Teoria da religião – BATAILLE (AF)

BATAILLE, G. Teoria da religião. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015. Resenha de: CAMILO, Anderson Barbosa. Artefilosofia, Ouro Preto, n.23, dez., 2017.

A recente publicação no Brasil de Teoria da religião de Georges Bataille pela editora Autêntica, com a competente tradução de Fernando Scheibe, traz uma edição ímpar deste escrito. Além de disponibilizar de modo integral o texto Teoria da religião, a presente edição dispõe da famosa conferência Esquema de uma história das religiões, proferida em 1948 no Collège Philosophique em Paris, na qual Bataille expôs noções chaves que posteriormente desenvolveu no manuscrito de Teoria da religião, redigido no mesmo ano, logo após esta conferência que “serviu de embrião ao livro” (p. 7), como diz Fernando Scheibe. É interessante ressaltar que a presente edição de Teoria da religião contém a presença das notas extraídas do volume VII das Obras Completas de Bataille, e também a inclusão das “Notas do editor francês”. Percebe-se nitidamente um empenho da editora Autêntica de apresentar ao público uma edição que proporcione uma leitura mais rica e frutífera de Teoria da religião, oferecendo ao leitor, num único volume, não somente o texto integral, mas, também, as notas adicionais e a mencionada conferência que originou o escrito.

Originalmente publicado pela editora francesa Gallimard em 1974, Teoria da religião veio a público após 12 anos da morte de Georges Bataille. Trata-se, portanto, de um escrito póstumo e que podemos considerá-lo abandonado, pois, como consta na “Nota do editor francês”, “[…] este texto estava destinado à coleção ‘Miroir’ [Espelho] das Edições ‘Au masque d’Or’ (Angers) ” (p. 11, grifo original), que não chegou a ser enviado em sua versão final. Bataille enviou para o editor um manuscrito incompleto, prometendo posteriormente enviar um quadro e mais algumas páginas. Assim, a publicação de Teoria da religião pela coleção “Miro ir” não foi concluída, desconhecendo-se o real motivo, mas vale salientar que o mencionado escrito de Bataille é citado diversas vezes nos planos para compor a Suma Ateológica (p. 11).

Por ser composto no diálogo da filosofia com a antropologia e da história da religião com a economia e com a sociologia, trata-se de uma obra plural que afirma o caráter incompleto e insuficiente dos pretensos discursos unilaterais sobre o ser humano. Mesmo assim, multifacetado, o pensamento de Bataille se esforça para permanecer numa constante: ser um pensamento aberto, “ móvel ”, pois um pensamento que se quer atrelado às vicissitudes da existência não pode se querer acabado, fechado. “[…] procurei exprimir um pensamento móvel, sem buscar seu estado definitivo” (p. 19), diz Bataille sobre seu escrito.

Como aponta o título do livro, vemos o desenvolvimento de uma teoria da religião que pode ser entendida como uma teoria sobre o sentimento religioso a partir da experiência da imanência ou da intimidade. Para Bataille, a religião responde a uma “busca da intimidade perdida” (p. 47). No percurso de sua argumentação, o autor se esforça por mostrar como a relação do homem com o domínio da imanência ou da intimidade, que é o fundamento da experiência do sagrado, se origina nas sociedades primitivas e quais lugares essa relação ocupa ao longo da história, do surgimento e do desenvolvimento das religiões, indo até a era industrial.

Para dar conta desta abordagem, Teoria da religião é constituída por duas partes. A primeira, intitulada “Dados fundamentais”, trata da construção de um quadro em que os conceitos de animalidade, intimidade, imanência, sacrifício, profano e sagrado são explicados. No início da primeira parte, Bataille afirma que o domínio da imanência é o da situação animal. “[…] a animalidade é a imediatez ou a imanência” (p. 23). A situação animal se passa num plano de indistinção na medida em que não há relação entre sujeito e objeto, isto é, não há a relação em que o objeto é posto por um sujeito que se sabe diferente do objeto. Assim, fundamentalmente, a noção de distinção é pensada.

Acrescenta-se a isso que a duração temporal do objeto é condição necessária para que ele seja posto enquanto tal: “É na medida em que somos humanos que o objeto existe no tempo em que sua duração é apreensível” (p. 24). Para a animalidade não existe a consideração do tempo por vir, portanto, não existe relação entre sujeito e objeto, não existe “[…] nada que possa estabelecer de um lado a autonomia e do outro a dependência” (p. 24).

A continuidade indistinta é o princípio fundamental da animalidade, de modo que Bataille afirma: “todo animal está no mundo como a água no interior da água ” (p. 24, grifo original). É impossível falar da situação animal com precisão, senão de modo poético, “[..

.] visto que a poesia não descreve nada que não deslize para o incognoscível” (p. 25). A animalidade apresenta-se a nós como “um enigma bem embaraçoso” (p. 25).

A partir dessas noções Bataille distingue o mundo humano em contraposição à situação animal. Se a animalidade está imersa numa continuidade, isto é, indistinção, o mundo humano está dado numa descontinuidade, e enquanto tal se configura a partir da posição do objeto enquanto diferenciado da consciência, como não-eu. Assim também o sujeito se faz conhecedor, pois conhece a si mesmo como um outro: “Isso quer dizer […] que só passamos a nos conhecer distinta e claramente no dia em que nos percebemos de fora como um outro” (p. 31).

Nessa perspectiva, a relação do sujeito com o objeto se dá no domínio da utilidade, pois foi na finalidade de manter-se viva que a humanidade estabeleceu sua relação com o mundo. É no plano da fabricação de ferramentas e da utilidade que a humanidade se tornou possível, e é nesse plano que se originou o sujeito conhecedor. Na medida em que transforma a natureza em algo que serve, o homem se coloca como peça fundamental nessa lógica dos meios para os fins, pois ele também está servindo a uma finalidade. Desta maneira, na relação útil com o objeto, o homem também torna-se uma coisa útil.

A questão principal nesta abordagem batailleana é que, no percurso histórico, mesmo a humanidade se realizando no mundo das obras úteis, no mundo profano, ela em alguma medida responde à imanência indistinta, ela responde à sua intimidade mais profunda, e passa a dar origem a um mundo “espiritualizado”, com a representação de um “Ser supremo”, depois animais e plantas dotadas de espíritos e, finalmente, a representação mítica do mundo através de deidades. É nessa perspectiva que o problema do sa grado é introduzido. O sagrado está relacionado à imanência e à continuidade, de modo que, para Bataille, o sentimento do sagrado, que responde à intimidade do homem, está imbuído de angústia, pois o sagrado é contraposto ao mundo profano que obedece ao imperativo da utilidade dando continuidade às possibilidades da vida gregária.

As práticas relacionadas ao sagrado, ao sacrifício e à festa não acontecem senão ao preço do mal estar e do medo, adquirido pelo homem que é arrancado do plano ordenado das obras úteis e levado ao domínio da intimidade e da imanência que põe em risco a duração da vida pela presença da morte. Nessa perspectiva, o sacrifício é pensado como uma prática que se determina como destruição do caráter de coisa da vítima. “É a coisa – somente a coisa – que o sacrifício quer destruir” (p. 39). Porém, o sacrifício se dá ao custo de retirar a vítima realmente do mundo das coisas, matando-a, fazendo-a voltar à intimidade, ao mundo sagrado dos deuses, e isso só é possível na medida em que o sacrificador pertence a esse mundo, “[…] ao mundo da generosidade violenta e sem cálculo” (p. 39).

O que há de mais importante na análise sobre o sacrifício em Teoria da religião é a destruição do laço entre o homem e o mundo da utilidade, o mundo da possibilidade da vida: “[…] o sacrifício vira as costas para as relações reais” (p. 40). Isto, no entanto, não acontece sem angústia, pois o medo da morte permeia o mundo das coisas de tal forma que uma prática que instaure a presença da morte só pode ser concebida com medo. “O homem tem medo da ordem íntima que não é conciliável com aquela das coisas” (p. 44). A ordem íntima para os primitivos está ligada à ordem mítica, e esta se contrapõe ao mundo real, a ordem mítica (íntima) é a negação da ordem real.

Segundo Bataille, na vida cotidiana a presença da ordem íntima é como uma sombra, traz consigo apenas a potência da morte que destrói o primado da duração, que é o fundamento da posição objetiva do mundo das coisas. O caráter devastador da morte é a todo o momento amortecido na ordem das coisas, a neutralização da vida íntima faz da morte algo irreal, mas quando ela se faz realmente presente, “[…] a morte mostra de repente que a sociedade mentia” (p. 41).

Georges Bataille compreende que a neutralização da intimidade pelo primado da duração na ordem real das coisas, por medo da morte, na realidade é a neutralização da vida, de modo que afirma: “[…] é claro que a necessidade da duração nos furta a vida e que, em princípio, só a impossibilidade da duração nos libera” (p. 42). É difícil para Bataille falar da intimidade, pois é impossível exprimi-la discursivamente. Ela é a ordem do desencadeamento violento das paixões, no sentido mais extremo de violência; é a ordem da intensidade de vida nas fronteiras da morte. A intimidade é paradoxal, “porque não é compatível com a posição do indivíduo separado” (p. 43), ou seja, o estatuto da experiência da intimidade é impossível. O que está jogo para Bataille é que o homem primitivo se via perante um impasse existencial: de um lado, o ímpeto para a imersão na intimidade e continuidade comandado por uma violência interior, e por outro, a satisfação das necessidades materiais guiada por uma vontade sempre crescente da racionalidade calculadora que neutraliza os instantes de intensidade da vida.

A festa é uma prática que tentou solucionar esse impasse, na medida em que nela explode uma aspiração à destruição, “[…] mas é uma sabedoria conservador a que a ordena e a limita” (p. 45). Nela as possibilidades de consumo são proporcionadas pelo desencadeamento das diferentes artes, por exemplo, dança e poesia, mas o limite desse desencadeamento da festa se determina na medida em que o mundo das coisas ainda deva ser assegurado. Só assim a festa é suportada.

Este quadro esboçado sobre a relação entre sagrado e profano traduz a incompatibilidade e atração da consciência clara e distinta frente ao domínio da intimidade. Essa incompatibilidade é a perspectiva a partir da qual Bataille afirma sua teoria da religião nos seguintes termos: A religião, cuja essência é a busca da intimidade perdida, se resumiu ao esforço da consciência clara que quer ser inteiramente consciência de si: mas esse esforço é vão, já que a consciência da intimidade só é possível no nível em que a consciência não é mais uma operação cujo resultado implica a duração, ou seja, no nível em que a clareza, que é o efeito da duração, não é mais nada (p. 47).

O problema ao qual o livro se concentra é o da humanidade querer, através da religião, a intimidade pela consciência clara e distinta, mas tal operação é impossível, pois a humanidade extraviou a intimidade, a negou para permanecer na consciência clara das coisas. No final do livro, Bataille afirma que a fraqueza das religiões, na medida em que não tentaram modificar a ordem das coisas, consiste em reduzir a ordem íntima à ordem real (p. 72), ligando cada vez mais o sagrado a operações produtivas ao longo da história. E o princípio fundamenta l desse problema é o da relação entre sujeito e objeto que está imerso no domínio da utilidade.

Cada vez mais a humanidade aumentou o abismo entre o homem e a sua intimidade indistinta, separou cada vez mais o homem daquilo que ele é (p. 47). As sociedades de combate, mesmo tentando corresponder à exigência de consumo da ordem mítica, não suportaram as práticas cruéis de tal consumo violento, que, nascidas da angústia, geravam uma angústia ainda maior em meio ao desenvolvimento material do mundo das obras úteis graças à empresa da guerra. “O primado do consumo não pôde resistir ao primado da força militar” (p. 50).

Na segunda parte do livro, intitulada “A religião nos limites da razão (Da ordem militar ao crescimento industrial)”, o autor faz uma análise do distanciamento cada vez mais crescente entre o homem e a sua intimidade no curso do desenvolvimento econômico das sociedades. As sociedades de combate que fizeram da conquista e da expansão territorial uma operação metódica, tornam-se impérios. O império era a ordem militar que “pôs fim aos mal-estares que respondiam a uma orgia do consumo” (p. 53). A representação do império é de uma “coisa universal”, a essência do império não está em dar a vez ao desencadeamento do consumo violento, mas está em desviar a violência para fora dele mesmo.

No império, o divino realiza atividades operatórias, isto é, está reduzido ao real. Origina-se, segundo Bataille, uma visão dualista do mundo: o divino é transcendente e o real é imanente (p. 57). O homem do império é dualista, é o homem do direito e da moral, diferente do arcaico, pois o homem do império é o homem da consciência reflexiva, desviado dos ritos de retorno à intimidade indistinta. Para o homem dualista, o sagrado (inteligível) está fora, é inacessível, está além, e nisso o divino é “moralizado”, o transcendente é fasto e o imanente é nefasto. Esta atribuição de valores ao sagrado e ao profano é resultado da redução do sagrado à ordem universal da razão pela moral. No império, os homens “[…] racionaliza m e moralizam a divindade, no próprio movimento em que a moral e a razão são divinizadas” (p. 56). A moral tem em vista regras para salvaguardar a vida dos indivíduos no futuro por vir, e por isso condena o consumo violento da intimidade. “Ela [a moral] condena as formas agudas da destruição ostentatória das riquezas. Condena de modo geral todos os consumos inúteis” (p. 56).

Como Bataille tem em vista falar, em Teoria da religião, da experiência da consciência com a intimidade, e com isso pretende fornecer um quadro geral, ele não se detém em nomear quais são as religiões dos homens dualistas, mas, na conferência Esquema de uma história das religiões, Bataille se refere explicitamente ao islã e ao cristianismo (p. 132-133).

No mundo das mediações, que caracteriza essas religiões, as obras da “salvação”, que é para elas a intimidade (p. 64), pertencem à lógica dos meios para os fins graças à moral, que cada vez mais reduziu o divino a operações eficazes. No mundo da mediação, mundo das obras, “[…] a salvação é buscada como se fia a lã” (p. 65).

Segundo Bataille, o universo material passa a ser rechaçado em sua participação com o sagrado, a lógica da eficácia se atenua a tal ponto que o “valor divino” das obras é negado, tudo o que diz respeito ao sagrado é abandonado no além e tudo o que diz respeito ao mundo das obras é isolado no aquém. Esse mundo das obras, diz o autor, “[…] não tem outro fim senão seu próprio desenvolvimento. A partir de então, só a produção é, aqui embaixo, acessível e digna de interesse” (p. 66).

O que passa a existir então é um “reinado das coisas autônomas”. Por esse caráter se define, segundo Bataille, o mundo do crescimento industrial, o da total cisão da ordem íntima com a ordem real. Claramente é o resultado do movimento do princípio da operação produtiva desde o império que “[…] dominou de maneira feral a consciência” (p. 67).

Bataille vê no crescimento industrial, que caracteriza a era capitalista, uma radical mudança de posição com relação ao consumo improdutivo das riqueza s excedentes, normalmente destinado ao sagrado, pois “[o] excedente da produção pôde ser consagrado ao crescimento do equipamento produtivo, à acumulação capitalista (ou pós-capitalista)” (p. 68).

Dessa forma, neste momento do livro, o autor afirma, de modo lapidar, a total subserviência do homem à lógica da eficácia. Há um abandono da vida “[…] a um movimento que ele [o homem] não comanda mais” (p. 68). Eis o grande “negócio” incontrolável que tem a força de direcionar todas as instâncias da vida à contínua produção, em que se torna latente a “soberania da servidão”, e não há nada que arruíne este negócio. Numa lucidez desoladora, Bataille afirma que não há outro modo de ser, seria muito difícil um outro encaminhamento das coisas, pois, “comparado ao crescimento industrial o resto é insignificante” (p. 69).

Á guisa de conclusão da segunda parte de Teoria da religião, o problema da religião é retomado, apontando para o fato de que a verdade da religião não faz mais sentido. “A busca milenar pela intimidade perdida é abandonada pela humanidade produtiva” (p. 68). O problema da religião alcança seu ápice de problematização no livro quando são tratados aspectos do crescimento industrial, uma vez que nesse momento histórico “[…] o homem se afasta de si mesmo m ais do que nunca” (p. 68). No entanto, o caráter de irrealidade que agora se confere a todo o resto contrário à produção não aniquila a existência desse outro. E então a perspectiva sobre o problema da religião muda, pois, por mais que haja a redução do homem para a operação produtiva, não se pode “evitar que haja nele alguma ligação entre a operação e a intimidade” (p. 72). É fraca a ordem íntima no mundo da consciência clara, não passa de balbucios. Mas a força desses balbucios encontra-se no fato de serem incomuns ao mundo da produção, são estranhos, pois representam a oposição da intimidade à ordem real.

Georges Bataille coloca em evidência o erro que proporcionou o “reinado da soberania produtiva”, a saber: a humanidade, a partir do sentimento do sagrado, representou cada vez mais a intimidade à luz da consciência clara. Mas isso traz um paradoxo, pois a possibilidade contrária é de antemão excluída pela contraposição entre intimidade e ordem real. As religiões fracassaram ao tentarem solucionar seu problema fundamental, de buscar a intimidade perdida, e acabaram por afirmar a ordem das coisas e a ela reduzir a ordem íntima. “No final, o princípio de realidade triunfou sobre a intimidade” (p. 72). O conhecimento distinto, ligado à ordem real, se difere da ordem íntima pelos modos de existência no tempo. “A vida divina é imediata, o conhecimento é uma operação que exige a suspensão e a espera” (p. 71).

Assim, Bataille coloca como possibilidade a restituição da ordem íntima no plano da consciência clara se a consciência deixar de iluminar a intimidade com a luz que pretende fundamentar um saber, e então dê lugar ao “não saber”. A intimidade pode ser restituída se a consciência clara mergulhar na obscuridade da intimidade. Tal possibilidade de restituição da intimidade só se dá pela consciência de si. “A consciência de si escapa assim do dilema da exigência simultânea da imediatez e da operação” (p. 71).

Georges Bataille não define claramente o que entende por consciência de si em Teoria da religião, mas, para o autor, diferentemente da satisfação da consciência no saber absoluto, a consciência é consciência de si quando encontra a sua verdade no não-saber. A consciência de si não soluciona o paradoxo fundamental da teoria da religião, mas desvia dele numa operação impossível. E nesse desvio a ordem das coisas não é destruída, mas reduzida à ordem íntima. O que a consciência submissa à ordem das operações produtivas pode fazer, segundo Bataille, é “[…] proceder à operação contrária, a uma redução da redução ” (p. 72), em suma, é levar a operação ao seu limite, e então a consciência se encontrará “[…] reduzida àquilo que ela é profundamente” (p. 72). É no reencontro com a intimidade em sua noite que ela, a consciência, “[…] completará tão bem a possibilidade do homem ou do ser que reencontrará distintamente a noite do animal íntimo no mundo – onde ela entrará ” (p. 72).

A destruição geral das coisas é condição para a consciência de si, é a operação contrária. Bataille alude à imagem do copo com vinho sobre a mesa para afirmar como essa destruição pode ocorrer. Os objetos que rodeia os homens são frutos do trabalho. Uma cama, uma mesa, uma cadeira. Alguém os fez para um outro comprar e usufruir, e o dinheiro de compra foi fruto de um trabalho. O que está em jogo é um conjunto de atividades que tem seu sentido num tempo por vir, trabalhar para receber dinheiro, fazer mesas para vender, etc. A mesa e a cadeira podem proporcionar dinheiro a um pensador, pois escreverá usando a mesa e a cadeira. E o pensador pagará o açougueiro pela carne, e assim o encadeamento do trabalho se perpetua. Mas, quando se coloca um copo com vinho sobre a mesa, esta já não serve mais para o trabalho, e sim para o consumo do vinho. Segundo Bataille, quando isso acontece, a mesa é destruída, isto é, nela todo o encadeamento do trabalho a que pertencia é destruído. E tudo isso em prol de uma fruição, de um desencadeamento que respondeu à ordem do instante e não mais do tempo por vir: beber um copo de vinho. “[…] todas as tarefas que me permitiram chegar a isso são destruídas de chofre, esvaziam-se infinitamente como um rio no oceano desse instante ínfimo” (p. 73). Pode ser uma destruição em ínfima escala, mas é nessa ínfima escala que, por um instante, a relação entre sujeito e objeto mudou. U m objeto não foi posto como tal, escapou do encadeamento da duração, uma vez que o resultado esperado no futuro pertenceu, por um momento, à fruição do instante. Por um momento o por vir foi aniquilado e somente o instante foi afirmado. Todo o tempo do esforço laboral não foi nada diante desse instante.

Portanto, segundo Bataille, a dissolução dos objetos no instante íntimo é o fundamento da consciência de si, “[…] é a negação da diferença entre o objeto e eu mesmo ou a destruição dos objetos como tais n o campo da consciência” (p. 74). E a destruição dos excedentes da produção pode manter o movimento da economia, segundo uma inversão fundamental, a do consumo improdutivo, na medida em que “[…] a produção excedente fluirá como um rio para fora ” (p. 74, g rifo original). Assim, a permanente destruição dos objetos produzidos dissolverá a diferenciação entre sujeito e objeto, de modo que a destruição do objeto no plano da consciência clara implica na destruição do sujeito. Mas, nessa operação contrária, “[…

] os objetos efetivamente destruídos não destruirão os homens” (p. 74). A realização do homem, consciência que se torna consciência de si, se dá na destruição do objeto, no contrário do que constitui a operação útil.

Teoria da religião parece tratar de uma aposta, e o que Bataille quer afirmar, com essas asserções acerca da destruição dos objetos no plano da consciência clara, é uma vida humana não submissa ao primado da utilidade, em que o homem deixe de ser uma coisa subjugada. É um pensamento “[…

] para quem a vida humana é uma experiência a ser levada o mais longe possível ” (p. 77, grifo original). Somente na consciência de si o homem pode ser soberano, restituindo a totalidade à sua vida. Assim o autor define o que é a soberania: “Soberania designa o movimento de violência livre e interiormente dilacerante que anima a totalidade, dissolve-se em lágrimas, em êxtase e em gargalhadas e revela o impossível no riso, no êxtase e nas lágrimas” (p. 78).

Georges Bataille conclui seu escrito com algumas considerações críticas sobre o método de abordagem feito por ele mesmo, e traz uma lista de referenciais teóricos que o ajudaram a fomentar o seu pensamento acerca do impasse existencial entre ordem íntima e ordem real. Neste referencial teórico destacam-se: Introduction à la lecture de Hegel, de Alexandre Kojéve; Les formes élémentaires de l avie religieuse, de Émile Durkheim; La doctrine du sacrifice dans le brahmanas, de Sylvain Lévi; Essai sur le don, de Marcel Mauss; Di e protestantiche Ethik und der Geist des Kapitalismus, de Max Weber.

Portanto, Teoria da religião é um livro que aborda muitas questões referentes a um objeto de reflexão que não se deixa precisar pela linguagem discursiva. Nessa pretensão, Georges Bataille esforça-se em mostrar um quadro geral coerente, no que se refere ao problema da religião – da situação humana no impasse dos incompatíveis domínios da ordem íntima e da ordem real –, mas que resultou em alguns momentos em imprecisões históricas e imprecisões de referências (p. 84-85). No entanto, o esquema desenvolvido por Bataille em Teoria da religião, “[…] que devia evitar sistematicamente referências precisas” (p. 85), não poderia vir à luz sem uma liberdade de reflexão que o tornou possível.

Torna-se válido retomar que o autor tentou promover uma abertura da reflexão. É um livro que trata de uma experiência de abertura, intenta ser libertador, como diz Bataille acerca de si mesmo e de seu escrito: “Gostaria de ajudar meus semelhantes a se acostumarem à ideia de um movimento aberto da reflexão. Esse movimento nada tem a dissimular, nada a temer” (p. 84).

Anderson Barbosa Camilo-Bacharel em Filosofia (UFRN). Mestre em Estética e Filosofia da Arte (UFOP). Doutorando em Metafísica (UFRN). E-mail: [email protected]

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