Religiões e Religiosidades no Brasil: História, Historiografia e Ensino | Ítalo Domingos Santirocchi, Marcia Milena Galdez Ferreira e Wheriston Silva Neris

Religiões e Religiosidades no Brasil: História, Historiografia e Ensino é uma coletânea de artigos organizados por Ítalo Domingos Santirocchi, Marcia Milena Galdez Ferreira e Wheriston Silva Neris, que tem por objetivo apresentar resultados de pesquisas desenvolvidas em diversas regiões do país por autores em diferentes estágios de maturação e com diversas concepções teóricas e metodológicas, mas com objetos de estudos comuns: religiões e religiosidades. A obra conta com quatorze artigos, divididos em quatro seções. A primeira parte trata da relação entre a religião, a política e o poder; a segunda reflete sobre as memórias e representações religiosas; a terceira, por sua vez, reflete sobre a religião, trajetórias e narrativas bibliográficas; e, por fim, a quarta parte contempla considerações sobre a religião, as religiosidades e o ensino destas. Leia Mais

Bispos guerreiros: violência e fé antes das cruzadas – RUST (PL)

Leandro Duarte Rust é um medievalista em ascensão no Brasil. Professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) é dono de uma crescente bibliografia, iniciada com a publicação de Colunas de São Pedro: a política papal na idade média central (Annablume, 2011), seguida por A reforma papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história (EdUFMT, 2013) e Mitos papais: política e imaginação na história (Vozes, 2015). Basta olhar para os títulos de suas obras para compreender porque Rust vem se consagrando como um historiador do papado.

Entretanto, seu quarto livro, Bispos guerreiros: violência e fé antes das cruzadas, recém-publicado pela editora Vozes, vai além. Seguindo a história de Cádalo, entronizado como o “antipapa” Honório II, o autor realiza uma profunda análise sobre as relações entre a violência e o sagrado na Península Itálica nos séculos X e XI. Leia Mais

História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões – RODRIGUES; AQUIAR (HU)

RODRIGUES, A.F.; AGUIAR, J.O. (org.). História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões. São Paulo: Humanitas, 2016. 490 p. (História Diversa, n. 6). Resenha de CABREIRA, Maria Alda Barbosa. Religiões e religiosidades em debate. História Unisinos 22(1):149-152, Janeiro/Abril 2018.

Estudos relacionados a religiões e religiosidades vêm recebendo cada vez mais interessantes contribuições que ajudam a alargar o debate e o reconhecimento de formas diversas de expressar o religioso, notadamente, na sociedade contemporânea.

A problemática dos fenômenos religiosos, e mesmo das maneiras científicas e acadêmicas de como o universo do sagrado, as religiões e as religiosidades foram interpretadas, é resultante de processos históricos e sociais ligados a relações de privilégios e poder.

Como um conjunto de práticas e doutrinas organizadas em uma cosmologia bem definida, a religião e seu estudo permitem entender o universo cotidiano, as relações sociais, as instituições políticas, as ideias e as formas de expressão religiosa que compõem determinados regimes do crer, como práticas, espiritualidades, filosofias de vida e experiências do sagrado (Arnal, 2000).

Com análise detida destes nuances, a coletânea História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões, coordenada pelos professores André Figueiredo Rodrigues e José Otávio Aguiar, faz-se presente no debate que analisa as religiões e seu desenvolvimento e discussões históricas ocorridas em diferentes épocas, nos mais diversos povos e nas suas muitas manifestações.

Reunindo 24 capítulos, o livro apresenta quatro divisões temáticas que convidam o leitor a refletir sobre as diversidades humanas na abordagem dos espaços e discursos dedicados ao religioso, em perspectiva ligada principalmente à história cultural. Aliás, do conjunto, 17 textos dedicam-se ao multifacetado universo religioso brasileiro, dominado pela matriz do cristianismo. Observando- -se os dados do Censo demográfico 2010 sobre religião, divulgados pelo IBGE em 29 de junho de 2012, confirmam-se tendências de transformação do campo religioso brasileiro, aceleradas a partir da década de 1980, quando se iniciou o recrudescimento da queda numérica dos fiéis seguidores da fé católica frente à vertiginosa expansão dos pentecostais e das pessoas que se declaravam sem religião. Os números interessam: entre 1980 e 2010, os católicos declinaram de 89,2% para 64,6% da população, queda de 24,6 pontos percentuais; os evangélicos passaram de 6,6% para 22,2% da população, acréscimo de 15,6 pontos percentuais em 30 anos, representando 42,3 milhões de pessoas, sendo a segunda religião com o maior número de adeptos no país. Apesar destes números, o catolicismo ainda se faz predominante, com mais de 123 milhões de pessoas, classificando o Brasil como o maior país católico do mundo em números nominais. No período, o conjunto das outras religiões, incluindo espíritas e cultos afro-brasileiros, também dobrou de tamanho, passando de 2,5% para 5% (Mariano, 2013, p. 119).

De 1980 para cá, a partir dos dados informados, prosperou a diversificação da pertença religiosa e da religiosidade no Brasil, mas se manteve “praticamente intocado seu caráter esmagadoramente cristão” (Mariano, 2013, p. 119).2 As raízes de nossa formação cristã, assim como a análise de aspectos da história religiosa brasileira, vislumbrada naqueles números e nas práticas sagradas católicas, espíritas e protestantes, seguem como eixo articulador dos capítulos relacionados ao universo brasileiro contemporâneo presentes na coletânea.

As manifestações cristãs majoritárias aparecem desde o texto de abertura do livro. Dividida em quatro partes, a obra em sua primeira seção procura reunir reflexões dedicadas aos temas da Antiguidade Clássica ou da recepção de suas produções sociais e históricas em nosso tempo. Sob o título de “Identidades, religiosidades e Antiguidade clássica”, tem-se o capítulo de Aíla Luzia Pinheiro de Andrade (Universidade Católica de Pernambuco e Faculdade Católica de Fortaleza) sobre as expectativas messiânicas no tempo de Jesus Cristo e a sua relação com a identidade cristã, construída a partir de então.

A seguir, Nelson de Paiva Bondioli (professor visitante no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal do Espírito Santo) e Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) analisam, com base nos escritos da época, a figura dos Príncipes Júlio-Claudianos (governantes Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero) e sua posição dentro da hierarquia política e religiosa romana durante o século I da Era Comum para falarem de tradição e de transgressão na religião romana.

Na sequência, Fernando Mattiolli Vieira (Universidade de Pernambuco) apresenta-nos a interessante história da descoberta dos manuscritos de Qumran e as suas condições de produção e recepção. Os documentos estudados por ele foram encontrados em 1947, entre o deserto da Judeia e a orla do mar Morto e próximo às ruínas de um sítio arqueológico conhecido por khirbet Qumran, e representam a maior conquista da arqueologia do século XX, pois neles foram encontrados 930 manuscritos, sendo que deste total 210 documentos reproduzem livros da Bíblia hebraica (chamada pelos cristãos de Antigo Testamento): Salmos, Deuteronômio e o Gênesis. Essa história e os desdobramentos destes achados para o conhecimento e as comprovações empíricas de fatos narrados nos livros sagrados cristãos estão relatados ali por ele.

O último texto desta parte pertence a Haroldo Dutra Dias (juiz de Direito e palestrante espírita) sobre o surgimento da crítica histórica nos estudos sobre a vida de Jesus Cristo e o constructo de sua figura profético- -apocalíptica, assim como sobre a origem do cristianismo.

A segunda parte do livro, Religiões, recepções e impérios ultramarinos, congrega estudos que marcam a presença do catolicismo em terras brasileiras e africanas, notadamente durante o período colonial. Nesta seção, estão presentes as pesquisas de André Figueiredo Rodrigues (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) sobre as religiosidades e as sociabilidades nas relações entre o clero e a sociedade nas Minas Gerais do século XVIII, mostradas a partir das manifestações religiosas católicas instaladas na região desde a chegada dos primeiros buscadores de ouro. Ainda no cenário das Minas Gerais setecentistas, Jeaneth Xavier de Araújo Dias (Universidade do Estado de Minas Gerais) brinda-nos com as histórias das festas e das celebrações religiosas para analisar os ritos, os ornamentos e as decorações feitas para a realização das procissões celebradas durante o Triunfo Eucarístico em Vila Rica no ano de 1733, quando se comemorou a condução triunfal da imagem do Santíssimo Sacramento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para a nova Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar.

Já Lúcia Helena Oliveira Silva (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) narra as estratégias de conversão e os processos de negociação entre bagandas e missionários anglicanos ingleses no reino de Uganda no século XIX.

Na continuidade, Joaci Pereira Furtado (Universidade Federal Fluminense) discute a relação entre catolicismo e paganismo na poesia árcade que vicejou durante a segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX entre Portugal e a América portuguesa, destacando a presença de elementos referenciais clássicos remetentes à mitologia e aos deuses gregos e latinos.

Por sua vez, Gustavo Henrique Tuna (doutor em História pela Universidade de São Paulo) discute o gradiente da fé católica (o sagrado e a descristianização) encontrado na biblioteca do poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga, considerada uma das mais relevantes do período colonial, com 1.576 volumes. Ainda no palco das letras coloniais, Renato da Silva Dias (Universidade Estadual de Montes Claros), em instigante texto, analisa a dimensão do político na esfera discursiva religiosa empreendida pelo clérigo secular Manoel Ribeiro Rocha para justificar o tráfico e a escravização dos africanos no Brasil na obra Ethíope resgatado, de 1758. Rubens Leonardo Panegassi (Universidade Federal de Viçosa) apresenta os hábitos alimentares e a sua relação com o discurso religioso dos primeiros jesuítas quinhentistas que empreenderam missões catequéticas na América portuguesa.

Passando da literatura para a arquitetura de taipa, Paula Ferreira Vermeersch (Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente) examina o patrimônio histórico e a arte sacra encontrada no interior da Igreja Matriz setecentista barroca de Sant’Ana Mestra do Sacramento, localizada na Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso.

Nas duas partes seguintes, os capítulos centram-se em análises do diálogo e da recepção de textos antigos e modernos, tanto do Oriente quanto do Ocidente, no universo religioso contemporâneo. A terceira seção, “Universo católico e problemas de história contemporânea”, inicia-se com o interessante texto de Patrícia Teixeira Santos (Universidade Federal de São Paulo, campus de Guarulhos) sobre as missões do Papa Paulo VI no contexto do catolicismo social, a partir de experiências no Brasil e em Moçambique. A militância católica se faz presente no capítulo de Milton Carlos Costa (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) ao analisar o pensamento e a trajetória intelectual de Jonathas Serrano, um importante batalhador pelos ideais cristãos durante a República Velha no Brasil.

No decurso da oposição ao Estado autoritário brasileiro (1964-1985), a partir da década de 1960, um de seus mais destacados opositores foi a Igreja Católica. Partindo desse contexto, Jorge Miklos (Universidade Paulista) e Adriano Gonçalves Laranjeira (Universidade Paulista) analisam a atuação da imprensa católica paulistana na defesa dos direitos humanos, por meio do resgate da história do semanário O São Paulo, jornal oficial da Arquidiocese de São Paulo, criado em 1956 com o objetivo de difundir os valores católicos entre os fiéis. Porém, a partir de 1970, quando a Arquidiocese de São Paulo é liderada por dom Paulo Evaristo Arns, o jornal sofre uma mudança na sua linha editorial e passa a atuar como crítico ao Estado autoritário.

Já Francisco Cláudio Alves Marques (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) e Esequiel Gomes da Silva (Universidade Federal do Pará, campus de Marajó- Breves), com habilidade e brilhantismo, brindam-nos com interessante análise, a partir de exemplos cantados no repente e estampados nos folhetos de cordel, das condições históricas e sociais que contribuíram para a representação de negros, adeptos de religiões de ascendência africana e protestantes associada à ideia de demônio, bem como das relações sociais que se estabeleceram no sertão nordestino marcado por práticas e crenças medievais, sobretudo nas primeiras décadas do século XX.

Ainda pelo viés da cultura, Elder Maia Alves (Universidade Federal de Alagoas) e Greciene Lopes dos Santos (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Alagoas) elegem como foco de análise de seu texto as interfaces entre a política do patrimônio imaterial, as festas e celebrações religiosas e o turismo religioso no Brasil, apresentando-nos como exemplo a festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, uma das maiores celebrações religiosas do mundo, que ocorre todos os anos no segundo domingo do mês de outubro na cidade de Belém, capital do Estado do Pará.

Por sua vez, Gisella de Amorim Serrano (pós- -doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais) analisa as edições de cunho religioso, para se compreender a correlação entre História e identidade nacional, na importante coleção Reconquista do Brasil, editada numa parceria da Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, com a Editora da Universidade de São Paulo, de 1976 a 1984, responsáveis pela impressão de 306 volumes.

Na última parte, “Protestantismo, espiritismo e religiões orientais no presente”, discutem-se assuntos relacionados ao evangelismo, protestantismo e atuação das igrejas reformadas no Brasil. Inicia-se com o capítulo de Iranilson Buriti de Oliveira (Universidade Federal de Campina Grande) e Roseane Alves Britto (mestra em História pela Universidade Federal de Campina Grande) comentando as metáforas de cura no discurso neopentecostal brasileiro. Na sequência, João Marcos Leitão Santos (Universidade Federal de Campina Grande) discorre sobre a crise conceitual sobre o protestantismo na historiografia brasileira.

A história recente do movimento espírita brasileiro aparece analisada nos dois artigos seguintes. O primeiro, de Alexandre Caroli Rocha (doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas), escrutina as repercussões geradas pelo chamado Caso Humberto de Campos, que mostra como um problema que envolvia uma disputa por direitos autorais estava além dos domínios jurídicos. E, depois, José Otávio Aguiar (Universidade Federal de Campina Grande) historia a trajetória do SER, “organização sociorreligiosa espírita recente, ecumênica e dedicada à tradição dos evangelhos em diálogo com a obra psicografada de exegese de Francisco Cândido Xavier” atribuída a diversos espíritos, mas em especial a Emmanuel (p. 10).

Os dois últimos autores dedicam seus escritos aos assuntos relacionados a religiões do Oriente Distante. Maria Lucia Abaurre Gnerre (Universidade Federal da Paraíba) e Gustavo Cesar Ojeda Baez (doutor em História pela Universidade Federal de Campina Grande) abordam em seu capítulo a perspectiva hermenêutica que o historiador das religiões Mircea Eliade desenvolve sobre a tradição do Yoga na Índia enquanto prática de religiosidade. Por último, Deyve Redyson (Universidade Federal da Paraíba) expõe as leituras meditativas do texto budista Sutra do coração e sua relação entre sabedoria e realidade.

Apesar de em seu conjunto os textos apresentarem diversidade temática, eles ilustram no todo a diversificação do campo religioso como fonte de pesquisa e de crença do universo sagrado e religioso multifacetado que se evidencia no dia a dia das pessoas. Tanto assim que, ao surgir da necessidade dos indivíduos se ligarem com o divino, a religião ou a pluralidade religiosa resultante das diversas maneiras de entender e perceber o mundo – e por que também não o homem a si mesmo – se faz presente como eixo articulador da obra, independentemente da época retratada ou das práticas e questões religiosas analisadas.

Os dados religiosos explicitados nos números do Censo 2010 permitem-nos traçar o rico e diverso panorama das “religiões e religiosidade” no Brasil contemporâneo. Guiando-se por essa perspectiva, mas sem esta se fazer explicitamente presente no corpo do livro, conseguimos observar nos capítulos interessantes interpretações da história e dos pressupostos religiosos do catolicismo e das igrejas protestantes – com suas múltiplas diversidades –, do universo espírita, das religiões afro-brasileiras, do sincretismo urdido entre elementos cristãos, afro-brasileiros e indígenas representados na cultura popular, do judaísmo, das religiões orientais e do budismo. Infelizmente faltou o islamismo! No cenário atual, ao propor “novas abordagens e debates sobre religiões”, a obra, plural em todo o seu sentido, revela o quanto assuntos como práticas religiosas e religiosidades desde a “Antiguidade aos recortes contemporâneos” não são temas pacíficos, já que em muitos trechos se evidenciam competições entre religiões, conceituações e personagens. Isto, aliás, permite-nos hoje visualizar a exacerbada quantidade de conflitos, cenas de intolerância e preconceito que se vivenciam na sociedade não só brasileira, mas mundial. No fundo, o livro nos faz refletir sobre a finalidade última das práticas religiosas: propor e transmitir a paz.

Notas

2 Os números do Censo mostram que as religiões no Brasil em 2010 dividiam-se em: Católica Apostólica Romana (123.280.172 = 64,63%), Evangélicas (42.275.440 = 22,16%), Sem religião (15.335.510 = 8,04%), Espírita (3.848.876 = 2,02%), Outras religiosidades cristãs (1.461.495 = 0,77%), Testemunhas de Jeová (1.393.208 = 0,73%), Não determinada e múltiplo pertencimento (643.598 = 0,34%), Umbanda e Candomblé (588.797 = 0,31%), Católica Apostólica Brasileira (560.781 = 0,29%), Budismo (243.966 = 0,13%), Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (226.509 = 0,12%), Não sabe (196.099 = 0,10%), Novas religiões orientais (155.951 = 0,08%), Católica Ortodoxa (131.571 = 0,07%), Judaísmo (107.329 = 0,06%), Tradições esotéricas (74.013 = 0,04%), Tradições indígenas (63.082 = 0,03%), Sem declaração (45.839 = 0,02%), Islamismo (35.167 = 0,02%), Outras religiosidades (11.306 = 0,01%), Hinduísmo (5.675 = 0,00%) (Somain, 2012).

Referências

ARNAL, W.E. 2000. Definition. In: W. BRAUN; R.T. McCUTCHEON (ed.), Guide to the study of religion. London, Continuum, p. 21-34.

MARIANO, R. 2013. Mudanças no campo religioso brasileiro no Censo 2010. Debates do NER, Porto Alegre, 14(24):119-137. Disponível em: http://oldsociologia.fflch.usp.br/sites/oldsociologia.fflch.usp.br/files/Campo%20religioso%20no%20Censo%202010.pdf Acesso em: 15/12/2017.

SOMAIN, R. 2012. Religiões no Brasil em 2010. Confins: Revista Franco- Brasileira de Geografia, n. 15. Disponível em: http://confins. revues.org/7785. Acesso em: 16/10/2017.

Maria Alda Barbosa Cabreira – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Assis. Professora da Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (FATEC), unidade de Garça. Av. Presidente Vargas, 2331, 17400-000, Garça, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

Teoria da religião – BATAILLE (AF)

BATAILLE, G. Teoria da religião. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015. Resenha de: CAMILO, Anderson Barbosa. Artefilosofia, Ouro Preto, n.23, dez., 2017.

A recente publicação no Brasil de Teoria da religião de Georges Bataille pela editora Autêntica, com a competente tradução de Fernando Scheibe, traz uma edição ímpar deste escrito. Além de disponibilizar de modo integral o texto Teoria da religião, a presente edição dispõe da famosa conferência Esquema de uma história das religiões, proferida em 1948 no Collège Philosophique em Paris, na qual Bataille expôs noções chaves que posteriormente desenvolveu no manuscrito de Teoria da religião, redigido no mesmo ano, logo após esta conferência que “serviu de embrião ao livro” (p. 7), como diz Fernando Scheibe. É interessante ressaltar que a presente edição de Teoria da religião contém a presença das notas extraídas do volume VII das Obras Completas de Bataille, e também a inclusão das “Notas do editor francês”. Percebe-se nitidamente um empenho da editora Autêntica de apresentar ao público uma edição que proporcione uma leitura mais rica e frutífera de Teoria da religião, oferecendo ao leitor, num único volume, não somente o texto integral, mas, também, as notas adicionais e a mencionada conferência que originou o escrito.

Originalmente publicado pela editora francesa Gallimard em 1974, Teoria da religião veio a público após 12 anos da morte de Georges Bataille. Trata-se, portanto, de um escrito póstumo e que podemos considerá-lo abandonado, pois, como consta na “Nota do editor francês”, “[…] este texto estava destinado à coleção ‘Miroir’ [Espelho] das Edições ‘Au masque d’Or’ (Angers) ” (p. 11, grifo original), que não chegou a ser enviado em sua versão final. Bataille enviou para o editor um manuscrito incompleto, prometendo posteriormente enviar um quadro e mais algumas páginas. Assim, a publicação de Teoria da religião pela coleção “Miro ir” não foi concluída, desconhecendo-se o real motivo, mas vale salientar que o mencionado escrito de Bataille é citado diversas vezes nos planos para compor a Suma Ateológica (p. 11).

Por ser composto no diálogo da filosofia com a antropologia e da história da religião com a economia e com a sociologia, trata-se de uma obra plural que afirma o caráter incompleto e insuficiente dos pretensos discursos unilaterais sobre o ser humano. Mesmo assim, multifacetado, o pensamento de Bataille se esforça para permanecer numa constante: ser um pensamento aberto, “ móvel ”, pois um pensamento que se quer atrelado às vicissitudes da existência não pode se querer acabado, fechado. “[…] procurei exprimir um pensamento móvel, sem buscar seu estado definitivo” (p. 19), diz Bataille sobre seu escrito.

Como aponta o título do livro, vemos o desenvolvimento de uma teoria da religião que pode ser entendida como uma teoria sobre o sentimento religioso a partir da experiência da imanência ou da intimidade. Para Bataille, a religião responde a uma “busca da intimidade perdida” (p. 47). No percurso de sua argumentação, o autor se esforça por mostrar como a relação do homem com o domínio da imanência ou da intimidade, que é o fundamento da experiência do sagrado, se origina nas sociedades primitivas e quais lugares essa relação ocupa ao longo da história, do surgimento e do desenvolvimento das religiões, indo até a era industrial.

Para dar conta desta abordagem, Teoria da religião é constituída por duas partes. A primeira, intitulada “Dados fundamentais”, trata da construção de um quadro em que os conceitos de animalidade, intimidade, imanência, sacrifício, profano e sagrado são explicados. No início da primeira parte, Bataille afirma que o domínio da imanência é o da situação animal. “[…] a animalidade é a imediatez ou a imanência” (p. 23). A situação animal se passa num plano de indistinção na medida em que não há relação entre sujeito e objeto, isto é, não há a relação em que o objeto é posto por um sujeito que se sabe diferente do objeto. Assim, fundamentalmente, a noção de distinção é pensada.

Acrescenta-se a isso que a duração temporal do objeto é condição necessária para que ele seja posto enquanto tal: “É na medida em que somos humanos que o objeto existe no tempo em que sua duração é apreensível” (p. 24). Para a animalidade não existe a consideração do tempo por vir, portanto, não existe relação entre sujeito e objeto, não existe “[…] nada que possa estabelecer de um lado a autonomia e do outro a dependência” (p. 24).

A continuidade indistinta é o princípio fundamental da animalidade, de modo que Bataille afirma: “todo animal está no mundo como a água no interior da água ” (p. 24, grifo original). É impossível falar da situação animal com precisão, senão de modo poético, “[..

.] visto que a poesia não descreve nada que não deslize para o incognoscível” (p. 25). A animalidade apresenta-se a nós como “um enigma bem embaraçoso” (p. 25).

A partir dessas noções Bataille distingue o mundo humano em contraposição à situação animal. Se a animalidade está imersa numa continuidade, isto é, indistinção, o mundo humano está dado numa descontinuidade, e enquanto tal se configura a partir da posição do objeto enquanto diferenciado da consciência, como não-eu. Assim também o sujeito se faz conhecedor, pois conhece a si mesmo como um outro: “Isso quer dizer […] que só passamos a nos conhecer distinta e claramente no dia em que nos percebemos de fora como um outro” (p. 31).

Nessa perspectiva, a relação do sujeito com o objeto se dá no domínio da utilidade, pois foi na finalidade de manter-se viva que a humanidade estabeleceu sua relação com o mundo. É no plano da fabricação de ferramentas e da utilidade que a humanidade se tornou possível, e é nesse plano que se originou o sujeito conhecedor. Na medida em que transforma a natureza em algo que serve, o homem se coloca como peça fundamental nessa lógica dos meios para os fins, pois ele também está servindo a uma finalidade. Desta maneira, na relação útil com o objeto, o homem também torna-se uma coisa útil.

A questão principal nesta abordagem batailleana é que, no percurso histórico, mesmo a humanidade se realizando no mundo das obras úteis, no mundo profano, ela em alguma medida responde à imanência indistinta, ela responde à sua intimidade mais profunda, e passa a dar origem a um mundo “espiritualizado”, com a representação de um “Ser supremo”, depois animais e plantas dotadas de espíritos e, finalmente, a representação mítica do mundo através de deidades. É nessa perspectiva que o problema do sa grado é introduzido. O sagrado está relacionado à imanência e à continuidade, de modo que, para Bataille, o sentimento do sagrado, que responde à intimidade do homem, está imbuído de angústia, pois o sagrado é contraposto ao mundo profano que obedece ao imperativo da utilidade dando continuidade às possibilidades da vida gregária.

As práticas relacionadas ao sagrado, ao sacrifício e à festa não acontecem senão ao preço do mal estar e do medo, adquirido pelo homem que é arrancado do plano ordenado das obras úteis e levado ao domínio da intimidade e da imanência que põe em risco a duração da vida pela presença da morte. Nessa perspectiva, o sacrifício é pensado como uma prática que se determina como destruição do caráter de coisa da vítima. “É a coisa – somente a coisa – que o sacrifício quer destruir” (p. 39). Porém, o sacrifício se dá ao custo de retirar a vítima realmente do mundo das coisas, matando-a, fazendo-a voltar à intimidade, ao mundo sagrado dos deuses, e isso só é possível na medida em que o sacrificador pertence a esse mundo, “[…] ao mundo da generosidade violenta e sem cálculo” (p. 39).

O que há de mais importante na análise sobre o sacrifício em Teoria da religião é a destruição do laço entre o homem e o mundo da utilidade, o mundo da possibilidade da vida: “[…] o sacrifício vira as costas para as relações reais” (p. 40). Isto, no entanto, não acontece sem angústia, pois o medo da morte permeia o mundo das coisas de tal forma que uma prática que instaure a presença da morte só pode ser concebida com medo. “O homem tem medo da ordem íntima que não é conciliável com aquela das coisas” (p. 44). A ordem íntima para os primitivos está ligada à ordem mítica, e esta se contrapõe ao mundo real, a ordem mítica (íntima) é a negação da ordem real.

Segundo Bataille, na vida cotidiana a presença da ordem íntima é como uma sombra, traz consigo apenas a potência da morte que destrói o primado da duração, que é o fundamento da posição objetiva do mundo das coisas. O caráter devastador da morte é a todo o momento amortecido na ordem das coisas, a neutralização da vida íntima faz da morte algo irreal, mas quando ela se faz realmente presente, “[…] a morte mostra de repente que a sociedade mentia” (p. 41).

Georges Bataille compreende que a neutralização da intimidade pelo primado da duração na ordem real das coisas, por medo da morte, na realidade é a neutralização da vida, de modo que afirma: “[…] é claro que a necessidade da duração nos furta a vida e que, em princípio, só a impossibilidade da duração nos libera” (p. 42). É difícil para Bataille falar da intimidade, pois é impossível exprimi-la discursivamente. Ela é a ordem do desencadeamento violento das paixões, no sentido mais extremo de violência; é a ordem da intensidade de vida nas fronteiras da morte. A intimidade é paradoxal, “porque não é compatível com a posição do indivíduo separado” (p. 43), ou seja, o estatuto da experiência da intimidade é impossível. O que está jogo para Bataille é que o homem primitivo se via perante um impasse existencial: de um lado, o ímpeto para a imersão na intimidade e continuidade comandado por uma violência interior, e por outro, a satisfação das necessidades materiais guiada por uma vontade sempre crescente da racionalidade calculadora que neutraliza os instantes de intensidade da vida.

A festa é uma prática que tentou solucionar esse impasse, na medida em que nela explode uma aspiração à destruição, “[…] mas é uma sabedoria conservador a que a ordena e a limita” (p. 45). Nela as possibilidades de consumo são proporcionadas pelo desencadeamento das diferentes artes, por exemplo, dança e poesia, mas o limite desse desencadeamento da festa se determina na medida em que o mundo das coisas ainda deva ser assegurado. Só assim a festa é suportada.

Este quadro esboçado sobre a relação entre sagrado e profano traduz a incompatibilidade e atração da consciência clara e distinta frente ao domínio da intimidade. Essa incompatibilidade é a perspectiva a partir da qual Bataille afirma sua teoria da religião nos seguintes termos: A religião, cuja essência é a busca da intimidade perdida, se resumiu ao esforço da consciência clara que quer ser inteiramente consciência de si: mas esse esforço é vão, já que a consciência da intimidade só é possível no nível em que a consciência não é mais uma operação cujo resultado implica a duração, ou seja, no nível em que a clareza, que é o efeito da duração, não é mais nada (p. 47).

O problema ao qual o livro se concentra é o da humanidade querer, através da religião, a intimidade pela consciência clara e distinta, mas tal operação é impossível, pois a humanidade extraviou a intimidade, a negou para permanecer na consciência clara das coisas. No final do livro, Bataille afirma que a fraqueza das religiões, na medida em que não tentaram modificar a ordem das coisas, consiste em reduzir a ordem íntima à ordem real (p. 72), ligando cada vez mais o sagrado a operações produtivas ao longo da história. E o princípio fundamenta l desse problema é o da relação entre sujeito e objeto que está imerso no domínio da utilidade.

Cada vez mais a humanidade aumentou o abismo entre o homem e a sua intimidade indistinta, separou cada vez mais o homem daquilo que ele é (p. 47). As sociedades de combate, mesmo tentando corresponder à exigência de consumo da ordem mítica, não suportaram as práticas cruéis de tal consumo violento, que, nascidas da angústia, geravam uma angústia ainda maior em meio ao desenvolvimento material do mundo das obras úteis graças à empresa da guerra. “O primado do consumo não pôde resistir ao primado da força militar” (p. 50).

Na segunda parte do livro, intitulada “A religião nos limites da razão (Da ordem militar ao crescimento industrial)”, o autor faz uma análise do distanciamento cada vez mais crescente entre o homem e a sua intimidade no curso do desenvolvimento econômico das sociedades. As sociedades de combate que fizeram da conquista e da expansão territorial uma operação metódica, tornam-se impérios. O império era a ordem militar que “pôs fim aos mal-estares que respondiam a uma orgia do consumo” (p. 53). A representação do império é de uma “coisa universal”, a essência do império não está em dar a vez ao desencadeamento do consumo violento, mas está em desviar a violência para fora dele mesmo.

No império, o divino realiza atividades operatórias, isto é, está reduzido ao real. Origina-se, segundo Bataille, uma visão dualista do mundo: o divino é transcendente e o real é imanente (p. 57). O homem do império é dualista, é o homem do direito e da moral, diferente do arcaico, pois o homem do império é o homem da consciência reflexiva, desviado dos ritos de retorno à intimidade indistinta. Para o homem dualista, o sagrado (inteligível) está fora, é inacessível, está além, e nisso o divino é “moralizado”, o transcendente é fasto e o imanente é nefasto. Esta atribuição de valores ao sagrado e ao profano é resultado da redução do sagrado à ordem universal da razão pela moral. No império, os homens “[…] racionaliza m e moralizam a divindade, no próprio movimento em que a moral e a razão são divinizadas” (p. 56). A moral tem em vista regras para salvaguardar a vida dos indivíduos no futuro por vir, e por isso condena o consumo violento da intimidade. “Ela [a moral] condena as formas agudas da destruição ostentatória das riquezas. Condena de modo geral todos os consumos inúteis” (p. 56).

Como Bataille tem em vista falar, em Teoria da religião, da experiência da consciência com a intimidade, e com isso pretende fornecer um quadro geral, ele não se detém em nomear quais são as religiões dos homens dualistas, mas, na conferência Esquema de uma história das religiões, Bataille se refere explicitamente ao islã e ao cristianismo (p. 132-133).

No mundo das mediações, que caracteriza essas religiões, as obras da “salvação”, que é para elas a intimidade (p. 64), pertencem à lógica dos meios para os fins graças à moral, que cada vez mais reduziu o divino a operações eficazes. No mundo da mediação, mundo das obras, “[…] a salvação é buscada como se fia a lã” (p. 65).

Segundo Bataille, o universo material passa a ser rechaçado em sua participação com o sagrado, a lógica da eficácia se atenua a tal ponto que o “valor divino” das obras é negado, tudo o que diz respeito ao sagrado é abandonado no além e tudo o que diz respeito ao mundo das obras é isolado no aquém. Esse mundo das obras, diz o autor, “[…] não tem outro fim senão seu próprio desenvolvimento. A partir de então, só a produção é, aqui embaixo, acessível e digna de interesse” (p. 66).

O que passa a existir então é um “reinado das coisas autônomas”. Por esse caráter se define, segundo Bataille, o mundo do crescimento industrial, o da total cisão da ordem íntima com a ordem real. Claramente é o resultado do movimento do princípio da operação produtiva desde o império que “[…] dominou de maneira feral a consciência” (p. 67).

Bataille vê no crescimento industrial, que caracteriza a era capitalista, uma radical mudança de posição com relação ao consumo improdutivo das riqueza s excedentes, normalmente destinado ao sagrado, pois “[o] excedente da produção pôde ser consagrado ao crescimento do equipamento produtivo, à acumulação capitalista (ou pós-capitalista)” (p. 68).

Dessa forma, neste momento do livro, o autor afirma, de modo lapidar, a total subserviência do homem à lógica da eficácia. Há um abandono da vida “[…] a um movimento que ele [o homem] não comanda mais” (p. 68). Eis o grande “negócio” incontrolável que tem a força de direcionar todas as instâncias da vida à contínua produção, em que se torna latente a “soberania da servidão”, e não há nada que arruíne este negócio. Numa lucidez desoladora, Bataille afirma que não há outro modo de ser, seria muito difícil um outro encaminhamento das coisas, pois, “comparado ao crescimento industrial o resto é insignificante” (p. 69).

Á guisa de conclusão da segunda parte de Teoria da religião, o problema da religião é retomado, apontando para o fato de que a verdade da religião não faz mais sentido. “A busca milenar pela intimidade perdida é abandonada pela humanidade produtiva” (p. 68). O problema da religião alcança seu ápice de problematização no livro quando são tratados aspectos do crescimento industrial, uma vez que nesse momento histórico “[…] o homem se afasta de si mesmo m ais do que nunca” (p. 68). No entanto, o caráter de irrealidade que agora se confere a todo o resto contrário à produção não aniquila a existência desse outro. E então a perspectiva sobre o problema da religião muda, pois, por mais que haja a redução do homem para a operação produtiva, não se pode “evitar que haja nele alguma ligação entre a operação e a intimidade” (p. 72). É fraca a ordem íntima no mundo da consciência clara, não passa de balbucios. Mas a força desses balbucios encontra-se no fato de serem incomuns ao mundo da produção, são estranhos, pois representam a oposição da intimidade à ordem real.

Georges Bataille coloca em evidência o erro que proporcionou o “reinado da soberania produtiva”, a saber: a humanidade, a partir do sentimento do sagrado, representou cada vez mais a intimidade à luz da consciência clara. Mas isso traz um paradoxo, pois a possibilidade contrária é de antemão excluída pela contraposição entre intimidade e ordem real. As religiões fracassaram ao tentarem solucionar seu problema fundamental, de buscar a intimidade perdida, e acabaram por afirmar a ordem das coisas e a ela reduzir a ordem íntima. “No final, o princípio de realidade triunfou sobre a intimidade” (p. 72). O conhecimento distinto, ligado à ordem real, se difere da ordem íntima pelos modos de existência no tempo. “A vida divina é imediata, o conhecimento é uma operação que exige a suspensão e a espera” (p. 71).

Assim, Bataille coloca como possibilidade a restituição da ordem íntima no plano da consciência clara se a consciência deixar de iluminar a intimidade com a luz que pretende fundamentar um saber, e então dê lugar ao “não saber”. A intimidade pode ser restituída se a consciência clara mergulhar na obscuridade da intimidade. Tal possibilidade de restituição da intimidade só se dá pela consciência de si. “A consciência de si escapa assim do dilema da exigência simultânea da imediatez e da operação” (p. 71).

Georges Bataille não define claramente o que entende por consciência de si em Teoria da religião, mas, para o autor, diferentemente da satisfação da consciência no saber absoluto, a consciência é consciência de si quando encontra a sua verdade no não-saber. A consciência de si não soluciona o paradoxo fundamental da teoria da religião, mas desvia dele numa operação impossível. E nesse desvio a ordem das coisas não é destruída, mas reduzida à ordem íntima. O que a consciência submissa à ordem das operações produtivas pode fazer, segundo Bataille, é “[…] proceder à operação contrária, a uma redução da redução ” (p. 72), em suma, é levar a operação ao seu limite, e então a consciência se encontrará “[…] reduzida àquilo que ela é profundamente” (p. 72). É no reencontro com a intimidade em sua noite que ela, a consciência, “[…] completará tão bem a possibilidade do homem ou do ser que reencontrará distintamente a noite do animal íntimo no mundo – onde ela entrará ” (p. 72).

A destruição geral das coisas é condição para a consciência de si, é a operação contrária. Bataille alude à imagem do copo com vinho sobre a mesa para afirmar como essa destruição pode ocorrer. Os objetos que rodeia os homens são frutos do trabalho. Uma cama, uma mesa, uma cadeira. Alguém os fez para um outro comprar e usufruir, e o dinheiro de compra foi fruto de um trabalho. O que está em jogo é um conjunto de atividades que tem seu sentido num tempo por vir, trabalhar para receber dinheiro, fazer mesas para vender, etc. A mesa e a cadeira podem proporcionar dinheiro a um pensador, pois escreverá usando a mesa e a cadeira. E o pensador pagará o açougueiro pela carne, e assim o encadeamento do trabalho se perpetua. Mas, quando se coloca um copo com vinho sobre a mesa, esta já não serve mais para o trabalho, e sim para o consumo do vinho. Segundo Bataille, quando isso acontece, a mesa é destruída, isto é, nela todo o encadeamento do trabalho a que pertencia é destruído. E tudo isso em prol de uma fruição, de um desencadeamento que respondeu à ordem do instante e não mais do tempo por vir: beber um copo de vinho. “[…] todas as tarefas que me permitiram chegar a isso são destruídas de chofre, esvaziam-se infinitamente como um rio no oceano desse instante ínfimo” (p. 73). Pode ser uma destruição em ínfima escala, mas é nessa ínfima escala que, por um instante, a relação entre sujeito e objeto mudou. U m objeto não foi posto como tal, escapou do encadeamento da duração, uma vez que o resultado esperado no futuro pertenceu, por um momento, à fruição do instante. Por um momento o por vir foi aniquilado e somente o instante foi afirmado. Todo o tempo do esforço laboral não foi nada diante desse instante.

Portanto, segundo Bataille, a dissolução dos objetos no instante íntimo é o fundamento da consciência de si, “[…] é a negação da diferença entre o objeto e eu mesmo ou a destruição dos objetos como tais n o campo da consciência” (p. 74). E a destruição dos excedentes da produção pode manter o movimento da economia, segundo uma inversão fundamental, a do consumo improdutivo, na medida em que “[…] a produção excedente fluirá como um rio para fora ” (p. 74, g rifo original). Assim, a permanente destruição dos objetos produzidos dissolverá a diferenciação entre sujeito e objeto, de modo que a destruição do objeto no plano da consciência clara implica na destruição do sujeito. Mas, nessa operação contrária, “[…

] os objetos efetivamente destruídos não destruirão os homens” (p. 74). A realização do homem, consciência que se torna consciência de si, se dá na destruição do objeto, no contrário do que constitui a operação útil.

Teoria da religião parece tratar de uma aposta, e o que Bataille quer afirmar, com essas asserções acerca da destruição dos objetos no plano da consciência clara, é uma vida humana não submissa ao primado da utilidade, em que o homem deixe de ser uma coisa subjugada. É um pensamento “[…

] para quem a vida humana é uma experiência a ser levada o mais longe possível ” (p. 77, grifo original). Somente na consciência de si o homem pode ser soberano, restituindo a totalidade à sua vida. Assim o autor define o que é a soberania: “Soberania designa o movimento de violência livre e interiormente dilacerante que anima a totalidade, dissolve-se em lágrimas, em êxtase e em gargalhadas e revela o impossível no riso, no êxtase e nas lágrimas” (p. 78).

Georges Bataille conclui seu escrito com algumas considerações críticas sobre o método de abordagem feito por ele mesmo, e traz uma lista de referenciais teóricos que o ajudaram a fomentar o seu pensamento acerca do impasse existencial entre ordem íntima e ordem real. Neste referencial teórico destacam-se: Introduction à la lecture de Hegel, de Alexandre Kojéve; Les formes élémentaires de l avie religieuse, de Émile Durkheim; La doctrine du sacrifice dans le brahmanas, de Sylvain Lévi; Essai sur le don, de Marcel Mauss; Di e protestantiche Ethik und der Geist des Kapitalismus, de Max Weber.

Portanto, Teoria da religião é um livro que aborda muitas questões referentes a um objeto de reflexão que não se deixa precisar pela linguagem discursiva. Nessa pretensão, Georges Bataille esforça-se em mostrar um quadro geral coerente, no que se refere ao problema da religião – da situação humana no impasse dos incompatíveis domínios da ordem íntima e da ordem real –, mas que resultou em alguns momentos em imprecisões históricas e imprecisões de referências (p. 84-85). No entanto, o esquema desenvolvido por Bataille em Teoria da religião, “[…] que devia evitar sistematicamente referências precisas” (p. 85), não poderia vir à luz sem uma liberdade de reflexão que o tornou possível.

Torna-se válido retomar que o autor tentou promover uma abertura da reflexão. É um livro que trata de uma experiência de abertura, intenta ser libertador, como diz Bataille acerca de si mesmo e de seu escrito: “Gostaria de ajudar meus semelhantes a se acostumarem à ideia de um movimento aberto da reflexão. Esse movimento nada tem a dissimular, nada a temer” (p. 84).

Anderson Barbosa Camilo-Bacharel em Filosofia (UFRN). Mestre em Estética e Filosofia da Arte (UFOP). Doutorando em Metafísica (UFRN). E-mail: [email protected]

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Teoria da Religião. Seguida de Esquema de uma história das religiões | Georges Bataille

Georges Bataille (1897-1962), autor de textos filosóficos, históricos e de violentas ficções eróticas, como História do Olho (1928), tem seu livro póstumo Teoria da Religião, redigido em 1948, novamente publicado no Brasil. A edição anterior, lançada pela Editora Ática em 1993, contou com tradução de Sergio Gois de Paula e Viviane de Lamare, e revisão de Eliane Robert Moraes. Desde então, a obra se encontrava esgotada. A nova e excelente versão, publicada pela Editora Autêntica em 2015, é seguida da conferência Esquema de uma história das religiões, que esclarece e complementa o texto principal.

A tradução foi realizada por Fernando Scheibe, autor de uma importante tese de doutorado sobre Bataille com o título de Coisa Nenhuma: ensaio sobre literatura e soberania (na obra de Georges Bataille). Scheibe também assina as recentes traduções de O Erotismo, A Literatura e o Mal, A Experiência Interior e da revista Achéphale (1936-1939), fundada por Bataille e onde se encontram alguns de seus textos seminais. Tal esforço tem contribuído para colocar definitivamente a radical obra batailleana no horizonte dos debates no Brasil na filosofia e no campo das ciências humanas. Leia Mais

Hermeneutics, Politics and History of Religions | Christian Wedemeyer e Wendy Doniger

Assim como na área da Sociologia, da Arquitetura, da Economia e da Crítica Literária, pode-se dizer que existe uma “Escola de Chicago”, no estudo da história das religiões. Seus fundadores foram exilados europeus que trabalharam e permaneceram nos Estados Unidos até o final de suas vidas.

O primeiro deles, o alemão Joachim Wach, é pouco conhecido no Brasil, tendo sido publicada aqui apenas sua obra de Sociologia da Religião. São Paulo: Paulinas, 1990. O segundo, o romeno Mircea Eliade, foi um escritor profícuo, com suas obras editadas por várias editoras do país. Ambos possuem histórias bem distintas, peso acadêmico diferente, o que se reflete, inclusive, na organização do livro em apreço, são duas partes dedicadas a Eliade e uma para Wach. A importância do legado deixado por esses pesquisadores é enfatizado pelos dezesseis autores reunidos, mas a principal contribuição é a avaliação crítica feita através de diversos ângulos e perspectivas. Leia Mais

s religiões que o mundo esqueceu. Como egípcios, gregos, celtas, astecas e outros povos cultuavam seus deuses – FUNARI (H-Unesp)

FUNARI, Pedro Paulo Abreu (Org). As religiões que o mundo esqueceu. Como egípcios, gregos, celtas, astecas e outros povos cultuavam seus deuses. São Paulo: Contexto, 2009, 216 p., ISBN 978-857244-4316. Resenha de: MARQUETTI, Flávia Regina. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

Um livro essencial, esta é a definição da obra organizada pelo professor Pedro Paulo Abreu Funari, que conta com diversos colaboradores nesta proposta de apresentar um painel das diversas formas religiosas que a Antiguidade conheceu. Como o próprio organizador enuncia na introdução: ‘a experiência religiosa, junto à capacidade de produzir e transmitir cultura, é a marca mais distintiva da humanidade’ e ter acesso às diversas formas deste conhecimento religioso é um privilégio de poucos, que agora se torna mais democrático.

A proposta dos autores e organizador é bastante clara e didática, apresentar, ao público leigo, algumas informações básicas e essenciais sobre as religiões de diversas culturas da Antiguidade. O livro é composto por treze capítulos alusivos às principais culturas antigas: egípcios, sumérios, gregos, romanos, gnósticos, arianistas, persas, celtas, vikings, albigenses, maias, astecas e índios, cada qual sob responsabilidade de um especialista na área. Os capítulos apresentam um padrão estrutural bastante interessante, que permite ao leitor confrontar as informações e ir construindo relações entre as diversas formas religiosas apresentadas, estabelecendo parâmetros importantes entre elas. Em todos observa-se uma delimitação espaço-temporal da sociedade e da cultura na qual a religião era praticada, seguida de informações sobre as concepções religiosas e míticas, das práticas religiosas, das formas assumidas pelos ritos e oferendas, da composição de seus cleros, locais de culto, etc. finalizando com uma pequena bibliografia sobre o tema. A cada abertura de capítulo encontra-se uma imagem significativa para o mesmo e um breve texto sobre a divindade principal do panteão, sobre sua concepção de mundo ou mesmo sobre os conflitos internos da estrutura religiosa. A abordagem teórica respeita os postulados da antropologia, da arqueologia e da história, sempre contemplando as relações entre práxis, sociedade e a religião.

Além dos capítulos específicos, o livro apresenta ainda informações sobre as iconografias utilizadas na obra e uma breve biografia dos autores de cada capítulo. Ricamente ilustrada, trazendo imagens, símbolos, objetos de culto, manuscritos, a obra fornece ainda subsídios para o reconhecimento da arte de cada um dos povos, instigando o leitor a um aprofundamento neste rico universo das religiões esquecidas pelo mundo. Outra grande qualidade deste livro é a linguagem acessível, clara, que torna o texto agradável e envolvente.

Composta visando um público não iniciado, As religiões que o mundo esqueceu, com certeza, vai atrair o interesse também dos iniciados, uma vez que poucos dentre nós tem esta noção clara e abrangente sobre todas as religiões abordadas. Portanto, uma obra essencial para aqueles que querem se iniciar nos estudos das religiões antigas ou para aqueles que pesquisam e gostam do tema.

Flávia Regina Marquetti – Doutora em Letras pela FCLAR/UNESP. Pesquisadora do LINCEU – UNESP e do Núcleo de Estudos Estratégicos – NEE/UNICAMP. E-mail: [email protected].

Los misterios paganos y el misterio cristiano – LOISY (PR)

LOISY, Alfred. Los misterios paganos y el misterio cristiano. Barcelona: Ediciones Paidós Orientalia,1967. 252p. (Reimpresión em España 1990). Resenha de: PEREA, Catalina Ibernón. Panta Rei – Revista de Ciencia Y Didáctica de la Historia, Murcia, n.1, p.105-106, 1995.

Catalina Ibernón Perea

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