma armadilha para que Diarmaid morra. Ao perceber a trama de morte inevitável Grinné não consegue avisar seu amado e, ao vê-lo morto deixa-se morrer ao seu lado. Essa “aventura” é o arquétipo da mais conhecida narrativa do Ciclo Arturiano, Tristão e Isolda, onde os jovens incapazes de concretizarem seu amor em vida se deixam morrer para que o sentimento sobreviva após a morte e possa se consumar. O tema do amor que só é possível se concretizar após a morte sempre trágica ou violenta dos amantes é recorrente na literatura ocidental desde a Antigüidade e para os românticos foi um tema profícuo, não só pelo fascínio que ele exercia e que foi representado tanto na prosa como na poesia dos autores dessa escola literária, mas que inspirou também pintores e escultores que representaram com beleza as malezas arquitetadas por Eros e Tanatos.

A narrativa de Tristão e Isolda que tem a sua matriz em Diamaid e Grinné teve desde o século XII muitas versões. No século XII Béroul e Thomás de Inglaterra compuseram duas das mais conhecidas e estudadas versões, Gottfried de Estrasburgo no século XIII compôs uma versão mesclando elementos da cultura celta com a cultura germânica e que no século XIX serviu de inspiração para Richard Wagner compor a sua versão da tragédia dos amantes. E, por fim no século XIX, Joseph Bédier, filólogo francês estabeleceu uma versão onde mescla elementos das três narrativas medievais mas que se iguala em beleza e elementos fundamentais para se estudar a força do mito do amor eterno que sobrevive após a morte.

O amor dos jovens Diarmaid e Grinné e Tristão e Isolda é um sentimento puro, que se encontra em seu estado “natural”, ele ainda não foi corrompido por convenções sociais, podemos dizer que, grosso modo, esse sentimento é algo sentido apenas por bárbaros, pessoas que não receberam o refinamento social devido e é por essa mesma razão que os românticos – tanto escritores como pintores – tão avessos às convenções vão eleger o “amor bárbarico” como um dos principais temas de suas obras, representando assim toda a sua rebeldia e insatisfação com as leis, padrões e moldes sócio- culturais vigentes. [8]

Além deste caráter puramente estético, no século XIX a imagem do bárbaro foi reforçada como incentivo nacionalista, mas desta vez com cada região tendo os seus próprios mitos literários. Os países da Escandinávia utilizaram seu patrimônio cultural dentro de especificidades regionais, onde os sentimentos patrióticos incorporaram elementos da literatura, história e mitologia dos tempos pagãos. Especialmente o historiador e poeta Erik Geijer no livro Svenka folkets historia (História dos povos suecos, 1836) utilizou a sociedade dos antigos nórdicos como um modelo social perfeito, onde a harmonia do povo e de seus líderes foi quebrada pela chegado do cristianismo e do feudalismo.[9] O “espírito” dos tempos passados era refletido na arte decorativa, no interior das casas e dos edifícios, nos jornais, na vida cotidiana e nas idéias políticas, sempre em consonância com o progresso tecnológico e social dos tempos modernos.[10] A poesia e a literatura romântica da Escandinávia refletiam diretamente os mitos nórdicos com ideologias políticas do presente. Obras literárias como a famosa Frithiofs Saga (1825) de Esaias Tegner, apesar de conter heróis medievais, possuem comportamentos e valores condizentes com a realidade histórica vivida pela Suécia do Oitocentos.

Concedendo especificidade ao contexto inglês, Borges examinou em suas aulas um conjunto de artistas que resgataram a imagem bárbara durante o final do século XIX, a Irmandade Pré-Rafaelita. [11 ]Os temas preferidos do grupo eram a mitologia arturiana, temas medievais e escandinavos. Os principais escritores pré-rafaelitas que Borges analisou foram Dante Gabriel Rosseti [12] e William Morris [13]. Rosseti foi um dos fundadores do movimento e peça fundamental para entender a principal ideologia artística reinante na época vitoriana. Segundo Borges, a valorização de temas medievais visava essencialmente a busca da nobreza no passado. Em uma época onde a tecnologia, o urbanismo e a industrialização tomavam grande vulto na Inglaterra, os artistas voltam-se para a busca do belo – idealizada nas figuras femininas de Isolda, Guinevere e Morgana – e no herói, principalmente no rei Artur, Tristão e Lancelot. Tanto estas figuras femininas quanto masculinas pertencem ao ciclo arturiano, um conjunto de narrativas de origem Celta, que foram mescladas aos princípios cristãos do comportamento cavalheiresco da Idade Média, como já vimos. Com isto, temos duas formas básicas da imagem do bárbaro realizada pelos artistas pré-rafaelitas: de um lado, o bárbaro (herói pagão), que é resgatado em sua forma pura, de um ponto de vista estético e histórico.[14] De outro lado, o herói pagão que foi cristianizado e moldado pelo cavalheirismo medieval, principalmente na forma dos personagens arturianos.

Um dos principais idealizadores do herói pagão foi o poeta William Morris. Além de tradutor de várias Sagas e epopéias escandinavas, o artista escreveu poemas narrativos resgatando o que Borges denomina de “consciência do germânico” dentro da História e arte inglesa.[15] Em um deles, The Earthly Paradise (1870), a mitologia nórdica é apontada diretamente como elemento nostálgico e nobiliárquico da sociedade inglesa: “Oh Breton, and thou Northman, by this horn/Remember me, who am of Odin’s blood”.[16] Ou seja, aqui o narrador apresenta o rei inglês como descendente direto do deus Odin, o principal do panteão germânico. Um resgate literário dos valores simbólicos das antigas sociedades, em plena Inglaterra vitoriana. Em outra obra, Sigurd the Volsung (1876), a importância do herói pagão de origem escandinava foi ainda mais acentuada. Baseado em manuscrito islandês homônimo, este poema épico enfatizava a tragédia, a derradeira morte do principal personagem. Esta característica essencialmente romântica, também seria muito comum ao movimento pré-rafaelita com a predileção iconográfica dos artistas pelas narrativas trágicas de Tristão e Isolda [17] e da morte de Artur.[18] Mas não podemos nos esquecer que os próprios deuses germânicos também eram essencialmente trágicos, pois ao contrário da mitologia clássica (onde todas as divindades são imortais), eles teriam um final, durante a batalha de Ragnarök. Explicando a existência de telas como Odin (1870) e Freyr (1870), por Edward BurneJones,[19] onde as duas divindades apresentam um olhar melancólico, ambas olhando para baixo e numa atmosfera de extrema tristeza. Outro momento trágico resgatado por este movimento artístico é o funeral, que surge ao final do poema Sigurd, de Morris (com a morte do herói e o suicídio de Brunhilde na pira funerária) e na famosa tela de Francis Dicksee, Funeral of a Viking (1893).

A imagem literária do homem e também da mulher bárbara que foi construída durante os séculos seja na literatura como nas artes plásticas, em muitos momentos não foi uma imagem negativa, mas procurou exaltar determinadas virtudes que para os jovens idealistas românticos estavam um tanto esquecidas. Ao nos expor com maestria e bom humor aspectos tanto da literatura inglesa como da efervescência cultural que foram os séculos XVIII e XIX na Inglaterra, Borges nos oferece também novas perspectivas de análises de fontes importantes não só para uma maior compreensão das letras, mas das representações de figuras que ainda hoje povoam nosso imaginário e nos encantam!

Ao apresentar suas aulas durante um período conturbado da história latino-americana, Borges não ensinou apenas nomes, autores e características literárias, ele concedeu aos seus alunos uma aproximação com a literatura germânica – e repete o feito com os seus leitores de hoje – de se encantarem com a beleza das letras compostas em um momento especial, onde resgatar a imagem e o espírito dos bárbaros não era somente uma fonte de inspiração e um modelo estético mas sim uma admiração pelo espírito de liberdade e de criatividade.

Notas

1 O livro foi organizado por Martín Arias e Martín Hadis, através de transcrições das aulas ministradas por Borges na Universidade de Buenos Aires.

2 Muito da imagem que o teórico transmite em suas aulas na década de 1960 provinha do cinema: “E eles, enquanto isso, vêem como os vikings vão desembarcando. Podemos imaginar os vikings com seus elmos ornamentados com chifres, ver chegar aquela gente toda” (p. 60). Essa representação dos guerreiros nórdicos portando chifres com ornamentos córneos surgiu durante o início do Oitocentos, produto de uma arte romântica e nacionalista, promovendo o resgate viril e poderoso dos Vikings. Posteriormente, essa fantasia popularizou-se nas histórias em quadrinhos, literatura e cinema. Conf. LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies, Visby (Sweden), n. 4, 2002. Borges deve ter estruturado este estereótipo em filmes como Príncipe Valente (1954) e romances populares, dos quais cita The Long Ships (do original Röde Orm, 1945, versão inglesa da década de 1950).

3 Designamos literatura de origem Celta toda produção literária originada do folclore ou tradição oral e transcrita após o século VIII em países como a Irlanda (Celtas irlandeses), Escócia (Pictos e Escotos), País de Gales, Bretanha inglesa e francesa (Bretões) e França (Gauleses). A de origem germânica refere-se aos países escandinavos e Islândia (Vikings), Alemanha (Germanos antigos) e Inglaterra (Anglosaxões). Borges realizou um estudo clássico sobre literatura germânica: BORGES, Jorge Luís & VAZQUES, Maria E. Literaturas germanicas medievales. Buenos Aires: Falbo Librero, 1965.

4 “Le Cycle de Finn, ou Cycle Ossianique, est le cycle consacré à la province du Leinster. Mais il déborde de loin les frontières de ce petit état et se retrouve, très florissant, dans l’Écosse tout entière. C’est le Cycle de Finn, transmis par la tradition orale depuis de siècles, que Mac Pherson a connu et quíl a répandu dans toute l’Europe. Car Fingal n’est autre que le nom romantique de Finn et Ossian celui de Oisin (= le Faon). Finn est le roi. Mais à la différence de Conchobar, il n’exerce pas une autorité légale sur l’Irlande ou sur une troupe de véritables nomades, de guerriers errants, qui sont passés à la posterité sous le non de Fianna (Fenians). Ces Fianna ont vraisemblament eu une existence historique, au temps du roi suprême Cormac Mac Airt, c’est-à-dire à la fin du IIe. Siècle de notre ère. Ils constituaient une sorte d’État dans l’État, et ils furent souvent en froid, nom seulement avec le roi suprême mais aussi avec les différents rois de provinces ou de tribus sur le territoire desquels ils exerçaient leurs talents”. MARKALE, Jean. L’épopée celtique d’Irlande. Paris: Payot, 1993, p. 159.

5 “James Macpherson nasceu nas Highlands da Escócia, nas Terras Altas da Escócia, nas serras da Escócia, no ano de 1736, e morre em 1796. (…) Macpherson nasce e se cria num lugar agreste ao norte da Escócia, onde ainda se falava um idioma gaélico, isto é, um idioma celta, afim, naturalmente, ao galês, ao irlandês e à língua bretã levada à Bretanha – antes chamada Armórica – pelos bretões que se refugiaram das invasões saxãs do século V” (Borges, 2002: 157-8).

6 “Como Macpherson não queria que os personagens fossem irlandeses, fez de Fingal, pai de Ossian, rei de Morgen, que era a costa setentrional e ocidental da Escócia (…) Macpherson foi acusado de falsário (…) Atualmente, não nos interessa se o poema é ou não é apócrifo, mas o fato de que nele já está prefigurado o movimento romântico” (Borges, 2002: 166). Uma das pinturas mais famosas inspiradas na obra de Macpherson é Ossian na margem do Lora invocando os deuses ao som de uma harpa, de Grançois Gérard (sem data). Nesta composição, temos os elementos chaves do romantismo europeu: atmosfera de mistério e horror, elementos ruinísticos, atmosfera onírica, e é claro, os elementos advindos da mitologia Celta. Conforme: WOLF, Norbert. A pintura da era romântica. Lisboa: Taschen, 1999.

7 “O Ciclo Bretão, no qual se destacam os feitos do rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda, as aventuras de Galvain, Lancelot, Tristão e Isolda, Parcifal e a Demanda do Santo Graal, tem origem céltica. Na História Britonum, de Nennius, obscuro historiador latino do século VIII, Artur aparece como herói dos celtas britânicos contra os invasores anglo-saxões. As versões autenticamente célticas da lenda estão no Mabinogion, coleção de narrações na língua do País de Gales; aqui a figura de Artur e dos Cavaleiros já perdeu todo o caráter histórico, achando-se inteiramente transformados pela vivíssima imaginação céltica, nutrida de lendas de feiticeiros, fadas, florestas encantadas, castelos misteriosos, espectros. O Mabinogion na sua forma atual, foi redigido só no século XIV; os seus heróis célticos já têm a feição de cavaleiros franco-normandos. Para o mundo não céltico, a mesma transformação foi operada pelo ‘historiador’ Geoffrey of Mommouth, cuja fantástica História Regum Britanniae que foi escrita entre 1135 e1138; parece que Geoffrey pretendeu criar, intencionalmente, um pendant inglês da geste francesa. O último retoque, enfim, foi de natureza religiosa. Deu-se sentido cristão a certos episódios do ciclo, e como episódio final apareceu, em vez da viagem do rei Artur para a ilha de Avalon, paraíso dos celtas, a Demanda do Santo Graal e a transformação da Távola Redonda de grupo de cavaleiros aventurosos em irmandade de cavaleiros místicos”. CARPEUAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volume I Rio de Janeiro: Alhambra, 1978, 2ª edição, p. 140.

8 LE BRIS, Michel. Barbares romantiques, Norsemen et Saxons. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004, p. 162-165. Na literatura francesa do século XIX, o Viking torna-se o herói romântico perfeito: aventureiro, sem nenhum temor, feroz, galante e essencialmente, livre. “Un personnage, dont le nom est déjà intervenu plusieurs fois, rassemble ce que le XIXe siècle a voulu mettre, en ce sens, sous le mot viking: c’est celui du roi de mer. L’expression seule suffisait déjà à déchaîner imaginations et passions: iéal aristocratique mêlé à tous les parfums de l’aventure, lois de l’héroïsme et de la brutalité (…) Le Viking, c’est l’homme libre”. BOYER, Régis. Le mythe Viking dans les lettres françaises. Paris: Editions du Porte-Glaive, 1986, p. 83-103.

9 LÖNNROTH, Lars. The Vikings in History and legend. In: SAWYER, Peter. The Oxford illustrated history of the Vikings. London: Oxford University Press, 1999, p. 238.

10 Além disso, cada país escandinavo resgatou a memória dos tempos Vikings dentro de um referencial próprio, condizente com a realidade política então vigente (p.ex., a Suécia de 1814 a 1905 foi unida com a Noruega, ao mesmo tempo em que mantinha uma grande rivalidade com a Dinamarca).

11 Em inglês Pre-Raphaelite Brotherhood, grupo de artistas britânicos fundado em 1848 e dissolvido cerca do ano 1853. Movimento de reação ao convencionalismo da arte vitoriana, que buscava através da inspiração literária e simbólica, mitológica ou bíblica, restituir à pintura a pureza alcançada antes de Rafael, ou seja, no século XV. Seus representantes mais famosos foram Dante Gabriel Rosseti, W. H. Hunt, J. E. Millais, F. Brown, E. Burne-Jones e William Morris. O pintor brasileiro Eliseu Visconti chegou a ser influenciado pelo movimento. Conf. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 19, p. 4772. A Irmandade Pré-Rafaelita fundou uma revista chamada The Germ (O Germe) para divulgar suas idéias, pinturas e poesias. BORGES, op. cit., p. 284. Para uma crítica estética deste movimento artístico ver: GOMBRICH, Ernest H. A história da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 404. Para o teórico Arnold Hauser, os pressupostos do pré-rafaelismo residiam em seu caráter poético/literário, espiritualista, histórico e simbólico: “(…) são idealistas, moralistas e eróticos envergonhados, como a grande maioria dos vitorianos (…) une um realismo que encontra expressão num deleite em ínfimos detalhes, na reprodução prazenteira de cada folha de grama e de cada prega de saia (…) exageram os sinais de perícia técnica, talento imitativo e perfeito acabamento”. HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 840-842.

12 Dante Gabriel Rosseti: pintor, desenhista e poeta inglês (Londres, 1828 – Kent, 1882). Filho do escritor napolitano Gabriele Rossetti, exilado por suas opiniões políticas. Foi um dos fundadores da confraria prérafaelita. Seus quadros (Ecce ancilla Domini, 1850; O sonho de Dante, 1871) e poesias (A moça eleita, 1850) inspiram-se em lendas medievais e temas da poesia primitiva inglesa e italiana. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 21, p. 5137.

13 William Morris: poeta, artista e ativista político inglês (Essex, 1834 – Hammersmith, 1896). Inovador da estamparia e xilogravura. Escreveu poesias narrativas como The Life and Death of Jason (1867) e The Earthly Paradise (1868), poemas pós-românticos, medievalistas. Traduziu a Eneida (1876) e a Odisséia (1887) e interessou-se pelas literaturas escandinavas. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 17, p. 4090.

14 O herói pagão sobreviveu na literatura arturiana sob a forma do mago Merlin, um druida (sacerdote dos Celtas) que ainda mantinha seus poderes sob o surgimento do cristianismo. Este personagem arturiano também recebeu diversas representações pelos pré-rafaelitas durante o Oitocentos: O engodo de Merlin (1874), de Edward Burne-Jones; Merlin e Nimue (1870), de Gabriel Rossetti. Também as representações de feiticeiras, fadas e druidas fizeram sucesso na arte vitoriana: Morgan Le Fay (1864), de A. Sandys; Os druidas trazendo o azevinho (1890), de George Henry e A. Horned.

15 Segundo Borges, a literatura inglesa havia esquecido suas raízes germânicas. Foi com o romantismo que essa vertente foi redescoberta, algo impensável com Shakespeare e totalmente consciente no caso de William Morris e os pré-rafaelitas. BORGES, op. cit., p. 356-357.

16 “Ó bretão, e tu Normando, por este chifre/Lembre-se de mim, que sou do sangue de Odin”. Texto original retirado de BORGES, 2002: 359.

17 A personagem Isolda foi muito representada pelos pré-rafaelitas, especialmente Burne-Jones, Rosseti, Morris e Francis Dicksee. A imagem de Isolda resgata muitos dos valores da mulher pagã, em meio à sociedade cristã das primeiras versões literárias. O seu amor impossível com Tristão inspirou o romance de Shakespeare, Romeu e Julieta. Contemplação, redenção e tragédia tornaram-se as características essenciais do movimento pré-rafaelita. Sobre o tema ver: CAMPOS, Luciana de. Uma leitura de Tristão e Isolda à luz da crítica feminina. Brathair 1 (2), 2001: 11-18 (www.brathair.cjb.net); CAMPOS, Luciana de. Em busca da bela dos cabelos de ouro: um estudo da representação da mulher/rainha Celta em Tristão e Isolda de Béroul. Tese de doutorado em Teoria Literária (Linha de pesquisa: História, Cultura e Literatura). Unesp/São José do Rio Preto, 2005.

18 Praticamente em todo o movimento pré-rafaelita, o rei Artur é quase sempre representado morrendo ou já morto na ilha de Avalon: L’morte d’Artur (1860) de James Archer – as rainhas choram ao lado de seu corpo próximo à praia; O rei Artur em Avalon (1894) de Edward Burne-Jones – o corpo do trágico rei repousa sobre uma ilha da costa da Bretanha, velado por nove rainhas. Para uma discussão historiográfica acerca de fontes literárias arturianas, consultar: ZIERER, Adriana. Artur: de guerreiro a rei cristão nas fontes medievais latinas e célticas. Brathair 2 (1), 2002: 45-61 (www.brathair.cjb.net).

19 Sir Edward Burne-Jones: pintor e desenhista inglês (Birmighan 1833 – Londres 1898). Aluno de Rosseti, uma das figuras marcantes do pré-rafaelismo; sua obra mistura mitologia antiga, lendas medievais e a religião cristã. Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, vol. 5, p. 996.

Referências

BORGES, Jorge Luís & VAZQUES, Maria E. Literaturas germanicas medievales. Buenos Aires: Falbo Librero, 1965.

BOYER, Régis. Le mythe Viking dans les lettres françaises. Paris: Editions du Porte-Glaive, 1986.

CAMPOS, Luciana. Uma leitura de Tristão e Isolda à luz da crítica feminina. Brathair 1 (2), 2001: 11-18 (www.brathair.cjb.net).

_____ Em busca da bela dos cabelos de ouro: um estudo da representação da mulher/rainha Celta em Tristão e Isolda de Béroul. Tese de doutorado em Teoria Literária (Linha de pesquisa: História, Cultura e Literatura). Unesp/São José do Rio Preto, 2005.

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volume I. Rio de Janeiro: Alhambra, 1978, 2 ª edição.

DABEZIES, André. Mitos primitivos a mitos literários. In: BRUNNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

GOMBRICH, Ernest H. A história da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies, Visby (Sweden), n. 4, 2002.

_____ Rêver son passé. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004.

LE BRIS, Michel. Barbares romantiques, Norsemen et Saxons. In: GLOT, Claudine & LE BRIS, Michel (orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004.

LÖNNROTH, Lars. The Vikings in History and legend. In: SAWYER, Peter. The Oxford illustrated history of the Vikings. London: Oxford University Press, 1999.

MARKALE, Jean. L’époppé celtique d’Irlande. Paris: Payot, 1993.

WAWN, Andrew. The Vikings and the victorians: inventing the Old North in 19Th-Century Britain. London: D.S. Brewer, 2002.

WOLF, Norbert. A pintura da era romântica. Lisboa: Taschen, 1999.

ZIERER, Adriana. Artur: de guerreiro a rei cristão nas fontes medievais latinas e célticas. Brathair 2 (1), 2002: 45-61. (www.brathair.cjb.net)

Johnni Langer – Professor da UNICS, PR. E-mail: Johnnilanger@yahoo.com.br

Luciana de Campos – Professora Mestre. Doutoranda em Letras/UNESP. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br


BORGES, Jorge Luís. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Resenha de: LANGER, Johnni; CAMPOS, Luciana de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.5, n.1, p. 144-150, 2005. Acessar publicação original [DR]

L’Europe des Vikings | Claudine Glot e Michel Le Bris

Para o imaginário ocidental, os Vikings sempre foram vistos como bárbaros cruéis, assolando e destruindo as costas européias durante a Idade Média. Apesar de estudos acadêmicos escandinavos desde o século XIX demonstrarem outras facetas desta cultura, foi somente a partir dos anos 1960 que a historiografia contemporânea iniciou uma nova concepção sobre os nórdicos. O historiador britânico Peter Sawyer (The Age of the Vikings, 1962) e o francês Lucien Musset (Les invasiones: le second assault contre l’Europe chrétienne, 1965) reabilitaram os guerreiros Vikings, especialmente para o contexto social e político dos tempos medievais. Desde então, diversos estudos demonstraram a complexidade da arte, da estrutura social, as concepções mitológicas e religiosas dos antigos escandinavos, e como eles interferiram nos rumos políticos do Ocidente, deixando diversas marcas perceptíveis até hoje.

A recente publicação L’Europe des Vikings comprova esse interesse renovado pelos audaciosos aventureiros da Escandinávia. Lançado simultaneamente com uma megaexposição na Abadia de Daoulas (França) [1], o livro reuniu alguns dos maiores especialistas do mundo na área da Vikingologia, desde mitólogos, arqueólogos, historiadores, epigrafistas até museólogos. A direção da obra foi de Claudine Glot (Centro do Imaginário Arturiano) e Michel Le Bris (Centro Cultural Abbaye de Daoulas) [2].

O pesquisador com maior quantidade de trabalhos é Régis Boyer (professor emérito da Universidade de Paris-IV-Sorbonne). No artigo Les dieux, les hommes, le destin, faz uma sistematização sobre a religiosidade nórdica pré-cristã, cuja principal característica era a ausência de centralizações tanto a nível teológico quanto a nível organizacional. Não possuíam dogmas, sacerdotes no sentido moderno do termo (sem castas ou iniciações), sem “fé” e ritos [3]. Ao contrário de outros sistemas religiosos, os escandinavos não privilegiavam a força bruta ou os valores essencialmente marciais em seus cultos, mas sim, as noções de fertilidade-fecundidade pelo viés da magia. A reverência às forças da natureza e os cultos aos ancestrais foram preponderantes, tanto na forma de padrões mitológicos quanto no cotidiano social. Se para os mitos enquanto narrativas simbólicas, Boyer ainda conserva uma influência direta de Georges Dumézil, ao continuar dividindo-os em três níveis (variantes líquidos, telúricos e solares-aéreos), percebemos que a importância concedida para as artes mágicas vem progressivamente tendo importância em seus estudos. Em seu clássico de 1981 (Yggdrasil: la religion des anciens scandinaves), Boyer já denotava a relevância dos rituais de magia na sociedade nórdica, neste artigo percebemos que esta perspectiva tornou-se mais acentuada, especialmente para os ritos de Nið (infames e dessacralizadores), Seiðr (divinatórios sagrados) e Blót (sacrifícios propiciatórios). Preocupados essencialmente com seu destino, os Vikings procuravam o conhecimento deste através de todos os meios possíveis. Segundo a perspectiva de Boyer, a religião para os Vikings era baseada profundamente na ação, em valores de reciprocidade, uma “prodigieuse leçon d’énergie et de confiance en la vie” (p. 29).

Em outro trabalho, De la hache à la croix, Boyer concede sua interpretação para o processo de cristianização da Escandinávia, um tema que vem ganhando cada vez mais importância no medievalismo. O historiador mantém duas posições básicas e interdependentes. A primeira enfatiza a transferência de um modelo religioso do continente para as terras do norte. Os pagões Vikings possuíam um contato prévio com o cristianismo, tanto pelas viagens exploratórias e comerciais, conhecendo seus ritos, crenças e hábitos (especialmente pelos intercâmbios com Constantinopla). Isto foi uma das razões que, ao contrário da lenda, não houveram conversões feitas de sangue e mártires. Já na literatura islandesa, sua redação utilizou os textos hagiográficos em latim, o modelo clássico de um rei convertido ou a vida de um santo local. É o que Boyer denomina de aggiornamento, muito mais que uma mudança de mentalidade, uma adaptação das novas tendências com o antigo. Isso pode ser exemplificado com o fato da Igreja tolerar e mesmo incentivar a utilização de inscrições rúnicas – consideradas mágicas pelo paganismo – ou pelo fato dos templos cristãos serem erigidos em áreas de antigos cultos pagãos [4]. O segundo aspecto enfatizado por Régis Boyer é o político. Durante a Era Viking, os reis possuíam um carisma sagrado, mas por outro lado não tinham autoridade suprema. O cristianismo trouxe novas possibilidades para o aumento da centralização do poder real, além de possuir um sistema hierárquico extremamente piramidal. A religião nórdica antiga não tinha dogmas, rituais precisos e definidos, templos, iniciação sacerdotal, enquanto o cristianismo fornecia além de tudo isso, também a possibilidade de contatos mais freqüentes com a Europa, como a própria manutenção simbólica dos reinos. Mas com isso, o Viking não pode ser mais livre e independente. Ele simplesmente desaparece: “le christianisme aura été l’un des grands facteurs d’extinction du Viking” (p. 147).

Mais um estudo integrante do livro é La longue histoire des runes, de Alain Marez (Universidade de Bordeaux-3). Uma das fontes mais prestigiadas nos atuais estudos de Escandinávia, a runologia ou epigrafia rúnica possui a vantagem de reconstituir a história através dos próprios povos nórdicos e não em documentos escritos posteriormente. Em 1999 foram calculados cerca de 3.200 inscrições rúnicas na Suécia, 900 na Noruega e 700 na Dinamarca. Um grande potencial para novas pesquisas e interpretações da sociedade escandinava. Marez é partidário da opinião de que as runas surgiram no século II d.C., influenciadas pelos alfabetos da região norte da Itália, o Piemonte subalpino, especialmente pela migração entre os povos do norte e sul da Europa. Durante o século III, a Dinamarca predominava na produção de inscrições, mas no período de migrações até a Era Viking, a Suécia tornou-se preponderante.

No primeiro período de produção rúnica, o principal suporte das inscrições foi o metal, mas com os escandinavos houve a posterior preponderância das gravações em rocha. A maioria do conteúdo é bem curto, sendo muitas sequências do futhark [5] de caráter mágico ou de nomes próprios, bens familiares, conjurações e malefícios. As vezes as inscrições funerárias traziam o nome do defunto ou do gravador. Em sua origem, a prática de gravar nomes era feita por uma elite social, membros da aristocracia. E a partir do século V, apareceram as estelas rúnicas sobre pedras para honrar o morto. As estelas com serpente rúnica (runslangen) apareceram na Suécia central do século XI. A fórmula dos textos é bem simples: “X elevou esta pedra (em memória de) Y (seu parente, amigo)”. Caso as circunstâncias da morte sejam excepcionais, o texto exaltava o bom caráter do defunto. O “centro de gravidade” da tradição rúnica situava-se na província de Uppland, norte do lago Mälar (Suécia). Concentrada na sede da monarquia dos Svear, uma rica aristocracia de famílias muito influentes favorecia o surgimento de uma literatura rúnica. Atualmente as estelas escandinavas, especialmente da Suécia, estão sendo tema de inúmeros estudos que procuram relacionar o texto com aspectos sociais, religiosos e econômicos, permitindo uma visão muito mais ampla das potencialidades desta fonte [6].

Segundo Marez, após a cristianização a Igreja não encarou as runas como vetores do paganismo e acabou adotando-as em suas cruzes e objetos de culto. Com o triunfo da escrita alfabética latina, o futhark escandinavo começou a decair, mas no século XIII ocorreu uma nova variação para tentar rivalizar com o latim – o futhark medieval do século XIV, utilizado nos funerais cristãos, epitáfios, marcas de propriedade, nas assinaturas de artistas, carpinteiros e escultores. Os bastões rúnicos (runakefli) foram calendários muito populares, uma das últimas formas do futhark, utilizados em 1300. Para o desfecho do artigo, Marez cita uma frase do epigrafista francês Lucien Musset: “l’emploi vivant des runes cesait, la runologie naissait…” (p. 39). Com o surgimento dos movimentos esotéricos a partir do Oitocentos, as runas tornaram-se muito populares, especialmente como oráculos divinatórios. Mais do que nunca, estudos acadêmicos sobre o alfabeto rúnico e seu verdadeiro significado na Antigüidade são necessários. Neste sentido, o artigo de Marez além de uma ótima introdução, esclarece vários procedimentos metodológicos sobre epigrafia, evitando que as runas continuem apenas a serem imaginadas como algo misterioso e transcendental.

Michel Le Bris (Centro Cultural Abbaye de Daoulas) assina o interessante artigo Barbares romantiques, Norsemen et Saxons. Neste trabalho, o autor recupera alguns aspectos do imaginário moderno sobre os bárbaros. Não podemos pensar os Vikings, Saxões e outros grupos sem levar em consideração as representações literárias e artísticas realizadas pelos europeus a partir dos séculos XVIII e XIX [7]. Le Bris enfatiza principalmente como os artistas desta época utilizaram a imagem do bárbaro como um reflexo de suas próprias inquietudes, de seus medos e de suas aspirações políticas ou ideológicas. Poetas como Chateaubriand e Thierry enfatizaram a figura do bárbaro com um significado de liberdade, o selvagem liberto na natureza. Já para Burgh, Hulme e a escola escocesa, houve a pretensão em demonstrar a origem gótica da liberdade inglesa e as idéias democráticas de seus antecessores ingleses. O grande mito bárbaro da época foi reinventar a explosão, a liberdade e a terra, em uma figura que fascina ou é temida, o homem nãogrego, do tumulto, da tempestade, da desordem, da desgraça. Bárbaros podiam ser os homens da Convenção ou Napoleão, convertido em Átila: após Waterloo, os bárbaros do Norte salvam a democracia e livraram a Europa dos bárbaros do sul. Os jovens românticos franceses se proclamavam bárbaros para se opor à Academia. Ainda para Le Bris, os novos bárbaros nasceram no interior da própria sociedade européia depois de 1831, as hordas obscuras que se levantaram na sociedade, os proletários. Enfim, a representação barbárica foi extremamente polimórfica, variando conforme o contexto político e social, ou ainda, dependendo do referencial artístico.

Em Les mille trésors de l’île de Gotland, Malin Lindquist (Museu Regional de Visby, Gotland) perfaz um panorama dos atuais estudos sobre a ilha de Gotland, uma das mais importantes regiões da Era Viking. O local serviu para manter a independência política dos chefes em relação a Suécia: ainda no período Vendel, os Götar já possuíam um dialeto e uma cultura diferenciada do resto da Escandinávia. A ilha foi centro do comércio LesteOeste, concentrando as influências vindas do Oriente e por isso mesmo um grande alvo para piratarias desde tempos remotos. O grande diferencial cultural da região foram as maravilhosas estelas funerárias. Com uma elegância refinada, decoradas com símbolos de glória, de morte e ressurreição, cenas dramáticas e dragões entrelaçados. As mais antigas serviam como pedras de túmulo (séc. V) e as mais recentes (séc. XII) como memoriais de propriedade. A decoração das pedras consiste em motivos espiralais, representações estilizadas de animais e outras de simbologias religiosas dos Vikings. As imagens ilustram os acontecimentos que marcaram a vida de um defunto enquanto era vivo. Foram erigidas não muito longe das rotas, pontes e locais de passagem: constituíram essencialmente monumentos para serem vistos e recordados – um importante elemento legitimador da ordem política (a classe dos Jarl) e da ordem religiosa (os cultos odínicos) [8]. As pedras rúnicas do século XII testemunham a ruptura do paganismo e do cristianismo, um dos grandes temas de investigação nos atuais estudos de epigrafia nórdica.

A obra ainda contém outros estudos importantes, como La Finlande et les Vikings, de Leena Söyrinki-Harmo (Museu de Helsinki, Finlândia), concedendo algumas perspectivas entre o contato dos escandinavos com as populações finno-ungricas. James GrahamCampbell (Universidade de Londres), traça um panorama das invasões nórdicas no extremo da Grã-Bretanha (Jarls des îles d’Écosse), enquanto Neil Price (Universidade de Uppsala), reconstitui as invasões e a formação das colônias escandinavas na Inglaterra (Angleterre: de la violence à la royauté). A descoberta e colonização do Atlântico Norte foi enfatizada por Jean-Yves Marin (Museu da Normandia) em seu artigo Les Vikings ont-ils découvert l’Amérique?, enquanto os raids pelo Mediterrâneo foram contemplados por Claudine Glot (L’Espagne et la Méditerranée).

O livro conta com uma estrutura gráfica espetacular, reproduzindo além de fotografias de diversos artefatos arqueológicos, ilustrações e pinturas de museus europeus e coleções particulares. Algumas destas obras de arte são muito pouco reproduzidas em publicações, como Pirates normands au IX siécle, de Évariste Luminais (1894); Le reliquaire, de Henri-Georges Charrier (1881); Gissur défiant les Huns, de Peter Arbo (1886); Les Rois des mers, de Alfred Didier (século XIX). Enfim, um lançamento imprescindível para os vikingólogos e muito útil também para os medievalistas em geral, pesquisadores e amantes dos fascinantes escandinavos.

Notas

1. A exposição L’Europe des Vikings foi realizada na Abadia de Daoulas, França, de 14 de maio a 14 de novembro de 2004. Dirigida por Michel Le Bris, teve como principal consultor técnico/curador o historiador Régis Boyer. A exposição contou com mais de 600 peças provenientes de 40 museus da Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Inglaterra, Russia, França e coleções particulares.

2. O Centre Culturel Abbaye de Daoulas situa-se na Bretanha Francesa é um órgão dedicado exclusivamente aos estudos de imaginário e mitologia (http://www.abbaye-daoulas.com.fr). O Centre de l’Imaginaire Arthurien também sediado na Bretanha Francesa, sendo um importante centro de referência sobre mitologia arturiana. (http://perso.wanadoo.fr/merlin77/cia.htm).

3. Boyer chama a atenção para o fato da Edda Poética não ter uma única prece verdadeira: “Au demeurant, le corpus impressionnant des textes ‘religieux’ que nous propose l’Edda poétique ne nous offre pas une seule véritable prière!” (p. 146).

4. O reaproveitamento de áreas sagradas foi uma tendência em grande parte das áreas evangelizadas pelo cristianismo: ocorreu no Peru (Igrejas construídas acima das bases de templos incas), México, Irlanda e Escandinávia. Na Inglaterra, região de Glastonbury, foi construído um mosteiro – a primeira Igreja do país – em um tradicional local de cultos pagãos, local sagrado do druidismo (ENGER, Michael (dir.). Fata morgana. Michael Enger Film Production for ZDF/Arte, 2001. VHS, documentário, 45 min.). Na Escandinávia muitas paróquias foram erigidas em locais tradicionais do paganismo nórdico (as áreas das antigas reuniões – things – foram as escolhidas para a edificação de Igrejas, como em Uppsala, Suécia). A continuidade da ostentação de estelas rúnicas em locais públicos ainda demonstrava a riqueza familiar, mas passava agora a ser um ato encorajado pela Igreja. Muitos temas pagãos presentes nas estelas foram reinterpretados pela nova fé. Heróis como Sigurðr combatendo o dragão Fafnir transformaram-se no Cristo triunfante destruindo a besta; a representação do deus Þórr pescando a serpente do mundo foi reencenada como sendo Cristo capturando o leviatã. Apesar de não ser fácil traçar a mudança de mentalidade no período de conversão, as inscrições rúnicas são uma excelente fonte para a investigação dos historiadores. As possibilidades de novas análises ainda são muito grandes. Conf. SAWYER, Birgit. The Viking-Age Rune-Stones: custom and comemmoration in early Medieval Scandinavia. London: Oxford University Press, 2003.

5. O futhark é o nome que se emprega para o alfabeto rúnico, derivado dos seis primeiros nomes dos sinais em Old Norse, na escrita Rama Longa e Rama Curta (PAGE, Raymond Ian. Runes. London: British Museum Press, 2000, p. 9).

6. Muitos runologistas revelam o quanto é promissora a investigação sistemática da epigrafia rúnica e dos monumentos Vikings. Pesquisas sobre genealogias, aspectos administrativos e eclesiásticos, dados estruturais do paganismo, o período inicial de evangelização na Escandinávia, autorias e estilos de confecção rúnica, todos estes aspectos ainda dependem de maiores esclarecimentos. As pesquisas futuras devem estabelecer uma relação entre o conteúdo, design e a ornamentação das estelas rúnicas.

7. Também participamos no livro em questão com um artigo sobre a formação do imaginário a respeito dos escandinavos, Rêver son passé, p. 166-169. Outros estudos que tratam do imaginário contemporâneo sobre os Vikings: LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies. Visby (Sweden), n. 4, 2002; BOYER, Régis. Le mythe Viking dans les lettres françaises. Paris: Editions du Porte-Glaive, 1986; WAWN, Andrew. The Vikings and the victorians: inventing the Old North in 19Th -Century Britain. London: D.S. Brewer, 2002; LÖNNROTH, Lars. The Vikings in History and legend. In: SAWYER, Peter. The Oxford illustrated history of the Vikings. London: Oxford University Press, 1999.

8. Sobre estes aspectos das estelas de Gotland, ver o estudo: LANGER, Johnni. Morte, sacrifício e renascimento: uma interpretação iconográfica da estela Viking de Hammar I. Revista Mirabilia n. 3, 2003. www.revistamirabilia.com

Johnni Langer – Universidade do Contestado, SC. E-mail: Johnnilanger@yahoo.com.br


GLOT, Claudine; LE BRIS, Michel (Orgs.). L’Europe des Vikings. Paris: Éditions Hoëbeke, 2004. Resenha de: LANGER, Johnni. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.4, n.2, p. 159-163, 2004. Acessar publicação original [DR]

Os Druidas. Os Deuses Celtas com Formas de Animais | D’arbois de Jubainville

Escritos entre os anos de 1904 e 1905 quando uma doença prendia-o ao leito e mais tarde se constituiu do material por ele usado em suas aulas, Jubainville oferece ao leitor/estudioso brasileiro uma rica fonte de estudos acerca da religião celta.

Jubainville com um texto simples e preciso faz um percurso histórico acerca da classe sacerdotal dos Druidas, apontando a suas funções dentro da sociedade celta, sua importância para o aprendizado tanto da alta magia como também da arte da composição e da narrativa e da história do povo celta e o próprio aprendizado druídico. Esse conhecimento era transmitido oralmente o que obrigava tantos os “alunos” como os “professores” a exercitarem constantemente sua memória. Ao descrever o ensinamento tanto dos druidas como dos bardos, que freqüentavam por mais de vinte anos as escolas mantidas pelos Druidas, Jubainville nos mostra como estas funcionavam e a importância da manutenção da oralidade:

Os Judeus e os Cristãos têm um livro, a Bíblia; os Maometanos têm um livro, o Alcorão; os Druidas também tinham um livro, mas ele não estava escrito. Era uma compilação de versos e essa compilação era tão desenvolvida que, para conseguir sabe-la bem, ou mesmo para compreende-la mais ou menos, foram necessários vinte anos de estudos a um certo número de alunos. (JUBAINVILLE, 2003: 57).

Mas, infelizmente toda essa “estrutura” das “colégios” mantidos pelos druidas e todo o conhecimento oriundo da oralidade com a conquista romana foi quase que totalmente extinto. Alguns pequenos focos de resistência foram mantidos e poucos druidas tanto na Gália como nas Ilhas Britânicas mantiveram seus alunos e desta forma, conseguiram preservar um pouco do seu conhecimento e história mantidos pela oralidade.

As conquistas romanas empreendidas nas povoações celtas da Gália e das Ilhas Britanicas não foram capazes de destruir completamente todo o poder que dos druidas. Durante a romanização dos celtas os druidas perderam muito de seus alunos que, por imposição, recebiam uma educação romana, aprendendo o latim e os costumes do conquistador, numa tentativa desses de exercer maior influência sobre os conquistados mas, havia aqueles que se recusaram a isso e deixavam seus filhos sob a guarda dos antigos sábios:

A grande epopéia que conta a criação das vacas de Cooley mostra-nos o Druida Cathu rodeado de alunos aos quais dá suas lições. Na redação mais antiga, os alunos são em número de cem. O escriba cristão ao qual devemos esse texto teve trabalho para constatar esse número: são, escreveu, “cem estouvados que estudam perto de Cathu a ciência druídica” (JUBAINVILLE, 2003: 80-81).

Todos os registros que sobreviveram – e os utilizados por Jubainville – são relatos dos conquistadores entre eles, De Bello Gallico, escrito por Julio César e Anais, de Tácito. Essas fontes apresentam uma visão do conquistador já impingindo certos juízos de valores às práticas sociais do povo conquistado. Jubainville, ao utilizar as fontes romanas para as suas pesquisas vai nos apresentando outros aspectos da sociedade celta que ficaram encobertos sob o véu da conquista.

A segunda parte do livro traz um estudo sobre os deuses celtas e as suas formas de animais. Analisando o mais famoso épico irlandês A razia das vacas de Cooley (Tain Bô Cualngé) e o percurso do herói Cûchulainn a serviço da rainha Medb, o autor vai nos apresentando o panteão celta e as formas de animais que os deuses tomavam fosse para proteger e guiar o herói ou para punir alguém que infringia alguma lei ou tabu.

A deusa da guerra Morrigan aparece para Cûchulainn em vários momentos da narrativa para provocá-lo. Ela aparece ora, como uma loba cinzenta, ora como uma vaca branca de orelhas vermelhas ou um corvo. Este último é o arauto das batalhas mais sangrentas e da morte. Analisando as formas de animais assumidas pelos deuses Jubainville nos mostra as metamorfoses sofridas pelos deuses para poderem exercer seu poder e, medirem forças com os mortais que, como Cûchulainn, ao longo da epopéia assemelha-se aos deuses. Ao analisar as formas de animais o autor mostra a profunda ligação dos celtas com a natureza e a sua obediência aos ciclos sazonais aos quais estava ligada a sua sobrevivência:

“Os pagãos, a princípio, adoraram a natureza tal qual ela se apresentava a eles: em primeiro lugar, o céu de onde vêm o dia, o calor e a tempestade; em segundo lugar, O mar, tão propício e freqüentemente tão perigoso para os navegantes; e em terceiro lugar a terra que habitamos”. (JUBAINVIILE, 2003: 107).

Esta análise realizada por Jubainvelle dos druidas e das formas animais dos deuses oriundas do seu material didático foi e ainda é de grande importância para o entendimento do funcionamento da sociedade celta e da sua religião. Esta obra vem preencher uma lacuna nas traduções dos estudos acadêmicos a respeito dos celtas no Brasil. Uma pesquisa de grande importância juntamente com as suas outras obras que, ainda carecem de tradução e, apesar de já contarem com mais de um século de existência ainda são fundamentais.

Luciana de Campos – Doutoranda em Letras/Unesp Docente da FAFI-UV. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br


JUBAINVILLE, H. D’arbois de. Os Druidas. Os Deuses Celtas com Formas de Animais. São Paulo: Madras, 2003. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. Sacerdotes e divindades Celtas. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.4, n.1, p. 96-97, 2004. Acessar publicação original [DR]

Nine worlds of Seid-Magic: ecstasy and neo-shamanism in North European paganism | Jenny Blain

Em 1854 um dos primeiros estudos acadêmicos sobre religião nórdica foi publicado. Realizado pelo historiador norueguês Rudolph Keyser, o livro The religion of northmen concedia muito pouco espaço para a prática mágica do Seiðr, estrategicamente discutida num capítulo intitulado “feitiçaria”. Segundo este pesquisador, o Seiðr teria um caráter secreto e muito misterioso (KEYSER, 1854). Mesmo a tradução exata da palavra sempre foi muito debatida. Em 1935 D. Strömbäck publicou um estudo clássico sobre o tema, Sejd: Textstudier I nordisk religionhistoria, o primeiro a propor a conexão entre práticas xamanistas lapônico-finlandesas e os cultos Vikings (1), retomada parcialmente por Eliade em 1951 (Le chamanisme) e plenamente por Thomas DuBois em 1999 (Nordic religions in the Viking Age).

Dentro do contexto desse debate, a antropóloga norte-americana Jenny Blain apresenta sua mais recente contribuição: o livro Nine worlds of Seid-Magic. A principal proposta da autora não é realizar um estudo historiográfico ou literário, mas sim entender o desenvolvimento do Seiðr dentro da sociedade moderna, seus valores e sua relação com a prática original da Idade Média. Para entender essa conexão, ela utiliza a metodologia dos estudos de gênero, principalmente as teorias de J. Butler; análise de fontes literárias do século 12 à 14 e observação participante de vários meses com praticantes de neo-xamanismo europeu e indígenas da América do Norte.

Afinal, o que é Seiðr? Para Boyer (1981, p. 144) a palavra significaria tanto “canto” como “união”, ao contrário da maioria das traduções, que entendem a mesma como “feitiçaria” (WARD, 2001). Por sua vez, Jenny Blain prefere utilizar vários conceitos ao longo do livro, testando todos conforme o contexto analítico. O que todos concordam é que o Seiðr teria sido uma prática mágica realizada essencialmente por mulheres (seiðkonas) durante a Era Viking, algumas vezes utilizando cantos, outras vezes utilizando técnicas de adivinhação.

Os primeiros quatro capítulos do livro são dedicados a contextualizar as práticas do Seiðr moderno, questões conceituais e introdutórias, além de descrições de narrativas xamanísticas. É a partir do capítulo 4 (Approaching the spirits), que a obra se torna mais interessante aos estudos historiográficos. Blain retoma o conceito de Mircea Eliade para explicar o fenômeno do xamanismo, isso é, seria toda técnica de êxtase para alcançar experiências em outro mundo. Logo de início a autora tem uma constatação muito interessante: não há nas sagas elementos primordiais ao xamanismo – a supremacia de homens nos cultos, a ocorrência de tambores ritualísticos e a existência do xamanismo como um prática central na comunidade (toda ela aceitando o ritual). Sabemos que no Seiðr Viking as mulheres eram preponderantes, mas era a religião sob a forma de sacerdotes masculinos que prevalecia socialmente (com variações de culto). As seiðkonas eram marginalizadas ou mesmo estrangeiras atuando momentaneamente nas comunidades. E tambores nunca foram encontrados pela arqueologia e são mencionados raramente nas fontes.

A questão social do Seiðr é fundamental para Blain: quando as relações com as praticantes são negativas na comunidade, elas eram denominadas de fordæða (ou mesmo seiðkonas), mas ao contrário, quando estas relações eram positivas, elas eram chamadas de spákona. Outra técnica mágica conhecida na Era Viking, o Spá (profetizar), várias vezes confunde-se nas fontes com o Seiðr. Muitas das situações positivas das mulheres que realizavam magia registradas pelas sagas, refere-se ao papel profético ou de cantos mágicos realizados para benefício de alguns membros ou de toda a comunidade envolvida. Sempre associados com algum caráter de fertilidade e prosperidade. Como na situação em que uma mulher é chamada para resolver o problema da fome de um vilarejo (por meio de cantos obteve peixes…), ou na Groelândia, quando uma spákona foi solicitada para predizer o progresso da comunidade, algo que ela fez por meio da invocação de espíritos (varðlokur).

A situação mais complexa para análise são os momentos em que a magia feminina foi considerada maléfica, não importando a classe social da praticante. O caso mais famoso é a rainha Gunnhildr da Noruega, uma seiðkona, acusada de feitiçaria e atos malévolos. Para Blain, essa rainha encarnaria o protótipo do mal e da mulher vingadora no mundo nórdico, manifestado pela misoginia das fontes. Gunnhildr foi inimiga do célebre Viking Egil Sakalla-Grímsson.

O capítulo 7 (Ergi seiðmen, queer transformations?) analisa a polêmica relação entre homens e a magia Seiðr. A maior parte das fontes tratou os praticantes masculinos como Ergi, passivos sexuais ou efeminados. O problema é que nos dias atuais existem muitos homens que se envolvem com esse tipo de ritual nórdico e contestam esta visão (2). As fontes que tratam dessa circunstância são de dois tipos: as que se referem aos deuses e as que citam situações históricas. No primeiro tipo, temos as famosas passagens do Lokasenna 23, 24 e Ynglingasaga 7, onde o deus Óðinn foi acusado de ser Ergi, justamente por ter se envolvido com o Seiðr. Lembramos que esse tipo de magia era associada aos deuses Vanires, especialmente à deusa Freyja e existem registros de cultos ligados a sacerdotes efeminados (3).

No contexto histórico, existem dois episódios muito populares. Rögnvald, filho do rei norueguês Haraldr Finehair, com mais 80 homens acusados de praticar Seiðr, foram queimados – um ato totalmente aprovado pela comunidade (Haralds saga hárfagra 36). Outro rei, Óláfr Tryggvason, também mandou executar 80 seiðmaðrs (BLAIN, 2002: 112). Para analisar esses e outros episódios violentos, Blain recorre à teoria do chamado “terceiro gênero”, homens que encarnariam papéis tanto masculinos quanto femininos na sociedade nórdica. A principal sustentação para esse ponto de vista pela autora, é uma passagem do poema Hyndluljóð 32, que cita os três principais tipos de praticantes de magia nórdica: völvas (videntes, outro termo para spákonas e seiðkonas), vitkis (homens que praticavam a magia rúnica, Galldr, também chamados de galdramaður) e Seiðberender. Neste último, teríamos um exemplo de terceiro gênero – homens efeminados com papéis as vezes tolerados, as vezes reprimidos pela sociedade escandinava. Baseada na teórica inglesa J. Butler, a autora realiza uma interessante discussão sobre gênero, que não reside apenas no sexo biológico e nem confinado na oposição binária dos papéis coletivos, mas sim numa noção de performance: a atividade dos homens efeminados na comunidade e os limites de sua transgressão nas fronteiras fixas dos códigos e leis sociais sobre comportamento sexual.

Ainda nesse mesmo capítulo, influenciada pelas novas perspectivas da antropologia (como a obra de A. Salmond), Blain trabalha o conceito de religião como algo sempre mutável nas sociedades, recebendo influências externas, ao mesmo tempo que se modifica internamente no decorrer da História. O momento mais interessante é a discussão dos termos Ergi e Nið, dentro do contexto das fontes. Deixando sempre claro o uso dessas palavras como insultos, e seguindo reflexões do historiador sueco Meulengracht Sørensen, a autora envereda para o conceito de Nið com conotações políticas e sociais. Ela consegue vislumbrar (p. 131), que a acusação de Óðinn por Loki e os conflitos históricos mencionados, não se baseavam apenas nas categorias de gênero, mas faziam parte de uma oposição interna entre “os guerreiros de Óðinn” e os “praticantes de Seiðr”. E é justamente nesse instante que percebemos a maior deficiência do livro: poderia ter analisado muito mais a fundo essa perspectiva. Talvez se tivesse consultado o clássico Du mythe au roman, 1970, de Georges Dumézil, a autora teria elementos analíticos muito mais eficientes. Em um trecho rápido, mas extremamente denso, o famoso mitólogo explora o insulto a Óðinn e a queima histórica dos seiðmaðrs como reflexo de uma rivalidade religiosa interna ao mundo Viking, uma “magia nobre” – identificada ao deus caolho, e outra “menos nobre ou baixa”, vinculada à deusa Freyja e aos vanires (DUMÉZIL, 1992: 79-96).

Em nosso ponto de vista, o que estava em jogo na antiga sociedade escandinava não eram apenas relações de gênero e padrões de comportamento sexual, mas tensões entre diferentes formas de culto (4). A elite (Jarls), maiores cultuadores de Óðinn – onde presenciamos os casos de execução pública de homens praticantes de Seiðr; e ao contrário, as menções às mulheres do Seiðr nas fontes, nem sempre bem vistas, mas quase sempre necessárias nas comunidades de fazendeiros (bóndis) – justamente, a classe dos Karls, a exemplo do caso mencionado dos fazendeiros da Groelândia. Existiria um conflito direto entre formas religiosas públicas da elite (dominadas pelo referencial masculino/odinista) e a magia privada dominada por mulheres (cultuadoras de vanires)? Enquanto que nas comunidades de fazendeiros essas tensões seriam suplantadas pelas necessidades cotidianas, atendidas pelo Seiðr? E a misoginia das fontes é apenas influência do período cristão ou reflexo direto do pensamento Viking?

Essa é a perspectiva que acreditamos que sejam necessárias novas investigações, um caminho multi-disciplinar: o estudo entre as variações das formas de cultos + classes sociais + gênero + sexualidade, que geraram tanto as tensões sociais quanto os referenciais sobre homem e mulher na Era Viking. E também novos estudos linguísticos e historiográficos para entender com mais profundidade as noções de Seiðr, Nið e Ergi nas sociedades escandinavas cristãs dos séculos 12 a 14 (a época em que foram redigidas as fontes).

Sem ter a densidade analítica de autores acadêmicos como Boyer (1981), Davidson (1993) e DuBois (1999), o livro de Jenny Blain ainda assim será uma referência muito importante para todos aqueles que querem entender melhor o papel da magia e da religião no mundo nórdico medieval.

Agradecimentos: à historiadora Luciana de Campos, pelas informações sobre teoria de gênero e história das mulheres.

Notas

1. Infelizmente esse livro de D. Strömbäck permanece inédito em inglês, francês e espanhol.

2. Um exemplo é o artigo esotérico de Ed Richardson, Seiðr Magic, publicado na internet. Segundo esse autor, os rituais dos guerreiros Berserkers e Ulfhednar utilizariam a magia Seiðr. Mas isso não é corroborado por nenhuma fonte literáriohistórica nem referencial bibliográfico acadêmico. Na realidade, Richardson utilizou outros autores esotéricos (como Jan Fries e Nigel Pennick) para referenciar essa informação. Como os Berserkers são identificados com elementos extremamente viris dentro da cultura Viking, não seria uma forma de alguns neo-paganistas tentarem legitimar a prática do Seiðr para homens em nossos dias? Esse artigo também possui outros erros: o uso do Seiðr para guerras e batalhas; a descrição dos deuses Vanires como sendo um antigo povo escandinavo (algo nunca confirmado pela arqueologia ou historiografia). Os melhores e mais documentados textos na Web sobre Seiðr são os de Paxson (1997), Blain & Wallis (2000), Berlet (2000) e Ward (2001). Segundo o excelente estudo de Berlet (2000), homens viris na Era Viking seriam adeptos da prática do Galldr (magia rúnica, a exemplo do herói Sigurðr da Völsunga Saga e do poetaguerreiro Egil Sakalla-Grímsson, este último filho de um Berserker).

3. Saxo Grammaticus (Gesta Danorum VI, v, 10), cita que o herói varonil Starkatherus ficou horrorizado quando presenciou cultos para o deus Freyr realizados na Suécia Viking: os homens realizariam danças efeminadas (effeminatos corporum motus) e teriam “trejeitos mimosos” (DUMÉZIL, 1992: 140). Os Lapões realizavam cultos onde os homens se travestiam de mulheres (idem, p. 141). Tácito citou a tribo germânica dos Naharvalos, onde existia um sacerdote que presidia os cultos vestidos de mulher (Germânia 44). Segundo Heródoto (História), entre os Citas ocorria uma casta de sacerdotes efeminados chamados de Enarees (homem-mulher). O antropólogo Timothy Taylor cita vários casos de sacerdotes xamanistas que mutilavam ritualísticamente a região genital, na Europa, Ásia e Índia. O mesmo pesquisador apresenta uma análise de certas figuras do caldeirão de Gundestrup (originário da Dinamarca do século II a.C.), apresentando androginia ritualística, onde as figuras andróginas portam espadas, com pelos nos ombros e seios (TAYLOR, 1997: 203-211). Mircea Eliade menciona sacerdotes xamanistas que se vestem de mulheres entre os tchuktche asiáticos, esquimós, índios da América do Sul e Norte (berdaches: homens-mulheres). A explicação do mitólogo para esse fenômeno universal é clássica: “A transformação simbólica e ritual explica-se provavelmente por uma ideologia derivada do matriarcado arcaico”. (ELIADE, 1998: 286). A respeito do homossexualismo na cultura Viking, o trabalho mais documentado é o da historiadora Christie Ward (2002).

4. Em seu excelente artigo Galldr and Seiðr, Robert Berlet apresenta uma perspectiva muito próxima de nossas problemáticas. Para ele, existiria a prática do Seiðr – dominada por mulheres e com técnicas muitas vezes agressivas/malévolas, quebrando as convenções sociais; e a magia rúnica (Galldr) – totalmente dominado por homens viris, especialmente voltada para proteção e com caráter nobre. Odinistas míticos (Sigurðr) e históricos (Egil Skallagrimssom) foram treinados nessa última arte mágica. Assim, para Berlet, Seiðr e Galldr seriam essencialmente diferentes em seus resultados (Berlet 2000).

Referências

BLAIN, Jenny & WALLIS, Robert. Seiðr, Gender and Transformation, 2000. http://www.thetroth.org/resources/jenny/nfldpaper.html

BERLET, Robert. Galldr and Seiðr: Two Sides of the Same Coin. Gender & Identity in Viking Magic, 2000. http://www.publiceye.org/racism/Nordic/viking-magic.htm

BOYER, Régis. Yggdrasill: la religion des anciens scandinaves. Paris: Payot, 1981.

DAVIDSON, Hild Roderick Ellis. The lost beliefs of Northern Europe. New York: Paperback, 1993.

DUBOIS, Thomas A. The intercultural dimensions of the Seiðr ritual. In: _____ Nordic religions in the Viking Age. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999.

DUMÉZIL, Georges. A magia má dos Vanes. In: _____ Do mito ao romance. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ELIADE, Mircea. Técnicas de êxtase entre os antigos germânicos. In: _____ O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

KEYSER, Rudolph. Sorcery. In: _____ The religion of the northmen. New York, 1854. http://www.northvegr.org/lore/northmen/016.php

MONTEIRO, Paula. Magia e pensamento mágico. São Paulo: Ática, 1986.

PAXSON, Diana L. Sex, Status and Seidh: homosexuality and Germanic Religion. Idunna n. 31, 1997. http://www.hrafnar.org/seidh/Sex-status-seidh.html

RICHARDSON, Ed. Seiðr Magic, 1998. http://www.phhine.ndirect.co.uk/archives/ess_seidr.hytm

TAYLOR, Timothy. Xamãs travestidos/Sexo tântrico na Dinamarca da Idade do Ferro. In: _____ A pré-história do sexo. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

WARD, Christie L. Women and magic in the Sagas, 2001. http://www.vikinganswerlady.com

_____ Homosexuality in the Viking Age, 2002. http://www.vikinganswerlady.com

Johnni Langer – Departamento de História/ UNC. E-mail: Johnnilanger@yahoo.com.br


BLAIN, Jenny. Nine worlds of Seid-Magic: ecstasy and neo-shamanism in North European paganism. London/New York: Routledge, 2002. Resenha de: LANGER, Johnni. Poder feminino, poder mágico. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.4, n.1, p. 98-102, 2004. Acessar publicação original [DR]

Territoires Celtiques – Espaces ethniques des agglomérations protohistoriques d’Europe occidentale | D. Garcia e F. Verdin

Desde a década de 70, a partir das transformações na geografia, do diálogo com a história e a antropologia, bem como do surgimento de novas formas e técnicas de análise com o uso de SGI (Sistema Geográfico de Informação), o estudo do espaço e da paisagem despontou como área de interesse para a arqueologia. Encontrando fértil terreno, sobretudo nos países de língua anglo-saxã, veio ele a se consolidar nos anos 90 como área de debate e especialização sob a forma de ‘arqueologia da paisagem’. Tendo por base a relação homem-ambiente, o estudo das formas de apropriação da paisagem tem contribuído largamente para o desenvolvimento da análise das sociedades ditas “pré-históricas”, apontando novas perspectivas para a compreensão da dinâmica dos assentamentos e das práticas sociais e religiosas de tais populações.

O livro ‘Territoires celtiques. Espaces ethniques et territoires des agglomérations protohistoriques d’Europe occidentale’, organizado por Dominique Garcia e Florence Verdin, vem no bojo dessa transformação reunir pela primeira vez especialistas que não de língua inglesa para discutir a questão da interação humana com o ambiente e o espaço sob a forma de ordenação do território e, portanto, da paisagem nas sociedades pré-históricas da Europa ocidental. Consiste esta obra, em verdade, no resultado do ‘XXIV e colloque international de l’AFEAF. Martigues, 1-4 juin 2000’, onde ‘territórios dos assentamentos e dos povos proto-históricos da Europa ocidental’ constituiu o tema geral de debate com apresentação de vinte e dois artigos em contraposição a oito trabalhos em torno do tema regional ‘territórios étnicos e territórios cívicos no sudeste da Gália: permanência e mutação (sécs. II a.C. – II d.C.)’. Reúne ele, pois, especialistas franceses, espanhóis, suíços, alemães e belgas a tratar do estado atual da pesquisa arqueológica acerca da construção do território em diversas regiões da Europa ocidental a partir de diferentes metodologias de análise e teorias interpretativas.

Abrindo o volume, Philippe Leveau apresenta um balanço das linhas de estudo e abordagem do território, traçando a trajetória do termo e, tendo por base o contraponto com as sociedades greco-romanas, suas implicações políticas, étnicas ou cívicas. Porém, ao contrário do que se poderia supor, não está ele a propor a definição de fronteiras políticas estáveis de Estados tradicionais na Antigüidade, mas sim compreender a dinâmica dos territórios, apontando diferentes formas de uso do espaço e da paisagem. Conforme aponta o autor, mais do que um debate, apresenta-se aos pesquisadores o desenvolvimento do conhecimento arqueológico não só dos assentamentos, mas, sobretudo, da zona rural, que só recentemente, ainda que de forma restrita, começou a ser explorada.

Em verdade, esta obra procura pontuar os avanços do conhecimento e da prática arqueológica para a compreensão dos sítios e artefatos em relação aos locais onde foram encontrados. Assim é que a maior parte dos artigos concentra-se em estudos de caso ou estudos regionais, analisando a construção e a dinâmica territorial em regiões da Península Ibérica, França, Suíça, Alemanha e Bélgica, abrangendo desde o período do Bronze final até o período romano. Fazendo uso de diferentes métodos de análise – desde os polígonos de Thiessen até SGI, procuram os autores contribuir com estudos que combinam as mais diversas formas de documentos (assentamentos, enterramentos, cerâmica, numismática, epigrafia, depósitos votivos, santuários, textos clássicos e toponímia), dando uma noção de conjunto e complementaridade dos sítios e achados.

No entanto, não se pode dizer que haja um caráter uníssono nas contribuições (neste sentido, muito se lamenta a ausência das discussões na publicação). Por exemplo, os trabalhos de R. Plana Mallart e A. M. Ortega, de J. Sanmartí, e de C. Belarte e J. Noguera abordam a questão do território de sítios ibéricos segundo uma abordagem de cunho mais tradicional, que supõe a estruturação deste a partir da criação de lugares centrais (segundo a teoria de Christaller) que dominam vastas regiões (modelo/método dos polígonos de Thiessen), controlando vias de comunicação, a produção e toda uma hierarquia de assentamentos.

Dentre os numerosos artigos acerca das sociedades gaulesas, há igualmente uma predominância desta sorte de interpretação. Patrice Brun, em sua análise do território dos Suessiones, também emprega o método dos polígonos de Thiessen e o modelo de lugares centrais a fim de identificar a dinâmica do território dos Suessiones durante os séculos II e I a.C. Entende ele que os oppida constituiriam o centro de estruturação do território, constituindo um “… nó de redes econômicas, políticas, ideológicas que asseguram a coesão territorial” (p.313).

De forma um tanto diferente, Dominique Garcia faz um balanço das transformações do território no sul da Gália desde o Bronze final até fins da Idade do Ferro, traçando uma evolução do território, inicialmente ‘… pouco hierarquizado (…), descontínuo e temporário’ (p.91), sendo depois, durante a primeira Idade do Ferro, transformado em vastos territórios étnicos que sofreram profundas mudanças com a fundação de Massalía. Para a autora, o interesse massaliota no controle tanto da costa quanto da rota rodaniana altera a ordenação do território das populações indígenas da Gália meridional, ocasionando a criação de assentamentos ao longo dos rios e instigando, no seu entender, uma “urbanização” (pp.95-96). Em verdade, defende ela que tal fenômeno se deveria “… a uma evolução da organização social das populações indígenas (…), bem como da participação dos gauleses do sul na rede comercial mediterrânea” (p.100).

Já autores como Büchsenschütz, através do caso dos Bituriges, e Gruat e IzacImbert, com a análise do território dos Rutênios, procuram fazer uso de novos recursos e vertentes, aproximando-se da produção de linha anglo-saxã. Todavia, mesmo esses trabalhos não se desvencilham totalmente do modelo de lugares centrais a dominar e estruturar o território. Isso se deve em parte a uma limitação da documentação arqueológica, e parte ao uso de uma hierarquização tipológica das formas de assentamento.

Uma interessante contribuição para questionar os modelos generalizantes, em particular o monolitismo dos ‘lugares centrais’, é apresentada no artigo de P. Jud e G. Kaenel. Trabalhando com o caso das populações do Platô Suíço e sul do Reno na segunda Idade do Ferro ao início do império romano, eles demonstram a existência de três formas de ordenação do território, duas delas em regiões atribuídas aos Helvetes – na parte ocidental do Platô Suíço uma ocupação mais complexa, fortemente estruturada por meio da criação de pontes e rotas, santuários e numerosos oppida, enquanto no leste do Platô Suíço, ao contrário, não se verifica tão forte organização do território. Por outro lado, na região sul do Reno, atribuída aos Rauraci, revela-se uma ordenação do território com habitats fortificados localizados na periferia do território, assegurando suas fronteiras e o controle de vias de passagem essenciais para o eixo renaniano (p.304).

Vale, aqui, igualmente contrapor dois trabalhos que enfocam a relação entre território e enterramentos. Thierry Janin empreende uma análise das necrópoles e do espaço geográfico no Languedoc ocidental na primeira Idade do Ferro segundo uma ‘economia de bens de prestígio’, onde o processo de hierarquização promove a criação de centros ‘proto-urbanos’, que, por sua vez, vêm a estruturar o território dessas populações. Por outro lado, Laurent Olivier, Bruno Wirtz e Bertrand Triboulot, ao analisar os ‘Conjuntos funerários e territórios do domínio hallstattiano ocidental’, questionam as formas de análise espacial tradicionalmente empregadas na arqueologia, propondo, em seu lugar, o uso do conceito de informação espacial, obtido a partir do cálculo da combinação de atributos dos contextos funerários em estudo. Este método, que vai além dos métodos estatísticos geralmente empregados, permite traçar a posição e extensão dos grupos culturais e a agregação de suas necrópoles. Donde por meio de uma análise espacial aprofundada, propõem eles um estudo da distribuição e projeção territorial das populações da Idade do Ferro na Europa centro-ocidental.

Fechando a obra, Alain Daubigney articula um balanço das interpretações teóricas acerca da organização territorial e política aplicadas ao estudo do Bronze final e início da Idade do Ferro (até Hallstatt C) na França e na Europa ocidental, demonstrando a existência de elites locais emergentes controlando os territórios tribais.

Em verdade, evidencia-se, nesta obra, o conflito de paradigmas que hoje marca o estudo das sociedades “pré-históricas” européias. De um lado, as tradicionais abordagens estruturalistas, os modelos e métodos homogeneizantes amplamente empregados pela arqueologia processual, que mascaram as singularidades locais. De outro, temos as abordagens pós-processuais, chamando nossa atenção para estudos não generalizantes e uso de métodos que nos permitam analisar essas sociedades de forma mais aprofundada, enveredando pela dinâmica local.

Aqui, esse embate aparece de forma um tanto restrita, pois que a grande maioria dos autores se encontra parte ainda fortemente presa aos grandes modelos explicativos, e parte seduzida pelas possibilidades abertas por novas tecnologias e meios de análise da documentação. Trata-se, portanto, de um debate em aberto, e nem por isso menos fascinante.

Adriene Baron Tacla – Doutoranda em arqueologia Institute of Archaeology, University of Oxford. E-mail: adriene_tacla@yahoo.co.uk


GARCIA, D.; VERDIN, F. (eds.) Territoires Celtiques – Espaces ethniques des agglomérations protohistoriques d’Europe occidentale. Paris: Editions Errance, 2002. Resenha de: TACLA, Adriene Baron. Territórios celtas. Um debate acerca da relação entre paisagem, poder e religião. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.4, n.1, p. 103-105, 2004. Acessar publicação original [DR]

Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros | Antonio L. Furtado

Com o convidativo título de Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros, mais uma vez, Antonio Furtado apresenta ao público brasileiro outra tradução [1] das narrativas da “Matéria da Bretanha”. As estórias do Rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda que, nos séculos XII e XIII encantaram tanto a nobreza, pois naquelas narrativas estavam presentes os ideais mais elevados e os modos e maneiras que esta mesma nobreza vivenciava e, também enchia os ouvidos e o imaginário dos menos abastados que, talvez, almejassem serem súditos de um rei justo como Artur e protegidos por cavaleiros como Lancelot e Gawaine.

Essas “aventuras” empreendidas tanto próprio Artur como pelos seus cavaleiros estão impregnadas pelo maravilhoso que, não são estranhos às personagens, pois fazem parte do cotidiano, como nos explica Todorov no livro As Estruturas Narrativas, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens nem no leitor implícito” (TODOROV, 1979: 160). Muitas personagens das narrativas são conduzidas para situações onde se deparam com seres sobrenaturais, como gigantes, tema da primeira “aventura”, onde o próprio rei Artur enfrenta um gigante monstruosos na narrativa “O gigante do Monte Saint Michel”:

– Irei à frente, disse Artur, para combater o gigante. Vireis atrás de mim, e atentai para que nenhum de vós interfira enquanto eu mesmo puder valer, já que de outra ajuda não necessito. Pareceria covardia vir outro, além de mim, a combatê-lo. Socorrei-me, porém se perceberdes minha necessidade. (FURTADO, 2003: 70).

Artur parte sozinho para enfrentar o gigante e deixa claro os seus companheiros, que devem socorrê-lo só em caso de necessidade. Vemos aqui a representação do rei que está sempre à frente dos seus nas batalhas e faz questão de que a lei seja também aplicada a ele, como nos mostra John Boorman no seu filme Excalibur, de 1980, na cena em que a rainha Guinevere é acusada de adultério por um cavaleiro e implora ao seu marido e rei para que não seja julgada, mas Artur, responde que a lei deve ser aplicada também ao rei, caso isso não ocorra, não há justiça. Artur deve marchar à frente de seus cavaleiros na caça das aventuras.

Em “O juramento ambíguo de Isolda”, Artur e mais alguns cavaleiros, como seu sobrinho Gawaine (que nos apresentado como Galvão), “o mais cortês de todos os homens”, são chamados para julgarem Isolda esposa do rei Marcos, Duque da Cornualha e tio de Tristão, que foi acusada de adultério por três barões da Corte da Cornualha.

O rei Artur é convocado por Isolda por ser conhecido como o mais justo e nobre dos reis e por repudiar todo e qualquer ato de vilania. E, como Artur e seus cavaleiros representam os ideais da cortesia e da honra, vemos nas palavras de Galvão todo o asco que o ato dos barões contra Isolda lhe causa:

– Tio, se tenho permissão, a justificação que está combinada terminará mal para os três felões. O mais dissimulado é Ganelon: conheço-o bem e ele a mim. Já o derrubei em um lamaçal, durante uma justa forte e encarniçada. Se pego de novo, por São Richier, Tristão não precisará mais vir. Se puder agarrá-lo com as mãos, farei nele bastante estrago e o enforcarei no alto de um morro. (FURTADO, 2003: 160).

Os cavaleiros não hesitam em atender o apelo de uma donzela ou mesmo de uma rainha que esteja em perigo, pois são estas as oportunidades que esses homens de armas e de cortesia têm para fazerem valer seu juramento de defenderem as mulheres e os mais fracos, partirem em busca de aventuras e, talvez, conseguirem o amor da mulher que necessita de socorro.

As narrativas que têm como personagem principal Artur ou outro cavaleiro, fluem de maneira a cativar o leitor, com se este estivesse envolvido pela voz dos trovadores que, habilmente “encantavam” os homens e mulheres dos séculos XII e XIII quando apresentavam as aventuras e, mais ainda, os ideais que essas aventuras e as personagens representavam.

A leitura de Aventuras proporciona o resgate da ambientação, das falas das personagens e, principalmente, das suas atitudes, sejam elas de indignação perante a injustiça – como a de Galvão – ou de bravura e até de desolamento. As personagens arturianas estão vivas e, nas páginas do livro de Furtado é possível “viajar” ao lado de Galvão, Lancelot e Percival; seja na busca do Santo Graal ou no salvamento de uma donzela.

A tradução primorosa do francês antigo onde o estilo, a linguagem e o conteúdo mantiveram-se fiéis aos originais como o próprio autor afirma na Introdução da obra é um convite a mais – tanto aos estudiosos e pesquisadores da Idade Média, como aos leitores em geral – para que se descubra o mundo arturiano e da Matéria da Bretanha.

Aventurar-se pelas páginas dessa obra é como um mergulho no universo mágico do mito arturiano e um eterno encantar-se com as estórias do “rei que não morreu, apenas dorme e, em breve, retornará…”

Nota

1. Em 2001 foi publicada pela Editora Vozes a tradução dos Lais de Maria de França. Tradução de Antonio Furtado e prefácio de Marina Colassanti.

Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/São José do Rio Preto. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br


FURTADO, Antonio L. (Organização e tradução). Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros. Prefácio de Gilberto Mendonça Teles. Petrópolis- Rio de Janeiro: Vozes, 2003. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. Cavaleiros da Aventura. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.2, p. 62-63, 2003. Acessar publicação original [DR]

Matéria de Bretanha em Portugal | Leonor Curado Neves

Uma iniciativa como esta das organizadoras é sempre bem-vinda: informa-se na Introdução que estas Atas representam a recolha de um Colóquio e, por sua vez, de vários seminários realizados por e em favor de alunos do mestrado em Literatura Portuguesa Medieval, não só do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, como de outras universidades portuguesas, os quais, ao longo de 1999-2001, tiveram por tema de estudos a “matéria de Bretanha”. É, de fato, louvável oferecer tal oportunidade a futuros pesquisadores que, sob a orientação de nomes conhecidos como Irene Freire Nunes, Ivo Castro, José Carlos Ribeiro Miranda, Ana Sofia Laranjinha e outros, além de um convidado “estrangeiro”, Michelle Szkilnik, têm a chance de prosseguir na carreira tomando por base modelos de investigação rigorosos e cientificamente respeitados. Cumprimentos às organizadoras pela abertura, nem sempre usual nos meios acadêmicos.

Contudo, por isto mesmo, por seu caráter de sumário heterogêneo, a obra é qualitativamente desigual – risco, ao que parece, conscientemente abraçado, pois também referido na Introdução. Nem se poderia esperar o contrário: dificilmente um mestrando teria a experiência crítica de Irene Freire Nunes, a quem se deve a edição de A Demanda do Santo Graal (cópia portuguesa), de 1995, trabalho que, embora não substitua o de Magne, a ele se acrescenta como consulta obrigatória; ou de Ivo Castro, que há anos vem preparando a edição do José de Arimatéia, igualmente destinada a somar-se à de H. H. Carter, a mais conhecida; ou, ainda, de José Carlos Ribeiro Miranda, cujas teses, aliciantes e revolucionárias, acerca da organização cíclica da Vulgata e da Pós-Vulgata, em diálogo cerrado com as propostas até então indiscutíveis de Fanni Bogdanow, têm suscitado tanta polêmica. Por enquanto, pelo que se deduz da maioria das comunicações recolhidas, seus autores estão antes para aprender com eles que para ombreá-los em perspectivas analíticas. O que não desmerece, reitere-se, a participação do grupo, disposto a enfrentar as teias extremamente complexas da matière – para cujas profundezas míticas Ana Paiva Morais chamou a atenção (p.125).

Compreensíveis as discrepâncias, mas nem por isso livres de reparos, a começar pelos lugares-comuns, espécie de estigma do assunto desde que dele se apossou a mídia, o cinema americano e uma certa imaginação popular aficcionada por fadas, duendes e dragões. Aqui, nas Atas, não se extrapola, é evidente, para a banalização; porém, elas não se isentaram de retornar à repisada idéia de que o Amadis de Gaula propõe uma cavalaria humanizada, cortesã, em consonância com a “revolução” provençal do século XII e como contraponto à elevada espiritualização da Demanda e ao paradigma ascético representado por Galaaz (p. 105); ou também à desgastada constatação de que a carnalidade de Lancelote, plena de erotismo e de sensualidade, espelho às avessas do grandioso filho bastardo, está atrelada a sentimentos cristãos de culpa, castigo, remorsos, reincidências, contrição – empecilhos em muito responsáveis, no plano simbólico, pela decadência de Artur e pela destruição do reino de Logres (p. 267); ou, ainda, à intrigante concepção da figura feminina, ora vítima de um discurso misógino, tendo Eva como respaldo emblemático, ora heroína de um discurso enaltecedor, abrindo espaço para a Virgem Maria e para uma série de reformas por que passava a Igreja na Idade Média Central (p. 69). Conclusões como estas não podem mais ser pontos de chegada, mas de partida, são pertença daquela já extensa bibliografia de fundo que deve assessorar qualquer projeto de trabalhos na área. Conhecê-la bem evita não só a repetição indesejável, como as comparações esdrúxulas do tipo de “um artigo de jornal, Tristão e Isolda, duas novelas camilianas e sociologia de Luhmann” (p. 277) – único texto da obra que realmente não precisaria estar ali.

O longo artigo de Irene Freire Nunes (20 páginas), “Merlin, o elo ausente” (p. 29), não traz grandes novidades enquanto “tese” – sabe-se, hoje, que o mito de Merlin veio se constituindo por etapas, das tradições orais às recriações literárias, e que a figura é “elo” indispensável na lógica estrutural de todo o ciclo – mas é utilíssimo, porque repassa várias vertentes que concorreram para a edificação do poderoso mago no imaginário coletivo, bem como resenha os principais estudos que foram, a pouco e pouco, montando o quebra-cabeças. O mesmo se pode dizer do ensaio de Ivo Castro, “Sobre a edição do Livro de José de Arimatéia” (p. 59) – uma defesa contundente, e justa, do minucioso labor filológico que exige a preparação de qualquer desses textos, a exigir não só o domínio de um vasto instrumental técnico, de teor comparativo, mas também boa dose de ousadia, de sensibilidade perceptiva e de criatividade. Embora bem provido das duas condições, como demonstra sua dissertação de doutorado apresentada à Universidade de Lisboa em 1984, o autor confessa dúvidas que, ao final do artigo, desnudam o quanto ainda se tem por avançar, por responder, por “demandar”: que lugar ocupa no estema da Estoire o manuscrito francês [do José de Arimatéia] que serviu de exemplar à tradição peninsular? Quem trouxe para Portugal os manuscritos da Estoire, da Queste e da Mort Artu, e possivelmente do Merlin, terá trazido outros (Lancelot, Tristan)? A “coesão” da “matéria de Bretanha”, cada vez mais documentada, será “retrato” da realidade ou “miragem”? (p. 68). Neste sentido – o das indagações que estimulam – José Carlos Roberto Miranda tem uma bela proposta sobre o papel de Elaim, o Branco, filho de Boorz, muito menos “estrela” que seu casto pai, na continuação da linhagem de Lancelote, depois que seu “duplo” Galaaz (nas palavras de Miranda) assume de vez a condição angélica. A pujante formulação, se suscitar interesses mais amplos, pode ser encontrada em Galaaz e a ideologia da linhagem (Lisboa: Granito, 1998), onde José Carlos relaciona a organicidade do universo arturiano e a questão sociológica linhagística própria de uma estrutura feudal como a da Baixa Idade Média. E para encerrar o rol de colaborações que movem à verticalização dos diálogos, continuam fundamentais as análises genológicas (p. 125, em que pese à opção por hermetismos de linguagem), as devassas do plano simbólico (p. 81, p. 145, p. 241) ou, como fez Michelle Szkilnik, de modo original, as localizações das chamadas “personagens secundárias”, cujo papel vai muito além de simples “mediadoras” na narrativa.

Como se percebe, comutados “prós” e “contras”, as Atas sobre A matéria de Bretanha em Portugal prestam à causa serviço de mérito. Quando menos por recolocar, no centro da arena, tema tão mais polissêmico quanto mais cindido entre a visão ligeira, incompatível com a realidade histórica de curta e longa duração em que todo o ciclo se insere, e a visão acadêmica, que muitas vezes peca por excesso oposto, em seu anseio de “precisão”, ao subestimar as diversas e quase sempre obscuras camadas culturais compactadas na matière. As coordenadoras estiveram atentas ao equilíbrio de linhas, o que já de si recomenda a obra.

Lênia Márcia Mongelli – Universidade de São Paulo / ABREM. E-mail: mongelli@dialdata.com.br


NEVES, Leonor Curado; MADUREIRA Margarida e AMADO, Teresa. (Coordenadoras). Matéria de Bretanha em Portugal. Lisboa: Colibri, 2001. Resenha de: MONGELLI, Lênia Márcia. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.2, p. 64-65, 2003. Acessar publicação original [DR]

Contos-de-fadas celtas

As narrativas selecionadas e apresentadas por Joseph Jacobs em Contos-de-fadas celtas são um convite para penetrarmos no fascinante mundo da mitologia celta. Os pequenos contos escritos ao estilo dos contos populares recolhidos pelos irmãos Grimm apresentam os elementos fantásticos comuns a esse tipo de narrativa: seres de outro mundo vem buscar os humanos para compartilhar as delícias da eterna juventude ou então, as personagens principais são grandes heróis capazes de toda e qualquer façanha para alcançar os seus objetivos. Alguns desses heróis são os protagonistas de determinadas histórias que fazem parte dos grandes ciclos das narrativas celtas, como por exemplo, o Ciclo Histórico ou o Ciclo de Finn. A maioria das narrativas foram reescritas e adaptadas durante a Idade Média e sofreram uma forte influência do cristianismo o que modificou um pouco algumas de suas características mas conservaram a essência da mitologia celta. As narrativas aqui selecionadas faziam parte da tradição oral do povo celta habitante das terras da Irlanda, Escócia e País de Gales e ainda hoje mantém vivos todos esses “contos-de-fada” como manifestação folclórica.

A primeira narrativa, “Connla e a donzela encantada” apresenta o herói Connla do Cabelo de Fogo, filho do rei Conn das Cem Lutas. Connla deixa-se seduzir por uma bela moça vinda do outro mundo. Ela o convida a seguí-la para juntos viverem em um lugar paradisíaco, onde ninguém sofre com doenças, a velhice ou morte. Conn, o pai tenta impedir o filho de partir nessa viagem sem volta mas, Connla parte com a jovem rumo ao pôr-do-sol e nunca mais são vistos. No desenrolar da trama elementos importantes da cultura celta vão sendo apresentados: a donzela aparece em uma curragh, barca de cristal mágica, utilizada para chegar ao Reino dos Mortos ou à Ilha de Avalon, ela oferece a Connla uma maçã, fruto sagrado e, por mais que esse fosse devorado, era sempre reconstituído.

Com uma narrativa ágil que prende o leitor ao texto os contos vão sendo apresentados de maneira a não só entreter, mas também, a apresentar a riqueza da cultura e mitologia celta.

Outra narrativa bastante interessante é “O’Shee Na Gannon e o Gruagach”. Esse conto vai apresentar o nascimento mágico da personagem título, O’Shee:

“O’Shee na Gannon nasceu de manhã, recebeu seu nome ao meio dia, e à noitinha foi pedir a mão da filha do rei de Erin em casamento”. (p.139)

Além demostrar como a personagem nasce, cresce e decide se casar no mesmo dia, ela escolhe como noiva a filha do rei de Erin, nome mitológico da Irlanda, clara referência ao passado mítico do país e a sua importância para o presente.

Mas, não só referências aos lugares sagrados e a alguns heróis desconhecidos existem nas narrativas; há um conto, “O pretendente de Olwen” onde o rei Artur e alguns dos futuros cavaleiros da Távola Redonda são personagens. Esse conto apresentado aqui em versão resumida mas conservando o eixo narrativo é um dos contos integrantes d’O Mabinogion [1]. O conto está nos “Quatro Contos Nativos Independentes”, segunda parte da obra e vai narrar a busca de Culhwch por sua pretendente, Olwen. O rei Artur, a mais conhecida personagem das narrativas que evocam tanto a mitologia celta como o imaginário medieval, é o pivô central da disputa pela mão da bela Olwen, auxiliando o primo Culhwch a conseguir vencer as provas para conseguir casar-se com a donzela. Nessa narrativa há descrições das armas utilizadas por alguns dos componentes das tropas do rei e, essas breves descrições apresentam a grandiosidade desses instrumentos nos remetendo ao espírito guerreiro dos celtas, mostrando a necessidade desse povo estar sempre atento às guerras e invasões de outros povos, fato constante e, portanto, era preciso estar em sempre em estado de alerta.

As descrições, tantos das armas como dos lugares e das personagens são realizadas de maneira sucinta, não há riqueza de detalhes, o que é uma características das narrativas mais curtas que privilegiam os aspectos fantásticos e mágicos esses sim, descritos com mais detalhes pois são o centro da narrativa. Há ainda alguns contos onde a personagem é visitada por seres fantásticos, como duendes e fadas e esses os agraciam com bons ou maus presentes dependendo da atitude do ser humano para com os seres etéreos.

As vinte e seis narrativas constantes no volume são uma pequena amostra da riqueza e beleza da mitologia celta e apresentadas na forma de narrativas curtas mas bem construídas, são fonte de conhecimento da cultura e sociedade celta e oferecem ao leitor e ao estudioso, subsídios para uma maior compreensão da importância do povo celta para a cultura ocidental.

Os elementos da narrativa fantástica estão presentes em todas as narrativas apresentadas e são eles, os responsáveis por enfatizarem o caráter mítico de cada conto e, desta forma, oferecer ao leitor – seja ele conhecedor da mitologia celta ou não -, uma chave para abrir as portas do fascinante mundo do povo celta.

Nota

1. A edição utilizada d’O Mabinogion é a seguinte: MORAIS, José Domingos (tradução e introdução) O Mabinogion. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000.

Luciana de Campos – Doutoranda em Letras/UNESP/S.J. Rio Preto. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br


JACOBS, Joseph (seleção). Contos-de-fadas celtas. São Paulo: Landy Editora, 2001. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.1, p.65-66, 2003. Acessar publicação original [DR]

Angus: o primeiro guerreiro. Livro um | Orlando Paes Filho

As narrativas de antigos guerreiros sempre fascinaram o ocidental moderno. Desde o romantismo, diversos romances foram escritos sobre façanhas ancestrais, elegendo principalmente a Idade Média como cenário para tal aventuras. Mas os denominados povos “bárbaros” – celtas, germanos e eslavos – sempre ocuparam uma posição secundária nestas literaturas. Foi somente no século XX que os escritores descobriram o universo encantador das obscuras etnias que sempre estiveram “à margem da civilização”.

Em seu lançamento de estréia, Angus, o escritor brasileiro Orlando Paes Filho realizou um projeto editorial ousado, com uma produção gráfica impecável e um monumental apoio de pesquisa. O livro conta a primeira etapa da formação do clã escocês MacLachlan, acompanhado de belas ilustrações e diversos mapas históricos ao final do texto. A condução da narrativa é bem feita, cativando em muitos momentos a imaginação do leitor. As cenas de batalha, desde seus preparativos até a sua sequência final, são maravilhosas, demonstrando um grande conhecimento do autor sobre a guerra nos tempos antigos. Aliás, a preocupação em conseguir definir um contexto histórico com mais precisão por toda a narrativa, levou o autor a solicitar apoio de acadêmicos, como o de alguns medievalistas brasileiros, alem de pesquisadores em arte sacra, como Marcelo Bertani. Mas devido ao fato da primeira parte da obra utilizar principalmente referências sobre a cultura Viking – praticamente desconhecida da academia brasileira – a obra acabou cometendo inúmeros erros, anacronismos, concepções moralistas e interpretações equivocadas, o que acabou comprometendo a qualidade geral do romance.

Em primeiro lugar, encontramos muitos erros etimológicos no texto, como por exemplo a utilização da palavra drakkar como sendo própria da cultura Viking (p. 31). Na realidade, ela surgiu de uma expressão latinizada na França, e a expressão original em Old Norse é Langrskip (navio longo, Haywood, 2000, p. 171). Já com relação à palavra Viking, no texto menciona-se “homens do norte, que chamavam a si mesmos de vikings” (p. 29). Recentemente, o especialista Jesse Byock demonstrou que o termo não designava originalmente os habitantes da Escandinávia, ou seja, eles não auto conclamavam-se com essa expressão. Ela era empregada para qualquer tipo de pessoa que navegava além mar, seja para motivações de pirataria, comércio pacífico e colonização (Byock, 2001, p. 11-13). Na mesma página, outro erro etimológico: “jarl, palavra da língua deles que significava exatamente comandante”. Porém, em Old Norse ela é traduzida como “conde” ou “lorde”, e segundo Haywood, originalmente significava “meant simply prominent man” (2000, p. 181). Para nomear as sacerdotisas das runas (p. 85), o autor utilizou a palavra “anjos da morte”, utilizada pelo árabe Ibn Fadlan no século IX d.C. e popularizada pelo filme “O 13º guerreiro”. Seria melhor utilizar a expressão original, spá-kona (mulher que conta o destino) ou völva (profetisa) (Boyer, 1981, p. 145).

Continuando a análise do livro, encontramos diversas interpretações incorretas. Logo no início, o autor descreve uma reunião de druídas, sacerdotes da religião celta, onde um monge cristão participa para revelar uma profecia (p. 11-22). A mesma situação se repetirá no desfecho, onde no círculo megalítico de Stonehenge, em meio a monges cristãos, um sacerdote druida oferece a Angus uma espada feita com os cravos da cruz de Cristo. Um situação totalmente impossível, do ponto de vista histórico. Representantes do paganismo nunca permitiriam a participação de cristãos em seus cultos, ainda mais num local muito significativo para as religiões pré-cristãs da Inglaterra, as ruínas de Stonehenge.

Com relação aos marinheiros Vikings, Paes Filho afirma que temiam a grande serpente marinha, Jormungandr, assim como os deuses oceânicos (p. 54). Nada mais incorreto. Esse monstro marinho não era temido, e sim respeitado pelos nórdicos, um verdadeiro símbolo da ordem e do caos no universo (Boyer, 1997, p. 435). Quanto aos deuses primordiais do oceano, Aegir e sua mulher Rán (depois substituidos em importância por Njörðr), eram aplacados facilmente com o transporte de peças de ouro nos navios (Boyer, 1981, p. 136). Aliás, em nosso conhecimento dos escandinavos medievais, podemos afirmar categoricamente que eles não temiam nada!

Outro equívoco do autor é a descrição do ritual Blóðörn (asa de águia) como sendo uma prática específica de um filho para vingar o pai morto. Na realidade, era um ritual utilizado para honrar o deus supremo, Óðinn, e também praticado em criminosos e prisioneiros de guerra (Boyer, 1981, p. 160).

Dois momentos do romance são puramente anacrônicos. No primeiro, o pai de Angus torna-se possuído por um sentimentalismo típico do mundo moderno, de origem hebraico-cristão: “Ninguém mais vai torturar prisioneiros que já foram derrotados e que não têm como se defender!” (p. 113). A prática de oferecer prisioneiros de guerra para rituais ao deus Óðinn era muito comum entre os nórdicos (tanto por afogamento, queima, enforcamento e pelo asa de águia), e de maneira nenhuma podemos considerála sádica, e sim, característica de uma cultura voltada essencialmente ao culto da guerra, ao belicismo e as consequências simbólicas na vitória dos conflitos (Boyer, 1981, p. 158-162). Em outro momento, Angus chora a morte do pai Seawulf (p. 138). Outra situação impensável para um guerreiro Viking e para os bárbaros germânicos em geral, pois mesmo diante da própria morte portavam-se sempre sorridentes e cômicos (Brøndsted, s.d., p. 236).

Comentando sobre antigos reis da Germânia e sua suposta descendência de Woden (Óðinn para os Vikings), Angus se revela perplexo: “Achei impossível e até engraçado alguém descender do próprio Odin” (p. 150). Era muito comum entre os escandinavos a associação entre esse deus com a dinastia dos governantes, e diversos skalds (poetas) e historiadores do século XII montaram verdadeiras listas da descendência divina dos reis nórdicos (Boyer, 1981, p. 142).

Mas apesar dos erros textuais, os piores problemas ocorrem nas ilustrações, obviamente as maiores perpetuadoras de estereótipos sobre os Vikings para a sociedade moderna (Langer, 2002). Nas maioria das imagens do livro os guerreiros são representados com enormes bíceps, musculatura descomunal, quase como praticantes de fisiculturismo moderno. Algo tão irreal quanto anacrônico. Essa maneira de representar os bárbaros surgiu com as primeiras imagens da obra do escritor Robert Howard, especialmente de seus heróis Conan e Kull. Durante os anos 1950, com Frank Frazetta, e posteriormente com Boris Vallejo e os inúmeros quadrinistas dos mesmos personagens, o bárbaro foi idealizado como símbolo do homem perfeito – forte e descomunal até os limites máximos do corpo humano. Com o filme Conan, o bárbaro (1982), o ator Arnold Schwarzenegger encarnou esse ideal, que persiste na arte atual como um verdadeiro modelo estético. Um dos únicos pintores que conseguiu retratar os Vikings com grande perfeição histórica foi Tom Lovell, com magníficas ilustrações realizadas para a revista National Geographic em 1970. Do mesmo modo, as mulheres representadas no livro Angus são irreais: seios gigantescos, corpo esguio e detalhes faciais típicos das modelos atuais.

Em uma análise do equipamento, causa muita admiração o fato dos ilustradores terem realizado uma pesquisa minuciosa, representando corretamente alguns capacetes reais da era Vendel, broches, mantos, escudos e espadas celtas. Mas ao mesmo tempo, apesar do estudo rigoroso, acabaram por perpetuar estereótipos bem conhecidos do grande público, como os fantasiosos capacetes com chifres e asas laterais (a ilustração “funeral de Wulfgar”, foi baseada na pintura “funeral de um Viking”, de F. Dicksee, 1893, uma das popularizadoras do estereótipo dos elmos chifrudos). Consideramos inadmissível um romance moderno sobre escandinavos ainda persistir em uma imagem tão ultrapassada dentro das pesquisas medievalistas (Langer, 2002).

Mas ainda existem outros erros. Por todo o livro, inclusive por parte do personagem central Angus, ocorre a utilização de machados duplos – um equipamento totalmente desconhecido pelos Vikings (utilizavam apenas machados de uma lâmina). Aliás, analisando-se o tamanho proporcional das peças ilustradas, o seu uso por apenas uma das mãos é algo impossível, mesmo por fortes guerreiros. Ainda com relação à esse armamento, na página 59 o autor descreve que no machado de Angus estaria gravado nas duas faces a runa de Þórr (Thor), chamada Thorn. Mas a ilustração “Seawulf, Angus e Hagarth na Ânglia do Leste” (p. 53), dentro deste contexto do romance, traz erroneamente a representação da runa Beorc no machado de Angus. Um descompasso entre texto e imagem.

Também as cotas de malha representadas (cobrindo todo o corpo) estão fora de contexto na época retratada (século IX d.C.) – visto que os escandinavos as utilizaram genericamente somente a partir do século XI d.C., principalmente na área da Normandia.

Em um ponto de vista da religiosidade medieval, a obra trata da conversão de Angus ao cristianismo – e em sentido simbólico – da supremacia teológica do cristianismo sobre o paganismo Viking: “Os deuses nórdicos são geniosos e impetuosos, mais humanos do que divinos. Mas aquele Deus dos cristãos, que fazia reis renunciar ao trono por devoção a Ele, deveria ser muito poderoso” (p. 107). Implicitamente, dizer que os deuses germânicos são mais antropomórficos que o deus monoteista hebraico-cristão é totalmente fantasioso e fora do contexto acadêmico moderno. O autor deveria ter lido alguns pesquisadores como Mircea Eliade, Régis Boyer e Joseph Campbell, que com certeza teria criado uma visão bem diferente das crenças da Europa pré-cristã. Aqui, evidentemente, as opiniões religiosas do escritor prevaleceram sobre seu personagem, tornando o livro uma ode ao triunfo do cristianismo. Uma lamentável opção, segundo o referencial dos leitores mais exigentes.

Em conclusão, devido aos inúmeros anacronismos do romance Angus, recomendamos a leitura dessa obra apenas como um passatempo inconseqüente. Para atingir uma proximidade maior com a verdadeira sociedade dos Vikings, ao leitor só resta aconselhar a busca por obras acadêmicas.

Referências

BOYER, Régis. Yggdrasill: la religion des anciens scandinaves. Paris: Payot, 1981.

_____ A grande serpente. In: BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1997.

BRÖNSTED, Johannes. Os vikings: história de uma fascinante civilização. São Paulo: Hemus, s.d.

BYOCK, Jesse. Viking Age Iceland. London/New York: Penguin, 2001.

DUBOIS, Thomas A. Nordic religions in the Viking Age. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999.

HAYWOOD, John. Encyclopaedia of the Viking age. London: Thames and Hudson, 2000.

LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies. Visby (Sweden), n. 4, 2002b.

Johnni Langer – Facipal, Faculdades Integradas de Palmas, PR. E-mail: thor_odin7@hotmail.com


PAES FILHO, Orlando. Angus: o primeiro guerreiro. Livro um. São Paulo: Arxjovem, 2003. Resenha de: LANGER, Johnni. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.1, p.67-70, 2003. Acessar publicação original [DR]

Arthur et la Table ronde. La force d’une légende | Anne Berthelot

Arthur et la Table ronde, escrito por Anne Berthelot, é uma obra de divulgação sobre o mito e a literatura arturianos que se inscreve nos objetivos da coleção “Découvertes Gallimard”. Nele, a autora, professora de literatura francesa medieval da Universidade de Connecticut e especialista nos romances em prosa do século XIII, procura apresentar uma visão recente sobre o tema.

O livro é composto de cinco capítulos, ao longo dos quais são abordados aspectos relativos aos significados histórico e literário do personagem. Ao assinalar a provável existência histórica de Artur, a autora faz referência aos primeiros documentos literários, tais como De excidio Britanniae, de Gildas e Vie de saint Colomban, manuscrito latino no qual o nome do rei Artur apareceu pela primeira vez, e cujo excerto é reproduzido na página em questão.

Segundo a autora, é possível encontrar coerência nos relatos sobre a vida de Artur. Embora construída a partir de elementos mínimos, sua biografia relata desde a concepção, decorrente da magia de Merlin, até sua morte perto da Ilhas Afortunadas, de onde retornará para libertar o povo bretão do jugo dos invasores. Quanto às lendas, a figura de Artur se apresenta como uma combinação de tradições e culturas variadas, tais como a mitologia celta, a herança antiga, o modelo feudal e a tradição cristã. Contudo, apesar da existência de elementos heterogêneos, as lendas se apresentam como narrativas relativamente organizadas, abordando temas como a Távola Redonda, a feudalidade, a cortesia, o verdadeiro amor, o triângulo amoroso e o Graal.

Quanto à criação da lenda, ela é situada a partir do domínio normando sobre a Inglaterra, em especial no século XII. A Historia regum Britanniae – escrita por Geoffrey de Monmouth durante o reinado de Henrique I -, identifica Artur como o mais admirável entre todos os reis que governaram a Bretanha. Contudo, foi a partir da dinastia plantageneta, na pessoa de Henrique II, que a figura de Artur ascendeu na cena literária. Visando afirmar seu poder diante da rival dinastia capetíngia – que se apresentava como descendente de Carlos Magno -, Henrique II incentivou a criação de toda uma literatura protagonizada pelo herói bretão. Os propósitos de Henrique II eram claros: ao se apropriar da lenda de Artur, o soberano se apresentava como legítimo herdeiro do ancestral bretão.

Tal literatura, escrita no vernáculo e inaugurada por Wace no Roman de Brut, encontrou na Historia regum Britanniae sua principal fonte de inspiração. Wace, ao recuperar os feitos de Artur descritos na obra, lançou os elementos que serviram de base aos relatos posteriores da lenda. Com efeito, a carreira de Artur na literatura foi muito bem sucedida: durante cerca de um século e meio, o romance arturiano foi um dos gêneros mais ricos da Idade Média francesa. O sucesso de tal literatura atravessou fronteiras, uma vez que todos os países da Europa tomaram emprestado seus temas e, às vezes, as próprias narrativas, que foram traduzidas ou adaptadas de acordo com as características locais.

Obedecendo à proposta da coleção, o livro inclui um apêndice denominado “Testemunhos e Documentos”. Nele, são reproduzidos excertos de fontes variadas sobre Artur, e que vão desde a literatura do século XII até a do século XX, passando pelos registros fotográficos dos vestígios de Artur em Tintagel, Camelot, Mount-Badon e Glastonbury, e culminando com referências a algumas versões cinematográficas da lenda.

Se a obra não acrescenta muito quanto aos atuais conhecimentos acerca de Artur, o mesmo não pode ser afirmado quanto às ilustrações que o acompanham. O livro é uma verdadeira mina iconográfica, tanto em quantidade como em qualidade. São cerca de cento e cinqüenta ilustrações, que incluem mapas e iluminuras medievais, fotos de locais relativos à lenda, reproduções de pinturas e de representações teatrais realizadas no século XIX, todas com os respectivos créditos no final da obra. Numa época em que a imagem ganha uma importância cada vez maior, e que as fontes iconográficas vêm ocupando um lugar de relevo, inclusive nos estudos medievais, a obra constitui uma excelente contribuição nesse sentido, como pode ser exemplificado pela capa do livro aqui reproduzida.

Finalmente, quanto à bibliografia utilizada, a autora lançou mão de textos medievais e modernos, estudos críticos, obras gerais sobre literatura, história e civilização – estas últimas incluindo Georges Duby e Jacques Le Goff -, bem como obras de referência, periódicas e sites na Internet.

Resta esperar que a Editora Objetiva, que já começou a publicar alguns dos mais de trezentos títulos da coleção, inclua Arthur et la Table ronde entre seus próximos lançamentos, permitindo tornar a obra mais acessível aos estudiosos e ao público em geral.

Maria de Nazareth Accioli Lobato– Mestre em História – UFRJ. E-mail: nazareth@novanet.com.br


BERTHELOT, Anne. Arthur et la Table ronde. La force d’une légende. Paris: Gallimard, 1996. Resenha de: LOBATO, Maria de Nazareth Accioli. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.2, n.2, p.45-46, 2002. Acessar publicação original [DR]

História da Galiza | Ramón Villares

Rámon Villares é diretor do Departamento de História Contemporânea da Universidade de Santiago de Compostela e publicou em 1984 uma obra intitulada História da Galiza, que foi lançada em Portugal no ano de 1991. Nesta obra, o autor faz uma síntese global da história da Galiza, região situada no extremo norte da Espanha e que até o século XII estava unida ao Norte de Portugal. A meio caminho entre a Espanha e Portugal, essa região é importante para o autor devido à sua especificidade cultural, que deu origem a movimentos políticos no início do século XX como o galeguismo. Neste sentido, a retomada histórica realizada pelo autor nesta obra tem a finalidade de demonstrar historicamente as peculiaridades que formam a identidade galega.

O autor inicia sua busca pela identidade galega na pré-história, um período que se estenderá dos primeiros povoadores até a conquista romana. A identificação dos primeiros povoadores, ressalta o autor, é complicada em virtude da escassez de fontes e vestígios antropológicos e arqueológicos, somada a uma imprecisão dos testemunhos literários. Ao trabalhar com a pré-história galega, o autor fornece alguns indicativos da multiplicidade de povos que se situaram nesta região, chegando à verificação de ondas migratórias de povos celtas provenientes da Europa central, que teriam modificado consideravelmente o cenário galego. As principais fontes utilizadas pelo autor para a investigação das diferentes constituições sociais da Galiza são as necrópoles, pois, segundo Rámon, o estudo das formas de enterramento possibilita a compreensão da configuração social, econômica, cultural e das relações sociais desenvolvidas na sociedade.

Assim, para o período anterior à chegada dos celtas no noroeste peninsular, o autor constata, pela disposição dos dólmãs, ou seja, dos monumentos funerários, que a sociedade era pouco hierarquizada e encontrava-se dispersa pelo território, uma vez que os enterramentos eram coletivos, sem acompanhamento de jóias ou objetos pessoais e os monumentos estão situados em diferentes partes do território. Com a chegada dos povos de origem celta (c. VI a.C) ocorre uma hierarquização da sociedade verificada por meio do enterramento individualizado com as jóias e objetos pessoais. Também se desenvolve uma sociedade centrada ao redor de habitações denominadas castros, que serviam também como centros de defesa. A hierarquização da sociedade aconteceu a partir do momento em que esses povos, provenientes da Europa central, trouxeram para a Galiza o conhecimento da utilização do ferro, o que ressaltou o caráter metalúrgico da região, antes voltada para o trabalho com bronze, cobre, chumbo e estanho. Essa introdução de um novo sistema produtivo pode ter modificado sensivelmente as relações sociais dos habitantes da Galiza, a começar pela diferenciação social em dois grupos, os autóctones e os celtas.

A investigação da presença celta na Galiza não é destituída de significado. Segundo o autor, houve na produção historiográfica espanhola uma exaltação dos elementos celtas na cultura galega como fator comprovador da peculiaridade dessa cultura em detrimento da espanhola. O celtismo teve um grande desenvolvimento no decorrer do século XIX, cujo expoente foi o historiador Manoel Murguía, para quem “muitos poucos povos como o galego souberam conservar através dos tempos de forma mais pura, constante e indeclinável a sua fisionomia. Não é possível duvidar disso. Tudo nele é tradicional e está mais no costume que na lei escrita; na literatura oral, que na erudita; no seu coração e não nas manifestações exteriores” (VILLARES, 1991, epígrafe). O forte caráter nacionalista desta idéia é confirmado pela busca incessante do diferencial galego, que se enraíza em seu passado e em sua constituição. A partir daí, tem-se um “mito fundador da nação galega” (VILLARES, 1991: 25), cuja origem seria celta e comprovaria a superioridade e a autenticidade dessa cultura.

Com a romanização do território, que passa a se chamar Gallaecia, há a sua incorporação nos quadros jurídicos do Império, que resultou na divisão espacial do território em conventus: o bracarense, o lucense e o asturiense. Braga, Lugo e Astúria formavam o circuito urbano e intelectual da região e eram centros administrativos, religiosos e jurídicos. Foi a partir desses locais que o cristianismo se difundiu no restante do território galego através da presença das sedes episcopais, que contavam com importantes nomes como Idácio de Chaves, Paulo Orósio e Martinho de Braga. Ao tratar da romanização e da Idade Média, o autor continua disseminando velhos preconceitos como, por exemplo, a consideração de uma cultura superior – a romana – e uma cultura inferior – a pré-histórica –. Isso causa espanto, quando considerado o brilhantismo da exposição acerca da cultura castreja e pré-histórica galega, realizada pelo autor nos capítulos anteriores. Essa superioridade cultural estava pautada no contato e conhecimento da escrita pelos romanos, que latinizaram a região em detrimento da oralidade dos povos autóctones.

Os demais períodos da história galega demonstram o esforço interpretativo do autor para desvendar as características políticas, sociais e econômicas da região com ênfase na interferência da Igreja nas decisões políticas e de uma sociedade agrária até as portas do século XX. Entre os séculos XI e XIII, com a delimitação do território português, houve o período de reconquista do território espanhol ocupado pelos árabes e de movimentação e peregrinação a Santiago de Compostela. Essa cidade foi um importante local de afirmação da religiosidade cristã e do território frente a outros centros religiosos como Braga e Toledo. Novamente, há a exaltação da região frente à portuguesa e espanhola, o que se enquadra nos propósitos do autor. Durante o Absolutismo, o autor ressalta a sua atipicidade na Galiza, uma vez que a incorporação da região ao reino de Castela fez com que ela permanecesse à margem do processo de centralização monárquica. O século XIX é caracterizado pelas constantes migrações dos galegos para outras partes do mundo, como resultante da crise deflagrada a partir das primeiras tentativas de modernização do território e sua incapacidade para tal. Essa modernização será brutal a partir do século XX e resultará na quebra das antigas relações sociais e na economia agrária. Assim, “durante o século XX, se produz uma intensa onda de privatizações da terra, depois de séculos de organização partilhada, sob a forma foral ou comunal, da propriedade da mesma. É o momento histórico em que se desarticulam estes elementos tão centrais na configuração de uma sociedade agrária tradicional, pilotada por camponeses independentes com fortes solidariedades comunitárias” (VILLARES, 1991:134). O movimento mais importante que ocorreu no século XX foi o galeguismo, que levou para a esfera política a defesa do nacionalismo galego. Esse movimento iniciou-se com o Manifesto da Asamblea Nazonalista de Lugo, que tinha por metas, além da defesa do nacionalismo, o republicanismo, o federalismo e do iberismo.

A preocupação fundamental do autor com a identidade galega e sua especificidade em relação tanto a Portugal quanto ao restante da Espanha tem suas raízes na atual situação vivenciada pela Europa de um modo geral. A globalização e a União Européia trazem à tona a discussão a respeito das peculiaridades regionais que formam essa nova realidade econômica que vem se estruturando paulatinamente. Neste contexto, fica evidente a necessidade de acentuar a peculiaridade da identidade galega que, como quis demonstrar Manoel Murguía e outros depois dele, é decorrente da própria história da Galiza e encontra-se fincada em tempos dos mais imemoriais.

Rossana Alves Baptista Pinheiro – Universidade Estadual Paulista/Franca Bolsista FAPESP/Mestrado. Membro do grupo Memória e Parentesco na Idade Média.


VILLARES, Ramón. História da Galiza. Lisboa: Horizonte, 1991. Resenha de: PINHEIRO, Rossana Alves Baptista. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.2, n.2, p.47-49, 2002. Acessar publicação original [DR]

Lais de Maria de França | Antonio L. Furtado

Escritos no século XII quando a Europa Ocidental vivia a sua “Renascença” e desfrutava a delicada experiência da cortesia, os Lais de Maria de França mostram aos leitores do século XXI um retrato elaborado com finas cores da sociedade medieval e, principalmente, de elementos da cultura celta que estão presentes em alguns lais.

Esses textos denominados “lai” têm a sua origem na palavra celta “laid” que significa “canto”. Portanto, essas composições na sua origem provavelmente foram cantadas, acompanhadas do alaúde e das flautas, e foram compostas por uma mulher da qual, pouco se conhece da sua biografia (a hipótese mais provável é que foi meia-irmã do rei Henrique II da Inglaterra). Esses lais carregam em suas linhas elementos importantes para o estudo da cultura e da sociedade celta.

Há três lais que chamam a atenção quando tratamos dos elementos celtas. São eles: “Freixo”, “Dois Amantes” e “Madressilva”. Este último nos apresenta o episódio da madressilva e da aveleira, passagem de Tristão e Isolda , uma das mais populares narrativas medievais.

O lai “Freixo”, tem o nome de uma frondosa e bela árvore que na mitologia celta tem caráter sagrado. O freixo, (Fraxinus Excelsior) é uma árvore que tem o poder de afugentar cobras e de proteger todos aqueles que estão sob a sua sombra, segundo a mitologia e as crenças que surgiram em torno da grande árvore.

Essa árvore é responsável pela ligação com o mundo dos deuses ( na mitologia nórdica o Feixo é Yggdrasil, a Árvore do Mundo) e pela proteção para os homens. Encontramos narrado nesse lai a história da menina de origem nobre que é abandonada sob um freixo: “…largo e copado, muito espesso e frondoso, dividia-se em quatro ramificações. Fora plantado para dar sombra.” “… porque fora achada no freixo, Freixo foi o nome que lhe deram e todos a chamavam Freixo.” (p.68/69).

Esses são elementos importantes para entendermos o caráter sagrado da natureza e a interação entre o mundo sagrado e o humano.

“Dois Amantes” narra uma aventura passada na Normandia (Noroeste Francês, região vizinha à Bretanha, região fortemente marcada pela cultura celta) e a autora nos informa que foram os Bretões que fizeram um lai para contar essa aventura.

Uma bela jovem filha de um rei será dada em casamento aquele que conseguir escalar um alto morro carregando-a em seus braços sem parar para descansar.

A donzela conhece um belo jovem e os dois se apaixonam, e para conseguir cumprir a tarefa exigida pelo rei recorrem a uma mulher sábia, parenta da jovem, para que prepare uma poção que dê forças ao jovem. Mas, com a donzela nos braços esquece a poção e cai morto no pico do morro. A missão fora cumprida. A jovem enlouquecida pela morte do amado joga o frasco com a poção que se espalha na terra trazendo fertilidade ao lugar e alegria aos seus moradores.

A presença de uma mulher, parenta da jovem que “… tanto praticou a arte da medicina que é muito perita em remédios, tanto conhece ervas e raízes” (p.97) mais uma vez nos remete aos celtas: a presença da mulher mais velha detentora do conhecimento das artes da cura que se coloca a serviço do amor entre os jovens.

No lai “Madressilva”, que também é conhecido pelo nome francês “Chievrefoil”, nos conta o encontro de Tristão e Isolda numa floresta.

Desesperado por estar distante de sua amada Tristão molda um bastão com um galho da aveleira e escreve a mais marcante frase da narrativa de Tristão e Isolda:

-Bela amiga, entre nós é assim:

nem eu sem vós, nem vós sem mim”.(p.131)

Escreve isso porque observa o que acontece com a madressilva e a aveleira: quando elas se entrelaçam podem viver por um longo período, mas separadas, morrem, uma em seguida da outra.

Esses três lais nos dão uma mostra do que é possível encontrarmos nas pequenas narrativas escritas por Maria de França: um mundo envolto em magia, onde ocorrem as metamorfoses de um príncipe em cisne para conquistar sua amada, como acontece no lai “Milun”, ou então, a maldição que persegue o príncipe em “Homem-Lobo”.

As mulheres são descritas de maneira singular: envoltas nos seus véus e brocados ocultam as suas estratégias para estarem junto dos seus amados.

A natureza está sempre presente pelas árvores: freixo, a aveleira e a madressilva que nos remetem ao mundo natural, o que, para os celtas representava o elo de ligação entre os homens e o mundo sagrado.

Os lais estão permeados por elementos mágicos e naturais, o que nos leva a vislumbrar o mundo com os olhos dos celtas, onde o sagrado e o humano vivem em harmonia e colocam as mulheres muitas vezes como interlocutoras entre esses dois universos.

A tradução brasileira realizada por Antonio L. Furtado é cuidadosa e oferece ao leitor um texto leve e melodioso, conservando em suas linhas a musicalidade herdada dos celtas. O prefácio de Marina Colasanti é o convite para um passeio no mundo celta descrito em cada lai.

O público brasileiro – estudioso ou não da Idade Média – ganhou muito com a publicação dos Lais de Maria de França, não só pela excelente tradução diretamente do francês antigo, mas por ter em mãos uma obra que oferece uma das chaves para o conhecimento do mundo celta e da sociedade medieval do século XII.

Luciana Campos – Doutoranda em Letras/UNESP/S.J. Rio Preto. E-mail: lucampos@eudoramail.com


FURTADO, Antonio L. (Tradução e Introdução). Lais de Maria de França. Prefácio de Marina Colassanti. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2001. Resenha de: CAMPOS, Luciana. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.2, n.1, p.62-63, 2002. Acessar publicação original [DR]

Os Lusitanos | Adriano Vasco Rodrigues

No primeiro número do Brathair apresentei um artigo sobre os lusitanos. Entendi que um grupo de estudo dedicado aos “Celtas e Germanos” deveria, em sua manifestação inicial ao público, lembrar o principal laço que pela tradição une os brasileiros aos celtas. Essa iniciativa a assumi por ser, no grupo do Brathair, o único português, provável descendente dos lusitanos. Sabia que seria difícil encontrar bibliografia que me fornecesse subsídios para redigir o artigo, e a de que dispunha estava desatualizada; mas contava com a colaboração de professores portugueses, e de livrarias de Lisboa. As expectativas, porém, foram fraudadas e tudo o que me respondiam era “não há obras disponíveis sobre esse assunto”, “não sei quem se interessa pelo tema”. Lembrando porém antigas leituras, consultando amigos esforçados em me ajudar, e comparando a literatura possível, cheguei a conclusões e definições que arrisquei expor, e que brevemente retomo aqui, com os retoques próprios de uma apresentação sumária, começando pela questão da ascendência lusitana dos portugueses. Ora neste ponto parece que se pode dizer com tranqüilidade que os lusitanos são prováveis antepassados dos atuais portugueses, mas não de todos, nem no todo: a área abrangida pela ocupação desse povo na Península Ibérica corresponde apenas à região entre o Douro e o Tejo, e avança pela Estremadura espanhola e Castela-a-Nova; e como ascendentes dos portugueses os lusitanos se miscigenaram em proporções variáveis com os romanos (mais no Sul), com os germanos (mais no Norte) com mouros e berberes (no Sul) e muitos outros povos; além disso, sobretudo se acreditarmos nos relatos dos romanos, na longa guerra de dois séculos que sustentaram contra o Império, os lusitanos foram dizimados, e não foram muitos os que ficaram para serem legítimos antepassados dos portugueses.

Outra questão controversa é a da origem dos lusitanos; parece que a maioria dos autores se inclina pela ascendência local, recuando às ocupações megalíticas da Península; os lusitanos seriam a resultante de um povo de migração muito antiga, de cultura aparentada com outras culturas pré-históricas européias, que sofreu influências ibéricas em muitos aspectos da vida quotidiana – embora também pouco se saiba sobre a origem dos iberos. Será preciso também, para abordar corretamente a origem étnica e a cultura dos lusitanos, distinguir os das montanhas do interior dos habitantes das cidades do litoral, bem como os do norte dos do sul, sobretudo pelo fato da região do Tejo Ter ficado muito mais exposta à penetração dos povos do sul: célticos, cinéticos, e cônios, por sua vez relacionados com turdetanos, fenícios, e norte africanos. Por outro lado, a arqueologia diz-nos muito pouco das relações deste povo com os celtas, e as narrativas gregas e romanas também não a confirmam. A influência celta sobre os lusitanos é inegável, mas limitada, pouco comprovada, e posterior à existência dos lusitanos como povo identificado, sendo portanto provavelmente incorreto dizer que os lusitanos eram celtas, ao menos perante os dados disponíveis hoje em dia. Contudo, uma vez que a celtização da Península partiu dos Pirinéus em direção ao Atlântico pode se supor que a influência céltica sobre os lusitanos foi maior nas montanhas (atual Beira Interior, pátria dos lusitanos, segundo a tradição mais forte) do que no litoral.

A ideologia lusitana no Renascimento foi determinante para a construção doutrinal da idéia de Pátria com raízes compostas, entre a romanização e a oposição ao Império. Desde André de Resende (sempre citado) e Gil Vicente (com seu Auto da Luzitânia, pouco lembrado) a Luís Vaz de Camões (da ocidental praia lusitana) em cerca de um século se montou e difundiu a idéia de que os portugueses são descendentes dos valorosos lusitanos e de seus inimigos romanos. A idéia de pátria, como todos os mitos políticos de qualquer época, é complexa; mas os nossos renascentistas souberam articulá-la muito bem: por um lado descendemos dos romanos, cujo Império colocou neste território marcos indeléveis na língua e nos costumes; por outro somos herdeiros do confronto nascido nas raízes do território, nos lusitanos, miticamente ligados a deuses (da mitologia romana, não céltica nem ibérica). Essa dualidade, esses dois gêmeos que lutam no seio da mãe, constitui um paradigma de origem conflituosa, que serve para explicar todos os antagonismos existentes no povo, os ciclos e os altos e baixos da História de Portugal, toso o mito e realidade dos descendentes dos lusitanos.

Ao chegar a este ponto – que no meu artigo do Brathair entrevia, mas explicitei com outras palavras – duvidando ainda da consistência das minhas hipóteses, continuava esperando que as explicações dos especialistas de campo e de prática me confirmassem os pontos de vista. Mas foi só depois da edição desse primeiro número da nossa revista que me chegou às mãos o livro de Adriano Vasco Rodrigues. Adriano é arqueólogo e pesquisador da Universidade Portucalense e da Academia Internacional de Cultura Portuguesa, dirigiu uma instituição de ensino na Bélgica, criou o Instituto de Estudos Lusitanos no Porto (1961); em 1956 localizou uma inscrição lusitana (no Cabeço das Fráguas, Guarda, Beira Alta) que tem sido estudada pelo Professor António Tovar e considerada decisiva para o conhecimento da língua e do modo de vida dos antepassados (se não étnicos, ao menos simbólicos) dos portugueses. O que encontrei no livro de Rodrigues, anterior ao meu trabalho de busca de fontes para o artigo do Brathair, veio, para minha tranqüilidade, confirmar as hipóteses acima expostas, com algumas variantes ou pequenas diferenças que passo a explicar.

Em primeiro lugar vamos apreciar a composição e o conjunto do livro. No que se refere ao método de distribuição dos assuntos o texto deixa a desejar: está dividido em dezenove capítulos de tamanho muito desigual, variando de duas até 47 páginas de extensão; freqüentemente no corpo do mesmo capítulo misturam-se digressões e interpolações sobre temas de outros capítulos bem distintos, e que, não vindo a propósito, prejudicam o acompanhamento da argumentação. Contudo é possível distinguir-lhes uma ordem agrupando-os em três partes: 1. Questões gerais e metodológicas, incluindo historiografia e a problemática do estudo dos lusitanos, além do enquadramento etnológico e geográfico (p.13 – 142): 2. A cultura lusitana: economia, sociedade, religião, medicina, tática militar (143 – 308); e 3. O comunitarismo agro-pastoril lusitano e português (309 – 353). O índice está mal distribuído, e não há uma bibliografia final, mas apenas referências bibliográficas (notas) após cada capítulo; também não há índices de nomes, de temas, ou de autores citados, o que, dada a frequente discussão de questões, seria importante para nos localizarmos no texto. Estas falhas de metodologia, que prejudicam a apresentação e dificultam a consulta, não invalidam porém o conteúdo da obra e as teses apresentadas, que estão bem documentadas, cuidadosamente discutidas, e claramente definidas, além de apoiadas numa variedade consistente de fatores: geográficos e climáticos, de fontes históricas e etnográficas, de economia e de religião… É importante, por exemplo, a longa exposição da organização da Mesta, que desde pelo menos a Idade Média controla e disciplina a transumância na região central da Península, comparando-a com o modo de vida pastoril das montanhas e com as estratégias de guerra de Viriato; ou o paralelo que se estabelece entre o comunitarismo trasmontano e beirão, que perdurou até ao século XX, e a estrutura comunitária lusitana. Neste ponto, porém, o autor aparenta certa incoerência: por um lado utiliza a etnografia pastoril contemporânea para entender o modo de vida lusitano de dois mil anos atrás; por outro critica aqueles que usam relatos de escritores romanos, redigidos após a dominação dos lusitanos pelo Império, para discutir o modo de vida pré-romano – de dois séculos antes. Dizemos “aparenta “ porque de fato é inegável que a ocupação romana produziu sensíveis alterações no modo de vida dos lusitanos – sobretudo na maior sedentarização, ênfase na economia agrícola, e controle do bandoleirismo; enquanto, por outro lado, deve-se reconhecer que há traços da economia e das relações sociais dos montanheses e dos pastores nômades que têm tendência a longa vitalidade. É preciso ressaltar esta questão porque ela perpassa todo o livro de Adriano Rodrigues.

Um dos temas que mais nos interessa é o da relação entre os lusitanos e os celtas. O Autor começa por ser bastante explícito na negação do relacionamento étnico, para depois mostrar certa hesitação. Nas páginas 40-41 afirma: “A leitura da inscrição do Cabeço das Fráguas veio mostrar que a linguagem dos lusitanos não era céltica. Se compararmos agora um elemento de interesse etnográfico importante, o vestuário, veremos que se afasta daquele que nos chegou das descrições dos celtas (…) Pois os Celtas foram os inventores das calças. Os lusitanos não usavam calças. Os Celtas combatiam servindo-se de carros de guerra, praticando uma luta totalmente diferente da seguida pelos Lusitanos, que nunca recorrem ao carro de combate “. Aparte o detalhe de escrever Celtas com maiúscula e lusitanos geralmente com minúscula, sem motivo aparente, o Autor utilizou três elementos relevantes para demonstrar que os lusitanos não eram celtas: a língua, o traje, e as táticas de guerra. Podem se fazer vários reparos a distinções tão taxativas (e, ao contrário do que faz em outras questões, apressadas), porque: (a) sabe-se muito a respeito das línguas celtas para se conhecer grande variedade de idiomas distintos, e sabe-se muito pouco da língua lusitana para poder afiliá-la – ou não – com certeza a algum grupo lingüístico; (b) se o uso das calças fosse determinante na cultura celta os escoceses, que têm no saiote o traje tradicional, teriam que ser excluídos dessa família; (c) os celtas não usavam nem todos nem sempre os carros de guerra quando combatiam. Mas Adriano Rodrigues foi claro ao afastar o parentesco céltico dos lusitanos, como também foi claro ao não o negar completamente: “os Lusitanos poderão ter recebido aculturação do tipo céltico, gerada pelos contactos (…)” (ib.) Portanto, para o A. os lusitanos não eram originários nem descendentes dos grupos celtas que invadiram a Península Ibérica a partir do século VI ou V a.C., mas receberam influências culturais desses grupos.

Contudo, no decorrer das suas explicações e exposições, Rodrigues insiste tantas vezes em mostrar elementos celtas em território lusitano que parece duvidar de suas afirmações iniciais. Essa insistência aparece por exemplo a propósito dos topônimos, já que em terras lusitanas muitas localidades têm nomes derivados do celta, e o A. lembra todos eles, mesmo quando a distância torna as filiações lingüísticas muito improváveis, como ao sugerir relação entre a portuguesa Panóias e a imperial Panônia. Também na vida religiosa Rodrigues está sempre a lembrar o celtismo dos lusitanos, tanto nos nomes dos deuses como nas práticas de culto: até as tão conhecidas alminhas (pequenos nichos de rua com imagens dos santos populares) ele faz remontar ao culto dos mortos dos celtas (p.182). Ora se as localidades têm nomes celtas é porque os celtas andaram por lá, e não apenas mantiveram contactos com os lusitanos, como se estes se lembrassem de termos ouvidos em viagem por terras dos celtas peninsulares. Quanto à religião, sendo algo tão íntimo e arraigado à tradição, não se copia facilmente nem se abandona só por influência distante: é preciso um parentesco mais sólido para que se adotem deuses alheios. O A. pode até ter razão em descartar parentesco étnico entre os dois povos, mas como não discute o problema nos deixa em dúvida sobre as provas de que os lusitanos não eram celtas, mas só vagamente celtizados.

Pela nossa parte achamos mais provável, e já o dissemos no artigo do n. 1 do Brathair, que alguns grupos celtas tenham se estabelecido em terras lusitanas e contribuído não só para a formação cultural mas também para a composição étnica dos lusitanos, e por isso vamos deter-nos um pouco mais na questão.

No capítulo “ Sobrevivências actuais da religião dos lusitanos” Rodrigues trata da religião pré-romana, da influência céltica, celtibérica e romana, e da continuidade do paganismo nos cultos populares cristianizados – mas sem observar esta ordem de assuntos, antes todos eles mesclados. Nas 26 páginas do capítulo as palavras celta ou céltico aparecem 23 vezes, mas sem que em nenhum momento se faça uma análise detida do relacionamento entre as religiões em causa; apenas vai dizendo: “também os Celtas “(180) , “faz lembrar o deus celta “(181) , “tal como entre os Celtas “(181) , “o mesmo aconteceu com os Celtas “ (185), e vai justapondo radicais de nomes de deuses, festas cíclicas, cultos, e símbolos, mas sempre de passagem, sem ordem, para concluir : “(…) os lusitanos, que, como está provado, sofreram influências religiosas célticas “ (195) . A impressão é de que Adriano Rodrigues já estava convencido dessa influência e apenas se foi referindo a ela à medida que se lembra. Certamente não negamos a adoção de elementos religiosos celtas pelos lusitanos, mas fica a dúvida sobre se uma influência tão marcante, como AR aponta, viria só por contato externo, e não seria devida a uma presença céltica na Lusitânia. Dito de outro modo: a romanização da religião lusitana foi forte porque os romanos estavam no meio desse povo e o dominavam; não seria o caso de pensar que, de modo semelhante, os celtas se tivessem mesclado (em pequena proporção) com os lusitanos, pois desse modo se explicaria melhor a celtização da religião dos primeiros ocupantes dessa região? Ora o A., que afirma a relação entre as duas religiões mas nega a relação étnica entre os dois povos, nos deixa, pela sua forma de argumentar, a dúvida acerca da sua própria convicção e razão. Por outro lado, a presença dos celtas em manifestações religiosas e lápides de cemitérios em terras lusitanas comprovada incontestavelmente pelos trabalhos arqueológicos de Fernando de Almeida na Idanha (que citamos no nosso artigo) não é discutida, como se fosse para AR uma lembrança incômoda. Mas se os celtas morreram na Lusitânia é porque viveram por lá.

Os três últimos capítulos, que designamos por terceira parte, e que tratam das sobrevivências do comunitarismo agro-pastoril no Norte de Portugal, mais se deveriam considerar um apêndice, que parece que o A. pretendia colocar como introdutório, pois numa das páginas finais (321) escreveu: “(…) que ao longo deste livro iremos referindo (…)”. O caráter de anexo deve-se a que pouco faz menção do personagem principal da obra – os lusitanos – no decorrer dessas quase cinqüenta páginas. A hipótese básica é de o comunitarismo lusitano tenha de alguma forma persistido no português, “sem pretendermos que o sistema comunitário actual seja o dos lusitanos (…) “(30() pois as posteriores ocupações da Península por outros povos alterou a estrutura e o funcionamento do sistema de relações sociais e econômicas.. E após a descrição narrativa dos usos portugueses, sem se deter em análises e comparações, fecha o livro (p. 348, antes das notas finais) com a seguinte frase: “Apesar de mais de dois mil anos nos separarem dos lusitanos e profundas mudanças acentuarem as diferenças entre dois mundos, o deles e o nosso, nem tudo o tempo apagou na sua marcha inexorável.”

A obra de Adriano Vasco Rodrigues ficará certamente como uma referência importante para o estudo dos lusitanos: é alicerçada em vastas pesquisas arqueológicas, do autor e alheias, num considerável e por vezes exaustivo trabalho de campo etnográfico, e por demorada análise de fontes documentais antigas e de investigadores modernos. A desordem, ou quase desarrumação do texto, e a falta de revisão ortográfica e sintática prejudicam o entendimento do texto a tal ponto que muitas vezes deixam dúvidas sobre o que o A. pretende dizer. Quanto ao que procurávamos parece que as teses principais que Rodrigues defende são claras: a constituição da etnia e da comunidade de lusitanos, e sua presença contínua nas terras de Entre-Douro-e-Tejo são anteriores às migrações celtas; a cultura celta influenciou a lusitana em muitos aspectos, mas sobretudo na vida do espírito, sem alterar seus traços básicos; as migrações celtas não atingiram a Lusitânia com a sua presença física mas só pela sua influência cultural; os lusitanos contam-se entre os antepassados de uma parte dos portugueses mas também dos espanhóis da Estremadura e de parte de Castela-a-Nova; muitos outros povos e culturas contribuíram para a formação do povo português cabendo aos lusitanos um lugar predominante porém mais simbólico do que efetivo; a ascendência lusitana é desigual nas diversas regiões de Portugal, sendo mais forte nas regiões montanhosas do interior central e norte do País.

João Lupi – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br


RODRIGUES, Adriano Vasco. Os Lusitanos. Mito e realidade. Lisboa: Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1998. Resenha de: LUPI, João. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.2, n.1, p.64-68, 2002. Acessar publicação original [DR]

The Barbarians Speak: How the conquered peoples shaped Roman Europe | Peter S. Wells

A maioria das pessoas tem a mesma impressão do mundo romano: que a expansão de Roma pelo centro da Europa aculturou os povos dominados, substituindo a cultura nativa existente pelo modo de vida romano. Esta impressão é reforçada pelo fato de que há muito pouca informação ou documentos preservados referentes às populações que habitavam, nos tempos romanos, a área em que hoje ficam a França, Alemanha, os Países Baixos, a Escandinávia, as ilhas britânicas e a Europa oriental. O livro do Prof. Peter S. Wells, quebrando esta impressão hegemônica, se propõe a buscar entender, através da arqueologia, na perspectiva da teoria pós-colonial, o processo de interação entre as populações conquistadas e o império romano.

O relacionamento entre o exército expansionista romano e os povos desta área da Europa teve um evento divisor de águas: a batalha da floresta de Teutoburg. Nesta batalha, cerca de 20 mil soldados romanos foram atacados e completamente derrotados por bandos de guerreiros daqueles povos que os Romanos chamavam de germânicos. Tal derrota chocou o mundo romano e determinou que a fronteira do império se estabelecesse a oeste do Reno e ao sul do Danúbio. Porém, mais importante que isso, os despojos deixados por esta batalha e outros vestígios da ocupação romana, encontrados em escavações arqueológicas de hoje, podem dizer muito sobre a interação dos nativos com os romanos.

A primeira informação importante que pode ser fornecida pelas escavações é a de que espadas romanas, juntamente com outros tipos de material romano, podem ser encontradas em sítios arqueológicos que ficam centenas de quilômetros além da fronteira do império. Estes achados mostram significativa atividade romana em áreas não conquistadas. Wells comenta que o império romano é uma das maiores forças de unificação de que se tem notícia, ligando povos política, econômica, cultural e militarmente, desde o norte da Bretanha e do Estreito de Gibraltar até o Eufrates e o sul do Egito. Comercialmente, a influência romana foi ainda mais longe, de tal forma que Wells traça paralelos do mundo romano com o mundo globalizado de hoje. Neste livro, o exército romano é de grande importância, porque foi responsável pelas conquistas de território e também o principal mediador entre Roma e os povos locais.

A segunda informação importante revelada pelas escavações é a de que o relacionamento dos povos do norte da Europa com os povos mediterrâneos precede a chegada dos romanos na região e, apesar de não compreender-se totalmente a natureza deste relacionamento, atualmente pensa-se que girava em torno do comércio. O relacionamento das elites da região com a cultura mediterrânea era, no entanto, mais complexo que apenas comercial. Professor Wells declara que o aspecto mais significante de toda esta evidência de interação é o de que algumas pessoas na região norte da Europa, num período de até quinhentos anos antes da ocupação romana, começaram a se familiarizar com aspectos do estilo de vida mediterrâneo e claramente os achavam atraentes.

Numerosos autores clássicos falam de mercenários celtas – ou Keltoi, nome dado pelos gregos (Celtae para os romanos) aos povos da Europa central – servindo em exércitos de povos mediterrâneos durante os IV e III séculos a.C. Esta experiência dos mercenários serviu para familiarizar muitos homens da Europa central com o mundo mediterrâneo. A maioria destes homens provavelmente retornou para casa depois de seu serviço, e quando o fizeram, levaram com eles riqueza, conhecimento e ideologias provenientes dos povos mediterrâneos; em pelo menos alguns destes casos deve ter havido o desejo de “imitar” aspectos deste estilo de vida.

O livro descreve os povos que César encontrou na Gália e no norte da Europa como pertencentes a sociedades dinâmicas que estavam passando por processos complexos de mudança em sua economia, organização política e estrutura social. É especialmente importante a evidência cada vez maior de interação entre os habitantes de diferentes regiões da Europa no último século a.C. Havia uma quantidade crescente de bens romanos chegando a comunidades ao norte dos Alpes; o crescente desejo de adquirir estes bens, junto à sua cada vez maior disponibilidade, levou ao desenvolvimento de redes de comércio, por onde estes bens eram levados da Itália romana até a Europa central e ocidental, e mesmo a comunidades mais ao norte.

Por serem as sociedades heterogêneas e complexas quando os romanos marcharam pela Gália Central, não podemos compreender as interações que se iniciaram como simplesmente o exército romano conquistando as “massas” locais. Estes eventos ocorriam em uma época de feroz rivalidade entre as diferentes tribos da Gália. Desde o início dos conflitos, César e outros generais fizeram uso de tropas e métodos de luta locais para alcançar as metas imperiais romanas. César teve sucesso baseado na construção e no cultivo de alianças com muitos grupos de povos da Gália, que se uniram a ele para derrotar os outros.

Segundo Wells, hoje se entende que muito do que Roma construiu na Europa central se deve a alianças com os grupos nativos e a associações com a elite local. Precisamos portanto considerar as populações locais como agentes decisivos no processo. Eles não eram apenas hostis. Em muitas situações, as elites se utilizaram de oportunidades criadas pela aliança com a administração romana, porquanto traziam o aumento de status, poder, prestígio e riqueza.

Como parte das campanhas, os romanos estabeleceram uma série de instalações na região, que não eram apenas fortes militares, mas também bases de suprimentos. Algumas comunidades locais já estabelecidas podem ter assumido esse papel de fornecedor ao exército romano. A presença de grandes forças militares deve ter tido um efeito profundo nos sistemas econômico, social e político locais, mesmo que o confronto militar direto não tenha ocorrido com estas comunidades.

Uma evidência disto é que, em meados do I século d.C., o território em torno do Reno estava se tornando economicamente ativo e rico, em parte por causa da presença de tropas estabelecidas na área. Vilarejos conhecidos como vici se formaram próximos às comunidades militares. Estes lugarejos muitas vezes se desenvolveram e transformaram em centros comerciais e manufatureiros de bom tamanho, e serviam a clientes militares e civis.

Portanto, a mudança que ocorreu na época da conquista romana não foi o estabelecimento de contato e o início da interação entre Roma e os povos que habitavam as terras ao norte dos Alpes. O que ocorreu foi uma mudança de interações causadas por motivos econômicos para uma situação onde Roma exercia alguma medida de controle militar e político sobre estas terras européias. Em todas as situações, evidência textual e arqueológica mostra que existia um padrão complexo de combinação das tradições locais e elementos introduzidos pelo aparato militar e administrativo de Roma.

De uma forma geral, o que se tinha era diversidade. Além disso, a reação às mudanças variava de região para região, de indivíduo para indivíduo. Após a conquista, os grupos locais continuaram a fazer muitas coisas da forma que faziam durante o período pré-histórico. A evidência mais clara da continuidade de práticas tradicionais pode ser encontrada nas cerâmicas. Os arqueólogos que trabalham em escavações do período romano há muito reconheceram a presença de cerâmica do estilo tardio da Idade do Ferro nestes locais.

Wells pede que consideremos dois processos opostos que operavam ao mesmo tempo. Em contraste com as forças de homogeneização representadas pelos centros urbanos romanos, as bases militares e o seu pessoal, e as elites locais que em muitos aspectos se transformaram em membros da aristocracia imperial, a evidência arqueológica mostra que muitas populações nativas reagiram contra a tendência para a uniformidade através da criação de padrões regionais distintos de enterros, práticas rituais e estilos de cerâmica, usando estas formas de expressão para criar um necessário senso de identidade pessoal e coletiva, mesmo que de modo geral continuassem sob dominação de uma autoridade estrangeira.

Existe evidência arqueológica e textual de interação através das fronteiras. Esta interação teve dois resultados para a Europa central: o primeiro foi a gradual homogeneização das sociedades dos dois lados da fronteira; outro foi a formação, durante o século III, de grandes confederações tribais entre os povos além da fronteira. A dinâmica criada por estes dois processos criou as condições necessárias para que se iniciasse a luta na região pela independência de Roma. Por mais de duzentos anos as fronteiras do império sobreviveram intactas. Então, por volta de meados do século III d.C., Roma se rendeu aos freqüentes ataques na fronteira e tirou suas defesas da parte superior do Danúbio e do Reno.

O resultado da interação entre estes povos e o império romano foi a formação de novas e dinâmicas sociedades, que incorporavam de maneira diversa tanto elementos da tradição local quanto os do mundo mediterrâneo. Este livro sugere que o modelo de interação estudado pode ser aplicado a outros impérios em outros períodos históricos; que em todas as instâncias de interação entre uma sociedade maior e mais complexa e uma menor e menos complexa, não podemos presumir que a maior irá predominar através de força política, militar ou econômica. Sociedades menores têm recursos diversos e pouco estudados que possibilitam que elas tenham um papel determinante no resultado desta interação.

Assunção Medeiros – Professora (Cândido Mendes). E-mail: suemedeirosbr@yahoo.com.br


WELLS, Peter S. The Barbarians Speak: How the conquered peoples shaped Roman Europe. Princeton/New Jersey: Princeton University Press, 1999. Resenha de: MEDEIROS, Assunção. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.1, n.2, p.68-70, 2001. Acessar publicação original [DR]

Mabinogion | José Domingos Morais

A importância da tradução desta obra para o português é enorme principalmente pela dificuldade de acesso a fontes célticas em língua portuguesa. Mabinogion é um conjunto de contos galeses que foram escritos entre os séculos XI e XIV, mas que referem-se por vezes a acontecimentos muito mais antigos, datando do século VII, e a crenças ancestrais. Os relatos começaram a ser postos por escrito por ocasião da invasão normanda quando os chefes locais resolveram mandar escrever as narrativas que haviam circulado oralmente por muitos séculos, como forma de manter a tradição.

Estes contos foram compilados no Livro Branco de Rhydderch (Llyfr Gwyn Rhydderch) e no Livro Vermelho de Hergest (Llyfr Coch Hergest) e foram traduzidos pela primeira vez para o inglês por Lady Charlotte Guest no século XIX, a qual utilizou o termo mabinogion como título para colêtanea dos onze contos. A denominação da tradutora inglesa é errônea, pois o termo mabinogi refere-se à infância de um herói. Esta palavra aparece no fim do primeiro relato, Pwyll, Príncipe de Dyved, mas relaciona-se apenas aos quatro primeiros contos ou ramos (além de Pwyll, Branwen, a filha de Lyr, Manawyddan, o Filho de Lyr e Math, o Filho de Mathonwy). Nestes, a personagem de Pryderi aparece como elo de ligação entre as histórias embora não seja personagem principal, unindo-as em acontecimentos que tratam do nascimento, infância, juventude e morte.

Uma outra interpretação para a palavra mabinogi seria a de relato de um jovem, pois a palavra maban, diminutivo de mab significa filho ou juventude; por isso trataria das façanhas de um herói relacionado aos antigos deuses. Neste sentido, Pryderi seria um mac ind óc, isto é o filho do Deus Pwyll, senhor de Dyved. Os quatro ramos do Mabinogion relacionam-se a três famílias de deuses, a de Pwyll e sua descendência, representada por Pryderi, a dos filhos de Llyr (Bran, Branwen e Manawyddan) e a dos filhos de Don (Gwydion e Gilvaethwy, que aparecem no quarto ramo). Através dos contos podemos notar as correspondências entre deuses galeses e irlandeses, por exemplo, a deusa irlandesa Dana ou Don galesa, Manannan e Manawyddan, Deus do Mar. É possível perceber o sentido de clã, da união familiar como essenciais à sobrevivência dos celtas e para levar as aventuras ao bom termo. Um exemplo ocorre no terceiro ramo: uma maldição havia sido mandada e com ela animais, habitações, plantas, tudo havia sumido. Ao final do relato a revelação: tratava-se de uma vingança de Llwyd, amigo de Gwawl contra a descendência de Pwyll, pois Gwawl havia sido ultrajado pelo pai de Pridery, Pwyll, o qual lhe batera enquanto estava num saco e tomara dele Rhiannon.

Os onze contos podem ser agrupados em três grupos: o primeiro, com narrativas relacionadas a Pryderi (os quatro ramos do Mabinogi), um segundo contendo quatro contos independentes (O sonho de Maxen, Llud e Levelys, Culhwch e Olwen e O Sonho de Rhonabwy) e o terceiro composto por três romances arturianos, influenciados pela temática de Chrétien de Troyes. Os romances são A Dama da Fonte, Peredur, o filho de Evrawc e Gereint, filho de Erbin e correspondem respectivamente a Ivain ou o Cavaleiro do Leão, Perceval, ou o Conto do Graal e Erec e Enide. Por muito tempo, considerou-se que eram adaptações galesas dos romances em verso de Chrétien, mas atualmente a conclusão é que esses dois tipos de narrativa provenham de uma fonte comum.

Nos contos dos quatro primeiros ramos do Mabinogi percebe-se vários elementos interessantes do fundo céltico, tais como a ida de um mortal ao Outro Mundo. Este troca de lugar com o deus do Além e depois recebe o título de Pwyll, Príncipe de Annwvyn (o Outro Mundo). No mesmo relato aparece o tema da deusa-égua, por quem Pwyll se apaixona e que depois se torna a mãe de Pryderi. Trata-se da deusa Rhiannon, que na tradição gaulesa é conhecida por Epona. Pwyll é impedido de casar-se com ela por um estranho (Gwawl) que vem à corte lhe pede um dom (presente). Nos contos célticos o dom era exigido ao rei e este não podia negar-se a dá-lo mesmo sem saber do que se tratava, e o forasteiro pede a Pwyll sua noiva, que ele é obrigado a entregar. Através de um estratagema, um ano depois ele consegue retomá-la ao pedir que o outro enchesse de comida um saco que nunca ficava cheio (tema relacionado ao caldeirão da abundância e ao graal) e depois convece o próprio Gwawl a entrar no saco. Neste momento Pwyll começa a bater em Gwawl até ele desistir de Rhiannon, fato que é vingado por Llwyd no terceiro ramo (Manawydan, o Filho de Llyr).

No segundo ramo, um interessante elemento é a menção ao caldeirão do renascimento, que Bran entrega a Matholwch. Nele os homens mortos são jogados e recobram a vida, mas perdem o poder da fala. Branwen, filha de Llyr é maltratada após o casamento e o irmão Bran, senhor de Llundein (Londres) a vinga. Na luta entre irlandeses e bretões apenas cinco mulheres grávidas da Irlanda e sete guerreiros da Bretanha salvam-se.

É importante destacar nesta narrativa a crença céltica na cabeça cortada, que era cultuada desde à época da cultura pré-histórica La Tène. Ao ser atingido com uma flecha envenenada, Bran pede que sua cabeça seja cortada. Ele vive e se alimenta por mais oitenta anos e depois deste período a cabeça é enterrada em Gwynn Vrynn (atual Dover).

No grupo das narrativas independentes, uma das mais interessantes é o conto Culhwch e Olwen, primeiro a apresentar Artur e seus guerreiros. Artur não é o personagem central. O jovem Culhwch deseja casar-se com Olwen, filha do gigante Yspaddaden Penkawr, e recorre ao primo Artur e a seus guerreiros para enfrentar uma série de aventuras, sendo ao final, vitorioso. No relato são citados os principais companheiros de Artur como Bedwyr, Cai e Gwalchmei e que vemos depois referenciados em outras obras arturianas. Este conto influenciou a Historia Brittonum, de Nennius (século VIII), na qual aparece a caça ao javali Twrch Trwyth, que faz parte da história de Culhwch, demonstrando assim a Antigüidade desta última.

É recorrente nas lendas célticas a relação entre o herói e o Outro Mundo, representado pelos deuses ou forças sobrenaturais. O herói, como Culhwch, deve passar por provas para demonstrar que merece o conhecimento ou a soberania, na história, representada por Olwen.

Uma outra menção a Artur é o conto O Sonho de Ronabwy (escrito por volta do século XIII) no qual um homem sonha com um cavaleiro que teria semeado a discórdia entre Artur e seu sobrinho e por isso seria o responsável pela batalha de Camlan, na qual Artur matou Medrawd. Neste relato percebe-se claramente uma influência anglo-normanda.

A importância do Mabinogion é grande para o conhecimento de crenças celtas como o Outro Mundo, o caldeirão da abundância e o do renascimento, a relevância dada à cabeça, que mesmo cortada do corpo pode viver por muito tempo e a mulher como elemento capaz de fazer o homem atingir a soberania.

A tradução de José Morais é boa e traz notas explicativas além de acrescentar um último poema, Taliesin (composto no século XVI) à narrativa, conforme consta na tradução de Lady Charlotte Guest. Uma versão ainda mais interessante do Mabinogion e que pode ser cotejada com esta, acessível aos leitores latino-americanos é a de Victoria Cirlot em espanhol (Ediciones Siruela, 1988), pois a autora demonstra maior contato com os estudos célticos e aponta para uma bibliografia que contribui para a continuidade da investigação da obra.

Adriana Zierer – Doutoranda em História/ UFF. E-mail: medieval@domain.com.br


MORAIS, José Domingos (tradução e introdução). Mabinogion. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000. Resenha de: ZIERER, Adriana. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.1, n.1, p. 77-79, 2001. Acessar publicação original [DR]

Les Princes de la Protohistoire et l’Émergence de l’État | Pascal Ruby

Les Princes de la Protohistoire et l’émergence de l’État vem nos trazer o resultado da Table Ronde Internationale de Naples, organizada pelo Centro Jean Bérard e pela Escola Francesa de Roma em 1994, com o intuito de reunir arqueólogos e historiadores interessados em debater a questão do “poder” e da formação de “Estados” na pré-história, demonstrando que tais questões não são exclusividade das sociedades modernas e que as sociedades pré-históricas tampouco podem ser consideradas como “sociedades sem história”.

Os debates aqui apresentados fundamentam-se, sobretudo, na estreita relação entre a arqueologia e as ciências sociais para o estudo dos fenômenos evidenciados a partir da cultura material, tendo como preocupação central a emergência de “Estados tradicionais” e as desigualdades sociais, econômicas e políticas encontradas em tais sociedades. Não se trata, tão somente, de centralizar-se as discussões em torno do aumento de complexidade social, da mudança de “estágios”, como muitas vezes tem sido abordada essa questão, mas, em especial, de apontar outras possibilidades de interpretação dessas questões, indo além da dicotomia “sociedades de chefia” versus “Estados”. Mais do que explorar “… a validade (…) de um modelo evolucionista único, que faria dos ‘príncipes’ uma etapa necessária e suficiente, que, inevitavelmente, precede a emergência do Estado…” (p.7) ou do que avaliar o modelo de “sistema mundial”, visava-se aprofundar o diálogo acerca do “fenômeno principesco”, destacando outras perspectivas e formas de abordagem.

Contudo, isso não significa que tais questionamentos tenham sido abandonados (haja vista o acalorado debate que perdura entre Patrice Brun e Michael Dietler sobre as chefias celtas da Europa central durante a Idade do Ferro (1)), mas sim que esteja buscando outras teorias, a fim de diversificar o debate, afastando os pesquisadores da hegemonia de um modelo teórico. Assim, os trabalhos contidos neste livro priorizam três pontos: o reconhecimento do fenômeno principesco; a articulação das dimensões simbólicas, imaginárias e reais deste fenômeno principesco e a instabilidade característica deste fenômeno e suas possíveis relações com a formação dos Estados, apontando questões teóricas e sua aplicação ao caso das sociedades da Península Ibérica, helênica, etrusca, hallstattianas, cita, africanas e polinésias, destacando a diversidade do fenômeno principesco e as singularidades regionais.

Esse encontro veio, então, contribuir, por um lado, para a contenda acerca das categorias conceituais usualmente empregadas para o estudo das sociedades ditas “pré-históricas” (mormente aquelas da Idade do Ferro) e sua disparidade ou imprecisão com relação às especificidades históricas de cada uma dessas sociedades e, por outro, para indicar outras vias de análise, que abarquem quer o conflito e a instabilidade no seio dessas sociedades (pouco abordado até então), quer a dimensão simbólica do poder, sua relação com o sagrado, os rituais e a construção da coesão social (fundamentais para alicerçar o poder político).

No que tange aos Estudos Célticos, tal discussão se revela assaz importante, uma vez que a maior parte dos estudos tem sido norteada pelo debate acerca dos processos de hierarquização e de institucionalização da chefia e de emergência de Estado, havendo uma hegemonia, até hoje pouco questionada, do modelo de “sistema mundial”; o qual é defendido, neste livro, por Patrice Brun, no capítulo A gênese do Estado: as contribuições da arqueologia e por Jean-Paul Demoule, em A sociedade contra os príncipes. Este último, no entanto, apesar de se manter vinculado ao modelo de “sistema mundial” e à concepção de que as mudanças verificadas nas sociedades hallstattianas se devem ao contato com o Mediterrâneo e ao controle do acesso aos bens de prestígio importados, ao levantar temas como “conflito”, “manipulações ideológicas”, “monopólios do imaginário”, “violência do poder” e “resistência ao poder”, contribui para ampliar os questionamentos a propósito do poder nas sociedades celtas da Idade do Ferro, principalmente sobre a institucionalização da chefia nas tribos hallstattianas e a emergência de Estados em fins do período lateniano na Europa centro-ocidental.

Por outro lado, consideramos de suma relevância nos afastarmos da supremacia desse modelo, trazendo para este debate o âmbito do simbólico e do sagrado a fim de que possamos ampliar nosso conhecimento sobre essas sociedades, tal como no caso dos capítulos de Michael Dietler, Rituais de comensalidade e a política de formação do Estado nas sociedades “princiescas” do início da Idade do Ferro, e Michael Rowlands, A economia cultural do poder sagrado. O primeiro, centra-se no estudo da “dimensão política dos rituais de comensalidade” marcados nos achados dos assentamentos da zona ocidental de Hallstatt, estabelecendo a relação entre as práticas rituais e o processo de hierarquização e fortalecimento da chefia nas tribos hallstattianas, demonstrando serem elas instrumentos fundamentais para o desenvolvimento de tais processos. O segundo, apesar de trabalhar com as regiões ocidentais de Camarões, renova o debate acerca do “poder sagrado” com sua proposta de “economia sacrificial”, de modo a nos permitir alargar a reflexão a respeito da relação entre o poder e as práticas rituais, enfocando a necessidade de se enveredar por uma abordagem que não ignore a dimensão ritual/ simbólica, nem tampouco se limite a reproduzir categorias ocidentais/ não-ocidentais.

De modo geral, a questão do simbólico permeia a maior parte dos trabalhos apresentados neste encontro de Nápoles, destacando-se como um dos aspectos centrais para a análise do poder, das práticas políticas e da própria formação dos Estados nas sociedades pré-históricas, mostrando ser necessário abarcarmos não somente aspectos sociais, políticos e econômicos, mas, também, culturais, sem os quais não nos será possível aprofundar o debate acerca do fenômeno principesco nessas sociedades.

Nota

1. Sobre este debate, além dos trabalhos de Dietler e Brun presentes neste livro, ver: ARNOLD, B. and GIBSON, D.B. (eds.) Celtic Chiefdom, Celtic State. Cambridge: Cambridge University Press, New Directions in Archaeology, 1995; BRUN, Patrice. Contacts entre colons et indigènes au milieu du Ier millénaire av. J-C. en Europe. Journal of European Archaeology, 3 (2), 1995: 113-123; DIETLER, Michael. The Cup of Gyptis: rethinking the colonial encounter in early-Iron-Age western Europe and the relevance of world-systems models. Journal of European Archaeology 3(2), 1995: 89-111.

Adriene Baron Tacla – Probationer Research Student Institute of Archaeology, University of Oxford. E-mail: adriene@openlink.com.br


RUBY, Pascal (Dir.) Les Princes de la Protohistoire et l’Émergence de l’État. Naples-Rome: Centre Jean Bérard/École Française de Rome, 1999. Resenha de: TACLA, Adriene Baron. O Fenômeno Principesco e a Emergência do Estado. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.1, n.1, p.75-76, 2001. Acessar publicação original [DR]

Brathair | UEMA | 2001

Brathair4 a canonização de Tomás de Aquino

A Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos (São Luís, 2001-) foi criada pelo Brathair – Grupo de Estudos Celtas e Germânicos, com o objetivo de fortalecimento dos estudos das culturas celta e germânica e é um periódico pioneiro acerca desses estudos no Brasil. O Grupo Brathair está cadastrado no diretório de pesquisa do CNPq e a revista está atualmente sediada na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), em São Luís. A revista é semestral e de acesso livre.

Em seus quase vinte anos de existência, tem publicado artigos de pesquisadores internacionais consagrados por exemplo, Ciro Cardoso (UFF), do Brasil, e também investigadores de outros países como Klaus Militzer (Universität Bochum) e Jean-Claude-Schmitt (EHESS). Assim, o período oferece ao público interessado e especializado material de qualidade e de livre acesso na temática dos celtas e germanos. A revista publica em português, inglês, alemão, italiano, espanhol e francês.

A revista BRATHAIR propõe-se a divulgar artigos e resenhas de livros sobre celtas e germanos em português, inglês, francês, alemão, espanhol e italiano – produzidos por profissionais de diversas áreas do conhecimento, a saber: história antiga e medieval, filosofia, filologia, antropologia, arqueologia, literaturas medievais e em línguas celtas, germânicas e latinas. Optamos por publicá-la na Internet, a fim de torná-la acessível a estudiosos e ao público interessado nas culturas celtas e germânicas, ampliando, sobretudo no Brasil, o debate e a produção acadêmicos em tais áreas de pesquisa.

Periodicidade semestral

Esta revista oferece acesso livre imediato ao seu conteúdo, seguindo o princípio de que disponibilizar gratuitamente o conhecimento científico ao público proporciona maior democratização mundial do conhecimento.

ISSN 1519-9053

Acessar resenhas

Acessar dossiês

Acessar sumários

Acessar arquivos