História e Sociologia / História e Cultura / 2014

A Sociologia surge durante o século XIX, o século das especializações, inspirada nas Ciências Naturais, em busca da explicação da regularidade dos “fatos sociais”. A História, por sua vez, é um campo do saber de longa data, por muito tempo considerada como uma área que visa acentuar a singularidade dos acontecimentos. Nessa linha interpretativa, enquanto a primeira se propõe a estabelecer um olhar geral e abrangente, buscando a interpretação e a generalização, a segunda se define pelo olhar da lupa que enxerga ao nível do detalhe e é capaz de dar luz ao arbitrário do movimento histórico. Esta é uma narrativa possível, embora há muito superada, sobre as duas ciências e suas fronteiras, pois, ao estabelecer tais definições de forma estanque, não é capaz de compreender as trocas e influências mútuas que as constituem. Essa visão também não considera as possibilidades criativas apresentadas por perspectivas contemporâneas, em ambas as áreas ou em focos interdisciplinares, que buscam ir além dos olhares que põem demasiada ênfase às “determinações estruturais” ou às ilimitadas escolhas conscientes dos agentes que conduzem as mudanças sociais.

Tal interpretação remonta às narrativas do século XIX de origem das disciplinas científicas que, embora não sejam falsas, são criações que dependem da seleção e da organização de eventos. É lugar-comum que a França é o contexto no qual a Sociologia se consolida como ciência, a partir das ambições levadas a cabo, entre outros, em primeiro lugar por Auguste Comte e, de forma mais sofisticada e definitiva por Émile Durkheim. A nova ciência buscava a explicação dos fenômenos sociais a partir de análises comparativas que possibilitassem a generalização e o estabelecimento de modelos explicativos da dinâmica social, portanto, em perspectiva antagônica com a historiografia prevalecente, aquela desenvolvida por Leopold von Ranke, centrada no estudo do fenômeno histórico compreendido em sua singularidade. A História serviria como ciência auxiliar às pretensões universalizantes da Sociologia.

Entretanto, ainda se referindo ao mesmo contexto francês, foi a partir da perspectiva inovadora dos Annales, desde a sua primeira geração de historiadores, que se estabeleceu uma revolução na maneira de se conceber a historiografia na década de 1930. Busca-se nessa perspectiva a interdisciplinaridade, especialmente entre a Antropologia, a Geografia, a Linguística, a Economia e a Sociologia. Houve, desta forma, uma influência muito grande da Sociologia neste novo e decisivo paradigma de se estudar a História a partir da perspectiva da “história-problema”, da preocupação com a interpretação e não mais com a simples narração e cronologia de fatos. A História incorporava elementos da Sociologia, recriando-se a partir de uma tradição que lhe é própria, recolocando novos “problemas” a desafiarem historiadores e sociólogos. Este é somente um exemplo, de importância inegável, do diálogo profícuo que se estabeleceu entre as duas áreas do conhecimento, renovando seus objetivos e as formas de produção do conhecimento acadêmico.

As ciências se configuram enquanto campos de saber específicos a partir de sua institucionalização, das definições de métodos, técnicas e objetos de pesquisa. Compreender o aspecto contextual, dinâmico e de natureza renovadora das ciências nos permite vislumbrar seu caráter plural, com as contribuições distintas da historiografia e sociologia francesas, norte-americanas, inglesas, latino-americanas, dentre outras que poderíamos provisoriamente classificar, bem como acompanhar seu desenvolvimento e suas trocas enriquecedoras. É no diálogo, muitas vezes contrastivo, que se fundam e se renovam as tradições teóricas e é por meio dele que os campos do saber se reinventam. A sociologia e a historiografia contemporânea, com sua ampla diversificação de autores, abordagens teóricas e metodologias renovam as questões e possibilidades de encontro entre as áreas.

Muito tem sido discutido mais contemporaneamente sobre as fronteiras e contribuições entre as duas áreas. O sociólogo Norbert Elias, expoente da sociologia histórica, apresenta-se como crítico de modelos explicativos sociológicos sistêmicos que pouco dão atenção à dinâmica histórica, mas não busca no elemento histórico algo “único” ou uma “singularidade absoluta”, em direção divergente, em uma abordagem que aproxima as duas áreas do conhecimento, visando analisar os processos históricos. Assim, Elias fomenta uma teoria sociológica que permite interpretar a mudança histórica como aspecto fundamental do social e a história de maneira menos subjetiva. Já o historiador Paul Veyne, em O inventário das diferenças. História e Sociologia (1983), acredita que a História deva recorrer e caminhar junto à Sociologia para ser interpretativa e problemática, mostrando que não há leis na História e que a História é, na verdade, o inventário das diferenças. O historiador deve, segundo Veyne, incorporar as teorias da Sociologia para perceber os tempos históricos em suas diferenças dentro do que há de constantes.

Para além das fronteiras demarcadas entre História e Sociologia, outros saberes, do qual se destacam aqueles originários dos Estudos Culturais, como as correntes teóricas contemporâneas dos estudos queer, pós-coloniais e feministas, apresentam-se como perspectivas críticas às limitações disciplinares. Críticos dos pressupostos normativos, presentes em diversificados campos de conhecimento, constroem a partir de incorporações criativas de diversos saberes, novas formas de conhecimento sobre o social e o histórico. É, portanto, na interdisciplinaridade que surgem outras abordagens inovadoras e críticas às relações de saber e poder institucionalizadas, que reproduzem ou invisibilizam diversas hierarquias e subalternizações da vida social.

Embora tenhamos alguns exemplos de reflexões nos estudos acadêmicos nacionais, notamos que são sempre importantes e mesmo necessárias produções que busquem refletir sobre a dinâmica entre as áreas, suas fronteiras e, especialmente, suas contribuições, tanto no âmbito teórico, como na realização de pesquisas empíricas, principalmente porque as reflexões e aportes teóricos das Ciências Sociais mudam com o passar do tempo. Tal é a proposta deste dossiê, apresentar artigos, tanto fundamentados em discussões teóricas, quanto baseados em pesquisas empíricas, que mostrem as contribuições, aproximações e o diálogo entre a Sociologia e a História.

Com base na proposta do dossiê, de apresentar uma interlocução entre áreas do conhecimento, a partir de uma perspectiva histórica e sociológica, incorporamos o Serviço Social ao debate, tendo em vista seu reconhecimento como profissão inserida no campo das ciências humanas e sociais.

O Serviço Social no Brasil surge nos anos de 1930, na fase monopólica do capital, como resposta às demandas e necessidades sociais da época. Com a emergência da questão social, entendida também como questão política, resultado da luta de classes e das desigualdades sociais produzidas no capitalismo, a profissão foi requisitada pelo Estado e pelos setores privados, objetivando, num cenário tenso, contraditório e antagônico, enfrentar as mazelas sociais pela via das políticas públicas.

Sendo assim, o Serviço Social não surge como uma ciência inscrita oficialmente num campo de saber, mas como uma profissão inserida na divisão social do trabalho, ou seja, como uma especialização do trabalho coletivo, dada sua dimensão interventiva. Isso não significa ausência da dimensão investigativa na profissão, tendo em vista que o Serviço Social atualmente é reconhecido e considerado área de produção do conhecimento. Nesse caso, as ciências humanas e sociais, especialmente a História, a Sociologia, a Economia e a Ciência Política, têm contribuído de forma significativa para a produção de conhecimento na área de Serviço Social. Concomitantemente, sobretudo nas últimas décadas, pesquisas, reflexões e produções teóricas do Serviço Social também têm contribuído com essas áreas do saber.

Tendo em vista a complexificação da realidade social, marcada pelas especializações e pela fragmentação do saber, inúmeros são os desafios do tempo presente no que se refere ao conhecimento produzido. Em muitas situações, esse conhecimento aparece descontextualizado, isolado, desconexo e justaposto, o que exige dos pesquisadores e estudiosos das diversas áreas do saber uma postura interdisciplinar.

A interdisciplinaridade pressupõe interlocução, diálogo, pluralismo de ideias, de posicionamentos, de concepções e abordagens. Nesse sentido, a interdisciplinaridade como postura, permite amplitude na análise e apreensão da realidade social a partir de várias angulações e perspectivas. A postura interdisciplinar contribui para a apropriação da natureza epistemológica e ontológica da realidade social, com vistas ao conhecimento de fatos, fenômenos e processos sócio-históricos.

Nesse cenário complexo e desafiador para a produção de conhecimento foi que surgiu a proposta desse dossiê, tendo em vista a necessidade de aproximação e interlocução entre as diversas áreas do saber.

O dossiê conta com treze artigos de estudiosos e pesquisadores das áreas de História, Sociologia e Serviço Social, voltados à temática das relações entre as áreas de História e Sociologia. Também apresenta uma entrevista com o pesquisador e professor Richard Miskolci que versa sobre sua trajetória acadêmica, refletindo sobre a importância da interdisciplinaridade no desenvolvimento de suas pesquisas focadas na temática das diferenças e dentro de uma perspectiva queer.

No primeiro artigo, Encontros entre História e Sociologia: primeiros embates metodológicos na França, Brunno Hoffmann perfaz uma discussão própria da virada do século XIX para o XX no contexto francês, quando a Sociologia e a História delimitavam suas fronteiras e disputavam no campo acadêmico as formas legítimas de abordagem do mesmo objeto: a vida do homem em sociedade.

Ulisses do Valle, no texto A relação entre História e Sociologia no horizonte da conceitualização e da explicação dos objetos históricos: reflexões sobre o pensamento de Max Weber, reflete sobre a História e a Sociologia a partir das propostas de Max Weber.

O terceiro artigo, História e Sociologia: a contribuição de Norbert Elias, de Tereza Cristina Kirschner, discute a elaboração criativa e interdisciplinar do sociólogo alemão e sua recepção entre sociólogos e historiadores.

Em As contribuições da Sociologia para o desenvolvimento da História Intelectual, Marcos Sorrilha Pinheiro analisa os “empréstimos teóricos” da sociologia de Pierre Bourdieu, Raymond Williams e Charles Tilly na elaboração de métodos de pesquisa da área de História Intelectual.

Elisângela de Jesus Santos problematiza, em Intelectuais e História: identidade caipira e o com-texto civilizatório brasileiro do século XX, a partir da perspectiva dos estudos culturais latino-americanos e dos estudos descoloniais, a construção do personagem literário Jeca Tatu na obra de Monteiro Lobato, dando destaque ao conceito de “colonialidade”.

O artigo de Maria Cecília Adão, Análise Histórico-Sociológica das Mudanças Comportamentais Femininas e do Impacto destas nas Famílias Militares, busca compreender como as mudanças comportamentais empreendidas pelas mulheres, desde a década de 1960 até os dias atuais, impactam nos arranjos familiares dos oficiais militares. Para isso a pesquisa realiza uma análise complementar entre elementos teóricos sociológicos e metodologias de pesquisas históricas.

Karen Fernanda da Silva Bortoloti, em seu artigo, Anísio Teixeira e as Ciências Sociais, apresenta reflexões sobre a contribuição e o legado de Anísio Teixeira para as Ciências Sociais e a educação brasileira.

Já o artigo Mapas Afetivos: recursos metodológicos baseados na história oral e reflexões sobre identidades espaciais e temporais em estudo sociológico, de Andréa Vettorassi, apresenta, por meio de metodologia baseada na história oral, com ênfase nos “mapas afetivos”, reflexões sobre o cotidiano, memória e identidade de trabalhadores migrantes em cidades do interior do Estado de São Paulo.

O manuscrito Paradoxos da Cidadania à Brasileira: sociologia histórica do campo jurídico no Brasil, de Márcio Caniello, aborda o sentido paradoxal da cidadania no Brasil, tendo como referência uma análise da formação sócio-histórica brasileira.

Quanto ao artigo de Clóvis Carvalho Britto, Paulo Brito do Prado e Raquel Miranda Barbosa, Vendo o sol nascer bordado: poderes, saberes e fazeres de reeducandas na Unidade Prisional de Goiás, os autores analisam, sob o crivo da memória e a ótica das relações de gênero, o Projeto Cabocla, implantado na Cidade de Goiás, como forma de trabalho e geração de renda para mulheres. Com base em entrevistas com mulheres, idealizadoras e trabalhadoras do projeto, enfatizam suas trajetórias de vida, suas redes de sociabilidade, cultura, relações de poder e identidades.

No artigo Os movimentos populares no Brasil: elementos sócio-históricos e desafios atuais, Michelly Ferreira Monteiro Elias retrata os movimentos sociais de caráter popular no Brasil no contexto de acirramento da luta de classes, tendo como referência temporal as últimas décadas do século XX e os primeiros anos do século XXI. Em uma conjuntura adversa, sob hegemonia do capital financeiro, apresenta as fragilidades, potencialidades e desafios postos aos movimentos populares na cena contemporânea.

Meire de Souza Neves, em seu artigo, A contribuição da Teoria Social Crítica para a formação em Serviço Social, apresenta os desafios e dilemas contemporâneos da formação em Serviço Social, destacando a importância e necessidade de se reafirmar uma perspectiva crítica, ancorada na tradição marxista, no projeto de formação profissional.

No último artigo, Confissões de um sociólogo, aprendiz de historiador (ou viceversa): aspectos da relação entre Sociologia e História em uma pesquisa sobre Oswald de Andrade, Giordano Barbin Bertelli em uma perspectiva dialógica entre os dois saberes, visa refletir sobre sua própria trajetória de pesquisa sobre Oswald de Andrade, buscando uma visão dinâmica e processual da realidade social e considerando a prática de pesquisa um campo de tensionamento e confrontação ao poder.

Como apresentamos, este dossiê é composto por trabalhos que trazem temáticas e metodologias variadas visando um mesmo propósito, refletir sobre o diálogo entre a História e a Sociologia numa perspectiva interdisciplinar. Desejamos, assim, boas leituras!

Reginaldo Guiraldelli – Professor da Universidade de Brasília, UnB Doutor em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista, UNESP / Franca.

Fernando de Figueiredo – Balieiro Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, UFSCar.

Semíramis Corsi Silva – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista, UNESP / Franca Organizadores do Dossiê História e Sociologia.


GUIRALDELLI, Reginaldo; BALIEIRO, Fernando de Figueiredo; SILVA, Semíramis Corsi. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.3, n.3 (Especial), dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê