Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília – GODOY (RAP)

GODOY, Renata de. Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília. Lambert Academic Publishing, 2012. Resenha de: POLONIL, Rita Juliana Soares. Revista de Arqueologia Pública, Campinas, n.9, jul., 2014.

Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília, da Antropóloga Renata de Godoy é uma recente publicação que vem acrescentar importantes pontos de discussão à questão da Arqueologia Pública no país.

Dividida em seis capítulos a obra procura investigar as relações de pertença desenvolvidas pela população em relação ao patrimônio arqueológico, sobretudo, no que se refere a populações não nativas.

Para compreender seu objeto de pesquisa a autora se utilizou da chamada “Abordagem de valor público” (Public Value Approach), que se desenrola a partir da investigação de dois sítios arqueológicos paleoindígenas e um histórico (DF-PA-11, DF-PA-15 e Pedra Velha, respectivamente), localizados na Área de Relevante Interesse Ecológico Parque Jucelino Kubitchek (ARIE JK), na região metropolitana de Brasília, entorno de Ceilândia, Samambaia e Taguatinga.

A pesquisa desenvolve-se a partir de abordagens vindas da antropologia urbana e do urbanismo, da gestão do patrimônio cultural e do turismo patrimonial. Utiliza ainda, como metodologia de pesquisa, entrevistas abertas, investigações arquivísticas e digitais, sobretudo, visando periódicos, relatórios e documentos legais e, finalmente, investigações do tipo “Walking Survey”. A autora questiona por que comunidades migrantes, principal constituinte humano da região, se preocupariam com sítios arqueológicos pré-históricos tão distantes da sua trajetória de vida pessoal e para isso chama atenção para os três valores gerados pelo patrimônio: os intrínsecos, os institucionais e os instrumentais.

Os valores intrínsecos podem ser apontados como a experiência intelectual, emocional e espiritual do indivíduo com o patrimônio, enquanto os institucionais representam, por sua vez, o ethos e o comportamento das organizações patrimoniais. Finalmente, os valores instrumentais são os valores econômicos, sociais e paisagísticos assumidos por um determinado contexto patrimonial. Nesse sentido, a hipótese da pesquisa é a de que questões extrínsecas influenciam comunidades não-nativas a se importar com o patrimônio arqueológico mais que questões intrínsecas. Ou seja, essas comunidades se importam mais como o patrimônio arqueológico devido aos seus valores institucionais e instrumentais que aos seus valores emocionais ou identitários.

Enquanto o primeiro capítulo da obra pontua os aspectos gerais anteriormente descritos, o segundo capítulo dedica-se à metodologia e descrição do sítio. Aqui, o campo da antropologia urbana toma lugar de destaque. Pode ser definido como um campo interdisciplinar por excelência e que diz respeito às origens, desenvolvimento e crescimento das cidades, mas também, ao entendimento da vida e da cultura urbana. A idéia de espaço público tem lugar especial nesses estudos e pode ser definida como locais onde é possível interagir de forma variada com outras pessoas e com o entorno, bem como cultivar a solidão e o anonimato. Os parques e as praças são dois importantes exemplos.

Nesse sentido, a principal metodologia empregada na pesquisa baseia-se no “rapid ethnografic assessment procedures (REAP)”. Consiste numa combinação entre entrevistas, observação participante e registro de testemunhas oculares. A autora então esclarece que foram realizadas vinte e nove entrevistas em duas temporadas de trabalhos de campo realizadas em 2008, equivalentes a vinte horas de conversas gravadas. Os entrevistados foram divididos em dois grupos e em quatro subgrupos de no mínimo seis pessoas cada, de acordo com seu local de residência e com a sua ligação a instituições relacionadas com o estudo de caso. Foram também selecionadas dezoito entrevistas de periódicos, publicadas entre 2004 e 2008 em dois dos principais jornais da capital (Correio Brasiliense e Jornal de Brasília), assim como relatórios de campo e de laboratório não publicados, publicações acadêmicas e legislação diretamente relacionados com o estudo de caso. Também foram tiradas novecentas fotografias e realizadas filmagens no local e seu entorno, todas conduzidas em Abril, Maio e Novembro de 2008.

O Terceiro capítulo do livro é dedicado a discutir os valores institucionais relacionados ao objeto de estudo. O papel do IPHAN ganha destaque, em especial no que tange ao desenvolvimento de mecanismos para a proteção ao patrimônio arqueológico nacional.

Quanto à aplicação da metodologia, nesse ponto da pesquisa foram utilizadas entrevistas, análises de periódicos e “walking survey”. O ponto mais abordado nas entrevistas foi o conflito no uso da terra seguido de degradação ambiental e questões de gestão. As questões arqueológicas aparecem em todos os grupos, mas são mais comuns entre os que habitam nas proximidades do parque. Embora assuntos institucionais apareçam em todos os grupos (leis, sua aplicação, licenças, pesquisas e preservação), são mais comuns entre o grupo dos especialistas. Os profissionais da arqueologia, claramente, focam mais em assuntos institucionais que outros entrevistados.

Destacam-se, particularmente, muitos conflitos entre a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (CAESB) e moradores locais por causa da instalação de infraestrutura de saneamento básico. Como parte do acordo judicial surgido a partir das demandas de compensação financeira de moradores locais contra a empresa, a CAESB teria pagado a prospecção e escavação arqueológica da área afetada pelo empreendimento e pela elaboração de um DVD educativo de onze minutos. Entretanto, a construção de um museu e a publicação de um livro ainda estariam em suspenso.

Em relação à análise dos periódicos, notou-se que, praticamente, todos os exemplares do Correio Brasiliense analisados traziam a palavra-chave arqueologia e, praticamente, a metade se referia ao parque ARIE JK. No caso do Jornal de Brasília, há três reportagens arqueológicas sobre o parque. A maior parte inclui questões ambientais, sobretudo, com a CAESB. Todos os dois periódicos têm suas agendas particulares, sendo o Correio Brasiliense mais afeto à defesa do governo do Distrito Federal, elogiando, inclusive, os trabalhos de saneamento básico da CAESB realizados no parque. Mas, curiosamente, é também o que mais críticas expõe sobre outros órgãos em relação à preservação arqueológica no parque.

No contexto do “walking survey”, a autora realizou a observação de um dos encontros do MAPE (Movimento Amigos dos Parques Ecológicos), ocorrida em 11 de novembro de 2008. A principal questão abordada pelos participantes era a preservação ambiental de parques ecológicos, incluindo a ARIE JK. Houve, espontaneamente, a proposta de se defender a abertura de um museu arqueológico na região, comprovando uma grande demanda pelo museu e pelo retorno de artefatos arqueológicos enviados a outros estados para o Distrito Federal.

O capítulo quatro aborda os valores instrumentais relacionados ao patrimônio e a sua principal questão é tentar perceber se a possibilidade de implementar turismo patrimonial no parque está por detrás do interesse da opinião pública em questões arqueológicas. Nesse sentido, o turismo patrimonial pode ser definido como um tipo de atividade turística em espaços definidos como sítios patrimoniais. Outro tipo de turismo relacionado com a arqueologia, o ecoturismo, pode ser definido como atividades que visam um equilíbrio entre ambiente e comunidades humanas.

A autora ressalta que os sítios arqueológicos são de grande interesse para a humanidade. Torná-los objeto turístico, se por um lado valoriza o sítio e o torna sustentável, por outro pode representar um risco para a sua própria preservação, na medida em que aumenta a demanda sobre o patrimônio.

Para avaliar os valores instrumentais gerados pelo patrimônio da ARIE JK, pontos de uso recreacional no interior do parque foram contrastados com a opinião pública sobre o tema, coletadas em entrevistas e notícias de periódicos, tendo em vista as palavras chave ARIE JK e arqueologia. Foi também utilizado o “walking Survey”, que demonstrou que, de modo geral, os locais apontados como recreativos no parque estão em condições precárias, abandonados e tomados pelo lixo.

Nas entrevistas, o objetivo principal era entender se e como o público percebe o turismo como um valor instrumental gerado pelos sítios arqueológicos do parque entendendo também, quando possível, como cada pessoa percebe lazer e recreação. De modo geral, percebeu-se que os entrevistados não vêem o parque e tampouco a visita aos seus sítios arqueológicos como opção de lazer. O parque é visto, na realidade, como área vazia de funções, local de preservação ambiental. Parte dessa visão deriva, entretanto, da preferência dos entrevistados por opções de lazer em espaços fechados, tais como shoppings e cinemas. Nesse sentido, o único ponto não questionado e muitas vezes trazido à tona em termos de turismo para a área de estudo é a criação de um museu arqueológico no local.

O quinto capítulo da obra trata dos valores intrínsecos relacionados ao patrimônio arqueológico do parque. O foco do trabalho recai sobre os três sítios arqueológicos anteriormente citados, que sofreram escavações e têm importância científica comprovada. Eles estão relacionados à extração de material e confecção de peças líticas.

Os sítios de jazidas são essenciais para o estudo da pré-história e para o trabalho arqueológico. Ao mesmo tempo, são sítios de complexa compreensão. Devido à dificuldade no estudo do processo de debitagem e na dificuldade em definir estratigrafias ou outros indicadores de datação, esses sítios ainda não são preferencialmente interessantes para os arqueólogos brasileiros. Por outro lado, a revisão da literatura na área indica que para além do processo tecnológico, o estudo de jazidas também permite compreender sistemas de trocas, organização social e economia pré-históricas e atuais.

Quanto à metodologia utilizada na pesquisa, o principal objetivo das entrevistas realizadas seria o de perceber a compreensão de não profissionais sobre os sítios locais, se essas pessoas têm a real compreensão dos valores intrínsecos dos sítios e se esses valores influenciam fundamentalmente o seu comportamento acerca da preocupação com a preservação dos mesmos. Os resultados apontaram que os residentes e aqueles que moram no entorno do parque apresentaram uma compreensão semelhante e se preocupam com a preservação dos sítios, muito embora tenham pouco conhecimento sobre suas características. Especialistas e pessoas ligadas a instituições de preservação variam entre os que se importam com a preservação dos sítios e aqueles que ignoram ou desvalorizam o tema. Entretanto, os arqueólogos concordam com a grande relevância dos sítios pré-históricos.

Também foram analisadas onze notícias do Correio Brasiliense e três do Jornal de Brasília sobre arqueologia. O principal objetivo foi analisar a qualidade do conteúdo relacionado com patrimônio arqueológico e informações científicas apresentadas pelas reportagens. Notou-se que as reportagens do Correio Brasiliense são menos técnicas e mais apelativas, associando, por exemplo, palavras como “tesouro” e “riqueza” aos temas arqueológicos. As do Jornal de Brasília são em menor número, mas em melhor qualidade.

Em resumo, pode-se apontar que a antiguidade do sitio é o aspecto mais destacado e não suas características tipológicas ou geográficas. Há um interesse de instituições e comunidade com o conhecimento e preservação do sitio, embora de forma insipiente.

O último capítulo, que abriga as conclusões do trabalho, destaca que o patrimônio arqueológico do parque é ainda intangível, uma idéia abstrata que tomou diferentes formas para diferentes atores e propósitos e por diferentes razões.

A identificação com sítios naturais ou culturais é socialmente construída e não requer se basear em fatos para tomar forma. Comunidades locais podem se identificar com comunidades de caçadores-recoletores somente por terem habitado um mesmo local em um passado remoto.

Os valores institucionais e instrumentais são as ligações mais importantes entre população não nativa e o patrimônio arqueológico local. Os dois tipos de valor estão intrinsecamente relacionados de forma que é difícil separá-los.

Atualmente, a arqueologia não faz parte da vida quotidiana das pessoas em Brasília. Muito embora os entrevistados estivessem cientes da importância dos sítios estudados e da sua preservação, menos de 30 por cento das pessoas citaram espontaneamente essa questão durante a entrevista.

Acerca das instituições importantes para a pesquisa, duas merecem destaque: a administração local e a mídia. As instituições tendem a proteger, de certa forma, os sítios, colocando-os sob os limites do parque e o fato dos sítios serem de difícil identificação para os leigos também os protege. Por outro lado, tal característica não favorece muito o turismo. A mídia, por seu lado, reproduz muitos erros e preconceitos nas reportagens. Sendo, geralmente, a única forma pela qual a comunidade toma conhecimento dos sitos, isso acaba por ser um ponto bastante negativo no processo.

Finalmente, a atenção prestada por instituições e pela mídia aos sítios é pequena e dura somente enquanto os trabalhos estão sendo realizados. O patrimônio arqueológico não está adaptado para gerar valor econômico e social e a motivação das pessoas para a preservação dos sítios tem a ver muito mais com a sua antiguidade do que com outras características importantes dos mesmos.

Como um todo, pode-se afirmar que a presente obra apresenta-se como um estudo crucial para aqueles pesquisadores que pretendem se aprofundar no campo da arqueologia pública brasileira, apresentando-se como um trabalho de competência e de consistência indiscutíveis, reflexo do próprio aprofundamento do campo no país. Abre espaço para que mais trabalhos possam ser realizados dentro da temática em outros contextos brasileiros, a fim de esclarecer quais são os principais fatores que estimulam a população local, especialistas e membros de grupos de preservação patrimonial e ambiental a se importarem com o patrimônio arqueológico e quais são os diálogos possíveis entre ciência e sociedade no que tange à valorização e conservação dos sítios no país.

Referências

GODOY, Renata de. Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília. Lambert Academic Publishing, 2012.

Rita Juliana Soares Polonil – Pós-doutoranda em Arqueologia pelo LAP/NEPAM

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