O expresso Berlim-Bagdá. O Império otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918 – McMEEKIN (Tempo)

McMEEKIN, Sean. O expresso Berlim-Bagdá. O Império otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918. São Paulo: Globo, 2011. 495 p. Resenha de BERTONHA, João Fábio. O Império otomano e a Primeira Guerra Mundial. Tempo v.18 no.33 Niterói  2012.

Sean McMeekin é autor de vários livros sobre as origens da Primeira Guerra Mundial e sobre a Revolução Russa, tendo publicado alguns trabalhos de grande importância – ainda que controversos – sobre os objetivos do Império czarista na guerra, suas responsabilidades na eclosão daquele conflito e também sobre os tratados de paz entre os alemães e os bolcheviques em 1918.

Seu novo livro – O expresso Berlim-Bagdá. O Império otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918 (São Paulo: Globo, 2011. 495 p.) – traz a seus leitores uma temática tradicionalmente negligenciada no mundo ocidental, ou seja, a participação do Império turco-otomano na guerra de 1914-1918 e, especialmente, a ação alemã no Oriente Médio durante o conflito. Nesse sentido, ele aborda não apenas o esforço alemão para, com a ferrovia Berlim-Bagdá, colocar o território turco-otomano em sua área de influência, como também a tentativa de Berlim de instigar os muçulmanos que viviam nos Impérios russo, francês, inglês e italiano a se insurgirem contra seus dominadores por meio da bandeira da jihad islâmica.

Os alemães gastaram, realmente, muito tempo, esforço e, acima de tudo, dinheiro para dar conta desses objetivos. O autor calcula que, dos cerca de 200 bilhões de marcos (5 trilhões de dólares, a preços de hoje) gastos pela Alemanha em seu esforço de guerra, cerca de 1,5%, ou seja, 3 bilhões de marcos (75 bilhões de dólares), foi utilizado para sustentar o esforço de guerra turco ou para tentar espalhar a bandeira da jihad pelo amplo território do Marrocos à Índia. Eles tentaram mobilizar os xiitas no Irã, várias tribos afegãs, árabes ou sudanesas e os sanussis no Norte da África.

Apesar de tanto ouro, dinheiro e armas alemãs fluírem para esses grupos e de eles terem conseguido que o califa turco e altos clérigos xiitas declarassem a guerra santa, os resultados obtidos foram escassos. Ao contrário do que eles imaginavam, ou seja, de que os muçulmanos, movidos por seu fanatismo religioso, incendiariam a região, quase nada foi em frente. Mesmo a ferrovia, que, com seus 3.200 quilômetros, deveria ter sido capaz de reforçar a autoridade do sultão em todo o seu território, permitir a integração econômica turco-alemã e dar suporte logístico para ações militares na direção do Egito ou do Irã, não ficou pronta, em sua totalidade, a tempo.

Ao contrário do que o título sugere, assim, o livro não se limita a narrar as peripécias na construção da Berlim-Bagdá, mas acaba por abordar temas pouco conhecidos, especialmente para os que leem unicamente em português, como o envolvimento otomano na Primeira Guerra Mundial, sua participação nesta, a história do Islã etc. Também o tema do genocídio armênio é abordado pelo autor, com o uso de fontes russas e turcas.

Alguns desses temas merecem destaque. A decisão de Constantinopla de entrar na guerra ao lado de Berlim parece lógica, dados os laços que uniam os dois países desde o fim do século XIX e a oposição de ambos aos futuros Aliados. O autor demonstra, contudo, que a relação bilateral era muito mais dinâmica, com muitas idas e vindas. Ao final, a posição pró-Alemanha triunfou no governo turco-otomano, mas essa decisão não estava dada desde o início, e o governo turco hesitou muito antes de se comprometer.

Durante a guerra, igualmente, apesar de aliados, alemães e turcos viveram uma relação de amor e ódio, com tensões culturais, interesses conflitantes e desconfianças mútuas envenenando o relacionamento. Com as derrotas, o ressentimento mútuo apenas cresceu e, na disputa pelos espólios do Império russo em 1918, soldados turcos e alemães chegaram a trocar tiros perto de Baku, no Azerbaijão.

Outro aspecto da ação ocidental no Oriente Médio naqueles anos abordado pelo autor é o sionismo. Ele indica como, depois da tragédia do Holocausto, nós tendemos a esquecer que a sede mundial do sionismo no período anterior era a Alemanha, e que esse foi, em linhas gerais, apoiado pelo governo do Kaiser, ainda que por motivos instrumentais. Os ingleses abraçaram, até certo ponto, a causa sionista apenas durante a guerra, para tirar essa bandeira dos alemães, gerando um movimento antissemita árabe que depois, paradoxalmente, se ligou ao nazismo de Hitler, como no caso do mufti de Jerusalém e na criação das divisões muçulmanas da Waffen-SS.

As informações que ele levanta sobre o fronte caucasiano entre russos e turcos durante a guerra também são inéditas para os não especializados, e suas análises das fragilidades militares do Império turco-otomano são, no mínimo, instigantes, com muitos dados sobre as dificuldades dele de manter o fluxo de recrutas no Exército, financiá-lo e armá-lo.

Pensando nas conexões entre o período que ele estuda e o momento atual, algumas questões se tornam evidentes. Uma delas é, utilizando termos contemporâneos, que instrumentos de soft power, como subversão política de minorias em outros Estados ou apelos à solidariedade ideológica ou religiosa em geral, não funcionam a não ser que sejam apoiados e sustentados por elementos de hard power, como dinheiro, armas, vitórias militares etc.

Os alemães tentaram várias estratégias desse tipo durante a Primeira Guerra, como a tentativa de jogar o México contra os Estados Unidos, a exploração do sionismo no Império russo e na Palestina ou a deflagração da jihad no mundo islâmico, mas tudo isso falhou por falta de alicerces materiais mais sólidos, mesmo com todo o esforço alemão. Como indica o autor, a única aposta alemã em termos de subversão interna que deu certo foi o envio de Lenin para a Rússia e o apoio aos bolcheviques entre 1917 e 1918, mas foi algo isolado e que só funcionou pelas condições especiais da Rússia naquele momento.

Outro erro alemão que continuou a ser repetido pelas outras potências imperialistas que tentaram conquistar posições na região nas décadas seguintes foi o desconhecimento da cultura e das tradições locais. Os alemães não entenderam que o que movia as tribos árabes eram seus interesses próprios, e não um mítico apelo à solidariedade islâmica ou a um obscuro nacionalismo árabe. Ao contrário do que aparece em filmes como Lawrence da Arábia, o nacionalismo árabe era algo incipiente, e as tribos estavam mais interessadas em dinheiro, ouro, armas, posições sociais e, em alguns casos, a defesa de sua visão do Islã do que em conceitos vagos como o nacionalismo.

Os alemães também não entendiam as sutilezas da jurisprudência ou da fé islâmicas ou as diferenças entre sunitas e xiitas, e isso os levava a erros de avaliação. Os militares americanos no Iraque e no Afeganistão também aprenderam, a duras penas, como é lidar com sociedades não mais puramente tribais, mas nas quais vínculos além da nacionalidade ou da política ainda são fortes e, muitas vezes, contraditórios. Para elas, ainda hoje, muitas vezes a demonstração de poder e a disponibilidade de dinheiro para suborno ainda são mais importantes do que ideais vagos como democracia ou Estado de direito.

É muito interessante igualmente quando ele comenta como vários problemas do Oriente Médio de hoje tiveram sua origem na tentativa alemã de controlar a região e como certos padrões e questões estão sempre presentes na realidade local. Vale destacar, nesse ponto, suas reflexões sobre como o obscurantismo religioso sempre serviu, na região, para sufocar ideais progressistas e como o disfarce da modernidade anti-islâmica foi instrumental para certos regimes reprimirem as populações locais em nome do laicismo. Ele também menciona como a decisão inglesa de bancar os wahabitas na hoje Arábia Saudita, em boa medida para combater as pretensões de Constantinopla e Berlim na região, gerou o regime saudita atual, uma das fontes centrais da versão contemporânea mais reacionária do Islã. Para quem acompanha o noticiário recente sobre o mundo árabe, tais reflexões são mais do que atuais.

Claro que várias questões e hipóteses que ele levanta podem levar a questionamentos e a dúvidas. Ele deixa a entender, por exemplo, que a Drag nach Osten alemã visava essencialmente ao espaço muçulmano e que os interesses alemães na Europa do Leste só se tornaram predominantes com a oportunidade única do colapso russo em 1917. Isso ignora a larga tradição alemã de olhar para o Leste europeu como sua futura base de poder imperial e superestima a ambição alemã pelo território turco-otomano. Os alemães, provavelmente, gostariam de ter tudo, formando um império que iria de Berlim a Moscou e Teerã. Mas a prioridade sempre foi o Leste europeu, e as ambições no Oriente Médio, a meu ver, eram acessórias. Se os alemães tivessem de escolher entre Kiev e Cairo, as planícies ucranianas seriam as escolhidas.

Ele também peca quando tenta, em poucas páginas, resumir o nazismo a uma explosão de antissemitismo autopiedoso, a forma com que os alemães formataram seu ressentimento pela derrota na Primeira Guerra. Que o ódio ao judeu foi reforçado no pós-1918 em boa medida como uma tentativa de explicar como a grande Alemanha poderia ter sido derrotada é um fato, mas essa explicação reduz a questão do antissemitismo nazista a um quase nada, ignorando séculos de antissemitismo, racismo científico etc.

O livro também traz alguns equívocos de tradução e vários erros tipográficos que poderiam ter sido evitados por uma revisão mais cuidadosa. O autor também merece questionamentos por sua tendência de buscar “complôs” e intrigas em toda parte, e fica evidente no livro seu tom fortemente pró-turco e antirrusso. Ele parece, nesse e em outros livros, fazer o mesmo que Fritz Fischer e sua escola fizeram com a Alemanha décadas atrás: identifica na Rússia a grande culpada da guerra e relativiza a ação dos outros, como a Alemanha e o Império turco-otomano, como mais reativas do que ativas. Isso forma uma contradição, aliás, com a tese do próprio livro, que trabalha, como visto, com os projetos e esforços alemães naquela região, os quais, muitas vezes, respondiam aos outros atores (russos, ingleses e franceses), mas não de modo exclusivamente defensivo ou reativo.

Mesmo assim, suas hipóteses são, em geral, consistentes, calcadas em um número imenso de fontes coletadas em arquivos austríacos, franceses, ingleses, americanos e, especialmente, alemães, turcos e russos. Um esforço de pesquisa e linguístico que pode ser questionado, em alguns aspectos, em termos de análise, mas que deve e pode ser valorizado, já que escapa da armadilha de tentar abordar um tema multinacional sem o uso de fontes de vários países.

Enfim, não é sempre que eu, que já estudo temas ligados aos impérios, à Rússia e à Primeira Guerra Mundial há vários anos, consigo encontrar um livro que me forneça uma nova perspectiva desses temas e/ou que me faça aprender realmente algo novo sobre eles. Foi esse o caso, contudo, do livro de Sean McMeekin, e é por isso que recomendo sua leitura, o qual só tem a acrescentar, mesmo que não se concorde com todas as suas propostas para o entendimento do tema e do período.

João Fábio Bertonha – Doutor em História pela Unicamp, com estágios de pós-doutorado na Università degli Studi di Roma e na Universidade de São Paulo; pós-graduado em assuntos estratégicos internacionais pela National Defense University (EUA); professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá e pesquisador bolsista do CNPq. E-mail: [email protected].

Hitler’s Empire – How the Nazis ruled Europe – MAZOWE (Tempo)

MAZOWE, Mark. Hitler’s Empire – How the Nazis ruled Europe. New York: Penguin Books, 2008, 725 p. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. O Império de Hitler. A “Nova ordem” nazista na Europa, 1939-1945. Tempo v.14 no.28 Niterói jun. 2010.

Vários mitos rondam a história da Alemanha nazista. A princípio, seria esta o Estado mais eficiente que já existiu, já que combinava a tradicional eficiência e organização alemã com o sistema político nazista, o qual seria completamente hierárquico e centralizado. Um super Estado, que funcionaria como um relógio, substituindo a anarquia da sociedade liberal democrática que ele vinha a substituir.

A pesquisa histórica dos últimos anos tem indicado como estas qualificações para o III Reich são, acima de tudo, mistificações, criadas, em parte, pela própria propaganda nazista. O Estado nazista, longe de ser hierárquico e centralizado, era uma verdadeira coleção de instituições, organizações e indivíduos disputando poder e influência. É evidente que Hitler detinha, no limite, o poder de decisão final, mas isso não implicava na formação de uma estrutura tão coesa e hierarquizada como se supunha.

Isso fica evidente, por exemplo, na produção de armamentos durante a Segunda Guerra. Estados Unidos e a Grã-Bretanha conseguiram articular a coordenação estatal com a livre empresa, enquanto a URSS adotou um modelo mais centralizado e com planejamento central. Todos estes países conseguiram aumentar significativamente sua produção bélica durante o conflito, enquanto a Alemanha, o suposto Estado mais eficiente do mundo, ficou muito atrás e isso ocorreu, em boa medida, pelas disputas sem fim de seus líderes e instituições.

Mark Mazower derruba mais um mito sobre a Alemanha nazista em seu novo livro. Em Hitler´s Empire – How the Nazis ruled Europe (New York: Penguin Books, 2008, 725 p.), ele demonstra como, ao contrário do que tradicionalmente se imagina, os nazistas não tinham nenhum plano definido e perfeito de como dominar o mundo e que ninguém mais do que eles se espantou com a enormidade de suas conquistas entre 1939 e 1941.

O autor, na verdade, não rompe com a análise tradicional que indica que, nas mentes dos líderes nazistas, haveria sim algumas prioridades e diretrizes gerais a seguir na busca do Império. Unificar todos os germânicos numa grande Alemanha, conseguir o controle da Europa e, especialmente, da Rússia européia, eram os estágios mais ou menos certos a serem seguidos. Um dia, no futuro, talvez, haveria um grande conflito com os Estados Unidos, mas isso estava apenas no campo das especulações, sem nenhuma indicação imediata de que iria ocorrer.

O que Mazower indica é que, na verdade, mesmo para os estágios iniciais, os nazistas não tinham muita segurança do que fazer. A unificação dos povos alemães dentro de um Estado nazista era algo mais ou menos simples de conceber e imaginar. No entanto, mesmo os passos posteriores, apesar de sempre pensados, nunca haviam se convertido em planos e diretrizes prontas a serem aplicadas. Assim, quando quase toda a Europa caiu sobre o controle alemão, entre 1939 e 1941, a ideologia nazista oferecia apenas alguns esboços gerais do a ser feito, sendo necessárias inúmeras adaptações e experiências para tentar delimitar o que fazer.

Assim, em pouco tempo, vários órgãos e instituições começaram a debater sobre como agir frente ao novo Império. A Ucrânia, por exemplo, era vista como o seu futuro celeiro. Mas seria ela um protetorado com algum grau de autonomia ou uma colônia? E a França, seria ela retalhada ou manteria alguma autonomia? E os países nórdicos, fariam parte de algum tipo de confederação germânica ou seriam anexados ao Reich? Essas e outras questões começaram a surgir naqueles anos em que parecia que a Alemanha tinha vencido a guerra e não havia resposta clara a elas.

Claro que algumas diretrizes centrais já estavam mais ou menos estabelecidas. Haveria uma hierarquização geral dos povos europeus com base na doutrina racial e todos os recursos desse espaço serviriam para manter a máquina de guerra alemã e, ao seu final, para o engrandecimento desse Império. Também está claro como haveria povos que seriam mais ou menos tolerados, como os europeus ocidentais, e outros destinados a escravidão, como os poloneses, além, é claro, da eliminação, pela emigração ou morte, dos judeus. Mas isso eram apenas idéias gerais, que, ao serem confrontadas com a realidade, levaram, muitas vezes, a improvisação e a experiências diversas.

Os nazistas tiveram que recorrer, assim, às únicas fontes de inspiração possíveis, ou seja, os velhos padrões colonialistas europeus, os tradicionais objetivos geopolíticos alemães na Europa do Leste e as suas obsessões raciais. Foi com base nisto que eles construíram suas políticas, numa combinação de tradição e novidade realmente notável.

Dessa forma, a ocupação da Polônia, por exemplo, refletia um histórico de luta entre alemães e poloneses que já vinha de séculos, mas os nazistas incluíram, na mesma, um padrão de guerra racial que implicava na impossibilidade de qualquer autonomia para a Polônia. Eles tendiam a ver, no Leste Europeu, um verdadeiro “Far West” nos moldes da conquista americana do oeste, no qual eles exterminariam os povos nativos, ou uma Índia, a ser dominada pela raça superior. Ou seja, eles seguiam padrões tradicionais para o colonialismo europeu, com o diferencial de estarem aplicando estes padrões no continente europeu e os combinando com a obsessão racial.

Estas tradições e obsessões, contudo, eram tão vagas que permitiam que o Exército, o Partido, os diversos ministérios civis, a SS e muitas outras instituições apresentassem a sua versão do correto a fazer, levando a reorganização do espaço europeu a se tornar mais um campo de disputa entre os pólos de poder nazista.

Assim, enquanto Rosenberg e outros líderes políticos queriam oferecer, aos ucranianos, sérvios e mesmo aos russos algum grau de autonomia para atraí-los ao campo do Eixo, a SS e o próprio Hitler preferiam uma política de terra arrasada, de repressão contínua, que acabou por ampliar cada vez mais a resistência.

Já muitos militares e burocratas do Ministério dos armamentos não se conformavam com a morte de milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, ciganos e judeus enquanto a necessidade de mão-de-obra no Reich crescia a olhos vistos. Pessoas do Ministério do exterior, por sua vez, queriam oferecer algum tipo de recompensa mais palpável para os colaboracionistas em toda a Europa, enquanto a SS e outras forças se recusavam a compactuar com os racialmente destinados a obedecer.

Enfim, fica claro como havia um intenso debate a respeito da política a ser seguida. A idéia dos nazistas como monstros que só pensavam em matar e destruir nos faz perder a realidade de que aqueles eram homens que podiam defender, dentro de certos limites, propostas diferentes.

Mazower indica, além disso, como a própria experiência da guerra levou a política nazista a se radicalizar de forma expressiva. Assim, enquanto o “problema judeu” era uma constante no pensamento nazista, a idéia de exterminá-los fisicamente foi emergindo aos poucos, até a criação dos campos de extermínio, não previstos desde o primeiro momento.

Na verdade, tenho dúvidas se todas estas opções menos brutais, que o autor elenca com cuidado, tinham realmente chance de ser colocadas em prática. Em alguns momentos, aliás, Mazower dá a impressão de considerar que todas as várias propostas tinham chances iguais de serem transformadas em políticas, o que me parece complicado. Afinal, mesmo que reconheçamos que havia várias percepções nazistas sobre o mesmo assunto, fato é que o nazismo se caracterizava por uma idolatria à violência e à dominação e a vitória das propostas mais radicais, de dominação total e ostensiva, como as da SS, me parece quase lógica.

Um ponto interessante do livro, igualmente, é quando ele começa a discutir o significado de raça e política racial dentro do pensamento nazista e, especialmente, as inúmeras adaptações que a doutrina racial teve que se submeter para se tornar minimamente prática na organização do novo Império.

Assim, no afã de colonizar as partes ocidentais da Polônia, substituindo os poloneses por alemães, eles encontraram um problema demográfico insuperável. Não apenas os poloneses eram numerosos, como não havia germânicos em número suficiente para substituí-los. A solução, em boa medida, passou pela germanização forçada de muitos poloneses que tinham as características adequadas para serem assimilados, numa louca tentativa de encontrar alemães para os objetivos colonialistas do regime.

Duas questões de interesse emergem, a meu ver, dessa sua observação. A primeira é que o nacionalismo etno-linguístico do século XIX e a visão mais racialista do nazismo não eram completamente incompatíveis. As discussões sobre raças, na Europa do XIX, giravam sempre em torno de questões de língua e cultura, com a possibilidade de aculturação e assimilação do “outro” sempre presente. Mas havia também um tom racial, que identificava uma determinada cultura com determinada raça e nem sempre se aceitava que a assimilação desta ou daquela raça era aceitável e/ou desejável.

A Alemanha nazista inverteu esse padrão, absorvendo os ideais do racismo científico e levando a raça ao posto de divisor central entre povos e pessoas. Mas um tom etno-cultural também existia. Assim, havia eslavos mais próximos da cultura alemã, como parte dos tchecos, que poderiam ser assimilados, enquanto os poloneses, dado a histórica rivalidade entre os dois povos, só o seriam em mínima parte. O nazismo levou o racismo biológico ao seu máximo desenvolvimento, mas as idéias de assimilação cultural e lingüística também estavam presentes, sendo judeus e ciganos, provavelmente, os únicos aos quais essa possibilidade foi cem por cento negada.

O segundo ponto que me chama a atenção é a facilidade com a qual Estados quase totalitários, como a Alemanha de Hitler, planejaram e executaram projetos de engenharia populacional de uma magnitude inacreditável. Discutia-se a morte ou o deslocamento de dezenas de milhões de pessoas e a reorganização espacial de todo um continente com uma facilidade impressionante. Em um momento, chegou-se a imaginar até o envio de milhões de eslavos ao Brasil, o qual, em troca, devolveria a população de origem germânica ali emigrada (p. 209). Um total absurdo, mas que indica a facilidade com que estes projetos de reorganização espacial e populacional eram pensados e como, no caso nazista, eles foram colocados em prática ao menos em parte.

A ironia maior indicada pelo livro, contudo, é a de que o próprio estilo de administração alemã da Europa ocupada colaborou para o seu fim. Ao pilhar toda a economia européia (ao invés de permitir o seu desenvolvimento), desperdiçar a sua força de trabalho em massacres inúteis e não oferecer nenhuma opção aos povos dominados que não a dominação, o nazismo não conseguiu extrair, do continente, tudo o que poderia em termos de força militar, o que facilitou a sua derrota pelos Aliados. Na sua brutalidade, na sua violência gratuita, estava a semente da sua destruição. Uma conclusão não inédita, mas que ele consegue detalhar e explicitar em detalhes.

O livro de Mazower, assim, é uma leitura que vale a pena. Ele não explora fontes primárias e se baseia, em essência, na imensa bibliografia acumulada sobre o tema nas últimas décadas. Em alguns momentos, o esforço para absorver e reorganizar toda a massa de informação recolhida se transmuta em repetições e numa prolixidade que cansa o leitor. Mesmo assim, é um estimulante relato a respeito dessa história de idéias, adaptações, morte e construção imperial que merece ser lido não apenas pelos especialistas em nazismo ou em políticas imperiais, mas por todos os interessados em estudar o processo pelo qual idéias e (pré) conceitos se adaptam a realidade e, ao mesmo tempo, fazem a realidade se adaptar a eles.

João Fábio Bertonha – Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá/PR e Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected].