África – Mobilidades, trajetórias e travessia na história do continente africano / Locus – Revista de História / 2012

É com imensa satisfação que efetivamos a proposta do Conselho Editorial da Revista Locus de dedicar o número 35 ao dossiê “Mobilidades, trajetórias e travessias na história do continente africano” entre os séculos XIX e XX. O recorte escolhido para a abordagem do tema leva em consideração o início do século XIX como ponto de partida. Cabe ressaltar que, em quase vinte anos de existência da Revista, é a primeira vez que autores foram convidados a se debruçar sobre uma problemática específica e de relevância para a compreensão da história do continente africano. Isto testemunha o interesse do Conselho Editorial em oferecer um espaço de debate sobre questões atuais analisadas no âmbito das ciências sociais. Se, no Brasil, assistimos aos esforços para implantar disciplinas de História da África no ensino fundamental, médio e universitário, é igualmente flagrante a carência de publicações em revistas sobre o universo africano. É com o intuito de contribuir para a superação parcial desta lacuna que a Revista Locus realizou este dossiê temático.

A questão focalizada em mobilidades, trajetórias e travessias vincula-se ao entrelaçamento de diferentes espaços e tempos que existem no continente africano há milênios e se reconfiguram em função de novas situações sociais locais, regionais e internacionais. Este assunto remete, também, a fenômenos diversos inerentes às mudanças ocorridas do continente que permanecem conectadas a dinâmicas sociais, a conhecimentos e a ideias. Nesse sentido, as mobilidades não fazem apenas referência a movimentos físicos, mas também a significados polissêmicos associados às noções de deslocamentos de relações sociais, mudanças individuais e coletivas e visões do mundo. As mobilidades, trajetórias e travessias que advêm no decorrer de histórias de diferentes atores sociais em diversos loci nos atrelam à historicidade das narrativas dos indivíduos através das quais aprendemos a entender as subjetividades desses movimentos. Assim, a migração, os percursos e as trajetórias, a circulação de ideias, as viagens, a peregrinação, são alguns desses movimentos que preenchem todo seu significado a partir da compreensão das subjetividades dos atores sociais que são levados a se deslocarem em diferentes tempos e espaços.

Embora as mobilidades sejam inerentes aos séculos de história do continente africano (pensando-se, por exemplo, as migrações de populações de línguas do tronco linguístico bantu ou ainda ao comércio transaariano), não foi possível incluir um recorte histórico tão amplo. Os pesquisadores convidados trabalham com períodos entre o século XIX e XX. Como a história da África exige uma perspectiva interdisciplinar para ser corretamente abordada, convidamos para compor esse dossiê autores africanos, europeus e sul-americanos formados na área de história, antropologia, sociologia e geografia e que, por serem de diversas nacionalidades, escrevem em diferentes línguas.

Neste número inauguramos o projeto de disponibilizar traduções de textos clássicos estrangeiros – até agora inaccessíveis em língua portuguesa – a partir da tradução feita por Fernanda Winter do texto de Ottobah Cugoano intitulado: Thoughts and Sentiments on the Evil of Slavery. Neste texto, o jovem africano Ottobah Cugoano, que foi arrancado da região do atual Gana quando era criança, escreve seu depoimento sobre seu trágico destino e compartilha seus sentimentos e pensamentos sobre o sistema de escravidão. As mobilidades, no caso de Ottobah, física e social são aspectos marcantes do texto já que, uma vez na Inglaterra, o jovem passa a dominar os códigos da sociedade londrina do fim do século XIX ajustando-se aos jogos social e político da época.

Outros personagens importantes circulando em diferentes espaços que nos levam a repensar nossas noções de fronteiras são as mulheres itinerantes, comerciantes ou quitandeiras. Emília Soares do Patrocínio, no final do século XIX, é uma africana que foi durante um tempo de sua vida escrava e que começa a ganhar sua vida independentemente. Sua história no Brasil é contada por Juliana Farias, historiadora. O segundo texto, escrito pelo historiador Adam Mahamat, apresenta as mulheres Ngueli que, envolvidas em atividades comerciais, circulam entre o norte dos Camarões e do Chade, procurando se inserir no mercado e espaços fronteiriços até então essencialmente masculinos. Neste vai e vem, ou no fluxo e refluxo tão caro a Pierre Verger, o Atlântico se torna um espaço dinâmico de circulação das ideias, de mobilidades de pessoas. A trajetória de um membro da família De Medeiros contada por Milton Guran, antropólogo e fotógrafo, nos conduz à costa do atual Benim e nos apresenta a saga dos agudás: sua mobilidade social, política e geográfica nos permitem entender como esse grupo social constrói uma nova identidade superando o estigma da escravidão e redefine fronteiras sociais a partir de suas trajetórias individuais. A questão identitária é também primordial no trabalho da historiadora Anabela Cunha, que acompanha a trajetória dos degredados, principalmente portugueses, levados a Angola entre 1850 e 1932 para cumprirem suas penas e servir de mão de obra. A autora destaca três períodos de degredo em Angola e suas transformações.

Nessas andanças, se debruçando sobre as mobilidades de atores sociais, a historiadora Camille Lefebvre acompanha – através de diversos relatos obtidos por estudiosos sobre assunto, já no século XIX – as travessias e trajetórias de escravos no Sudão Central. A autora analisa as mudanças do status de escravo considerando sua capacidade de mobilidades, e estuda como o risco de ser capturado aparece como elemento determinante no uso de espaços geográficos e como uma limitação ao livre deslocamento das pessoas. Não são apenas as pessoas que se movem por motivos religiosos, econômicos e pessoais, ou devido a processos migratórios forçados; outros elementos entram em consideração na questão da mobilidade. Assim sendo, a cobrança de impostos em um contexto de violência colonial é interpretada por Cisse Chikouna, historiador, como motivo que leva à circulação acentuada de pessoas na região norte da Costa do Marfim entre 1901 e 1902, determinadas a sobreviver às pressões exercitadas pelo regime colonial.

Outro elemento trabalhado é o das condições climáticas, avaliado pelos historiadores Houli Fourissala Robert e Gormo Jean. Os dois autores consideram que a desertificação no Chade provoca o deslocamento de diferentes populações. Os autores sublinham o peso de determinantes geográficos nas escolhas individuais que obrigam as pessoas a migrarem. Por sua vez, Raquel A. Gomes analisa a questão política de posse de terra e a lei Natives Land Act de 1913 no espaço sul-africano. Se a posse ou não de terra influencia diretamente as condições de vida, os espaços sociais e induz as pessoas a migrarem, o interesse da autora é analisar a mobilidade intelectual da chamada “elite letrada” e mais especificamente a obra de Sol Platje. As condições de vida de migrantes etíopes são também avaliadas pelos antropólogos Gunilla Bjeren e Atakilte Beyenee. Nos espaços urbanos da cidade de Shashemene em Etíopia, os autores analisam a questão de genêro no acesso a diferentes possibilidades de susbsistência e as trajetórias das pessoas em mobilidade.

Os dois últimos artigos trazem significados mais abrangentes à noção de mobilidade. A partir de uma perspectiva interdisciplinar, a geógrafa Karine Bennafla averigua o papel do estado contemporâneo africano na circulação transnacional de bens focando no período pós- -colonial através de exemplos das regiões ocidental, central e noroeste da África. Olhando para o cotidiano dos africanos que circulam constantemente e condicionam suas travessias à sua principal atividade de comércio, a pesquisadora observa que o diálogo entre atores estatais e não-estatais e as mobilidades de espaços-tempos e redes acabam ilustrando novas formas especificamente africanas de se viver a globalização. Por fim, o artigo de Simone Ribeiro da Conceição, Mestre em literaturas africanas, fecha o dossiê com uma proposta interdisciplinar seguindo as trajetórias de dois homens africanos que, cada um na sua área, destacaram-se pela contribuição que aportaram aos conhecimentos sobre o continente africano. São eles o renomado historiador burquinês Joseph Ki-Zerbo e o escritor angolano Uanhenga Xitu, ambos destacados atores políticos e sociais de uma experiência africana de reconstrução constante de suas identidades. Deste modo, através do fio condutor da memória, entendemos as mobilidades como noção que nos faz acessar ao mundo de circulação das ideias.

Além desse alentado dossiê, a Revista Locus traz neste número dois artigos de fluxo contínuo. O autor Vinicius Cardoso, no seu artigo “Favorecida do Senhor e acrescentada por Sua Alteza: jesuítas, rei e mercês na fundação e patronímica do Rio de Janeiro” analisa, com base em cartas, o patronímico da cidade de São Sebastião do Rio do ponto de vista jesuítica. No segundo artigo, os autores Nara Azevedo e Luiz Otávio Ferreira refletem sobre o “Sucesso e Fracasso das Faculdades de Filosofia: ciência, cientistas e universidade no Brasil, 1930-1960” e sobre a influência das faculdades de filosofia na institucionalização das ciências no Brasil. Em seguida, Diogo da Silva Roiz propõe uma resenha do livro de José Carlos Reis: “O desafio historiográfico”. Por fim, Vítor Fonseca Figueiredo apresenta o livro de Amilcar Martins Filho “O segredo de Minas: a origem do estilo mineiro de fazer política (1889-1930)”.

Marina Berthet – Organizadora do dossiê.


BERTHET, Marina. Prefácio. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.18, n.2, 2012. Acessar publicação original [DR]

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