Narrativas sobre África(s) a partir do Brasil | Aedos |2022

Boi Caprichoso Foto Bianca PaivaAgencia Brasil
Boi Caprichoso | Foto: Bianca Paiva/Agência Brasil

Em toda a sua história, este é o primeiro dossiê da revista Aedos dedicado exclusivamente aos estudos relacionados ao continente africano e/ou às populações, culturas e tradições deste espaço geopolítico. Desde o final do século XX, muitas narrativas acadêmicas sobre a(s) África(s) têm sido produzidas a partir do Brasil, tendo um papel relevante na divulgação desses conhecimentos as revistas: ABPN, África e Africanidades, AbeÁfrica (UFRJ), Afro-Ásia (UFBA), África (USP), África(s) (UNEB), Dados de África(s) (UNILAB/UNEB), Cadernos de África Contemporânea (UNILAB), Kwanissa (UFMA) e a Revista Brasileira de Estudos Africanos (UFRGS). Contudo, tais divulgações ainda ocorrem em periódicos específicos e especializados nos estudos africanos, quando o almejado é que tais comunicações circulem também em revistas não especializadas, garantindo assim maior difusão e visibilidade dos vários espaços, tempos e povos no curso da história, associando os conhecimentos sem fundi-los, distinguindo-os sem separá-los (MANFREDO, 2012, p. 1-3).

Nesse sentido, o presente dossiê objetiva construir novos espaços de divulgação de saberes em relação às Áfricas, reunindo produções acadêmicas geradas no Brasil que lançam seus olhares para as múltiplas formas existenciais da África e dos(as) africanos(as), contribuindo para a descentralização acadêmica dos debates sobre essas temáticas. Leia Mais

História da África no Brasil: ensino e historiografia | Temporalidades | 2012

Neste ano de 2013 completam-se 10 anos do estabelecimento da Lei 10.639 | 2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da História da África e dos africanos no currículo escolar do ensino fundamental e médio, em todo território nacional. Portanto, este dossiê faz parte de uma nova guinada nos estudos africanos no Brasil, que passaram a ter mais contundência nos debates acadêmicos após 2003.

Como se explica que o interesse pela História da África no Brasil só foi despertado nas últimas décadas? Quais foram as razões que levaram à instituição da Lei que obriga o ensino dos conteúdos relativos à História da África? O fato de essa legislação ter sido criada para obrigar o ensino de determinado conteúdo revelou os silêncios e afastamentos em torno desse tema nos diversos níveis de ensino e respondeu às demandas dos movimentos sociais, principalmente do Movimentos Negros, que reivindicavam havia décadas a inclusão dos estudos africanos na grade curricular.

Após a extinção oficial do tráfico atlântico (1850), o Brasil suspendeu as relações políticas formais e as conexões comerciais com as antigas áreas africanas fornecedoras de escravos. As independências das colônias inglesas e francesas nos anos 1950 e 1960 levaram o Brasil a retomar os interesses políticos com o continente. O reflexo disso foi a abertura de representações consulares, as quais utilizavam jornalistas, intelectuais, escritores e personalidades famosas para atuarem nos Estados pós-coloniais, conforme registrou Raimundo Souza Dantas no seu livro África Difícil, baseado em sua “complicada” experiência como embaixador em Gana.

Durantes os anos 1960-75, a relação cultural e política contemporânea do Brasil com os países de colonização portuguesa (Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique), foi restabelecida através de ações não-governamentais em prol das lutas anticoloniais (lideranças de esquerdas africanas) e também pró-coloniais (do lado do governo brasileiro), como relata Jerry Dávila em Hotel Trópico.

Entende-se também que foi com a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 1996, que o Brasil deu início a uma nova fase de reaproximação com os países africanos de língua oficial portuguesa, baseada em relações culturais e cooperação técnica voltada para a preservação de uma herança cultural compartilhada.

Como bem observou a historiadora Beatriz Mamigoniam, os estudos sobre os africanos no Brasil podem ser resumidos em quatro fases. A primeira foi inaugurada pelo médico Nina Rodrigues (escreveu sua obra em 1906, mas somente publicada em 1932), o qual tinha o objetivo de identificar, através de pesquisa etnográfica junto aos remanescentes de africanos em Salvador, as marcas culturais deixadas pela presença africana no Brasil. Para tanto, indicou as regiões de embarque dos africanos escravizados, a distribuição deles no Brasil, inventariou língua, grupos étnicos e suas formas de organizações religiosas, apesar de influenciado pelas “teorias raciais”, pelas ideias de inferioridade dos negros e pela visão negativa da miscigenação.

A segunda fase foi marcada pela perspectiva do relativismo cultural de Gilberto Freyre, difundida nos anos 30, a qual reconhecia o caráter positivo da miscigenação e a valorização da herança africana, como pontos basilares da formação da identidade nacional brasileira. Essa perspectiva contribuiu para a visão de uma escravidão benevolente no Brasil. Por outro lado, também influenciou no surgimento do estudos “afro-brasileiros”, (anos 40 e 50) cujos principais expoentes foram Arthur Ramos, Manuel Querino e Edison Carneiro, dedicados aos temas das práticas religiosas afro-brasileira e suas origens africanas.

Nos anos 1960 e 70, a terceira fase foi marcada por estudiosos como Emília Viotti da Costa, entre outros, que combateram a ideia de “democracia racial” presente na obra de Freyre, e se preocuparam com as relações raciais e as experiências das populações africanas e seus descendentes no Brasil.

A quarta fase foi fortemente inspirada pelos estudos da história social da escravidão. Os historiadores brasileiros dos anos 1980-90 passaram a analisar novos tipos de fontes e outras formas de sociabilidade na escravidão. Os “escravos” deixaram de ser uma massa uniforme a partir dos estudos sobre identidades, tais como gênero, idade, ocupação, origem (africanos ou crioulos). Os trabalhos mais expressivos deste período foram os de Silvia Hunold Lara, Laura de Mello e Souza, Sidney Chalhoub e Manolo Florentino, entre outros.

Para esses autores, no entanto, a História da África não constituía um objeto próprio de estudo ainda.

A produção acadêmica no Brasil sobre a história da África remonta à década de 1960 com a publicação de José Honório Rodrigues Brasil e África: outro horizonte (1963) e a criação de três importantes centros de estudos africanos ligados às universidades: em Salvador, o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), criado em 1959; no Rio de Janeiro, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), em 1973; e em São Paulo, o Centro de Estudos Africanos (CEA), em 1979. Os pesquisadores eram de várias áreas: linguistas, antropólogos, sociólogos e historiadores, entre outros.

Nos Anos 1980, a tese de João José Reis (1982) representou um novo olhar para a História da África, porque foi um dos primeiros trabalhos que considerou a dimensão Atlântica da escravidão ao analisar as sobrevivências e recriações culturais dos africanos do Golfo do Benin no Brasil. Nos Anos 1990, mais espeficamente na área de História, os estudos sobre África avançaram quantitativamente. As teses de Leila Leite Hernandez, Selma Pantoja e Valdemir Zamparoni, respectivamente defendidas em 1993, 1994 e 1998, foram as primeiras produzidas no Brasil, cujo tema era exclusivamente a história da África.

O livro A enxada e a Lança (1992) do embaixador brasileiro Alberto da Costa e Silva foi outro marco desse novo momento. Na mesma década, outros pesquisadores que pensavam a escravidão no Brasil passaram a reorientar suas análises para a dimensão Atlântica dos estudos africanos, de certo modo, voltadas para as tradições africanas no Brasil como as teses de Mariza Carvalho Soares (1997) e Marina de Mello e Souza (1999), e as publicações de Robert Slenes (1992).

Nos Anos 2000, predominou a tendência do final da década anterior, em que a obra O Trato dos Viventes (2000) de Luís Felipe de Alencastro é a grande referência. Nessa mesma perspectiva atlântica Brasil-África, menciono também as investigações de Juvenal Carvalho Conceição (2002), Lucilene Reginaldo (2005), Gabriela Segarra Martins Paes (2007) e Vanicléia S. Santos (2008), dentre outras. Ademais, outras pesquisas significantes retomaram as análises de sociedades africanas sem conexões com o Brasil, como as teses e dissertações de Patrícia Teixeira Santos (2000), Marcelo Bittencourt (2002), Anderson Ribeiro Oliva (2002), Alexsander Gebara (2006), Jacimara Souza Santana (2006), Gabriela Aparecida dos Santos (2007), Juliana Ribeiro da Silva (2008) e Rosana Andréa Gonçalves (2008), dentre outras.

No momento atual, pode-se pontuar um incremento de mais de cinquenta teses produzidas entre 2003 e 2013. Pode-se atribuir três fatores a esse aumento significativo de pesquisas: 1) o impacto dos historiadores que formaram uma nova geração de pesquisadores na graduação e nas pós-graduações em História na última década, principalmente em três Estados: São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia; 2) essa recente produção acadêmica na pós-graduação brasileira é um dos resultados imediatos da Lei 10.639; 3) os concursos específicos para a área de História da África, que passaram a existir após 2003, geraram um novo perfil de professores no Ensino Superior e nas pós-graduações.

O dossiê História da África no Brasil: ensino e historiografia pretende contribuir para o fortalecimento dos estudos africanos no Brasil e do tema do ensino de história da África nas escolas. Criada em 2008, a Revista Temporalidades se tornou um importante veículo de divulgação das investigações de jovens pesquisadores, produzidas a partir das reflexões desenvolvidas pelos programas de iniciações científicas e nos diversos programas de pós-graduação do Brasil e exterior. Desse modo, essa revista permite que as reflexões de seus autores sejam incorporadas aos debates em curso na comunidade acadêmica.

Acompanhei o rigor dos editores deste dossiê para que as normas fossem cumpridas em toda as etapas. Portanto, é por mérito que a Temporalidades tem avançado vertiginosamente no conceito dos órgãos avaliadores.

Agradeço ao Conselho Editorial da Revista Temporalidades pelo convite para organizar o dossiê História da África no Brasil: ensino e historiografia, especialmente a Taciana Garrido, sempre tão engajada com o tema. Assim como agradeço aos colaboradores. Espero que o leitor aprecie a entrevista da professora Leila Leite Hernandez que abre esse dossiê, o conjunto de artigos que abrange várias temporalidades das histórias da África e a resenha que aborda tema atual às relações Brasil-África.

Vanicléia Silva Santos

SANTOS, Vanicléia Silva. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.4, n.2, ago./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]

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Teoria – Metodologia da História – Historiografia | Temporalidades | 2013

REIS José Carlos (Org d), Teoria – Metodologia da História – Historiografia | Temporalidades | 2013, Teoria da História (d), Metodologia da História (d), Historiografia (d), Temporalidades (Tpd)

Os membros do Conselho Editorial da revista do corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, Temporalidades, queriam produzir um número com um dossiê sobre a área de Teoria e Metodologia da História e Historiografia, e procuraram-me para sugerir-lhes alguns temas. Eu sugeri a eles três temas:

1º) O que é teoria-metodologia da História? O lugar da teoria-metodologia no conhecimento histórico

Podem ser incluidos artigos sobre: as contribuições de Koselleck, Ricoeur, Hartog, Rüsen, Annales, Roger Chartier, François Dosse, Hayden White, Thompson, Foucault, Ranke, Dilthey, Nietzsche, Marx, enfim, dos clássicos do pensamento histórico.

2º) Teoria-metodologia e historiografia brasileira: tendências e referências

Quais teóricos-metodólogos têm sido mais citados, como são apropriados pelos historiadores brasileiros e por quê? Quem produz e publica pesquisas sobre teoriametodologia no Brasil? Quais as linhas de pesquisa da pós-graduação, os grupos de pesquisa, os autores isolados?

3º) História e Verdade: novas abordagens

Este é um tema clássico, mas que precisa ser sempre recomeçado, refeito. As relações entre as palavras e as coisas, entre a linguagem historiográfica e o passado, entre texto e realidade, como estão sendo abordadas, hoje? É o famoso Castigo de Sísifo, que não deixa de ser sempre agradável, instigante. Eles hesitaram muito, mas acabaram escolhendo o primeiro tema. Pediram-me também a indicação de um historiador reconhecido nesse domínio, para uma entrevista. Eu procurei na memória os nomes da “geração madura” de historiadores | as brasileiros | as: Jurandir Malerba, Temístocles César, Marieta de Moraes Ferreira, Ângela de Castro Gomes, Márcia D’Aléssio, Margareth Rago, Durval Muniz, José d’Assunção Barros, outros, e indiquei um deles. Eu pensei em historiadores brasileiros porque acho que precisamos ouvir a nossa própria voz, conversar entre nós mesmos, apesar da forte pressão pela internacionalização da universidade, que nos obrigará em breve a dar aulas em inglês!

Acredito que, dentro em pouco, o “entre nós” já será objeto de pesquisa histórica. Mas, como sempre, a “temporalidade” soprou a história desse número em um rumo diferente. Não apareceram artigos para o primeiro tema, mas apareceram bons artigos para o segundo. Tivemos de abandonar a primeira opção para adotarmos a segunda, mas não foi tanta mudança assim, porque estava também previsto e, talvez, devesse ter sido a primeira opção. Quanto à entrevista, não teremos um | a historiador | a brasileiro | a, porque os nossos “ambiciosos” alunos preferiram entrevistar o maior especialista no domínio da história da história, o professor François Hartog, da École des Hautes Études em Sciences Sociales, que generosamente os acolheu. O professor Hartog já recebeu dezenas de historiadores brasileiros na EHESS, em seus seminários, como orientador de doutorado e supervisor de pós-doutorado, em agradáveis conversas em seu gabinete, e a sua escolha para a entrevista foi perfeita.

Eis o percurso sinuoso, imprevisto, desse número da Temporalidades. Apesar das incertezas e linhas tortas, os “alunos escreveram certo”, fizeram um ótimo trabalho, produziram um belo número, que, agora, os leitores brasileiros e do planeta poderão desfrutar. Cordialmente,

José Carlos Reis – Professor do PPGHIS | UFMG.


REIS, José Carlos. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.5, n.2, maio | ago. 2013. Acessar publicação original [DR]

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História e Historiografia da África no Brasil / Boletim do Tempo Presente / 2013

Apresentação

Com enorme satisfação, organizamos e, agora, apresentamos o Dossiê “História e Historiografia da África no Brasil” da Revista Eletrônica do Tempo Presente, publicação do Laboratório de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os artigos e as resenhas aqui contidos são uma pequena amostra da significativa produção historiográfica sobre África produzida no Brasil, realizada por doutores, doutorandos, mestres e mestrandos: fato esse que cada vez mais afirma os estudos africanos em nosso país.

Resolvemos abrir o conjunto temático da revista com o artigo do pesquisador Amailton Azevedo, pois descortina a partir de uma situação familiar – um diálogo entre ele e sua filha – uma reflexão sobre os estereótipos e preconceitos que pesam contra as sociedades e culturas africanas, demonstrando como eles são paradoxalmente e, ao mesmo tempo, muito antigos e também contemporâneos. Denuncia, o articulista, como os paradigmas aviltantes sobre o homem africano penalizaram a sua história no sentido de conquistar um lugar legítimo no mundo acadêmico. Porém, esses não estão presentes apenas no mundo “científico”, internalizaram-se quotidianamente nos corações e mentes dos brasileiros, dos africanos e dos afrodescendentes. Retoma-se, no escrito de Azevedo, o que existe de original, diferente e libertador nas culturas africanas. Entretanto, a África não é uma terra idílica, onde tudo se apresenta bom e perfeito, mas uma terra humana com valores e desvalores específicos como todos os outros continentes.

O artigo Imagens da África: entre a violência discursiva e a produção da memória de Amailton Azevedo fornece, portanto, uma base reflexiva para que aprofundemos como o Brasil construiu um saber, do ponto de vista das Ciências Naturais, sobre a África desde os fins do século XVIII, acoplado aos interesses das Humanidades e da Economia. Vemos no texto do Professor Sílvio Marcus de Souza Correa como, na ilustração brasileira, já estavam presentes alguns dos estereótipos e preconceitos analisados por Azevedo. Na narração de Primeiras contribuições do pensamento ilustrado brasileiro a uma história da África, Correa ressalta a visão dos nossos naturalistas viajantes se inserir no senso comum de então – só de então? – de que a religião dos negros era fanática e supersticiosa, seus hábitos indisciplinados, preguiçosos ou vadios, pouco zelosos em suas habitações, sendo até praticantes de antropofagia! Como vemos a longa duração braudeliana – mais que quinto secular – das intolerâncias em relação ao continente africano são ratificados por esses dois brilhantes articulistas, abrindo nossas sensibilidades para as leituras que nos propicia esse Dossiê.

Bruno Rafael Véras de Morais e Silva, no artigo A Medicina Empírico-Metafísica dos Tsonga do Sul de Moçambique: Arte Médica, Magia, Doença e Cura através da obra do missionário suíço Henri A. Junod, traz-nos a visão desse suíço, missionário e médico, da virada do século XIX para o XX, que fora para o meio dos Tsonga em Moçambique, objetivando produzir novos sujeitos negro-africanos mais afáveis e submissos aos homens brancos. Nessa tarefa, conjugou o aprendizado da língua desses povos com a passagem dos textos sagrados cristãos para esse idioma africano; relatou e classificou os seus costumes e “criou”, para o saber colonial, a etnia Tsonga, ao arquitetar-lhe um etnônimo e traços diacríticos. Silva mostra como os brancos estavam gerando novos sujeitos africanos na religião, na cultura e na etnologia, conjugando, na ação do missionário-etnólogo Junod, sentidos científicos e práticos, um exemplo do conhecer para estabelecer poderes, ou seja, do saber-poder. Em suas diferenciações entre Magia e Religião, Junod, na construção de seu saber sobre os Tsonga, estabeleceu as hierarquizações inferiorizantes para o que é culturalmente africano.

Dando sequência a essa relação entre biografia e história, Antonio Evaldo Almeida Barros traz-nos agora John Dube e os Desafios da Segregação na África do Sul. O personagem Dube, um zulu proeminente, educado em escola em que se proibia falar sua língua zulu, escreveu, talvez em resposta a essa interdição, o primeiro romance nesse idioma. Esse homem, que em si hibridiza diferentes tradições – a zulu e a ocidental-cristã -, foi marcado profundamente por essas influências em suas ações, tornando-se assim um ardoroso promotor da ascensão social do negro sul-africano. Após a crise do sistema político segregacionista, tornou-se uma figura reabilitada em plenitude por suas ligações com o Congresso Nacional Africano. O texto de Barros, portanto, é uma manifestação de que as trajetórias humanas não são feitas sempre por coerências e as contradições são mais constantes do que queremos. Dube, crítico às relações de submissão da mulher ao androcentrismo nas sociedades sul-africanas, postulou a equiparação hierárquica dos gêneros posição à frente de sua época. Pediu representatividade no governo para os negros sulafricanos, revelando a luta desses por uma política que lhes reconhecesse direitos. Ao acusar os brancos racistas por sua política de aviltamento econômico, cultural e social dos negros, não eximiu os últimos de serem também responsáveis por algumas de suas mazelas. Ou seja, conhecemos um personagem complexo como as relações sociorraciais da África do Sul do seu tempo.

As narrativas missionárias na Zâmbia são trazidas ao nosso exame por Jefferson Olivatto da Silva, ressaltando a importância documental desse tipo de relato, alertando-nos para sempre analisar os fatos aí expostos, levando em conta os filtros ideológicos, em especial religiosos, que perpassam os documentos. Entretanto, a riqueza de descrições sobre o quotidiano que esses escritos – muitas de caráter prosaico como caçadas, doenças, brigas entre outros – é de suma relevância. Seu artigo A Dupla Sondagem para interpretar as Narrativas Missionárias Católicas na Zâmbia também traça-nos uma tipologia dos textos missionários, marcando as características e a relevância desse tipo de fonte.

O belíssimo texto de Robson Dutra, O Brasil na África, a África no Brasil, reata ambas as margens do Atlântico sul, assim como relembra-nos de sua continuidade com o Índico, assinalando a influência da literatura brasileira nas literaturas de Angola, Cabo Verde e Moçambique, não só em seus movimentos e órgãos de divulgação fundantes, assim como em suas mais recentes gerações de escritores. Afinal, o Brasil surge como modelo alternativo às normas estéticas e linguísticas que emanam da metrópole e ajuda a germinar novidades rebeldes nas caçulas literaturas coirmãs.

Ao se voltar para o trabalho intelectual de um dos escritores africanos, o artigo Pepetela: Fragmentos de uma trajetória retoma essa inspiração do Brasil na formação literária do renomado escritor angolano e, entrelaçando história e biografia, analisa fragmentos de um depoimento de Pepetela em 2008. Esses extratos relatam momentos da infância e juventude do ainda anônimo Artur Pestana, as influências culturais sofridas em tenra idade, o meio social e cultural benguelense, seus estudos na metrópole, sua adesão política ao MPLA, seus amores e desafetos com esse movimento político. Revelando esses entrecruzamentos do pessoal com o social, afirma-nos, o articulista, sem o dizer, que a vida e a obra se amalgam, fazendo surgir uma diversidade polifônica. Afinal, um suposto sujeito unificado não é senão entrelaçamentos de vidas de si e de outros, vivenciadas na prosa e no prosaico? Portanto, um não à morte do autor.

Entre o livro, a enxada e a Kalashnikov de Luiz Guimarães Sousa revela os nexos construídos entre cultura, política econômica e “revolução”, nos quais a primeira subordina-se aos interesses das segundas. Essas simbioses envolvem tanto a bandeira do Estado quanto o projeto de construção política de Moçambique, que muitas vezes misturaram e confundiram a identidade nacional em projeto e a identidade nacional em processo. Esse “homem novo” moçambicano projetado não parece ter sido entendido ou querido por todos os nacionais em formação.

Transportando-nos para a margem de cá do Atlântico, Mauro Marques faz-nos reler as notícias da imprensa sul rio-grandense sobre a morte do Presidente Agostinho Neto, tornado herói máximo no panteão erigido pelo Estado Angolano, apontando alguns limites de informação e de interpretação da mídia imprensa sul rio-grandense, no seu tentar recuperar o que realmente aconteceu.

No artigo Na “Rainbow Nation”: Mudanças Legislativas e Reforma da Terra, Viviane Barbosa presenteia-nos com uma análise detalhada de como as leis sobre a terra foram importantes para construção do Apartheid e como a manutenção das propriedades por elas constituídas mantêm a desigualdade no pós-Apartheid. Logo, alerta-nos que a retirada da apartação jurídica não foi total na África do Sul, pois as regras constituintes da propriedade agrária deixaram os seus frutos vingentes apesar das leis compensatórias para os negros sul-africanos, após a derrocada do regime racista. A reforma agrária antidiscriminatória tem sido lenta na terra de Mandela, apontando que o regime de apartação de certo modo ainda persiste sob a face da nova democracia.

A visão holística e articuladora de Larissa Gabarra sobre a situação da África no contexto histórico após a década de 1970, permeado pelo entardecer da Guerra Fria e o emergir da panaceia neoliberal, permite-nos ter uma visão panorâmica nesse dossiê pejado por pesquisas verticalizadas. A autora não só reflete sobre as direções políticas tomadas pelos governos africanos e pelas grandes potencias, indicando os seus reais interesses e equívocos, como fornece-nos os limites e os descasos na construção dos Estados Nacionais Africanos. Abre-nos também um descortinar sobre as relações Brasil e África, suas possibilidades e entraves. Somos, aqui nesse dossiê, contemplados por uma concepção de conjunto em uma produção científica que cada vez mais se especializa. Todavia, essa abordagem, ao buscar uma totalidade, relembra as articulações existentes aos especializados e sintetiza pedagogicamente os conhecimentos para os novatos no campo. Logo, artigos como esses são muito úteis.

Esse dossiê se finda com duas resenhas magistrais. A primeira foi escrita por Murilo Sebe Bon Meihy sobre o livro recentemente lançado pela pesquisadora Patrícia Teixeira Santos, intitulado Fé, Guerra e Escravidão: uma históriada conquista colonial do Sudão. Sobre a importância deste livro dentro da historiografia brasileira sobre a África, deixamos que as sensíveis e inteligentes palavras de Meihy o façam, pois seria muita pretensão desse apresentador pretender aqui fazer melhor. Contudo, ressaltamos, na resenha, a beleza da narrativa, que não devia ser estranha à História, fato, sempre por nós, historiadores, desejado, mas nem sempre alcançado. O poder instigador do texto que, mais do que resumir, nos faz desejar ler a obra original: eis supremo e ambicionado escopo de toda resenha!

A segunda resenha de Mariana Schlickman percorre cada capítulo do livro coletivo África e Brasil no mundo moderno, organizado por Vanicléia Santos e Eduardo Paiva, incitando-nos a curiosidade sobre esse notável balanço sobre as relações demográficas, econômicas e culturais entre as populações africanas e o Brasil, no período em que esses nexos são regrados pela escravidão. Os autores deste livro fazem parte da melhor plêiade de especialistas existente em nossa historiografia sobre esse extenso período da história africana e também brasileira.

Em suma, este dossiê é, antes de tudo, indiciador de tendências que se estabelecem na atual historiografia brasileira sobre a África. Primeiro, o surgimento de inúmeras pesquisas fora do âmbito da África de colonização portuguesa. Segundo, a pluralidade e diversidade das fontes, de objetos e abordagens utilizadas por essa historiografia. Terceiro, testemunha uma nova etapa já descortinada para a História da África no Brasil, sinalizada pela maturidade, profundidade e riqueza das pesquisas. Estamos aqui, nesta coletânea, dando mais um passo no rompimento do eurocentrismo de nossos currículos e um espaço para novos continentes em nosso saber além da Europa e das Américas. Dessa forma, estamos quebrando multisseculares preconceitos de uma episteme. Por fim, resta desejarmos aos leitores uma deliciosa viagem por essas Áfricas.

Notas

Agradeço a leitura e críticas da Prof. Dr. Fátima Machado Chaves a este texto e aproveito o momento para indicar meu e-mail para que possamos estabelecer diálogo com os leitores: [email protected]

Silvio de Almeida Carvalho Filho – LEÁFRICA/PPHGC/IH/ UFRJ)

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África – Mobilidades, trajetórias e travessia na história do continente africano / Locus – Revista de História / 2012

É com imensa satisfação que efetivamos a proposta do Conselho Editorial da Revista Locus de dedicar o número 35 ao dossiê “Mobilidades, trajetórias e travessias na história do continente africano” entre os séculos XIX e XX. O recorte escolhido para a abordagem do tema leva em consideração o início do século XIX como ponto de partida. Cabe ressaltar que, em quase vinte anos de existência da Revista, é a primeira vez que autores foram convidados a se debruçar sobre uma problemática específica e de relevância para a compreensão da história do continente africano. Isto testemunha o interesse do Conselho Editorial em oferecer um espaço de debate sobre questões atuais analisadas no âmbito das ciências sociais. Se, no Brasil, assistimos aos esforços para implantar disciplinas de História da África no ensino fundamental, médio e universitário, é igualmente flagrante a carência de publicações em revistas sobre o universo africano. É com o intuito de contribuir para a superação parcial desta lacuna que a Revista Locus realizou este dossiê temático.

A questão focalizada em mobilidades, trajetórias e travessias vincula-se ao entrelaçamento de diferentes espaços e tempos que existem no continente africano há milênios e se reconfiguram em função de novas situações sociais locais, regionais e internacionais. Este assunto remete, também, a fenômenos diversos inerentes às mudanças ocorridas do continente que permanecem conectadas a dinâmicas sociais, a conhecimentos e a ideias. Nesse sentido, as mobilidades não fazem apenas referência a movimentos físicos, mas também a significados polissêmicos associados às noções de deslocamentos de relações sociais, mudanças individuais e coletivas e visões do mundo. As mobilidades, trajetórias e travessias que advêm no decorrer de histórias de diferentes atores sociais em diversos loci nos atrelam à historicidade das narrativas dos indivíduos através das quais aprendemos a entender as subjetividades desses movimentos. Assim, a migração, os percursos e as trajetórias, a circulação de ideias, as viagens, a peregrinação, são alguns desses movimentos que preenchem todo seu significado a partir da compreensão das subjetividades dos atores sociais que são levados a se deslocarem em diferentes tempos e espaços.

Embora as mobilidades sejam inerentes aos séculos de história do continente africano (pensando-se, por exemplo, as migrações de populações de línguas do tronco linguístico bantu ou ainda ao comércio transaariano), não foi possível incluir um recorte histórico tão amplo. Os pesquisadores convidados trabalham com períodos entre o século XIX e XX. Como a história da África exige uma perspectiva interdisciplinar para ser corretamente abordada, convidamos para compor esse dossiê autores africanos, europeus e sul-americanos formados na área de história, antropologia, sociologia e geografia e que, por serem de diversas nacionalidades, escrevem em diferentes línguas.

Neste número inauguramos o projeto de disponibilizar traduções de textos clássicos estrangeiros – até agora inaccessíveis em língua portuguesa – a partir da tradução feita por Fernanda Winter do texto de Ottobah Cugoano intitulado: Thoughts and Sentiments on the Evil of Slavery. Neste texto, o jovem africano Ottobah Cugoano, que foi arrancado da região do atual Gana quando era criança, escreve seu depoimento sobre seu trágico destino e compartilha seus sentimentos e pensamentos sobre o sistema de escravidão. As mobilidades, no caso de Ottobah, física e social são aspectos marcantes do texto já que, uma vez na Inglaterra, o jovem passa a dominar os códigos da sociedade londrina do fim do século XIX ajustando-se aos jogos social e político da época.

Outros personagens importantes circulando em diferentes espaços que nos levam a repensar nossas noções de fronteiras são as mulheres itinerantes, comerciantes ou quitandeiras. Emília Soares do Patrocínio, no final do século XIX, é uma africana que foi durante um tempo de sua vida escrava e que começa a ganhar sua vida independentemente. Sua história no Brasil é contada por Juliana Farias, historiadora. O segundo texto, escrito pelo historiador Adam Mahamat, apresenta as mulheres Ngueli que, envolvidas em atividades comerciais, circulam entre o norte dos Camarões e do Chade, procurando se inserir no mercado e espaços fronteiriços até então essencialmente masculinos. Neste vai e vem, ou no fluxo e refluxo tão caro a Pierre Verger, o Atlântico se torna um espaço dinâmico de circulação das ideias, de mobilidades de pessoas. A trajetória de um membro da família De Medeiros contada por Milton Guran, antropólogo e fotógrafo, nos conduz à costa do atual Benim e nos apresenta a saga dos agudás: sua mobilidade social, política e geográfica nos permitem entender como esse grupo social constrói uma nova identidade superando o estigma da escravidão e redefine fronteiras sociais a partir de suas trajetórias individuais. A questão identitária é também primordial no trabalho da historiadora Anabela Cunha, que acompanha a trajetória dos degredados, principalmente portugueses, levados a Angola entre 1850 e 1932 para cumprirem suas penas e servir de mão de obra. A autora destaca três períodos de degredo em Angola e suas transformações.

Nessas andanças, se debruçando sobre as mobilidades de atores sociais, a historiadora Camille Lefebvre acompanha – através de diversos relatos obtidos por estudiosos sobre assunto, já no século XIX – as travessias e trajetórias de escravos no Sudão Central. A autora analisa as mudanças do status de escravo considerando sua capacidade de mobilidades, e estuda como o risco de ser capturado aparece como elemento determinante no uso de espaços geográficos e como uma limitação ao livre deslocamento das pessoas. Não são apenas as pessoas que se movem por motivos religiosos, econômicos e pessoais, ou devido a processos migratórios forçados; outros elementos entram em consideração na questão da mobilidade. Assim sendo, a cobrança de impostos em um contexto de violência colonial é interpretada por Cisse Chikouna, historiador, como motivo que leva à circulação acentuada de pessoas na região norte da Costa do Marfim entre 1901 e 1902, determinadas a sobreviver às pressões exercitadas pelo regime colonial.

Outro elemento trabalhado é o das condições climáticas, avaliado pelos historiadores Houli Fourissala Robert e Gormo Jean. Os dois autores consideram que a desertificação no Chade provoca o deslocamento de diferentes populações. Os autores sublinham o peso de determinantes geográficos nas escolhas individuais que obrigam as pessoas a migrarem. Por sua vez, Raquel A. Gomes analisa a questão política de posse de terra e a lei Natives Land Act de 1913 no espaço sul-africano. Se a posse ou não de terra influencia diretamente as condições de vida, os espaços sociais e induz as pessoas a migrarem, o interesse da autora é analisar a mobilidade intelectual da chamada “elite letrada” e mais especificamente a obra de Sol Platje. As condições de vida de migrantes etíopes são também avaliadas pelos antropólogos Gunilla Bjeren e Atakilte Beyenee. Nos espaços urbanos da cidade de Shashemene em Etíopia, os autores analisam a questão de genêro no acesso a diferentes possibilidades de susbsistência e as trajetórias das pessoas em mobilidade.

Os dois últimos artigos trazem significados mais abrangentes à noção de mobilidade. A partir de uma perspectiva interdisciplinar, a geógrafa Karine Bennafla averigua o papel do estado contemporâneo africano na circulação transnacional de bens focando no período pós- -colonial através de exemplos das regiões ocidental, central e noroeste da África. Olhando para o cotidiano dos africanos que circulam constantemente e condicionam suas travessias à sua principal atividade de comércio, a pesquisadora observa que o diálogo entre atores estatais e não-estatais e as mobilidades de espaços-tempos e redes acabam ilustrando novas formas especificamente africanas de se viver a globalização. Por fim, o artigo de Simone Ribeiro da Conceição, Mestre em literaturas africanas, fecha o dossiê com uma proposta interdisciplinar seguindo as trajetórias de dois homens africanos que, cada um na sua área, destacaram-se pela contribuição que aportaram aos conhecimentos sobre o continente africano. São eles o renomado historiador burquinês Joseph Ki-Zerbo e o escritor angolano Uanhenga Xitu, ambos destacados atores políticos e sociais de uma experiência africana de reconstrução constante de suas identidades. Deste modo, através do fio condutor da memória, entendemos as mobilidades como noção que nos faz acessar ao mundo de circulação das ideias.

Além desse alentado dossiê, a Revista Locus traz neste número dois artigos de fluxo contínuo. O autor Vinicius Cardoso, no seu artigo “Favorecida do Senhor e acrescentada por Sua Alteza: jesuítas, rei e mercês na fundação e patronímica do Rio de Janeiro” analisa, com base em cartas, o patronímico da cidade de São Sebastião do Rio do ponto de vista jesuítica. No segundo artigo, os autores Nara Azevedo e Luiz Otávio Ferreira refletem sobre o “Sucesso e Fracasso das Faculdades de Filosofia: ciência, cientistas e universidade no Brasil, 1930-1960” e sobre a influência das faculdades de filosofia na institucionalização das ciências no Brasil. Em seguida, Diogo da Silva Roiz propõe uma resenha do livro de José Carlos Reis: “O desafio historiográfico”. Por fim, Vítor Fonseca Figueiredo apresenta o livro de Amilcar Martins Filho “O segredo de Minas: a origem do estilo mineiro de fazer política (1889-1930)”.

Marina Berthet – Organizadora do dossiê.


BERTHET, Marina. Prefácio. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.18, n.2, 2012. Acessar publicação original [DR]

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