Elisa Branco: uma vida em vermelho | Jorge Ferreira

A biografia é um gênero antigo, que tem forte apelo entre os leitores. Segundo informações de um dos nossos mais importantes autores do gênero, o jornalista Lira Neto (2022, p. 41), a mais antiga publicação desta modalidade de que se tem notícia foi escrita há 2.500 anos, uma autobiografia, talhada em pedra, na antiga Pérsia. A partir daí, trajetórias de vida nunca deixaram de ser objeto de interesse dos leitores. Leia Mais

Os brancos da lei: liberalismo/escravidão e mentalidade patriarcal no Império do Brasil | Jurandir Malerba

Não tem sido muito comum se fazer uma resenha de um livro em segunda edição. Os novos tempos acabam por nos impingir a última novidade. Contudo, assumimos esta ousadia por esse livro tratar originalmente de uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF) de excepcional qualidade, de um historiador que se tornou referência nos estudos da história do Brasil. Tal é o caso do livro de Jurandir Malerba, cuja primeira edição remonta a 1994, publicado pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), oriundo da sua dissertação de mestrado defendida no PPGH-UFF, em 1992 – Sob o verniz das ideias: liberalismo, escravidão e valores patriarcais no Código Criminal do Império do Brasil – sob orientação do saudoso professor Hamilton de Matos Monteiro Leia Mais

Mar de tormentas: uma história dos furacões no Caribe, de Colombo ao Katrina | Stuart B. Schwartz

Filme sobre o furacao Katrina e exibido pelo SBT Reproducao El PaisUOL
Filme sobre o furacão Katrina é exibido pelo SBT (Reprodução: El País)/UOL

Corria o ano de 1780, a Revolução Americana encontrava-se em pleno desenrolar e o vizinho mar do Caribe estava cheio de tropas e navios. Entre os dias 10 e 16 de outubro, aquele que ficou conhecido como o “grande furacão” varreu a região, deixando um rastro de mais de vinte mil mortos. Todos os impérios europeus tiveram suas possessões afetadas. Com ventos que podem ter alcançado uma velocidade superior a 300 quilômetros por hora, a tempestade atingiu primeiro Barbados, arrasando a capital, onde quase nenhuma casa resistiu. Somente na Martinica, o naufrágio de uma frota francesa ancorada em Fort Royal fez quatro mil vítimas. Na cidade de Saint-Pierre, mais ao norte, um vagalhão de oito metros de altura lambeu uma centena e meia de casas, o hospital desabou e todas as quase cem freiras e noviças do convento de Saint-Esprit morreram. Para tornar tudo mais difícil, o grande furacão de outubro não veio sozinho, naquele ano houve pelo menos oito tempestades devastadoras na região. As plantações de cana-de-açúcar sofreram um duro golpe, a produção de alimentos ficou arruinada e os pescadores perderam seus barcos. Quando a temporada dos furacões acabou, os sobreviventes estavam desabrigados e a fome e as doenças tinham se instalado. Leia Mais

Where caciques and mapmakers met: border making in eighteenth-century South America | Jeffrey Alan Erbig Júnior

John Fea Lucy Barnhouse e Jeffrey Alan Erbig Junior Imagem Current
John Fea,  Lucy Barnhouse e Jeffrey Alan Erbig Júnior | Imagem: Current

Bons livros, nas ciências humanas ou na literatura, são aqueles que fisgam o leitor com personagens ou situações paradoxais. Assim faz Where caciques and mapmakers met: border making in eighteenth-century South America. Em cinco capítulos originados de um périplo de dez anos de pesquisas por 27 arquivos e sete países, Jeffrey Erbig Jr. mostra como o processo de territorialização dos Estados ibéricos na fronteira luso-platina da América ocorreu em estreita dependência e subordinação às relações e permissões dos grupos indígenas locais autônomos.

Where caciques and mapmakers metNos últimos vinte anos várias têm sido as contribuições para a discussão de processos como esse (Guy, Sheridan, 1998Adelman, Aron; 1999Gil, 2007Garcia, 2007Herzog, 2015Prado, 2009Lennox, 2017) e o livro de Erbig Jr., atualmente professor no Departamento de Estudos Latinos e Latino-americanos da Universidade da Califórnia,1 soma novos inquéritos e respostas a essa literatura. Leia Mais

Soccer diplomacy: international relations and football since 1914 | Heather Dichter (R)

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DICHTER H Soccer Diplomacy1Heather Dichter | Foto: The Hithacan |

Nas últimas duas décadas, as pesquisas sobre a relação entre futebol e ciências sociais se desenvolveram de forma célere no Brasil. Um aspecto, entretanto, permaneceu à margem das principais monografias: estudos sobre diplomacia, relações internacionais e esporte (Suppo, 2012, p. 397-433). O impacto da chamada década esportiva,1 momento em que o esporte estava na ordem diplomática, não se refletiu no aumento de estudos sobre o assunto no país. Na literatura internacional, porém, o panorama é distinto. Em 2014, os historiadores Heather Dichter e Andrew L. Johns editaram Diplomatic games, livro sobre a relação entre esporte, agência estatal e relações internacionais. Na conclusão, Thomas Zeiler apontava uma lacuna: nenhum capítulo sobre futebol em um volume hegemonizado por historiadores dos Jogos Olímpicos (Zeiler, 2014, p. 443). Seis anos depois, em uma resposta à altura da provocação de Zeiler, Heather Dichter traz ao público nova coletânea – Soccer diplomacy: international relations and football since 1914 – dedicada exclusivamente ao esporte mais popular do mundo.

Soccer diplomacy percorre contextos geográficos múltiplos – Ásia, África, Europa, Oceania, América do Sul, Estados Unidos e Caribe – para refletir sobre as relações entre futebol e diplomacia. No total, são dez capítulos, além de uma introdução e uma conclusão, escritos por pesquisadores de origens nacionais distintas. São mobilizados documentos dos arquivos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), da Federação Internacional de Futebol (Fifa), de ministérios das relações exteriores diversos e de federações esportivas nacionais e internacionais. Um dos principais méritos da coletânea é justamente o de pôr em diálogo os arquivos diplomáticos e os arquivos das instituições esportivas nacionais e internacionais. Com frequência, a ideia de autonomia dos esportes separou esses dois campos de investigação.

Refletindo o quadro da literatura internacional, há no livro o predomínio de uma abordagem que trabalha o futebol como instrumento político, o que, por vezes, tende a reduzi-lo a uma ferramenta política governamental. Um dos efeitos indiretos é a negligência do papel das emoções nas relações internacionais, campo que tem crescido nos últimos anos.2 Os sentimentos e os estereótipos nacionais possuem impacto na tomada de decisões políticas, por isso devem ser incorporados à análise. A redução do esporte a instrumento político termina por sobrevalorizar a racionalidade e a intenção dos atores políticos, além de reforçar uma visão das relações internacionais centrada no Estado.

Nesse aspecto, seria interessante retomar uma provocação feita por Sarah Synder: podem os historiadores das relações internacionais enxergar torcedores, jogadores e técnicos como atores diplomáticos? Pode-se falar do futebol como uma forma própria de diplomacia? (Snyder, 2020).A distinção metodológica feita por Peter Beck entre diplomacia do futebol (soccer diplomacy) e o futebol como diplomacia (soccer-as-diplomacy) pode ser útil. No primeiro caso, a diplomacia do futebol se dedicaria a pensar os usos que os Estados nacionais fazem do esporte. No segundo, o futebol como diplomacia pensaria os atores envolvidos no campo esportivo – clubes, torcidas, dirigentes, federações esportivas internacionais – na conformação de uma diplomacia de força própria. “Enquanto a diplomacia do futebol é uma área relativamente bem conhecida” – arremata o próprio Peter Beck – “o futebol como diplomacia […] é ainda um conceito emergente” (Beck, 2020, p. 227).

Na prática, entretanto, os conceitos se misturam. Basta pensar, por exemplo, que o papel da Fifa na organização de um arcabouço político internacional é tema onipresente no livro. À primeira vista, é digno de nota que a cronologia do livro se sobreponha à periodização do século XX esquadrinhada por Eric Hobsbawm (1994). Nela, o marco zero é a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Paul Dietschy reforça o argumento: “o período entre 1914 e 1939 é crucial para o desenvolvimento de uma diplomacia esportiva” (Dietschy, 2020). Não é coincidência, aliás, que esse período seja o de consolidação da Fifa. Na década de 1920, a Fifa salta para cerca de quarenta filiados, com representação política nos cinco continentes (Burlamaqui, 2020). Essa observação mostra como a gênese de uma diplomacia do futebol é fenômeno indissociável da arquitetura do sistema Fifa e, portanto, do futebol como diplomacia.

O crescimento da Fifa, por sua vez, é correlato à criação e à expansão do seu principal produto: a Copa do Mundo de Futebol Masculino. Três capítulos do livro – de autoria de Paul Dietschy, Brenda Elsey, e Euclides Couto e Allan Valente – trabalham diretamente a escolha do país sede para o torneio. Aqui, o tema em relevo são as estratégias de três países – França, Brasil e Chile – que se apresentaram como candidatos a receber a Copa do Mundo. Em primeiro plano, Dietschy observa a precocidade do investimento do Ministério das Relações Exteriores francês na diplomacia futebolística. Antes da Segunda Guerra Mundial, a Fifa contou com vários presidentes franceses, com ligação direta com o Quai d’Orsay. Dietschy destaca o papel de Jules Rimet na escolha da França como sede da Copa do Mundo em 1938. Por sua vez, Couto e Valente e Elsey refletem sobre o problema e o peso das identidades e dos estereótipos nacionais na disputa por esses torneios. Nos dois casos, a imagem construída internacionalmente e o apelo às características ditas intrinsecamente nacionais são determinantes. Em 1962, a imagem do Chile como um país estável, sem golpes de Estado ou levantes revolucionários, foi crucial para que os delegados da Fifa o escolhessem como sede da Copa do Mundo em detrimento da Argentina. Em 2014, o mito da democracia racial foi revisitado nos discursos do presidente Lula nos preparativos para a Copa do Mundo sediada no Brasil.

Outro campo temático explorado no livro é o da relação entre Guerra Fria e futebol. Não faz muito tempo o historiador Robert Edelman observou como o futebol permaneceu do lado de fora das narrativas sobre Guerra Fria (Edelman, 2018, p. 417-432). À primeira vista, como os Estados Unidos tinham pouco interesse no jogo, o futebol teria se mantido alheio ao confronto, enquanto os Jogos Olímpicos se converteram no principal local da disputa política entre as superpotências. Esse panorama começou a ser revisto desde a publicação de The global Cold War, de Odd Arne Westad (2005). Desde então, novas abordagens sobre o confronto – mais atentas às dimensões regionais do conflito – foram produzidas. Esse novo olhar sobre a Guerra Fria possibilitou rever o lugar do futebol nesse conflito.

Em The finest ambassadors: American-Icelandic football exchange, George Kioussis revisita o suposto lugar excepcional dos Estados Unidos, alheio à diplomacia do futebol durante a Guerra Fria. O capítulo mostra como o Departamento de Estado estadunidense também viu na diplomacia do futebol uma estratégia para disputar os “corações e mentes durante a Guerra Fria”. Kioussis faz um estudo de caso sobre uma turnê da seleção estadunidense à Islândia em 1955. Por sua posição geográfica, a Islândia era vista como aliado estratégico dos Estados Unidos durante a Guerra Fria. Uma das formas de conter a influência cultural soviética na região foi o envio da seleção de 1955 para a disputa de uma série de três partidas. No ano seguinte, os islandeses seriam convidados a visitar os Estados Unidos.

Descentrar o olhar euro-americano sobre a Guerra Fria é tema do texto de Erik Nielsen, Sheilas, wogs and poofters in a war zone, sobre um torneio amistoso vencido pela seleção australiana no Vietnã em meio à Segunda Guerra da Indochina.3 Ainda sobre Guerra Fria: o capítulo de Heather Dichter, “Football more important than Berlin”, por sua vez, fala sobre um problema comum: a restrição de vistos concedidos aos países do Leste Europeu. A política da Otan de não reconhecimento da Alemanha Oriental contrastava com os procedimentos adotados pela Fifa, que admitiu a associação da Alemanha Oriental em 1953. Vale dizer que a Fifa foi uma das poucas associações esportivas internacionais a aceitar imediatamente países como a Alemanha Oriental e a Coreia do Norte. Não raro, a política da Fifa contrastava com a postura dos governos nacionais, que restringia o acesso dos atletas às competições e não emitia vistos. Heather Dichter analisa, então, dois torneios juniores da Fifa que a Alemanha Oriental, embora classificada, não pôde disputar pela não emissão de vistos. Ela examina, então, como essa política da Fifa foi importante para revisão de medidas da Otan de isolamento da Alemanha Oriental. E provoca: se os países ocidentais falavam tanto em liberdade de circulação e criticavam a existência do Muro de Berlim, como conciliar este discurso com essa política de não emissão de vistos?

Vale mencionar ainda o capítulo de Roy McCree, “High Jack, soccer and sport diplomacy in the Caribbean, 1961-2018”. No pós-Segunda Guerra Mundial, a Fifa adotou o sistema confederativo, que organiza suas associações nacionais em continentes. A Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe (Concacaf) é responsável pela América Central, o Caribe e a América do Norte. O capítulo analisa como Jack Warner emergiu de uma pequena associação nacional – Trinidad e Tobago – para se transformar em um protagonista da política da Fifa nos últimos anos. McCree salienta a importância das divisões internas da Concacaf – o bloco caribenho, o bloco da América Central e a América do Norte – na importância da construção do poder de Warner, líder do bloco caribenho, responsável por 31 federações nacionais no Congresso da Fifa. É importante destacar que o texto é raro estudo sobre o papel das confederações na construção de uma ordem futebolística internacional. Para uma análise não eurocêntrica do sistema Fifa é preciso revisitar o papel histórico que as confederações desempenharam na produção desse modelo político internacional.

Uma última nota crítica. No livro, o futebol apresentado é tão somente o futebol de espetáculo-masculino. Para aludir a um conceito formulado pelo antropólogo Arlei Damo (2018), trata-se do futebol no singular, e não de futebóis, no plural. Pensar as relações entre diplomacia e o futebol praticado por mulheres, por exemplo, seria uma das formas de pluralizar o termo. A ausência desse tema é percebida pela própria organizadora Heather Dichter, que lamenta não ter sido capaz de incluir texto sobre a Copa do Mundo de Mulheres. Essa, entretanto, não seria a única forma de pluralizar o conceito. Uma dificuldade ainda maior é a de pensar o futebol como diplomacia às margens do sistema Fifa, além da fronteira construída por essa instituição. O desafio é trabalhar formas de futebol não vinculadas à ação estatal e ao sistema Fifa, como, para citar exemplos, o futebol de várzea, o futebol praticado por etnias indígenas, o futebol praticado por grupos LGBTQ e por associações internacionais de trabalhadores. São, em síntese, formas de pensar e fazer o futebol que operam às margens do sistema Fifa e, não raro, são produzidas em plano internacional e/ou transnacional.

A despeito dessa pequena observação, Soccer diplomacy é já obra incontornável aos interessados em investigar a história do futebol e as relações internacionais. Apresentando fontes inéditas e interessantes problemáticas metodológicas, o livro abre rotas importantes de investigação.

Referências

BECK, Peter. Conclusion: “Good kicking” is not only “good politics”, but also “good diplomacy”. In: DICHTER, Heather (ed.). Soccer diplomacy: international relations and football since 1914 Lexington: The University Press of Kentucky, 2020, p. 221-251.

BURLAMAQUI, Luiz Guilherme. A dança das cadeiras: a eleição de João Havelange à presidência da Fifa São Paulo: Intermeios, 2020.

DAMO, Arlei. Futebóis: da horizontalidade epistemológica à diversidade política. FuLiA/UFMG (Belo Horizonte). v. 3, n. 3, p. 37-66, 2018.

DICHTER, Heather . (ed.). Soccer diplomacy: inter­national relations and football since 1914 Lexington: The University Press of Kentucky, 2020.

DIETSCHY, Paul. Creating football diplomacy in the French Third Republic, 1914-1939. In: DICHTER, Heather (ed.). Soccer diplomacy: international relations and football since 1914 Lexington: The University Press of Kentucky, 2020, p. 30-38.

EDELMAN, Robert. An interview with Robert Edelman. Kritika: Explorations in Russian and Eurasian History v. 19, n. 2, p. 417-432, 2018.

HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

KEYS, Barbara. Henry Kissinger: the emotional statesman. Diplomatic History (Oxford). n. 3, p. 587-609, 2011.

SNYDER, Sarah B. Playing on the same team: what international and sport historians can learn from each other. In: DICHTER, Heather (ed.). Soccer diplomacy: international relations and football since 1914 Lexing­ton: The University Press of Kentucky, 2020, p. 18-30.

SUPPO, Hugo. Reflexões sobre o lugar do esporte nas relações internacionais.Contexto Internacional(Rio de Janeiro). v. 34, n. 2, p. 397-433, 2012.

Luiz Guilherme Burlamaqui – Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília (IFB), campus Recanto das Emas. Brasília (DF), Brasil. [email protected].


DICHTER, Heather. (ed.). Soccer diplomacy: international relations and football since 1914.Lexington: The University Press of Kentucky, 2020. 286 p. Resenha de: BURLAMAQUI, Luiz Guilherme. Na encruzilhada: o futebol entre a história política e a diplomacia. Tempo. Niterói, v.27, n.1, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF].

A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica | Mariana Muaze e Ricardo H Salles (R)

MUAZE e SALLES
Mariana Muaze e Ricardo Salles | Foto: Divulgação

MUAZE e SALLES A segunda escravidaoO desembarque do conceito de segunda escravidão na historiografia brasileira encontra importante expressão com a publicação do estudo crítico que, além da apresentação do historiador norte-americano Dale Tomich, reuniu quinze historiadores para o exame da relação entre capitalismo e escravidão no século XIX.

Denominada A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica, a coletânea é resultado dos trabalhos de pesquisas e discussões do grupo interinstitucional “O Império do Brasil e a segunda escravidão”, formado por pesquisadores da Unirio, Mast, UFF, USP, Unifesp, UFJF e UFSC e pelos integrantes do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (Lab-Mundi/USP).

Se o propósito era pensar a porosidade do conceito de segunda escravidão, ele se configura na breve apresentação de Dale Tomich, que nos indica que “segunda escravidão é um conceito aberto que tem o objetivo de repensar a relação entre capitalismo e escravidão e as causas desta última no Oitocentos” (Tomich, 2020, p. 13). Pretendendo sublinhar que a abordagem da segunda escravidão trata “as relações escravistas históricas reais [que] são constituídas […] pela forma das relações senhor-escravo […] por processos de produção materiais específicos (açúcar, café, algodão) […] por sua posição relativa na divisão internacional do trabalho e no mercado mundial […]” (p. 14), realça que a origem do conceito é fruto da “insatisfação com histórias lineares da escravidão que a veem como incompatível com o capitalismo industrial e as ideias liberais de propriedade e liberdade” (p. 13).

É nesse quadro de “escravidão em interação com a construção dos Estados nacionais e com a expansão internacional do mercado escravista” (Muaze, Salles, 2020, p. 19) que se deve colocar o livro organizado por Mariana Muaze e Ricardo Salles. O que primeiro chama a atenção é que a coletânea tem como pilar central “o problema histórico de como a escravidão moldou o capitalismo brasileiro no século XIX e na atualidade” (p. 20). De fato, esse eixo central, colocando problemas, proporciona análises, revisões e novidades que enriquecem o conhecimento que se tem da escravidão.

A obra é dividida em quatro partes. Na primeira, aborda-se a constituição da “Segunda escravidão e o capitalismo histórico em perspectiva atlântica”. Seu mérito reside na estimulante e bem arejada exposição de Leonardo Marques sobre o percurso historiográfico das ideias que compõem o espectro analítico do conceito de segunda escravidão e sobre os desafios de integrar o mundo político e cultural nas narrativas de emergência e destruição da segunda escravidão. Além de contar com o “ensaio de historiografia” de Ricardo Salles, no qual direciona especial atenção para o debate sobre as relações entre capitalismo e escravidão, partindo da consideração de que nos Estados Unidos “o problema dessas relações se apresentou de forma mais aguda” (Salles, 2020, p. 27). Já no último capítulo da primeira seção, Rafael Marquese tece comentários críticos.

A segunda parte, “Segunda escravidão e diversidade econômica e regional”, reúne quatro trabalhos. No primeiro, Luiz Fernando Saraiva e Rita Almico, com o intuito de investigarem a associação entre escravidão e a modernização da economia brasileira no século XIX, identificam as relações entre as economias mercantis escravistas regionais e a segunda escravidão. Em seguida, Walter Pereira direciona especial atenção para o dinamismo econômico do município de Campos dos Goytacases, ao longo da segunda metade do século XIX. As reflexões críticas desses artigos condensam os comentários de Renato Leite Marcondes e Gabriel Aladrén.

Já a terceira parte confere centralidade à relação entre segunda escravidão e o período Colonial Tardio. Valendo-se dos artigos de Carlos Gabriel Guimarães e Carlos Leonardo Kelmer Martins e comentários de Rodrigo Goyena Soares, essa seção combina reflexões epistemológicas e resultados preliminares de pesquisa.

A última seção do livro apresenta discussões metodológicas. O debate gira em torno das possíveis articulações entre o micro e o macro. Em outras palavras, do entrelaçar das propostas advindas da segunda escravidão e da micro-história. Três historiadores, Mariana Muaze, Thiago Campos Pessoa e Waldomiro Silva Junior, se dedicam a esse esforço. No último capítulo, a historiadora Mônica Ribeiro de Oliveira elabora os comentários críticos sobre as proposições metodológicas.

Ricardo Salles, no primeiro capítulo, faz uma longa travessia historiográfica desde Graham, Genovese, Fogel e Engerman aos recentes estudos de Sven Beckert e Seth Rock­man. Retoma tradições de pensamento sobre escravidão e capitalismo: os esforços comparativos entre o “Velho Sul” e o Brasil; o problema das mentalidades ditas “mais racionais” diante dos comportamentos patriarcais de status e poder; a lucratividade, racionalidade e caráter capitalista da escravidão propostas pela New Economic History; os riscos dos excessos de empirismo ou de abstração teórico-metodológica no ofício do historiador; o capitalismo da escravidão de Rockman e Beckert; a centralidade da economia sulista norte-americana no desenvolvimento capitalista; a escravidão nos Estados Unidos face ao pacto político da estrutura de poder federativa; e, no caso brasileiro, o Império do Brasil e sua estrutura de poder unitária, assentada na difusão da escravidão por todo território, alicerçada na hegemonia política e social da fração da classe senhorial da bacia do Paraíba do Sul. E, por fim, a validade instrumental do conceito de segunda escravidão como uma estrutura histórica específica.

Salles aponta que o conceito de segunda escravidão “hibernou” entre 1988 e até fins da década de 1990. Em 1999, de maneira “pioneira e isoladamente” Christhopher Schmidt-Nowara valeu-se do conceito para analisar a escravidão cubana e porto-riquenha no Novo Império Colonial Espanhol do século XIX. Em 2004, o conceito desembarcou no Brasil. Rafael Marquese o empregou em Feitores do corpo, missionários da mente.

No plano da historiografia brasileira, subjacente a essa escolha conceitual, Salles indica que a apropriação do conceito de segunda escravidão relaciona-se diretamente ao “abandono do conceito de capitalismo” pelas correntes historiográficas do “sentido arcaico da escravidão brasileira e a historiografia com ênfase na agência escrava” (Salles, 2020, p. 36). O novo aporte não apenas conduz a análise para o dimensionamento do processo de longa duração e os quadros globais do capitalismo histórico como também para “a discussão da relação entre escravidão e desenvolvimento do capitalismo dependente, periférico e excludente no país” (p. 36).

No capítulo seguinte, cujo objetivo é aprofundar o debate historiográfico sobre escravidão e capitalismo, Leonardo Marques aponta limites e potencialidades do conceito de segunda escravidão. Valendo-se de amplo espectro historiográfico, perpassa o marxismo, a noção de sistema-mundo, Global History e a New History of Capitalism. A exposição reconhece como mérito da segunda escravidão, além de recolocar em cena o tema escravidão e capitalismo, o questionamento que ela oferece contra “o nacionalismo metodológico que ainda informa uma parcela importante da produção historiográfica mundial […]”. (Marques, 2020, p. 55). Para Marques, a contribuição historiográfica essencial é a visão integrada dos mútuos condicionamentos das três principais sociedades escravistas das Américas (Cuba, Brasil e Estados Unidos), pois permite reconstituir o lugar dessas sociedades no capitalismo global do século XIX. Tomando por base essa perspectiva, indica que, diante desse enquadramento analítico, ultrapassa-se o conceito de segunda escravidão, pois, nesse caso, “o procedimento sugerido por Tomich é mais importante do que o próprio conceito […]” (Marques, 2020, p. 68).

Como resultado dos dois capítulos iniciais, Rafael de Bivar Marquese propõe reflexões historiográficas sobre a escravidão histórica e o capitalismo histórico. Nesse debate, ganham contornos as divergências entre as interpretações de Ricardo Salles e Leonardo Marques. O dissenso centra-se na tensão entre o lugar dos Estados nacionais na especificidade das trajetórias dos espaços escravistas das Américas e a perspectiva de que o capitalismo como sistema transpõe fronteiras políticas e combina múltiplas formas de trabalho compulsório. Marquese sublinha, de um lado, a importância da profunda descontinuidade das trajetórias dos espaços escravistas na virada do século XVIII para o XIX, a “segunda escravidão” e, de outro, a integração da economia-mundo, novos espaços escravistas e as relações de produção, distribuição e consumo. Essa afirmativa desloca o olhar para as totalidades como interdependências mútuas, tais como as relações entre mercado mundial, divisão internacional do trabalho e o fenômeno do “ciclo britânico de acumulação”.

É nesse quadro do pensamento econômico que a coletânea avança para a segunda parte “Segunda escravidão e diversidade econômica e regional”. Os capítulos representam não apenas esforços analíticos que visam examinar de maneira integrada economias mercantis escravistas regionais, inovações tecnológicas, indústrias e segunda escravidão mas também nos revelam uma agenda de pesquisa, como nota Renato Marcondes. O texto “Raízes escravas da indústria brasileira” procura mapear a persistência da escravidão, diversidade regional e modernização da economia brasileira nos séculos XIX e XX. Com enfoque regional, o capítulo seguinte, de autoria de Walter Pereira, analisa a dinâmica econômica e da escravidão na bacia do rio Paraíba do Sul, suas atividades agrícolas e bancárias, inovações tecnológicas, ferrovias, embarcações a vapor e bondes.

Ao longo da terceira parte, no primeiro artigo de Carlos Gabriel Guimarães, o que se verifica é uma grande riqueza de análise que, apesar da advertência do autor que “as pesquisas nos arquivos ainda estejam no início”, revela a especificidade da inserção dos negociantes ingleses Joseph e Ralph Gulston e suas conexões globais financeiras e comerciais, em especial, com a comunidade mercantil lisboeta, carioca e africana.

Numa outra proposta, intitulada “O anacronismo de um atavismo? A propósito da segunda escravidão sob a égide mercantilista”, o historiador Carlos Kelmer Martins enfatiza, do ponto de vista teórico e metodológico, as interseções e diálogos entre as premissas do conceito de segunda escravidão, do mercantilismo e da complexidade política, social, cultural e econômica do sistema mundial setecentista. Rodrigo Soares, responsável pelos comentários críticos, considera que o mérito de Kelmer Martins “está na percepção da desigualdade entre as sociedades ou no seio de cada uma, como decorrência de uma forma combinada integrada” (Soares, 2020, p. 226).

Na quarta e última parte, intitulada “Segunda escravidão, micro-história e agência”, o que está em jogo no par macro e micro é um redimensionamento dos objetos e questões. Em todos os capítulos a abordagem é convergente. Reafirma-se o ofício do historiador como possibilidade de articulação da dimensão macroestrutural aos elementos da micro-história, assim como se procura sofisticar as pesquisas a partir do conceito de segunda escravidão. Mariana Muaze aponta caminhos para superar a incompatibilidade fundante entre a micro-história e a segunda escravidão. Em outra chave, Thiago Pessoa conjuga análise empírica, decorrente dos resultados de pesquisa no Arquivo Nacional, a abordagem metodológica da micro-história e as contribuições do conceito de segunda escravidão. Nesse movimento, valoriza as contribuições da redução de escala e as potencialidades da perspectiva global a fim de examinar a classe senhorial do Império do Brasil, as redes de negócios e sociabilidade, o complexo cafeeiro, o tráfico e a escravidão.

Por essas razões, Waldomiro Lourenço da Silva Júnior afirma que a segunda escravidão, como conceito analítico que abrange zonas de plantação mais dinâmicas e capitalizadas da economia global, em especial, no Brasil, o complexo cafeeiro, não estaria invalidada por não contemplar a escravidão urbana e portuária, a produção com pequenas escravarias voltadas para o abastecimento em Minas Gerais ou a indústria baleeira catarinense. Para o autor, a validade da noção de segunda escravidão configura uma “questão elementar de epistemologia” em que “a validade cognitiva de uma categoria de análise não se limita necessariamente às constatações empíricas que respaldaram a sua formulação” (Silva Júnior, 2020, p. 282). Portanto, as evidências da escravidão em economias como Minas Gerais, Santa Catarina ou de regiões portuárias ou urbanas seriam decorrência direta da dinâmica da segunda escravidão: “as outras formatações da escravidão só persistiram a longo prazo no Brasil porque existiu uma base material nuclear suficientemente sólida (a base da segunda escravidão), que garantiu, no campo político, as condições para sua perpetuação” (p. 282).

Como bem lembra Monica Ribeiro de Oliveira, apesar das contribuições de Muaze, Silva Júnior e Pessoa, os desafios postos pela articulação da micro-história à perspectiva macro permanecem em aberto.

De modo geral, o conceito de segunda escravidão, subjacente a todos os trabalhos do livro, nem sempre alcança o objetivo de dotar a obra de relativa unidade e também da porosidade conceitual desejada por Dale Tomich na apresentação. No entanto, certamente, alguns trabalhos ganharão espaço na historiografia, mais pelo valor do debate apresentado do que pelas conclusões.

É importante compreender que a obra reflete, ao mesmo tempo, o esvanecimento da história econômica, hegemônica por décadas na academia brasileira e em seus cursos de graduação e pós-graduação em história, e também sintetiza uma retomada.

Apesar dos novos horizontes metodológicos, a formulação do conceito de segunda escravidão (1988) é oriunda, em parte, no caso da interpretação sobre a economia brasileira, das ideias encontradas em Formação econômica do Brasil (1959) de Celso Furtado, um dos autores citados por Tomich no capítulo fundador do conceito de segunda escravidão. É no mínimo curioso que nenhum dos capítulos de A segunda escravidão e o império do Brasil em perspectiva histórica mencione o livro de Celso Furtado em suas referências bibliográficas, nem o possível impacto da interpretação de Furtado na gestação conceitual de segunda escravidão, ou associe o fato de que concepções furtadianas ganharam nova roupagem historiográfica.

Referências

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil [1959]. 15a ed. São Paulo: Editora Nacional, 1977.

MARQUES, Leonardo. Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 53-74.

MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

SALLES, Ricardo H . A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão: ensaio de historiografia. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 27-52.

SILVA J JÚNIOR, Waldomiro Lourenço da. A segunda escravidão: o retorno de Quetzalcoatl? In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 279-285.

SOARES, Rodrigo Goyena. Comentário: benefícios e limites da segunda escravidão como método para uma razão dialética. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria , 2020, p. 223-238.

TOMICH, Dale. The “second slavery”. In: TOMICH, Dale. Through the prism of slavery Lanham: Rowman & Littlefield, 2004, p. 56-71.

Télio Cravo – Pós-doutorando em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). São Paulo(SP), Brasil. [email protected].


MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo H. . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica.São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. 298p. Resenha de: CRAVO, Télio. Desembarque da segunda escravidão na historiografia brasileira. Tempo. Niterói, v.27, n.1, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF]

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Poder y naturaleza humana – PLESSNER (Tempo)

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Detalhe da Capa de Poder y naturaleza humana
Poder e naturaleza humana H Plessner

PLESSNER, Helmuth. Poder y naturaleza humana: ensayo para una antropología de la comprensión histórica del mundo. Edición de Kilian Lavernia y Roberto Navarrete. Traducción de Kilian Lavernia, Madrid: Guillermo Escolar Editor, 2018. 128p.p. Resenha de: MATA, Sérgio da. Ser humano: político por natureza? Tempo. Niterói, v.26, n. 1, jan./abr. 2020.

No abarrotado gabinete de Reinhart Koselleck, em frente às pastas com o material empregado num seminário sobre os campos de concentração, ministrado entre 1968 e 1969, repousava uma foto sua. Não por acaso: ele elucidara parte das razões ­profundas que haviam levado seu país ao caminho de destruição do qual aqueles dois homens, um na condição de perseguido e outro na de combatente, só por pouco se salvaram. Koselleck (2014, p. 335, 347) enalteceu publicamente a sofisticação de suas análises histórico-sociológicas, a “visão extraordinária do passado e do futuro” que contém e sua aversão a toda forma dualista de pensar, própria de épocas em que prevalece a “tentação de seguir trilhas ideológicas baratas, que podem ser percorridas sem nenhum custo”.

O personagem da foto era Helmuth Plessner, cujas obras principais enfim começam a ser publicadas em inglês, francês e espanhol. Seu nome está indissociavelmente ligado à antropologia filosófica, uma corrente teórica que pretende responder à questão que, dizia Kant, encerra todos os grandes problemas da filosofia: o que é o ser humano? Se, formalmente, o papel de pioneiro coubera a Max Scheler, é consensual que em Plessner a antropologia filosófica atinge um patamar inteiramente novo. Depois de se familiarizar com neokantianos de prestígio como Max Weber (cujo círculo chegou a frequentar) e Paul Hensel, de acompanhar os cursos de Edmund Husserl em Göttingen e realizar sua livre-docência em Colônia com o filósofo da biologia Hans Driesch, Plessner estava como que predestinado a elaborar uma resposta radicalmente nova à pergunta pelo humano. A partir de Kant e de Dilthey, ele propõe uma rearticulação entre natureza e cultura na qual o humano não aparece como animal simbólico, nem, como infelizmente se tornou comum, mero epifenômeno de algum determinismo neuronal. Para Plessner, o humano, quando sistematicamente comparado às formas de vida vegetal e animal, não se revela como superior, mas como excêntrico: está simultaneamente além e aquém da natureza; tem um corpo e sabe que é um corpo. Graças à sua posicionalidade excêntrica, o ser humano pode ser considerado “constitutivamente apátrida” (Plessner, 1975, p. 310), isto é, incapaz de produzir sucedâneos culturais capazes de compensar plena e duradouramente esse desenraizamento constitutivo de si mesmo. “Quem quiser ir para casa, para a pátria, para o aconchego, tem de sacrificar-se à fé. Já aquele que se aferra ao espírito, porém, não retorna” (Plessner, 1975, p. 342).

Nas primeiras linhas de Poder e natureza humana, o autor afirma que a questão central da antropologia política é a de saber “até que ponto a política (…) pertence à essência do ser humano” (Plessner, 2018, p. 33). Para Plessner não há como desvincular entre si as questões do político e da historicidade, e seu argumento é construído a partir de uma tripla interlocução: uma negativa (a ontologia de Heidegger) e duas positivas (a teoria do político de Carl Schmitt e a epistemologia vitalista de Georg Misch). Em absoluto se trata, como veremos, de realizar uma síntese entre as perspectivas dos dois primeiros autores, que, aliás, reagiram imediatamente ao livro de Plessner. Na segunda edição de O conceito do político, de 1932, Schmitt (2018, p. 184) evoca Poder e natureza humana, considerando-o “uma antropologia política em grande estilo”. Estudos recentes (Ott, 2012Grossheim, 2018) mostram que, embora tenha omitido o nome de Plessner em tudo o que publicou, Heidegger não apenas leu seus livros como reviu, em razão deles, algumas de suas próprias posições, incorporando conceitos cunhados por seu jovem crítico.

O objetivo de Plessner, como foi dito, é sustentar a tese de que o político e o humano estão inscritos um no outro, de maneira que a aversão à política, secularmente difundida nos setores médios da sociedade alemã, assentaria numa incompreensão profunda da natureza humana. A antropologia política não privilegia o nosso suporte biológico, nem se confunde com uma abordagem de tipo idiográfico (Peirano, 1998). Como subcampo da antropologia filosófica, para Plessner ela “abarca tanto o psíquico como o espiritual, o individual como o coletivo, tanto o coexistente num dado lapso temporal como o histórico” (p. 41).

Mas como chegar ao entendimento da essência do humano sem cair na armadilha das autoprojeções, por óbvio cultural e historicamente situadas? De uma sociedade, a europeia, que ao longo dos séculos desenvolveu uma porosidade considerável em relação à alteridade, e cuja ciência estava ao menos formalmente atravessada pelo sentimento de igualdade “de tudo o que possua um rosto humano”, dever-se-ia esperar que fosse capaz de se abster da própria absolutização (p. 42). Tal dificuldade não é a única e talvez nem mesmo seja a principal. Mais decisivo é saber se a questão da essência do humano deve ser perseguida empiricamente ou aprioristicamente. Ambos os caminhos encerram dificuldades próprias. Bem familiarizado com o pensamento de Husserl, Plessner sabia que “uma teoria empírica da essência é um absurdo” (p. 46). O procedimento a priori não é menos problemático. Scheler e Heidegger haviam tentado estabelecer ou identificar uma relação estável entre a essência do humano e determinadas estruturas formais e/ou dinâmicas. O primeiro, sabidamente, não foi capaz de livrar-se de premissas metafísico-religiosas. Submetida à prova da interculturalidade, também a “analítica do Dasein” se revela uma autoprojeção não apenas ocidental, mas cristã do humano (de resto evidente em sua antropomorfização da escatologia). Embora tenha pretendido “manter-se aberta face à vastidão de culturas e épocas”, a teoria de Heidegger redunda na verdade em um “estreitamento de seu campo visual como consequência de seu apriorismo metodológico”. A consequência necessária é uma “absolutização de determinadas possibilidades humanas” (p. 52-53; grifo nosso).

Plessner percebe que a tentativa de se chegar à essência do humano forçosamente leva a um autoenredamento. Aqui, ele acrescenta algo novo ao conceito de “posicionalidade excêntrica” desenvolvido em seu livro de 1928 (Plessner, 1975) sobre Os níveis do orgânico e o ser humano: o que é mais característico do ser humano não é propriamente uma essência, mas sim uma disposição fundamental. Ele é uma forma de vida “aberta”. Para encontrar uma unidade qualquer por detrás de toda sua imensa diversidade cultural, não haveria caminho outro senão o de pensá-lo a partir da categoria da insondabilidade (cunhado por Misch, o termo Unergründlichkeit significa algo como inescrutabilidade ou “infundamentabilidade”). O que significa dizer que o humano é insondável? Plessner recorre a Dilthey, no qual busca nem tanto o avesso do “fanatismo da exatidão”, mas a forma específica por meio da qual as ciências humanas formulam suas questões. Diferentemente das ciências naturais, que estão por assim dizer condenadas a responder suas perguntas – qualquer que seja o experimento empregado, a hipótese de trabalho inicial será confirmada ou refutada -, o mesmo não aconteceria nas humanidades. As ciências do homem não dispõem de quaisquer garantias de que atingirão seu fim cognoscitivo último; suas perguntas são e permanecem abertas. Seus objetos são insondáveis “por natureza”, e suas perguntas, perguntas em aberto. O constante deslocamento de seu horizonte cognoscitivo as impede de atingir o mesmo grau de estabilidade das ciências naturais. O que para estas seria renúncia – renúncia a oferecer respostas “definitivas” – é nas humanidades renúncia criativa, única atitude epistêmica apropriada para o tratamento de “realidades inconclusas” (p. 74).

Quando o olhar prospectivo se desloca momentaneamente para trás, a abertura humana para o agir se converte numa espécie de poder sobre o passado. E dado que “cada geração atua de maneira retroativa sobre a história”, o passado se converte em algo “inacabado, aberto e eternamente renovado”. Plessner vê no princípio da insondabilidade “a concepção ao mesmo tempo teórica e prática do ser humano como ser histórico e portanto político” (p. 76; grifo nosso). Ao dar-se conta da própria historicidade, o pensamento se enreda num duplo movimento – ele se sabe produto de uma história e, ao mesmo tempo, uma potência que reincide sobre ela e é capaz de reconfigurá-la.

Ver na “infundamentabilidade” o fundamento da condição humana implica, note-se bem, “abdicar da posição de predomínio do próprio sistema de valores e categorias” (p. 78). Segundo Plessner, tal movimento não deve ser visto como uma perda, mas, antes, como algo próprio de sociedades seguras de sua capacidade de futuro. A pergunta pelo ser humano deve permanecer em aberto, mantendo-se a salvo da tradicional inclinação de nos projetarmos enquanto critério e medida universais.

Incapaz de esclarecer o próprio fundamento, o ser humano é “possibilidade”, se reconhece “condicionante da história e condicionado por ela” (p. 82). Ao desenvolver sua consciência histórica, ele se dá conta de que é poder. Ver a si mesmo como poder significa para Plessner “necessariamente lutar por ele”. A alteridade, porém, não se resume ao inimigo nem pode ser claramente delineada. A fronteira entre identidade e alteridade, amigo e inimigo, não pode ser fixada. Para além de Schmitt e muito antes de Foucault, Plessner conclui que o político “atravessa todas as relações humanas” (p. 86). Assim, e como necessidade que brota “da constituição fundamental do ser humano”, o político torna-se seu “destino secreto”. Em “suas milhares de formas” possíveis, o adversário poderia ser definido como qualquer um que seja nocivo a meus interesses (p. 87). O ser humano vive cindido entre a necessidade de ser audaz e o temor ante ameaças que parecem brotar de todos os lados. Ele é poder, mas uma espécie de poder incapaz de atingir um porto inteiramente seguro. É força, mas sabe que é “artificial ‘por natureza’” e que “nunca está em equilíbrio” (p. 90). Decodificar o humano a partir do princípio da insondabilidade implica, enfim, dar pleno relevo ao “primado do político para o conhecimento da essência do ser humano” (p. 92), sem com isso cair no equívoco – ou na tentação – do essencialismo.

Poder e natureza humana não é apenas a ampliação das descobertas feitas em Os níveis do orgânico e o ser humano. Este ensaio pode ser lido como uma refutação das pretensões de uma filosofia, a de Heidegger, de se colocar na condição de filosofia primeira. Plessner a considera autocontraditória (p. 96), e mais, “perigosa e nociva” (p. 97). A “radicalização do conceito de sujeito” em Heidegger prolonga a tradição do dualismo cartesiano, não obstante sua pretensão de “destruir” toda tradição. Trata-se de uma reatualização do gnosticismo e, como tal, avessa à necessidade de salvaguardar a realidade do que é externo a nós mesmos. Plessner vê na “analítica do Dasein” um erro de princípio, o de tentar tornar fechada a pergunta pela essência do humano. O jargão da autenticidade revela incapacidade de se admitir o fato de que o humano bem pode optar pela impotência. Caso queira estar à altura do humano, a filosofia precisa reconhecer que, enquanto homo duplex, não raro nos inclinamos pela paradoxal negação de nossas próprias possibilidades. Pois o humano, diz Plessner, é também e sempre “o outro de si mesmo” (p. 115; cf. Plessner, 2009).

Resta saber como se dá o salto que leva dessa disposição intrínseca à formação das associações políticas, ou seja, como esse fato antropológico fundamental adquire expressão societária. Inegavelmente marcado pela pesada atmosfera de inícios da década de 1930, Plessner afirma que tal vinculação se dá por meio do pertencimento a um “povo”, e, por fim, à sua organização em bases nacionais.

Ao leitor que considere essa teoria como especulativa do início ao fim, convém lembrar que aquele que a concebeu, zoólogo de formação, não minimiza em momento algum sua crítica ao dualismo cartesiano: “Toda teoria, seja ontológica ou hermenêutico-biológica, que queira investigar o que faz do ser humano um ser humano, e que em seus métodos ou em seus resultados ignore a dimensão natural da existência humana, ou que a minimize como o não autêntico (…), considerando-a secundária para a filosofia ou para a vida, é falsa, porque demasiado frágil em seu fundamento, demasiado unilateral em seu desenho e dominada, em sua concepção, por preconceitos religiosos ou metafísicos” (p. 119). Cindido entre natureza e cultura, o ser humano está condenado a conduzir sua existência “sem saber qual dos lados acaba prevalecendo” (p. 120). Sua gradativa organização em comunidades políticas ou Estados visaria compensar essa fragilidade constitutiva, mitigando seus efeitos.

Plessner chega à conclusão de que o político está inscrito na própria condição humana, e isso bem antes que autores importantes da época (pense-se no caso de Hannah Arendt) realizassem seus respectivos political turns. Ele percebeu que um dos problemas centrais de Ser e tempo estava em legitimar uma já antiga tendência ocidental-cristã à subjetivação excessiva, em que a interioridade do ser aparece como o polo antagônico de uma “esfera pública degenerada”, e cujo resultado último é o indiferentismo político (p. 123). Uma das causas da tragédia alemã, cujo explosivo potencial Plessner evidentemente não podia antecipar em 1931, quando publicou seu livro, era o que ele chama de “a indiferença dos intelectuais face à política e sua trivialização através da filosofia” (p. 124).

Uma simples resenha não pode ter a pretensão de realizar uma discussão aprofundada das possibilidades e dos eventuais limites de uma antropologia filosófica do político como a proposta por Plessner, mas bastará assinalar aqui um ou outro aspecto que consideramos dignos de nota. Não se pode deixar de encarar com certa dose de ceticismo a tendência, volta e meia presente na argumentação, a se desontologizar o passado. A manutenção do fosso metodológico entre ciências humanas e ciências naturais não indica, ainda que num plano distinto, a tremenda resiliência daquele mesmo dualismo cartesiano que Plessner pretende ultrapassar? Soaria absurdo subscrever, hoje, a ideia de que perguntas científico-naturais sejam inteiramente “fechadas”, e muito menos que nas ciências humanas a demanda por explicação tenha se tornado uma relíquia epistemológica. Se de fato o político está inscrito na natureza humana, não será exagerada a preocupação com o indiferentismo? O processo por meio do qual o político gradativamente se institucionaliza não nos parece fundamentado o suficiente por Plessner; nem é fácil entender como se dá, em sua obra, uma inflexão significativa a respeito do humano, que no livro de 1928 aparece como “constitutivamente apátrida”, e em 1931 como “vinculado a um povo”.

Concluamos esta lista, que já vai longa. Dentre as patologias do político não será a hipertrofia tão grave quanto a neutralização? E nem falamos de totalitarismo, mas de algo que pode, talvez, se revelar igualmente perigoso. Uma deformação que nada tem de extracotidiana, que não raro é positivamente valorada e, assim, legitimada nos meios intelectuais: o radicalismo, fenômeno ao qual Plessner dedicou algumas páginas notáveis nos primeiros anos da República de Weimar. “O característico do radicalismo é a falta de prudência, sua perspectiva é a infinitude, seu pathos o entusiasmo, seu temperamento o ardor”. Dualismo cego e orgulhoso de sua cegueira, ele significa “a aniquilação da realidade dada em nome da ideia, seja racional, seja irracional” (Plessner, 2012, p. 31, 35).

Resta evidente que tais dúvidas, como outras que possam surgir de um escrutínio rigoroso do livro de Plessner, tendem antes a confirmar o caráter indiscutivelmente aberto de todas as perguntas que digam respeito ao humano, a impossibilidade de chegarem a seu termo, enfim: sua Unergründlichkeit. Uma das virtudes inegáveis da antropologia filosófica de Plessner, à medida que admite a ambiguidade constitutiva do ser humano, está em trilhar um caminho intermediário, ou antes conciliador, entre extremos. Não há por que optar entre universalismo e perspectivismo, seja este ameríndio ou não. Diante do atual esgotamento teórico e político da tendência pós-estruturalista à sobrevalorização da linguagem e do “anything goes”, diante dos riscos representados tanto pelas ambições desmedidas da neurociência quanto pelo assim chamado pós-humanismo, a senda aberta por Poder e natureza humana mantém-se, como poucas antes e depois dela, teoricamente robusta e intelectualmente produtiva.

Sérgio da Mata – Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Mariana(MG), Brasil. [email protected].

Referências

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KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, 2014. [ Links ]

OTT, Konrad. “Man muss sich einschalten”: wie Plessner Heidegger aufforderte, politisch aktiv zu werden. Zeitschrift für philosophische Forschung(Frankfurt am Main). v. 66, n. 3, p. 448-459, 2012. [ Links ]

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PLESSNER, Helmuth. Límites de la comunidad: crítica al radicalismo social. Madrid: Siruela, 2012. [ Links ]

PLESSNER, Helmuth. Poder y naturaleza humana: ensayo para una antropología de la comprensión histórica del mundo. Edición de Kilian Lavernia y Roberto Navarrete. Traducción de Kilian Lavernia. Madrid: Guillermo Escolar Editor, 2018. [ Links ]

SCHMITT, Carl. Der Begriff des Politischen: synoptische Darstellung der Texte. Berlin: Duncker und Humblot, 2018. [ Links ]

Juca Paranhos: o Barão do Rio Branco – SANTOS (Tempo)

SANTOS Luís Cláudio Villafañe G luisclaudiovillafanegsantos wordpress com
Luís Cláudio Villafañe / luisclaudiovillafanegsantos.wordpress.com

SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G. Juca Paranhos: o Barão do Rio Branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Resenha de: SOARES, Rodrigo Govena. Tempo, v.25 n.3 Niterói set./dez. 2019.

Não são poucas as anedotas que fizeram de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco (1845-1912), um personagem festejado de maneira praticamente unânime pela historiografia. Feito raro para um diplomata, a considerar que seus homólogos de maior prestígio – tais como Duarte da Ponte Ribeiro (1795-1878) e Paulino José Soares de Sousa (1807-1866), à época do Império; ou Oswaldo Aranha (1894-1960), San Tiago Dantas (1911-1964) e Azeredo da Silveira (1917-1990), na República – costumam figurar apenas tangencialmente na história dos grandes acontecimentos nacionais. Estudioso compulsivo da formação lindeira do Brasil, o barão do Rio Branco, pelo que conta a história, tinha nos mapas um pêndulo que ritmava sua vida política e biológica. Quando já velho e debilitado pelo consumo exagerado de tabaco e por uma alimentação tanto desequilibrada quanto irregular, era surpreendido por rotineiras visitas médicas, adormecendo nos volumes cartográficos que, pelo resto, consolidavam sua glória. “Ontem à noite, quis examinar mais de perto os pormenores de um mapa que desenrolei no chão e acabei por dormir em cima dele” (apud Lins, 1945, p. 622), teria dito o paciente, ainda despertando, a um médico cada vez mais preocupado.

No cotidiano das ruas, o barão teria gozado de igual prestígio. Não há capital brasileira que não carregue ao menos uma avenida, rua ou beco com o nome de Rio Branco. Quiçá de forma ainda mais expressiva, não houve presidente qualquer capaz de demover o povo brasileiro de sua principal celebração nacional, qual seja, o carnaval. Sequer nos difíceis anos de Arthur Bernardes (1922-1926), do Estado Novo (1937-1945) ou da ditadura escancarada (1968-1974) a proeza foi alcançada. Nisso Paranhos também teve êxito. Ou quase, porque, embora sua morte, em fevereiro de 1912, tenha levado o governo de Hermes da Fonseca (1910-1914) a postergar o reinado de Momo para meados do ano como manifestação de pesar nacional, a população não resistiu, e dois carnavais foram comemorados em um semestre apenas. De todas as formas, o quase feito terminou sendo um duplo feito.

A biografia de Paranhos escrita pelo diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos apresenta um personagem diferente. Sem minimizar a importância do barão para a política externa brasileira, emerge das páginas de Villafañe um Rio Branco múltiplo, porque a um só tempo Juca, José Maria, Paranhos, Júnior e Barão. A enumeração de nomes ou apelidos não se presta apenas no sentido das fases biológicas do personagem, que o fizeram transitar de um Juca boêmio para um José Maria bacharel, a um Paranhos deputado e, em seguida, Júnior, porque agora diplomata, porém sob a silhueta de seu pai, o visconde do Rio Branco (1819-1880), para final e paradoxalmente ser um barão na República. Quando assumiu em 1902 a chancelaria, que ganhara havia pouco o nome de Itamaraty em referência ao palácio que passou a albergá-la, Rio Branco acumulava vasta experiência. Nesse sentido, a narrativa fundamentalmente cronológica de Villafañe, permeada por um ou outro flashforward cinematográfico, expressa, antes de mais nada, uma acumulação de práticas e saberes do biografado, não sem as respectivas contradições, hesitações e sombras do passado. A divisão da obra em três partes – “Juca Paranhos na sombra do pai (1845-1876)”, “A redenção do boêmio (1876-1902)” e “Um saquarema no Itamaraty (1902-1912)” – sugere esse acúmulo linear somente em aparência. Dá-se, então, um barão mais incoerente, vaidoso, obsessivo, ansioso e por vezes cabeça-dura do que aquele dos textos largamente mais hagiográficos de Álvaro Lins (1945) e de Luís Viana Filho (1959).

Afora a revisão sobre a personalidade do barão, as principais contribuições historiográficas – discutidas na terceira e última parte da obra – dizem respeito ao tempo do barão na chefia do Ministério das Relações Exteriores. Villafañe concede especial ênfase a três temas: a interdependência entre política interna e externa, o estabelecimento de uma – suposta – aliança não escrita com os Estados Unidos e a resolução pacífica das disputas lindeiras. São essas as discussões que nos interessam sobremaneira nesta resenha.

Em vez de insistir na oposição entre políticas interna e externa, Villafañe funde-as, vislumbrando a ação diplomática como política pública, cujos entrelaçamentos com os eventos domésticos a explicam, causam e condicionam. De entrada, portanto, há uma revisão pela forma e pelo conteúdo da historiografia diplomática, que, a maneira de textos clássicos, como o de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno (2008) ou do mais antigo Delgado de Carvalho (1959), tende a isolar o Itamaraty das tensões políticas internas. Nisso, Villafañe assemelha-se à posição de Rubens Ricupero, marginalmente na rápida biografia do barão que este também escreveu e substancialmente na recente obra sobre o lugar da diplomacia na formação nacional (Ricupero, 20002017). Assim, e para citar apenas alguns exemplos, o barão de Villafañe não conduziu um Itamaraty ausente dos traumas causados pela campanha civilista de Rui Barbosa (1909-1910) ou pela Revolta da Chibata (1910), e foi ativo, em uma chave mais propositiva do que reativa, em seu relacionamento com chefes partidários de magnitude nacional, como Pinheiro Machado.

Se não há negação ontológica entre políticas externa e interna, tampouco haveria, nas ponderações de Villafañe, um Itamaraty autônomo em relação ao governo. O espírito corporativo do ministério, malgrado sua irrefutabilidade, não o tornaria responsável somente perante suas idiossincrasias. Pelo contrário, e em especial na gestão Rodrigues Alves (1902-1906), o barão esteve longe de ter independência decisória na condução da política externa, inclusive no que se refere a assuntos burocráticos do ministério. Particularmente problemática foi a condução das negociações de limites com a Bolívia, que resultou na assinatura do Tratado de Petrópolis (1903). As concessões feitas pelo barão – nomeadamente, o pagamento de 2 milhões de libras, a construção da ferrovia Madeira-Mamoré e a cessão de pequena parcela territorial -, de forma a angariar a posse de um território também disputado, pelo menos em parte, pelo Peru, teriam sido excessivas no olhar de seus principais desafetos. O tratado, ao qual o barão vinculou, mais à frente, uma áurea de completa vitória, poderia ter ido a pique caso a negociação com o Peru não tivesse sido exitosa. As tratativas com Lima tardaram pouco mais de cinco anos e quase empurraram o Rio de Janeiro para uma guerra de resultados incertos. Como se não bastasse, o sucesso alcançado com o Peru deveu-se a fatores exógenos ao Brasil, visto que dependia do laudo arbitral da rival Argentina sobre a fronteira entre o Peru e a Bolívia. Não à toa, a trama que conduziu à assinatura e à ratificação do Tratado de Petrópolis contemplou desentendimentos entre os negociadores brasileiros, como também resistências da imprensa e do governo ao barão do Rio Branco.

Do ponto de vista teórico, e ampliando a discussão sobre a autonomia do Itamaraty na sucessão de governos que marcou a gestão barão e sobre o lugar da chancelaria no tipo de Estado que caracterizou o Brasil da Primeira República, Villafañe não identifica Rio Branco a uma mera expressão dos interesses econômicos dominantes à época, malgrado as irrefutáveis interdependências. Para reabilitar uma antiga discussão metodológico-política da década de 1960, o autor coaduna-se com a interpretação de Nicos Poulantzas (1968), segundo a qual o Estado detém autonomia relativa, agregando-se às contradições de uma restrita pluralidade de classes ou frações de classe economicamente preponderantes, e não forçosamente sucumbindo a uma classe apenas, homogênea e hegemônica. A distinção entre governo e Estado não poderia ser mais importante nesse diapasão. O Itamaraty, indissociável do governo, somente agiria dentro de constrangimentos estruturais impostos pelo tipo de Estado oligárquico constituído especialmente com a presidência de Campos Sales (1898-1902). No concreto, o barão não teria sido um chanceler a serviço de oligarquias cafeeiras perfeitamente coerentes, mas tampouco teria atuado contrariamente a elas. Rio Branco, dito de outra maneira, não tinha margem para opor-se a uma política externa do “café”, ou, ainda, ao americanismo característico da Primeira República, mas soube negociar com os atores domésticos – e internacionais, naturalmente -, de forma a alcançar o que era possível nos limites daquele momento.

Não por acaso, o americanismo do barão ganha nova interpretação com Villafañe. Não foi o posterior patrono da diplomacia brasileira o primeiro a entabular a virada americanista, que veio com a Proclamação da República. Na mesma lógica dos constrangimentos estruturais, o plano internacional da análise biográfica ganha expressão, e a opção americanista é percebida em uma via de mão de dupla, porém assimétrica. Dada a dependência do setor cafeeiro em relação ao mercado americano – que, de resto, explica pelo menos em grande parte a insistência dos republicanos, já em 1889, pela aproximação com Washington -, a potência então ainda emergente do Norte vislumbrava no Brasil um espaço hemisférico singular para aprofundar sua corrida industrial. Ao chegar à chancelaria, o barão não rompeu com um americanismo alegadamente ingênuo dos primeiros tempos republicanos, mas o aprofundou e o matizou nos limites das estruturas internas e externas. Não há, dessa forma, oposição entre o que haveria sido pejorativamente ideológico e, com o barão, positivamente pragmático, mas uma reinterpretação que enxergava em Washington, a um só tempo, um incontornável espaço comercial e uma garantia para a segurança nacional.

Na leitura de Villafañe, o barão dava compreensão hierárquica às relações hemisféricas, e quanto a isso a proximidade com os Estados Unidos não poderia senão beneficiar o Brasil em suas rivalidades regionais, especialmente com a Argentina. Particularmente importantes, na tônica de aproximação, teriam sido as Conferências Pan-americanas do Rio de Janeiro (1906) e de Buenos Aires (1910). Na primeira – não à toa realizada no Palácio Monroe, que se erguia para a ocasião -, o Itamaraty encarregou-se de assinalar aos vizinhos do Brasil uma hipotética e irremediável aliança com os Estados Unidos; na segunda, o barão sugeriu, sem concretizá-lo, um endosso continental à Doutrina Monroe, também como forma de assinalar postura amigável em relação a Washington em um tempo de intensificação, embora relativa, das relações dos Estados Unidos com a Argentina. Malgrado ajustes interpretativos possíveis, conforme se discutirá mais adiante, Villafañe analisa acertadamente os episódios em um quadro de relações não lineares entre Washington e Rio de Janeiro, permeadas por tensões e, sobretudo, pautadas por uma assimetria favorável aos Estados Unidos.

A suposta aliança não escrita com os Estados Unidos cai então rapidamente por terra. A ideia original era de Bradford Burns e foi desenvolvida em contexto histórico de franco interesse brasileiro por uma aproximação irrestrita com Washington (Burns, 1966). Burns, oriundo da Universidade de Califórnia, veio ao Brasil logo após o golpe civil-militar de 1964 e contou com decidido apoio das autoridades nacionais, chegando inclusive a ser condecorado com a Ordem de Rio Branco. A proposta interpretativa, que emoldurava as relações entre o Brasil e os Estados Unidos em um quadro róseo, não se dispôs a elucidar do ponto de vista teórico o sentido de uma aliança não escrita, constituindo-se, pois, em uma seleção de eventos históricos que legitimariam os laços atávicos entre os dois países. Villafañe refuta a interpretação, incluindo na análise momentos de rispidez entre o Brasil e os Estados Unidos tanto no plano bilateral – a exemplo das tensões alfandegárias – quanto no multilateral, à luz do cisma produzido na II Conferência de Paz da Haia (1907).

Integrando a sua análise, então, os momentos difíceis com os Estados Unidos, Villafañe entende que o pensamento diplomático do barão se constituía no tabuleiro complexo das relações internacionais do Brasil. Essa complexidade expressou-se, singular mas não unicamente, nas disputas lindeiras em que Rio Branco esteve envolvido – todas, praticamente, entre 1895 e 1909. Em outras palavras, e aportando documentos novos, como o tratado secreto de aliança militar com o Equador contra o Peru no caso antes referido, Villafañe interpreta as questões de fronteira, incorporando interesses cruzados de Estados direta ou indiretamente envolvidos nas disputas. Os exemplos do Amapá e do Pirara são emblemáticos nesse sentido. No primeiro caso, o litígio entre o Brasil e a França revelou-se bilateral apenas na medida da fronteira contestada e do laudo arbitral. Considerando as tensões sistêmicas próprias à era dos impérios (1870-1914), Villafañe sugere um barão atento às possibilidades de tirar proveito das rivalidades entre a França e a Inglaterra quanto às ambições territoriais desses Estados na América do Sul. O padrão interpretativo, que, em uma adaptação temporal, poderia significar, pelo menos parcialmente, a interdependência complexa de Robert Keohane e Joseph Nye (1977), vale também para o caso da Bolívia – conforme apresentado – e para o britânico; quanto ao último, teriam por demais pesado nos insucessos brasileiros na disputa pelo Pirara as pressões de Londres para que o rei da Itália, anglófilo de pulmão cheio por questões territoriais na África, fosse indicado o árbitro contra o Rio de Janeiro.

Metodologicamente rica e coerente – porque alia a nova história política às novas maneiras de biografar -, a obra de Villafañe tem tudo para demover aquela que, até agora, tinha sido a principal biografia do barão: a de Álvaro Lins. Não obstante, e da perspectiva de uma crítica interpretativa, alguns episódios poderiam estar mais aprofundados, inclusive para que o sentido geral das principais contribuições historiográficas ganhe expressividade. Penso particularmente, neste espaço restrito próprio às resenhas, em dois momentos e em uma caracterização. No que se refere ao primeiro momento, e na mesma trama dos interesses cruzados, há poucos comentários sobre o discurso de encerramento do barão na III Conferência Pan-Americana do Rio de Janeiro. Disse ele, ao concluir sua fala: “aos países da Europa, a que sempre nos ligaram e hão de ligar tantos laços morais e tantos interesses econômicos, só desejamos continuar a oferecer as mesmas garantias que lhes tem dado até hoje o nosso constante amor à ordem e ao progresso”.1 Em uma interpretação possível e, ao mesmo tempo, ancorada nos múltiplos tabuleiros do barão, a referência à Europa em plena conferência pan-americana poderia dar-se como sinal de contrapeso a ações imperialistas que também poderiam vir dos Estados Unidos.

O segundo momento que nos interessa, a modo de crítica, diz respeito à IV Conferência Pan-Americana de Buenos Aires. Na leitura de Villafañe, o endosso do barão à Doutrina Monroe teria origem em sua visão de mundo, segundo a qual “o poder de polícia dos Estados Unidos sobre os países instáveis do continente era não somente justificado como desejável” (Santos, 2018, p. 455). Em uma interpretação alternativa, que Villafañe descarta, a posição de Rio Branco seria uma tentativa de multilateralizar a Doutrina Monroe, de forma a ponderar, no continente, sua aplicação (Fonseca Jr., 2012). Parece-me difícil encontrar nos arquivos documento que ratifique a última interpretação; no entanto, julgo-a mais coerente com o pensamento diplomático do barão. Em outros termos, e reciprocamente ao discurso de encerramento na III Conferência, o americanismo do barão expressava-se, embora não exclusivamente, como mecanismo de compensação ao imperialismo europeu. Da mesma forma, a tentativa de construir um triângulo de paz na América do Sul – constituído pela Argentina, pelo Brasil e pelo Chile – também poderia ser vislumbrada como freio político ao vizinho do Norte. Ou, para usar a teoria das relações internacionais, como um instrumento de balancing.

Por último, refiro-me à caracterização de Rio Branco como um saquarema no Itamaraty. O termo saquarema, menos usual do que o contrário nas fontes primárias, serviu a Ilmar Rohloff de Mattos para designar não apenas o partido conservador, sobretudo nas décadas de 1840 e de 1850, mas também as dimensões sociais e culturais do tipo de Estado que esse mesmo partido havia constituído (Mattos, 1987). Filho de um conservador da segunda geração, o barão talvez tenha carregado, ainda que como contradição, o espírito saquarema que marcou sua formação intelectual. A doutrina do uti possidetis e a das fronteiras naturais, embora de origem colonial, serviram aos saquaremas do Império e ao barão também nos primórdios da República. No entanto, a segunda década republicana em pouco se pareceu ao tempo da direção saquarema (1848-1853), outra expressão de Mattos. O Brasil não tinha sequer a sombra da hegemonia que gozara no Prata; o principal eixo econômico do país havia-se deslocado para São Paulo; a mão de obra não era mais cativa; o Brasil agia multilateralmente, o que o Império abominava; e Washington tomava o posto de Londres. Certo é que o hipotético espírito saquarema do barão poderia emergir fora de seu tempo, mas tampouco é o que nos conta, no fundo, Villafañe. Pelo contrário, e acertadamente, Rio Branco figura em Villafañe como um homem de seu tempo, fazendo história nos limites estruturais do que era então possível.

Saquarema ou, quiçá, republicano malgré lui, o Rio Branco que emerge de Villafañe é, antes de mais nada, um convite aberto ao estudo da história da política externa brasileira. E isso em âmbito universitário, com o qual o autor dialoga, ou para o grande público, constante preocupação no texto agradável, bem-construído, imagético e articulado de Luís Cláudio Villafañe G. Santos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RICUPERO, Rubens. A diplomacia na construção do Brasil. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017. [ Links ]

VIANA FILHO, Luís. A vida do barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959. [ Links ]

1 Revista Kosmos, ano III, n. 8, ago. 1906.

O autor agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo no 2017/12748-0.

 

Rodrigo Goyena Soares

Tempo, v.25 n.3 Niterói set./dez. 2019

O regresso dos mortos: os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (século XVI-XVII) – SÁ (Tempo)

SÁ, Isabel dos Guimarães. O regresso dos mortos: os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (século XVI-XVII). Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2018. 331 pp. Resenha de: FRANCO, Renato. O imenso mundo de Portugal. Tempo, v.25 n.3, set./dez. 2019.

Em 1581, Diogo Ferreira elaborou seu testamento em Sevilha. Não foi o maior doador da Santa Casa de Misericórdia do Porto, mas seu legado surgiu em boa hora, possibilitando à irmandade consolidar-se como uma gestora de ações de caridade, tal como vinha acontecendo em outras regiões do império português, desde fins do século XV, com a criação da primeira Misericórdia, em Lisboa. Nascido no Porto, Diogo fez fortuna em São Francisco de Quito, no Peru, e morreu em Sevilha, onde fez questão de um enterro pomposo, cujo funeral deveria ser acompanhado por ordens religiosas e confrarias, e a memória celebrada por meio de missas e esmolas; em sua cidade natal, até pelo menos 1818, era em seu nome que a Misericórdia ainda financiava o casamento de três órfãs donzelas e auxiliava pobres envergonhados.

A história é extraordinária não apenas pelo que revela, mas também pelo que omite e reinventa: autodeclarado filho legítimo em seu testamento, Diogo parece ter sido criado junto da prole legítima de Pantaleão Ferreira e Ana de Mesquita, membros da elite local, e, provavelmente, era fruto de um relacionamento fortuito do pai. Apesar de conhecerem a história por inteiro, as principais beneficiárias – as meias-irmãs e a Misericórdia do Porto – fizeram vistas grossas à fraude de Diogo, interessadas no quinhão que lhes caberia em troca da discrição sobre a origem pouco honrosa do negociante. Por sua vez, um provável filho ilegítimo de Diogo não se contentara com o que fora estabelecido no testamento do pai; sentindo-se injustiçado, publicamente – quebrando a promessa de silêncio que havia feito a Diogo – exigiu mais dinheiro, além de vestes do rico e aristocrático guarda-roupas do defunto (ver cap. 6).

Essa é uma das muitas trajetórias levantadas por Isabel dos Guimarães Sá em seu mais recente livro, O regresso dos mortos – os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (século XVI-XVII), publicado em 2018 pela Imprensa de Ciências Sociais (Lisboa). O livro, dividido em 10 capítulos, é organizado de tal maneira que os três primeiros elaboram uma espécie de síntese sobre o ordenamento jurídico português sobre heranças e testamentos, a cidade do Porto e sua Santa Casa de Misericórdia nos séculos XVI e XVII e o perfil social dos doadores. Nesses capítulos, a autora traça um panorama que ajuda a explicar como a “economia da salvação” movimentou instituições, bens materiais e pessoas, espalhados por diferentes lugares do império, de modo a fazer cumprir as últimas vontades dos testadores (ver cap. 4).

As histórias contidas na obra são elaboradas sobretudo com base em fontes primárias sob guarda da secular Santa Casa de Misericórdia do Porto. Além de livros de receita e despesa, correspondência interna e deliberações da mesa da irmandade, o fundo mais explorado é dos testamentos e inventários, fontes fartamente utilizadas pela historiografia e que se prestam a diferentes tipos de análise – seriadas, mas também qualitativas -, dada a riqueza de informações que contém. Apesar de ser uma confraria composta exclusivamente por homens, os doadores da Misericórdia também poderiam ser mulheres; doadores de ambos os sexos ofereciam à irmandade quantias oficializadas por meio de escrituras públicas realizadas em vida, ou por meio de testamentos. Trata-se de um universo de 257 doadores de distintos estratos sociais – 139 homens, 92 mulheres, 27 casais – que compõe cerca de 20,6% do total de legatários da Misericórdia para o período. Esse corte, portanto, diz respeito tão somente aos doadores que estiveram ligados aos negócios coloniais, quantificando, de forma inédita, os impactos da expansão para o enriquecimento da Misericórdia do Porto.

No entanto, as contribuições desse livro não estão apenas na natureza das fontes ou mesmo na história da Santa Casa. Um mérito a se destacar é a forma como, a partir de escolhas aparentemente triviais, a autora produz uma narrativa original sobre uma média localidade portuguesa que foi convulsionada por novos padrões de riqueza advindos da expansão oceânica. O cenário é a cidade do Porto, entre os séculos XVI e XVII, e a instituição em foco é a Santa Casa de Misericórdia, mas o que se revela são trajetórias de pessoas espalhadas pelo império que, por meio das fortunas produzidas nos espaços coloniais, forjaram novas formas de experimentar o mundo, relativizando, recriando e produzindo outras sensibilidades a partir de um ecúmeno mais vasto e heterogêneo. Nessa direção, a perspectiva do livro é globalista, afinada com os trabalhos de Sanjay Subrahmanyam (2012) e de Serge Gruzinski (2014) que, ao conectarem experiências, têm reivindicado a “modernidade” da expansão ibérica. No entanto, tal como demonstra Isabel dos Guimarães Sá, aquele mundo posto em contato não recriou apenas sensibilidades, mas experimentou, de modo inédito, uma circulação de bens que alterou os padrões de posse e de consumo material. Esse é um aspecto caro ao livro, tratado com minúcia e erudição por uma das mais consistentes historiadoras de sua geração.

Em boa medida, compreende-se melhor o livro pela trajetória profissional da autora: profunda conhecedora da história das Santas Casas de Misericórdia – e, de modo particular, a irmandade do Porto -, sua perspectiva jamais foi a de uma historiadora regional. A despeito da onda globalista que oportunamente tem proposto experimentações metodológicas ante a banalidade, o exotismo e o fôlego curto de muitos estudos de caso, os trabalhos de Isabel dos Guimarães Sá sempre se caracterizaram pela análise conectada, pela leitura sincrônica dos processos históricos, pelo dimensionamento do espaço geográfico para além das fronteiras nacionais. Foi essa capacidade de relacionar fontes e bibliografias de ponta, aliada ao grande talento analítico, que rendeu, desde os anos 1990, pesquisas incontornáveis sobre o abandono de recém-nascidos, a pobreza, as instituições de assistência e a cultura material no império, tendo sempre como pano de fundo a história das Santas Casas ao longo da época moderna (ver Sá, 1995, 1997).

Desde o século XVI, as Misericórdias foram instituições de grande popularidade, exaltadas por memorialistas como um paradigma do espírito caritativo dos portugueses, mas até boa parte do século XX permaneceram um assunto secundário, frequentemente circunscrito à historiografia laudatória das próprias instituições. Isabel faz parte da geração que, nos anos 1980, em Portugal, começou a redimensionar o papel das Santas Casas, inserindo-as em uma perspectiva ampliada, de modo a examiná-las como um laboratório relevante para compreensão dos mecanismos de exercício do poder local e de sedimentação da identidade portuguesa pelos quatro cantos do império.

Nos anos 1990, a vigorosa historiografia que florescia nas universidades portuguesas reivindicou a chancela intelectual de ninguém menos que Charles Boxer (2002) e Russell-Wood (1981) que, ainda nos anos 1960, chamaram atenção para a faceta imperial e eminentemente política das Misericórdias, ponto de apoio relevante para a construção da soberania portuguesa, tanto no continente quanto nas conquistas ultramarinas. Dos trabalhos surgidos a partir da renovação historiográfica dos anos 1980-1990, a obra Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no império português, 1500-1800 (Sá, 1997) foi seguramente a que mais se valeu da dimensão imperial das Misericórdias, beneficiando-se de trabalhos monográficos de fôlego para construir uma imagem mais verossímil do quadro geral intuído por Boxer, ou mesmo Russell-Wood.

Por isso, é a partir das Santas Casas que as histórias de Diogo Ferreira e de tantos outros personagens podem ser compreendidas. Embora as trajetórias sejam dadas a conhecer em seus pormenores, saltam aos olhos os mecanismos postos em ação pela rede de Misericórdias que, valendo-se de estruturas institucionais consideravelmente homogêneas, orquestravam um repertório comum de auxílio de modo a fazer cumprir o ideal de caridade que orientava seus estatutos. As Santas Casas eram estabelecimentos independentes entre si, atuando de forma solidária, mas autônoma, por meio do repasse de verbas. Era por meio dessa rede de confrarias que, sobretudo na iminência da morte, muitos doadores partilhavam seus bens, dividindo-os entre parentes, amigos e instituições, e distribuindo legados para execução de missas e obras pias. As Misericórdias, atuando como “procuradoras dos defuntos”, tratavam de gerir as fortunas dos testadores espalhados pelo mundo português, promovendo uma verdadeira circulação de bens materiais e imateriais.

De fato, não resta dúvida de que a história dos legados das Misericórdias não pode ser analisada apenas em escala local: no norte de Portugal, a expansão oceânica provocara não somente um alargamento na amplitude geográfica dos doadores, mas também alterara material e esteticamente a vida dos habitantes. Da Índia ou da América, poderiam vir avultados legados e/ou produtos exóticos que funcionavam como um atestado de sucesso da empreitada realizada por famílias aristocráticas e populares. Independentemente da origem social, a preocupação em vincar uma memória benevolente entre os vivos e em salvaguardar a salvação além-túmulo movimentou uma soma fabulosa de riquezas, em sua esmagadora maioria produzida nas áreas coloniais e transferida para a cidade do Porto, conforme aponta o estudo em tela.

Essas muitas histórias fragmentadas criavam uma unidade impressionista do império, conectando diferentes atores – individuais e institucionais – com base em apropriações partilhadas do catolicismo e colocando em cena aquilo que, para certa historiografia, situa a expansão ibérica na ponta de lança da globalização. Os testamentos e inventários de portugueses dispersos pelo mundo – em um primeiro momento na Ásia e, a partir de meados do século XVII, também na América – revelam a engenhosa engrenagem de movimentação de fortunas que abriu espaço para fraudes genealógicas, novos arranjos sociais, relativização de valores e alargamento dos sentidos de pertencimento ao mundo, cuja fronteira agora era dada pelos circuitos mercantis que se espalhavam pelo globo. Essa verdadeira revolução foi viabilizada pelo comércio e, tal como demonstra Isabel, tem nas Misericórdias um formidável ângulo de análise. Não apenas porque eram estabelecimentos disseminados geograficamente, mas porque poderiam se valer de um conjunto de privilégios e isenções que lhes garantia legitimidade para cobrar dívidas de poderosos, transferir bens apoiando-se em uma ampla rede, fazendo cumprir, do modo mais seguro possível, as últimas vontades dos testadores.

Como pontuado, as muitas histórias desse livro ganham outra dimensão se conectadas e postas em perspectiva, dando a ver o quadro mais amplo de reflexões proposto pela autora ao fazer emergir in acto o repertório de estratégias que redimensionou a percepção de mundo dos portugueses (e – por que não? – dos habitantes do globo). Trata-se de uma obra repleta de tramas familiares e disputas espalhadas em uma variedade impressionante de referências que cruzavam parentescos, falseavam dados que poderiam confundir o pesquisador menos experimentado. Para facilitar a compreensão, o emaranhado de informações é organizado por meio de cronologias construídas para cada personagem analisado. Todo esse cuidado é acompanhado ainda do reconhecimento dos limites de certas interpretações, construídas a partir de fontes fragmentárias e incompletas. Ao longo dos capítulos, outro quadro da expansão é dado a ver de forma inovadora e brilhante. É o talento de Isabel, mais uma vez, mostrando que o jogo de escalas é uma perspectiva primordial de análise.

AGRADECIMENTO:

O autor agradece a leitura e as sugestões de Maria Fernanda Bicalho.

REFERÊNCIAS

BOXER, Charles. Conselheiros municipais e irmãos de caridade. In: BOXER, Charles.O império marítimo português, 1415-1825. [1969]. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 286-308. [ Links ]

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. [2004]. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Edusp, 2014. [ Links ]

RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. [1968]. Brasília: Ed. UnB, 1981. [ Links ]

Isabel dos Guimarães . A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian: JNICT, 1995. [ Links ]

Isabel dos Guimarães . Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no império português, 1500-1800. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997. [ Links ]

SUBRAHMANYAM, Sanjai. Impérios em concorrência: histórias conectadas nos séculos XVI e XVII. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2012. [ Links ]

Melchor Macanaz. La derrota de un “héroe” – IZQUIERDO (Tempo)

PRECIOSO IZQUIERDO, Francisco. Melchor Macanaz. La derrota de un “héroe”. Poder político y movilidad familiar en la España Moderna. Madrid: Cátedra, 2017. 439 p.p. Resenha de: CRUZ, Miguel Dantas. A primeira experiência com o Absolutismo na Espanha. Tempo, v.25 n.1 Niterói, jan./abr. 2019.

É difícil, senão mesmo impossível, escrever sobre a história política da Espanha do século XVIII sem falar de Melchor Rafael de Macanaz. Trata-se de um personagem de importância decisiva para compreender as primeiras reformas dos Bourbon no país ibérico e cujo trajeto tem retomado um lugar central na agenda historiográfica espanhola. Por essa razão, o estudo de Francisco Precioso Izquierdo dá assim sequência a um conjunto de trabalhos centrados no famoso fiscal geral do Conselho de Castela, expondo o significado político, intelectual, jurídico e reformista de Macanaz. Atitude corajosa e digna de registro do jovem investigador que não se amedrontou com a tarefa de revisitar uma figura cujo protagonismo histórico, esquadrinhado ao pormenor, é bem conhecido do público académico. Francisco Precioso não pôs o pé em ramo verde. Com origem na sua tese de doutoramento, Melchor Macanaz : La derrota de un “héroe” é estudo minucioso e bem suportado. Francisco Precioso socorre-se de fontes que permaneciam grandemente esquecidas para preencher as lacunas na vida do importante ministro de Felipe V. Outros materiais igualmente originais, consultados por ele em mais de duas dezenas de arquivos, serviram para apontar uma nova luz aos momentos-chave do ciclo político de Macanaz.

Honesto, mas ambicioso e imaginativo, o estudo recorre a metodologias que não costumamos ver juntas numa mesma obra, como são os casos da análise lexicográfica e da prosopografia. O autor é também cuidadoso no tratamento da bibliografia, com a qual dialoga permanentemente. Apesar do que se faz notar no proémio, a obra não corresponde exatamente a uma biografia – e aqui haverá uma ligeira tensão entre o que se anuncia e o que se realiza. Melchor Macanaz é a figura central, mas não é a única. Ao invés, o autor resgata o percurso da família Macanaz na longa duração. Sem dúvida, uma solução muito mais pertinente para a grande problemática do estudo: a mobilidade social da “gente média” na Espanha moderna.

O enfoque na trajetória da família e na relação de várias gerações da família com o poder político é bem visível na organização dos conteúdos. De resto, o autor começa por seguir a consolidação gradual dos Macanaz na vila murciana de Hellín ainda durante as décadas iniciais do século XVII. Ligados à administração local, os Macanaz estavam, contudo, muito longe ser um verdadeiro potentado. Outras famílias mais acaudaladas desempenhavam esse papel. Francisco Precioso não fica porém completamente refém dos Macanaz. A busca das origens desta família é uma oportunidade para se visitar e discutir tópicos tradicionais da historiografia dedicada ao estudo dos modelos de reprodução social no Antigo Regime, o que o autor faz com maestria, ou não tivesse sido orientado pelos grandes especialistas Francisco Chacón Jiménez e Juan Hernández-Franco. Num certo sentido, o percurso dos Macanaz tipifica uma trajetória social ascendente do período. Nele encontramos as tradicionais estratégias matrimonias criteriosamente levadas a cabo, e a acumulação de patrimônio, que o autor reconstitui e que estava inevitavelmente destinado à constituição de um morgadio. Nele encontramos também os esforços destinados a provar a antiga linhagem fidalga da família, entretanto caída em desgraça, mas que não deixava de reclamar uma folha de serviços que recuaria ao século XI. Sobre a família pairou ainda a proverbial acusação de mácula de sangue, de modo algum invulgar naquele período. Alguns dos antepassados de Melchor, da parte materna, seriam conversos, originalmente expulsos de Castela pelos reis católicos, mas regressados em 1580.

A passagem pela universidade era também – era cada vez mais – um atributo dos membros da administração central espanhola, e Melchor Macanaz não foi diferente. A passagem pelas universidades de Valência e Salamanca, onde se formou em Leis e Cânones, terá sido inclusivamente decisiva para a formação intelectual do jovem Melchor. Aí foi exposto à literatura arbitrista do século XVII de forte pendor regalista. Aí terá sido também confrontado com um sistema de ensino dominado pelos Colégios Maiores, em detrimento dos estudantes menos privilegiados como Melchor. Como já foi notado por outro biografo seu, a inspiração para futuras propostas de reforma das instituições universitárias pode ser encontrada nesse ressentimento juvenil (Martín, 1982, p. 29-31). Igualmente importante para a formação do murciano foi a sua ligação à Casa dos marqueses de Villena, onde participou em reuniões e tertúlias. Na verdade, esta Casa aristocrática providenciaria ainda a experiência burocrática indispensável ao jovem advogado, que, entretanto, passara a gerir os negócios do oitavo marquês. Outras casas desempenharam papel semelhante de alfobre de futuros administradores. A grande nobreza, como poder de implantação regional, assegurava a ligação entre elites locais e o poder central.

A segunda parte constitui núcleo principal do livro. Duas centenas de páginas cobrem o essencial do ciclo de vida e do ciclo político de Melchor, a começar pela sua cooptação pela nova dinastia bourbônica, que muito rapidamente começou a proceder a alterações nas práticas governativas da Monarquia. Destacam-se, a esse respeito, a restruturação dos ofícios da Casa Real, o recrutamento de burocratas em Versalhes e a constituição da Guardia de Corps, um novo corpo militar para a Corte de Felipe V – tudo para desagrado da aristocracia espanhola. Integrado num conhecido processo de renovação de quadros administrativos (Dedieu, 2002, p. 381-399), Melchor alcançou grande notoriedade pela forma intransigente como procedeu à repressão de austracistas – partidários do arquiduque Carlos de Habsburgo -, primeiro em Valencia e depois em Aragão. Esses reinos tinham-se virado contra Felipe V, apesar de o neto de Luís XIV ter jurado defender as “constituições políticas” da Coroa de Aragão.

As causas do realinhamento aragonês não se prendiam exclusivamente com o receio do reforço do poder absoluto do monarca, acrescentado em prejuízo das autonomias locais, ainda que isso fosse fundamental. Por exemplo, na Catalunha rural, a presença de tropas bourbônicas esteve longe de ser uma medida inócua, provocando grande descontentamento entre aqueles que se lembravam das incursões recentes dos exércitos de Luís XIV. A isso se juntava também a existência de uma elite mercantil, sobretudo na cidade de Barcelona, comercialmente ligada à Inglaterra e à Holanda e muito arredia aos interesses franceses.

Pela sua infidelidade, a Coroa de Aragão seria exemplarmente castigada por via da desqualificação de suas instituições. A Nova Planta (1707), legitimada no direito de conquista que, em teoria, libertava o monarca de constrangimento jurisdicionais, suprimiu as Cortes de Aragão, e com elas boa parte da autonomia política do território. A isso se deve juntar o desmembramento do Conselho de Aragão e a criação, não de uma chancelaria – instituição mais elevada -, mas de uma mera audiência, subordinada ao Conselho de Castela. Entretanto, o tradicional vice-rei, um verdadeiro alter ego do rei, daria lugar a um capitão-general, que, na prática, era um militar ao qual se delegava o poder absoluto do monarca. Tudo no quadro de uma gradual militarização da administração do território – uma novidade absoluta em Espanha (Ruiz, 2008,p. 39-40).

A solução adotada, que esteve longe de recolher unanimidade em Castela, recebeu um importante contributo do regalista Macanaz. O ministro beneficiava então da proteção das principais figuras do regime, a começar pelo embaixador francês Amelot e pelo confessor de Felipe V, Robinet. Em 1713, seria nomeado para o lugar de fiscal geral do Conselho de Castela, a partir do qual lançou um ambicioso plano de reformas de algumas das principais instituições espanholas. A “planta de Macanaz”, como então ficou conhecida, visava remodelar os conselhos de Castela, Fazenda, Índias e Ordens e, posteriormente, o de Guerra e da Inquisição. O propósito era sempre o mesmo: reduzir a sua autonomia política. O plano mexia também com a administração local e com as universidades, nas quais deveria ser privilegiado o ensino do direito real castelhano em detrimento do direito romano e canônico. Paralelamente, procedia-se a uma renovação significativa dos quadros dirigentes desses conselhos. Sem homens de confiança dispostos a seguir Macanaz, o plano não teria condições de ser implementado. As reformas tinham uma indispensável vertente social, que Francisco Precioso enfatiza e desconstrói. De resto, o autor faz a esse respeito um trabalho notável e muito pertinente para as ambições do estudo, procedendo ao levantamento dos ministros nomeados durante o “consulado” de Melchor. A ideia passava por saber quem eram esses homens, de que forma se relacionavam com Melchor e o que lhes aconteceu quando o fiscal geral caiu em desgraça.

O contexto político propício a grandes reformas terminou com a chegada da segunda mulher de Felipe V, Isabel de Farnesio, à corte espanhola, onde rapidamente se procedeu a uma purga dos elementos mais conotados com o regime anterior. Entre eles estava Macanaz, criticado muito especialmente por conta do protagonismo assumido no confronto que Madrid manteve com Roma. O seu célebre Pedimento fiscal do los cincuenta y cinco puntos deixava claras as intenções da coroa: estender o patronato real aos assuntos temporais que afetavam a Igreja, cerceando de permeio as imunidades e os privilégios fiscais do clero. O escrito encontrou inimigos poderosos, a começar pelo inquisidor-mor, Francesco del Giudice, e foi inclusivamente condenado pela Inquisição.

A perseguição de que foi alvo determinou o exílio de Macanaz na França e nos Países Baixos, onde atuou como espécie de diplomata informal de Felipe V por trinta anos. Francisco Precioso aproveita esse exílio para explorar os laços que persistiam entre Madri e as elites de origem castelhana dos territórios perdidos durante a guerra. A recuperação desses territórios, sobretudo na Itália, seria, de resto, uma das grandes prioridades diplomáticas de Felipe V e de sua mulher transalpina, a ponto de prejudicar outros compromissos no Império (Kuethe e Kenneth Andrien, 2014).

O capítulo 8, último desta parte do livro, é exclusivamente dedicado à ouevre de Melchor e ao seu pensamento, procurando-se interpretá-lo à luz dos desenvolvimentos culturais e intelectuais dos Setecentos. Não se trata propriamente de um exercício fácil, como a historiografia tem sublinhado: decantar sinais do progresso de valores e ideias associadas às Luzes em países católicos esbarra frequentemente na constatação de que houve uma convivência entre valores tradicionais e atitudes modernizadoras. Filosofia natural e teologia ou ciências exatas e religião não estavam permanentemente em estado de guerra. Assim, não espanta que se encontre no pensamento de Macanaz referências típicas da literatura reformista, algumas mais modernas e outras que seguiam uma formulação original bem antiga, como era o caso da defesa de monopólios comerciais – criação de companhias. Nele encontram-se também elementos que emergiram na cultura política portuguesa ao longo dos Setecentos, como era o caso da valorização do exemplo dos países do norte da Europa. É pena que Francisco Precioso não tenha procurado encontrar sinais de evolução no pensamento de Macanaz, sendo que a solução metodológica escolhida – análise detalhada de dois textos da lavra de Melchor, redigidos com vários anos de intervalo – até se prestava a isso. Já a confrontação com Feijoo parece ser particularmente eficaz, mostrando os limites das propostas reformadoras de Macanaz, que não ultrapassavam o absolutismo administrativo e institucional. Por isso, o autor insiste, com muita razão, na distinção que se deve estabelecer entre Macanaz e Campomanes ou Floriblanca.

A terceira parte da obra, dedicada à construção da memória deMelchor Macanaz , constitui um dos pontos altos do estudo. O processo é longo, estendendo-se por todo o século XVIII e entrando mesmo no século XIX, mas foi desencadeado pelo próprio Macanaz em 1739, quando, ainda durante o seu exílio, escreveu uma autobiografia. Por si só, isso revelava uma consciência bem apurada do seu papel na história da Espanha. Macanaz procurava então reabilitar-se na Corte, lembrando a injustiça de sua perseguição às mãos da Inquisição. Foi também uma oportunidade de recordar seus serviços à Monarquia e clarificar as intenções de seus muitos escritos e memoriais. O compromisso com o regalismo era naturalmente enfatizado. De resto, na identificação do ex-fiscal com o regalismo estaria a semente de sua recuperação subsequente às mãos de Gregorio Mayans y Siscar e de seu grupo. O conhecido erudito, que manteve correspondência com Macanaz, teria um papel decisivo na reconstrução da imagem deste, reapropriado como um autêntico herói injustiçado e perseguido por conta de sua fidelidade ao rei.

O processo de reconstrução da memória do antigo ministro de Felipe V conheceria novos desenvolvimentos já no fim dos Setecentos, quando chegou a um público mais vasto. O editor do Semanario Erudito, um periódico dedicado à publicação de autores espanhóis do Siglo de Oro e do início do século XVIII, não foi imune ao fascínio que aquela grande referência do reformismo bourbônico começava a exercer. Entre 1787 e 1791, Antonio Valladares de Sotomayor deu à estampa vários escritos de Melchor ou a ele atribuídos, que Francisco Precioso revisitou e cuja autenticidade em boa hora ajudou a desconstruir. Como o livro deixa claro, a atribuição de autoria desses textos a Melchor não era propriamente uma prática inocente ou irrelevante. Ela aponta para uma agenda política mais ou menos explícita. Tratava-se de tirar partido da já então reconhecida autoridade política de Macanaz para sancionar ou questionar decisões entretanto tomadas pela Monarquia. A publicação de um texto em que Macanaz teria supostamente defendido a abolição dos jesuítas é disso um bom exemplo.

A instrumentalização da memória de Melchor Macanaz prosseguiu nas décadas seguintes, servindo, por exemplo, para legitimar um sistema político centrado nas secretarias. Como Francisco Precioso nota, assiste-se inclusivamente a um esforço para apresentar as reformas do tempo de Floriblanca como um desdobramento das reformas de Felipe V e do seu ministro. As Cortes de 1812 e os jornais liberais, em especial, apropriaram-se igualmente do discurso político de Macanaz para legitimar o seu projeto político. O regalismo de Macanaz, formulado para a defesa do Estado Absoluto, era agora acomodado às exigências ideológicas, e só aparentemente inconciliáveis, do Estado Liberal e do Estado Nação.

A última parte da obra centra-se em Pedro Macanaz, neto de Melchor, que começou como agente diplomático de Floriblanca e que chegou a ministro de Fernando VII. A trajetória de Pedro Macanaz constitui uma janela de observação para a dinâmica política espanhola de fins dos Setecentos e início dos Oitocentos, tanto na frente doméstica como na frente internacional. É uma oportunidade de revisitar a burocracia das secretarias de Estado, completamente dominadas pelos respectivos secretários, ou a aproximação diplomática ao gigante do leste (Rússia).

A inclusão da vida de Pedro neste estudo cumpre, todavia, um propósito mais significativo. Ela serve para ilustrar as limitações da mobilidade social na Espanha moderna, e esse é o grande tema que Francisco Precioso quis abordar e discutir. A partir da sua base murciana de Hellín, Pedro, tal como o avô, construiu uma carreira política de grande sucesso à escala nacional. No entanto, e também como o avô, viu baldadas as esperanças de alcançar um patamar social superior, permanecendo no perímetro original da “gente média”. Tal como Melchor, Pedro também acabou seus dias em sua vila natal de Hellín. De resto, a esfera local ou regional constituiria o espaço de implantação natural dessa “gente média”, que raramente consolidaria posições à escala nacional. Os casos de Floriblanca ou Campomanes são sobretudo exceções que confirmam a regra. O projeto familiar dos Macanaz é, a esse respeito, particularmente desastroso, na medida em que foi incapaz de romper com a rigidez estamental da Espanha moderna, apesar de ter contado com duas figuras de primeiro plano na história política do país.

Em síntese, esta é uma obra que se tornará fundamental para os interessados no reformismo político dos Setecentos. O livro tem, como todos, fragilidades. A mais grave é, sem dúvida, a inexistência de um índice alfabético ou onomástico. Como todos, também nos deixa por vezes a suspirar por mais. O fato de as reformas políticas terem sido ensaiadas a partir de uma instituição tradicional – Campomanes, por exemplo, também foi fiscal do Conselho de Castela -, e não necessariamente das modernas secretarias, era algo que gostaria de ver equacionado, assumidamente em prol de meus próprios interesses acadêmicos. A irrelevância da América no discurso de Macanaz é também algo que surpreende e que passa sem grande discussão. No entanto, nada disso belisca o mérito da obra aqui resenhada.

BIBLIOGRAFIA

DEDIEU, Jean-Pierre. Dinastía y elites de poder en el reinado de Felipe V. In: FERNÁNDEZ ALBALADEJO, Pablo Ed. Los Borbones: Dinastía y memoria de nación en la España del siglo XVIII. Madrid: Marcial Pons-Casa Velázquez, 2002. [ Links ]

KUETHE, Allan; ANDRIEN, Kenneth. The Spanish Atlantic World in the Eighteenth Century: War and the Bourbon Reforms (1713-1796). Nova York: Cambridge University Press, 2014. [ Links ]

MARTÍN GAITE, Carmen. Macanaz, otro paciente de la Inquisición. Barcelona: Destino, 1982(1968). [ Links ]

RUIZ TORRES, Pedro. Reformismo e Ilustración: Historia de España. Barcelona/Madrid: Crítica/Marcial Pons, 2008, v. 5. [ Links ]

Miguel Dantas da Cruz – Investigador de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociaisda Universidade de Lisboa- Portugal. E-mail [email protected].

Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930) – ABREU (Tempo)

ABREU, Martha. Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930). Campinas: Editora Unicamp, 2017. 462 p.p. (Coleção Históri@ Ilustrada). Resenha de: SOUZA, Sívia Cristina Martins. Canções escravas, trânsitos musicais atlânticos e racismo nas Américas. Tempo, v.25 n.1 Niterói jan./abr. 2019.

Os estudos sobre escravidão no Brasil passaram por transformações significativas a partir dos anos 1980, fruto do diálogo travado com uma historiografia internacional renovada, mas também impulsionados pelo fortalecimento dos movimentos negros; pelas ações públicas de combate ao racismo; pela compreensão sobre as lutas políticas, sociais e raciais; e pela disseminação das noções de diversidade cultural e racial. Essa historiografia desde então tem investido no enfrentamento de alguns desafios, entre uma série de outros: o de mostrar que os debates sobre as expressões culturais não podem prescindir de entender os embates sobre a questão racial nelas contidos, bem como a necessidade de denunciar as falácias contidas em mitos, visões e modelos interpretativos que por muito tempo deram o tom dos trabalhos nesta área.

Se os anos 1980 são referenciais para os estudos sobre escravidão, os anos 2000 marcam a emergência dos estudos sobre o pós-abolição e a constituição de um campo historiográfico que apresenta peculiaridades, apesar de sua íntima e reconhecida relação com a história social da escravidão e do processo de abolição.

Os diálogos travados entre a historiografia norte-americana e a brasileira sobre a escravidão e o pós-abolição não são recentes, mas tomaram rumos diferentes nas últimas décadas, em decorrência de algumas constatações. Entre elas destaca-se o reconhecimento de que, a despeito das especificidades dos sistemas escravistas e dos processos de abolição nos Estados Unidos e no Brasil, existem conflitos e experiências dos escravizados e libertos nas Américas que podem ser aproximados, desde que utilizadas metodologias e fontes adequadas, o que significa admitir a impossibilidade de pensar a diáspora africana a partir de histórias isoladas ou desconectadas.

Tal percepção tem ensejado um retorno às abordagens comparativas que já haviam alimentado alguns debates sobre instituições, culturas e organizações sociais nos anos 1940 e 1970, mas foram negligenciadas com a rejeição dos estudos dessa natureza pela historiografia norte-americana e, na historiografia latino-americana, pela concentração em estudos locais (Klein, 2012, p. 95).

A busca por novos procedimentos de análise para pensar problemas, definição de objetos de pesquisa e modos narrativos tem levado os historiadores a questionar a eficiência da própria História Comparada no seu projeto de superação dos limites da perspectiva nacionalista. A necessidade de considerar a nação mais um (e não o mais importante) fenômeno a ser elucidado, e as comparações entre nações mais como temas do que como métodos, tornou-se um objetivo perseguido em trabalhos desenvolvidos em diferentes perspectivas, tais como as Histórias Atlânticas, as Histórias Globais, as Histórias Conectadas, as Histórias Cruzadas e as Histórias Transnacionais (Barros, 2014, p. 280).

Analisar as identidades negras culturalmente híbridas e dinâmicas da diáspora, construídas a partir da memória do trauma original da escravidão e dos desdobramentos do pós-abolição com suas vivências de violência racial e racismo, é o objeto do trabalho referencial de Paul Gilroy intitulado O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência (2001). No prefácio à edição brasileira dessa obra, Gilroy sugere que o conceito de Atlântico Negro muito teria a ganhar se a ele fossem incorporados o Atlântico Sul e suas múltiplas configurações culturais (Gilroy, 2001, p. 16).

Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930), o mais recente livro de Martha Abreu, é uma resposta muito bem-sucedida a esse desafio. Trata-se de um trabalho que abre novas possibilidades para os estudos das culturas e identidades negras no Brasil, em diálogo com os Estados Unidos, e insere o nome de sua autora de maneira definitiva numa historiografia de perspectiva atlântica ao lado de nomes como Micol Seigel, Denis-Constant Martin, Robin Moore, Sarah Merr, David Guss, Astrid Kusser e Kazadi wa Mukuna, entre outros.

O livro de Martha Abreu é um dos frutos dos caminhos trilhados por uma historiadora que elegeu as manifestações culturais populares como seu local de sondagem do mundo. Suas escolhas a conduziram por uma trajetória que, em suas próprias palavras, a transformou de “uma historiadora da festa e da cultura popular em uma historiadora do legado da canção escrava, do racismo no campo musical e cultural e dos caminhos construídos pelos músicos e artistas negros para enfrentá-lo e subvertê-lo”. Nesse percurso, Da senzala ao palco emerge como um ponto alto na produção de uma intelectual que tem contribuído com perspectivas inovadoras aos debates sobre a dinâmica das culturas e identidades negras atlânticas tanto na academia, como professora e pesquisadora, quanto na História Pública, nos projetos e ações relacionados a comunidades quilombolas e jongueiras e na transformação de suas memórias do cativeiro e da liberdade em luta contra o racismo, pelo direito à terra, pela igualdade e pela justiça.

O livro é o terceiro volume da Coleção Históri@ Ilustrada, publicada pela Editora Unicamp, fruto do trabalho de pesquisadores vinculados ao Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (IFCH/Unicamp), do qual Martha Abreu participa desde a criação. O texto encontra-se disponível em dois formatos digitais: ePUB3 (com links internos para acesso a imagens, áudio e vídeo) e ePUB2 (com links internos para acesso a imagens e externos para áudio e vídeo). Com isso, Da senzala ao palco não apenas atinge um público amplo como também seus leitores têm a oportunidade de acessar 200 imagens, quase 50 fonogramas e 5 vídeos. Paralelamente ao livro, foi produzido um vídeo de 10 minutos intitulado Canções escravas e racismo nas Américas, que com ele dialoga, ajuda a divulgá-lo e pode ser utilizado por professores nas escolas e no ensino de História.1

Utilizando-se de um rico corpus documental e de uma vasta bibliografia especializada, a autora enfrenta basicamente quatro grandes questões ao longo de seu texto: os trânsitos internacionais, as canções escravas no mundo do entretenimento, as ações dos músicos negros e as construções do racismo no campo musical.

O objetivo central do livro é elaborar uma análise que aproxime as experiências de músicos negros e diferentes produtores e divulgadores das canções escravas nos Estados Unidos e no Brasil, no período que abrange de 1870 a 1930, a partir de problemas e fontes comuns e equivalentes. Sua intenção é, contudo, menos a de reforçar as evidentes diferenças entre os dois países, e mais destacar diálogos e aproximações nas formulações e experiências dos músicos negros e sobre música negra nas Américas. Trata-se, como se pode perceber, de uma história das expressões musicais da cultura negra escrita numa perspectiva atlântica que amplia os estudos sobre o pós-abolição ao sul do equador.

Cultura negra é um conceito central para a obra, embora não seja pensado ou utilizado pela autora como fechado e definitivo, mas enfrentado no seu próprio fazer historiográfico, através do uso das fontes e da metodologia. Ele remete às expressões culturais protagonizadas por afrodescendentes nas Américas e contém em seu âmago as noções de diáspora e desterritorialização por meio de estruturas transnacionais criadas e desenvolvidas na modernidade e marcadas por um sistema de comunicações permeado por fluxos e trocas culturais. Cultura negra é, portanto, um conceito que possibilita colocar em campo diferentes sujeitos sociais e diversas expressões e representações artísticas numa arena de conflitos. Ele indica, também, a intenção de questionar os estudos culturais marcados por perspectivas etnocêntricas e uma oposição à noção de que a cultura sempre flui em padrões que correspondem às fronteiras do Estado-nação.

Canções escravas ou “sons do cativeiro”, termos tomados de empréstimo a Shane e Graham White (White e White, 2005, p. ?), são expressões que não devem levar à falsa impressão de que a obra se dedica à escuta da sonoridade ou das formas musicais e estilísticas africanas presentes nas Américas, como esclarece Martha Abreu já nas páginas iniciais do livro. Entendidos como resultado da combinação de música, verso e dança, Canções escravas ou “sons do cativeiro” são termos alternadamente utilizados no livro para nomear as invenções musicais dos descendentes de africanos trazidos como escravos para o continente americano, as quais ganharam visibilidade e aceitação por meio da ação de músicos negros e de uma complexa rede de agentes que alimentou um cobiçado mercado musical que movimentava negócios de impressão e venda de partituras, espetáculos teatrais e indústria fonográfica. Vistas a partir desse ângulo, as canções escravas são decorrência de trânsitos e interações, tanto nacionais quanto transnacionais, e abrangem diferentes atores sociais, ainda que protagonizadas por músicos e atores negros.

Entre as principais fontes utilizadas por Martha Abreu, destacam-se textos de intelectuais que se preocuparam em entender e avaliar as “influências” dos africanos nas músicas e danças populares e nacionais, gravações fonográficas e, sobretudo, partituras musicais comercializadas em lojas de vendas de partituras, pianos, fonógrafos e discos, impressas pelas muitas editoras musicais existentes na ocasião. É digna de nota, nesse sentido, a análise minuciosa e instigante da autora sobre um extenso e significativo conjunto de capas de partituras cujas temáticas, títulos, gêneros, formas musicais e/ou ilustrações apresentam referências que remetem ao passado e às memórias do cativeiro, bem como a estereótipos e cenas racistas identificados com a população afro-americana no pós-abolição.

O livro organiza-se em nove capítulos abundantemente documentados – alguns deles anteriormente publicados em revistas especializadas (os de número 7, 8 e 9), mas modificados para essa publicação -, nos quais a autora aborda uma ampla pauta de questões. Entre elas encontram-se as experiências de músicos negros e destes com diferentes sujeitos envolvidos na produção e divulgação das canções escravas que alimentaram os trânsitos atlânticos no sentido Norte-Sul e vice-versa; as apropriações de gêneros, ritmos e formas musicais relacionados com africanos por músicos de formação erudita; as dimensões políticas das expressões musicais ligadas ao passado escravista; as experiências sociais e vivências de diferentes formas de racismo que aproximam as culturas negras e seus agentes; os significados das canções escravas para diferentes sujeitos negros, como os artistas Eduardo das Neves e Bert Williams e intelectuais acadêmicos como Coelho Netto e Du Bois; as aproximações entre as figuras de personagens como Pai João, Uncle Tom, Uncle Remus e Sambo, presentes na indústria fonográfica e na literatura popular, bem como as conexões transnacionais de gêneros musicais identificados e protagonizados por músicos negros, como o maxixe, que foi rapidamente assimilado nos Estados Unidos em função das suas proximidades com o cakewalk.

A leitura não é operação desprovida de sentido, pois quem lê busca significados, recorre a significantes, ritmos e formas e, nesse movimento, influenciam-se os modos de sentir, pensar e agir. Ao terminar a leitura do livro de Martha Abreu, o leitor provavelmente terá a sensação de ver abaladas determinadas certezas a respeito de algumas interpretações tradicionais sobre nosso passado musical ao constatar que elas não dão conta de um quadro muito mais rico e complexo.

São consideráveis, por exemplo, as contribuições do livro para se repensar determinadas versões sobre a história da música no Brasil, construídas com base nos marcos nacionalistas dos anos 1920 e 1930 ou na política cultural dos governos Vargas. E isso porque as discussões sobre as canções escravas nele presentes evidenciam quanto as manifestações musicais ditas nacionais só se sustentam e legitimam em contatos transnacionais por meio dos quais dialogam em termos referenciais, de elementos humanos e obtêm reconhecimento cultural. Nesse sentido, pode-se dizer que o livro de Martha Abreu nos mostra o tanto de transnacional que contém a noção de música nacional.

O leitor também perceberá quanto o campo musical foi um espaço minado, poroso e permeado por tensões e conflitos nos quais se travaram disputas em torno das representações dos descendentes de africanos e de seu patrimônio cultural e de como eles foram sujeitos ativos nesse processo. Coube a eles ampliar e redefinir discussões acerca das culturas nacionais, dos gêneros musicais, do legado da escravidão e das experiências do racismo que se reconstruíam em diferentes campos da indústria cultural no pós-abolição.

Por fim, mas não em último lugar, o livro oferece argumentos bastante consistentes para questionar visões que tradicionalmente polarizaram as relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos entre mestiçagem, de um lado, e segregacionismo, de outro. Martha nos mostra como existem variantes, mediações e matizes que não podem ser desconsiderados em análises que objetivem romper com interpretações dicotômicas e generalizantes, que pouco contribuem para melhor conhecer um fenômeno bastante complexo, tanto para o Atlântico Norte, quanto para o Sul.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, José D’Assunção. Histórias cruzadas: considerações sobre uma nova modalidade baseada nos procedimentos relacionais. Anos 90 (Porto Alegre), v. 21, n. 40, dez. 2014. [ Links ]

GILROY, Paul.O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001. [ Links ]

KLEIN, Herbert S. A experiência afro-americana numa perspectiva comparativa: situação atual do debate sobre a escravidão nas Américas. Revista Afro-Ásia (Salvador), n. 45, 2012. [ Links ]

WHITE, Shane; WHITE, Graham. The sounds of slavery: discovering African American history through songs, sermons and speech. Boston: Beacon Press, 2005. [ Links ]

1 O vídeo pode ser acessado em: <https://www.youtube.com/watch?v=agZPb-uEVto>

Sílvia Cristina Martins Souza – Universidade Estadual de Londrina – Londrina(PR) – Brasil. E-mail: [email protected].

 

Reducciones: la concentración forzada de las poblaciones indígenas en el Virreinato del Perú – SAITO et. al. (tempo)

SAITO, Akira; LAURO, Claudia Rosas. Reducciones: la concentración forzada de las poblaciones indígenas en el Virreinato del Perú. Lima: Fondo Editorial Pontificia Universidad Católica del Perú, 2017. 682 p.p. (Colección Estudios Andinos). Resenha de: IBÁNEZ-BONILLO, Pablo. Reduções: experiências de aldeamento indígena no Vice-Reino do Peru. Tempo, v.24 no.3, Niterói set./dez. 2018.

Em 1569, a coroa castelhana empreendeu uma empresa sem precedentes na história do colonialismo europeu: repentinamente forçou toda uma sociedade conquistada a mudar sua forma de vida.” Com essas palavras, inicia-se a contribuição de Jeremy Ravi Mumford no trabalho coletivo que Akira Saito e Claudia Rosas Lauro editaram sob o título Reducciones. La concentración forzada en las poblaciones indígenas en el Virreinato del Perú.

O texto de Mumford analisa a política de reduções ordenada pelo vice-rei Francisco de Toledo no Peru e no Alto Peru entre 1569 e 1575. Como os próprios editores indicam na introdução, apesar da importância desse projeto de concentração das populações indígenas, são poucos os trabalhos dedicados até o momento a realizar um balanço geral. O volume resenhado tenta compensar esse vazio historiográfico com a contribuição de dez especialistas sobre as reduções toledanas.

Não é esse, porém, o único aporte do livro, já que também incorpora ao diálogo as missões jesuíticas estabelecidas nas fronteiras do Vice-Reino do Peru. A historiografia ainda não tem explorado em profundidade as conexões entre as reduções toledanas e as missões religiosas, mesmo sendo os dois projetos produto de uma mesma estratégia colonial pelo confinamento dos ameríndios. A inclusão de cinco textos sobre as missões jesuíticas facilita o diálogo no volume.

O conjunto de textos é organizado em oito capítulos. No capítulo inicial, Mumford e Luis Miguel Glave apresentam as linhas mestras do projeto do vice-rei Toledo. Os outros sete capítulos são dedicados a distintas regiões do Vice-Reino do Peru – desde Lima (capítulo 2) até as terras fronteiriças da Amazônia (capítulo 6), passando pela costa norte, pela serra (capítulos 3-5), pelo Paraguai e pelo Chile (capítulos 7-8). Os editores escolheram essa abordagem geográfica, como explicam na introdução, para não limitar as possíveis comparações e conexões temáticas que o leitor venha a estabelecer.

Na mesma introdução, indica-se que um dos objetivos do trabalho é “clarificar a formação e o desenvolvimento das reduções sobre o terreno”. Assim, editores e autores pretendem tomar distância em relação às abordagens tradicionais, que têm priorizado o plano ideal das reduções e seu desenho metropolitano. Em lugar disso, os autores convidados a participar desta coletânea focam na execução dos projetos de aldeamento e no funcionamento cotidiano de reduções toledanas e missões jesuíticas.

Essa aproximação enfatiza a importância do protagonismo dos diversos agentes coloniais, assim como os processos de negociação estabelecidos entre eles. Nessa linha, as populações indígenas são tratadas como um ator histórico proativo, tanto na escolha dos lugares de redução quanto no desenvolvimento dos projetos urbanos. Os diferentes textos dedicam especial atenção a elementos como religião, identidade coletiva, estrutura das chefias ou padrões de movimento das populações nativas.

Os autores consideram essas dinâmicas indígenas um elemento-chave na configuração das reduções, dado que os projetos iniciais tiveram de ser adaptados à realidade local. Mas, longe de oferecerem uma visão essencialista da cultura e da identidade, os diferentes estudos deste volume evidenciam as transformações experimentadas pelas comunidades nativas durante o intenso diálogo com os agentes coloniais. Dessa maneira, missões jesuíticas e reduções são apresentadas como espaços de negociação, superando as visões anteriores de imposição arbitrária.

Neste sentido, a inclusão da palavra forzada no título do livro não faz justiça ao esforço de enfatizar a agência indígena e sua intervenção decisiva na aplicação dos projetos de redução. Do mesmo modo, sente-se falta de um capítulo de síntese sobre as missões jesuíticas, similar ao dedicado a la política toledana, ou a inclusão de outros espaços geográficos, como as regiões de Mainas ou Nueva Granada, que ajudariam a oferecer uma imagem mais completa e poliédrica da realidade do Vice-Reino.

Isso, porém, são detalhes para completar uma análise que já é suficientemente profunda e estimulante. No conjunto, os quinze textos oferecem uma panorâmica geral da aplicação negociada das políticas de redução, mostrando o sucesso (relativo) dos distintos projetos estudados. Embora os historiadores tenham enfatizado o aparente fracasso do projeto reducional, os autores demonstram a profunda marca que missões e reduções deixaram na paisagem. Cada um dos casos, obviamente, oferece itinerários próprios, e cada autor explora perspectivas originais.

No capítulo dedicado a Lima y sus valles, por exemplo, Tetsuya Amino analisa os movimentos das populações indígenas entre suas terras de origem e os bairros aos quais foram reduzidos na capital do Vice-Reino. Amino organiza esses movimentos com base em suas pesquisas sobre um milagre acontecido no cercado de Lima. A oscilação contínua das populações, assim como sua capacidade de obter o reconhecimento colonial de suas reivindicações, é um bom exemplo da tensa negociação do período.

O artigo de Teresa Vergara Ormeño (“Un espacio integrado: Lima y los pueblos de indios de su comarca”) supera os limites da capital para estudar os movimentos entre a cidade e os espaços indígenas dos arredores de Lima.

Os dois artigos sobre a capital peruana oferecem uma visão coerente e complexa da Ciudad de los Reyes (Lima), onde pela primeira vez foram aplicadas as políticas de redução e que, portanto, teve um papel importante como modelo e laboratório para o resto do Vice-Reino.

A seção sobre a Costa Norte inclui o artigo de Parker VanValkenburgh acerca das experiências de redução nos vales de Zaña e Chamán. Esse texto – junto com o posterior, de Steven A. Wernke – é um dos mais inovadores da coletânea pelo seu uso do material arqueológico para a análise das transformações num espaço geográfico que vai além da redução. Assim, o autor combina fontes documentais e materiais a fim de estudar a agência indígena na transformação da paisagem e na aplicação do plano de redução.

Alejandro Diez Hurtado completa a seção com um texto intitulado “De la reducción al pueblo: procesos de conformación de grupos y territorios a raíz de la creación de Catacaos, Sechura y Colán en la costa de Piura (norte del Perú)”. Nele, estuda o longo processo de redução dessas três aldeias, focalizando a análise nas variações demográficas, onomásticas e espaciais. Tais transformações, porém, não conseguem ocultar uma forte continuidade que o autor se esforça em visibilizar. Trata-se, por certo, de uma observação recorrente nos demais estudos deste volume.

A mesma vontade de problematizar a redução como processo social se encontra nas seções posteriores. Em seu texto sobre as reduções em Huaylas, Marina Zuloaga Rada se propõe a entender as múltiplas transformações geradas pela negociação entre os atores locais e as autoridades coloniais. Objetivo semelhante apresenta o texto de Nozomi Mizota, intitulado “Pervivencia y cambios de las reducciones en la región de Huamanga, siglo XVII”.

A seguir, encontram-se dois dos textos mais interessantes do volume. O já mencionado artigo de Wernke combina de novo história e arqueologia em uma bem-sucedida demonstração das possibilidades metodológicas dessa abordagem. Dessa maneira, consegue estudar “La producción y desestabilización del dominio colonial en el proceso reduccional en el Valle del Colca, Perú”. Seu texto ilustra de maneira bem clara as resistências práticas dos indígenas frente às aspirações ideais da dominação colonial.

O texto de S. Elizabeth Penry (“Pleitos coloniales: ‘historizando’ las fuentes sobre pueblos de indígenas en los Andes”) merece especial atenção pela reflexão sobre as fontes documentais e o contexto de sua produção. Trata-se de uma crítica fundamental que aparece de forma latente em outros momentos do livro, mas que é explorada com maior profundidade neste artigo, onde entre outros aspectos se estuda a iniciativa indígena na criação de novas reduções.

Sem transição explícita, o livro passa a estudar, nas seções seguintes, as missões jesuíticas nos espaços periféricos da Amazônia, do Paraguai e do Chile. É possível reconhecer nesses textos muitos dos temas e das ideias que nos artigos anteriores se dedicam às reduções toledanas, comprovando, assim, que o diálogo prévio entre os autores – integrados num projeto de pesquisa de vários anos – tem sido fecundo, e não uma simples troca de perspectivas.

As mesmas preocupações sobre as agências locais e as negociações aparecem, por exemplo, no texto de Roberto Tomichá Charupá. Nele se estudam as políticas de aldeamento em Chiquitos nos séculos XVII e XVIII, usando-se como fonte os padrões de população e a onomástica local. A capacidade dos atores indígenas de adaptar o projeto missionário “a sus propias coordenadas culturales y simbólicas” provocou resultados inesperados e singulares. “De allí que la nueva cultura haya sido tal vez una versión única y creativa del misterio cristiano”.

A organização social das reduções é outro tema recorrente no livro e recebe especial atenção nos estudos sobre as missões, concentrados na parte final do volume. Akira Saito estuda a complexidade das parcialidades indígenas, argumentando que elas não necessariamente existiam em sua forma colonial antes da chegada dos jesuítas, os quais contribuíram para sua criação. A ação dos missionários, contudo, não implicou uma homogeneização cultural dos povos indígenas. Como indica o autor, “cada reducción era una síntesis única formada bajo circunstancias particulares”.

A figura do “cacique” foi uma das que se viram fortemente influenciadas pelos projetos missionários, como demonstra Guillermo Wilde no seu texto “Cacicazgo, territorialidad y memoria en las reducciones jesuíticas del Paraguay”. Wilde estuda o dinamismo sociopolítico das missões a partir do cacicado e sua influência na produção de memórias territoriais. Na mesma linha se situa o estudo de Kazuhisa Takeda, sobre as transformações dos cacicados e os processos etnogenéticos nas missões dos guaranis.

O livro termina com a contribuição de Rodrigo Moreno Jeria sobre a missão jesuítica no arquipélago de Chiloé (Chile), um espaço tão afastado de Lima que o próprio autor se refere a ele como “fim do mundo”. Seu texto é especialmente valioso por ser o único que estuda um fracasso evidente dos missionários, como assinalam os editores, mas também é relevante pela sistematização que oferece das estratégias missionárias usadas em diferentes etapas e regiões do arquipélago.

Em conjunto, o volume resenhado oferece um balanço muito completo que atualiza o estudo das reduções tanto no nível temático quanto metodológico. O leitor interessado no período colonial da América hispânica encontrará neste volume uma excelente plataforma para conhecer os mais recentes aportes sobre a construção negociada do universo colonial. Assim, a maioria dos textos situa o foco sobre as populações indígenas em uma aproximação etno-histórica.

O volume é também relevante para os pesquisadores interessados nos projetos de concentração indígena na América portuguesa. Apesar de não incluir trabalhos sobre essa região, o livro aqui resenhado é uma excelente oportunidade para aprofundar no diálogo entre os dois impérios ibéricos. Não é à toa que as duas Coroas aplicaram uma política similar de reassentamento urbano como meio de controlar e civilizar as populações indígenas – política que alcançou novas conexões durante o período da monarquia ibérica (1580-1640).

Tanto no Brasil quanto, em especial, no Estado de Maranhão e Grão-Pará, essa política se traduziu numa primeira fase de concentração humana nos aldeamentos, onde os indígenas foram instruídos na religião católica e na língua portuguesa, ao mesmo tempo que contribuíram com seu trabalho para o desenvolvimento da sociedade colonial. As principais ordens religiosas tomaram conta desses aldeamentos, não obstante a administração civil também tenha sido uma realidade em determinados momentos.

A historiografia brasileira tem estudado os aldeamentos em várias dimensões, destacando nos últimos anos o estudo da intermediação cultural dos missionários, como nos trabalhos de Paula Montero, Cristina Pompa, Adone Agnolin, Almir Diniz Carvalho ou Karl Arenz. A agência indígena na gestão das relações com o entorno colonial tem sido outro tema central das pesquisas realizadas nos últimos anos, e não resulta difícil imaginar as possibilidades comparativas com base nos trabalhos de John Monteiro, Maria Regina Celestino de Almeida ou Elisa Frühauf Garcia, que apresentou um dossiê sobre as missões na América Ibérica nesta mesma revista (2013). Outro exemplo dos diálogos possíveis entre as experiências missionais das Américas espanhola e portuguesa é a coletânea editada por Guillermo Wilde sob o título Saberes de la conversión. Jesuitas, indígenas e imperios coloniales en las fronteras de la cristiandad (2011).

Por outro lado, e para além do marco das missões jesuíticas, a aplicação do Diretório pombalino marcou o início, em meados do século XVIII, de outro projeto de redução que encontra pontos de comparação com as políticas da coroa espanhola no Peru. Nos dois casos, fixou-se uma regulamentação para ordenar o dia a dia das vilas, dirigidas por uma administração que incluía autoridades indígenas e europeias. Mesmo com tempos e dinâmicas próprias, a comparação entre os dois processos parece uma empresa promissora que talvez se anime com o trabalho resenhado.

Referências

GARCIA, Elisa Frühauf (Org.) Dossiê – Missões na América Ibérica: dimensões políticas e religiosas. Revista Tempo, v. 19, n. 35, p. 1-95, jul./dez. 2013. [ Links ]

WILDE, Guillermo (Ed.). Saberes de la conversión: jesuitas, indígenas e imperios coloniales en las fronteras de la cristiandad. Buenos Aires: Editorial SB, 2011. [ Links ]

Pablo Ibáñez-Bonillo – Pós-doutorando na Universidade Federal do Pará (UFPA) – Belém(PA) – Brasil. E-mail: [email protected].

 

Ao longo daquelas ruas: a economia dos negros livres em Richmond e Rio de Janeiro, 1840-186 – VILLA (Tempo)

VILLA, Carlos Eduardo Valencia. Ao longo daquelas ruas: a economia dos negros livres em Richmond e Rio de Janeiro, 1840-1860. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. 400 p.p. Resenha de: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Ao longo daquelas ruas: a economia dos negros livres em Richmond. Tempo,  v.24 n.2 Niterói maio/ago. 2018.

Embora a história comparada tenha uma longa e importante trajetória na historiografia contemporânea, ela implica enfrentar uma série de questões que fazem com que poucos historiadores se aventurem nesse ramo. Em primeiro lugar, é necessário definir muito bem o que será comparado, pois os objetos selecionados devem conter ao mesmo tempo semelhanças (para que possam ser de fato comparados) e diferenças (para que se consiga avançar no conhecimento da área). Em seguida, é preciso recortar escopos documentais que permitam realizar a pesquisa, e isso é mais problemático à medida que se recua no tempo, pois os tipos documentais disponíveis para os objetos escolhidos tendem a ser cada vez mais diversos. Em terceiro lugar, é fundamental que se tenha clareza das opções metodológicas, bem como segurança em seu uso, para que elas permitam de fato articular as questões levantadas e as fontes disponíveis. Finalmente, há um problema cada vez mais recorrente no meio acadêmico e que inviabiliza muitas pesquisas comparadas, que é o tempo demandado para sua execução, pois no mínimo deve-se ter familiaridade com discussões historiográficas e fontes documentais distintas, as quais se pretende comparar.

A obra de Carlos Eduardo Valencia Villa é um bom exemplo de como todas essas questões podem ser enfrentadas com sucesso, mesmo no curto tempo que hoje se pode dedicar à realização do doutorado. E a prova de seu êxito é o fato de ter sido distinguida com o prêmio Anpuh-Rio de Janeiro Eulália Maria Lahmeyer Lobo no ano 2014. A publicação em livro da tese revista permite agora que um número muito maior de leitores possa ter acesso aos resultados de sua pesquisa. Contudo, mais do que apenas os resultados, creio que a melhor contribuição do livro reside na exposição de suas opções metodológicas, calcadas em vasto levantamento documental, que respeitou as especificidades de cada uma das cidades que ele decidiu comparar.

O primeiro aspecto a se destacar na obra é, portanto, a definição daquilo que será comparado. A escolha recaiu sobre duas cidades (Richmond e Rio de Janeiro) de dois países muito distintos (Estados Unidos e Brasil), embora entrelaçados por uma mesma instituição: o escravismo. Como destaca o autor, o que se irá comparar serão cidades oitocentistas, atlânticas e escravistas. Oitocentistas porque foi nesse momento histórico que ambas assumiram a posição de importantes centros econômicos, demográficos e políticos. Atlânticas porque a condição de porto não apenas as tornava semelhantes em muitos aspectos como também as unia por meio do comércio, sintetizado no binômio café (do Rio de Janeiro) com pão (do trigo de Richmond). Escravistas porque em ambas se empregavam vastos contingentes de escravos em amplos setores da sociedade. E, embora compartilhassem essas similaridades, elas também eram díspares: o Rio de Janeiro era uma cidade com uma população muito superior à de Richmond, e sua influência política no território nacional ao qual pertencia era muito maior do que o papel que Richmond chegou a desempenhar no sul dos Estados Unidos e mesmo em período posterior, durante a Guerra de Secessão. Entretanto, é exatamente nesse equilíbrio entre o que se assemelha e o que se diferencia que se buscam os melhores resultados de um estudo comparado.

O desafio seguinte enfrentado pelo autor foi conhecer as fontes documentais disponíveis em ambas as cidades que pudessem trazer informações sobre a economia de seus negros livres. E aqui residem os maiores problemas enfrentados. O autor reconhece que a grande flexibilidade social dos negros livres implicava desafios para conseguir acompanhá-los, tanto em Richmond quanto no Rio de Janeiro. Entretanto, em cada uma delas essa flexibilidade transparecia na documentação de forma diferente. A solução foi buscar fontes massivas de informação que também trouxessem os nomes dos indivíduos, de modo a poder cruzar as observações mais gerais da abordagem quantitativa com achados mais esclarecedores permitidos por uma abordagem qualitativa. Desse modo, foram levantados milhares de anúncios de jornais e de escrituras em ambas as cidades, além das listas de impostos pessoais e dos censos de Richmond. Também foram construídas algumas séries de dados econômicos, sobretudo de preços, que permitiram acompanhar as diversas conjunturas compartilhadas pelas duas cidades. Nesse sentido, deve-se destacar a periodização feita pelo autor, que dividiu as duas décadas de pesquisa em quatro momentos específicos: 1840-1846, 1847-1850, 1851-1856 e 1857-1860. A análise quantitativa deu à luz uma simetria bastante grande (embora não perfeita) entre os ciclos econômicos vividos pelas duas cidades, separadas por milhares de quilômetros, mas unidas pelo Atlântico. Essa união atlântica fica clara, por exemplo, quando se percebe que a conjuntura de crescimento econômico no início da década de 1850 no Rio de Janeiro, muitas vezes atribuída ao fim do tráfico de africanos e a consequente “liberação de capitais” para serem aplicados em outras atividades econômicas, na verdade foi compartilhada por Richmond, o que denota tratar-se mais de um movimento econômico internacional do que de uma conjuntura interna ao Brasil.

Um levantamento massivo de dados pode gerar, entre seus subprodutos, um atordoamento que impede a visualização de qualquer tendência ou sentido. Isso só pode ser minimizado por estratégias metodológicas bem-elaboradas e adequadas tanto ao objeto quanto aos dados disponíveis. Nesse sentido, a obra de Villa apresenta-se também como um bom guia metodológico para trabalhos historiográficos de mesma natureza. Além da análise estatística, tanto descritiva quanto inferencial, deve-se destacar o uso inovador da cartografia histórica em conjunto com o sistema de informação geográfica (SIG). O livro apresenta uma série de mapas das cidades de Richmond e Rio de Janeiro, baseados em cartas de época. Entretanto, esses mapas não são meras ilustrações, e sim uma estratégia metodológica elaborada para resolver o problema da falta de dados precisos sobre a localização dos sujeitos no espaço da cidade. Embora houvesse uma quantidade enorme de informações sobre indivíduos em locais específicos da cidade, não era possível compará-los no tempo, porque as referências a endereços não eram precisas. A solução encontrada foi trabalhar com áreas da cidade (em lugar de pontos individualizados), de modo a permitir acompanhar as transformações ocorridas ao longo do tempo, sobretudo no que diz respeito ao comportamento da mão de obra. Dado o uso ainda recente e incipiente do SIG na historiografia brasileira, esse é outro aspecto que torna a obra de Villa especialmente valiosa.

Do ponto de vista da apresentação, o livro se organiza em uma introdução, cinco capítulos e uma conclusão. A introdução é dedicada a uma discussão historiográfica que conduz o leitor à definição do tema: a economia dos negros livres em meados do século XIX. Daí, segue-se uma discussão da pertinência da comparação, justificando a escolha das duas cidades (Richmond e Rio de Janeiro). Há uma descrição das fontes que levaram a certas decisões quanto aos dados a serem levantados e às metodologias a serem adotadas. Finalmente, há uma justificativa do período a ser abordado (1840-1860).

O Capítulo 1 (“O vaivém nos portos”) descreve as cidades de Richmond e Rio de Janeiro, iniciando-se com a economia da cidade e sua ligação umbilical com as atividades portuárias. Esse é, inclusive, o elemento que ligaria duas cidades tão geograficamente distantes. Em seguida, descreve-se a situação dos trabalhadores, sobretudo escravos. O terceiro item trata do perfil demográfico de ambas as cidades desde a década de 1820 até a década de 1870; nesse momento também são apresentados os mapas das cidades que serão utilizados no georreferenciamento. O quarto item trata do perfil dos “negros livres”, e nesse ponto evidencia-se uma diferença nas fontes do Rio de Janeiro e de Richmond. Enquanto em Richmond a documentação censitária e fiscal identifica com mais clareza a cor (e em muitos casos a condição social), no Rio de Janeiro a documentação cartorária não traz essa informação. O autor contorna essa limitação ao concentrar seu foco nas escrituras de menor valor, supondo que nestas predominariam as pessoas de cor. O último item desse capítulo aprofunda a descrição das cidades e sua posição econômica e política em seus contextos nacionais.

Os capítulos seguintes vão apresentar o que seria o comportamento econômico dos negros livres nas duas cidades, e cada um deles abordará um dos quatro momentos específicos identificados pelo autor. O Capítulo 2 (“Na esquina ou na metade do quarteirão: primeiros negócios, 1840-1846) é o mais longo deles, porque se incumbe de apresentar pela primeira vez ao leitor como as informações foram sendo organizadas e tratadas para se obterem os resultados sistematicamente apresentados a seguir, sobretudo em relação ao georreferenciamento; e, em seguida, se estruturam os itens que se repetirão nos capítulos seguintes. Os Capítulos 3 (“Ainda na freguesia e no bairro: a vida econômica na metade do século, 1847-1850), 4 (“Para além da rua: a expansão econômica no começo da década de 1850”) e 5 (“A estrada que virou beco: os problemas econômicos, 1857-1860”) se organizam de forma semelhante, em quatro itens que contemplam a conjuntura econômica, o mercado de trabalho, o custo de vida, o patrimônio dos “negros livres” e sua localização espacial. Esse, que é o núcleo central do livro, apresenta um desafio quanto à narrativa. Os dados coletados e tratados pelo autor devem ser apresentados de forma sistemática e comparável, por isso parecem repetitivos e às vezes confusos. Entretanto, não há como escapar desse formato, porque é ele que costura a comparação e evidencia os achados que ela permite. O autor mescla tal abordagem com uma série de evidências qualitativas, construídas muitas vezes pelo cruzamento nominal de diversas fontes. Esse contraponto procura responder ao anseio do autor, formulado ainda em sua introdução, de fugir da mera descrição quantitativa, de cair em uma história descarnada. Essa estratégia funciona de forma variada. De modo geral, permite ao leitor “respirar” em meio ao oceano quantitativo; às vezes, vai mais longe e possibilita que se chegue perto dos atores sociais (como é o caso do Capítulo 5, no qual a crise econômica ganha uma face humana ao se observar mais de perto o que acontece com o patrimônio dos indivíduos).

livro se encerra com considerações finais, que a rigor são verdadeiras conclusões. Enquanto muitos autores de livros e teses se abstêm de formular conclusões, Carlos Villa proporciona ao leitor uma revisão do que foi apresentado ao longo do livro, o que considero algo de louvor.

A obra resenhada, portanto, é um trabalho historiográfico de fôlego, tanto do ponto de vista das fontes documentais quanto das estratégias metodológicas e ainda da forma de apresentação. Merece figurar entre as melhores obras de história econômica lançada nos últimos anos, destacando-se sobretudo pelos desafios metodológicos que lança e soluciona.

Entretanto, há um conjunto de observações a serem feitas. Em primeiro lugar, na verdade, o autor compara dois grupos distintos: a população de cor de Richmond e o segmento mais pobre da população do Rio de Janeiro. Embora os dois grupos possam se sobrepor, eles são distintos. Isso fica claro no início da tese, e considero uma estratégia válida para superar as limitações da documentação carioca quanto à declaração da cor. Mas, à medida que a tese avança, essa diferenciação vai sendo ocultada, de modo que na conclusão já se fala em “negros livres richmonianos e cariocas” (p. 297). Considero que isso deveria ser mais bem explicitado e tratado com mais cuidado.

Em segundo lugar, chamo a atenção para a ausência de referências à obra de Zephyr Frank (2004). Os trabalhos de Frank e Villa abordam a mesma cidade (o Rio de Janeiro), tratam de período semelhante (meados do século XIX), usam fontes semelhantes (a documentação cartorária) e incorporam de forma inovadora o georreferenciamento. Seria bastante interessante se o leitor interessado nesses tópicos pudesse ver um contraponto mais explícito entre as duas pesquisas.

Finalmente, quero chamar a atenção para falhas na revisão do livro, e isso é um problema não do autor, mas da editora. Faltou uma melhor revisão gramatical, pois o texto contém palavras e expressões que não são de uso corrente na língua portuguesa. Ademais, há referências a livros que não constam na bibliografia final, privando o leitor dessa informação primordial. Um livro tão inovador mereceria um cuidado maior por parte da editora.

Tais observações não diminuem em nada a importância e o interesse do livro. Como já destaquei, suas inúmeras qualidades, tanto em termos de conteúdo historiográfico quanto em termos de avanços metodológicos, o tornam leitura obrigatória não apenas para os interessados em temas como escravidão urbana e história econômica, mas para todos aqueles que queiram se inteirar de novas perspectivas metodológicas para os estudos historiográficos.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FRANK, Zephyr Lake. Dutra’s world: wealth and family in nineteenth-century Rio de Janeiro. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004. [ Links ]

Tarcísio Rodrigues Botelho – Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte (MG) – Brasil. E-mail: [email protected]

O nascimento do Brasil e outros ensaios – OLIVEIRA (Tempo)

OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016. Resenha de GARCIA, Elisa Frühauf. O nascimento do Brasil e outros ensaios. Tempo, v.24, n.1, Niterói jan./abr. 2018.

Em O nascimento do Brasil e outros ensaios, João Pacheco de Oliveira reúne nove textos elaborados nos últimos anos, originalmente publicados como artigos em coletâneas e periódicos ou apresentados em congressos e afins. Organizados em formato de livro, discutem temas relacionados aos povos indígenas que, em alguma medida, representam a trajetória do autor e suas opções epistemológicas. Professor titular de antropologia do Museu Nacional (UFRJ) desde 1997 e um dos mais influentes antropólogos de sua geração, João Pacheco começou seu percurso profissional realizando pesquisa de campo entre os Ticuna na tríplice fronteira (Brasil, Colômbia e Peru). Dedicou-se também ao estudo de políticas públicas e, desde meados da década de 1990, vem desenvolvendo pesquisas sobre os povos indígenas do Nordeste. Lançado em 2016, o livro recebeu da ANPOCS em 2017 o prêmio de Melhor Obra Científica.

Os capítulos refletem as preocupações que o autor demonstrou já no início de sua trajetória com o estudo da condição indígena a partir do colonialismo e das interações entre os diferentes segmentos sociais. O colonialismo, neste caso, não se restringe ao sentido mais utilizado pelos historiadores, referindo-se ao período no qual o Brasil foi parte do império português. Trata-se de uma discussão mais ampla sobre a relação do Estado com os povos indígenas, marcada por diferentes recursos jurídicos e administrativos que limitavam a capacidade civil dos nativos. Tais dispositivos vigoraram oficialmente até a extinção da tutela pela Constituição de 1988. A implementação da mudança, contudo, encontrou uma série de entraves. Como demonstrado no capítulo 8, “Sem a tutela, uma nova moldura de nação”, os marcos legais não substituem facilmente culturas institucionais arraigadas. Alguns órgãos administrativos, sobretudo a Funai, mantiveram na prática a vigência de categorias e percepções tributárias da tutela.

A análise da atuação dos órgãos relacionados à questão indígena, considerando a legislação vigente, as culturas administrativas e as ações de funcionários orientadas pelo senso comum, nos conduz a uma questão central, a definição de quem é índio. O tema é complexo: a condição indígena no país está marcada não apenas por diferenças culturais dos povos entre si e destes em relação à sociedade envolvente, mas por aspectos históricos. Se o tema perpassa toda a trajetória de João Pacheco, foi com o trabalho sobre os povos indígenas do Nordeste que suas reflexões nesta linha adquiriram maior centralidade e densidade conceitual. O capítulo 5, “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, é uma referência imprescindível nos estudos de antropólogos e historiadores sobre a temática indígena. Fruto de uma conferência originalmente apresentada no concurso para professor titular no Museu Nacional e já publicado em outras ocasiões, contribuiu para a construção de um campo de pesquisa que vem se desenvolvendo com bastante vivacidade desde então (Oliveira, 1999 e 2011).

Ao abordar os povos indígenas do Nordeste, João Pacheco enfrentou o desafio teórico-metodológico de trabalhar com uma população cujo contato com a sociedade envolvente remete aos primórdios da construção do Brasil colonial no século XVI. Suas interações com grupos de diversas origens, tanto europeias quanto africanas, foram constantes desde então e eles não se enquadram na definição de índio caracterizada por uma alteridade cultural radical. Com frequência, pesquisadores e agentes estatais alegavam sua condição de “misturados” como desqualificadora de reivindicações políticas e de sua legitimidade como um objeto de pesquisa etnológica. Diante disso, o autor optou por problematizar a trajetória dessas populações. Apresentou os diferentes “momentos de mistura” gerados pelas políticas administrativas implementadas em um primeiro momento pelo Estado colonial português e, já no século XIX, pelo Império do Brasil. Evitou, assim, a condição indígena entendida como uma essência e forneceu os elementos conceituais para que ela fosse percebida em sua historicidade, relacionada a situações específicas.

O autor elenca três momentos fundamentais de “mistura”: os aldeamentos promovidos pelo Estado português a partir de meados do século XVI; a aplicação da legislação pombalina iniciada na década de 1750 e a dissolução das aldeias no século XIX. No primeiro momento, os índios foram sujeitos a uma política administrativa que lhes adjudicou um determinado território onde deveriam passar a viver após a inserção na sociedade colonial: as aldeias missionárias. João Pacheco não interpreta tais espaços apenas como ambientes que ameaçavam, ou mesmo extinguiam, a condição indígena a partir da “aculturação”, como então se pensava nos estudos históricos desenvolvidos no país. As aldeias são apresentadas como propulsoras da formação de novas identidades, explicadas a partir da noção de “territorialização”. Conceito-chave para os estudos nessa linha, remete ao processo pelo qual os índios, objeto de uma política colonial que os circunscreve a determinado espaço, se apropriam daquele ambiente, reformulando suas políticas identitárias em uma situação específica. O conceito fez parte das reflexões que possibilitaram uma mudança fundamental na perspectiva sobre as aldeias missionárias no Brasil colonial, cujo trabalho mais influente no âmbito historiográfico foi o de Maria Regina Celestino de Almeida (2003).

Suas reflexões a partir de uma antropologia histórica o levaram também a enfocar a questão indígena em uma perspectiva de longa duração. Para tanto, articula a análise das diversas imagens que hoje manejamos sobre o tema, em geral desencontradas e idealizadas, com seus usos e construções em momentos específicos. Os dois primeiros capítulos, “O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma historiográfico” e “As mortes do indígena no Império do Brasil: o indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, abordam visões estabelecidas sobre o lugar das populações nativas em nossa história. Retomando os diferentes momentos das relações dos índios com os europeus no século XVI e analisando os processos artísticos do indianismo do século XIX, a ideia é entender e questionar a consolidação de uma percepção da história do Brasil que deliberadamente desconsiderou os povos nativos. Como demonstra o autor, a mudança recente de paradigma, com sua inclusão como agentes importantes, decisivos em vários contextos, é fundamental para explicarmos que foi a apropriação violenta de seus recursos (sua força de trabalho, suas terras e seus conhecimentos) que possibilitou a construção do Brasil. Esse processo, por sua vez, não desencadeou a extinção física e cultural dos índios, mas sua incorporação à sociedade envolvente em uma condição subordinada. Tal lógica não está restrita aos primeiros contatos, ela se reproduziu ao longo do tempo em diferentes situações à medida que se avançava “sertão adentro”.

A expansão da sociedade envolvente sobre os territórios indígenas articula-se a uma noção fundamental para a história do Brasil: a fronteira. Nos capítulos três e quatro, “A conquista do vale amazônico: fronteira, mercado internacional e modalidades de trabalho compulsório” e “Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia: uma perspectiva processual de fronteira”, o autor analisa tal expansão vinculada à extração da borracha. Para tanto, evita a ideia de uma fronteira naturalizada, que refletiria uma determinada realidade. Ao contrário, utiliza o termo como uma categoria analítica para pensar a subordinação daquela região específica a interesses econômicos externos, com grande peso internacional. Enfatiza como as análises anteriores desconsideraram a presença e a perspectiva dos povos indígenas que habitavam aqueles espaços, especialmente sua atuação em determinados tipos de seringais. A proposta é interpretar a história da região partindo das relações concretas que lá existiam, considerando sobretudo os impactos do “apogeu” da extração da borracha nas dinâmicas locais.

A ausência dos índios nas narrativas históricas, apresentados como meros “remanescentes” que seriam inexoravelmente “extintos” pela expansão da sociedade envolvente, ou seja, não teriam um futuro como um grupo diferenciado dentro da “nação” brasileira, foi questionada pelos resultados dos últimos censos. Verificou-se, especialmente a partir do realizado no ano 2000, um crescimento do número de índios muito superior aos demais segmentos da população (IBGE, 2005). Porém, como demonstrado no capítulo seis, “Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação das fronteiras étnicas”, os resultados dos últimos recenseamentos devem ser interpretados em perspectiva histórica. Longe de serem um mero reflexo da composição demográfica do Brasil, refletem paradigmas e configurações de poder específicos. A mudança nas últimas contagens espelha, entre outros aspectos, as disputas no campo indigenista e as iniciativas desenvolvidas pelos próprios índios. Em grande parte, foram seus vínculos identitários e suas ações políticas que questionaram os prognósticos sobre seu “desaparecimento” iminente. Relacionam-se, também, à disputa por direitos, pois os dados oficiais são documentos fundamentais na elaboração de políticas públicas e na distribuição de recursos.

O livro termina com a abordagem de uma categoria muito empregada em diferentes contextos na relação do Estado com as populações indígenas: a “pacificação”. A reflexão foi ocasionada pelas políticas de segurança pública desenvolvidas no Rio de Janeiro a partir de 2008. Na ocasião, uma operação militar na comunidade Santa Marta era apresentada como o início de uma “nova” presença do Estado nestes espaços, com promessas de combate ao tráfico e do estabelecimento de uma série de serviços de atendimento à população. O autor parte de um desconforto compartilhado por todos aqueles que conhecem minimamente a longa e controversa história da categoria “pacificação”, utilizada em diferentes contextos, desde o período colonial, para lidar com a alteridade indígena de maneira subalterna. A opção por sua recuperação na contemporaneidade em um contexto urbano revela a permanência de um paradigma estigmatizador das populações que habitam as comunidades na construção das políticas públicas de segurança. Denota ainda a presença de antigas práticas como referencial para iniciativas apresentadas como “novas” e nos leva a suspeitar em que medida elas representam de fato uma ruptura com um passado desairoso.

Os capítulos, produzidos em diferentes ocasiões, como já mencionado, foram articulados por um prefácio esclarecedor, no qual o autor retoma suas principais preocupações e contextualiza a leitura. Trata-se de uma publicação que deve ser lida por todos aqueles interessados na história no Brasil. Os temas tratados e a metodologia utilizada nos recordam que a história não é linear desde nenhuma perspectiva. Os povos indígenas do Brasil não têm uma trajetória única, e o que eles são hoje se vincula à maneira como se relacionaram, e foram afetados, pelas políticas estatais e pelas ações de diferentes agentes sociais. Vincula-se, ainda, às suas expectativas de futuro e às possibilidades apresentadas pelo tratamento que o Estado e a sociedade civil dão ao tema. Afinal, como João Pacheco enfatiza ao longo do livro, a questão indígena está intrinsecamente relacionada às discussões sobre a formação da “nação brasileira” e de suas hierarquias sociais. Ao não nos questionarmos sobre as origens das interpretações e das categorias que utilizamos, corremos o risco de naturalizarmos os projetos e sentidos daqueles que, baseados em seus próprios interesses e convicções, desenharam uma história do Brasil ancorada no eurocentrismo.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. [ Links ]

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos Censos Demográficos 1991 e 2000. Rio de Janeiro, 2005. [ Links ]

OLIVEIRA, João Pacheco (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999. [ Links ]

OLIVEIRA, João Pacheco (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contracapa , 2011. [ Links ]

Elisa Frühauf Garcia – Instituto de História, Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: [email protected].

Trabalhadores no tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do golpe de 1964 – SILVA (Tempo)

SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores no tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do golpe de 1964. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: SPERANZA, Clarice Gontarski.1 Os trabalhadores, a Justiça e a transformação social às vésperas do golpe civil-militar. Tempo, v.23 n.3, Niterói, set./dez. 2017.

Se a história do trabalho no Brasil tem atravessado um momento de grande fertilidade nos últimos anos, uma das áreas em que tal fenômeno parece ter alcançado maior significação são as pesquisas envolvendo processos da Justiça do Trabalho – como objeto, fonte ou ambos. Para a gênese desse movimento, contribuíram autores que chamaram a atenção para a chamada “cultura legal” dos trabalhadores brasileiros – como French (2001) e Paoli (1988) -, bem como a disponibilização de acervos de vários dos tribunais regionais, em um movimento de preservação da documentação levada a cabo por juízes do trabalho e historiadores, entre outros. O lançamento em livro de Trabalhadores no tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do golpe de 1964, de Fernando Teixeira da Silva, é um importante marco para a consolidação desse campo, tornando-se desde já leitura imprescindível para os que desejam compreender a formação do trabalhador brasileiro e suas relações com o Estado.

Trabalhadores no tribunal foi antecedido em 2014 por outra obra de Fernando Teixeira da Silva essencial para os pesquisadores que se aventuram em meio às ações da Justiça do Trabalho (criada pela Constituição de 1934, mas somente instituída em 1941, em pleno Estado Novo). A coletânea A Justiça do Trabalho e sua história, organizada por ele e por Angela de Castro Gomes (2013), já trazia, além de artigos de diversos autores mostrando a diversidade de novas abordagens possíveis no campo, uma introdução detalhando a importância e a significação dessa justiça especializada em meio aos conflitos entre capital e trabalho no Brasil.

O livro aqui analisado, porém, alcança outro nível, não apenas por ser obra autoral, de maior fôlego, originando-se da tese de livre-docência do autor na Unicamp, como por contar com uma pesquisa ampla em numerosas fontes primárias (em especial dissídios coletivos do Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região de São Paulo). A grande importância do livro deriva, em primeiro lugar, da capacidade de Silva de abordar e analisar os principais e polêmicos aspectos que envolvem a pesquisa com processos judiciais trabalhistas no âmbito da história do trabalho, dialogando ou citando virtualmente os estudos mais relevantes realizados no Brasil que utilizam esse tipo de fonte ou se debruçam sobre o tema (e que não são poucos nos dias de hoje, felizmente2). Ao fazê-lo, torna-se valiosa obra de síntese para outros estudos.

Por outro lado, Silva se apropria e vai além de constatações já feitas por essa bibliografia, como a de que a Justiça do Trabalho, por muitos anos menosprezada pela literatura acadêmica historiográfica, influiu decisivamente não só nos contornos da identidade do trabalhador brasileiro como na forma específica de suas lutas. Por meio da análise dos dissídios coletivos, esfera na qual pode ser exercido o polêmico poder normativo, privativo da Justiça do Trabalho (em síntese, o poder de criar normas extensíveis a um grupo, algo estranho, em tese, ao Poder Judiciário), Silva demonstra como este foi, diversas vezes, favorável aos sindicatos e representantes dos trabalhadores – urbanos e rurais – no período imediatamente anterior ao golpe civil-militar de 1964, sendo utilizado ampla e habilmente por eles em seu benefício e integrando os juízes nos conflitos patrões-operários não como mediadores neutros, mas como atores ativos relevantes.

O livro divide-se em duas partes, a primeira composta por três capítulos, e a segunda, por quatro e mais um capítulo “bônus”. No primeiro capítulo, o autor resume em grandes linhas a história da Justiça do Trabalho e faz um amplo levantamento da historiografia relativa a ela, relatando a grande mudança provocada pela incorporação da perspectiva thompsoniana da lei como campo de luta e o acesso facilitado às fontes como ingredientes do interesse renovado na área. Silva identifica os diversos caminhos seguidos até agora pelos pesquisadores, entre eles uma análise mais nuançada do corporativismo varguista (que contempla não apenas sua inspiração fascista, mas a ambiguidade de suas práticas), a apropriação feita pelos trabalhadores da esfera jurídica, a compreensão culturalmente definida das normas legais e a análise da progressiva judicialização das relações de trabalho no Brasil.

A discussão entre as características e eficácias dos modelos contratualista e legislado das relações de trabalho, e uma análise da influência da Magistratura del Lavoro fascista italiana sobre a Justiça do Trabalho brasileira são o tema do segundo e do terceiro capítulos, respectivamente. Ambos são um deleite para historiadores que se interessam pelo direito como campo de conhecimento e lugar de discursos e práticas de poder. No primeiro, Silva mostra como, longe de se oporem totalmente, ambos os modelos apresentam características um do outro na experiência prática de sua implantação. Mais adiante, sustenta que “o lugar para o qual a Justiça do Trabalho foi concebida no edifício corporativista brasileiro guardava semelhanças com o papel da Magistratura del Lavoro no arranjo corporativista italiano” (p. 107), porém ilustra por meio de comparações exaustivas como seu funcionamento efetivo acabou distanciando-as.

Essa primeira parte aparece como um aperitivo dos capítulos seguintes, nos quais é apresentada a pesquisa empírica propriamente dita, da qual foram utilizadas como fonte cinco centenas de processos do TRT-2 que tramitaram entre janeiro de 1963 e março de 1964. A metodologia da segunda parte da obra mescla a descrição e a análise de casos específicos com levantamentos quantitativos da massa documental, em um diálogo ativo e constante, manejado com habilidade pelo autor, sem perder nunca de vista o objetivo final de contrastar os processos que sofreram intervenção da Justiça e os que acabaram em acordos diretos entre as empresas e os trabalhadores. Minuciosos e detalhados (inclusive debruçando-se sobre as principais demandas específicas dos trabalhadores), os levantamentos mostram as vantagens dos processos julgados aos acordos, podendo nos primeiros o poder normativo do Judiciário trabalhista arbitrar índices e valores acima inclusive do reivindicado. Porém, para isso, o poder de barganha dos diferentes grupos de trabalhadores era um ativo forte na mesa de negociação jurídica, e a crescente mobilização dos sindicalistas à época tendia a esgarçar os limites do Judiciário: “as categorias mais organizadas e com maior poder de negociação tendiam a arrancar mais concessões do tribunal, que, por sua vez, procurava fixar um mesmo patamar de direitos para os trabalhadores como um todo” (p. 154).

Os levantamentos quantitativos são seguidos pela análise de julgamentos do tribunal e também da influência das numerosas greves ocorridas no período durante o desenrolar dos processos jurídicos dos dissídios; paralisações que colocavam à prova também as restrições impostas originariamente pelo Decreto-lei no 9.070, a lei de greve vigente de 1946 até o golpe de 1964. Nesse momento, Silva apresenta como os trabalhadores muitas vezes deslocavam o alvo de suas reivindicações dos patrões para a própria Justiça, que tinha o poder de decidir sobre salários e condições de trabalho. Presa nessa armadilha, a Justiça do Trabalho foi se tornando cada vez menos “técnica” e mais política, sensível à pressão cada vez mais efetiva das paralisações dos trabalhadores. Mais do que isso, muitas greves eram programadas com o intuito de pressionar diretamente não os patrões, mas o Judiciário.

O sétimo capítulo merece um lugar à parte, pois nele o autor acompanha o líder sindical e militante do Partido Comunista Luiz Tenório de Lima, não apenas discutindo a ambiguidade pela qual os dirigentes sindicais manejavam a Justiça do Trabalho – demonização verbal conjugada com uso frequente -, como salientando a importância do jogo jurídico na luta pelos direitos dos trabalhadores do campo no contexto do pré-1964. Foi pela via jurídica, mostra a obra, que os camponeses obtiveram importantes vitórias, por meio de recursos reiterados aos tribunais, ora exigindo o cumprimento de leis, ora buscando seu enquadramento legal como operários urbanos. Para eles, “as leis codificadas e as sentenças escritas apareciam como possibilidades de repor relações e direitos costumeiros, suspensos pelo arbítrio patronal amparado pelos poderes locais” (p. 239). E o mais impressionante é que a pesquisa empírica mostra a receptividade dos tribunais da época a essas demandas – movimento logo abortado a partir do golpe de 1964.

Por fim, no “capítulo bônus”, o leitor é guiado em meio a um amplo panorama da situação atual dos arquivos judiciários trabalhistas e da luta por sua preservação, esforço que tem como forças coadjuvantes grupos de historiadores, arquivistas, juristas e funcionários da Justiça do Trabalho. Apesar de importantes vitórias, com a constituição de valiosos centros de pesquisa de processos judiciais trabalhistas em todo o país, muita documentação ainda é eliminada cotidianamente. Essa destruição diminui em muito a chance de acessarmos as relações e os valores de multidões inteiras de trabalhadores, cujas experiências possivelmente não poderão ser analisadas.

Este último capítulo, apesar de sóbrio e extremamente bem embasado, dá o necessário tom de militância a uma obra que se debruça sobre o passado, porém busca também agir politicamente sobre o presente. Isso a torna viva e só a fortalece.

Por todas essas razões, cabe novamente reiterar que Trabalhadores no tribunal é leitura imperativa para todos os que desejam compreender melhor as lutas dos operários brasileiros não apenas no período que antecedeu o golpe de 1964, mas desde a década de 1940, quando surge oficialmente a Justiça do Trabalho. Fica claramente demonstrado o quanto a forte mobilização sindical, em uma apreensão hábil das “regras do jogo” legais, conseguiu garantir novos direitos. Por transitar entre o foco nas lutas “miúdas” (ou nem tanto?) de diversos grupos de trabalhadores e um olhar macro-orientado, a obra permite desvendar a transformação social que antecedeu o golpe civil-militar no âmbito dos trabalhadores, transformação essa imediatamente abortada pelos novos detentores do poder. O que nos inspira a interpretar outras transformações abortadas, e outros golpes, com os quais nossa nação hoje tristemente se depara.

 

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1 Clarice Gontarski Speranza – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pelotas(UFPel) Pelotas/Brasil. E-mail: [email protected]

2Seria temeroso um apanhado extenso dos trabalhos mais importantes, dada a fertilidade da área e o interesse despertado entre jovens pesquisadores, além, é claro, dos limites desta resenha. Porém, de forma meramente ilustrativa, podemos citar alguns exemplos de recentes pesquisas no Brasil envolvendo a Justiça do Trabalho no campo da história: Corrêa (2011)Droppa (2015)Resende (2012)Souza (2007)Souza (2015)Speranza (2014) e Varussa (2012).

De caboclos a Bem-te-vis – formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão (1800-18500) – ASSUNÇÃO (Tempo)

ASSUNÇÃO, Matthias Rönrig. De caboclos a Bem-te-vis – formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão (1800-18500). São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: GUIMARÃES, Elione. Lutas camponesas no império do Brasil: a desmitificação da passividade política do “povo” brasileiro. Tempo, v.23 n.3 Niterói, set./dez. 2017.

De caboclos a Bem-te-vis, livro de Matthias Rönrig Assunção, foi editado no Brasil em 2015. Primeiramente apresentado como tese de doutoramento junto à Universidade Livre de Berlim em 1990, a pesquisa foi premiada em 1993 e publicada a seguir, na Alemanha, pela Editora Vervuert (1993) com o título Pflanzer, Sklaven und Kleinbauern in der brasilianischen Provinz Maranhão, 1800-1850 (Fazendeiros, escravos e camponeses na província brasileira do Maranhão, 1800-1850).

Concluída e publicada nos anos 1990, a tese de Matthias Assunção foi iniciada nos anos 1980, quando o autor passou uma temporada no Brasil pesquisando nos arquivos do Maranhão e no Arquivo Nacional. Portanto, foi gestada no bojo da renovação historiográfica brasileira, com ela contribuindo e dialogando.

Do início do século XX até aproximadamente 1960, a historiografia brasileira estava caracterizada pelo ensaísmo.2 Os historiadores de outrora defendiam a tese da inexistência de comunidades camponesas, desde o período colonial até a primeira metade do oitocentos. Considerava-se que a população brasileira era composta por uma pequena elite branca europeia e seus descendentes, assim como por uma massa de indígenas, pessoas escravizadas e homens livres pobres (em geral mestiços), dispersa por um vasto território e sem apego à terra. Nessas circunstâncias, o “povo brasileiro” – aqui entendido como os homens livres pobres e privados de direitos políticos – eram estimados como politicamente passivos, desarticulados e despossuídos de cultura. Em outras palavras, incapazes de se organizarem para defenderem seus interesses.

A produção histórica das últimas décadas, principalmente a partir dos anos 1980, apresenta uma ruptura com a historiografia tradicional. Em oposição ao ensaísmo anterior, os estudos que vieram a lume nos últimos decênios são fartamente alicerçados em fontes documentais e apresentam resultados não generalizantes. A multiplicação das pesquisas é, em parte, resultado da proliferação dos cursos de pós-graduação e, junto com eles, do incentivo pela recuperação de acervos e produção de conhecimentos históricos regionais e locais. Influenciados pela historiografia francesa, inglesa e italiana,3 os historiadores elegeram outros objetos e novas metodologias de pesquisa, produzindo uma diversidade de trabalhos que muito têm contribuído para a revisão de paradigmas até recentemente cristalizados, a exemplo da “passividade política do povo brasileiro”. A recuperação das fontes locais trouxe a lume histórias desconhecidas, esquecidas em porões, nas tradições e na memória coletiva local. Resgatar ao passado os fatos e as memórias esquecidas ou apagadas pelos detentores da memória dominante possibilita novas leituras e a retomada da importância histórica dos populares e do grau de participação das regiões nos processos históricos.4

Assunção está entre os pioneiros dessa geração (brasileiros e estrangeiros) que renovou a produção historiográfica brasileira. Retirou do esquecimento dos arquivos histórias até então ignoradas, fez aos documentos perguntas que não haviam sido elaboradas. Tirou da amnésia social histórias da formação do campesinato maranhense, seus anseios, seus temores, suas lutas pela sobrevivência, sua tomada de consciência e suas ações pela defesa de seus interesses. Junto com isso emergiu muito mais… Delineia-se no texto a ocupação de um território, as relações entre as diversas formações sociais que nele habitaram. Perpassa o texto, como observou Martha Abreu, um “intenso diálogo entre o local, o regional e o Atlântico”.5

Mais de duas décadas depois da publicação alemã, o texto ganha uma edição em português, possibilitando sua circulação para um público mais amplo. A versão, ora publicada pela Editora Annablume, é uma exposição ampliada e atualizada da tese. O autor incorporou novas fontes de pesquisa à já significativa documentação levantada originalmente e visitou as produções historiográficas mais recentes sobre o Brasil, tanto as concernentes a temas mais amplos – como escravidão e questão agrária – quanto as específicas, relativas às revoltas ocorridas no Norte e no Nordeste durante o período regencial, especialmente a Balaiada (1838-1841), por ele eleita como fio condutor para nortear suas reflexões.

A preocupação central de Matthias Assunção é compreender o desenvolvimento da formação camponesa no Maranhão durante a primeira metade do século XIX e as transformações que gestaram a insurreição conhecida como Balaiada entre os anos 1838-1841. A análise leva em consideração a história ambiental, agrária, econômica e social, e suas dimensões culturais.

O livro está estruturado em cinco capítulos. No primeiro, o autor discute o impacto da economia de plantation sobre o meio ambiente maranhense – isto é, como a elite e os administradores se relacionavam com a natureza, percebendo as transformações nas condições de produção, e enfrentavam o desmatamento na defesa da expansão das fronteiras agrícolas. Partindo da descrição dos contemporâneos – relatos, cartografias, documentos administrativos -, o autor buscou compreender as diferentes paisagens maranhenses e seu potencial agrário e, ao mesmo tempo, a interação entre os homens e a natureza, assim como seu impacto na formação social maranhense, demonstrando a ocupação do território à medida que áreas anteriormente tomadas eram desgastadas.

O segundo capítulo é dedicado à análise das taxas demográficas: nascimento e morte, impacto das endemias e epidemias, influência do tráfico de cativos e das ondas migratórias de nordestinos. Dialoga, basicamente, com os censos, que se constituem na base quantitativa do capítulo. Destaco as relevantes críticas internas à fonte e os critérios estabelecidos para seu uso. As principais dificuldades apresentadas estão relacionadas com a não coincidência entre os limites das diferentes unidades administrativas (freguesias, distritos e termos), frequentes subdivisões das freguesias, bem como com a criação de novas. Soma-se a isso a fluidez das categorias raciais, que são socialmente construídas.

Matthias Assunção descreve detalhadamente a ocupação das microrregiões do Maranhão, demonstrando como o desenvolvimento econômico de cada uma delas reflete-se em sua estrutura demográfica. O autor conclui que a população camponesa foi a que mais cresceu na província maranhense no período avaliado, tanto nas áreas de economia de subsistências quanto nas áreas escravistas mais antigas. O predomínio de escravizados (55%) e a baixa concentração de brancos (16%) na província apresentavam-se como base concreta para o medo da eclosão de uma revolta de cativos, a exemplo da ocorrida no Haiti. No Maranhão, o medo dos “horrores do Haiti” estava tão presente no imaginário das elites quanto o pavor da “reescravização” no dos livres “de cor”. Por outro lado, a presença expressiva de migrantes nordestinos – que se juntaram a caboclos, forros e seus descendentes, formando uma significativa classe camponesa – possibilitou a insurreição dos Balaios, movimento que se estendeu às áreas em que esses grupos predominavam e extrapolou a província do Maranharão, atingindo alguns municípios do Ceará e do Piauí.

Partindo da análise dos Registros Paroquiais de Terras de nove freguesias da área central da revolta dos Balaios, o autor demonstra, no terceiro capítulo, as múltiplas formas de acesso a terras pelos camponeses (comunal, terras de santos, terras de pretos, terras indígenas). O relacionamento desse segmento com a elite agrária e os detentores do poder também não escapou à análise cuidadosa. Do texto emergem a complexa estrutura fundiária da província do Maranhão e a dissociação entre a teoria jurídica e a realidade concreta, evidenciando os conflitos agrários que permeiam a história do Maranhão. As disputas não se restringiram aos grupos antagônicos, como fazendeiros e posseiros, indígena e Estado, quilombolas e Estado. Elas se estenderam aos sesmeiros entre si e aos copossuidores de terras (“terras em comum”). Muitos desses conflitos tiveram origem na indefinição de limites e nas disputas pelas melhores áreas de terra.

O quarto capítulo é dedicado às atividades econômicas que se desenvolveram nas diferentes regiões maranhenses – fazendas de algodão, gado, mandioca e as unidades de produção camponesa. Assunção avalia as técnicas de produção e o aproveitamento dos recursos naturais, além das relações de trabalho em cada uma delas (existência ou não de trabalhadores escravizados, média destes em cada tipo de fazenda/região, composição dos trabalhadores livres etc.), descrevendo as hierarquias sociais construídas a partir das relações de trabalho. A economia da província do Maranhão foi analisada em sua integração com os mercados – local, regional e Atlântico -, considerando as crises conjunturais e pontuais do principal produto de exportação, as do mercado interno de alimentos e do mercado local de perecíveis, as ocasionadas por fatores externos, as naturais e as de abastecimento. O papel do Estado e as políticas fiscais do governo também foram criteriosamente analisados, demonstrando que a maior parte dos recursos arrecadados com os tributos na província maranhense era repassada à metrópole, primeiro a Lisboa e depois ao Rio de Janeiro, pouco contribuindo para o desenvolvimento da província. Todas essas questões econômicas foram consideradas em relação à geração dos antagonismos sociais.

O capítulo final é consagrado à análise das reformas institucionais pós-Independência e às intrincadas lutas das famílias da elite pelo controle do poder local e regional na província do Maranhão. O resultado foi o monopólio político de alguns grupos e a marginalização de outros, acentuando a polarização política e ideológica, sem impedir que se unissem quando tinham seus interesses confrontados com os dos subalternos. As transformações vivenciadas tanto pelo Estado central quanto pelo provincial gestaram as arenas dos conflitos na conjuntura de formação do Estado nacional e das disputas entre “portugueses” e “nacionais”, “conservadores” e “liberais” (os Bem-te-vis, aos quais o título da obra faz referência).

As práticas discriminatórias que incidiam sobre a população pobre livre, majoritariamente “de cor”, estigmatizada como “vadia”, “ociosa”, “vagabunda”, “classe perigosa” e “ladra”, formaram terreno fértil para a propensão à resistência. Somam-se a isso os frequentes recrutamentos compulsórios a que eram submetidos, concebidos como injustos e ilegais. A insubordinação dos escravizados, principalmente manifesta em fugas e formação de quilombos, e a circulação de informações e “ideias subversivas” se multiplicavam pela província. Os dominados reagiam às imposições dos dominantes e às suas estratégias de controle e práticas punitivas. Havia uma significativa mobilização popular, que circunstancialmente escapou ao controle dos liberais (1821, 1831 e 1838).

Nesse contexto, o pequeno jornal liberal radical, que adotou o apelido dos liberais, O Bem-te-vi, veiculava denúncias sobre os desmandos dos governantes “portugueses” e os desrespeitos aos direitos dos cidadãos brasileiros. Apesar de sua tiragem limitada, logrou penetração entre os “populares”, dando sentido ideológico ao discursos dos revoltosos. Não raro, os movimentos sociais foram liderados por libertos e escravizados (como feitores, por exemplo). Nessa conjuntura, foi moldada a mobilização autônoma das classes pobres e emergiu o discurso dos Balaios.

A Revolta dos Balaios (1838-1841) representou a maior ruptura entre a elite e os subalternos na província do Maranhão. A área central da insurreição, que se estendeu a partes do Piauí (onde contou com o apoio de famílias de grandes fazendeiros) e do Ceará, foi o Maranhão Oriental, que concentrava a maior população livre “de cor”. A rebelião também contou com o apoio de fazendeiros liberais do sul do Maranhão e atingiu o Vale do Itapecuru, área de grande lavoura, agregando escravizados, índios, caboclos e negros livres. A “Balaiada” contou com o apoio maciço dos pobres do campo e, fato raro na história dos movimentos sociais rurais do período, agregou homens livres e cativos na defesa de seus interesses e do que entendiam como seus direitos.

Para além da questão específica da “Balaiada”, o texto aborda a formação do campesinato na província do Maranhão, as formas de apropriação e uso da terra e os conflitos vivenciados com os demais segmentos sociais em defesa de seus interesses, evidenciando a luta dos camponeses. A obra de Assunção soma-se às diversas pesquisas no campo da história social da agricultura e da escravidão produzida nas últimas décadas; pesquisas essas inicialmente motivadas por Maria Yeda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, que em obra de 1981 contribuíram para motivar a revisão da historiografia brasileira, especialmente da história social da agricultura (Linhares e Silva, 1981). Esses autores elencaram e problematizaram uma série de fontes até então pouco utilizadas para esse fim, estimulando e provocando novos historiadores, que produziram uma diversidade de trabalhos de cunho regional sobre o mundo rural brasileiro, sua estrutura e seus agentes e a produção de alimentos,6 a exemplo de Hebe Mattos, João Fragoso e Márcia Motta.7

Desses estudos emergiram posseiros, pequenos produtores, camponeses e, mais recentemente, o campesinato negro e mestiço (da brecha camponesa às terras de pretos). Da releitura de velhas fontes à incorporação de novas, afloraram complexas histórias dos conflitos agrários de norte a sul do país, assim como das atividades econômicas desenvolvidas “nas bordas da plantation”, extrapolando a análise econômica tradicional para contemplar o cotidiano dos homens do campo em sua multiplicidade.8 Para além das revoltas clássicas reconhecidas pela historiografia, emergem outras, até recentemente pouco conhecidas, como a Rebelião de Carrancas, a Revolta dos Marimbondos e as resistências cativas, tanto as cotidianas quanto as eventualmente mais incisivas, como a de Manoel Congo, em Paty do Alferes (Andrade, 1996Palacios, s.d.; Pinaud, 2003).

Márcia Motta, principalmente, contribuiu com indagações que enriqueceram a história social da agricultura, extrapolando as estruturas econômicas e buscando compreender as diversas formas de acesso à terra, assim como de legitimação do direito ao território ocupado, dando visibilidade aos embates que ocorriam no cotidiano. Motta influenciou uma geração de novos historiadores, preocupados em recuperar os conflitos agrários, as múltiplas formas de apropriação da terra e as estratégias dos pobres do campo (camponeses, agregados, libertos e cativos) no vasto território brasileiro. Todas essas questões emergem das fontes e contribuem para desmitificar a tese da passividade política do povo brasileiro.9

Creio que a contribuição das pesquisas recentes me permite discordar de Assunção em algumas questões pontuais. Ao analisar o trabalho dos negros escravizados no Maranhão, ele destacou que “Outra particularidade nas fazendas maranhenses foi o uso frequente de negros alforriados ou mesmo escravos de confiança como feitores” (p. 219). A produção historiográfica dos últimos anos, principalmente sobre o Sudeste, tem observado com constância a presença de cativos e libertos ocupando funções de confiança, como feitores, capatazes e administradores. Portanto, não se apresenta como uma particularidade do Maranhão, mas uma realidade do sistema escravista brasileiro.

Outra questão apresentada como especificidade do Maranhão, destacada por Assunção, é que mesmo nas áreas de predomínio da grande lavoura havia povoados de subsistência, e nas áreas de forte predomínio de subsistência havia plantations isoladas. Acredito que inexistiram áreas exclusivas de plantation também nas demais regiões do Brasil. Na Zona da Mata mineira, por exemplo, especialmente em seu principal município produtor de café (Juiz de Fora), também havia povoados exclusivamente voltados para a produção de subsistência (Souza, 1998).

Ao analisar a condição dos “vadios”, termo presente nas fontes analisadas, Assunção observou que este não designava propriamente pessoas desempregadas ou ociosas, “[…] porque trabalhavam a terra, colhiam, caçavam e pescavam. O pecado deles, que incomodava tanto a elite, era de tentar viver de maneira autônoma, sem aderir à emergente ética de trabalho capitalista” (p. 224; grifo nosso). Tive entendimento semelhante ao analisar a situação dos libertos que foram criminalizados por vadiagem e das mães libertas que reivindicavam a guarda de seus filhos, tutelados pelos ex-senhores, no pós-Abolição (Guimarães, 2006). Nas fontes, deparei-me com libertos acusados de serem vadios, pois vagavam de fazenda em fazenda. Essa circulação não denotava vadiagem; pelo contrário, é evidência de que eles percorriam as propriedades agrícolas em busca de trabalho e nessas propriedades poderiam exercer as atividades com as quais estavam acostumados, os serviços de roça – eram “trabalhadores ocasionais para os períodos apertados de trabalho nas propriedades” (Moura, 1998, p. 82-83). Nas regiões cafeeiras, por exemplo, havia períodos em que esses trabalhos eram oferecidos em maior quantidade do que em outros – como os períodos de colheita, secagem e armazenagem do café (maio a julho) e de semeadura dos gêneros (julho a outubro),10 uma vez que a vida produtiva da roça se organizava intercalando meses de trabalho com meses de não trabalho (ou de menos labuta) (Moura, 1998, p. 48).

Em suma, De caboclos a Bem-te-vis apresenta-se como leitura indispensável aos que pretendem conhecer o passado rural brasileiro e as lutas camponesas. Em tempos “excepcionais”, como os que estamos vivendo no Brasil, as palavras de Gomes, um dos líderes dos Balaios, são oportunas para encerrar minha abordagem, na expectativa de que a tomada de consciência nos motive à resistência e luta pela garantia de nossas conquistas: “Brasileiros unimo-nos senão a nossa Pátria está perdida” (Raimundo Gomes Vieira Jutahy, 10 de julho de 1840, p. 337).11

 

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STANLEY, J. Stein. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. [ Links ]

1Elione Guimarães é professora e pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora (SARH/PJF). Doutora (pós-doutorado) em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenadora do projeto educativo Arquivo Escola (AHJF/SARH/PJF). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sociedade, Cultura e Trabalho na região da Zona da Mata Mineira, séculos XVIII-XX (Unisinos).

2Refiro-me a: Prado Jr. (1954 e 1981), Sodré (1944 e 1962), Holanda (1995) e Furtado (2003).

3Principalmente Marc Block, Lucien Febvre, E. P. Tompson e Giovani Levi.

4 CARDOSO, Ciro Flamarion. Cultura, Etnia, Identidade e Memória. Digitado. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense.

5Marta Abreu (professora-associada do Departamento de História da UFF), texto de apresentação na contracapa do livro de Assunção.

6Para um balanço dessas questões, ver: Motta e Guimarães (2007, p. 95-117).

7 Fragoso (1983), Mattos de Castro (1987) e Motta (1998). No campo mais específico do escravismo e das rebeliões cativas, podemos citar Mattos de Castro (1995), Gomes (2015) e Machado (1994).

8Para apreciação de alguns textos e autores, ver: Brandão e Christillino (2014).

9Entre outros: Silva (2011)Myskiw (2011)Machado (2011)Pinto (2010) e Lamas (2013).

10A respeito da sazonalidade da produção cafeeira e dos principais produtos de subsistência, ver: Stanley (1985, p. 58-61) e Fragoso (1983, p. 51-58).

 

Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar – ROSSA; RIBEIRO (Tempo)

ROSSA, Walter; RIBEIRO, Margarida Calafate. Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar. Rio de Janeiro: EDUFF, 2015. 533p.p. Resenha de: CHUVA, Márcia. Presença portuguesa, patrimônios e influências plurais. Tempo v.23, n.3 Niterói Spt./Dec.2017.

Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar é uma coletânea com edição simultânea no Brasil e em Portugal, organizada por Walter Rossa e Margarida Calafate Ribeiro, que compartilham também a coordenação do Programa de Doutoramento em Patrimônios de Influência Portuguesa. Escrever sobre esse livro é também trazer, ainda que de forma indireta, esse programa interdisciplinar, interinstitucional e transnacional, de complexa engenharia, como já se nota na apresentação do livro, nas palavras de seus organizadores. Sediado na Universidade de Coimbra, o curso tem regime de cotutela com universidades na Europa (Universidade do Algarve; Universidade de Bolonha; Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense), no Brasil (Universidade Federal Fluminense) e em Moçambique (Universidade Eduardo Mondlane), além da colaboração de instituições em Angola e Cabo Verde. A obra reúne contribuições de especialistas envolvidos com esse projeto, profissionais que enfrentam as controvérsias teóricas de um campo em construção – o campo do patrimônio -, considerando as singularidades desses percursos em seus países.

A centralidade portuguesa, que parece se esboçar logo no título da obra (e do programa) Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar, acaba por desconstruir-se, atualiza-se e se refaz passo a passo, no decorrer dos capítulos, colocando em evidência os desconfortos dessa posição, remanejando pontos de vista, perspectivas, pontos de fuga. Seus organizadores partem de uma constatação relacional valiosa, que se refere à impossibilidade de falar com autoridade e propriedade sobre o patrimônio do outro, mas também à inutilidade de pensar o meu isoladamente. Entendo que tal constatação é geradora dos desafios dessa obra, ao conduzir as discussões do patrimônio para o eixo dos debates do colonialismo e do pós-colonialismo, motivos suficientes para dar pertinência e relevância a ela. É essa, sem dúvida, sua principal contribuição no Brasil, pois tal abordagem no campo do patrimônio ainda tem caráter de novidade por aqui.

Uma segunda constatação vai delinear as singularidades dessa obra: subsistem desconhecimentos e diferenças sensíveis nas práticas de atuação, na teorização e nas normativas, entre os universos das culturas latinas e anglo-saxônicas, apontando os descompassos em termos internacionais no campo do patrimônio. A obra pretende marcar posição nesse debate, como lugar alternativo, em termos teóricos, à hegemonia anglo-saxônica, que se dá em escala europeia e se impõe inclusive em função de sua capacidade editorial. A ambição dessa publicação é, pois, ampliar e transformar perspectivas e reflexões por meio de um debate que se estabelece não apenas pela ampliação do universo empírico de casos distintos, como também por caminhos teóricos alternativos, focados a partir da América do Sul, Ásia e África. Esses caminhos recuperam, como dizem seus organizadores, a ligação umbilical dos estudos culturais com os estudos pós-coloniais, justamente o ponto no qual se distanciam do universo acadêmico anglo-saxônico. Não por acaso, e curiosamente, a mesma frase de Salman Rushdie aparece citada por dois autores: The empire writes back to the centre. Parece mesmo ser indício da predominância dos estudos culturais na operacionalização de análises tão diversificadas, nas quais os conceitos de discurso (como dispositivo que engloba o dito e o não dito), em Michel Foucault, e de tradução, em Stuart Hall (que descreve identidades em diáspora, as quais intersectam as fronteiras nacionais), ou ainda como Homi Bhabha (que toma o processo de descolonização como tradução), atravessam fartamente as análises aqui presentes, apresentando-se inclusive em alguns títulos de capítulos. Isso não significa, de modo algum, uma abordagem teórica homogênea ao longo dos 18 capítulos do livro. Ao contrário, revela uma orientação teórica compartilhada pela maioria dos autores, que conecta abordagens e evita a fragmentação da obra em uma enxurrada de problemas, objetos e contextos bastante diferentes que caracterizam os estudos do patrimônio. Assim, o patrimônio relativamente circunscrito, tomado como discurso e tradução, é apresentado estrategicamente como um conceito-ação, ancorado fortemente na história para não resvalar em perspectivas estanques ou essencialistas.

Por sua vez, língua e território são conceitos que fazem o chão dessa obra de empreitada. Esses conceitos são tradicionais nos estudos nacionais e foram, a um só tempo, aqui reconcebidos e reconectados como pertencimento e poder. A língua tirana e colonial pode ser, por outra via, apenas rastro, traço, resto; ou ainda permanência, lugar de resistência, mobilidade. O território, de aparência tão concreta, pode tornar-se fluido, desmanchar-se em múltiplos fragmentos. Essas tensões constituintes dos conceitos de língua e território configuram o próprio campo do patrimônio e são o fio condutor nos processos de construção de identidades e de patrimonialização aqui analisados. À medida que se avança na leitura dos capítulos, o patrimônio se revela um conceito bastante largo, como aquilo que agrega comunidades, mas também é fruto de política e de poder: por isso mesmo usado no plural, patrimônios.

A estrutura do livro, com duas partes interseccionadas por uma entrevista, sugere que sua leitura tenha início pelos conceitos contextualizados para, em seguida, avançar sobre dispositivos variados, em uma abordagem histórica e objetivada. Na primeira parte, são trabalhados conceitos tradicionalmente presentes no campo do patrimônio, como memória e identidade, somados em pares ou tríades, a outros inescapáveis, como poder e herança, e seguem configurando o universo de questões para (re)desenhar esse campo no âmbito dos debates pós-coloniais. Questões como transnacionalização da memória – mobilidades, migrações, diásporas e pós-memórias (que seriam o modo com que as segundas gerações lidam com as experiências traumáticas que ocorreram antes do seu nascimento, as quais, no entanto, lhes foram transmitidas de modo tão profundo a ponto de se constituírem em memórias suas) – introduzem o debate sobre uma “pós-memória pública”, sugerida por Antonio Sousa Ribeiro. Seis capítulos circunscrevem um expressivo conjunto de conceitos desfiados, desafiados e enfrentados por seus autores, em contextos para ler e pensar a partir de uma perspectiva pós-colonial. Compreende-se a necessidade de uma parte teórica, não por uma instabilidade conceitual advinda, pura e simplesmente, da jovem/relativamente recente configuração do campo, mas sim pelo desafio que é intrínseco a seu próprio projeto: patrimônios de influência portuguesa. A escolha pelo conceito de influência – entre outras tantas possibilidades, como origem ou matriz – apresenta-se para expressar a orientação teórica e política que intitula a obra (e o doutoramento). O conceito de influência é desenvolvido com desenvoltura por Renata Araújo como o melhor caminho a tomar, até mesmo por sua ambiguidade e fluidez, pois, embora também traga riscos, ficamos convencidos de que o maior deles talvez seja, em suas palavras, o “da sublimação ou branqueamento dos processos, que há que acautelar”. É justamente por causa desse risco que uma pergunta de imediato se apresenta: afinal, quem tem legitimidade e meios para falar disso?

Tentativas de respostas a essa pergunta aparecem na parte 2 – “Discursos e percursos” -, composta por 12 capítulos. Seus autores têm lugares de fala variados, desenham objetos de investigação que são também fontes e sujeitos de narrativas. Tais autores buscam, com mais ou menos familiaridade, aproximar-se de problemas postos em diferentes circunstâncias no campo de ação das políticas, ou de investigação do patrimônio. É nessa parte que as distintas narrativas disciplinares se apresentam com maior clareza, pelas abordagens, temas ou fontes trazidas para a investigação. Ali também estão à mostra processos de pesquisa vivenciados a partir das próprias experiências pessoais de construção de identidade em um mundo adverso, onde, a partir da percepção do pequeno gesto de “olhar para baixo”, descortina-se a possibilidade libertadora do ser e do saber, conjugados, tal como trabalhado por Graça dos Santos.

Cinema, desenho, planta ou cartografia, arquitetura, fotografia e espaço urbano são patrimônios expressos em diferentes linguagens aqui capturadas, ora como fontes, ora como objetos de investigação. Urge a aproximação com os debates da história pública, a fim de abrir para a compreensão do conceito em construção de fotografia pública, lançado por Ana Maria Mauad, ou do já referido pós-memória pública, ambos aqui tangenciados. Ainda que essa obra não tenha se proposto enfrentar tal debate, o leitor pode sentir-se provocado a estabelecer algumas conexões, tendo em vista que a temática dos usos públicos da história, por meio dessas diferentes linguagens, tem levado historiadores e cientistas sociais em geral a se interrogarem sobre suas próprias práticas e os efeitos políticos delas. Assim provocada, senti a ausência, entre os autores dessa obra, de agentes do campo do patrimônio, para promover diálogos entre mundos ainda apartados e intelectuais com lugares de fala distintos. Esses profissionais têm muito a dizer e premem por esse debate.

Na interseção das duas partes, encontra-se uma entrevista com o reconhecido pensador português Eduardo Lourenço, que oferece os indícios das expectativas que o livro pode gerar ao conduzir um claro entendimento, em associação: a creoulização da língua portuguesa foi obra do acaso e da ganância; e “influência”, categoria aparentemente problemática que nomeia o livro, difere de cópia – assunto caro ao campo do patrimônio, pois envolve a desconstrução do mito da autenticidade – e se apresenta de forma promissora para a reflexão sobre patrimônios, no âmbito dos estudos pós-coloniais. Por isso, talvez, essa entrevista seja um bom ponto de partida para a leitura da obra.

Trata-se de uma obra densa, e seus organizadores e autores não parecem ter se preocupado em torná-la de digestão fácil ou rápida; mostram-se autores de um conhecimento produzido na base do desconforto e da inadequação, dos incômodos acerca da “situação colonial”. Nessa condição, estabelecem conexões entre campos de conhecimento e disciplinas diversas, trazendo suas contribuições. Destaco aqui a forte presença dos estudos literários, que são apresentados no capítulo de Margarida Calafate Ribeiro, em excelente panorama de suas conexões com o debate pós-colonial. A autora sublinha que a interculturalidade (interpretação cultural resultante do processo colonial) não pode ser compreendida sem ter em conta as relações de poder inerentes à “situação colonial”, assim pensada por Balandier, em 1951, e à “situação pós-colonial”, como tratado por Elikia M’Bokolo. O mesmo raciocínio vale para compreender os processos de descolonização, não como rejeição ou aceitação do patrimônio atribuído pelo ex-colonizador, mas como um processo de tradução de intensidades e modos diversos.

A intenção de ampliação de universos de conhecimento e ruptura de fronteiras disciplinares rígidas pode ter sido motivo para um afastamento de alguns autores dos debates relativos especificamente às políticas de salvaguarda e proteção de bens culturais que configuram parte expressiva das reflexões no campo do patrimônio na atualidade. Parece tratar-se de um esforço legítimo de integrar essa temática ao escopo de problemas teóricos e historiográficos mais amplos. Contudo, sempre se corre o risco de perder o esforço de algumas décadas de circunscrição de um aparato metodológico no campo das ciências sociais, construído para lidar com os novos objetos teóricos advindos desse foro de ação política – o que poderia vir a diluir as especificidades do campo em temáticas históricas das quais faz parte, mas não se confunde com elas. Os autores são grandes especialistas em suas próprias áreas temáticas, neófitos que buscaram conectar-se com reflexões próprias do campo do patrimônio. Por isso mesmo, alguns capítulos brilhantes ganham maior inteligibilidade se lidos em continuidade, como as lições de história sobre colonialismos e pós-colonialismos, de Miguel Bandeira Jerónimo e Francisco Bethencourt; ou as reflexões sobre o ofício do historiador, posto em cena por meio do debate historiográfico sobre territórios em rede, que reorienta a compreensão sobre eurocentrismo e protagonismo de agentes locais, trabalhado por Maria Fernanda Bicalho, e a reflexão de Luís Filipe Oliveira sobre o lugar dos arquivos como espaço de poder sobre o passado e a memória. Esses e outros diálogos entre autores demonstram a organicidade da obra, ficando a cargo do leitor estabelecer as inúmeras correlações entre eles.

Por fim, um mapeamento institucional e disciplinar dos autores evidencia seu locus de fala/ação: acadêmico, europeu e português. Trata-se de características relevantes a serem consideradas para que se compreenda a obra: são 18 capítulos de especialistas com formações nas áreas de letras, história, arquitetura, história da arte, antropologia, comunicação e teatro. A diversidade institucional dos autores aponta para um predomínio português e europeu, seguido de instituições brasileiras e de uma instituição moçambicana. Um olhar mais detido aponta evidências sobre seu caráter interdisciplinar, com predomínio de uma formação teórica ligada aos estudos literários associados à perspectiva histórica (bem aos moldes dos estudos culturais). Essa especificidade confere o tom geral da obra e a distingue da produção especializada na temática do patrimônio no Brasil, em que predominam estudos nos campos da antropologia e da arquitetura, presentes em minoria nesse livro.

É possível afirmar que os estudos brasileiros encontram-se bastante amadurecidos no que concerne às reflexões sobre políticas institucionais de memória e patrimônio, sustentadas por profissionais com larga experiência, que atuam como agentes ou pesquisadores do campo. Por isso mesmo, para ser compreendida, essa obra nos obriga a deslocamentos, mudanças de ênfases e perspectivas, uma vez que aproxima a temática do patrimônio do lugar de formulação de alternativas emancipadoras à situação pós-colonial, pensada em seu sentido mais amplo, como uma fase a ser superada, e não um modo imutável de estar no mundo. Daí a importância de sua publicação no Brasil.

Márcia Chuva – Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) – Rio de Janeiro – Brasil. E-mail: [email protected].

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930 – CUNHA (Tempo)

CUNHA, Maria Clementina Pereira. “Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930. Campinas: Unicamp, 2016. Coleção Históri@ Illustrada, Resenha de BRASIL, Eric. “Muitos caminhos até chegar ao samba”. Tempo v.23 no.2 Niterói mai./ago. 2017.

Quantos gêneros musicais podem ser tão identificados a uma nacionalidade quanto o samba no Brasil? O próprio termo samba tem remetido ao país nos mais variados lugares do mundo desde meados do século XX. Samba, Brasil, brasilidade, juntamente com carnaval, futebol e sensualidade, têm comumente andado lado a lado no imaginário global. Meios de comunicação, senso comum, as mais variadas produções artísticas e intelectuais sedimentaram tais associações ao longo do último século. A própria atuação, performance, memória e práticas culturais de sambistas por décadas vêm valorizando e ressignificando as relações entre o gênero musical e a ideia de nação.

Essa construção tornou-se tão forte e eficaz com o avançar do século XX que mesmo a produção acadêmica sobre a história do samba e seus agentes recorrentemente corroborou de forma acrítica seu caráter de símbolo nacional. Outras vezes silenciou seus conflitos e disputas internas, fortalecendo a percepção da história do samba como unívoca e que teria trilhado um caminho linear desde o período da escravidão até os dias atuais. A exceção mais comum dessa leitura harmoniosa dos caminhos do samba esteve nos debates sobre sua origem, local de nascimento “autêntico”: Rio ou Bahia? Morro ou asfalto? Zona portuária ou Estácio?

O novo livro de Maria Clementina Pereira Cunha, “Não está sopa”: samba e sambistas no Rio de janeiro, de 1890 a 1930 busca justamente enfrentar toda essa cultura histórica que tendeu a simplificar e homogeneizar a história do gênero e de seus agentes. Realmente, não é sopa enfrentar um tema tão arraigado no senso comum e nas afetividades populares brasileiras. Mas a autora não foge à briga, e seu livro é um ótimo exemplo da constante necessidade de analisarmos sentidos, possibilidades, aspirações, projetos, rivalidades, tensões, conflitos e alianças costurados na experiência urbana por homens e mulheres que precisaram dialogar e enfrentar sujeitos e grupos que defendiam perspectivas distintas.

Em “‘Não está sopa’”, a autora executa uma verdadeira aula de como realizar uma história social da cultura. Seu objetivo não é simplesmente caracterizar formas culturais, tipos de instrumento, danças ou ritmos, nem mesmo narrar fatos curiosos sobre cada personagem que frequentou rodas de samba. Muito pelo contrário, o objetivo central é compreender os sentidos criados e as escolhas feitas pelos sujeitos sociais que participaram dessas rodas. A análise recai sobre a experiência social de cada um deles, sempre levando em consideração contatos, redes, estratégias e caminhos, não apenas no momento da performance cultural, mas principalmente no restante do ano – nas disputas por emprego e moradia, nas relações familiares e religiosas, no conflituoso convívio com as forças policiais e autoridades republicanas. Nas palavras da autora, o foco está na

[…] vida cotidiana dos participantes e frequentadores dessas rodas [de samba], suas percepções e comportamentos em circunstâncias determinadas. E, naturalmente, nas escolhas, nas disputas, nos valores compartilhados entre os vários grupos, nas relações entre esses indivíduos especiais e a multidão de anônimos que conviviam nos bares e cafés, cortiços, terreiros ou, eventualmente, nas cadeias. (p. 86)

O carnaval, as rodas de samba, as letras, as músicas e os instrumentos são portas de entrada para encontrarmos personagens complexos e historicamente relevantes para nosso entendimento, tanto da história do gênero quanto da própria vida cotidiana dos trabalhadores pobres da cidade do Rio de Janeiro entre 1890 e 1930.

O recorte cronológico em si já demonstra a preocupação da autora com as diferenças mais do que com os consensos, com a diversidade mais do que com a homogeneidade. Esse período foi escolhido justamente por permitir o estudo das variadas possibilidades estéticas, artísticas, musicais que se chocavam nas ruas da capital federal. Estudar o período entre a última década do século XIX e as três primeiras do século XX permite, segundo Cunha, compreender o processo liderado por “indivíduos pobres, em sua maioria negros, sem o glamour que a posteridade lhes atribui” (p. 12), composto por uma musicalidade variada que só depois de algumas décadas levaria ao “samba moderno”.

Para tal, as fontes foram reunidas em mais de 10 anos de pesquisa. A autora explica que seu método principal consistiu em confrontar os processos criminais com os dados biográficos dos sujeitos. Esse método é complementado pela análise de crônicas, literatura, jornais, depoimentos, músicas e imagens (p. 13).

Os dois últimos tipos de fontes citadas, músicas e imagens, são fundamentais no desenvolver do livro, tanto por seu carácter analítico quanto por possibilitar ao leitor um relance vívido da análise histórica que vem sendo construída por Cunha. O livro, por ser em formato digital (Epub-2 ou Epub-3), vem recheado de quase duas centenas de imagens, que podem ser abertas e contempladas pelo leitor, e por mais de 40 gravações originais, muitas delas nas vozes dos próprios personagens cujas trajetórias são analisadas nos quatro capítulos.

Esses recursos audiovisuais transformam a leitura em uma experiência agradável e complexa, ajudando na imersão do leitor na temática estudada. Tais recursos são bem explorados pela autora – cada imagem e música se encaixam no texto, sempre inseridas em momentos que contribuem para a leitura e a compreensão dos argumentos do livro, e não apenas como exemplos ilustrativos. Como fica claro logo na introdução, a autora escolhe reduzir o número de citações e referências bibliográficas, o que torna o texto mais dinâmico – mesmo que dificulte a identificação de alguns debates e críticas presentes no texto.

O livro apresenta quatro capítulos, além da introdução, de fácil leitura. O Capítulo 1, “Uma questão de berço” (p. 18), tem como objetivo principal questionar as “origens” mais comuns atribuídas ao samba. Caracteriza com maestria que os debates sobre a origem do samba são estéreis e pouco, ou nada, têm a oferecer para o entendimento do gênero e de seus agentes; consegue deixar claro para os leitores que os debates acerca do lugar de “nascimento” do samba falam muito das disputas entre grupos coevos, e que é importante pensarmos justamente sobre os motivos que levaram a tais “origens” serem defendidas por determinados grupos. Busca também um debate sobre o termo “Pequena África”, cunhado por Heitor dos Prazeres, e como a história social pode relativizar seu uso. Por meio de fontes policiais, judiciais e de censos, busca caracterizar a região em sua multiplicidade, e não apenas como um espaço negro.

O Capítulo 2, “Gente da lira” (p. 54), analisa as relações entre a atuação policial e a diversidade racial, os padrões demográficos e habitacionais das áreas centrais do Rio de Janeiro, especialmente na freguesia de Santana. Desenvolve mais detalhadamente a análise da região popularmente conhecida como “Pequena África”, comprovando ser um espaço muito mais variado e complexo do que a expressão de Heitor dos Prazeres denotaria. Ao analisar a demografia, os crimes e a ação policial em Santana, a autora é capaz de compreender os padrões e motivos de prisão, os espaços de moradias, convívio e rivalidade. Conclui que, em Santana, a ação policial esteve voltada para o controle social, mais do que para a repressão a crimes, como assassinatos e roubos (p. 59), revelando a preocupação das forças republicanas em manter essas regiões sob o signo da “ordem”.

Os Capítulos 3, “Gente de fora” (p. 94), e 4, “Da gema” (p. 150), apresentam estruturas e estratégias semelhantes e são os melhores do livro. Ambos têm como objetivo analisar experiências de sujeitos ligados ao samba por suas relações com a polícia e a justiça, assim como caracterizar as redes, alianças, rivalidades dos grupos nos quais estão inseridos e com os quais se opõem.

No terceiro, a análise recai sobre os sujeitos ligados aos candomblés da região de Santana, da zona portuária, bastante identificados com migrantes do Nordeste, especificamente da Bahia. A autora realiza importante estudo sobre esse grupo, o impacto de sua presença, seu tamanho e as redes de sociabilidade por ele construídas nas ruas de Santana. Cunha consegue evidenciar que tal grupo não constituía uma comunidade ou elite à parte dos demais trabalhadores da região; que não foi demograficamente superior a outros tantos grupos de migrantes e cariocas. Dedica-se, ademais, ao estudo dos centros religiosos e de sua importância na formação de conexões entre esses indivíduos, assim como do papel das mulheres na formação dos vínculos identitários e na ampliação e preservação de espaços de sociabilidade e proteção.

Na parte final do mesmo capítulo, realiza alguns estudos de caso de membros ilustres da comunidade “baiana” por meio de processos criminais, buscando compreender os caminhos e as estratégias costuradas por esses indivíduos ao se relacionarem com a polícia e as autoridades republicanas. Conclui resumindo os motivos que levaram à constituição de uma ideia quase mítica dessa comunidade baiana como foco irradiador de uma cultura popular carioca nos anos 1900 e 1910.

O quarto capítulo faz movimento bastante semelhante ao anterior, mas altera o espaço e os sujeitos: a área estudada é a região do Estácio, com a zona do Mangue e do meretrício; os casos estudados são protagonizados pelos “malandros” sambistas da região do morro de São Carlos. Busca marcar claramente as diferenças com a região estudada no Capítulo 3: o Estácio seria caracterizado por uma pobreza maior, mais repressão policial, sofreria com o impacto da região do Mangue e sua zona do meretrício com suas mazelas. Logo, conclui Cunha, o samba e o carnaval seriam os únicos espaços identitários aos quais seria possível se agarrar, visto que, nessa área, as casas religiosas, como os candomblés, e as redes de solidariedade, como as costuradas pelos descendentes dos migrantes baianos, não teriam conseguido se consolidar com tanta força como em Santana. Todavia, tais constatações podem ser relativizadas e tornadas complexas com novas pesquisas sobre a região e a influência de outros grupos, especialmente os migrantes e seus descendentes do Vale do Paraíba fluminense, de Minas Gerais e de São Paulo (Abreu e Dantas, s.d.; Abreu, Agostini e Hebe, 2016Barbosa, 2015Costa, 2015).

Com esse breve sumário dos capítulos, fica evidente os muitos acertos ao longo das mais de 200 páginas de seu novo livro. Autora experiente da história social da cultura,2 Cunha defende acertadamente que “o carnaval e as rodas de samba podem ser um prato cheio para perceber, em um plano mais geral, [a] multiplicidade” nessa história. Em seu estudo, podemos aprender “sobre os limites, escolhas e alternativas que se ofereciam àqueles homens e mulheres que cantavam, dançavam ou se divertiam em torno do som de violas, cavaquinhos, pandeiros, tambores […] revelando suas formas de reivindicar e se dar a público, seus projetos e aspirações” (p. 11).

Seu foco está na multiplicidade de agentes; seu esforço é compreender os diferentes sentidos elaborados pelos variados grupos sociais; a importância dada aos contatos entre os trabalhadores urbanos com as forças republicanas – polícia, justiça, políticos -, intelectuais e jornalistas; o estudo de trajetórias individuais e a caracterização dos grupos e de suas rivalidades internas. Elementos que representam uma enorme contribuição, tanto para a história do samba quanto para a história da cidade do Rio como um todo, principalmente para o período da Primeira República, que por muito tempo foi relegado a segundo plano pela historiografia.3

Um ponto nevrálgico do livro é a questão racial. Por um lado, está constantemente presente nas fontes; por outro, o leitor fica com a percepção de que uma análise mais detalhada sobre racismos e racialização poderia ter suscitado novos questionamentos ao longo de “’Não tá sopa’”. Nas palavras de Cunha:

Ainda que a racialização das relações sociais e o racismo explícito das elites republicanas impregnassem o dia a dia dos trabalhadores da cidade, os espaços gestados pelos antigos escravos, especialmente aqueles relacionados ao carnaval ou a outras formas de lazer urbano, já encontravam novos parceiros em sua construção. Análises das formas de sociabilidade dos trabalhadores cariocas nesse período evidenciaram que os grupos que se organizaram para a festa e a folia – onde frequentemente os negros tinham a maioria, mas raramente a exclusividade – tiveram um grande peso nesse processo e figuraram entre aqueles que sofreram maior controle ou foram objeto das mais duras iniciativas no dia a dia da polícia local. (p. 10)

Apesar desse parágrafo indicando a importância da questão racial na configuração das rodas de samba como espaço de autonomia protagonizados por homens e mulheres negros, as escolhas teóricas da autora se voltam mais para as dimensões sociais dos trabalhadores da cidade. Apesar de muitas fontes e personagens colocarem essa questão em evidência, e Cunha apontá-las para o leitor, o peso do racismo na história do samba ainda fica em aberto.

Sobre o tema, após afirmar que a palavra samba estivera associada a sociedades carnavalescas e dançantes de trabalhadores “de várias procedências e cores” desde o século XIX (p. 11), a autora afirma:

Ainda assim, é necessário enfatizar que a absoluta maioria dos sambistas que vamos encontrar nas páginas seguintes, no papel de protagonistas dessa história, é constituída por descendentes de escravos. Impossível ignorar essa marca, inscrita na cor de suas peles e nas memórias aprendidas de seus pais e avós. Isso não significa, entretanto, que o samba possa ser tomado de antemão como uma manifestação exclusiva da “raça” ou de uma cultura própria desses setores – e, muito menos, como prática unívoca e isenta de conflitos. (p. 11)

A autora faz um contraponto, talvez muito rígido, ao deixar subentendido que a única possibilidade de pensar a importância da questão racial na formação do samba é a defesa de uma cultura negra essencializada e unívoca. Critica acertadamente interpretações que, carregadas de viés ideológico e político, fariam uma leitura do samba como exemplo de uma cultura negra imóvel. Contudo, essa não é a única forma de se trabalhar com tal perspectiva. Há uma vasta bibliografia sobre identidade, cultura e questões raciais que vêm, por décadas, criticando essa interpretação essencializada de cultura negra – Paul Gilroy (2000), Stuart Hall (2003), Mintz e Price (2003), Matthias Röhrig Assunção (2005) e Kim Butler (1998), apenas para citar alguns exemplos – e propondo interpretações que levem em consideração as inovações, invenções, ressignificações que não impedem tanto os sujeitos históricos quanto os estudiosos de pensar sobre identidades e culturas negras em contextos como o Rio de Janeiro entre 1890 e 1930.4

Ou seja, a multiplicidade defendida e comprovada pela autora na história do samba não inviabilizaria pensar simultaneamente a racialização, o racismo e o antirracismo a partir das mesmas fontes. Como a análise de Cunha valoriza e comprova as trocas e diversidades na história do samba e a importâncias delas para as experiências cotidianas dos trabalhadores cariocas, debates sobre crioulização, diáspora africana e Atlântico Negro podem suscitar novas perguntas e possibilidades sobre o mesmo tema em novas pesquisas.

Os principais exemplos dessa questão são encontrados nos Capítulos 1 e 2. Em ambos, Cunha se dedica a entender a região da “Pequena África” como um espaço de grande heterogeneidade racial, o que fica evidente com as fontes e análises apresentadas. Entretanto, ela não deixa de notar que há uma “racialização do perigo”: “ainda que os brancos constituíssem a maioria da população, o contingente de presos negro e pardos era proporcionalmente bem maior que sua presença demográfica” (p. 61).

Segundo ela, as diferenças vividas no cotidiano da região obrigaram seus moradores

[…] a engendrar formas de diálogo permanente, produzindo novas identidades, reafirmando laços antigos ou inventando tradições […]. A despeito do racismo que levava descendentes de escravos com mais facilidade que brancos às cadeias das delegacias ou à casa de detenção, o que as evidências policiais revelam é, antes que tudo, a intensa mistura e a convivência entre trabalhadores brancos e negros, de diferentes origens nacionais, no enfrentamento de dificuldades da vida diária. (p. 61; grifo nosso)

Esse último parágrafo tende a minimizar um componente crucial na vida desses homens e mulheres negros que formaram a grande maioria dos sujeitos estudados por Cunha no livro: o racismo diário, que impactava (e ainda impacta) as possibilidades, horizontes de expectativa e mesmo a vida e morte de imensa parcela da população carioca. Pesquisas recentes vêm buscando justamente pensar as tensões raciais na cidade ao longo da Primeira República, e sem dúvida têm bastante a dialogar com os argumentos de Cunha.5

Uma questão delicada está presente na escrita do Capítulo 4, “Da gema” (p. 150). Ao lermos as trajetórias de “malandros” da região do Estácio, especificamente as histórias de Baiaco e Brancura, nos deparamos com casos policiais gravíssimos, envolvendo estupro, lenocínio, entre outras formas de violência desses homens contra mulheres nas ruas da cidade. São casos extremamente graves, como navalhadas no rosto de prostitutas e um evento de possível estupro coletivo. Ao lê-los, me senti um tanto incomodado com uma escrita leve e corriqueira que tratou tais atos de violência como “peripécias” (p. 166) ou acontecimentos “rocambolescos” (p. 171). Obviamente, não cabe ao historiador realizar juízos de valor anacrônicos e pessoais sobre os sujeitos em questão. Contudo, talvez fosse preciso um cuidado maior com a escrita – principalmente pela trajetória da autora em trabalhar questões de gênero ao longo da carreira – para evitar o que pode soar como complacência com as atitudes misóginas desses sujeitos históricos – mesmo que não seja o que a autora gostaria de transmitir.

Ao final, o livro se mostra uma importante contribuição para compreendermos as experiências cotidianas de trabalhadores homens e mulheres, majoritariamente negros, na vida cultural, social e política da então capital federal. Também nos possibilita compreender os caminhos do protagonismo desses sujeitos na consolidação do samba como gênero musical entre as décadas de 1920 e 1930, em um processo iniciado ainda no século XIX. Cunha, pioneira no estudo de práticas culturais pelo arcabouço da história social, desvela a multiplicidade de agentes envolvidos nesses caminhos. Uma heterogeneidade tão intensa que, sem dúvida, suscitará novas perguntas e pesquisas no afã de desvendar novos sentidos dessa história plural.

Referências

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ABREU, Martha; AGOSTINI, Camila; HEBE, Mattos; DANTAS, Carolina Vianna. É chegada “a ocasião da negrada bumbar”: comemorações da Abolição, música e política na Primeira República. Varia Historia, v. 27, n. 45, p. 97-120, {s.d.}. [ Links ]

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2Autora de obra fundamental sobre o carnaval carioca do mesmo período (Ecos da folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001) e de outros estudos reconhecidamente importantes sobre a temática.

3Sobre as novas pesquisas que buscam analisar novos aspectos durante a Primeira República, ver Abreu e Gomes (s.d.), Dantas (2010) e Brasil (2016b).

4Perspectiva que venho colocando em prática em pesquisas recentes. Ver Brasil (2016a e 2016b).

5Alberto (2011), Silva (2015), Domingues (2014), Hertzman (2013), Brasil (2016b), Abreu, Agostini e Mattos (2016), Barbosa (2015) e Costa (2015).

Eric Brasil – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Campus dos Malês – São Francisco do Conde (Ba) – Brasil. E-mail: [email protected].

La démocratie contre les experts: les esclaves publics en Grèce ancienne – ISMARD (Tempo)

ISMARD, Paulin. La démocratie contre les experts: les esclaves publics en Grèce ancienne. Paris: Seuil: 2015. 273 p.p. Resenha de: TRABULSI, José Antonio Dabdab. Experts e democracia: uma convivência impossível? Tempo v.23 no.2 Niterói mai./ago. 2017.

Paulin Ismard, maître de conférences em história grega antiga na Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne e nome emergente no campo dos estudos sobre a Grécia antiga, publica um novo livro muito interessante. Desde a apresentação e a contracapa, o autor não deixa pairar qualquer dúvida sobre sua vontade de propor um livro de intervenção cidadã:

Suponhamos por um instante que o diretor do Banco da França, o chefe da polícia nacional e o chefe do Arquivo público sejam escravos, propriedades do povo francês a título coletivo. Imaginemos, em suma, uma República na qual alguns dos maiores dirigentes do Estado fossem escravos. Eles eram arquivistas das leis, policiais, controladores da moeda: todos escravos, apesar de se beneficiarem de uma condição privilegiada, e foram os primeiros funcionários públicos das cidades gregas […]. Que a democracia tenha se construído em sua origem contra a figura do expert que governa, mas também segundo uma concepção do Estado que nos é radicalmente estrangeira, eis o que deveria nos intrigar.

Vemos como o autor atiça desde o início a atenção do leitor, seja ele helenista, seja ele simples cidadão atento aos assuntos coletivos.

Na Introdução (p. 13-30), ele propõe colocar seu estudo no contexto de renovação dos trabalhos sobre a escravidão, e os escravos públicos gregos como um exemplo análogo a outros ao longo da história ocidental, mas também africana ou asiática. Faz uma revisão bibliográfica e observa, com razão, que apenas um livro (Jacob, Oscar. Les esclaves publics à Athènes. Liège: Champion, 1928), já bem antigo e puramente descritivo, existe sobre o tema dos escravos públicos na Grécia antiga. Afirma:

Algumas das tarefas confiadas aos dêmosioi requeriam de facto competências excepcionais. Confiando-as a escravos, a cidade queria colocar fora do campo político alguns saberes especializados, impedindo que seu exercício pudesse vir a legitimar a detenção de um poder. A expertise dos dêmosioi esclarece assim com uma nova luz a questão espinhosa – e tão contemporânea – do status político dos saberes no seio da cidade democrática. (p. 30)

Observemos de passagem sua estimativa do número de escravos públicos na Atenas clássica, entre 1000 e 2000, o que parecerá a certos analistas um pouco excessivo, sobretudo porque ele tende a privilegiar na argumentação o limite mais alto desse intervalo, o que tem implicações importantes para seu ponto de vista, pois ele pensa quase sempre (ou pelo menos deixa o leitor pensar) que as numerosas magistraturas propriamente políticas ficavam fora do campo das competências, quaisquer que fossem. Outra vez, muitos historiadores do período não estarão de acordo com ele. Isso não invalida a constatação de que o livro se apresenta como muito atrativo, com uma abordagem renovada e muito atual.

No Capítulo I (“Gênese”, p. 31-61), Ismard procede a uma arqueologia do dêmosios desde o início do arcaísmo, a partir do dêmiourgos homérico, das figuras de Dolon, de Dédalo, de Spensithios, o Escriba, na Creta do século VI, e de Patrias, na Élis do início do século V. Considera também o papel das tiranias arcaicas na gênese de um aparelho estatal no qual o escravo público encontrará, mais tarde, seu lugar. Tudo resultando, na época clássica, em uma nova configuração:

Abrindo o acesso à participação política ao maior número de cidadãos, os regimes democráticos instauraram enfim novas relações entre saber e poder. A competência herdada de uma longa familiaridade com o poder era doravante imprópria para legitimar a autoridade política. Sem dúvida, em certos campos, a competência permanecia indispensável, mas os valores do regime democrático proibiam que tais funções fossem confiadas a uma categoria restrita de cidadãos. Os atenienses preferiram então, na maior parte das vezes, atribuí-las a escravos, o que resultava em suma em relegar essa expertise para “fora do político”. (p. 60)

Temos aqui um capítulo muito bom, realmente original.

No Capítulo II (“Servidores da cidade”, p. 63-94), o autor procede a um levantamento sistemático das atividades dos escravos públicos na Atenas clássica, mas também na época helenística, em várias cidades, o que abre o campo de observação de forma muito enriquecedora. Ele explica sucessivamente o papel dos dêmosioi na assembleia, no conselho, diante dos tribunais e no ginásio. Seu papel é muito importante nas escrituras públicas, na gestão dos arquivos oficiais, no estabelecimento dos inventários de bens, nas contas dos canteiros de obras ou dos santuários religiosos em Atenas; eles garantiam a autenticidade das moedas e cuidavam da regularidade dos pesos e das medidas. Muitas vezes, em Atenas e em outros locais, eles encarnavam a autoridade pública em sua dimensão repressiva, com um papel de polícia e de manutenção da ordem, auxiliavam os magistrados quando das detenções e cuidavam da prisão da cidade. Em Atenas, os “cítios” (nem sempre provenientes desse povo) tinham papel-chave no funcionamento das instituições (assembleia, conselho, festas, mercado etc.). Outros, menos especializados, trabalhavam em tarefas de interesse coletivo, nas oficinas e canteiros diversos. Por vezes, puderam até ser encarregados de alguns sacerdócios. Em sua maioria comprados nos mercados de escravos, eram numerosos em Atenas, sem que possamos ter um número preciso (ele insiste nos valores entre mil e 2 mil, p. 85). Segundo o autor:

Assegurar com competência o controle da comunidade cívica sobre um dirigente; efetuar no lugar de um cidadão uma tarefa infamante; fornecer força de trabalho indispensável aos grandes canteiros de obras cívicas: não faltam razões para explicar o interesse das cidades gregas em ter a seu serviço escravos. Algumas dessas tarefas conferiam de facto aos dêmosioi um certo poder sobre os membros da comunidade cívica. Entretanto, como afirmava Sócrates o Jovem, a função deles não participava do domínio da arché. Os dêmosioi não eram magistrados da cidade e sua atividade era entendida como estranha ao campo político. (p. 88-89)

Muitos intérpretes viram nos dêmosioi as primícias de um “serviço público” na cidade clássica.

O Capítulo III (“Estranhos escravos”, p. 95-130) é um dos mais importantes para o objetivo do autor e apresenta o interesse de estar “irrigado” por um comparatismo bem-feito com outras sociedades com escravos e outras sociedades escravistas (não apenas o velho sul dos Estados Unidos, o que é frequente na bibliografia, mas também os mundos árabe, otomano, africano, indiano, entre outros, o que é bem mais raro). Ele examina o corpo escravo, os privilégios dos dêmosioi que os distinguiam dos escravos-mercadoria típicos. Por exemplo, eles podiam ser proprietários de bens, e até, talvez, de escravos; beneficiavam-se de um “privilégio de parentesco” (p. 107); em pelo menos um caso bem conhecido (Pittalakos), um escravo público pôde ter acesso aos tribunais, diretamente, como um cidadão; não estavam excluídos de todas as honras públicas, o que revela a delicada questão da timè; se o próprio do escravo é estar privado dela, o caso dos dêmosioi apresenta uma exceção notável. Eles eram um “bem público” em um universo em que o Estado não era um sujeito de direito; e, portanto, seu pertencimento era mais vago, definido pela negação, pelo fato de “não pertencer” a ninguém de forma individualizada. O autor volta às teorizações de juventude de Moses Finley (p. 125-126), para reabilitar o uso da noção de status como um conjunto de direitos, privilégios, imunidades, capacidades etc.; tudo ligado à timè (com mil configurações e contornos):

Neste sentido, a sociedade ateniense não se decompõe em blocos de estatutos homogêneos, superpostos à maneira das ordens. Ela também não é uma sociedade aberta, na qual cada um pode se liberar de suas determinações estatutárias e transitar de um status a outro graças ao mérito ou à sorte. Ela se apresenta como um espaço social multidimensional, atravessado por um caleidoscópio de statusDêmosios é o nome de um deles. (p. 128)

Trata-se, é preciso observar, de uma muito rara reabilitação de Finley… Estaríamos assistindo aos primórdios de uma reviravolta historiográfica? A questão se apresenta, a tal ponto Finley foi criticado ao longo dos últimos 20 anos.

Em um capítulo que está, em certo sentido, no âmago do argumento do livro (Capítulo IV, “A ordem democrática dos saberes”, p. 131-165), o autor analisa em detalhes certo número de “casos” muito esclarecedores: a função de “verificador” das moedas, uma das funções exigindo um conhecimento técnico dos mais profundos, é confiada a dêmosioi. O caso de Eucles, escrivão e contador de santuários, realizando inventários da maior importância para a cidade; o caso de Nicomachos, o Jurista, filho de dêmosios, encarregado durante vários anos seguidos da tarefa de revisar e republicar as leis de Atenas. Tais exemplos, entre outros, mostram, segundo o autor, que

[…] a experiência ateniense encontra aqui uma das questões mais ardentes do nosso presente democrático. O status político da expertise está, com efeito, no coração do “desencanto” contemporâneo em relação à democracia representativa. Democracia e saber: os dois termos se apresentam o mais das vezes no discurso corrente sob a forma de duas exigências contraditórias. O ideal democrático de participação do maior número de pessoas nos assuntos públicos seria incompatível com a exigência de eficácia que é necessária ao governo dos Estados, coisa forçosamente complexa, e, portanto, especializada: quem não reconheceria aqui um refrão do nosso tempo, que faz da “epistocracia” dos governos o horizonte necessário de qualquer política? (p. 133)

Ismard mostra muito bem a que ponto a figura do expert governante é estranha à ideologia democrática antiga. O fato de confiar tarefas muito importantes a escravos não implica nenhum desprezo pelos conhecimentos inerentes à função, que são considerados como muito importantes. Mas a preocupação era manter certos saberes especializados fora do campo político para conservar todo o espaço para o debate político entre não especialistas, na convicção de que desse debate sairia um saber coletivo útil à cidade (p. 134-135). Foi também a razão pela qual a cidade grega privilegiou o recrutamento de seus escravos públicos muito qualificados no mercado externo, para impedir a constituição de um grupo muito hereditário que poderia controlar uma parte do poder social:

Se os escravos públicos da Atenas clássica não vieram a formar um corpo autônomo na cidade, foi também porque a ideologia democrática ateniense, estabelecendo uma barreira entre a ordem da expertise e o campo político, proibia que sua competência própria pudesse resultar no exercício de um poder. Neste sentido, a epistemologia democrática ateniense, ao relegar os saberes especializados para fora dessa nobre atividade reservada aos cidadãos, ou seja, a política, não se apresenta apenas como a defesa de um saber público fundado na prática deliberativa. Ela também tem indiretamente por função legitimar a distinção fundamental que separa o escravo do homem livre e fundar na razão a estrutura escravista da sociedade ateniense. Na Atenas clássica, a ordem democrática dos saberes é também a ordem da sociedade escravista. (p. 165)

Mais uma análise que tem no final uma “sonoridade finleyana”; lembramo-nos imediatamente da célebre expressão da marcha “de mãos dadas”, da democracia e da escravidão, formulada pelo grande historiador. Quanto a mim, se aprovo totalmente a primeira parte do argumento de Ismard, ou seja, a parte relativa à preocupação em preservar a totalidade da soberania popular colocando o conhecimento técnico sob controle político, a segunda parte do argumento me deixa relativamente cético; que as coisas tenham acontecido historicamente como ele diz, é um fato. Que a democracia antiga deva sua existência ao fato escravista, no absoluto, é outro debate, longo demais para ser levado adiante aqui.

Em um Capítulo V mais teórico (“Os mistérios do Estado grego”, p. 167-202), Ismard discute sobre os escravos públicos no quadro mais amplo do debate sobre o Estado e sua existência no mundo grego antigo:

Pois é este o sentido dessa surpreendente instituição: ao mesmo tempo em que confiava funções que atribuíam um poder de facto a escravos, as cidades manchavam essas funções com um déficit irremediável ligado ao status dos que as exerciam […]. Tornando invisíveis os que tinham o encargo de sua administração, a cidade conjurava o aparecimento de um Estado susceptível de se constituir em instância autônoma e, em certas circunstâncias, se voltar contra ela. Podemos formular isso de outra forma: na cidade clássica, o Estado nunca se encarnou de outra forma que não fosse na pura negatividade do corpo-escravo do dêmosios. (p. 176)

O autor examina, então, três casos: os últimos momentos de Sócrates na prisão; a queda de Édipo; o batismo do primeiro dos gentis. Três casos que fazem intervir a figura de um escravo público ou real.

Em sua conclusão, insiste ainda acerca desse aspecto “obscuro” da cidade antiga ao dizer que

[…] a viva luz que ainda brilha a partir das assembleias e dos teatros das cidades talvez nos cegue. A “transparência” do político grego tem, com efeito, a medida do véu de opacidade com o qual a cidade encobre o que permanece nas suas margens e que, portanto, é indispensável ao seu funcionamento. Pois à digna gestualidade das belas palavras dos cidadãos reunidos em assembleia responde, como num teatro de sombras, a cenografia muda de seres anônimos, sem identidade e sem voz. Quase escondidos nos cantos da Acrópole contando e recontando os bens de Palas Ateneia, anotando conscienciosamente as despesas dos estrategos em expedição militar, ou se agitando por todos os lados para orientar os jurados cidadãos e dirigir os espectadores nos tribunais: era preciso que todos esses homens fossem invisíveis para que pudesse se manter a ilusória transparência da comunidade cívica. (p. 205)

Ele prolonga sua análise sobre a diferença radical entre a cidade grega e os Estados modernos, falando do “primitivismo” da cidade, “condição intransponível da experiência democrática na Grécia antiga” (p. 213), em um último eco finleyano. A retração dos circuitos do comércio de escravos a partir de meados do século III de nossa era, conjugada com uma nova concepção, agora cristológica, do poder, pôs fim à prática então quase milenar da escravidão pública nas cidades antigas.

Estou de acordo com a maior parte das opiniões do autor, mas uma vez que seu livro toca voluntariamente a questão da política atual, e como eu também sou historiador da antiguidade grega preocupado com a política atual, permito-me não estar de acordo quanto a um ponto importante da análise de Ismard, que podemos ler ao longo de seu texto e especialmente no final: “Nesse sentido também, a democracia direta era paga com o preço da escravidão” (p. 215). Tal posição me parece ligeiramente excessiva no que se refere à política antiga e, sobretudo, muito pesadamente desanimadora para o interesse que podemos ter hoje pela política antiga na intenção de renovar nossa política. Mas isso não muda nada quanto ao interesse do livro; é uma obra cheia de qualidades, um tipo de livro que faz bem aos estudos clássicos e ao debate político contemporâneo ao mesmo tempo. E esses livros não são assim tão numerosos para nos impedir de saudar calorosamente a iniciativa de Paulin Ismard.

José Antonio Dabdab Trabulsi – Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte – Brasil. E-mail: [email protected].

Resistência – Memória da ocupação nazista – ROLLEMBERG (Tempo)

ROLLEMBERG, Denise. Resistência – Memória da ocupação nazista na França e na Itália.. São Paulo: Alameda Editorial, 2016. 374p. Resenha de CARVALHO, Bruno Leal Pastor. Resistência – memória e historiografia em panorama. Tempo v.23 no.1 Niterói jan./abr. 2017.

O nome da historiadora Denise Rollemberg, professora de história contemporânea do Instituto de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), sempre esteve muito associado aos estudos sobre ditadura militar brasileira, tema para o qual contribuiu de maneira original com as pesquisas que realizou no mestrado e no doutorado. Nos últimos anos, Rollemberg vem se dedicando a outros regimes de exceção do século XX, igualmente marcados pelo elevado grau de violência. Essa expansão de domínios já tinha dado as caras com as coleções “História e memória das ditaduras do século XX” e “A construção social dos regimes autoritários”, publicados em 2010 e 2015, respectivamente, ambas coordenadas em parceria com a historiadora Samantha Viz Quadrat (UFF). Em 2016, esse caminho se consolida com a publicação do livro Resistência – memória da ocupação nazista na França e na Itália (Rio de Janeiro: Alameda, 2016).

“Resistência” é o resultado direto da pesquisa que Rollemberg vem desenvolvendo, nos últimos anos, sobre diversos museus e memoriais da resistência ao nazismo em França, Itália, Alemanha, Países Baixos e Polônia, pesquisa essa que contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No livro, a autora propõe um exame crítico do conceito de resistência, recorrendo, para tal, aos esforços da historiografia do pós-guerra e a estudos de memória, analisando narrativas presentes em museus e memoriais localizados na Itália e na França, países onde estes são mais numerosos. Segundo Rollemberg, a Itália, ocupada entre 1940 e 1945, conta com cerca de 60 museus dedicados ao tema, ao passo que a França, ocupada entre 1943 e 1945, tem aproximadamente 15. O livro é dividido em cinco capítulos, quatro dos quais distribuídos em duas partes, além de uma apresentação.

No primeiro capítulo, o leitor encontra uma breve, porém consistente, discussão historiográfica sobre o conceito de resistência. E esse não é um debate simples de se fazer. Durante a Segunda Guerra Mundial, parte significativa da Europa foi ocupada pelas forças alemãs. Os nazistas derrubaram democracias e ditaduras, regimes parlamentaristas e monarquistas, de países pequenos e grandes do ponto de vista territorial. Enquanto alguns governos caídos reerguiam-se no exterior, parte da população desses países, organizada ou não, militarmente ou não, resistiu ao invasor e aos colaboracionistas usando os mais diferentes expedientes. Como abordar, então, um debate tão amplo? Em vez de propor respostas generalistas, Rollemberg faz aquilo que se espera de um bom historiador: um recorte. A historiadora volta seu olhar para o debate historiográfico surgido na França, na Itália e na Alemanha no pós-guerra.

Ao falar do caso francês, Rollemberg dá destaque para trabalhos como o de Henri Michel, autor da primeira tese acadêmica sobre a França ocupada, defendida em 1962, e de Robert O. Paxton, que, nos anos 1970, segundo a autora, deu uma “guinada” na historiografia francesa sobre o tema, até ali ainda muito tributária do mito da resistência. Outros autores, mais contemporâneos, também são bem lembrados, tais como François Bédarida, François Marcot, Henry Rousso e Denis Peschanski. Todos esses autores, de forma bastante pioneira, enfrentaram problemas de definição bastante sensíveis que foram se colocando ao longo do tempo: seriam resistentes apenas aqueles que pegaram em armas ou aqueles que também protegeram judeus ou desobedeceram a ordens do governo? Resistência é uma ação coletiva ou também é possível concebê-la individualmente? Resistir é uma luta de oposição interna ou contra um inimigo estrangeiro? Podem-se incluir dentro do “guarda-chuva” resistência ações das igrejas católicas e protestantes que intercederam em favor dos perseguidos pelo nazismo e pelo fascismo?

No caso italiano, há diferenças expressivas. Rollemberg explica que a historiografia tem nos chamado a atenção para a existência tanto de uma oposição ao fascismo (1920-1922 e 1943) quanto de uma resistência a este (1943-1945). Aqui, a autora perpassa os trabalhos de historiadores como Gianni Perona, Zeev Sternhell e Claude Pavone, este último autor de uma tese publicada em 1991 que sustenta a ideia de que a Resistência italiana abrigou três guerras simultâneas: a patriótica, a civil e a de classe. Por fim, há o debate sobre a historiografia alemã, bastante especial, uma vez que a Alemanha não esteve ocupada por um inimigo externo durante os anos de guerra. Rollemberg, nesse ponto, dá ênfase aos trabalhos de Martin Broszat, fundador e diretor do Instituto de História Contemporânea de Munique, que, na década de 1970, desenvolveu o conceito de resistenza, originário da biologia, para se referir a uma “atitude refratária” dos alemães diferente, em essência, do conceito de resistência – pelo menos como este tem sido normalmente em outros países. Empregando mecanismos e estratégias da história social, Broszat recuperou e esmiuçou aspectos da vida cotidiana da população bávara sob o Terceiro Reich, procurando avaliar “pequenas formas de coragem do cidadão” perdidas no meio do cotidiano do alemão anônimo. Além de Broszat, a autora também se apoia no trabalho de nomes como (Sir) Ian Kershaw e Klaus-Jünger Müller, igualmente decisivos para uma melhor compreensão do tema da resistência na Alemanha.

O debate sobre a historiografia italiana é mais breve que o sobre a francesa e a alemã. Mas isso não enfraquece a importância do primeiro capítulo, mais do que fundamental em um país como o Brasil, cuja tradição editorial, mesmo a universitária, não parece nem um pouco sensível ao tema da resistência ao nazismo, ocupando-se muito pouco com a tradução de livros clássicos nessa área. Isso tem deixado incontáveis gerações de estudantes de história desamparados. Aliás, embora nazismo e fascismo sejam uma pauta recorrente em mídia de massa, a universidade ainda enfrenta bem pouco suas problemáticas. Na maior parte das universidades, o portfólio de disciplinas que abordam esses temas ainda é bastante tímido, talvez, pelo menos em parte, pela ainda mais tímida disponibilidade de material bibliográfico sobre eles no país. Nesse sentido, o debate conceitual-historiográfico nesse capítulo do livro é um plano de voo valiosíssimo para quem deseja alçar voo nesses campos historiográficos.

Os Capítulos 2 e 3 compõem a Parte I do livro, dedicada aos museus e memoriais franceses. No Capítulo 2, a autora faz uma análise dos vários “lugares de memória” que visitou na França. Foram 16 no total, distribuídos por todo o país. Em vez de preocupar-se apenas com os tipos de objetos exibidos em cada museu, Rollemberg faz uma leitura ampla e interdisciplinar da museografia dessas instituições, o que inclui olhar para elementos como textos, localização, contextos, iluminação, som, meios digitais e outros elementos museográficos, que, uma vez pensados juntos, nos levam a perceber o discurso museográfico. Isso nos permite pensar museus e memoriais como um projeto muito maior, integrado à sociedade e que tem por base determinados projetos político-pedagógicos. A tese que Rollemberg defende no decorrer dessa análise é bastante clara. De acordo com a autora, durante muito tempo os memoriais e museus franceses elaboraram um discurso laudatório e mitológico da resistência. As instituições, por exemplo, pouco mencionavam o colaboracionismo e produziam narrativas apaziguadoras dos anos de ocupação. No caso francês, o modelo gaullista de memória foi predominante e pouco admitia concorrência. Na década de 1970, aponta Rollemberg, isso começou a mudar, haja vista que a própria sociedade mudava. Passou-se a discutir mais abertamente Vichy, tal como as contradições e as complexidades das resistências, assim mesmo – vistas a partir de agora no plural. Rollemberg acredita que os museus desde então vêm mudando de discurso. “Hoje,{…} os museus e memoriais não são mais simplesmente a celebração de um mito. Procuram rever antigas interpretações, posicionando-se diante de revisões presentes na historiografia e no debate político” (p. 85). A autora cita, por exemplo, como prova desse ponto de injunção, a incorporação ao plano da curadoria histórias do colaboracionismo, das múltiplas das formas resistência e de narrativas dos judeus.

Por outro lado, e aí chegamos à segunda grande questão desse capítulo, a autora acredita que essa transformação não foi completa. Muitas instituições, conforme pontua, ainda estão apegadas ao modelo memória-homenagem, o que implica, quase sempre, a elaboração de personagens unidimensionais, sem opções em suas épocas históricas, sujeitos que ou são vítimas, ou são algozes. Uma de suas críticas nesse capítulo é destinada ao Museu de Grenoble, cuja curadoria é extremamente preocupada com o público infantil e juvenil. Em uma exposição, por exemplo, há o holograma de um jovem, filho de um resistente, que dá um depoimento bastante assustador e sombrio dos tempos da resistência. Em seguida, a projeção aproxima-se dos jovens visitantes do museu e pergunta se as memórias que eles acabaram de ouvir estariam apenas ligadas ao passado ou se têm ligação também com o presente. Um cronômetro é disparado e, depois, conhecem-se as estatísticas registradas até aquele momento pelo sistema. Para Rollemberg, a evocação da resistência por meio da chave familiar e de uma teatralização da vida pode ser problemática. O museu abriria mão da vocação histórica e assumiria a vocação de memória. “Além da construção da memória em favor de certos valores éticos e políticos, esse e os demais recursos pedagógicos vistos aqui são também discursos moralizantes, segundo certa concepção de história que lhe atribui a função de, através do conhecimento do passado, evitar erros futuros” (p. 131).

No Capítulo 3, Rollemberg examina cartas de resistentes e reféns executados na França durante o período de ocupação, tanto nas mãos dos nazistas quanto nas mãos dos próprios franceses de Vichy. O capítulo, explica a própria autora, é uma forma de verticalizar o estudo de temáticas presentes nos museus e memoriais citados no capítulo anterior. A autora está preocupada, agora, em discutir como esses documentos remetem a experiências individuais da resistência. Cerca de 4.020 homens foram fuzilados no país. Muitos deixaram cartas e outros documentos para suas famílias, escritos pouco antes de suas mortes. Esse material começou a ser recolhido antes mesmo da Libertação (1944) e, em seguida, passou para os arquivos do Comitê de História da Segunda Guerra Mundial, instituição criada em 1951 pelo historiador Henri Michel. Mais ou menos 500 cartas de 350 desses fuzilados encontram-se hoje dispersas por diversos museus franceses e arquivos, além de em posse de particulares, material que representa um riquíssimo acervo para museus e historiadores.

As possibilidades de análise são vastíssimas. Da micro-história à história das mentalidades. Da história vista de baixo à história da morte e do medo. Rollemberg extrai leituras bastante reveladoras desse universo memorialístico de quase morte. A autora nota, por exemplo, que os condenados raramente usaram nas cartas as palavras resistentesresistênciaResistência e resistir para se referirem a si mesmos e a suas ações. Isso porque, como salienta, essa “morfologia da despedida” destaca-se muito mais pelo foro íntimo. E é justamente esse o caminho que, acertadamente, Rollemberg toma como fundamental para compreender tal experiência histórica. “Importa aqui verticalizar a análise das motivações, sentimentos, da subjetividade, enfim, dos condenados” (p. 179). São ainda, como diz, “retratos íntimos da derrota”. Rollemberg mostra, curiosamente, que, apesar das várias diferenças entre os condenados – níveis de escolaridade, idade, engajamento político etc. -, há certas homogeneidades nas cartas. Nelas, seus autores buscam a absolvição de pecados antigos. Eles se dirigem quase sempre aos familiares. Evocam a família, a religião (exceto os judeus, majoritariamente) e a tradição como grandes lemas em seu momento de despedida. Em geral, os condenados não demonstram ódio nem ressentimento, Rollemberg pontua. Ela cita a carta que o conde Honoré d’Estienne d’Orves escreve à sua irmã antes da execução: “Que ninguém pense em me vingar. Desejo apenas a paz na grandeza reencontrada pela França” (p. 209). Tudo isso nos ajuda a compreender como esses resistentes viam a si mesmos nessas situações-limite e, mais do que isso, a forma como esse comportamento assentou-se na memória coletiva francesa.

Ao ler tais cartas, podemos evocar as velhas histórias de santidade e heroísmo cristão que há muito tempo fazem parte da tradição cristã. Esse ponto é importante, pois, como assinala Rollemberg, as execuções caracterizadas como martírios estão vivas ainda hoje na memória coletiva graças à ritualização de que são objetos nos mencionados museus e memoriais. Para a historiadora, a ideia de martírio e vitimização eclipsou os diversos embates políticos e ideológicos que abundavam no interior da(s) resistência(s). A autora afirma:

Se é compreensível que as associações de familiares, desde o pós-guerra, elaborem a memória desses homens como mártires, comprometidas que estão com o dever de memória, é bom refletir sobre o papel que os museus, mais até do que os memoriais, desempenham nessa tensão entre história e memória, sobretudo entre aqueles que se propõem produtores do conhecimento. (p. 192)

A crítica à memória que vemos aqui é bastante pertinente, especialmente no contexto do pós-guerra francês, quando a resistência se tornou base de certa identidade francesa e também, ao mesmo tempo, uma espécie de patrimônio histórico francês, pouco afeito a críticas e revisões. Por outro lado, é preciso estar atento a alguns riscos da oposição entre história e memória. Certamente, estamos diante de duas narrativas com características e missões completamente diferentes. Contudo, como leituras do passado que são, elas podem por vezes comportar-se de forma parecida, além de produzir resultados semelhantes. Essa ponderação é necessária porque os próprios historiadores franceses apenas muito lentamente foram se debruçando sobre a questão da resistência. A autora lembra isso na apresentação do livro: “no pós-guerra, a historiografia sobre o assunto seguiu a forte tendência presente nos países outrora ocupados de lembrar aqueles anos celebrando os feitos heroicos da Resistência, contornando as colaborações e, sobretudo, evitando as zonas cinzentas entre os dois extremos” (p. 10). A autora também destaca em outra passagem que apenas em 1988 surgiu o primeiro manual escolar de história a relativizar a importância da Resistência francesa na liberação do país. A França, como não podemos ignorar, a exemplo de diversos outros países, também soube cultivar narrativas historiográficas de cunho nacionalista, que contribuíram, à sua maneira, para a produção de mitos sobre a resistência.

Chegamos à Parte II, que engloba os Capítulos 4 e 5, dedicados aos memoriais e museus da resistência na Itália. Aqui, vamos encontrar uma estrutura muito parecida com a que vimos na Parte I. Se, ao falar do caso francês, vimos um capítulo dedicado ao estudo das instituições de memória e, depois, um capítulo dedicado a um estudo mais verticalizado, agora vamos encontrar a mesma divisão. No Capítulo 4, Rollemberg esquadrinha os museus e memoriais que visitou na Itália. À medida que vamos avançando na leitura, vamos nos convencendo de que Itália e França têm mais semelhanças do que diferenças no que diz respeito aos usos e abusos da memória da resistência e dos resistentes. Rollemberg analisa oito instituições naquele país. Nessa análise, a autora identifica o mesmo fenômeno de memória visto na França: a forma como a museografia escolheu, organizou e significou suas exposições contribuiu para a minimização de contradições no interior da resistência, para a criação de heróis e vilões, para o escamoteamento de tensões, de complexidades políticas e para a variedade de matizes ideológicos que fizeram da resistência italiana um fenômeno extremamente complexo. Nas palavras da própria autora, “o museu é lido como documento, embora seja concebido como monumento” (p. 238). Segundo Rollemberg, embora os museus italianos, tal qual na França, tenham passado, nas últimas décadas, por transformações profundas, a dimensão do mito persiste em suas narrativas. É importante sublinhar que as narrativas dos museus e memoriais italianos não formam um bloco homogêneo. Alguns enfatizam mais, por exemplo, a luta antifascista no período anterior à queda de Mussolini, caso do Museu de Bologna, enquanto outros, como é o caso do Museu Audiovisual da Resistência de Massa Carrara e La Spezia, especializaram-se nos partigiani. Porém, a maioria continua assumindo um papel pedagógico bastante moralizante e desprezando complexidades.

Ainda no caso do Museu de Bologna, vale mencionar uma dessas contradições entre memória e história que ilustram o livro. Em uma exposição do museu, há várias fotos de italianos capturados pelos alemães na Itália, nos Bálcãs e na Grécia, nos campos de concentração, todos submetidos à “duríssima reclusão”. Muitos tinham recusado o recrutamento fascista que se deu após a queda de Mussolini. Como pontua Rollemberg, a narrativa do museu, sem dizê-lo, apresenta esses militares, em sua grande maioria, como vítimas da Alemanha e da República Social Italiana, livrando-os das responsabilidades das guerras travadas em nome do fascismo em anos anteriores. Da mesma forma, diz a autora, que houve mobilização popular contra o nazifascismo, houve também mobilização em sentido contrário.

No Capítulo 5, Rollemberg faz do caso dos “Sete Fratelli” seu estudo vertical em âmbito italiano. No dia 28 de dezembro de 1943, sete irmãos de uma única família, a família Cervi, moradora da província de Reggio Emilia, região da Emlia-Romagna, foram fuzilados pelos fascistas locais por esconderem prisioneiros estrangeiros desmobilizados ou fugidos de prisões, bem como desertores italianos e alemães. A situação dos “Sette Fratelli” transformou-se, como aponta a autora, em um caso bastante emblemático da memória coletiva da Resistência italiana no pós-guerra. O caso inspirou diversos autores, entre eles Ítalo Calvino, e diversas correntes políticas a produzirem suas próprias interpretações, tanto da esquerda quanto da direita italiana. Aqui vamos ver mais uma vez a construção memorialista que opta pelo enredo do herói e do sacrifício, pela leitura moralizante que esconde não só tramas do passado como também os usos políticos do próprio presente. Rollemberg chama a atenção principalmente para a narrativa do Partido Comunista italiano (PCI), que se apropriou do caso, o que surge como uma questão moral relevante, haja vista que, segundo estudos de alguns historiadores, o PCI poderia ter protegido os irmãos Cervi (comunistas, mas não membros do PCI), mas não o fez. Rollemberg mais uma vez destaca a necessidade de uma abordagem historiográfica que seja capaz de problematizar o passado:

A história é muito mais complexa do que a memória, construída do presente para o passado, invertendo a direção da própria história, aparando arestas indesejáveis, possibilidades incômodas, buscando legitimar a realidade presente e os projetos para o futuro. A memória inventa o passado.{…} A ideologia impede, ainda hoje, o esclarecimento dos fatos. (p. 343)

Concluindo, Resistência – memória da ocupação nazista na França e na Itália, de Denise Rollemberg, é um estudo de fundamental relevância e que vem diminuir uma lacuna importante no mercado editorial brasileiro, lacuna essa que, como mencionei antes, tem reflexos diretos na maneira como o tema é abordado nos cursos de história. Rollemberg reconhece a legitimidade dos museus e memoriais franceses e italianos, bem como todo o esforço engendrado nas últimas décadas para não só honrar aqueles que tombaram na luta contra o nazismo e o fascismo, como para também para produzir conhecimento a partir desse passado. Porém, as narrativas que são produzidas hoje são tributárias de uma visão ainda muito mitologizada. Rollemberg justifica a escolha pela memória como centro propulsor dessa narrativa: tal modelo serviu para reerguer, do ponto de vista moral, os países que tinham, então, colaborado com o nazismo e o fascismo. Na década de 1970, os historiadores começaram a desconstruir o mito. O que não significa que problemas não tenham aparecido. O conceito de resistência, por exemplo, ou foi muito alargado, ou muito restringido, o que lhe fez perder o sentido ou excluir experiências históricas fundantes. Museus e memoriais seguiram essa tendência, enfrentaram esses desafios, chegaram a questionar mitos e a problematizar pontos que até então passavam ao largo, caso do colaboracionismo. Porém, a despeito desses avanços, pontua Rollemberg, encontram-se ainda muito tributários daquele modelo de memória. A autora, por vezes, expõe a memória como um trabalho com resultados potenciais completamente diferentes da história, o que podemos (e devemos relativizar). Porém, seu olhar para os abusos da memória nos museus italianos e franceses é preciso e extremamente necessário para que percebamos como essas instituições, apesar da intenção nobre de produzir conhecimento, ainda precisam se livrar das amarras negativas da memória. E isso, como alerta Rollemberg, não é um problema. O desafio desses lugares de memória, defende a autora, é eternizar homens e mulheres que lutaram contra a ocupação nazista e seus colaboradores na história – porém, ela pondera: “Não como mitos intocáveis, senão como seres humanos em sua complexidade, quer individual, quer na sua dimensão coletiva. Essa é a maior homenagem, divergências à parte, que lhes podemos prestar” (p. 14).

Bruno Leal Pastor de Carvalho – Doutor em História Social (PPGHIS/UFRJ). Mestre em Memória Social (PPGMS/Unirio). Coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da UFRJ (Niej). Fundador da rede social Café História.(www.cafehistoria.com.br). Membro da Rede Brasileira de História Pública (RBHP) e da Associação de Humanidades Digitais (AHDig).

Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) – SOUZA (Tempo)

SOUZA, Robério S.. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Unicamp, 2015. 270p. Coleção Várias Histórias, 42.Resenha de Mac CORD, Marcelo. Acionando a chave de desvio dos trilhos: repensando a história social do trabalho ferroviário no Brasil império. Tempo v.23 no.1 Niterói jan./abr. 2017.

Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) é a mais recente obra de Robério Souza. O livro desse talentoso pesquisador, que atualmente é professor do curso de história da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), oferece ao leitor uma série de análises das complexidades políticas, econômicas, culturais, sociais e étnicas que envolveram a construção da Bahia and San Francisco Railway. Publicado pela Editora da Unicamp em 2015, o livro, que faz parte da consolidada “Coleção Várias Histórias”, baseia-se na premiada tese de doutorado do autor, que, sob a orientação de Silvia Lara, foi defendida dois anos antes no Cecult-IFCH-Unicamp.

O livro Trabalhadores dos trilhos, com suas significativas inovações historiográficas, consolida a carreira de Robério Souza como um dos mais destacados especialistas sobre o mundo do trabalho brasileiro. E ratifica sua importância como historiador do mundo do trabalho ferroviário. Em 2011, pela EDUFBA, o pesquisador baiano publicou outro livro sobre a temática: Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Nesse trabalho inovador, fruto de sua dissertação de mestrado, o autor analisa os conflitos de classe e de cor naquela mesma ferrovia, mas privilegiou uma temporalidade que nos permite conhecer as lutas dos trabalhadores negros contra formas de trabalho análogas aos tempos da escravidão (Souza, 2011).

Ambas as publicações fazem parte da mais refinada história social de matriz thompsoniana produzida em nosso país. Tal historiografia, absolutamente identificada com a Unicamp, reconhece a importância da agência dos subalternos na condução de suas próprias vidas e de seu protagonismo na luta de classes – com desdobramento nas mais variadas lutas dos “de baixo” por direitos jurídicos, sociais, culturais, econômicos e políticos. De forma muito especial, o livro Trabalhadores dos trilhos ainda aponta para a possibilidade de convergências entre a história social da escravidão e a história social do trabalho stricto sensu, dissolvendo, assim, as fronteiras analíticas e temáticas que ainda existem entre elas.2

Em sua sólida trajetória acadêmica, Robério Souza não escolheu seus objetos de estudo aleatoriamente ou de forma diletante. Nascido em Alagoinhas, cidade cortada pela antiga Bahia and San Francisco Railway, a vida do autor, oriundo da classe trabalhadora, esteve ligada direta e indiretamente aos trilhos de ferro. Tal peculiaridade ganha ainda mais significado quando sabemos de sua cor preta. A experiência étnica e de classe do pesquisador foram fundamentais em suas investigações, permitindo que seu esforço científico desconstruísse uma historiografia que invisibilizava os negros como protagonistas tanto na construção da primeira estrada de ferro baiana quanto na organização das históricas lutas dos “de baixo” por direitos trabalhistas e sociais.

Do ponto de vista formal, Trabalhadores dos trilhos é um livro muito bem enredado. São cinco capítulos que dialogam entre si, abordando os seguintes temas: implicações político-econômicas da construção da Bahia and San Francisco Railway, engajamento da mão de obra nacional e estrangeira, acordos sobre contratos e arranjos de trabalho, surgimento de alguma consciência de classe nos canteiros de obras da ferrovia e conflitos entre empregados, patrões, encarregados e autoridades públicas. A documentação utilizada é vasta e densa: correspondências governamentais, registros policiais, processos criminais, periódicos, leis, relatórios oficiais, fotografias etc. Todo o material compulsado foi encontrado em arquivos baianos e ingleses.

Logo nas primeiras páginas, Robério Souza demonstra como muitos historiadores e cientistas sociais do século passado, pouco afeitos ao trabalho empírico, se apoiaram acriticamente na legislação imperial que proibia o uso de mão de obra escrava na construção de ferrovias. Aprovada em 1852, a norma acabou induzindo leituras sociologizantes sobre a temática, o que reforçou a explicação de que existiu uma transição teleológica do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil oitocentista. E, nessas sentenças, a ferrovia surgiu como símbolo de “modernização”, ou, em outras palavras, como um empreendimento que viabilizou o amadurecimento das relações capitalistas e do mercado de trabalho em nosso país.

No livro, o tradicional consórcio entre “modernização” do mundo do trabalho e construção das ferrovias brasileiras começa a ser desconstruído assim que o autor demonstra a relação umbilical dos ingleses da Bahia and San Francisco Railway e das autoridades locais com o escravismo. Segundo Robério Souza, por exemplo, muitos empreiteiros e técnicos britânicos compraram e mantiveram cativos em suas próprias casas. Portanto, no cotidiano baiano, era impossível dissociá-los. Para justificar e compreender essa prática, o pesquisador nos remete ao fato de que capitais e homens de negócios ingleses estiveram intimamente envolvidos com o tráfico atlântico ilegal até 1850 – pouco antes da abertura dos canteiros de obras da ferrovia.

As fontes compulsadas por Robério Souza ainda revelam que os profissionais britânicos responsáveis pela construção da Bahia and San Francisco Railway contratavam escravos para os canteiros de obras da ferrovia. Eles alegavam ser impossível identificar a real condição jurídica dos negros que buscavam serviço. De certa forma, em alguns momentos, como salienta o pesquisador, os contratadores poderiam dizer a verdade. Contudo, acostumados com o escravismo e preocupados em viabilizar as empreitadas, pouco se esforçavam para verificar a situação legal das pessoas escravizadas que se passavam por livres. E, aproveitando-se dessa situação, precarizavam ao máximo a força de trabalho dos africanos e de seus descendentes.

Os escravos que se passavam por homens livres, por sua vez, encaravam os serviços oferecidos pela primeira ferrovia baiana como uma possibilidade de se “esconderem” de seus senhores, como propõe Robério Souza. Conseguir um emprego nos trilhos de ferro também era uma forma de os cativos se passarem por homens livres, tendo em vista as determinações impostas pela lei imperial de 1852. Ainda sobre as estratégicas apropriações feitas pelos “de baixo”, o autor afirma que a construção da Bahia and San Francisco Railway serviu como forma de esconderijo para outros sujeitos, como criminosos e desertores. Tais indivíduos queriam ficar invisíveis aos agentes da polícia, da justiça, das milícias e das forças militares.

Entre os trabalhadores que estiveram vinculados às rotinas dos canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway, Robério Souza afirma que poucos eram africanos livres (gente ilegalmente traficada da África para o Brasil entre os anos 1831 e 1850) ou “índios”. Nas páginas de Trabalhadores dos trilhos, sobre o primeiro grupo, observamos que alguns grandes proprietários baianos desviavam os “escravos da nação” mais jovens, saudáveis e fortes para suas terras, impedindo que o governo utilizasse essa mão de obra nos canteiros de obras da ferrovia. Para substituí-los, os senhores de terra e de gente mandavam para as empreitadas os cativos mais velhos e alquebrados de sua propriedade.

Além de escravos que se passavam por livres, africanos livres, “índios”, criminosos e desertores, a Bahia and San Francisco Railway também contou com a mão de obra do nacional livre. Estes últimos eram referidos pelos contratantes e pelos administradores do empreendimento como “preguiçosos” e “inconstantes”. Robério Souza deixa claro que tais julgamentos eram preconceitos étnicos e classistas. Os nacionais livres não aceitavam certas condições de trabalho, rebelavam-se quando injustiçados e tinham na roça seu principal meio de sustento. De acordo com a sazonalidade de seus cultivos e das vantagens financeiras que poderiam auferir, eles conjugavam ou não o plantio de subsistência com os canteiros de obras ferroviários.

Em meio a tanta gente de pele escura (livre, liberta e escrava) em um empreendimento “moderno” e “modernizador”, o operário estrangeiro também se fez presente. Os italianos chegaram à Bahia com a promessa de “moralizar” e “morigerar” os canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway. Apesar de serem os únicos a terem contratos formais de trabalho, também foram explorados pelos contratantes, tendo seus acordos constantemente desrespeitados. Robério Souza, por meio de farta análise documental, demonstra que isso gerou fortes tensões. Uma greve foi deflagrada por causa da insatisfação dos italianos, o que gerou forte repressão e posterior controle policial, com toques de recolher e cerceamento da livre circulação.

Historiador social arguto e sensível, Robério Souza entende a repressão sofrida pelos italianos como mais uma forma de constatarmos os tênues limites entre trabalho escravo e trabalho livre no Brasil império. Sobretudo após a deflagração da greve, os operários europeus da Bahia and San Francisco Railway foram vigiados mais de perto pelas autoridades policiais baianas e por seus patrões. Sob forte ameaça, tinham de seguir rapidamente dos canteiros de obras para seus alojamentos e ficaram com mobilidade limitada em seus momentos de lazer e de descanso. Ao exigirem o devido respeito aos contratos, os italianos experimentaram contratempos muito semelhantes àqueles que foram impostos aos africanos e seus descendentes escravizados.

Como podemos perceber, entre os anos 1858 e 1863, os canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway reuniram os mais variados tipos que viviam do suor do próprio rosto. O livro Trabalhadores dos trilhos chama nossa atenção para essa diversidade social e demográfica. E, mais do que isso, permite que conheçamos as alianças e os conflitos vivenciados pela multidão que construiu a primeira estrada de ferro baiana. Por um lado, como afirma Robério Souza, a precariedade possibilitou alguma consciência de classe: italianos e escravos criaram planos conjuntos de sublevação; as festas e as relações de vizinhança uniam pessoas. Por outro lado, ainda segundo o autor, refluxos ocorreram pelas diferenças de cor, nacionalidade e cultura.

Na construção da Bahia and San Francisco Railway, os fluxos e os refluxos da formação de alguma consciência de classe, processo muito bem analisado por Robério Souza, é um dos pontos altos do livro Trabalhadores dos trilhos. Inspirado por E. P. Thompson, o autor endossa a crítica de que a classe operária é uma construção histórica motivada por certas condições sociais. Portanto, como algo que é forjado na luta, a classe operária não surge pronta e acabada em determinado espaço-tempo, como algo exigido pela necessidade histórica – fruto do devir. O marxista inglês nos ensina que sua construção precisa dialogar com o processo histórico, algo que exige dos analistas especial atenção aos sujeitos, à crítica aos modelos engessados e à empiria.3

Por tudo isso, um dos maiores méritos de Trabalhadores dos trilhos é pensar a história social do trabalho sem engessamentos ou isolamentos teóricos. Robério Souza se apropria de instrumentos analíticos e categorias como etnia, classe, nacionalidade, trabalho escravo, trabalho livre e “modernização” sem perder de vista o processo histórico, a ação política dos sujeitos e a relação dos conceitos com sua pesquisa empírica. Ele ainda conseguiu tecer uma potente análise baseada na história social sem descuidar de elementos das histórias política, cultural e econômica. Utilizando a imagem da própria ferrovia, o livro é um entroncamento que nos permite visitar muitas estações da experiência humana.

Referências

CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando T da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas, v. 14, p. 11-50, 2009. [ Links ]

SOUZA, Robério S . Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Salvador: EDUFBA; São Paulo: Fapesp, 2011. [ Links ]

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. 3. ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. v. 1. [ Links ]

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981 [ Links ]

2Sobre as fronteiras entre história social da escravidão e história social do trabalho stricto sensu, consultar Chalhoub e Silva (2009, p. 11-50).

3Para saber mais, consultar Thompson (19971981).

Marcelo Mac Cord – Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói(RJ) – Brasil. E-mail: [email protected].

Mérito, venalidad y corrupción en España y América – PONCE-LEIVA; ANDUJAR CASTILLO (Tempo)

PONCE LEIVA, Pilar; ANDUJAR CASTILLO, Francisco. (Org.), Mérito, venalidad y corrupción en España y América: siglos XVII y XVIII. Valência: Albatros, 2016. 362p. Resenha de: BICALHO, Maria Fernanda. Quanto vale um ofício no exercício do bom governo? Tempo v.23 no.1 Niterói jan./abr. 2017.

Mérito, venalidade e corrupção não são temas distantes, no tempo e no espaço, de nossa experiência cotidiana no Brasil atual. Tampouco temas exclusivamente contemporâneos, embora tenhamos de ter cuidado para não incorrermos em anacronismo ao discutir essas três concepções e práticas em nosso passado colonial. Os anacronismos podem surgir ao tentarmos transferir noções próprias do Estado liberal – e democrático – para vivências em que, além da fluidez na distinção entre as esferas do público e do privado, a lógica da nomeação para cargos administrativos passava pela gramática social do prestígio, pelo caráter pessoal e estamental das relações sociais e políticas, por noções como amor e amizade (Cardim, 1999) e, sobretudo, pela obrigatoriedade de retribuição do rei aos serviços prestados por seus vassalos. Retribuição que pressupunha mercês em distinções, ofícios, contratos, monopólios e todo tipo de privilégios; lógica integrante não só do poder do rei de agraciar os súditos – de dispensar a graça -, mas da “justiça distributiva” que, segundo Fernanda Olival, era quase um modo de vida para diferentes setores do espaço social português e do mundo ibérico em geral, envolvendo não só membros da nobreza, mas também de grupos sociais mais baixos. (Olival, 2001, p. 21).

Essa especificidade do Antigo Regime levou a que muitos historiadores negassem a existência de uma percepção e clara distinção entre o que era lícito e ilícito na administração fazendária, no exercício do poder e da política e, sobretudo, nas relações sociais. A oposição weberiana entre Estado patrimonial e Estado burocrático e, consequentemente, entre as diferentes manifestações de uma dominação patrimonialista e outra de tipo racional-legal marcou consideravelmente nossa historiografia. O homem cordial, de Sérgio Buarque de Holanda (1983), e Os donos do poder, de Raymundo Faoro (1984), são dois exemplos marcantes dessa influência. No entanto, o próprio Faoro admite que, para os súditos americanos do rei de Portugal, havia um limite para aquilo que era considerado lícito ou ilícito. Atribui à situação colonial os “vícios” dos administradores portugueses e conclui com a verve afiada do padre Antônio Vieira: “Perde-se o Brasil, Senhor (digamo-lo em uma palavra), porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm cá buscar nossos bens…” (Faoro, 1984, p. 173).

O mesmo Vieira, no Sermão do bom ladrão, proferido em 1655 na Igreja da Misericórdia de Lisboa para uma plateia de ministros dos tribunais régios, admoestava que “nem os Reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao Inferno sem levar consigo os Reis”. Denunciando a cumplicidade entre os reis e os ladrões, assim como o exercício do mau governo de funcionários régios que, sem mérito, eram nomeados por simples favores e espúrias negociações, e, ao não agirem em prol do bem comum da República, roubavam e vexavam os vassalos com o único intuito de enriquecimento próprio, Vieira insistia no imperativo cristão da restituição, uma vez que “sem restituição do alheio não pode haver salvação” (Vieira, 2000, p. 389-413).

Embora ainda pouco abordadas por historiadores portugueses e brasileiros, a ilicitude, a venalidade e a corrupção não estiveram totalmente ausentes de nossa produção acadêmica. Sobre a primeira há estudos acerca do contrabando, de Ernst Pijning e de Paulo Cavalcante, para o Rio de Janeiro, de Tiago Gil e de Fábio Kühn para as fronteiras sul da América portuguesa. Os primeiros tributários de uma genealogia historiográfica que tem nas teses dos anos de 1970-1980 sobre o Brasil sua matriz conceitual. Os segundos baseando-se na teoria das redes, quer mercantis, quer sociais. (Pijning, 2001Cavalcante, 2006Gil, 2007Kühn, 2012) A venalidade de ofícios – tão bem conhecida nos domínios espanhóis e ultramarinos de Castela – tem sido ultimamente objeto de investigação, para Portugal e seus territórios de além-mar, de Roberta Stumpf e Nandini Chaturvedula (Stumpf e Chaturvedula, 2012).

Por outro lado, a atualidade do tema da corrupção no cenário político brasileiro motivou a publicação do livroCorrupção: ensaios e críticas. Em um dos dois únicos capítulos sobre o Brasil colonial – o outro é de Evaldo Cabral de Mello -, Luciano Figueiredo, embora remeta-se à carência na historiografia brasileira “de investigações exaustivas dedicadas a estudos de casos”, chama a atenção para que há muito historiadores como Caio Prado Júnior e Charles R. Boxer afirmassem, o primeiro, em seu ceticismo, que a vida social e política da América portuguesa foi profundamente permeada pela dissolução nos costumes, inércia e corrupção nos dirigentes leigos e eclesiásticos; o segundo que as queixas acerca da rapacidade e venalidade dos funcionários régios foram tema constante da correspondência particular e oficial entre Brasil e Portugal por mais de três séculos (Figueiredo, 2008, p. 209-218).

Nos últimos anos, Adriana Romeiro se debruçou sobre o conteúdo polissêmico do conceito de corrupção na época moderna, indagando-se sobre sua pertinência, constatando que a cultura política do Antigo Regime contava com um leque de formulações sobre as práticas ilícitas cometidas por governantes e funcionários régios. A partir da discussão de diferentes significados da palavra corrupção, em dicionários, tratados sobre a arte de bem governar, crônicas e outros escritos coevos dos séculos XVI ao XVIII, analisou as noções que estruturavam o imaginário do mau governo, levando à “corrupção do corpo místico”. Sendo considerada um vício – e muitas vezes um pecado -, a ambição desmedida dos governantes era objeto não apenas de condenação nas obras de moralistas e políticos, constava igualmente das queixas e representações dos vassalos ultramarinos ao rei (Romeiro, 2015, p. 6).

Porém, o que está aqui em causa não são as análises clássicas e recentes da historiografia brasileira sobre a corrupção nos tempos modernos, e sim o livro Mérito, venalidad y corrupción en España y América: siglos XVII y XVIII, organizado por Pilar Ponce Leiva, professora da Universidad Complutense de Madrid, e Francisco Andújar Castilho, da Universidade de Almería. Publicado em 2016, fruto de um projeto de investigação coletivo, o livro reúne 17 capítulos escritos por diferentes historiadores de várias instituições na Europa e na América, voltados sobretudo para o mundo hispano-americano. No que diz respeito a Portugal e ao Brasil, conta com a contribuição de Roberta Stumpf. O “Prólogo” é de Nuno Gonçalo Monteiro.

Seus organizadores há muito vêm se dedicando a temas correlatos, tanto em projetos de pesquisa envolvendo redes internacionais de investigação quanto em publicações. Estiveram juntos no livro organizado por Francisco Andújar Castillo e María del Mar Felices de la Fuente, El poder del dinero: ventas de cargos y honores en el Antiguo Régimen, no qual Pilar Ponce Leiva tem um capítulo sobre as dinâmicas sociais e consequências políticas da venda de cargos municipais em Quito, no século XVII (Ponce Leiva, 2011, p. 145-165). Na introdução ao presente livro, admitem que mérito, venalidade e corrupção são questões há muito abordadas, quer para a monarquia hispânica, quer para seus domínios ultramarinos, embora estejam hoje sujeitas a uma profunda revisão historiográfica. Essa obra é produto e testemunho disso. Seus autores convergem na crítica a como tem sido tratado, até muito recentemente, o tema da venalidade e, sobretudo, da corrupção, por um lado por aqueles que negam sua existência baseando-se na indefinição, na Europa da época moderna, entre o público e o particular; e, por outro, por quem entende ser a corrupção, pelo mesmo motivo, condição “natural” e indissociável, eixo inquestionável e estruturante das sociedades de Antigo Regime. Segundo os organizadores:

Se ha cuestionado mucho que en la época existiese de forma expresa el concepto de “corrupción”, y más aún que tuviese las mismas connotaciones que en la actualidad. Los estudios disponibles demuestran, sin embargo, que tanto en la tratadística de la época como en los textos dicho concepto aparece con connotaciones similares a las actuales {…}. Esos mismos estudios corroboran que el término se refería de manera inequívoca a delitos punibles por la justicia, a los abusos de poder en beneficio de quien los cometía y en detrimento de los administrados. No obstante, el debate presenta muchas más aristas, pues va desde los autores que estiman que la corrupción era consustancial al ejercicio del poder en el Antiguo Régimen hasta quienes niegan su existencia “por no existir ni siquiera” el próprio término en la sociedad de la época. Pero más allá de essas consideraciones lo que parece incuestionable es que el proprio concepto de lo que entendemos por corrupción requiere un profundo debate, sobre todo para situar en contexto, y de acuerdo con las convenciones del sistema político, jurídico y social de Antiguo Régimen, lo que tratamos de estudiar. (Ponce Leiva e Andújar Castillo, 2016, p. 10)

A primeira parte do livro, Conceptos y valor de los méritos, inicia-se com o capítulo de María del Mar Felices de la Fuente sobre os méritos necessários para se ter o título de nobre em Castela, no qual a autora analisa uma das principais prerrogativas do rei: sua intervenção em assuntos de graça e mercês, assim como a importância dos méritos pecuniários na outorga de honras, títulos e dignidades. Domingo Marcos Giménez Carrillo debruça-se sobre as conferições e as distinções entre as “mercês dos hábitos” e de “títulos de cavaleiro” das ordens militares no reinado de Felipe V, demonstrando os pesos relativos entre o serviço pecuniário e o das armas. Amorina Villarreal Brasca, no capítulo sobre o provimento do VII conde de Lemos na presidência do Conselho de Índias (1603), revisita essa importante instituição voltada para os assuntos relativos aos domínios ultramarinos de Castela em um momento crucial para a monarquia hispânica. Guillermo Burgos Lejonagoitia analisa o funcionamento das designações para ofícios nas Índias de Castela entre 1701 e 1746, sem que o pagamento em dinheiro fosse o que mais importasse, e sim os demais méritos no serviço ao monarca. Já Antonio Jimenez Estrella indaga-se sobre o processo de estatização, profissionalização e burocratização do exército da monarquia dos Áustria durante o valimento do conde-duque de Olivares, momento em que a milícia se consolidou como uma das vias privilegiadas de ascensão social e de vinculação ao estatuto nobiliárquico por parte de homens sem méritos anteriores, ou cujo mérito consistiu em sua capacidade econômica de recrutar soldados. Encerra essa primeira parte o capítulo de Roberta Stumpf, no qual a autora, ao criticar os estudos que privilegiam a discussão da legislação e dão pouca importância às possibilidades reais de sua implementação, ou seja, às práticas dos governantes in loco, discute as ambiguidades da política pombalina, que se, por um lado, pretendeu “racionalizar” a provisão dos ofícios, dificultando sua patrimonialização, por outro, manteve a prática da venalidade em sua concessão, sobretudo em territórios ultramarinos.

A segunda parte do livro, El mercato de las ventas de ofícios, inicia-se com o estudo de Francisco Andújar Castillo, no qual o historiador discute a intensificação da venda de ofícios na segunda metade do século XVII como forma extra (ordinária) de financiamento da monarquia, e sua privatização na medida em que eram alienados perpetuamente, tornando-se “patrimônios móveis” de seus proprietários. Partindo dessa constatação, procura dar resposta à pergunta: como e quem vendiam os cargos; demonstrando o grande protagonismo das juntas e dos conselhos régios. O texto de Francisco Gil Martínez sobre ingressos venais e gastos cortesãos aborda o destino que se dava ao dinheiro decorrente da venda de ofícios durante o valimento do conde-duque de Olivares, período em que a venalidade, em termos quantitativos e qualitativos, conquistou sensível amplitude. Centra sua análise na construção do Palácio do Bom Retiro. Christoph Rosenmüller detém-se na formação de alianças políticas na Corte de Madri em fins do século XVII e começos do XVIII, que cercearam a prerrogativa dos vice-reis da Nova Espanha de prover em suas clientelas e criados os ofícios nas alcaidarias maiores, diminuindo, por meio da venda de ofícios, o poder das elites aristocráticas tradicionais em favor de uma maior influência da Coroa na seleção dos candidatos.

O terceiro bloco do livro, Debates sobre a ubicua corrupción: miradas y casos é dedicado à análise do próprio termo “corrupção” e de seus múltiplos significados – morais, políticos e sociais – na época moderna, assim como de uma miríade de práticas entendidas como abusivas pelos contemporâneos, expressões do “mau governo”. Os dois primeiros capítulos, “Percepciones sobre la corrupción en la monarquía hispânica, siglos XVI y XVII”, de Pilar Ponce Leiva, e “La moralidad de los mentirosos: por un estúdio comprensivo de la corrupción”, de Anne Dubet, têm um caráter teórico e conceitual. O primeiro, de acordo com sua autora, visa a

{…} ofrecer una primera aproximación a lo que en los siglos XVI e XVII y en el ámbito hispânico se percibía como “corrupción”, “corrupto” o “corrompido”. Más que reducir la corrupción a una categoría analítica precisa, parece útil reconocer que se trata de una categoría cultural – o socio-cultural -, asociada a un determinado conjunto de normas, a un sistema de valores y a una variada gama de prácticas sociales que pueden – o no – ir en consonancia entre si. (Ponce Leiva e Andújar Castillo, 2016, p. 193-194)

Anne Dubet, a partir do mote da fiscalidade e da fraude, volta-se para a compreensão dos sentidos da corrupção e de sua polissemia de acordo com a cultura política do Antigo Regime, testando discursos e práticas, as razões dos indivíduos e as estratégias de repressão. Os três capítulos seguintes dedicam-se a estudos de caso que trazem para o leitor um amplo leque de possibilidades no tratamento da corrupção tanto na Europa quanto na América. Inés Gómez González debruça-se sobre os percones, alegações jurídicas de defesa utilizadas para fazer frente às acusações a don Pedro Valle de la Cerda – que, segundo Elliott, era o homem mais poderoso da Espanha depois de Olivares – feitas em visita ao Conselho da Fazenda em 1643. Já Sébastien Malaprade demonstra como era possível enriquecer em tempos de crise ao analisar o caso de Rodrigo Jurado, fiscal da Comisión de Millones do Conselho da Fazenda, cuja fortuna e prosperidade deveram-se às relações que mantinha com os homens de negócio e ao controle que exercia sobre os arrendatários e tesoureiros dos millones. Pierre Ragon, em seu estudo sobre o conde de Baños, vice-rei da Nova España entre 1660 e 1664, aborda as inúmeras extorsões e malversações exercidas em seu governo, cuja denúncia por setores hierarquicamente inferiores poderia colocar em risco a arquitetura e a organicidade do corpo político da monarquia e de seu império.

Os três últimos estudos se deslocam do centro da monarquia e de suas instituições “palacianas” para suas diferentes “periferias”, focando personagens com grande trânsito entre culturas distintas, hierarquias conflitantes e interesses diversos. José Luis de Rojas debruça-se sobre os “senhores” do império asteca que, depois da conquista espanhola, conservaram suas posições destacadas, ocupando quer os cabildos de índios, quer postos de intermediação na cobrança de tributos, praticando todo tipo de atos abusivos. José Manuel Díaz Blanco deteve-se nas cartas inéditas de um mercador sevilhano que, enviado em 1664 pelo Consulado de Sevilha em missão à Corte de Madri, denunciou o poder do dinheiro como o único meio de aceder aos ministros e tribunais da monarquia no reinado de Felipe IV. Guilhermina del Valle Pavón nos remete às práticas e artimanhas dos mercadores que realizavam as principais transações dentro e fora da Nova Espanha pelo controle que exerciam sobre a prata, principal moeda no comércio internacional na época moderna.

Para terminar, reitero o que os organizadores já haviam advertido na introdução ao livro, e que Nuno Gonçalo Monteiro, em seu prólogo, destaca. Se, nas últimas décadas, houve uma revalorização da importância do tema da corrupção, da venalidade dos ofícios e das honras na monarquia hispânica, as reflexões aqui presentes propõem uma renovação desses estudos em diferentes escalas. Demonstram que a intensidade dos méritos, o exercício da venalidade, as concepções e as práticas de corrupção não eram perfeitamente similares na Europa e nos mundos americanos. Havia sensíveis diferenças entre as monarquias portuguesa e espanhola e singularidades irredutíveis entre as Américas lusa e hispânica. Se, para as últimas – a monarquia e a América hispânicas -, temos tantos e tão bons estudos e reflexões, cabe a nós, historiadores de língua portuguesa nos dois lados do Atlântico, enveredarmos pela investigação desses temas, quer em sua percepção político-administrativa, quer em sua configuração social. A leitura de Mérito, venalidad y corrupción en España y América: siglos XVII y XVIII torna-se, portanto, não apenas um convite sedutor nesse sentido, é sobretudo um desafio ao diálogo, uma vez que seus capítulos podem ser lidos, em toda sua riqueza e complexidade, como uma irrecusável fonte de inspiração para novas pesquisas e publicações.

Referências

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Maria Fernanda Bicalho – Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: [email protected].

Slavery and forced migration in the antebellum south – PARGAS (Tempo)

PARGAS, Damian Alan. Slavery and forced migration in the antebellum south. New York: Cambridge University Press, 2015. 281p. Resenha de: OLIVEIRA, Joice. Vidas desfeitas e vidas refeitas: novas reflexões sobre a experiência escrava no comércio interno de cativos. Tempo v.22 no.41 Niterói set./dez. 2016.

A migração interna e forçada de escravos não é novidade nos estudos dedicados à escravidão. Há algumas décadas, os historiadores têm movido esforços com o intuito de compreender os aspectos, sobretudo políticos, econômicos e demográficos, concernentes ao comércio interno de escravos. Nessa empreitada, temas como o número e o perfil dos indivíduos negociados, as formas e os envolvidos na organização comercial, os determinantes da oferta e demanda de mão de obra cativa e os debates em torno da legalidade daquele comércio figuram como centrais em pesquisas recentes. No entanto, a perspectiva dos escravos em relação à experiência vivida nesse comércio e a posterior reconstrução de suas vidas ainda permanecem lacunares na produção acadêmica.

No que concerne à historiografia norte-americana, é notável que historiadores como Michael Tadman (1989), Walter Johson (1999), Steven Deyle (2005) e Robert Gudmestad (2003) tenham se concentrado no comércio interno de escravos no sul dos Estados Unidos no período anterior à Guerra Civil. Essa historiografia perscrutou a extensão e a organização do comércio interno, bem como seus efeitos, sobre os proprietários, negociantes e escravos. Ela indagou sobre o cotidiano daqueles que aguardavam a venda nos mercados de cativos e sobre o impacto daquela atividade na formação da jovem nação norte-americana. E, mais ainda, inquiriu sobre como os negociantes, o comércio interno e a própria escravidão foram vistos pela sociedade ao longo do tempo. Contudo, tais estudos não tinham por propósito privilegiar a percepção escrava diante da violência de serem comercializados. A exceção ocorre com Heather Andrea Williams (2012), que, por meio de uma proposta analítica distinta, investiga os sentimentos e as ações de escravos que foram separados de seus familiares pelo comércio interno e passaram parte de suas vidas tentando reencontrá-los.

É justamente a partir desse cenário historiográfico que o historiador holandês Damian Alan Pargas circunscreve seu objeto de pesquisa: Slavery and forced migration in the antebellum south é o resultado de uma minuciosa investigação realizada nos arquivos norte-americanos e tem o objetivo de trazer à tona a experiência dos indivíduos subjugados ao comércio interno. Pargas revela as percepções escravas diante de cada etapa do processo de comercialização de suas vidas, incluindo o período de adaptação do forasteiro à nova realidade. Para tanto, o autor se debruça sobre uma vasta série documental, focando tanto as narrativas cativas quanto as entrevistas de ex-escravos e refugiados nos estados do norte estadunidense e no Canadá. A pesquisa recorre, ainda, aos registros e memórias de senhores de escravos, aos diálogos entre cativos e viajantes, aos anúncios de escravos fugidos e a registros oficiais referentes à população escrava.

Nesse intento, a advertência metodológica inicial de Pargas é notável. Apesar de a historiografia comumente sinonimizar comércio interno e comércio interestadual, é necessário, segundo o autor, diferenciar três tipos de migração forçada: a de longa distância (interestadual), a local e a urbana. Essa classificação se sustenta na justificativa de que a quantidade de milhas percorridas impactava diretamente as reações e as possibilidades futuras dos escravos. Exatamente apoiado nessa distinção, o historiador engendra uma análise comparativa da experiência de cativos nascidos nos Estados Unidos, contrastando e assemelhando a trajetória daqueles que enfrentaram o comércio de longa distância com a de outros, que vivenciaram o comércio local e urbano.

Como os escravos vivenciaram as diversas formas de migração forçada ao longo do século XIX? O que eles sabiam sobre esse comércio e como tentaram resistir ou negociar os termos de sua remoção? Em que medida esses escravos foram capazes de se adaptar às novas comunidades, ao novo regime de trabalho e à nova relação senhor-escravo? Como se caracterizava a relação dos forasteiros com outros cativos? Em que medida o comércio interno contribui para o desenvolvimento de identidades escravas mais amplas? Essas são algumas das perguntas elaboradas por Pargas, que, concomitantemente, compõem a estratégia metodológica e narrativa do livro, bem como fomentam novas reflexões compatíveis não apenas com o contexto norte-americano, mas também com outros lugares, nos quais o comércio interno de seres humanos foi uma realidade.

O livro está dividido em duas partes, “Migração” e “Assimilação”. A primeira, como sugere o título, acompanha as várias etapas do movimento migratório de pessoas pertencentes à chamada “migration generations” – cativos americanos que viveram entre a Guerra Revolucionária (1775-1783) e a Guerra Civil (1861-1865). Esse movimento obrigou milhares de escravos a cruzarem as fronteiras do Upper South em direção ao Lower South, bem como o deslocamento de outros numerosos cativos dentro de um mesmo estado. Por vezes ainda, a sina foi dupla, uma vez que, em alguns casos, os escravos foram submetidos a ambos os percursos.

É precisamente ao exame das causas dessa onda migratória e à avaliação das diferentes formas de organização do comércio que o primeiro capítulo do livro se dedica. No que se refere ao comércio interestadual, Pargas observa que parte das negociações no período entre 1820-1860 pode ser explicada por fatores relacionados com o declínio e a ascensão produtiva de culturas distintas no país. Mais especificamente, o comércio de pelo menos 875 mil escravos estaria relacionado com o declínio na produção de tabaco em estados como Maryland e Virginia (Upper South) e o vertiginoso crescimento da produção de algodão e açúcar em estados como Texas, Alabama, Mississipi e Louisiana (Lower South) – que, juntos, importaram 75% dos escravos. O aumento da demanda pela mão de obra escrava e a consequente elevação dos preços nas áreas em expansão econômica atraíram o interesse de senhores das regiões em decadência, que enxergavam na venda de seus cativos uma possível solução para seus problemas. Por sua vez, no que concerne às migrações locais, Pargas as classifica como permanentes ou temporárias. No primeiro caso, elas eram decorrentes da imprevisível situação financeira dos senhores, que podiam rapidamente enriquecer e migrar em busca de novas terras – carregando consigo seus escravos – ou falir e negociar seus cativos para pagar as dívidas. Já as migrações temporárias eram o resultado da locação de escravos para trabalharem em propriedades agrícolas no interior do estado ou nos centros urbanos por determinado período.

Diante da iminência da comercialização, os escravos lutaram para preservar, acima de tudo, a unidade familiar. Para isso, negociaram os termos de sua remoção, apelaram para a consciência de seus senhores e, quando nada funcionou, cometeram atos como fuga, ataque contra senhores, automutilação, infanticídio e suicídio. Esse protagonismo é o tema do segundo capítulo, cujo argumento central versa sobre o modo como as reações escravas variavam conforme o tipo de comércio, o conhecimento sobre o local de destino e, principalmente, o impacto da migração sobre as famílias. À vista disso, Pargas afirma que se, por um lado, havia poucas chances de evitar as separações familiares no comércio interestadual, por outro os escravos comercializados no mercado local e urbano podiam ser mais bem-sucedidos, principalmente quando se encarregaram de encontrar seus próprios compradores na vizinhança ou negociaram diretamente com os compradores nos leilões e nos mercados.

A venda era o primeiro passo rumo a uma jornada que poderia se estender de acordo com o destino e a organização do comércio. Segundo essas circunstâncias, Pargas perscruta, ao longo do terceiro capítulo, o modo como os escravos viveram e sentiram cada etapa do processo de remoção. Para o autor, a experiência mais difícil foi a dos escravos do comércio interestadual, que, privados de comida e descanso, acorrentados e maltratados pelos negociantes, eram obrigados a marchar durante semanas pelos rincões do Lower South até chegarem aos mercados, onde eram confinados em celas e dali só saíam para uma nova e penosa caminhada, dessa vez em direção à sua futura morada. Apesar de o percurso geralmente ser mais curto para os comercializados no mercado local e urbano, Pargas ressalta que eles também sofriam as humilhações de serem tratados como mercadorias, principalmente durante a avaliação física realizada pelos potenciais compradores, momento que era particularmente cruel para as mulheres, frequentemente abusadas sexualmente.

Terminada a remoção, uma complicada fase começava na vida daqueles indivíduos: a assimilação. Assim que adentravam a nova propriedade, os escravos se tornavam forasteiros e eram compelidos a se adaptar à nova realidade, dentro da qual o trabalho tinha importância primordial. Ciente disso, Pargas se indaga no quarto capítulo sobre como a mudança de ocupação promoveu dificuldades e/ou oportunidades para os recém-chegados. Segundo o historiador, os escravos oriundos de outros estados encaravam as maiores adversidades, uma vez que o processo de aprendizado do trabalho poderia ser extremamente penoso, especialmente se ocorria durante a colheita do algodão ou do corte da cana-de-açúcar. Pargas acrescenta ainda que, tanto na esfera doméstica quanto nos centros urbanos, os escravos podiam usufruir de algumas vantagens, como melhor alimentação e vestuário, no caso dos que viviam na casa-grande, e maior mobilidade e menor vigilância, para os que viviam nas cidades. No entanto, Pargas salienta que, apesar do entusiasmo de muitos escravos, que enxergavam na vida fora da lavoura a oportunidade de uma vida melhor, dividir o teto com seus senhores ou trabalhar nas indústriass podia ser ainda mais degradante.

No capítulo seguinte, o autor examina em que medida a relação com os senhores/feitores e as condições materiais dos escravos foram alteradas com a migração forçada. Segundo ele, apesar de o tratamento recebido pelos recém-chegados às lavouras no Lower South variar conforme o tamanho da propriedade e com a presença ou o absenteísmo dos senhores, as reclamações referentes à falta de alimentação, vestuário e moradia adequada eram comuns. Além da precariedade material, os recém-chegados eram mais suscetíveis às punições. Nas lavouras, eram castigados principalmente por erros relacionados com o trabalho, e nos centros urbanos sofriam por infringir códigos de comportamento com os quais não estavam familiarizados.

Após acompanhar a experiência dos escravos durante a remoção e a adaptação à nova realidade, Pargas finaliza seu livro estudando o esforço empreendido pelos forasteiros para se integrarem à nova comunidade e reconstruírem suas vidas. Nesse intento, o autor problematiza a noção de comunidade escrava monolítica e a existência de uma coesão entre os escravos capaz de garantir a fácil interação (Berlin, 2003). Para o autor, as diferenças de idioma, sotaque, religião, costumes e, até mesmo, o chauvinismo regional eram obstáculos significativos à integração entre os recém-chegados e os antigos moradores. De acordo com o historiador, os escravos submetidos ao comércio interestadual manifestaram a chamada dupla orientação, fenômeno que combinava o desejo de voltar para seus antigos lares com a necessidade de se integrar à nova condição de sobrevivência. Diante desse imbróglio, encontraram na criação de laços familiares uma chance para o recomeço e nas histórias contadas a seus filhos uma esperança de manter viva a memória de um lar e tempo pretérito.

Por meio de uma escrita fluida e cativante, Damian Alan Pargas tece uma consistente análise historiográfica alinhavada às fontes históricas, que, além do mérito de investigar a experiência dos escravos em cada etapa da migração forçada, vai ainda mais longe, ao perscrutar o processo de adaptação e integração dos recém-chegados às novas comunidades, e isso narrado, cuidadosamente, a partir da percepção escrava. No entanto, algumas ressalvas são necessárias.

Apesar de insistir nas distinções entre os tipos de comércio interno, Pargas dedica a maior parte de sua pesquisa à experiência dos que viveram o comércio interestadual, tornando a narrativa, por vezes, um pouco repetitiva. E, em alguns momentos, as diferenças entre a vivência no comércio local e urbano parecem muito tênues. Ademais, ao considerar a família como parte essencial do processo de adaptação e integração dos escravos, o autor se concentra, basicamente, no casamento, negligenciando a importância da família extensa (Malone, 1992). Ainda sobre o aspecto familiar, o autor não avalia que a integração dos escravos poderia ocorrer de maneira diferente em propriedades recém-formadas e em propriedades estabelecidas de longa data, ou seja, naquelas em que a comunidade escrava tinha alto grau de consolidação das redes de parentesco e solidariedade. Nesse segundo caso, as chances de inserção do forasteiro poderiam ser limitadas. E, no que diz respeito às propriedades de formação recente, em que havia poucos núcleos familiares e a maioria dos escravos era composta por homens adultos e solteiros, as possibilidades de constituir famílias e criar uma rede de parentesco poderiam ser ainda menores.

Não obstante tais considerações, por fim cabe enfatizar que as contribuições promovidas por Pargas extrapolam a historiografia americana e podem encorajar novas pesquisas sobre o comércio interno de escravos em outras localidades, inclusive no Brasil. Embora a historiografia brasileira se dedique a essa temática desde 1970 e já tenha realizado importantes avanços na compreensão da dinâmica daquela atividade,1 pouco se sabe sobre seu impacto na vida dos cerca de 400 mil escravos comercializados no império brasileiro após o fim definitivo do tráfico atlântico de africanos. Diante dessa lacuna, alguns historiadores e historiadoras têm direcionado suas atenções para os locais de saída do comércio interestadual com o objetivo de compreender o modo como eles reagiram à ameaça da venda e da provável dissolução familiar.2 Mas, ainda assim, os estudos dedicados à experiência durante a migração, adaptação e integração dos cativos nos locais de chegada são muito escassos.3 Nesse cenário historiográfico, as questões investigadas por Pargas podem incentivar novas buscas nos arquivos brasileiros, que se, por um lado, não guardam dezenas de biografias de escravos, por outro estão abarrotados de registros de batismo e de casamentos, processos-crimes, registros de meia-siza, procurações e tantos outros documentos que, uma vez correlacionados, podem contar sobre como viveram, sentiram e reagiram aqueles que foram submetidos à violência do comércio interno.

Referências

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1Para citar alguns: Neves (2000), Slenes (2004), Motta, (2012) e Scheffer (2012).

2Para citar alguns: Mattos (1998), Pires (2009) e Ferreira Sobrinho (2011).

3Algumas exceções são: Machado (1987), Rocha (2004) e Oliveira (2013).

Joice OliveiraDoutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Campinas – Campinas, Brasil. E-mail: [email protected].

Regards sur la démocratie athénienne – MOSSÉ (Tempo)

MOSSÉ, Claude. Regards sur la démocratie athénienne. Paris: Perrin, 2013. 234p. Resenha de: TRABULSI, Dabdab José Antônio. História e historiografia da democracia ateniense. Tempo v.22 no.41 Niterói set./dez. 2016.

Claude Mossé sempre demonstrou grande interesse pela política ateniense na Antiguidade, desde sua famosa tese de 1962 (La fin de la démocratie athénienne. Paris: PUF) até o livro aqui em questão, passando pelo que talvez seja seu livro mais lido, Histoire d’une démocratie: Athènes (Paris: Seuil, 1971) e por Politique et société en Grèce ancienne: le modèle athénien (Paris: Aubier, 1995), entre muitos outros que tratam do tema de forma mais ou menos direta. Temos então aqui toda uma vida de meditação sobre a democracia ateniense.

Desde a introdução (“Démocratie d’hier et démocratie d’aujoud’hui”, p. 7-11), a motivação contemporânea se exprime com vigor:

A democracia está na ordem do dia. Políticos, professores universitários, jornalistas fazem dela um dos temas privilegiados de suas reflexões, interrogando-se sobre seu funcionamento onde ela existe, sobre suas possibilidades de instauração onde ela ainda não foi experimentada. Foi para instalá-la no Oriente Médio que foram feitas as expedições militares no Afeganistão e no Iraque. Foi para fazê-la triunfar que as multidões saíram às ruas para se manifestar em Kiev e em Minsk. É por ela que se enfrentam, na África, grupos cujos objetivos temos por vezes dificuldades de compreender, onde subsistem antagonismos provenientes de um longo passado. Isso tudo mostra que se trata de uma das questões dominantes deste início de século XXI, na medida em que dela também depende a solução de outros problemas que se apresentam ao mundo de hoje, sejam eles econômicos, ecológicos ou demográficos. (p. 7)

Mas o que ocorre é que essa ideia de estudar a democracia antiga no interesse da democracia contemporânea não é simples de articular em termos de pertinência da análise. É por isso que fico feliz em constatar que o ponto de vista de Mossé é o mesmo que defendi em meu livro de 2006 sobre a questão (Participation directe et démocratie grecque: une histoire exemplaire?. Besançon: PUFC. p. 9-19). Mossé, com efeito, apresenta a questão da seguinte maneira:

Validade do princípio majoritário e formas que pode tomar a participação na tomada de decisão são os problemas que se colocam a todos os que se preocupam com o declínio das democracias no mundo atual. Isso significa dizer que a democracia grega pode fornecer um modelo aos homens de hoje? A essa questão não há resposta evidente, pois seria fazer abstração dos 25 séculos que nos separam da Atenas de Péricles. Por outro lado, pode ser interessante tentar compreender o funcionamento desse sistema político e da ideologia que o justificava, mas também lembrar o olhar lançado sobre ele ao longo dos séculos. Pois, das questões que a democracia ateniense levantou ao longo da história, podem ser tiradas lições suscetíveis de ajudar em um renascimento da democracia, hoje mais necessário do que nunca. (p. 9)

A autora começa muito naturalmente pela história da democracia ateniense (Capítulo 1: “L’invention de la démocratie”, p. 13-45). Procede a uma apresentação clara das principais etapas da formação da democracia ateniense, de Sólon a Péricles, passando por Clístenes e Efialtes. Em seguida (p. 27-34), explica os conceitos-chave do regime, liberdade e igualdade, e lança algumas das bases da estrutura social da cidade. Explica também (p. 34-45) o funcionamento da democracia, suas instituições, suas práticas, suas principais figuras, terminando o capítulo com uma questão: “E isso nos traz de volta à questão essencial relacionada com o funcionamento da democracia ateniense, a da realidade do poder do démos. Questão difícil, pois para responder a ela precisaríamos dispor de elementos que nos faltam” (p. 43). Nesse ponto da análise, podemos considerar que ela se inclina por uma hipótese “intermediária” nesse debate espinhoso; mas voltará mais adiante no livro, de forma um pouco menos neutra, sobre esse ponto.

No Capítulo 2 (“Le rejet de la démocratie”, p. 47-65), a autora trata desse fenômeno em dois tempos: inicialmente, uma explicação política das duas revoluções oligárquicas do final do século V (p. 48-54) e, depois, uma análise do questionamento acerca da democracia entre os teóricos antigos, sejam eles oradores, políticos, historiadores ou filósofos. Mais para o final da seção, dá uma atenção especial à questão das relações entre a democracia e a lei. Esse capítulo tem por mérito e por resultado mostrar claramente que a democracia nunca foi coisa consensual em Atenas, e isso apesar de seu sucesso e de sua grande estabilidade no tempo. Ela também não deixa de tomar partido no debate acerca do fim do regime: “A derrota, diante de Felipe inicialmente, de Antípatros depois, levou, senão ao desaparecimento total, pelo menos ao declínio da democracia” (p. 65).

Chegamos ao terceiro tempo “antigo” da questão: “L’oubli de la démocratie” (Capítulo 3, p. 67-87). Sob esse título, a autora apresenta a história política de Atenas nas épocas helenística e romana, nas quais a democracia foi várias vezes derrubada, restabelecida, mas, sobretudo, modificada e, no fim, desnaturada. Apresentando Atenas tal como ela aparece em autores importantes (Políbio, Cícero, Plutarco, entre outros), Mossé começa nesse capítulo uma mudança de abordagem, passando da forma suave da história da democracia em Atenas para o papel da lembrança deixada pela democracia ateniense na história, e, para começar, na cultura antiga “pós-clássica”:

Como vemos, a imagem da democracia ateniense permanece majoritariamente negativa no conjunto do mundo romano. Quando se evoca a grandeza de Atenas, ela não é relacionada com o regime democrático, e sim com alguns homens que ocuparam a liderança da cidade e que, de Sólon a Fócion, souberam garantir a liberdade e criar as condições de sua autoridade no seio do mundo egeu. E com frequência é lembrada a ingratidão dos atenienses em relação a esses homens, enquanto a decadência de Atenas é ligada a um gosto desmedido pelo luxo e pelos espetáculos, o que já era denunciado por Platão em sua época. (p. 87)

A parte sobre a “posteridade da democracia ateniense” começa no Capítulo 4 (“De la Renaissance aux Lumières”, p. 89-116). No que se refere ao Renascimento, a autora examina o movimento comunal na Itália, quando os gregos e os romanos se tornaram de novo “pertinentes”, mas quase sempre com uma imagem negativa da democracia. Mas a atenção atribuída a Tucídides e a Plutarco tornava outra vez possível discutir a questão. Na França do Renascimento e na Inglaterra elisabetana, países que viviam então o reforço do poder real, a questão se desloca para aspectos morais, acerca do heroísmo, e sobre certos temas políticos, mais do que sobre os regimes. Ela faz em seguida uma análise das “Luzes”, na qual retoma alguns de seus trabalhos mais antigos (entre os quais seu livro L’Antiquité dans la Révolution française. Paris: Albin Michel, 1989), assim como trabalhos de N. Loraux, P. Vidal-Naquet e F. Hartog. A questão da política antiga é estudada em Montesquieu, na Enciclopédia, e, sobretudo, em duas obras fundamentais, Le voyage du jeune Anacharsis en Grèce, do abade Barthélemy, e Les recherches philosophiques sur les Grecs, de Cornélius de Pauw. Este último é especialmente importante para a questão da democracia, por ser talvez a primeira obra moderna a exprimir uma opinião global mais positiva sobre o regime ateniense, ao ponto de seu autor receber, em 1792, juntamente com Thomas Payne e George Washington, a cidadania francesa por ter “servido à causa da liberdade e preparado a libertação dos povos” (p. 115).

Depois das Luzes, as revoluções (Capítulo 5, “Les temps des révolutions”, p. 117-140). Esse capítulo é dedicado às duas Revoluções, Americana e Francesa. O horizonte republicano desses dois processos históricos colocou a Antiguidade romana, espartana e ateniense na ordem do dia. Apesar de uma cultura “antiga”, “pagã”, bem menos intensa na América do que na Europa, os Pais Fundadores dos Estados Unidos examinaram e discutiram os Antigos, John Adams em especial. Mas, de forma geral, foi a desconfiança de um Hamilton em relação ao poder popular que prevaleceu. Em relação à Revolução Francesa, a questão será mais complexa e vai variar fortemente de acordo com as etapas da Revolução. Mossé, retomando seu livro sobre a questão, segue as mudanças na imagem de Atenas da Constituinte ao Terror, até a reação termidoriana. Grande atenção é dedicada a dois autores, Desmoulins e seu elogio da liberdade de palavra dos atenienses, e Chateaubriand e seu desencanto com a república. Mossé nos mostra abundantemente de que forma a Antiguidade, a política, a democracia, o povo foram uma espécie de “linguagem” durante o processo revolucionário.

No capítulo seguinte (Capítulo 6, “L’avènement de l’Athènes ‘bourgeoise’, de Benjamin Constant à Fustel de Coulanges et Max Weber”, p. 141-164), Mossé apresenta a formação da visão “burguesa” sobre a Atenas antiga e sua democracia, desde o texto fundador de Benjamin Constant sobre as diferenças entre a liberdade dos Antigos e a liberdade dos Modernos até o verdadeiro “império” exercido durante meio século pelo trabalho de Gustave Glotz sobre a Cidade grega (a partir de sua publicação em 1928). As etapas dessa construção são muito bem apresentadas: Fustel e sua obsessão em “libertar” os Modernos da influência dos Antigos, J. Burckhardt e o tema das relações entre igualdade política e desigualdade social, M. Weber e sua denúncia da tirania da maioria (ainda que ele identificasse uma “racionalidade” no regime ateniense). De uma reflexão mais filosófica passamos ao nascimento de uma história grega “profissional”, com G. Grote e G. Droysen. Foi Grote quem instalou a democracia no centro da história ateniense e grega. Em Droysen, o que interessa é a decadência do regime, a fim de “explicar” Felipe e Alexandre. Da mesma forma, Mossé explica o nascimento de uma verdadeira “Atenas francesa”, em Victor Duruy e Gustave Glotz. Em Duruy, o segundo império, mistura de poder pessoal e sufrágio universal, encontra seu eco na Atenas democrática dominada por Péricles. Em Glotz, é o tema da “cidade”, tomado de empréstimo a Fustel (mas de certa forma contra ele, pelo abandono do tema do génos como fonte das instituições e da cidade), que vai ser o fio condutor, mas uma cidade “democrática” (dois terços do livro são dedicados ao período da democracia), e um século V que será escolhido como acmè da história ateniense, grega e quiçá humana. É a França democrática, elitista e liberal que se lê no espelho da Atenas clássica. E eu só posso subscrever as palavras de Mossé, quando ela diz:

Lendo a Cidade grega de Glotz, não podemos deixar de pensar na França desses anos que antecedem a crise de 1929. E medimos até que ponto o historiador, mesmo o mais apegado a uma “verdade” fundada em um conhecimento aprofundado dos “fatos”, não deixa de ser muito marcado por sua época. (p. 164)

Ao longo do século XIX, e até Glotz, a Europa liberal encontrou um novo equilíbrio e uma nova utilidade à Grécia clássica, a Atenas e à sua democracia. Uma imagem bastante idealizada, na qual o imperialismo ateniense se encontrava justificado por seus efeitos “civilizadores” e onde a escravidão se encontrava desculpada por sua “doçura” em Atenas. Na segunda metade do século XX, essa imagem será destruída pelo trabalho inovador de Moses Finley; e Mossé, que o conheceu bem, vai retraçar a vida, a obra e a contribuição historiográfica do grande historiador com grande fineza naquele que é, em minha opinião, o melhor capítulo do livro (Capítulo 7, “Le ‘moment’ Finley: une mise en question de la vulgate”, p. 165-188). E isso em vários domínios: sua posição de certa forma intermediária no debate sem fim sobre o “modernismo” ou o “primitivismo” da economia antiga; seu reconhecimento do fato imperialista ateniense em uma relação orgânica com a democracia; sua afirmação do fato de que a civilização grega foi construída (was based on) sobre a escravidão; as relações de novo orgânicas entre escravidão e democracia em Atenas. E, apesar disso tudo, uma defesa clara do “modelo” ateniense em termos de participação política efetiva, em termos do papel desempenhado pelo povo miúdo nos assuntos coletivos, no controle dos dirigentes da cidade por parte dos cidadãos, e pela amplitude da liberdade de palavra. Ela recoloca todas as análises de Finley nos quadros de sua vida pessoal (“caça às bruxas” nos Estados Unidos dos anos 1950; insuficiências da democracia representativa). Vale realmente a pena citar Mossé de forma um pouco mais longa quanto a isso:

A obra de Finley teve impacto considerável na Europa, tanto na Europa Oriental quanto na Europa Ocidental, e nos Estados Unidos, onde ele foi convidado a dar conferências desde 1964 em muitas universidades, inclusive naquela da qual havia sido afastado, Rutgers. A partir de uma pesquisa sobre os marcos hipotecários na Atenas do final da época clássica, ele logo alargou seus centros de interesse, tanto cronológicos quanto espaciais. Mas, no que se refere ao objeto deste trabalho, ninguém contribuiu mais que ele para a elaboração de uma imagem positiva da democracia ateniense, essa democracia escravista que atribui aos membros da comunidade dos cidadãos um poder de participação nas tomadas de decisão único na história da humanidade. Finley foi o que poderíamos chamar um historiador “engajado”. Ele o foi politicamente, e seu percurso é comparável ao de certo número de pesquisadores de sua geração que, seduzidos pela análise marxista, dela se afastaram quando ela foi confiscada por uma ortodoxia estreita, mas conservando certos métodos de questionamento do marxismo. Por isso mesmo, ele deveria sofrer as críticas tanto dos “tradicionalistas”, fechados em uma ideologia que se queria “humanista”, quanto pelos defensores de um marxismo puro e duro. (p. 187-188)

Chegamos ao Capítulo 8 (“La démocratie athénienne aujourd’hui”, p. 189-214), no qual Mossé retorna à justificação de sua análise neste livro: “A crise que conhece a democracia contemporânea suscita um renovado interesse pela experiência ateniense. Enquanto o estudo das línguas antigas recua no conjunto do mundo ocidental, paradoxalmente nunca o ‘modelo’ ateniense conheceu tal florescimento de análises, feitas não apenas pelos especialistas da Antiguidade, como também por filósofos e politólogos” (p. 189). Nesse último capítulo, Mossé examina a recepção do modelo finleyano, sua influência na França (Centro Louis Gernet), na Itália (onde o marxismo mais aberto era receptivo a seu trabalho) e, mais recentemente, nos Estados Unidos, onde ele foi especialmente retomado, transformado, discutido, contestado. É a ocasião, para Mossé, de passar em revista a historiografia recente (em um registro secular, ou seja, a dos últimos 30 anos), a fim de medir as contribuições de O. Murrey, S. Price, M. Hansen, M. Ostwald, R. Sealey e, sobretudo, J. Ober, ao qual ela dedica não menos do que 12 páginas. Partilho inteiramente sua análise e a importância que ela atribui a esse último autor, assim como sua conclusão:

Assim, ao termo de uma pesquisa que se desenvolveu por uns 20 anos, J. Ober chegou a uma conclusão que já era a de Finley. A democracia “elitista” que muitos politólogos justificavam pela capacidade reservada a uma minoria de fazer as escolhas e pela lei de ferro da oligarquia é desmentida pela própria experiência da democracia ateniense. E, mesmo levando em conta o que distingue uma pequena cidade grega de 2.500 anos atrás dos Estados contemporâneos, seu modelo de democracia “participativa” deve ser meditado pelos homens do século XXI, preocupados em dar de novo à democracia seu sentido verdadeiro. (p. 206)

Ela explica também que, ainda mais do que em política, foi em matéria de economia que a herança de Finley foi mais contestada, na França por R. Descat e por A. Bresson, alhures por J.-G. Manning e por I. Morris, entre outros.

Em uma curta conclusão (p. 215-217), explica por que é preciso medir a “distância” entre os atenienses e nós, mas afirma também a necessidade de sempre voltar ao exame da democracia ateniense com esta bela formulação tomada de empréstimo a W. Nippel: “Enquanto a democracia e as insuficiências de sua aplicação permanecerem sendo um tema de debate em um Estado que não é formado por deuses (Rousseau), Atenas não desaparecerá verdadeiramente da reflexão” (p. 217).

Para os que leem Claude Mossé há 40 ou 50 anos, esse livro não traz tantas novidades, salvo nos últimos capítulos. Mas esses velhos leitores são e serão cada vez mais raros. Para as novas gerações de estudantes e pesquisadores, esse último (até agora) livro de Claude Mossé pode ser uma excelente introdução ao conjunto de sua obra e de sua reflexão sobre a Grécia antiga e seu sentido para nós. E, no prosseguimento, quem sabe, a motivação para ler seus outros inúmeros trabalhos. O trabalho incansável de Mossé, e sua preocupação em sempre falar aos leitores de hoje em dia, sem jargão, em uma língua precisa, mas acessível a todos, tanto aos profissionais da história antiga quanto aos leitores comuns, me faz pensar em outra grande figura da história antiga, a belga Marie Delcourt, que, na geração anterior, sempre adotou a mesma atitude. São historiadoras a serviço de seu tempo.

José Antonio Dabdab Trabulsi Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte – Brasil. E-mail: [email protected].

A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento – CORDEIRO (Tempo)

CORDEIRO, Janaína Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV, 2015. 360 p.p. Resenha de: REI, Bruno Duarte. Comemorações, ditadura e sociedade: o sesquicentenário da Independência do Brasil (1972). Tempo v.22 no.40 Niterói mai./ago. 2016.

A descoberta e a produção de novas fontes, assim como o surgimento de novos métodos e abordagens teóricas, provocaram a renovação dos estudos sobre a ditadura militar. Versões longamente partilhadas e estereótipos estão sendo superados, ao passo que, na esteira das revelações feitas pela Comissão Nacional da Verdade e de um expressivo crescimento do interesse popular, novas informações não param de vir à tona. Silêncios e esquecimentos estão sendo superados. E temas até então tabus passaram a ser encarados, sem parti pris, por uma nova geração de pesquisadores. Como apontam diversos especialistas, vivenciamos uma mudança geracional. Nessa dinâmica, uma questão tem despertado instigantes debates: o pacto social firmado entre regime militar e sociedade brasileira.

É nesse contexto que veio a público o livro A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento, de Janaína Martins Cordeiro (2015). A publicação é derivada de pesquisa desenvolvida, entre 2008 e 2012, no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. A tese que resultou no livro trata das relações estabelecidas entre ditadura militar e sociedade brasileira. Demonstra, mais precisamente, como as celebrações do sesquicentenário constituíram-se em um mecanismo de reafirmação do consenso social estabelecido em torno do regime militar.

Cordeiro estruturou seu percurso em nove capítulos. No primeiro, “Funeral de um ditador”, a autora aborda o silenciamento dos apoios que diversos segmentos sociais deram à ditadura militar, fenômeno que, como é sabido, ganhou força na sociedade brasileira junto com a implementação do projeto de abertura política proposto por Geisel. Para Cordeiro, um episódio emblemático do referido fenômeno é o ostracismo ao qual Médici foi relegado. Por meio da análise da repercussão do adoecimento, da morte e do cortejo fúnebre do ex-presidente (1985), a autora explica por que a popularidade obtida por Médici nos anos do “milagre econômico” foi silenciada, chamando a atenção para a importância de tal silenciamento na construção do consenso democrático estabelecido na década de 1980.

O segundo capítulo, “O enterro do imperador foi uma festa”, aprecia outro cortejo fúnebre: o de d. Pedro I – eleito o “grande” herói a ser homenageado durante os festejos do sesquicentenário. Parte da programação das celebrações, o cortejo fúnebre de Pedro ocorreu em um cenário distinto do de Médici. E despertou, de acordo com Cordeiro, sentimentos dessemelhantes aos observados após a morte do ex-presidente. Como demonstra a autora, na ocasião grande parte da sociedade brasileira – deslumbrada com o “milagre econômico” – costumava rememorar com orgulho o passado nacional, associando positivamente Pedro e Médici: o primeiro era lembrado como o responsável pela independência política do Brasil, e o segundo, reconhecido como o comandante da independência econômica.

Em “Uma festa para Tiradentes: os Encontros Cívicos Nacionais e a abertura dos festejos”, terceiro capítulo, conhecemos a mobilização em torno de outro herói nacional. Conforme a autora, embora Pedro tenha sido escolhido o herói “maior” do sesquicentenário, Tiradentes não foi deixado de lado pelo regime militar, que fez uso de diversos elementos associados ao culto de sua figura – como o martírio, o sacrifício em prol da pátria. Como explica Cordeiro, não à toa 21 de abril foi o dia em que ocorreram os Encontros Cívicos Nacionais, que selaram o início oficial dos festejos. Às 18 horas e 30 minutos dessa data, um discurso de abertura pronunciado por Médici foi reproduzido em diversos recantos do país, seguindo-se de cerimônias de hasteamento da bandeira nacional, bem como de diversos eventos artísticos, culturais e esportivos.

O quarto capítulo, “Da solenidade das comemorações à festa do futebol”, investiga a “Taça Independência” – campeonato que contou com a participação de 20 seleções nacionais, número que, como destaca Cordeiro, excedeu em quatro o total de representantes que disputaram a Copa de 1970. A autora demonstra como a “Taça Independência” – evento organizado pela então Confederação Brasileira de Desportos em parceria com a comissão executiva das festividades – constitui-se em um dos elementos reafirmadores do pacto social firmado entre ditadura militar e sociedade brasileira. Além disso, Cordeiro explica como o referido torneio sintetizou não apenas o espírito festivo que permeou as comemorações do sesquicentenário, mas também, de modo geral, os anos do próprio “milagre econômico”.

No quinto capítulo, “D. Pedro I vai ao cinema: ‘Independência ou morte’, as cores do milagre e a memória”, Cordeiro aborda o filme “Independência ou morte” – produzido por Oswaldo Massaini e dirigido por Carlos Coimbra. Segundo a autora, ao contrário do que muitos pensam ainda hoje, a produção cinematográfica – que narra os acontecimentos que levaram à Independência por meio da trajetória de Pedro – não foi uma iniciativa oficial. Tampouco contou com recursos públicos para sua elaboração. Entretanto, como demonstra Cordeiro, “Independência ou morte” foi apropriado pelo regime militar. Inclusive, de acordo com a autora, o filme – talvez em função de seu caráter não oficial – explorou como nenhum outro evento os valores e sentimentos nacionais exaltados ao longo das comemorações do sesquicentenário.

“A Comissão Executiva Central (CEC) entre o consenso e o consentimento” é o título do sexto capítulo. Nessa seção, Cordeiro explica como a CEC, responsável pela execução dos festejos, foi arquitetada por seu líder, o general Antonio Jorge Corrêa, assim como pelos intelectuais de instituições civis que a compunham – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Associação Brasileira de Imprensa, Conselho Federal de Cultura, entre outras. Ademais, a autora demonstra que a referida comissão acumulou uma quantidade expressiva de correspondências, que não eram apenas institucionais. Conforme Cordeiro, grande parte das cartas endereçadas à CEC foram enviadas por populares, o que proporcionou à autora a oportunidade de analisar, também no sexto capítulo, um vasto painel de opiniões de cidadãos comuns sobre as festividades do sesquicentenário.

Em “O sesquicentenário das vozes dissonantes”, sétimo capítulo, Cordeiro aborda um conjunto de opiniões divergentes ao regime militar. A autora alega não ser possível defender uma tese acadêmica sobre o consenso social estabelecido em torno da ditadura militar sem verificar as múltiplas vozes dissonantes também presentes na sociedade brasileira. Embora minoritárias e diversificadas entre si, tais vozes expressavam, segundo Cordeiro, importantes correntes de opinião. Dentro dessa perspectiva, a autora explica por que o estudo das referidas correntes é um aspecto crucial para uma melhor compreensão das complexidades inerentes ao pacto social instituído entre regime militar e sociedade brasileira, tal como o lento processo de abalo desse mesmo pacto a partir da segunda metade da década de 1970.

No oitavo capítulo, “O colorido fim de festa: a apoteose final da ditadura”, Cordeiro analisa alguns eventos associados ao encerramento das celebrações do sesquicentenário – notadamente, as paradas militares de 7 de setembro, um espetáculo de som e luz ocorrido no Museu do Ipiranga e a Feira Brasileira de Exportação: Brasil Export 72. De modo geral, a autora demonstra como é que – por meio da utilização de tais eventos, que contaram com ampla participação popular – a ditadura militar conseguiu estabelecer diálogos com a sociedade brasileira. Para Cordeiro, o escopo central dos referidos diálogos era chamar a atenção, por meio de usos políticos do passado, para o presente considerado favorável – marcado, em grande medida, pelo “milagre econômico”, assim como por uma expectativa otimista em relação ao futuro do país.

Por fim, em “Anos de chumbo ou anos de ouro? Uma história sempre em reconstrução”, nono capítulo, Cordeiro desenvolve um balanço final sobre as relações estabelecidas entre ditadura militar e sociedade brasileira. A partir da abordagem da oposição “anos de chumbo” versus “anos de ouro”, a autora analisa a complexidade dos comportamentos sociais sob o regime militar. Cordeiro debate, mais especificamente, atitudes como a passividade e a indiferença, que, assim como a colaboração ativa, contribuíram, de acordo com a autora, para a construção do consenso social estabelecido em torno da ditadura militar. Ao mesmo tempo, formula reflexões sobre a construção de uma memória social sobre o período do regime militar, lançando luzes sobre determinados mitos, silêncios e esquecimentos.

Ao tomar as comemorações do sesquicentenário como objeto de estudo, Cordeiro nos ajuda a compreender melhor as relações firmadas entre ditadura militar e sociedade brasileira. Em outras palavras, nos auxilia a pensar o tema a partir de um ângulo de visão que vai além das conhecidas interpretações maniqueístas criadas sobretudo a partir do contexto da redemocratização. E que ainda hoje são bastante reiteradas em alguns espaços de debate político. Como se sabe, tais versões costumam apreender o assunto por meio do estabelecimento de polos antagônicos – Estado repressor versus sociedade vitimizada, colaboradores versus resistentes, bem versus mal, entre outros. A autora demonstra que, mais do que isso, existiu uma “zona cinzenta” – eivada de diversidades e ambivalências – situada entre os polos citados, em que se podem observar variadas formas de se comportar diante do regime militar.

Entre esses comportamentos, é possível verificar, de acordo com Cordeiro, um conjunto de práticas de consentimento em relação à ditadura militar, que, por sua vez, contribuíam para reafirmar o consenso social estabelecido no período. Como exemplo, posso citar, entre diversas outras atitudes analisadas pela autora, a conduta dos torcedores brasileiros durante a “Taça Independência”, que, empolgados com a competição, lotavam as arquibancadas dos estádios nos jogos do “escrete canarinho”. Como explica Cordeiro, esses torcedores compunham, de fato, a mise-en-scène do regime militar, participando ativamente dos festejos oficiais, vestindo o verde e o amarelo, carregando suas bandeiras, cantando o hino e as canções de apoio, ovacionando Médici ao vê-lo na tribuna de hora do estádio.

Dentro desse prisma, Cordeiro defende que, mais do que um mero instrumento de manipulação e controle ideológico, as celebrações do sesquicentenário constituíram-se em um mecanismo de reafirmação do consenso social estabelecido em torno da ditadura militar. Isso nos ajuda a compreender, entre outras coisas, que os brasileiros não eram agentes passivos diante das estratégias de propaganda política promovidas pelo regime militar, que só ganhou força porque, de fato, encontrou resposta na sociedade. Ajuda-nos a compreender também, que, entre a adesão e a resistência, existia uma diversidade de comportamentos sociais que, juntamente com a coerção, a repressão, a propaganda e a censura, contribuíram para a sustentação da ditadura militar ao longo de seus anos de vigência.

De modo geral, Cordeiro trata o regime militar como um produto social. Ou seja, como algo que foi gestado no interior da própria sociedade brasileira. Dessa forma, a autora evidencia as fragilidades de versões longamente partilhadas, como as que defendem que a ditadura militar só foi viável em função das instituições e práticas coercitivas e manipulatórias, ou, então, que a sociedade brasileira foi essencialmente resistente ao regime militar. Indo de encontro a essas versões, Cordeiro demonstra, mais precisamente, como é que, ao longo da ditadura militar, foi formado um consenso social pautado por padrões não democráticos. Consenso esse que, como explica a autora, não foi encarado como algo problemático por grande parte dos cidadãos brasileiros.

Em vista do exposto, ela classifica nossa última ditadura como de caráter “civil-militar”. Nesse ponto, discordo dela. De acordo com o que tem afirmado Carlos Fico, acredito que não é o consentimento ou, até mesmo, o apoio engajado que define a natureza dos eventos da história, mas sim a efetiva participação dos agentes em sua configuração. Nesse sentido, parece-me ser pertinente classificar o golpe de 1964 como de feitio “civil-militar”, pois, além do apoio, ele foi efetivamente dado por civis. Porém, ainda conforme o autor, compreendo que a ditadura subsequente ao golpe foi eminentemente militar. Afinal, como Fico chama a atenção, muitos civis proeminentes que deram o golpe foram logo afastados pelos militares, justamente porque punham em risco seus projetos de poder. Mas isso é assunto para ser discutido mais detalhadamente em outra oportunidade.

Controvérsias à parte, o que cabe destacar neste momento é que Cordeiro, afinada com a recente renovação dos estudos sobre o regime militar, apresenta análise qualificada e original. A partir da abordagem de aspectos variados das comemorações do sesquicentenário, a autora demonstra como – em um momento conhecido por muitos como “anos de chumbo” – a ditadura militar se apresentou como legítima, sendo, inclusive, capaz de convencer parcelas significativas da sociedade brasileira. Ao percorrer esse caminho, aponta para a necessidade de compreendermos melhor o complexo período do governo Médici: anos de chumbo e, simultaneamente, de ouro, marcados pelos horrores causados por graves violações aos direitos humanos, mas, também, pelos sentimentos de orgulho e otimismo em relação à pátria, que experimentava o “milagre econômico”.

Bruno Duarte Rei – Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) – Rio de Janeiro- Brasil. E-mail: [email protected].

PÉREZ, Juan Manuel Santana; PÉREZ, German Santana. La pesca en el banco sahariano, : siglos XVII y XVIII. Madri: Catarata, 2014. Resenha de: HONORATO, Cezar Teixeira. Canários e a pesca no banco saariano (séculos XVII e XVIII). Tempo v.22 no.39 Niterói jan./abr. 2016.

Acabo de ter acesso ao livro dos irmãos Santana Pérez, intitulado La pesca en el banco sahariano: siglos XVII y XVIII, que me causou uma agradável surpresa. Primeiramente, por ser um excelente exercício de história global em tempos de pós-modernidade. Em segundo lugar, por ser um tema pouquíssimo estudado: a pesca.

O livro parte de questões gratas à historiografia clássica ao se apoiar nos princípios da Escola dos Analles, em que a influência braudeliana1 é nítida, além dos pressupostos marxianos em suas mais variadas vertentes. Por tais razões, antes de ser um trabalho tão somente monográfico acerca da pesca, nos dá um painel primoroso do Antigo Regime, especialmente na Espanha dos séculos XVII e XVIII.

As grandes questões econômicas, políticas, sociais e culturais do período fluem ao longo do texto, colocando o tema da pesca saariana praticada nas ilhas Canárias no universo mais amplo em que se inseria a região na transição feudal-capitalista, inclusive em termos dos conflitos das monarquias ibéricas acerca do domínio do Atlântico Sul.

Mas talvez a maior contribuição em termos de uma história global esteja na própria estrutura do livro, na qual questões relacionadas com o mundo do trabalho, a dinâmica das empresas, as características das embarcações e da equipagem utilizada nos principais tipos de pesca, as questões geográficas e ecológicas que foram determinantes no avanço da exploração pesqueira na costa saariana desde o período estudado até os dias de hoje se articulam em um único texto.

A pesca, embora seja uma atividade humana existente desde os primórdios e envolvendo um grande número de pessoas, pouco tem sido observada pelos historiadores. Quando muito, atenta-se para os vários tipos de interdição e controles exercidos pelos Estados visando a controlá-la. Base da alimentação da sociedade, especialmente no caso do pescado salgado, movimentava negócios e trabalhadores com o registro de empresas pesqueiras desde o século XVI no arquipélago de Canárias, ganhando força ao longo dos séculos seguintes, objeto de estudo dos autores.

Os autores já apresentam na introdução o quadro geral do período, destacando-se a opção cronológica quando apontam que, no início do século XVII, foram realizadas as últimas incursões dos espanhóis, ainda com traços das cruzadas, especialmente nas ilhas na costa noroeste africana. Já a escolha do final do século XVIII até quando se aprova a Constituição espanhola de 1837 se deve não só à conjuntura mais global como à conclusão dos tratados de paz com os governantes africanos.

Ainda na introdução temos a descrição das principais fontes utilizadas na pesquisa. Nesse ponto, a surpresa é maior pela amplitude de arquivos pesquisados na França, na Inglaterra e, obviamente, nos vários arquivos espanhóis, com destaque para os das ilhas Canárias. A tipologia variada das fontes e as dificuldades de pesquisa inerentes ao trabalho com manuscritos aumenta ainda mais a importância do trabalho.

No primeiro capítulo, logo merecem destaque a análise detalhada do processo de trabalho da pesca com forte influência de uma excelente base antropológica e o cotidiano do trabalho pesqueiro, identificando cada categoria de trabalhadores envolvidos, suas principais tarefas e a remuneração específica de cada uma, mostrando como eram já bastante complexas as relações de produção no setor. A utilização de dados estatísticos acerca das viagens ocorridas no período, dos custos e da remuneração dos trabalhadores, inclusive de sua dieta alimentar durante o período no mar, torna o trabalho uma referência no tema.

O mesmo se pode dizer das empresas, que, após serem identificadas, tiveram um tratamento dos dados acerca de custos e lucros de algumas das excursões pesqueiras, da rede de negócios envolvendo a pesca, da salga, para, finalmente, terem apresentada a comercialização do pescado, culminando com a análise da contabilidade de uma companhia pesqueira, a Santo Domingo, dos primeiros anos do século XIX.

O segundo capítulo surpreende desde o início pelo domínio do conhecimento acerca da geografia do território de Berbería, local do banco saariano, que se localizava desde o Marrocos e o Saara Ocidental até Arguin, o território mais próximo do arquipélago das Canárias e com maior capacidade pesqueira, razão para os conflitos com os portugueses, que também exploravam a região.

Seguindo os autores, pode-se perceber que a costa africana é uma das regiões marítimas mais produtivas do planeta, pela maior quantidade de peixes passíveis de salga em razão de suas características físicas, envolvendo salinidade, temperatura das águas, correntes marítimas etc. para a pesca de merluza, cherne, bogas ou corvinas, ao contrário da pesca litorânea das Canárias, na qual merece destaque a pesca da sardinha.

No terceiro capítulo, após uma densa descrição do banco de Arguin, os autores investem no processo de ocupação/uso da região pesqueira desde o início do século XVI, inclusive com a apreensão de escravos e a questão da pesca pré-industrial na região. Embora discordemos de sua ideia acerca da própria definição de pesca pré-industrial, seus argumentos são bastante convincentes.

Um dos pontos altos do livro está no quarto capítulo, no qual são analisados o consumo e o comércio de pescado durante os séculos XVI e XVIII. Impressionam a acuidade e o ineditismo da questão da dieta alimentar da população – normalmente negligenciada pela historiografia tradicional -, bem como a importância do pescado fresco (o mais caro) ou salgado, além de lagostas e ostras, na complementação proteica da população, chamando a atenção para seu alto consumo entre os mais pobres.

Preparado de várias formas (frito, cozido, assado ou escabeche), o pescado, que era a base da alimentação dos mais pobres – sempre tendo as Canárias como referência -, não tinha muito prestígio entre os mais ricos, que valorizavam a carne, e, embora largamente consumido, nem era muito considerado como nutritivo pela população em geral, por sua leveza e facilidade de digestão.

Ainda nesse capítulo, merece destaque a impressionante análise da comercialização do pescado, os preços praticados e a preocupação da administração em garantir a qualidade das mercadorias que iam à venda e que seriam consumidas pela população, com uma quantidade impressionante de dados estatísticos extraídos das fontes.

Outra parte se abre com a análise da relação entre a produção de sal e as pescarias. A utilização do sal e a secagem do pescado, com destaque para peixes como o bacalhau, eram fundamentais para garantir sua vida útil com qualidade e para que todo o processo de transporte e comercialização não gerasse adulteração na qualidade, mesmo após longas e demoradas viagens.

O que, para um leitor pouco atento, pode parecer uma digressão ao falar da questão do sal desde a Antiguidade, demonstra a profunda erudição dos autores, e mais, como a busca de uma história total é claramente apresentada no livro, demonstrando o quanto era fundamental a utilização do sal na pesca saariana, representando parte considerável dos custos de produção do pescado.

No sexto capítulo, a obra se dedica a analisar a emergência dos discursos da ilustração e sua relação com a pesca no banco saariano. Tais discursos foram fundamentais para a construção de projetos políticos para o setor. Por meio das iniciativas oficiais, dizem os autores, os ilustrados trataram de fomentar a pesca não só nas Canárias, mas em toda a Espanha, embora poucas das medidas surtiram o efeito esperado.

No último capítulo, os autores apontam ainda para novos projetos relacionados com a pesca que se tentou implementar na Espanha como um todo desde o final do século XVIII até o início do seguinte na região saariana. Entre eles, merece destaque a caça à baleia, seguindo o que ocorria em outros países da Europa, fundamental em razão do aumento mundial de seu azeite.

Outro projeto que entra em debate no mesmo período aponta para a preocupação da pesca predatória tanto nas Canárias quanto no banco saariano. A tentativa de proibir “redes de arrasto” com cota de malha pequena foi uma das medidas visando a evitar a diminuição da oferta pesqueira.

Finalmente, nas conclusões, os autores retomam muitas das questões desenvolvidas ao longo do denso texto e apontam a permanência nos dias de hoje de muitas das práticas da pesca e de barcos, em que pese o avanço da grande pesca industrial.

Por todas essas razões, acredito que se trata de um livro fundamental para o entendimento da história das ilhas Canárias, da África saariana, da própria dinâmica da sociedade da transição feudal-capitalista, considerando um tema ainda pouquíssimo estudado entre nós. Trata-se de uma obra madura de professores catedráticos da Universidade de Las Palmas de Gran Canarias. Pois tais razões, não temos dúvida de esse livro já se tornou uma referência fundamental para aqueles que queiram estudar tais assuntos, podendo servir de inspiração para os pesquisadores brasileiros em busca de novos temas e de “maneiras de fazer história”.

1Especialmente BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II. Tradução do Ministério da Cultura Francês. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983. 2 v.

Cezar Teixeira Honorato – Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – Brasil. E-mail: [email protected].

L’adieu à l’Europe. L’Amerique latine et la Grande Guerre (Argentine et Brésil, 1914-1939) – COMPAGNON (Tempo)

COMPAGNON, Olivier. L’adieu à l’Europe. L’Amerique latine et la Grande Guerre (Argentine et Brésil, 1914-1939). Paris: Fayard, 2013. 394 p.p. Resenha de: FERRERAS, Norberto. A Grande Guerra e a América Latina. Tempo v.21 no.38 Niterói jul./dez. 2015.

A relação entre América Latina e Europa já foi estudada muitas vezes,algumas a partir do ponto de vista da influência e outras,da rejeição. Não são poucos os autores que podem ser arrolados entre os especialistas do tema em ambas as perspectivas. O mesmo poderíamos dizer da Grande Guerra (1914-1918),principalmente numa data tão marcante quanto o centenário. Sem ir muito longe, no Brasil vários seminários foram realizados e deles resultaram (ou virão a resultar) livros e artigos. As datas comemorativas sempre geram ondas expansivas de bibliografia relacionada ao tema em questão e essas ondas criam uma massa de títulos que em alguns casos será rapidamente esquecida junto com as efemérides. Esse não é o caso do livro aqui resenhado.

No livro L’adieu à l’Europe…, Compagnons e propõe a analisar o período de entre guerras que já tinha analisado anteriormente do ponto de vista das circulações entre América e Europa, quando estudou os vínculos entre o catolicismo e a reconfiguração do nacionalismo latino-americano. Acompanhando a história das circulações e dos contatos – a “história conectada” -, vemos que ele tanto aborda o vínculo intrínseco estabelecido entre Europa e América, quanto analisa o imaginário e a imagem criada pela Grande Guerra nos países latino-americanos, mais especificamente, na Argentina e no Brasil. Ao mesmo tempo, devemos entender este livro como um ensaio de história global, acompanhando a terminologia de época. Este é um estudo que, utilizando as fronteiras nacionais, as ultrapassa e redefine. Coloca-nos a pensar sobre o impacto de uma guerra europeia lutada em frentes que ultrapassaram os países e os continentes, que estabeleceram coalisões definidas pela afinidade política e econômica antes que pela territorialidade e que levou à reflexão acerca do modelo cultural e político europeu iluminista e de progresso constante. A Grande Guerra colocou os paradigmas existentes em xeque e fez seus contemporâneos e descendentes imediatos refletirem sobre o rumo da civilização ocidental e sua primazia, trazendo à tona outras possibilidades e alternativas desde o regional, rivalizando com o farol universal que pretendia ser Europa.

O livro propõe-se a estudar a Grande Guerra de uma perspectiva original.Nãoenfoca os fatos, nem volta àtentativa de revisão dos impactos europeus ou coloniais da guerra. Sem desconhecê-los, analisá-los não é o objetivo principal. O tema é a relação entre Europa e América Latina em um momento-chave para a história regional e para pensar a história latino-americana. O período em questão dialoga com a história global, mas é umaépoca de redefinições da latinidade e, ao mesmo tempo e num nível mais profundo, da nacionalidade. O autor tentará estabelecer as relações e influências da Grande Guerra no imediato e nas reflexões sobre o vínculo americano com a Europa.

Para desenvolver a sua hipótese, Compagnon divide o seu trabalho em três partes. A primeira parte, titulada “Da guerra europeia à guerra americana”, trata de como a guerra europeia é também uma guerra americana. A preocupação é pelo impacto mais imediato do conflito, como o mesmo levou ao posicionamento dos grandes atores políticos do período, principalmente como se portaram as elites políticas em uma conjuntura de redefinição de alianças, modelos e paradigmas. O livro estabelece um recorte nos dois grandes países da América do Sul, a Argentina e o Brasil; isso não implica negligenciar as linhas de força daqueles países que, de forma semelhante e por diversos motivos sentiam a influência da guerra, como o México e o Chile. Nesta primeira parte o interesse recai sobre a conformação de um campo aliadófilo e outro germanófilo com as diferentes estratégias de posicionamento entre os dois. Esses posicionamentos levaram grupos governantes terem que lidar com a Real Politik nas relações internas e internacionais, oscilando entre o neutralismo e a participação. Ao mesmo tempo, na primeira parte, analisa-se a construção da opinião pública em relação à guerra, com o posicionamento de intelectuais e políticos, mas também com a participação das coletividades de imigrantes. No caso argentino, os imigrantes terão uma voz potente sobre os acontecimentos de além-mar. Mas este é o momento fundante da constituição da opinião pública nacional. Certamente existiam grupos de ação política e intelectual, mas para a Argentina,trata-sedo momento de constituição de uma imprensa autônoma do poder econômico, no mesmo momento em que o Estado também inicia um processo de autonomização perante as oligarquias e o seu poder econômico e simbólico. A multiplicação das vozes e a emergência de novos atores, como os trabalhadores, colocará em questão a Real Politik,diferente do que acontecia no Brasil.

Na segunda parte do livro, “A Europa bárbara”, temos outro tipo de aproximação do conflito. O autor avança em duas perspectivas complementares: a história da cultura e a das sensibilidades. A recepção do sofrimento e a expansão dos sentidos gerados por este sofrimento em relação à guerra, assim como as reflexões sobre seus horrores pela via da literatura testemunhal, como Barbusse, Aldous Huxley ou Erich Maria Remarque, levam a guerra ao plano do pessoal, ao sofrimento em primeira pessoa. Compagnon explora os impactos de reduzir o foco de análise por parte dos escritores e dos jornalistas, colocando em primeiro plano os civis e os soldados, fossem estes os próprios compatriotas que participavam na guerra ou as vítimas dos confrontos. Em princípio, para criar empatia com os bandos em disputa, mas também para apresentar o sofrimento em primeira pessoa, tentava-se criar uma corrente de opinião contrária ao conflito bélico. Aqui a Real Politik sai de cena. As pessoas de carne e osso mostravam os limites da civilização europeia e as suas pretensões de universalidade. O capítulo cinco,“A Noite Europeia”, um dos mais interessantes do livro, analisa os posicionamentos dos intelectuais brasileiros e argentinos acerca da Grande Guerra. O sentimento de inferioridade em relação aos feitos culturais europeus passam a ser questionados, a América pode ser modelo de si própria e para isso precisava realizar uma devassa da Europa. Rui Barbosa, José Ingenieros, Afrânio de Melo e Franco, entre outros pensadores e intelectuais,identificam esse período como o do declínio europeu. As interpretações podem ser diferentes, mas a América como contraponto de paz e civilidade são comuns. O binômio estabelecido por Domingo Sarmiento em meados do século XIX estava invertido: a América era a civilização e a Europa era a barbárie.

A última parte do livro, “A Grande Guerra, A Nação, A Identidade”, é destinada a analisar os impactos culturais imediatos da Grande Guerra, enfocando o nacionalismo na Argentina e no Brasil. É esse o legado cultural e intelectual da Grande Guerra? É daqui que partem as famílias que se diferenciam do modelo Europeu? O que o autor vai explorar é o nacionalismo cultural anterior ao político. Para isso,Compagnon analisa as diversas vertentes desses nacionalismos, estabelecendo um estudo em paralelo de dois autores argentinos, Borges e Leopoldo Lugones, e o Movimento Antropofágico no Brasil. O contraponto permite acompanhar o impacto de longa duração nas gerações que vivenciaram o período de entre guerras: Borges e Lugones. O nacionalismo democrático e o autoritário. A renovação e a restauração, as duas correntes que, do campo intelectual, demarcariam territórios políticos por longo tempo.

A pesquisa realizada por Compagnon, especialista em história intelectual, mostra a necessidade de lidar com fontes de origens diferentes e com registros narrativos diversos para poder realizar uma síntese sobre a questão da Grande Guerra na América Latina. A história intelectual dialoga com a história política e cultural. A narrativa factual é necessária para públicos pouco familiarizados com a Grande Guerra ou com a América Latina para poder dar lugar a sofisticadas análises sobre a produção artística e literária latino-americana. Esperamos que o resultado seja o de estimular novas pesquisas deste tipo e com esta perspectiva.

A versão francesa do livro apresenta algumas diferenças da brasileira. A capa original foi trocada. A brasileira optou por uma previsível foto da guerra de trincheiras. A edição francesa reproduz a portada da partitura do tango El Marne, de Eduardo Arolas. A escolha é significativa e mostra os efeitos duradouros da guerra na cultura da região. Sem pretender ser exaustivo no forte impacto cultural da Grande Guerra na região, vou tentar mostrar a relação estabelecida com os círculos vinculados ao tango.

Para isso, voltemos ao tango El Marne. Quando Eduardo Arolas compõe este tango era um jovem bandoneonista argentino, filho de franceses. Arolas teve a trajetória arquetípica de um tanguero do período. Nasceu em Barracas, na cidade de Buenos Aires, e morreu produto do alcoolismo,em Paris,aos 32 anos, longe da cidade que abandonou para fugir da relação estabelecida entre seu irmão e sua esposa. El Marne, escrito neste exílio voluntário, é uma peça que,mesmo sendo de profunda melancolia,entrou no repertório das grandes orquestras, parte do estilo do tango dançante por décadas. Escrito em 1919, este tango continua a receber novas versões e é frequentemente revisitado. Posteriormente e para ser mais palatável aos dançarinos, recebeu uma letra que falava de um amor a orilhas do Rio Marne, deturpando a sua origem vinculada a uma batalha com centenas de milhares de mortos, mas dando-lhe sobrevida.

Mas o tango e a Grande Guerra mantiveram o seu vínculo. Em princípio, porque a década de 1910 é o momento fundacional desse estilo musical. De fato, o grande ícone do tango, Carlos Gardel, escreveu um tango-canção para homenagear os combatentes franceses. Silencio foi escrito em 1932 e apresentado no filme Melodia de Arrabal, de 1933. O tango é claramente um manifesto antibélico. No filme, Gardel interpreta um cantante de tangos que, no palco que o consagraria, canta Silencio. O importante é a interpretação da letra: um melodrama. A letra faz referência a um caso, verdadeiro ou mítico pouco importa, de cinco irmãos operários que se alistam para lutar pela pátria, a França, e morrem. A mãe deles, la viejita, lamenta a morte dos filhos. Ela fica com os túmulos e as medalhas. A música começa com um clarim e um coro acompanha Gardel com uma canção de ninar. Quando conclui, ele, sorridente, abraça a sua namorada. Está consagrado, é um momento festivo. A Grande Guerra, na década de 1930, é uma temática que faz parte do universo narrativo. Ainda está presente, porém sem a carga dramática que tinha para Arolas. A guerra permaneceria no imaginário coletivo sobre o que podiam ser imprimidas imagens e sentimentos, como o sacrifício, a dor e a perda geradas pela guerra. Estes exemplos mostram o impacto de longa duração da guerra apresentado por Compagnon e que pode ser ampliado por novas pesquisas e novas perspectivas analíticas. Finalmente, essa pequena relação estabelecida entre o tango e a capa tem como objetivo mostrar a capacidade de síntese temática evidenciada na capa da edição francesa e a indefinição apresentada na capa brasileira, que confunde o leitor sobre os temas e as abordagens.

Norberto FerrerasProfessor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói(RJ) – Brasil. E-mail: [email protected].

Nobrezas do novo mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII – RAMINELLI (Tempo)

RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do novo mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. 200pp. Resenha de: FURTADO, Júnia Ferreira. A nobreza em movimento. Tempo v.21 no.38 Niterói jul./dez. 2015.

Em 1982, Desclassificados do Ouro, de Laura de Mello e Souza, renovou os estudos sobre a colônia ao trazer, para a cena histórica, “a pobreza mineira no século XVIII”, com seus marginalizados sociais, que surgiam na esteira do processo de centralização do estado moderno (Souza, 1982). Se a década de 1980 se caracterizou, no Brasil, pelo alargamento do campo histórico de análise, para incluir esses grupos “de baixo”, as camadas populares,2 o século XXI, na vertente oposta, assistiu ao renascimento do interesse pelo estudo das elites,3 nesse caso centrando-se no estudo da nobreza que emerge no contexto do período colonial. Esse movimento nasceu conjuntamente com um diálogo mais estreito que os historiadores brasileiros passaram a encetar com a historiografia portuguesa, destacando-se, nesta última, os estudos de António Manuel Hespanha (1997;2007), Nuno Gonçalo Monteiro (1993;2003), Mafalda Soares da Cunha (1990;2000), Diogo Ramada Curto (1988), Fernanda Olival (2001) e Pedro Cardim (1998),4 entre outros, que, então,se debruçavam sobre as elites, a aristocracia e a nobreza portuguesas,em um contexto de Antigo Regime.

Arriscaria apontar que, nessa vertente, no Brasil, o despertar pelo tema das formas, dos critérios e dos dilemas que as elites do Novo Mundo encontraram para se inserir no seio da nobreza lusitana foi inaugurado com o livro de Evaldo Cabral de Mello, O Nome e o Sangue (1989),5 no qual o historiador pernambucano “conta a história de uma manipulação genealógica destinada a esconder, no Pernambuco da segunda metade do século XVII e ao longo do século XVIII, o costado sefardita de uma importante família local” (Mello, 1989, p.11). Esse estudo se centra “num momento específico da vida de Filipe Pais Barreto, descendente de importante família da oligarquia açucareira de Pernambuco, que, em 1700, recebeu do rei de Portugal a honra de ostentar o título de cavaleiro da Ordem de Cristo” e que esperava, com tal mercê, assegurar “doravante o destino que lhe era reservado pelo nascimento: ‘viver na nobreza, servindo-se de bestas e criados’, como era o costume no nordeste açucareiro entre a elite da terra – os senhores de engenho e seus descendentes”, imitando a nobreza reinol (Furtado, 2008, p.58-61). A partir desse caso, o autor analisa “o conceito de nobreza, a hierarquia e os privilégios de sangue [que] faziam com que a linhagem e a genealogia ocupassem papéis importantes na manutenção e na transmissão do status quo” (Mello, 1989, p.67).

Entre esse livro de Cabral de Mello, hoje um clássico, e o recente de Ronald Raminelli, passaram-se pouco mais de 25 anos. Esse último estudo revela que foi tempo mais do que suficiente para aprofundar e refinaras análises sobre o que configurava ser nobre no Brasil colonial. A conjugação entre fontes (muitas inéditas ou pouco ou nada trabalhadas) e a extensa bibliografia sobre a nobreza no espaço ibérico, isto é, Portugal, Espanha e América luso-hispânica, de que este autor pôde se beneficiar permitem a produção de um estudo instigante sobre o tema, propondo,em muitos aspectos, interpretações inéditas e inovadoras, que revelam um pesquisador maduro e afinado com as novas metodologias do trabalho histórico.

Em primeiro lugar, é imperativo voltar a esse ponto para chamara atenção para a massiva variedade de livros, capítulos de livros e artigos com que Raminelli dialoga para embasar muitas das assertivas que faz ou que, por vezes, são alvo de sua crítica. Ademais, essa bibliografia torna-se essencial para que se possa estabelecer uma comparação com o mundo espanhol e, dessa maneira, aproximar ou identificar diferenças entre o que acontece nos diversos espaços dominados pelas duas coroas ibéricas, no além e no aquém mar. Essa se constitui uma das grandes virtudes e inovações desse estudo, o que requer erudição e contínua atualização bibliográfica, permitindo que a análise não se atenha apenas ao mundo luso-brasileiro, como acontece, de modo mais recorrente, com a maioria dos estudos

O pleno domínio e a ampla capacidade de estabelecer um diálogo crítico com a bibliografia atingem o ponto máximo no último capítulo, “Cores, raças e qualidades”, no qual são abordadas as questões do racismo e do preconceito racial, tornando-se esse texto, doravante, de leitura incontornável para os futuros estudos sobre esses temas. Nesse caso, não se trata apenas da historiografia luso-espanhola, mas também de autores franceses, italianos, ingleses, alemães e norte-americanos, que abordam essa questão para diversos espaços no contexto da expansão colonial europeia moderna.

No entanto, a armadilha nesse tipo de opção metodológica é que, como esse diálogo não se estrutura também a partir de pesquisas de fontes primárias, que não puderam ser realizadas para o lado espanhol, em razão da tarefa hercúlea que tal procedimento exigiria, muitas vezes, o leitor não consegue estabelecer uma relação crítica com a bibliografia hispânica selecionada. Um exemplo limite dessa dificuldade aparece quando o autor aponta, em nota (Raminelli, 2015, p.112), que um artigo de Langue (1999) contraria a afirmação de Lira Montt (1981) de que “na Espanha os nobres titulados gozavam de senhorios territoriais e vassalos perpétuos, benefícios inexistentes nas Índias”. Em que se baseia essa discordância? Novas pesquisas documentais? Quais? Que elementos permitem que eu, leitor,me posicione a favor de uma ou de outra interpretação e adote a mesma posição de Raminelli em favor da interpretação de Lira Montt?

Ainda que o centro da análise, como se explicita no subtítulo do livro, situe-se entre os séculos XVII e XVIII, o autor também aborda, quando se faz necessário, o XVI e o alvorecer do XIX, de modo a apreender as transformações ocorridas, muitas delas perceptíveis apenas na longa duração. O objetivo é compreender o que se define como nobreza, como se constitui, se estrutura e se identifica; os mecanismos de acesso, comparando tanto o espaço reinol como o americano, no que diz respeito aos impérios português e o espanhol, este tomado como base de comparação.

Nesse aspecto, o conceito adotado sobre o que é ser nobre é o institucional, que divide a nobreza entre a de linhagem e a de serviço, essa última alcançada por concessão régia. Nas sociedades de Antigo Regime, como era o caso de Portugal na era moderna, o lugar que cada indivíduo ocupava se baseava no nascimento. Era um mundo no qual a ordem social hierarquizada distinguia uns em detrimento de outros, buscando demarcar e separar, nitidamente, os estratos mais altos – aqueles a quem se conferia nobreza – dos mais baixos ou vis – os plebeus. Ser nobre, portanto, era estar entre os principais, a diferença constituindo o cerne desse mundo.

No capítulo um, o que se busca compreender é o que se configura como nobreza, investigando as normas legais exaradas para tanto. Por outro lado, o que se coloca como o grande tema de investigação, questão que perpassa os capítulos dois a cinco, é a possibilidade de ascensão de indivíduos cuja nobreza é alcançada não pelo nascimento, mas pela riqueza ou pelos préstimos/serviços realizados em prol do império e quem atinge, de maneira adquirida, tais patamares nas duas regiões – Ibéria e América hispânica. É essa nobreza de mérito – concedida pelo rei aos súditos da América portuguesa – e, na sua contramão, a quem tal honra não era concedida, ainda que seu pretendente preenchesse os critérios normativos para alcançá-la, que interessam, de modo central, ao autor. A ampla pesquisa de fontes busca encontrar as respostas para essas questões e para os paradoxos resultantes dessas possibilidades ou impossibilidades de alcançar nobreza em terras do além-mar. Quem se beneficiava desse mecanismo e, no sentido oposto, quem era excluído? Como a norma respondeu a essa demanda de ascensão nobiliárquica de estratos não nobres? Para responder a essas e a outras tantas perguntas, Raminelli, de maneira inovadora, associa o interesse que a historiografia devotou, tanto aos marginalizados quanto às elites (sem, no entanto, utilizar esse termo como conceito),5 porque, afinal, grande parte dos pretendentes era formada por negros, índios e mulatos, ou seja, constituíam o outro em relação à elite branca europeia.

Para compreender o processo ou as dificuldades de nobilitação, mas recusando o conceito de nobreza da terra muito em voga em trabalhos mais recentes (Fragoso et al, 2001Fragoso, 2003, p.11-36), o livro se debruça sobre os diferentes mecanismos utilizados por esses estratos em ascensão, como os serviços camarários, realizados pelos homens bons, (capítulo dois), a riqueza e o mérito (capítulo três) e as guerras brasílicas, nas quais se alistaram índios e negros (capítulos quatro e cinco).

A parte mais instigante se localiza exatamente no capítulo quatro, quando Raminelli examina as tentativas de nobilitação da nobreza indígena, as maneiras como eles “se inseriam na hierarquia social do Antigo Regime” e, finalmente, questiona “se as insígnias das Ordens Militares portuguesas teriam o mesmo significado para portugueses e índios” (Raminelli, 2015, p.135). Nessa parte, o autor manipula, com maestria, as fontes primárias – os pedidos de mercês indígenas protocolados em troca dos serviços militares realizados nas guerras contra os invasores estrangeiros, holandeses e franceses – para o Brasil. Ainda que afirme (Raminelli, 2015, p.136) que “para [esses] questionamentos ainda não obtive dados conclusivos”, o autor propõe uma conclusão totalmente inovadora. Segundo ele,como “tradicionalmente entre os tupis, as lideranças eram efêmeras, [e] raramente o poder de comando passava ao filho”, o recurso aos mecanismos de nobilitação dos portugueses foi “tática indispensável para perpetuar a liderança, o controle político de [uma] família [ao longo de diversas gerações] sobre as comunidades indígenas” (Raminelli, 2015, p.172).

Tal parece não ter ocorrido na América espanhola, onde, de um lado, à coroa nunca interessou conceder às lideranças indígenas tais títulos (Raminelli, 2015, p.18), visto que o que se buscava era, efetivamente, solapar-lhes o poder e, de outro, aos líderes nativos não era necessário recorrer às formas de nobilitação europeia para conservarem seu poder sobre suas comunidades, pois esse já estava consolidado no seio das estruturas políticas pré-hispânicas. Ora, para mim, essa distinção mereceria, por si só, um livro em separado, no qual o método comparativo buscasse, a partir de pesquisa de fontes também para a área espanhola, confirmar, ou não, as diferenças entre as estratégias indígenas no que concerne à nobilitação das lideranças nativas e as reações a elas por parte das duas coroas hispânicas.

Ao trazer para a cena as populações negras, índias e mestiças, tornou-se imperativo para o autor discutir os impasses e os paradoxos decorrentes do fato de que populações com outro sangue, modo de vida, moral e religião buscassem nobreza, ameaçando os critérios pelos quais os nobres reinóis, de ascendência branca, europeia e cristã, até então se constituíam e se distinguiam dos estratos sociais inferiores. No capítulo seis, que fecha o livro, Raminelli reflete sobre a viabilidade, ou não, do uso dos conceitos de raça e de racismo para analisar os mecanismos para a exclusão de parte das populações do novo mundo que buscava lugar no seio da nobreza imperial. O autor não cai na armadilha do uso a-histórico desses dois conceitos, visto que “são baseados no determinismo biológico oitocentista”, ou na sua recusa total, já que “não são adequados para pensar as relações sociais entre os séculos XVII e XVIII” (Raminelli, 2015, p.209). Nesse sentido,defende que, se o critério de raça, tal como seria empregado mais tarde, não era o acionado para impedir que essas populações (incluindo os cristãos-novos) tivessem acesso à nobreza, o conceito de racismo seria operacionalmente útil para compreender esses processos de exclusão.

Para tanto, discutindo com rara perspicácia com a historiografia mais recente, inclusive a brasileira,6 Raminelli resgata os termos que emergem da documentação de época, como o sangue, a qualidade, a cor e a condição (nesse caso a escrava), por meio dos quais se constituíam os impedimentos para se enobrecer. Dessa maneira, transforma a linguagem coeva em conceitos, o que lhe permite historicizar os mecanismos sociais de exclusão das populações nativas (índios, negros e mulatos) do Novo Mundo. Tal procedimento é próprio de pesquisador da melhor estirpe, afinado com os métodos mais recentes de análise historiográfica.

Referências

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2No que diz respeito a essa renovação, no panorama internacional, cabe destacar, entre os inúmeros estudos que exerceram impacto no Brasil, o de Hill (1987).

3Entre os trabalhos precursores dessa vertente, destaco Burke (1991) e Goff (1991).

4Ver também Cardim; Monteiro e Cunha (2005).

5Análise sobre o livro pode ser vista em Furtado (2008, p.57-85).

6Nesse sentido, como alerta, no Prefácio, Ronaldo Vainfas, “o livro se afasta da tendência da historiografia brasileira, mais ou menos recente, de ‘sociologizar’ o conceito de nobreza, assimilando-o ao conceito de elite”. In: Raminelli (2015, p.11).

7Como Lara (2007)Viana (2007); Krause (2012). Uma ausência que merece destaque é Rodrigues (2011).

Júnia Ferreira Furtado – Professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte (MG) – Brasil. E-mail: [email protected].

1964: do golpe à democracia | Ângela Alonso e Miriam Dolhnikoff

RC Destaque post 2 11

Em 2014, como é sabido, o Golpe Civil-Militar completou 50 anos e um número grande de eventos debateu os 21 anos em que o Brasil viveu sob a tutela militar. Diferentes áreas do conhecimento produziram significativas reflexões. Na esteira de rememorações, o Centro Brasileiro de Análise de Planejamento (Cebrap) promoveu, em março do mesmo ano, o seminário “1964: do golpe à democracia”. O encontro deu origem à publicação de livro de igual nome, lançado em 2015 e organizado por Ângela Alonso e Miriam Dolhnikoff. Reunindo doze artigos e oito depoimentos, o volumoso livro promove de maneira original o diálogo entre trabalhos clássicos e recentes desenvolvidos por integrantes do Centro e especialistas de outras instituições, além da memória de destacados personagens que passaram pelo Cebrap. Dois grandes blocos compõem o volume, o primeiro trata múltiplos aspectos da crise política de 1964 e do Regime Militar e o segundo aborda por diferentes ângulos o processo de redemocratização.2

Detentor de respeitável produção acadêmica, o Cebrap foi criado em 1969 por um grupo multidisciplinar de professores e pesquisadores ligados à Universidade de São Paulo, e, em sua maioria, afastados da universidade pelo regime. Consolidado como um centro de pesquisa em humanidades dedicado à análise de questões nacionais e à intervenção na realidade brasileira, seus pesquisadores se propuseram à compreensão da dinâmica política, social, econômica e cultural da sociedade. Atualmente o Centro abriga grupos que pesquisam desde temas clássicos, como democracia e cidadania, a assuntos bastante atuais, como meio ambiente e cultura digital.3 Leia Mais

Penance in Medieval Europe 600-1200 – MEENS (Tempo)

MEENS, Rob.. Penance in Medieval Europe 600-1200. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. Resenha de: FARRELL, Elaine Cristine dos Santos Pereira. As diferentes facetas da Penitência. Tempo v.21 no.37 Niterói jan./jun. 2015.

Penitência é um tópico popular atualmente entre os medievalistas. Isso não é surpresa, já que penitência tem sido um aspecto importante da religiosidade Cristã desde a Antiguidade tardia e um tema presente na maioria dos gêneros literários medievais. Ao contrário, o que deveria estarrecer é a falta de interesse no tema.

Felizmente, vários pesquisadores distintos têm devotado atenção a esse assunto nas últimas décadas. A penitência tem sido investigada sob diferentes perspectivas como a sua teologia, mas, talvez, ainda mais importante, a sua prática2. O recente interesse de acadêmicos na literatura penitencial está intrinsicamente relacionado a esse tema. Depois das publicações de John McNeill e Thomas Oakley nas décadas de 1920 e 1930, esse gênero foi relativamente negligenciado por algum tempo, até que nas décadas de 1970 e 1980, pesquisadores reavaliaram a importância dos penitenciais para os estudos históricos (McNeill, 1923Oakley, 1923).

O reavivamento do interesse em arrependimento, confissão e penitência é concorrente com o crescimento da popularidade da história das mentalidades e história cultural, que trouxe para o seio dos debates históricos aspectos da vida que não eram frequentemente visitados por historiadores anteriormente (Meens, 1997, p.74; Vainfas, 1997, p.127-162). Ainda mais recente, o estudo da penitência tem sido reconectado ao campo da história do poder e ideias políticas, mas de uma forma diferenciada. A penitência tem sido investigada sob o ângulo da negociação de conflitos e disputas, um campo de estudo que tem ganhado atenção recentemente (Meens, 2014, p. 6, 10). A troca de ângulo e de perspectiva igualmente não deveria causar surpresa, visto que a maneira a qual os historiadores compreendem o poder e o estudam, também tem mudado.

Como Marcelo Cândido bem apresentou, “essa ‘Nova História Política’ não enxerga o poder apenas como uma forma de controle sobre homens ou sobre estruturas” (Silva, 2013, p. 101), mas esta também se ocupa das relações sociais e das relações entre pessoas e coisas, ou em outras palavras, como as pessoas se apropriam das coisas. A história do poder é hoje em dia feita em aproximação à história da cultura e da antropologia.

Penitência é um assunto que está relacionado a diversos aspectos da vida. Ela é relacionada à religião, e, portanto, à cultura, ao poder, pois está ligada a instituições e, algumas vezes, também à economia, pois, por exemplo, indivíduos são recomendados a cumprir penitência por roubo. Entretanto, foi no contexto dos estudos do conflito e com uma abordagem sociocultural que Rob Meens escreveu sobre penitência. Trabalhos anteriores, tais como The Penitential State da Mayke de Jong, já mesclaram história das religiões com política e demonstraram que penitência pode ser um instrumento útil na negociação de conflitos. A obra de Meens aborda principalmente esse aspecto da penitência, analisando a sua prática desde a Antiguidade tardia até o século XII, levando em consideração os distintos centros e contextos da produção penitencial.

A introdução do livro de Meens familiariza o leitor com os principais debates sobre a prática da penitência e argumenta pela centralidade da prática da confissão e penitência à natureza da religiosidade medieval (Meens, 2014, p. 1-11). O capítulo dois inicia na virada do século VI. Este evidencia que importantes escritores religiosos medievais contribuíram para gerar a ideia de que penitência é um instrumento essencial para a expiação de pecados. Indivíduos como João Cassiano, Tertuliano, Dionísio Exíguo e Sozomeno, dentre outros, foram agentes centrais nesse processo (Meens, 2014, p. 15-25). Meens também demonstra que a Gália no século VI não era uma terra infértil para penitência; ao contrário, pecado era considerado um problema grave e a importância da penitência enfrentada com seriedade nos concílios gauleses (Meens, 2014, p. 26-34).

A transição entre os capítulos dois e três levanta um dos argumentos centrais do livro: o fato de que não há diferenças essenciais entre os modos gaulês e irlandês de praticar penitência. Isso contribui para desconstruir um argumento que foi mantido por várias décadas, o de que o Cristianismo irlandês desenvolveu uma forma de penitência privada, que estaria oposta à penitência pública.

Todos os pesquisadores desenvolvendo a dita “nova história da penitência” como Meens, Jong e Sarah Hamilton, têm argumentado que o conceito de penitência secreta não existia na Alta Idade Média, e, que é, portanto, uma construção historiográfica (Hamilton, 2001, p. 3-25; Jong, 1997, p. 894-902). É um fato que o gênero de livros penitenciais é produto do mundo insular do século VI, mas as formas de expiar os pecados e praticar penitência descritas nestes são bastante próximas às praticadas na Gália do século VI ou pelos pais da Igreja (Meens, 2014, p. 38-69). Nesse capítulo, Meens apresentou o argumento de que os cânones penitenciais irlandeses indicam que os clérigos tiveram um papel importante na resolução de disputas, pois eles agiram como árbitros nos casos de “pecados sociais”, tais como infrações sexuais e casos de violência. Frequentemente, a penitência em si em adição de pagamento em espécie, contrato matrimonial e retribuição em trabalho funcionaram como formas de satisfação às partes ofendidas em conflitos. Adicionalmente, ele enfatiza que as hagiografias podem contribuir para lançar luz sobre como a penitência teria, talvez, sido praticada na vida real. A Vitae Columbae, por exemplo, fornece histórias sobre pecadores que buscaram uma vida de penitência debaixo da instrução do São Columba em Iona, uma ilha nas margens da Escócia, mas que, naquela época, era conectada ao mundo irlandês. Os pecados sendo extirpados nessas anedotas ilustram circunstâncias mencionadas nos cânones penitenciais, tais como incesto e assassinato, por exemplo (Meens, 2014, p. 64-69).

O capítulo quarto trata do impacto da literatura penitencial insular no reino Franco e na Inglaterra. Columbano, o peregrino irlandês, contribuiu para popularizar o gênero no continente e a vida escrita sobre Fursa, outro peregrino irlandês que também discute penitência e a purgação de pecados (Meens, 2014, p. 70-81). Nesse mesmo capítulo, a íntima relação entre penitenciais e a literatura canônica é demonstrada. No mundo gaulês, a Collectio Vetus Gallica, ao mesmo tempo, foi influenciada e influenciou os livros penitenciais (Meens, 2014, p. 71, 96), e, no mundo anglo-saxão, a compilação dos ensinamentos de Teodoro de Canterbury reflete a simbiose entre esses dois gêneros (Meens, 2014, p. 88-96).

O capítulo seguinte está fortemente ligado ao anterior, visto que este discute penitência dentro do mundo carolíngio no contexto das ditas reformas. Wilibrordo e Bonifácio tiveram um importante papel nas reformas religiosas e nas empreitadas evangelísticas em processo na borda norte do reino. Portanto, Meens mantém que Wilibrordo e Bonifácio talvez estivessem envolvidos na produção de textos penitenciais, tais como o Paenitentiale Oxoniense II e o Excarpsus Cummeani, respectivamente. Bonifácio tinha fortes conexões com Corbie, de onde a Collectio Vetus Gallica é proveniente (Meens, 2014, p. 102-111). Meens destaca, ainda, que este foi um período de intensa produção de novos livros penitenciais e cópia de anteriores (Meens, 2014, p. 102, 139). De fato, é graças aos esforços carolíngios que a literatura penitencial sobreviveu. Meens argumenta que os compiladores dos penitenciais carolíngios expandiram consideravelmente o número de cânones que lidam exclusivamente com ofensas laicas, ampliando, assim, o caráter pastoral desses textos (Meens, 2014, p. 104).

No capítulo sexto, há uma mudança de cenário. Livros penitenciais estavam sendo produzidos também fora do mundo insular e carolíngio, em lugares como Espanha e Itália, mas como Meens frisa, as circunstancias políticas sob as quais a literatura penitencial floresceu nesses lugares eram diferentes (Meens, 2014, p. 164).

Três dos penitenciais espanhóis têm, dentre outras fontes, textos carolíngios como base, tais como o Excarpsus Cummeani. Entretanto, os penitenciais espanhóis são encontrados em manuscritos ricamente iluminados, indicando que eles não foram redigidos com fins pastorais (Meens, 2014, p. 164-70). Esses textos e sua relevância não foram exaustivamente estudados e ainda há penitenciais espanhóis que não foram estudados (Meens, 2014, p. 171-172). Além de explorar as abordagens espanholas e italianas quanto à penitência, Meens discute nesse capítulo o impacto dos trabalhos de Regino de Prum e Burcardo de Worms, e examina a prática da penitência entre as aristocracias (Meens, 2014, p. 141-154). Essa é outra parte chave do livro na qual exemplos de penitência funcionando como forma de instrumento de reconciliação de conflitos políticos são exibidos. Um dos exemplos fornecidos é o caso de Henry VI, a quem o papa Gregório VII havia excomungado. Devido à situação política instável da Itália, Gregório sentiu-se ameaçado pelos oponentes de Henry e decidiu restaurá-lo como membro da comunidade cristã através do cumprimento de penitência (Meens, 2014, p. 182-185).

O último capítulo lida com o século XII. Neste, o impacto dos trabalhos de indivíduos como Pedro Abelardo e Bartolomeu de Exeter são considerados (Meens, 2014, p. 119-213). Meens justifica bem a decisão de limitar seu estudo ao século XII, baseado em dois argumentos: o primeiro é o fato de que, após o século XII, os livros de penitência deixaram de ser copiados; segundo, porque o surgimento das escolas catedráticas e das universidades propiciou avanços nas discussões sobre os melhores mecanismos para corrigir comportamentos considerados pecaminosos e, como consequência desse processo, estudiosos buscaram distinguir entre direito canônico e literatura pastoral (Meens, 2014, p. 191-192). Pessoas como Burcardo de Worms, por exemplo, não pensava nesse tipo de distinção, portanto, esta foi uma mudança produzida no século XII (Meens, 2014, p. 191).

Penance in Medieval Europe de Meens é uma esperada contribuição ao campo. A obra traz um olhar novo sobre a penitência na Idade Média, através da análise desta sob o ângulo dos estudos de conflito. Ao mesmo tempo, este é um livro didático que dialoga e resume o conhecimento produzido nas últimas décadas sobre penitência tanto por Meens quanto por outros pesquisadores.

Essa obra é, portanto, uma leitura indispensável tanto para os especialistas em penitência quanto para os iniciantes nesse campo de estudo. A obra não apenas discute penitência nos livros penitenciais, mas em uma rica variedade de gêneros literários, em diferentes séculos e em contextos diversos da Europa Ocidental. Desse modo, a obra evidencia a multiplicidade de maneiras possíveis para se extirpar pecados na Idade Média e a centralidade da penitência nos discursos cristãos. Esse belo trabalho é fruto de anos de pesquisa no campo e de muita erudição.

Referências

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Para uma revisão detalhada da historiografia, ver Meens, 2008.

Elaine Cristine dos Santos Pereira Farrell – Professora do Departamento de História da Universidade de Utrecht e University College Dublin – Utrecht- Holanda. E-mail: [email protected].

As irmandades de São Miguel e Almas do Purgatório: culto e iconografia no setecentos mineiro – CAMPOS (Tempo)

CAMPOS, Adalgisa Arantes. As irmandades de São Miguel e Almas do Purgatório: culto e iconografia no setecentos mineiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2013. Resenha de: MARTINS, William de Souza. Almas santas e aflitas nas Minas setecentistas. Tempo v.21 no.37 Niterói jan./jun. 2015.

Quando a primeira versão deste trabalho veio à luz em 1994, constituída pela Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação de Laura de Mello e Souza, tornou-se fonte de consulta indispensável aos especialistas do catolicismo no período colonial, particularmente aos interessados nas manifestações litúrgicas ligadas ao momento da morte. Desde então, a autora, professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, publicou uma grande variedade de trabalhos dedicados, entre outros temas, ao culto aos santos e aos rituais da Paixão de Cristo, passando pela análise das representações iconográficas realizadas nas capelas e matrizes mineiras. A publicação da principal obra de Adalgisa Arantes Campos vem preencher uma lacuna importante no campo de estudos em que se situa e, além disso, coloca ao alcance de um círculo maior de leitores reflexões acerca dos rituais católicos do século XVIII que continuam válidas.

A autora estabelece um diálogo importante com a historiografia francesa, a quem cabe o pioneirismo no desbravamento deste campo temático, particularmente Michel Vovelle (19782010), Jacques Le Goff (1993), Philippe Ariès (2014) e Jacques Chiffoleau (2011). Os três primeiros autores são considerados bastante representativos da chamada “história das mentalidades”, que priorizou o estudo das representações coletivas que adquiriam permanência na “longa duração”, conforme definição clássica de Fernand Braudel. A historiografia portuguesa é também visitada, com destaque no capítulo que dedica à análise da iconografia e da devoção às Almas em Portugal. Trata-se de um diálogo crítico, que rejeita a aplicação mecânica ao território das Minas coloniais de modelos de interpretação elaborados para as realidades do Velho Mundo.

Conforme argumenta Adalgisa Arantes Campos, existiram diversas especificidades do culto às Almas e das manifestações litúrgicas associadas à morte nas Minas entre 1712 e 1810, o recorte escolhido pela autora. Para compreendê-las, é indispensável ter em mente certas características da ocupação daquele território, marcada no primeiro quartel do século XVIII pela grande opulência material propiciada pelo ouro, ao qual se seguiu um lento e, depois de 1750, vertiginoso declínio. A proibição de fixação de ordens regulares na capitania teve o efeito de diminuir a quantidade de sacerdotes disponíveis para a celebração de missas, ofícios e outros rituais fúnebres associados às Almas do Purgatório. Paralelamente, devido à inexistência de mosteiros e de conventos, o culto às Almas ocupou os altares de capelas e de matrizes paroquiais, sobressaindo estas últimas, onde foram instaladas quase todas as irmandades que veneravam o Arcanjo São Miguel e as Almas do Purgatório.

No que diz respeito à leitura dos aspectos sociais e culturais mais amplos que nortearam a colonização daquele território, a autora se valeu de uma rica tradição de estudos do “barroco mineiro”, em que avultam as edições patrocinadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.1 Ao lado desse conjunto de estudos, a autora dialogou também com as obras que analisaram a atuação das irmandades na capitania das Minas (Salles, 1963Boschi, 1986Aguiar, 1997, p.80-106). Talvez um dos maiores méritos da obra resida na combinação das abordagens próprias da história da arte, aplicadas à análise das manifestações e dos modelos iconográficos, e da história social do território e das associações que veneravam as Almas do Purgatório e o Arcanjo São Miguel.

Da perspectiva das fontes escolhidas para a análise, a autora realiza um verdadeiro tour de force: fontes escritas de natureza normativa e litúrgica; farta documentação iconográfica; documentação de diferentes irmandades sob a invocação de São Miguel e Almas do Purgatório; tratados de meditação e oração, sermões e literatura. A escolha de material tão diversificado poderia conduzir à dispersão ou à análise superficial do material empírico. Pelo contrário, procedendo a partir da comparação, a análise sistemática dos detalhes produz uma visão orgânica do culto às Almas do Purgatório e dos rituais funerários na região das Minas. Estruturando a obra em cinco capítulos, pareceu acertada a decisão de não incluir o capítulo inicial da tese, dedicado à análise dos “novíssimos do homem” (a morte, o juízo, o inferno e o paraíso).2 Diminuindo-se o material de apoio, o livro ficou mais leve e mais focado no recorte escolhido.

A autora abre o primeiro capítulo com a discussão acerca do sistema teológico do Purgatório, que remete à grande obra de Jacques Le Goff. Na Idade Média, a constituição de um espaço intermediário ocupado pelos que morriam com pecados veniais, que mantinha simultaneamente união com o mundo dos vivos e dos santos, sublinhava as solidariedades e as trocas espirituais nos três níveis em que se dividia a Igreja de Cristo. Conforme a própria autora assinalou em outro trecho:

O Purgatório tornou-se um tempo e lugar intermediários, constituindo no centro, na esperança, de muitas devoções. Os mortais ocupavam boa parte da sua vida terrena auxiliando as almas a resgatarem os próprios pecados e ascenderem na rota espiritual, rumo à imortalidade (p.68).

O capítulo inicial também apresenta a relação entre o culto às Almas e as descrições do Purgatório contidas na obra que exerceu profunda influência sobre as representações do além na sociedade ocidental: A divina comédia, de Dante Aliguieri. Na obra do poeta italiano, a purificação dos pecados por meio do fogo constituiu uma importante atividade realizada no espaço do Purgatório. Após a purgação obtida nesse espaço intermediário, as almas estavam prontas para receber as glórias do Paraíso. Aos homens que faleciam em pecado mortal, estavam reservadas as penas infinitas do Inferno, sem possibilidade de remissão. A autora assinala a complexidade do papel assumido pelo fogo no Purgatório: “ao mesmo tempo pune, rejuvenesce e imortaliza” (p.47, grifos no original). Ao consultar as imagens contidas nos livros das irmandades de São Miguel e Almas e outros testemunhos iconográficos das Minas, a autora percebe a continuidade, na “longa duração”, do sistema de representações expresso por Dante:

As imagens expressam claramente a leitura do fogo enquanto elemento de purificação e santificação. Não há contorções, feições desfiguradas ou qualquer indício da natureza unívoca do fogo. As [Almas] eleitas atingidas pelo fogo conservam a serenidade, em sinal de meditação sobre o pecado e a esperança em Deus. Podemos ler o Purgatório de Dante, contemplando o acervo artístico proveniente das Minas do Ouro, como se este constituísse as pranchas ilustrativas daquela obra, tal é a afinidade entre as duas produções artísticas (p.47).

O capítulo dois trata da “iconografia e devoção às Almas em Portugal”. Trata-se de um importante material de apoio necessário à discussão dos capítulos centrais do livro. A partir do exame da historiografia portuguesa e da análise de diversas representações iconográficas existentes em diferentes localidades de Portugal, a autora constatou a variedade formal do culto às Almas efetuado no Reino. Chama inicialmente a atenção para as “alminhas”, isto é, pequenos oratórios que se edificavam ao ar livre e que continham painéis alusivos às Almas do Purgatório. Os cruzeiros, cuja localização apresentava muita diversidade, mantinham igualmente uma relação direta com o referido culto. No que tange às confrarias das Almas, é possível verificar a existência de patronos diversificados, como São Francisco, São Gregório, São José etc.

No século XVIII, momento da organização do culto às Almas no território das Minas, observou-se uma redução da variedade constatada no Reino de Portugal: inexistência das “alminhas”, o número de intermediários celestes associados à devoção às Almas ficou praticamente limitado ao Arcanjo São Miguel etc. No capítulo em questão, a autora trata ainda de deslocamentos ocorridos nas representações das Almas em Portugal, entre fins da Idade Média e princípios da Moderna. Enquanto no primeiro período a Virgem figurava em lugar de destaque no papel de intercessora das Almas do Purgatório, após o Concílio de Trento (1545-1563), Maria foi em parte substituída por outros intermediários celestes. Como hipótese para explicar essa mudança, a autora comenta que, para as sensibilidades clericais da modernidade, constituía uma ousadia figurar Nossa Senhora apertando os seios para aliviar com o seu leite a secura das almas padecentes (p.62 e 72).

O capítulo três constitui o eixo do livro e contém talvez as principais contribuições da autora para o estudo da “economia da salvação” subjacente às representações do Purgatório (Araújo, 1997, p.387-436). Seguindo tendências prenunciadas já na Idade Média, após o Concílio de Trento, o sacramento da eucaristia se tornou o principal sufrágio aplicado à salvação das Almas (Le Goff, 1993, p.362). Neste contexto, as autoridades eclesiásticas se preocuparam em garantir a solenidade do uso litúrgico do corpo de Cristo, fiscalizando o estado dos templos e altares e até a aparência dos sacerdotes que celebravam o santo sacrifício, como também combatendo a utilização de hóstias em sortilégios e práticas mágicas.

Nas irmandades de São Miguel, além dos sufrágios constituídos por missas celebrados pelos irmãos falecidos – o que constituía também uma prática realizada por outras irmandades -, havia a instituição de capelanias de missas dedicadas ao conjunto das Almas do Purgatório. Na Irmandade de São Miguel da Matriz do Pilar de Vila Rica, tal capelania foi extinta em 1810, fato que foi destacado pela autora no desenvolvimento de um dos principais argumentos do terceiro capítulo: o declínio do culto às Almas ao longo do século XVIII.

Tal declínio foi impactado pelo agravamento da situação econômica da capitania. Nesse ponto, percebe-se o diálogo implícito com a tese de Laura de Mello e Souza (1990) a respeito da pobreza no território das Minas setecentistas. A opulência de que se revestia o culto às Almas no primeiro quartel do século XVIII, caracterizado pela celebração de ofícios cantados com a participação de numerosos sacerdotes, músicos e decoração dos templos, foi substituída pela celebração silenciosa de missas em sufrágio das Almas. O culto às Almas vai assim perdendo espaço para a preocupação obsessiva com a salvação individual dos membros das irmandades de São Miguel. Para tanto, mesmo com as dificuldades econômicas assinaladas, as referidas irmandades aumentaram ao longo do século XVIII o número de sufrágios constituídos por missas, celebradas após o falecimento dos respectivos membros. Tal escolha revela a força da “contabilização do além” associada ao imaginário do Purgatório (Chiffoleau, 2011, p.127; Le Goff, 1993, p.269-271): o maior número de sufrágios tinha o efeito de apressar a passagem da alma pelo lugar intermediário, conduzindo-a ao Paraíso. Pelo fato de que, com algumas poucas exceções, os sacerdotes podiam apenas celebrar uma missa diariamente, a demanda maciça por sufrágios somente podia ser atendida fazendo-se celebrar as missas fora da capitania, de preferência na cidade do Rio de Janeiro ou no Reino de Portugal. Além dos vínculos afetivos existentes nesses territórios, a esmola para a celebração da missa era mais reduzida nos mesmos, devido à existência de maior número de sacerdotes. Por fim, a autora analisa o importante lugar ocupado nas rendas sacerdotais pelas missas de sufrágio e por outros atos litúrgicos associados ao momento da morte, o que permite compreender melhor a concentração de sacerdotes nas áreas mais urbanizadas da América Portuguesa, já apontada em estudo clássico (Neves, 1997, p.213-218).

O quarto capítulo foi destinado à análise de outros rituais, além da celebração de missas, que tinham relação com o culto às Almas do Purgatório: os ofícios, as procissões e as práticas de sepultamento. No que tange aos ofícios, a autora desenvolve em detalhes a tese do declínio de manifestações mais solenes ligadas ao culto das Almas, em decorrência não somente de dificuldades de ordem material, como também do “processo de aclimatação do universo religioso português” ao território das Minas (p.157). As procissões seguiram, em linhas gerais, o mesmo caminho. O estudo das práticas de sepultamento foi realizado de maneira meticulosa, a partir da base de dados dos livros de óbito da matriz do Pilar de Vila Rica. Na análise dos referidos registros, a autora reconstrói as hierarquias tecidas pelos irmãos de São Miguel e Almas e pelos fiéis em geral por ocasião do sepultamento. Por parte da população livre, havia preferência clara pela inumação no interior do templo, enquanto no adro deste sepultavam-se basicamente os escravos. Mesmo no interior do espaço sagrado da matriz havia diferenças entre o sepultamento na capela-mor, reservada a confrades de diferentes irmandades que tinham exercido cargos de direção em suas respectivas associações, e o sepultamento nas campas localizadas na nave templo paroquial.

No último capítulo, a autora se dedica à análise da iconografia do Arcanjo São Miguel. Apoiando-se em estudos dedicados à análise dos modelos iconográficos e da história da arte (Belting, 2010Male, 1984, entre outras referências), a autora constata as mudanças das representações de São Miguel e das Almas ocorridas no território das Minas, ante os padrões europeus. A autora faz também um mapeamento de cerca de 60 irmandades e devoções dedicadas à veneração do Arcanjo e das Almas do Purgatório que, em sua quase totalidade, impediam o ingresso de descendentes de africanos em suas fileiras. Talvez constitua uma lacuna da obra a ausência de maiores informações referentes aos irmãos das Almas, o que permitiria reconstituir o perfil prosopográfico dos mesmos. Em que pese isto, a obra de Adalgisa Arantes Campos constitui uma contribuição basilar ao estudo das representações acerca da morte e das práticas mortuárias no período colonial, um campo de estudos em que foi pioneira, ao lado das contribuições de João José Reis (1991) e de Cláudia Rodrigues (2005).

Referências

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1Com relação ao primeiro grupo, ver: Oliveira (2006)Del Negro (1978)Trindade (1951)Lopes (1942)Passos (1940).

2A autora justificou a exclusão devido à publicação prévia do capítulo em Rezende e Villalta (2007).

William de Souza Martins – Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ) – Brasil. E-mail: [email protected].

João Goulart: uma biografia – FERREIRA (Tempo)

FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 714 p. Resenha de: DELGADO, Lucília de Almeida Neves. João Goulart: do limbo à escrita da história. Tempo v.19 no.34 Niterói jan./jun. 2013.

A história e a memória, embora diferentes em suas formas de registro e manifestação, são férteis interlocutoras. Ambas, como bem acentua Jacques Le Goff, são dotadas de expressivos poderes, entre eles destacam-se, por exemplo, os de construção do esquecimento, da desqualificação e da interdição de registros. Por outro lado, a memória e a história também ganham poderosa expressão ao construírem versões positivas e elogiosas de eventos e pessoas. Quando assim acontece, essas características muitas vezes contribuem para alicerçar dinâmicas de mitificação de pessoas e processos sociais. As duas situações, desqualificação e mitificação, distorcem a realidade. Ao conhecimento histórico analítico e bem fundamentado, cabe romper com a cadeia nebulosa construída por essas estratégias referentes ao vivido e ao acontecido.

O livro João Goulart: uma biografia, do historiador Jorge Ferreira, alcança com esmero o objetivo de construir um conhecimento histórico sólido, posto que é interpretativo e bem fundamentado. Trata-se de um texto que inclui inúmeras contribuições para um melhor entendimento da história do Brasil no pós-1945. O mesmo teve como mérito especial romper com pressupostos e chavões que ilharam o ex-presidente Goulart, no âmbito de uma memória de esquecimento, de desqualificação ou de interdição, e trazê-lo para o campo da história do conhecimento.

Desde a tomada do poder pelos generais presidentes em 1964, a memória do presidente João Goulart tem frequentado a zona etérea e nebulosa do limbo. Uma pátina de esquecimento há muitos anos encobre sua trajetória, que, ao contrário do que está consolidado no senso comum, apesar de permeada por crises, foi rica e marcada por expressiva e destacada participação em cargos públicos.

Tal estratégia da construção de uma memória de esquecimento sobre o ex-presidente consolidou-se graças ao forte empenho dos adversários políticos que o depuseram. A mesma teve dois objetivos: justificar o próprio golpe de estado e construir uma possível legitimidade para o regime autoritário. Porém outros fatores também integram o caleidoscópio que a explica e a reproduz. Entre os mesmos, destaca-se a construção interpretativa produzida em especial nas décadas de 1970 e 1980 por intelectuais de renome, como Florestan Fernandes, os quais identificam em Jango uma forte fragilidade política e uma ambiguidade escorregadia quanto à sua opção ideológica à esquerda. Ainda, o silêncio recorrente de jornais e revistas, de expressiva circulação, adensou o caldo da desqualificação e do esquecimento sobre Goulart.

A biografia de Jango, escrita por de Jorge Ferreira, é baseada em sólida pesquisa documental e bibliográfica. São informações retiradas de livros, crônicas, documentos oficiais, artigos de revistas e jornais, manifestos, discursos, fotos, livros de memória, e articuladas em um texto que tem o mérito de ser denso, mas fluente. O autor ainda recorreu à realização de entrevistas que trouxeram grande contribuição e um toque de emoção à sua escrita. Por essas qualidades, o livro, redigido com clareza e cuidado estético, contribui de forma efetiva para a desconstrução da injustiça referente aos eventos que levaram à desqualificação do presidente Jango como um homem público. Desqualificação elaborada com esmero estratégico que não poupa o uso frequente de adjetivos negativos para identificar o ex-presidente, entre eles destacam-se expressões como demagogo, incompetente, irresponsável, boêmio e populista.

A combinação das estratégias de construção e reprodução do esquecimento e da difusão de críticas generalizadas sobre João Goulart teve como desdobramento um grande silêncio sobre sua trajetória política. Tal fato fica mais evidente quando compara-se o número de livros e artigos publicados sobre o líder com a profusão de publicações sobre Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, que atuaram na mesma fase histórica em que Jango alcançou projeção nacional. Cabe lembrar que Goulart foi ministro do trabalho durante o Governo Vargas (quando ganhou projeção nacional), deputado federal pelo Rio Grande do Sul, vice-presidente de Juscelino Kubitschek e de Jânio Quadros e, por fim, presidente da República.

Jorge Ferreira, embora atento às ambiguidades que marcaram a trajetória de Jango, está na contramão da solidificada imagem negativa do ex-presidente. Sem cair na tentação de se apresentar como redentor da memória do presidente deposto em 1964, o autor escreveu um texto ponderado, sério e marcado por qualidades inerentes à construção do conhecimento histórico: pesquisa, registro dos fatos e interpretação do processo. Foram dez anos dedicados à investigação e redação de uma longa e agradável biografia. Dez anos de persistência e dedicação meticulosa a um objetivo que teve um resultado impressionante, combinando registro biográfico e história.

O livro percorre a trajetória de vida de João Goulart desde sua infância até sua morte, no exílio em 1976. Buscou, nas entranhas do Rio Grande do Sul e nas características familiares de Jango, elementos de formação da personalidade de um político, que, apesar de ter herdado sólida fortuna e de tê-la multiplicado com efetiva competência, sempre possuiu uma afinidade eletiva com os segmentos mais empobrecidos da população brasileira. Essa opção preferencial do ex-presidente — trabalhadores urbanos e rurais — jamais foi compreendida e aceita pelos setores mais conservadores da sociedade brasileira, que se articularam na aliança político-social atuante na deposição do ex-presidente. Esta aliança era formada pelos seguintes protagonistas: expressivos segmentos das forças armadas, partidos como a União Democrática Nacional, grandes proprietários de terra — que o viam como traidor, membros da igreja católica conservadora, governadores de estado — como Minas Gerais, Guanabara e São Paulo, empresas de capital externo que investiam no Brasil e organizações internacionais que se tornaram guardiãs do sistema capitalista no tempo da Guerra Fria.

Ferreira demonstrou que, desde jovem, Jango, como era conhecido em São Borja, sua cidade natal, tinha algumas qualidades merecedoras de importância e que foram melhor elaboradas ao longo de sua vida de homem público. Era paciente e exímio negociador, como demonstrou durante seu mandato de vice-presidente à época do governo de Kubitschek. Sobretudo, tinha vocação para a arte da política e, em especial, à formação de consensos. A essas virtudes, contudo, somaram-se defeitos, como os de muitas vezes buscar a construção da conciliação com adversários e frágeis apoiadores. Esses últimos não hesitaram em chamuscá-lo com o que atualmente é denominado de ‘fogo amigo’. Essa orientação do presidente, ou seja, buscar a conciliação mesmo quando os sinais indicavam sua inviabilidade, poderia ser um estilo e uma estratégia, mas acabou sendo identificada como vacilação, incapacidade decisória e demagogia populista.

O escritor também argumenta, de forma correta e bem fundamentada, que, diferentemente do que é disseminado, não se pode definir Jango como um populista sem méritos e sem tradição histórica. Ao contrário, identifica-o como o principal herdeiro de Vargas — embora dele se diferenciasse — e um dos maiores líderes não do populismo, mas do trabalhismo brasileiro. Para ele, a principal opção política de Goulart era o trabalhismo, desdobrado em nacionalismo, desenvolvimentismo, distributivismo social e intervencionismo estatal. Certamente, Jango estava sintonizado com expressivos políticos e intelectuais da sua época, os quais consideravam ser de responsabilidade do Estado a adoção e a administração de políticas públicas sociais e econômicas.

A biografia de Goulart coroa renovadora contribuição historiográfica de Ferreira a respeito do período entre 1945 a 1964. Seu principal investimento no que se refere à política desses anos situa-se no esforço para desconstruir a teoria do populismo. Discorda da conceituação dela decorrente, que identifica populismo como manipulação e demagogia. Portanto, diverge veementemente da utilização desse conceito como explicativo daquele período, pois entende que trabalhismo e nacional desenvolvimentismo são ideias mais consistentes e melhor explicativas de uma opção política, hegemônica à época e orientada por um projeto nacional caracterizado por definições precisas e objetivos estabelecidos. Entre as metas destacavam-se valorização do trabalho, distributivismo social, planejamento estatal, valorização dos investidores nacionais, política previdenciária sólida e reformismo social, com ênfase para a reforma agrária.

Sem se descuidar dos aspectos privados da trajetória do ex-presidente, que gostava dos prazeres da vida boêmia e do cotidiano na área rural, Jorge Ferreira também registrou, em três densos capítulos, a vida do líder no tempo do exílio. Foram anos de amargura, saudade e solidão. Nessa derradeira fase de sua vida, à Goulart só restou o prazer de cuidar de suas extensas criações de gado que, contudo, estavam, em grande parte, situadas na Argentina e no Uruguai e não em sua pátria.

Jango rumou para o exílio, pensando que o mesmo duraria pouco, tão logo os militares ascenderam ao poder em 1964. Seguiu acompanhado de sua mulher Maria Tereza e de seus filhos João Vicente e Denize. Sua opção foi a de não resistir ao golpe que o destituíra. Para muitos de seus aliados seu grande erro foi exatamente o de não ter reagido ao golpe. No entanto, Ferreira argumenta que o presidente preferiu o caminho do exílio, com toda sua imprevisibilidade, ao recurso da resistência, que, com grande probabilidade, mergulharia o Brasil em uma guerra civil. Essa mesma orientação o levou a concordar, embora contrariado, com a adoção do parlamentarismo, em 1961, quando da renúncia do presidente Jânio Quadros.

A decisão de não resistir ao Golpe de 1964 contrariou diferentes tendências das esquerdas brasileiras, que ganhavam envergadura no efervescente pré-1964. Ansiosas para chegarem ao poder, as esquerdas jamais perdoaram a opção de recuo de João Goulart quando as botas dos militares alcançaram o Palácio do Planalto, os marines americanos rondavam as costas brasileiras e o Congresso Nacional, apesar dos protestos de alguns deputados, declarou vaga a Presidência da República, mesmo estando Goulart em território nacional. Esqueceram-se de que Jango jamais foi um homem de conflito. Ao contrário, sempre escolheu a via da conciliação e da negociação, entendida por ele como inerente à democracia.

O mesmo João Goulart, que sempre fora conciliador e trabalhista, abraçou, com vigor, o radicalismo reformista no final do ano de 1963 e início de 1964. Após inúmeras tentativas, sem ressonância, de negociação com os setores mais conservadores da sociedade brasileira, recorreu ao apoio das esquerdas para sua sustentação no poder. Tal estratégia orientou a regulamentação da lei, que controlava a remessa de lucros por empresas de capital internacional instaladas no Brasil, e a adoção de medidas como a da reforma agrária, anunciada no comício de 13 de março de 1964.

Para Ferreira, a conspiração conservadora a depô-lo ganhou forma e envergadura a partir desse contexto. Portanto, concluímos que nesse ponto o autor carregou um pouco na tinta, pois em 1954, quando da crise política que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, os acontecimentos de 1964 já haviam sido anunciados. As circunstâncias adversas do governo Jango e o movimento das peças no xadrez da história somente definiram o tempo exato desse desfecho.

Finalmente, vale ressaltar que, nesta alentada biografia, Ferreira esclareceu seu entendimento sobre qual foi o papel, no contexto do imediato pré-golpe de 1964, das divergentes forças políticas que atuavam naqueles anos. Considerou que a conjuntura foi marcada por marchas e contramarchas e por um forte radicalismo à direita e à esquerda. Esse processo radical dificultou uma avaliação melhor acurada dos possíveis desdobramentos decorrentes da extrema polarização conjuntural. Nesse quadro de crescente intransigência, também alimentada pelos acontecimentos da Guerra Fria, a vocação negociadora de Goulart não encontrou eco e não teve força persuasiva. À uma determinada altura dos acontecimentos, que define como o ano de 1963, não foi mais possível conter o avanço da oposição ou neutralizar a força da radicalização política à esquerda que se movimentava sob forte influência do brizolismo. Contudo, mesmo reafirmando a tese do crescente radicalismo, deixou registrado que os opositores do trabalhismo, do nacionalismo e do reformismo foram os protagonistas principais do golpe de 1964. Em outras palavras, os responsáveis pelo golpe situavam-se no campo da direita.

Uma biografia do porte e da qualidade de escrita do historiador Jorge Ferreira é leitura indispensável para quem quer conhecer melhor o tempo polêmico e efervescente do pré-1964 e seus terríveis desdobramentos, uma vez que o livro se estende até a morte de Goulart, em 1976, quando o presidente ainda estava no exílio. Entre os méritos do autor, que são muitos, destaca-se o da ousadia de se contrapor à história hegemônica e à construção do esquecimento coletivo sobre quem foi um protagonista vencido e não vencedor. Mais do que isso, o historiador demonstrou que Jango foi um homem público de grande envergadura, merecendo transitar, de forma definitiva, do limbo para as páginas da história.

Lucilia de Almeida Neves Delgado – Historiadora; Professora do Curso de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (UnB); Professora do Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos da UnB; Pesquisadora do Programa de História Oral da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); autora, entre outros, do livro: PTB: do Getulismo ao Reformismo (1945-1964). 2 ed, São Paulo, LTr, 2011. E-mail[email protected].

Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette – ALVES (Tempo)

ALVES, Rubem. Variações sobre o prazerSanto Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette.  São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011. 188 p. Resenha de: COSTA, Tati. Livro para saborear: método científico regado a sensibilidades. Tempo v.19 no.35 Niterói jul./dez. 2013.

Pelo que sei, só existe um lugar, no universo inteiro,
onde o puro pensamento é capaz de mover
a matéria. Esse lugar é o corpo. No corpo, a gente
pensa na moqueca e a boca fica cheia d’água. (p. 144)

Resenhar obra de Rubem Alves é saboroso desafio pela qualidade de sua escrita e erudição de seus conhecimentos. Resenhar, com objetivo de circulação acadêmica orientada ao conhecimento histórico, é como acrescentar pitada de pimenta ao desafio. Porque a experiência de vida narrada pelo autor, então aos 77 anos, carrega uma provocação ao fato de que ambientes educacionais, acadêmicos e científicos ignoram o aspecto sensível do conhecimento e as dimensões do amor, prazer, desejo e alegria. Felizmente, nas ciências humanas, algumas experiências com história do tempo presente têm se dedicado a desafios semelhantes. Por exemplo, já se trilha com sabedoria a história das sensibilidades; já se trabalha, há algum tempo, a arte de uma boa conversa nas pesquisas com história oral. E, na história cultural, cada vez mais nos debruçamos sobre as artes e artistas da poesia e literatura, da música, da culinária, das imagens, buscando dimensões de economias do desejo ali presentes. Desde o início, o autor sugere aproximações entre a construção do conhecimento e a gastronomia, destacando as coincidentes raízes etimológicas de saber e sabor. Recorda inclusive que, antigamente, quando uma comida era saborosa, dizia-se: “esta comida sabe bem”.

O livro transita por variações nas quais os objetos de análise são retomados por diferentes pontos de vista e, a cada capítulo, têm caráter ensaístico. Além do prefácio, do próprio autor, 12 ensaios variam bastante em estrutura narrativa. Nos títulos, lê-se marcante presença de bom humor, combinado com provocações críticas. As notas de rodapé, por exemplo, recebem o nome de notas de canapé, termo que Rubem Alves considera mais apropriado, pois devem ser “coisas pequenas e saborosas, algumas doces, outras apimentadas, que abrem o apetite, e que são servidas no meio da festa”.1

Atenta, sobretudo, às questões de história e memória, algo que ocupa significativamente a cena dos atuais estudos históricos, minha observação versa sobre o potencial metodológico da obra como contribuição para as pesquisas em História cultural, História do tempo presente e História oral. Além disso, o livro oferece uma bela retomada de autores clássicos, prato cheio para quem pesquisa apropriações e percursos de leitura a respeito de Nietzsche, Marx, Fernando Pessoa, Bachelard, Paulo Freire, Wittgenstein, Manoel de Barros, Guimarães Rosa, William Blake, entre outros.

A velhice é o ponto de onde fala (ou escreve) o autor: “A consciência da morte nos dá uma maravilhosa lucidez”.2 Tal singularidade sobre a fase da vida nos informa a respeito tanto dele quanto das categorias que lhe são atribuídas: escritor vencedor do prêmio Jabuti em 2009, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pedagogo, poeta, cronista, contador de estórias, ensaísta, teólogo e psicanalista.

Quando fala sobre envelhecimento, refere-se às metamorfoses do ser humano ao longo do tempo, o processo histórico das mudanças no corpo e nas perspectivas sobre a experiência. Em se considerando a frequente participação de pessoas idosas na História oral, o testemunho do autor sugere ingredientes úteis à linha epistemológica interessada em considerar as elaborações, as composições narrativas, os processos de autopercepção que operam durante a produção e registro dos relatos, como sinalizam Walter Benjamin,3 Alessandro Portelli4 e Eduardo Coutinho.5

Outro diálogo importante: a realização de entrevistas é ato de sensibilidade que exige o gosto por uma boa conversa, e uma epistemologia sobre o prazer da boa conversa é um dos elementos presentes na obra. O encontro entre a pessoa que pesquisa histórias de vida e aquela que narra é um espaço de arte e sabedoria, onde o prazer do corpo revela-se essencial. A dimensão do corpo como elemento de conhecimento tem fundamental importância para quem trabalha com o tema da memória na história. Lembremos, por exemplo, da discussão de Henri Bergson em “Matéria e Memória,”6 atualizada no debate de Ecléa Bosi7 sobre sociedade e memória nas lembranças dos velhos e complementada no diálogo com Paul Ricoeur8 na dimensão da memória compartilhada entre as pessoas “próximas”. Considerando-se as diversas operações entre memória individual e coletiva, é através do universo corporal que a lembrança de uma experiência vivida se inscreve na pessoa.

Mas a memória vive tanto de lembranças quanto de esquecimento, tema que recebe de Rubem Alves um ensaio específico, intitulado “O esquecimento: Barthes (ou ‘Me esqueci do sabido para me lembrar do esquecido’)”. Leem-se algumas propostas produzidas na velhice, quando Barthes dedicou-se à pesquisa e à experimentação. Outra lição importante para o trabalho com História oral:

se quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que sou contemporâneo dos jovens corpos presentes, e não de meu corpo passado.9

A relação entre saberes e fases da vida, alvo da reflexão de Rubem Alves, delineia uma rota de aproximação da obra com o fazer histórico no contemporâneo:

Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar.

Não estaria aí uma inspiração para a história do tempo presente? Uma história escrita a partir da compreensão de que essa ciência chegou à “beira da falésia,” e que toma como objeto de atenção o próprio processo de construção da pesquisa, em seus caminhos e descaminhos, escolhas e descartes, enfim, a “operação historiográfica” em si, tomada como objeto de análise.

Por aí transitamos para o diálogo com a concepção de ciência discutida pelo autor: embate sobre os limites da objetividade em relação às subjetividades e saberes do corpo, um universo além do saber “lógico-racional”. Afinal, indaga Rubem Alves, o que faz uma boa moqueca? O livro de receitas não é garantia de sucesso se não contar com a experiência da cozinheira. Por aí se insere a questão do método científico regado a sensibilidades: juntar ingredientes só resultará em uma boa moqueca se for capaz de gerar água na boca. E, para isso, é imperativo contar com os saberes do corpo, que vão desde a memória do gosto ideal de uma moqueca, passam pela sabedoria dos gestos de salpicar temperos e mexer os ingredientes até atingir o ponto.

A inspiração, esse elemento que todos conhecemos (buscamos, ao menos), é essencial nas escolhas do prato a preparar, das quantidades e qualidades de ingredientes, nos momentos de aumentar ou diminuir o fogo. Por esse caminho, Rubem Alves nos conduz ao paradoxo da (im)possibilidade de um método para a escrita ou para a inspiração. Contudo, tal ponto faz da obra uma inspiradora provocação! Preocupado com que a própria escrita seja prazerosa como uma boa conversa, nos ensina sobre as relações entre oralidade e escrita e sugere alguns temperos narrativos para se contar uma boa história:

Um artigo científico é isso: o relato do caminho que se seguiu para se ir do ponto de onde se partiu até o ponto aonde se chegou. Isso se chama método. Mas o corpo não entende a linguagem do método. Método são procedimentos racionais. Mas o corpo é um ser musical. “O organismo é uma melodia que se canta,” diz Merleau-Ponty citando o biólogo Uexküll.10

Mesmo que Rubem Alves defenda sua escrita “contra o método,” com a licença e respeito profundo ao autor, ouso ler, a partir do livro que tenho em mãos, uma proposta metodológica. Não se trata de um método linear, objetivo, racional, como o da ciência cartesiana ou, para a história, no sentido hegeliano. Trata-se, a meu ver, de uma metodologia da inspiração e das sensibilidades — considerando que o sufixo possa ser uma forma de situar em palavras um sentido mais aberto de conhecimento.

Tratar de métodos e metodologias é demanda presente. Diversas áreas da ciência tiveram uma “crise” ou “virada” epistemológica,11 principalmente nas transições e revoluções que caracterizaram o decorrer do século XX. Depois do que se nomeou linguistic turn, o próprio papel do autor na produção do conhecimento científico é reconhecida como questão-chave e, se buscarmos uma emergência da temática, poderemos desfiar interessante debate, reunindo temporalidades por meio das obras de Walter Benjamin,12 Roland Barthes,13 Michel Foucault14 e Giorgio Agamben.15 Daí se decanta um desafio de como operar a transição, à la Deleuze e Guattari, da “árvore do conhecimento” para o conhecimento “rizomático”.16

É com uma escrita por imagens, de caráter sensivelmente rizomático, que se exibe no livro uma metodologia para a construção do saber sensível: no modo de escrever, acompanhado por boa música; no conselho, “para aprender lógica, leia poesia;” nas mil e uma maneiras diferentes que o autor encontra para inserir o diálogo com autores e teorias ou, como ele gosta de dizer, nas conversas com os autores. E traz até uma “receita” para encontrar inspiração, por meio da descrição de Nietzsche:

Repentinamente, com certeza e sutileza indescritível, algo se torna visível, audível, algo nos sacode em nossas últimas profundezas e nos lança por terra… A gente não busca, ouve. Não pede ou dá, aceita. Como o relâmpago, um pensamento se ilumina, com necessidade, sem hesitações com respeito à sua forma.17

Com a metáfora: “ideias são bailarinas, a inspiração é a solista,” o texto se compõe organicamente como num corpo de baile. A cadência do conhecimento científico que considere a inspiração como elemento metodológico está afinada, por exemplo, com o trabalho de Durval Muniz Albuquerque Jr.,18 quando diz que a história é a arte de “inventar” o passado, e com a defesa de João-Francisco Duarte Jr.19 por uma educação (do) sensível. Ambos pontuam uma metamorfose do próprio olhar sobre a verdade, ao longo da história da ciência: mais do que absoluta, a verdade figura como o horizonte de possibilidades, quando se considera a relação de interdependência entre a realidade observada e o seu registro pelo observador.

Rubem Alves ocupa-se dos limites da linguagem para dar conta da experiência sensível. E os problemas que ocorrem quando a ciência, estritamente racional, ignora ou silencia uma importante gama de conhecimentos presentes nos saberes do corpo, não ditos em palavras puramente lógicas. Como uma trilha do prazer, propõe a metodologia da sapiência culinária: ter conhecimento do desejo e do que fazer para produzi-lo. A função da inteligência, nesse sentido, “é organizar o poder de tal forma que ele se transforme em ponte entre o desejo e seu objeto”.20

Nesse sentido, destaco “Os saberes do corpo,” sexto ensaio do livro, dedicado a uma ideia “bergsoniana”: a percepção que temos de algo é a percepção de seus efeitos sensíveis, processo que ocorre de modo muito íntimo nos caminhos da subjetividade. Além do conhecimento acumulado, verificado e atestado, existe um nível subjetivo do conhecimento, elaborado por cada pessoa. Um exemplo: a forma como cada pessoa sente o sabor da mesma manga. A experiência é incomunicável, impossível de traduzir-se em palavras, menos ainda em dados verificáveis.

Sete são os ensaios dedicados ao que arrisco chamar de uma epistemologia do conhecimento sensível. Seguem-se outros cinco em torno das variações sobre o prazer. Inspiram-se na prática, algo comum no universo musical, de compor “variações sobre o mesmo tema”. Além de obras eruditas que trabalham a partir dessa modulação, as Jam Sessions de blues ou jazz têm a mesma levada, com boa dose de improvisação. A cada ensaio, Rubem Alves compõe uma variação sobre o prazer, partindo do ponto de vista de uma área do conhecimento, em companhia de um autor central. A primeira variação, teologia, possui como ponto de partida um texto de longa história. Trata-se do De doctrina christiana, de Santo Agostinho (354–430 d.C.). A segunda variação, filosofia, é uma conversa com Nietzsche, escrita de modo transliterário, em que as ideias “nietzscheanas” são transpostas ao texto, com destaque para a especialidade de Nietzsche: ir além da preocupação com as coisas que podem se tornar palavras, para buscar o universo do indizível, que é visível, audível, sensível. A terceira variação, economia, é uma conversa do autor com Marx, num cenário boêmio, regado a cerveja e envolto por uma fumaça de charuto. A quarta variação, culinária, aproxima os temas da ciência e do saber ao espaço culinário, conversando com cozinheiras como Babette.

Acompanha o cafezinho, do ensaio Post scriptum, um saboroso chocolate mentolado dedicado à ausência do amor e do prazer na educação. Pela minha leitura a partir da História, devemos compartilhar essa observação, já que nosso ofício está ligado à educação em todos os níveis da escola formal, do ensino básico até o superior. E, mesmo quando não nos dedicamos diretamente à docência, concentramo-nos em pesquisas, estamos a produzir um conhecimento que, para ter sentido de ser, carrega o devir de se dirigir a um público e servir como ferramenta do saber.

O gosto que fica na boca após a leitura desse livro delicioso é o sabor de um texto escrito com prazer. Metáforas na arte da escrita, permeada por imagens da culinária e da música, revelam a importância da experiência pessoal e da potência sensível para o exercício da pesquisa e construção do conhecimento científico. Para Rubem Alves, o primeiro passo é o sonho. Levar o corpo a trabalhar, por prazer, mais do que por dever. Que o professor se ponha a sonhar e a ensinar a sonhar… Por isso, encerro com uma frase do filósofo e escritor Euclides Sandoval, leitor de Nietzsche e professor durante 40 anos, do ensino básico à faculdade de Artes, em um de seus cadernos diários: “Antes de uma aula, é preciso que o professor durma… E sonhe”.

1 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 7.         [ Links ] 2 Idem, Ibidem, p. 9.
3 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e políticaEnsaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1987.         [ Links ] 4 Alessandro Portelli, “A Filosofia e os Fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais,” Tempo, vol. 1, n. 2, Rio de Janeiro, 1996, p. 59-72.         [ Links ] 5 Eduardo Coutinho, “O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade”, Projeto História, n. 15, São Paulo, 1997, p. 165-191.         [ Links ] 6 Henri Bergson, Matéria e memóriaensaio sobre a relação do corpo com o espírito, 4. Ed., São Paulo, WMF M. Fontes, 2010.         [ Links ] 7 Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos, 3. Ed., São Paulo, Cia das Letras, 1994.         [ Links ] 8 Paul Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento, Campinas, Editora da Unicamp, 2007.         [ Links ] 9 Roland Barthes apud Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 52.         [ Links ] 10 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 17.         [ Links ] 11 Dentre possíveis abordagens, menciono autores que situam o tema em suas áreas de estudo, com a ressalva de serem escolhas dentro de variado e saboroso menu! Roger Chartier debate a história entre certezas e inquietudes; Fritjof Capra dedica-se ao diálogo entre teorias das ciências físicas e biológicas, com sistemas políticos e sociais; Beatriz Sarlo pensa a emergência da cultura da memória a partir da guinada subjetiva. Cf. Roger Chartier, À beira da falésiaa história entre certezas e inquietudes, Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2002.         [ Links ] Fritjof Capra, As conexões ocultasciência para uma vida sustentável, São Paulo, Cultrix, 2005.         [ Links ] Beatriz Sarlo, Tempo passadocultura da memória e guinada subjetiva, São Paulo, Cia das Letras; Belo Horizonte, UFMG, 2007.         [ Links ] 12 Aqui me refiro ao ensaio “O autor como produtor”, de 1934, Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e políticaEnsaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1987.         [ Links ] 13 Roland Barthes, “A morte do autor” (1968), In: ______. O rumor da língua. 2. Ed., São Paulo, M. Martins, 2004, p. 65-78.         [ Links ] 14 Michel Foucault, O que é um autor?, 4. Ed., Lisboa, Passagens; Vega, 2000.         [ Links ] 15 Giorgio Agamben, “O autor como gesto,” In: ______. Profanações, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 55-62.         [ Links ] 16 Giles Deleuze, Felix Guatari, “Introdução: Rizoma,” Mil platôscapitalismo e esquizofrenia, vol. 1, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995, p. 11-37.         [ Links ] 17 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p.23.         [ Links ] 18 Durval Muniz Albuquerque Jr., HistóriaA arte de inventar o passado, Bauru, Edusc, 2007.         [ Links ] 19 João-Francisco Duarte Jr., O Sentido dos SentidosA Educação (do) Sensível, 4. Ed., Curitiba, Criar Edições, 2006.         [ Links ] 20 Rubem Alves, op cit., p. 147.

Tati Costa – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – Florianópolis (SC), Brasil. E-mail: [email protected].

Pour l’histoire des relations  internationales – FRANK (Tempo)

FRANK, Robert (org.). Pour l’histoire des relations  internationales. Paris: PUF, 2012. 776 p. Resenha de: ROCHA, Luis Moreli. Robert Frank e a História das Relações Internacionais. Balanço e manifesto. Tempo v.19 no.35 Niterói jul./dez. 2013.

Quando, em 1964, Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle publicaram sua Introduction à l’histoire des relations internationales (Paris, A. Colin), a escola francesa de História das Relações Internacionais (HRI) estava já longe de seus primeiros passos. A Introduction trazia, na verdade, um balanço de uma disciplina histórica em renovação, assim como os números 41 e 42 da revista franco-suíça Relations Internationales o fizeram, em 1985, sob a direção de René Girault.

Ferido gravemente em combate durante a Grande Guerra, Renouvin havia procurado, desde as batalhas, explicações mais significativas e complexas para a tragédia que vira e vivera. O trauma (o então jovem historiador perdera um braço em combate), bem como as vagas e genéricas respostas dadas pelo que era a História Diplomática (será mesmo que tudo se explicaria pela simples existência de grandes alianças?), não lhe permitiam eliminar um grande sentimento de perplexidade após um dos mais tenebrosos episódios vividos pela Europa. Preocupada sobretudo com os interesses dos Estados e centrada nos atos e gestos dos que exerciam a ação diplomática, a disciplina que se dedicava às relações internacionais desde o final do século XIX, ainda fortemente marcada pelo Positivismo, não havia conseguido acalmar o espírito de Renouvin face à dimensão da carnificina conhecida entre 1914 e 1918. O horizonte da História Diplomática, que segundo ele necessitava renovação, era “estreito demais”.1

Em 1931, publicando suas primeiras conclusões, o historiador francês já dizia que era preciso buscar entender “as forças que agitam o mundo”2 e ir além dos meros atos e fatos que se podem entrever nos documentos diplomáticos. Pouco mais de 80 anos passados e de uma longa maturação, um novo balanço reexamina o estado atual da pesquisa sobre as tais “forças” em um livro longo de 776 páginas organizadas pelo professor Robert Frank, sucessor de Renouvin, Duroselle e Girault na Sorbonne.

Em um momento no qual outras escolas nacionais lançam reflexões sobre o estado da disciplina, fazendo referência à contribuição francesa,3 Frank aponta para a necessidade de os herdeiros de Renouvin refletirem sobre o estado de suas pesquisas e, para não ficarem pelo caminho, de “cultivarem seu próprio jardim” (p. XIV).

Se a revolução epistemológica do surgimento da HRI havia mostrado o quão míope estava o ponto de vista da História Diplomática, a disciplina ainda evoluiria ao descobrir que seria preciso não somente valorizar as relações dos homens de Estado com a sociedade e suas forças profundas, mas também entender as dinâmicas internacionais de fatores econômicos, geoestratégicos, culturais e da chamada “mentalidade coletiva”, tanto dentro como fora dos governos.

De fato, a renovação de Renouvin e Duroselle, ao estabelecer que as relações entre os povos “podem raramente ser dissociadas das que são estabelecidas entre os Estados”, que, por sua vez, tornar-se-iam o “centro das relações internacionais”,4 precisava vencer novas barreiras. Frank, claramente marcado pela invasão do Iraque em 2003 e pelo desenrolar da primavera árabe e das operações na Líbia, elege a democracia, entre outros temas, para guiar a organização dos capítulos e mostrar que o homem se tornou, para o historiador das relações internacionais, a perspectiva essencial no trato do tema (p. XII, p. 57, p. 211, p. 687-696).

Dividido em cinco grandes partes (em um total de 30 capítulos), o livro percorre, em um primeiro momento e de modo introdutório, o estado da arte em diversas escolas nacionais de HRI para, na segunda parte e de forma atualizada, discutir como o historiador deve enfrentar a análise dos diversos níveis nos quais as relações humanas se dão, na época contemporânea, através das fronteiras: do nacional ao transnacional, passando, sem surpresa, pelo internacional. A terceira parte retoma as concepções de forças profundas de Renouvin para investigar se, por quais razões e como elas são hoje trabalhadas pela historiografia francesa. A penúltima parte recupera as reflexões que Duroselle deixou marcadas, em 1964, na segunda parte da Introduction, para ressaltar a atualidade dos estudos dos processos de tomada de decisão em política externa. Finalmente, revelando não só uma realidade política, mas também historiográfica do continente, pois absorvendo desde os anos 1980 muito dos esforços dos historiadores franceses, a quinta e última parte é dedicada à Europa, às questões específicas ligadas às relações intereuropeias e de construção da União.

Infelizmente, a reflexão à qual nós somos aqui convidados deve ser contida pelos limites próprios de uma resenha. Estas acanhadas poucas linhas dificilmente dariam conta de resumir tal obra de síntese, de grande densidade, longa, de quase 800 páginas e verdadeira substituta da Introduction. Sem poder eliminar o risco das escolhas arbitrárias, alguns capítulos foram eleitos para análise, pois ilustram melhor do que outros a evolução da disciplina. Esses apresentam temas revisitados ou novos e pretendem instigar os leitores a um estimulante exame do conjunto da obra.

Logo no segundo capítulo, sobre as relações entre HRI e teoria política ligada à área, Robert Frank nos faz lembrar o quanto a obra de 1964 foi importante para consolidar a importância da disciplina histórica no estudo das relações internacionais. Frank, mostrando rigor de análise, tampouco se esquece das controvérsias entre historiadores e cientistas políticos sobre o valor ou a eficácia relativa dos métodos quantitativos, das abstrações teóricas ou da linguagem matemática, em oposição às abordagens ditas qualitativas e que se pautam quase que absolutamente por análises empíricas. Uma das poucas obras da escola francesa traduzida para o português, o Tout Empire Périra. Vision théorique des relations internationales, de Jean-Baptiste Duroselle, foi uma importante testemunha dessa polêmica nos últimos 50 anos.5

Se Duroselle havia então se lançado em um exercício raro entre seus colegas (de encontrar meios de diálogo entre as duas disciplinas), o fez ainda com muita reticência e cuidado, reivindicando o primado do método histórico sobre teorias construídas, segundo ele, “artificialmente” e que não contemplariam a complexidade e a irracionalidade humana, nem levariam em consideração a historiografia existente. Sua intenção, então, foi de reafirmar o papel da História como pilar central dos estudos sobre as relações internacionais contemporâneas, iniciativa que teve seus méritos sem, entretanto, afastar as críticas.6

Ainda que Frank tenha guardado legítima prudência quanto ao uso acrítico das teorias e que reconheça a dificuldade do historiador em lidar com seu inerente “ecletismo teórico” quando diante da tarefa de trabalhar com conceitos abstratos,7 ele as defende como ferramenta “preciosa” para a pesquisa histórica. Frank não só prega uma abordagem “empírico-explicativa” da HRI, mas também defende que, “mais do que as teorias, os conceitos constituem a principal riqueza que o historiador pode encontrar nas outras ciências sociais” (p. 16, p. 41). No uso desses, ele continua, o historiador não pode esquecer da especificidade de seu métier: preservar a pesquisa empírica apoiando-se nos arquivos8 e verificando “a validade dos conceitos à luz das realidades e percepções de cada época” (p. 82).

Mais à frente, no décimo quinto capítulo, o autor oferece aos leitores a oportunidade de desenvolver uma reflexão sobre um tema, em 1964, ainda longe de ser considerado por Renouvin e Duroselle como formativo das “forças profundas” da HRI: a opinião pública. Nessa época, as ditas “manifestações de opinião” eram consideradas nada mais que reflexo das condições demográficas, dos interesses econômicos ou financeiros e das tendências da mentalidade coletiva que, essas sim, deveriam ser estudadas.9 Mostrando, porém, quão rapidamente tal abordagem tornar-se-ia ultrapassada, os próprios exemplos escolhidos por Duroselle, à época, para sustentar suas hipóteses datavam de antes do desenvolvimento das mídias de massa.10

Já Frank mostra quanto o progresso técnico mudou o papel da imprensa e a capacidade da opinião publica de influenciar os processos de tomada de decisão ao longo do século XX. O historiador passou, então, antes mesmo de se lançar nos evidentes desafios que a internet impõe, a analisar as questões levantadas pelo rádio, pelos jornais ou pela televisão, antes esquecidos pela disciplina.11 As ferramentas que os historiadores desde então construíram com a ajuda das outras Ciências Humanas permitiram analisar, de forma nova, noções de “representações, imaginários, identidades e culturas”, para, enfim, avaliar melhor o papel das “mentalidades” nas relações internacionais (p. 346). O refinamento dos conceitos compondo a noção de mentalidade coletiva (primeiro, com as “atitudes mentais estáveis” e as “atitudes mentais passageiras”, p. 352-355; em seguida, com as “representações” e “imaginários sociais”, p. 355-370) permitiu à HRI entender que, se antes era claro o recurso à informação na luta para conservar ou conquistar poder, hoje, essa estratégia indireta tornou-se sistemática. Voilà toda a importância do tema.

Dois capítulos mais à frente, Frank aprofunda a análise de um campo que certamente veio alargar a complexidade das forças profundas preconizadas por Renouvin, sobretudo aquela das relações culturais: o da internacionalização do esporte e da diplomacia esportiva. Se esforços já vinham sendo concentrados no tema desde os anos 1980,12 esse “reflexo cultural das relações de forças geopolíticas e da vida internacional”, como diz Frank, ganhou uma dimensão política tanto como arma de soft power, quanto meio de aproximação entre os povos desde o momento em que se tornou parte da cultura de massa e se internacionalizou (p. 387-388).

Sobre muitos aspectos, o historiador francês serve-se dos ensinamentos de Pierre Milza13 para lembrar que a história do esporte se associou a diversas questões geopolíticas, ao imperialismo, às aspirações pela paz perpétua, à emergência dos nacionalismos, à cultura de massas, a símbolos, a rituais, a tensões. Assim, Frank ressalta que o tema pode muito bem servir às novas gerações de historiadores como espelho das relações internacionais do século XX. Afinal, quem contestaria hoje a existência de questões políticas internacionais nos Jogos Olímpicos de 1936, 1972, 1980 ou 1984 (p. 391-396), ou nos Jogos da Commonwealth britânica (p. 400-403)?

Verdadeiro manifesto pela disciplina, o livro não procura estabelecer inflexivelmente os limites da pesquisa futura. Ele reconhece que campos praticamente ainda não explorados podem surgir e problemas insistentes, desaparecer no futuro próximo. O objetivo maior é fazer um balanço. Se Renouvin e Duroselle incentivaram os historiadores a se lançar no estudo das relações internacionais na época contemporânea, a rápida evolução do sistema internacional modificou vários aspectos da realidade que os cercava à época. Diferentes problemas mudaram de natureza, a composição das relações de força se transformou e o número de atores se multiplicou. Difícil esperar que alguém hoje defenda uma HRI detendo-se somente em atos e em decisões dos homens de Estado ou, menos ainda, a perspectivas estritamente nacionais de relações internacionais.

Porém, mesmo Renouvin já tendo defendido ser a abordagem estado-centrada insuficiente, Frank lembra que o precursor da disciplina raras vezes conseguiu levar a cabo a aplicação de seus enunciados, o que, em muitas oportunidades, deu razão a Marc Bloch e às gerações influenciadas pelos Annales de não distinguir muito bem em que a HRI seria renovadora face à antiga História Diplomática.

Em um esforço para manter a escola francesa na vanguarda da disciplina e mostrar que ela tenta não perder o seu élan,14 Robert Frank não só provocou uma série de reflexões a esse respeito nessa obra (como na segunda parte intitulada “O nacional, o internacional e o transnacional”), como também completou seu esforço ao lançar simultaneamente a revista Monde(s),15 abrindo uma porta importante para que seus colegas franceses possam dialogar com a Global History16 e com a História Transnacional. Essa, segundo Frank,

ao privilegiar a análise das ‘transferências’ e das ‘circulações’ através das fronteiras […], valoriza uma série de dinâmicas sociais que, há muito tempo, vêm transformando o sistema de nações e que, há três ou quatro décadas, chega mesmo a colocá-lo em questão (p. 105-106).

Assim nasceu um novo canal de diálogo, a primeira revista francesa de História Global, aspirando a “colocar em perspectiva histórica as conexões e as interferências entre as sociedades.”17 O esforço é claro no sentido de tirar a produção e as perspectivas históricas do eurocentrismo ou do nacionalismo metodológico (simbolicamente, e caso raro no país, a revista aceita publicações em inglês, que, por sua vez, é reconhecido como “a língua global”).20

Em razão do dinamismo inerente às publicações periódicas, que conseguem corrigir seus rumos ainda em vida, Monde(s) tem a missão de tornar ainda mais relativo um resistente eurocentrismo que, apesar dos esforços, conseguiu fazer-se presente mesmo em certas partes da obra de Frank. De fato, apesar do esforço, esse viés pode ser notado não só nas referências bibliográficas, mas também, por exemplo, na explicação histórica sobre a evolução da “democracia internacional” por marcos quase que exclusivamente europeus, esquecendo por completo, entre outras, a experiência interamericana (p. 690). Em outra passagem, marcante para os brasileiros, a obra se esquece das reticências da delegação do Brasil à Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU sobre a Líbia, ao apontar como únicas, dentre as dos “países democráticos” quando da votação, as hesitações dos alemães (p. 692).

Apesar dessas ressalvas, difícil não reconhecer na obra um precioso instrumento de reflexão metodológica e epistemológica para estudantes e professores e um meio para aqueles interessados em conhecer mais de perto os trabalhos desenvolvidos na França no início do século XXI. Ao também englobar novos temas de estudo, Frank abre caminhos, indica direções e áreas de pesquisa e dá lições valiosas de rigor científico para os que neles se aventuram.

1 Pierre Renouvin, “Introduction Générale”, In: ______. (org.), Histoire des Relations Internationales, vol. 1, Paris, Hachette, 1994 (originalmente publicado em 1953), p. 8.         [ Links ] 2 Idem, “La publication des documents diplomatiques français, 1871-1914”, Revue historique, n. CLXVI, 1931, p. 10.         [ Links ] 3 Podemos citar, entre outras, a obra de Marc Trachtenberg, The Craft of International History: A Guide to Method, Princeton, Princeton University Press, 2006;         [ Links ] a de Ennio Di Nolfo, Prima lezione di storia delle relazioni internazionali, Florença, Editori Laterza, 2006 ou Concepts Histories and Theories of International Relations for the 21st century.         [ Links ] Regional and National Approaches, dirigida por José Flávio Sombra Saraiva, Brasília, IBRI, 2009.
4 Pierre Renouvin, Jean-Baptiste Duroselle, Introduction à l’histoire des relations internationales, 4. ed., Paris, A. Colin, 1991 (originalmente publicado em 1964), p. 1.         [ Links ] 5 Paris, Publications de la Sorbonne, 1981. A segunda edição (Paris, A. Colin, 1992) foi traduzida no Brasil pela Editora da UnB e pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em 2000, com o título Todo Império Perecerá.
6 Marcel Merle, “La problématique de l’étude des relations internationales en France”, Revue française de science politique, ano 3, 1983, p. 403-427.         [ Links ] 7 O autor chega mesmo a lembrar de sua proposta, publicada em 2003, de se pensar um “real-idealismo dialético ou histórico” como meio de melhor analisar questões de “guerra e paz” (Robert Frank, “Penser historiquement les relations internationales,”Annuaire français de relations internationales, vol. 4, 2003, p. 42-65).         [ Links ] 8 O capítulo 3, elaborado por Jean-Claude Allain, é todo dedicado às “fontes do historiador”.
9 Pierre Renouvin; Jean-Baptiste Duroselle, Introduction à l’histoire des relations internationales, 4. ed., Paris, A. Colin, 1991 (originalmente publicado em 1964), p. 3.         [ Links ] 10 Idem, Ibidem, p. 401 et seq.
11 Interessante notar a difusão de encontros sobre o tema, como o seminário Jean d’Arcy. La communication au service des droits de l’homme, 1913-1983, tratando do início da televisão no país e de sua importância para as relações internacionais (realizado em Paris, em 2012, tendo Robert Frank como conselheiro científico), e também a importância da exploração de arquivos, como os do Instituto Nacional do Audiovisual Francês.
12 Frank nos lembra do número especial 38, de 1984, da revista Relations Internationales, coordenada por Pierre Milza e intitulado “Esporte e relações internacionais”, mas também do Congresso de mesmo título organizado em Metz, em 1993, cujas atas foram publicadas por Pierre Arnaud e Alfred Wahl, e dos números 111 e 112, também da Relations Internationales, de 2002, sob o título “Movimento olímpico e relações internacionais.”
13 Pierre Milza, “Sport et relations internationales,” Relations Internationales, n. 38, 1984, p. 155-174.         [ Links ] 14 Norma Breda dos Santos, “História das Relações Internacionais no Brasil: esboço de uma avaliação sobre a área”, História, vol. 24, n. 1, São Paulo, 2005, p. 17.         [ Links ] 15 Nota-se o esforço na montagem do comitê científico (composto, entre outros, por Frederik Cooper, Matthew Connelly, Emma Rothschild e Odd Arne Westad) de mudar uma realidade segundo a qual os historiadores franceses, internacionalistas em seu campo de estudo, raramente (e paradoxalmente) o são na maneira de escrever (Monde(s), Histoire, Espaces, Relations. Nouvelle revue d’histoire globale et lieu d’expression pour les tendances neuves de l’histoire internationale, publicada por A. Colin com ISSN 1234-1234).
16 Interessante notar o impacto na França (p. 278) do texto militante de Thomas Zeiler intitulado “Just Do It! Globalization for Diplomatic Historians”, publicado no vol. 25, n. 4, em 2001, da Diplomatic History.
17 Robert Frank, “Avant-propos – Pourquoi une nouvelle revue?”, Monde(s), n. 1, maio 2012, p. 8.         [ Links ] 20 Idem, Ibidem, p. 9.

Alexandre Luis Moreli Rocha – Centro de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: [email protected].

Pelo prisma da escravidão. Trabalho, Capital e Economia Mundial – TOMICH (Tempo)

TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão. Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: Edusp, 2011. 248 p. Resenha de: SALLES, Ricardo. A segunda escravidão. Tempo v.19 no.35 Niterói jul./dez. 2013.

Escravidão, Trabalho e Capital, Economia mundial

Pelo Prisma da Escravidão. Trabalho, Capital e Economia Mundial. Esse é o título do livro de Dale Tomich, recentemente traduzido e publicado em português pela Editora da Universidade de São Paulo. Trata-se de uma coletânea de textos do autor, professor de Sociologia e História da Universidade Estadual de Nova York, em Binghamton. Tomich é um velho conhecido e conhecedor do Brasil.1 Além disso, é envolvido com diversas pesquisas e pesquisadores brasileiros, vindo frequentemente ao país.

Pelo Prisma da Escravidão saiu em inglês, em 2004.2 O livro reúne artigos publicados entre 1987 e 1997 e está dividido em três partes. A primeira tem por título “A Escravidão na Economia Mundial” e subdivide-se em três capítulos. Esta resenha terá como foco os capítulos 1 e 3 dessa primeira parte. São eles que dão a perspectiva de análise que se desdobra nas duas outras partes da obra, “O Global no Local” e “Trabalho, Tempo e Resistência: Mudando os Termos da Comparação”, cujos seis capítulos analisam o Caribe francês, inglês e espanhol entre finais do século XVIII e a primeira metade do século XIX.

O conceito-chave que organiza o conjunto do livro, e que dá o título do terceiro capítulo, é o de segunda escravidão. Ele é uma versão revisada do capítulo da obra coletiva Rethinking the Nineteenth Century: Movements and Contradictions, de 1988.3 O argumento de Tomich é que a escravidão moderna não foi sempre a mesma entre os séculos XVI e XIX. Na virada do século XVIII para o XIX, um conjunto de acontecimentos e tendências históricos, principalmente o advento da Revolução Industrial na Inglaterra e a hegemonia internacional da Grã-Bretanha, levaram a reconfigurações profundas no mercado mundial. Houve um crescente desequilíbrio nos preços internacionais entre produtos industrializados e agrícolas; o incremento do consumo de determinados produtos, como o café e o açúcar, demandados pelo aumento da população de trabalhadores e da classe média nas cidades da Inglaterra e da Europa; a procura por novas matérias-primas, como o algodão. Se esse conjunto de transformações afetou determinadas áreas coloniais escravistas, implicando seu declínio, atuou sobre outras áreas escravistas quase que em sentido inverso. Em regiões como Cuba, o Sul dos Estados Unidos e o Brasil, antes em segundo plano, a escravidão “expandiu-se numa escala maciça para atender à crescente demanda mundial de algodão, café e açúcar” (p. 83). A escravidão foi refundida em uma nova constelação de forças políticas e econômicas […] O significado e o caráter sistêmicos da escravidão foram transformados (p. 87). Esses centros emergentes escravistas viram-se cada vez mais integrados e impelidos pela produção industrial. Essa ‘segunda escravidão’ se desenvolveu não como uma premissa histórica do capital produtivo, mas pressupondo sua existência como condição para sua reprodução (p. 87).

Estamos longe aqui da visão de uma escravidão moderna somente adstrita a um elemento subordinado do processo histórico de acumulação primitiva de capital. Uma escravidão que estaria fadada, em que pese todas as sobrevivências e resistências promovidas por grupos dominantes a ela apegados, ao desaparecimento. De tal modo que sua história ao longo do século XIX seria a história dessa morte dantesca, mas já de antemão anunciada. Antítese “das formas emergentes de Estado, sensibilidade moral e atividade econômica”, a escravidão seria “o padrão negativo contra o qual as novas formas de liberdade se definiam” (p. 81). Sua abolição seria inevitável. Ainda que quase um século tenha transcorrido entre a revolução dos escravos em Saint-Domingue, em 1791, e a abolição no Brasil, em 1888, e que muitos e diferentes caminhos nacionais e regionais tenham sido trilhados nesse percurso, seu destino já estaria traçado. Para uns, pelo avanço de forças morais; para outros, pelo desenvolvimento da produção industrial e do capitalismo.

Dale Tomich nega esse modelo. Ele indica como essa segunda escravidão integrou-se ao desenvolvimento do capitalismo industrial e do mercado mundial do século XIX sob a hegemonia britânica. E, por isso, mesmo que contraditoriamente, desenvolveu-se com ele, não a despeito dele. Neste ponto, ao traçar o objetivo do capítulo como sendo o de chamar a atenção para o caráter diverso da escravidão no século XIX, dada sua integração com o desenvolvimento do capitalismo, o autor adverte que não se propõe “explicar as causas da emancipação dos escravos, que permanecem diversas e conjunturais” (p. 82). Trata-se de chamar a atenção para a “formação e reformulação das relações escravistas dentro dos processos históricos da economia capitalista mundial” (p. 82). Assim, se

a escravidão foi ao fim e ao cabo abolida em todos os quadrantes do hemisfério, o ‘século antiescravista’ foi, não obstante, o apogeu de seu desenvolvimento (p. 82).

No primeiro capítulo da primeira parte do livro, “Capitalismo, Escravidão e Economia Mundial”, está exposta a visão teórica, que embasa o conceito de segunda escravidão, se complementa e se aprofunda. Cronologicamente, o capítulo, assim como o segundo, que não será tratado aqui, foi escrito em 1993, posteriormente ao terceiro capítulo.4 Entretanto, do ponto de vista teórico, da exposição e da unidade do livro, corretamente, ele aparece antes. O fato não é de menor importância e ressalta um ponto decisivo na obra, a centralidade do que Tomich chama de história teórica.

Para abrir sua argumentação, ele aponta as debilidades de três grandes interpretações sobre a escravidão moderna: a da Nova História Econômica, presente nas obras de John H. Conrad e John R. Meyer e de Robert W. Fogel e Stanley L. Engerman; a marxista, de Eugene Genovese, e a do Moderno Sistema Mundo, de Immanuel Wallerstein.5 Resumida e esquematicamente, a Nova História Econômica presumiria a validade universal das categorias econômicas, aplicáveis tanto à economia capitalista quanto à economia escravista, deixando sem respostas as questões pertinentes à interpretação histórica e à formação das relações sociais. Já Genovese veria escravidão e capitalismo como sistemas incompatíveis, este mais moderno e aquele mais atrasado, envolvendo momentos diferentes do processo evolutivo histórico. Finalmente, para Wallerstein, o Moderno Sistema-Mundo, compreendendo relações de trabalho tanto assalariadas quanto coercitivas — dentre elas, a escravidão — , se constituiria em uma só estrutura histórica empírica, com múltiplas formas de trabalho, entretanto perdendo de vista as diferenças fundamentais entre as distintas relações sociais de produção.

Ao fim dessa digressão crítica sobre esses autores, Tomich propõe uma distinção fundamental entre teoria histórica, “preocupada em formular as categorias teóricas apropriadas para a compreensão de um objeto de investigação historicamente distinto”, e história teórica, “preocupada com o uso de tais categorias para reconstruir os processos de desenvolvimento histórico” (p. 37).

No primeiro caso, trata-se do que Marx fez em O Capital: construir um objeto teórico, o capital, assinalando sua especificidade “como uma forma histórica particular de relação social de produção e o trabalho como seu conteúdo” (p. 39, grifo no original). Apesar de dizer respeito a uma época particular da história e de fazer diversas referências a lugares — como a Inglaterra da Revolução Industrial — e a processos históricos concretos, como no caso de sua descrição do processo de acumulação original de capital, Marx concatena suas categorias logicamente. Essa tensão inerente a seu método, como crítica das categorias universais da economia política, entre sua proposta de assinalar a historicidade e o caráter relacional dessas categorias — capital e trabalho — e a exposição lógica de seus próprios conceitos, está na raiz dos equívocos das intepretações sobre a escravidão, criticadas por Tomich. Todas, de uma maneira ou de outra, tratariam capitalismo e escravidão como entidades abstratas e separadas, dotadas de atributos essenciais.

A implicação dessas concepções, pode-se dizer, é que a escravidão acaba ficando “fora do lugar”. Resumida a uma contingência histórica da fase de acumulação original de capital, ela é subsumida inteiramente à lógica do capitalismo, perdendo sua especificidade e sua história (como no caso das perspectivas da Nova História Econômica e do Moderno Sistema-Mundo). Ou, então, ela ganha contornos de um sistema, que teve uma função na fase de acumulação original, mas que se tornou crescentemente anacrônico e incompatível com o próprio capitalismo (marxismo).

Nesse ponto, o conceito de segunda escravidão, ao assinalar o recrudescimento sem precedentes das formas escravistas, exatamente no momento em que o mercado mundial se expande sob a hegemonia da Grã-Bretanha, onde se desenvolve o cerne da Revolução Industrial, mostra toda sua força. A escravidão não é mais vista como uma entidade abstrata, sempre igual a si mesma, e, sem se confundir em sua configuração com o capitalismo, integra com ele o mesmo mundo, ainda que de forma complexa e contraditória. Capitalismo e escravidão, do ponto de vista de uma história teórica, passam a ser encarados como “formas específicas de produção ou troca social”, que não são entendidas

como unidades autônomas com sua própria história, mas sim como sendo formadas por meio de sua relação com a totalidade político-econômica mais ampla (p. 50).

Totalidade essa que afetava diretamente a vida de senhores, escravos e de suas sociedades de uma maneira geral. Essa totalidade, da qual a segunda escravidão foi parte integrante e ativa fundamental, e não apenas um apêndice ou sobrevivência colonial ou do Antigo Regime, foi, por sua vez, afetada pelas ações e lutas de senhores, escravos e demais atores sociais, políticos e culturais das sociedades escravistas americanas. Uma e outra coisa não podem ser ignoradas pelo historiador, sob a pena de se fazer uma história capenga, reproduzindo ou deixando intocados estereótipos e tradições sobre noções como liberdade, trabalho livre, liberalismo, capitalismo e, é claro, escravidão.

Se a perspectiva proposta é para valer, é preciso repensar o significado das lutas escravas no contexto da segunda escravidão, quais eram suas condicionantes e quais foram suas consequências. Uma tal diferença entre situações históricas, como aquela experimentada entre a “primeira” e a segunda escravidão, sem falar das diferenças mais específicas de cada contexto e conjuntura particulares, não pode ser completamente compreendida sem remissão ao quadro mais global da economia-mundo capitalista e da segunda escravidão.

Uma palavra final sobre a elaboração e a recepção do conceito de segunda escravidão, que vem sendo crescentemente discutido por vários historiadores, no Brasil e fora daqui.6 Como vimos, ele foi elaborado originalmente em 1988, tendo reaparecido na primeira edição do livro, em inglês, em 2004. Essa reaparição não foi apenas editorial. Em 1988, no auge da voga da micro-história, da virada linguística, do individualismo metodológico e de tudo mais que, no apogeu do neoliberalismo, prometia sepultar o marxismo e outras visões totalizantes da história, o texto de Tomich passou despercebido. Parece que agora as coisas se dão de forma diferente. A começar pelo neoliberalismo, que, além de se ver reduzido a uma doutrina fomentadora das altas finanças, mergulhou o mundo em uma crise sem precedentes nos últimos 70 anos. No campo da historiografia, as descrições densas do particular, do cotidiano e do miúdo, precedidas de rápidas pinceladas de contexto, acrescidas de duas ou três generalizações superficiais que eludem a necessidade da análise mais abrangente, aprofundada e concreta dos objetos históricos, cedem espaço. Se elas ajudaram a superar a antiga abordagem dos sistemas, de matriz sociológica, abstrata e lógica, hoje, já não são suficientes.7 Trata-se, agora, de buscar análises que se voltem para as conexões, os nexos e as contradições que compõem esses objetos enquanto totalidades estruturadas, produzidas pelas ações humanas ao mesmo tempo em que as condicionam. Isso é o que Pelo Prisma da Escravidão busca, indicando caminhos para que seja feito e bem feito.

1 Entre o início da década de 1980 e os dias atuais, entre palestras, cursos e como professor visitante, Tomich passou temporadas na Unicamp, na UFF, na UFRJ (no Museu Nacional) e na USP. Publicou vários artigos em português e, com Rafael Marquese, escreveu o capítulo “O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial de café no século XIX”, em Keila Grinberg e Ricardo Salles (orgs.), O Brasil Imperial, v. 2, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, p. 341-383.         [ Links ] 2 Dale Tomich, Through the Prism of Slavery. Labor, Capital, and World Economy, Lanham, Rowman & Littlefield, 2004.         [ Links ] 3 Francisco O. Ramirez (ed.), Rethinking the Nineteenth Century: Movements and Contradictions, Westport, Greenwood Press, 1988.         [ Links ] 4 Dale Tomich, “World Market and American Slavery, Problems of Historical Method”, em Manuel Ceda (ed.), Els espais del mercat, Valência, Diputació de Valencia, 1933. pp. 213-240.         [ Links ] 5 John H. Conrad & John R. Meyer, The Economics of Slavery and Other Studies in Economic History, Chicago, Aldine, 1964;         [ Links ] Robert W. Fogel & Stanley L. Engerman, Time on the Cross. The Economics of American Slavery, Boston, Little Brown and Company, 1974, 2 v.         [ Links ]; Eugene D. Genovese, The Political Economy of Slavery, Nova York, Random House, 1967;         [ Links ] Immanuel Wallerstein, The Capitalist World-Economy, Nova York, Cambridge University Press, 1979.         [ Links ] 6 Cf. Christopher Schmidt-Nowara, Empire and Antislavery: Spain, Cuba and Puerto Rico, 1833 – 1874, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1999;         [ Links ] Rafael Marquese, Feitores do corpo, missionários da mente. Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860, São Paulo, Companhia das Letras, 2004;         [ Links ] Ricardo Salles, E o Vale era o escravo – Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no Coração do Império, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008;         [ Links ] Michael Zeuske, “Comparing or interlinking? Economic comparisons of early nineteenth-century slave systems in the Americas in historical perspective”, in Enrico dal Lago & Constantina Katsari (eds.), Slave Systems. Ancient and Modern, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, p. 148-183;         [ Links ] José A. Piqueras (ed.), Trabajo Libre y Coactivo en Sociedades de Plantación, Madri, Siglo XXI, 2009;         [ Links ] Anthony Kaye, “The Second Slavery: Modernity in the Nineteenth-Century South and the Atlantic World”, Jornal of Southern History, vol. 73, n. 3, August 2009, p. 627-50;         [ Links ] Rafael Marquese, Márcia Berbel e Tâmis Parron, Escravidão e política. Brasil e Cuba, c.1790-1850, São Paulo, Hucitec, 2010;         [ Links ] Tâmis Parron, A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011;         [ Links ] Robin Blackburn, The American Crucible. Slavery, Emancipation and Human Rights, Londres, Verso, 2011;         [ Links ] Enrico Dal Lago, American Slavery, Atlantic Slavery, and Beyond. The U.S. “Peculiar Institution” in International Perspective, Boulder, Paradigm Publishers, 2012.         [ Links ] 7 A esse respeito, ver William Sewell Jr., Logics of History: Social Theory and Social Transformation, Chicago, University of Chicago Press, 2005.         [ Links ]

Ricardo Salles – Escola de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) – Rio de Janeiro (RJ) – Brasil.. E-mail[email protected].

Cuba, un régime au quotidien – BLOCH; LÉTRILLIART (Tempo)

BLOCH, Vincent; LÉTRILLIART, Philippe (dir.). Cuba, un régime au quotidien. Paris: Choiseul, 2011. 224 p. Resenha de: PRADO, Giliard da Silva. Lutas cotidianas sob um regime totalitário: relações entre a sociedade e o Estado em Cuba. Tempo v.19 no.34 Niterói jan./jun. 2013.

Os estudos acerca da experiência revolucionária cubana recentemente ganharam uma importante contribuição. Trata-se do livro “Cuba, un régime au quotidien” (Cuba, um regime no cotidiano), uma obra coletiva organizada por Vincent Bloch e Philippe Létrilliart que reúne textos sobre as permanências e transformações das relações entre sociedade e Estado em Cuba, discutindo os multifacetados aspectos que caracterizam as lutas e negociações cotidianas sob o regime político instaurado no país há pouco mais de 50 anos.

A análise do cotidiano cubano empreendida nesta obra é bastante plural e contempla todo o período revolucionário. Há, no conjunto de textos, tanto estudos centrados em fenômenos mais recentes e nas transformações que se acentuaram no decorrer das duas últimas décadas, após a queda do bloco socialista, quanto outros dedicados a uma análise de processos históricos de maior duração, que remontam ao período do triunfo revolucionário e acompanham as vicissitudes da experiência cubana até o século XXI. Sincronia e diacronia são conjugadas nessas análises.

Às diferentes temporalidades, soma-se a variedade de temas abordados e de perspectivas de análise, o que permite entrelaçar questões relativas à política, à cultura, à economia e sociedade cubana. Essa pluralidade é notada nos seis capítulos que compõem a obra. São eles: 1) Os dédalos do regime cubano, 1959-1989, de autoria de Vincent Bloch; 2) Os Vázquez: uma economia familiar em Havana, de Julia Cojimar; 3) Condenar e punir em Cuba: o sistema penitenciário sob o regime revolucionário, de Elizabeth Burgos; 4) Religião na Revolução: o retorno do catolicismo cubano, de Philippe Létrilliart; 5) Artistas e intelectuais cubanos: entre incertezas e tateamentos, de Yvon Grenier; e 6) Quando os rappers cubanos negociam com o Estado, de Sujatha Fernandes.

Para além da diversidade temporal e temática, merece destaque o princípio epistemológico que norteia a obra em seu conjunto: a ideia de que, do mesmo modo que as abordagens estruturalistas são insuficientes para dar conta da complexidade do real, a análise dos objetos micro-históricos próprios do cotidiano apenas faz sentido quando utilizada para pensar a relação da parte com o todo, isto é, para explicar a relação que cada um desses objetos de estudo possui com o funcionamento global do regime político cubano. Desse modo, longe de uma abordagem meramente descritiva, que se encarregaria tão somente de apresentar curiosidades, o que o leitor encontra neste livro são análises que buscam explicar os modos e as condições históricas da perpetuação da experiência revolucionária cubana.

A discussão acerca das bases da dominação exercida pelo Estado em Cuba está presente já no primeiro capítulo da obra. Em “Os dédalos do regime cubano (1959–1989)”, o sociólogo Vincent Bloch examina, por um lado, a linha ideológica e o imaginário político que orientam as ações do governo cubano no sentido de obter legitimidade e estabelecer normas que conduzam à maior “conformidade revolucionária”, condição imprescindível para que o regime político exerça o seu domínio e se perpetue no poder. Por outro lado, o autor demonstra que a lógica que preside essa conformidade revolucionária atende a interesses não apenas do Estado, mas também de segmentos da sociedade cubana, uma vez que cumprir amplamente as normas estabelecidas pelo regime é requisito fundamental para que os indivíduos possam ascender socialmente e obter capital político. Assim, quanto maior o engajamento revolucionário, maiores os benefícios e privilégios obtidos pelo indivíduo: acesso ao consumo de bens e a posições de mando.

Contudo, apesar de alguns segmentos sociais obterem vantagens em decorrência de sua adesão aos preceitos da Revolução, seria um equívoco pensar na existência da obediência total às normas instituídas. Isto porque tanto a intensidade do controle exercido pelo Estado quanto o cumprimento dessas normas pela sociedade cubana conheceram variações conforme a situação econômica do país em diferentes contextos históricos e a posição ocupada pelo indivíduo na pirâmide social. Nos períodos de penúria econômica assistiu-se a um maior descumprimento das normas revolucionárias, a uma intensificação das formas de insubmissão e da violação das leis por parte da sociedade. Já em relação ao Estado, verificou-se nesses períodos a aceitação tácita de que algumas normas fossem sub-repticiamente violadas, principalmente quando os praticantes dessas violações estavam no topo da hierarquia social (dirigentes do Partido Comunista, militares do alto escalão, etc.).

Esses contextos de crise, segundo Bloch, evidenciam que as estratégias de perpetuação da ordem revolucionária pelo Estado e as práticas de desvio em relação às normas pela sociedade cubana se imbricam nos jogos de linguagem em torno do verbo “lutar”. Em Cuba há, de acordo com o autor, um “campo lexical da luta” comum ao Estado e à sociedade. Na propaganda da Revolução, a “luta” está onipresente: luta contra a ditadura de Batista, luta contra o imperialismo norte-americano, luta contra as ameaças contrarrevolucionárias internas, luta pela manutenção das conquistas revolucionárias, etc. Também nos discursos cotidianos está presente o apelo à “luta”, termo que se presta a usos polissêmicos, estando associado quase sempre a “se virar”, “arranjar”, “resolver”, etc. Vê-se, neste caso, que o sentido da “luta” e a postura de “lutador” não estão relacionados à causa revolucionária, mas sim à ideia de não se resignar diante das adversidades cotidianas, de agir face às limitações impostas ou não solucionadas pelo regime, o que evidencia inventividade, por vezes delituosa, no comportamento social dos cubanos.

Esta inventividade que frequentemente extrapola os estreitos limites da legalidade socialista é abordada também no capítulo “Os Vázquez: uma economia familiar em Havana”. Nele, a antropóloga Julia Cojimar empreende um estudo da economia cubana atual em que, correlacionando aspectos micro e macroeconômicos, demonstra como se desenvolvem, sob uma economia estatal onipresente, economias alternativas, familiares e de vizinhança que se caracterizam por um sistema de compras e/ou de trocas praticadas no mercado negro. A partir do método de observação participante, a autora examina o cotidiano da economia doméstica de uma família cubana — cuja identidade real foi protegida sob a denominação fictícia de “Vázquez” —, apresentando algumas de suas estratégias de acesso ao consumo num cenário marcado pela penúria e pela escassez recorrente. Demonstra que, em sua busca por fontes de renda complementares para enfrentar a situação econômica, os cubanos se arriscam cotidianamente em atividades ilegais que devem escapar do controle exercido pelo regime.

As formas de controle e punição são temas do capítulo “Condenar e punir em Cuba: o sistema penitenciário sob o regime revolucionário”, de autoria da antropóloga Elizabeth Burgos, que examina os mecanismos por meio dos quais os líderes da Revolução instauraram um regime totalitário no país. Para ela, mais do que nas áreas de educação e saúde — bases da propaganda revolucionária —, é no sofisticado sistema de repressão e punição que está o mais exemplar sucesso do regime cubano. A autora afirma que o sistema punitivo cubano tem como finalidade, para além da disseminação do terror e da privação da liberdade, obter a lealdade e cooperação do prisioneiro com o intuito de fazê-lo aderir à ideologia oficial. Inspirada na perspectiva foucaultiana de uma “economia política do corpo”, enfatiza em seu estudo a atuação dos “plantados”, uma categoria de prisioneiros políticos anticastristas aos quais é oferecida a possibilidade de se livrarem dos maus tratos e de terem suas penas abrandadas desde que cooperem com o regime. Todavia, esses prisioneiros preferem continuar sendo submetidos aos maus tratos na prisão à adoção de quaisquer medidas de colaboração com o regime cubano, como, por exemplo, forjar uma autocrítica ou denunciar outros dissidentes. Ao agirem desse modo, os “plantados”, segundo Elizabeth Burgos, reafirmam seus posicionamentos políticos, permanecendo irredutíveis em sua postura de evitar qualquer forma de sujeição ideológica ao governo revolucionário.

A repressão e a marginalização às quais a Igreja Católica foi submetida ao longo da experiência revolucionária, bem como os esforços por ela empreendidos para reabilitar seu papel na nação cubana são analisados por Philippe Létrilliart em “Religião na Revolução: o retorno do catolicismo cubano”. Privilegiando em sua interpretação a ideia de “competição conflituosa”, que opõe a Igreja e o Estado no país caribenho, o autor argumenta que o regime não podia admitir a concorrência do catolicismo, uma vez que este teria em comum com o castrismo, entre outras características, a aspiração ao universalismo e a afirmação de uma transcendência dando significado à história humana e permitindo a legitimação simbólica de um poder. Segundo Létrilliart, num cenário marcado pelo sincretismo religioso e pelo crescimento da santería, a Igreja busca restabelecer a primazia do catolicismo por meio do papel de intermediação do diálogo entre a sociedade civil e o Estado, bem como da retomada de seu poder de influência na determinação das normas sociais e cívicas.

A regulação autoritária exercida pelo regime sobre a produção artística e intelectual em Cuba é tratada no capítulo “Artistas e intelectuais cubanos: entre incerteza e tateamentos”, em que o cientista político Yvon Grenier demonstra como são imprecisas e frequentemente mutáveis as linhas que demarcam as fronteiras simbólicas entre revolução e contrarrevolução. Utilizando-se da noção de “parâmetros”, o autor argumenta que o discurso metapolítico e fundador do regime está baseado em três aspectos da Revolução que não se deve questionar: a ideia de que se trata de um processo sem fim; as figuras dos líderes máximos (Fidel e Raul); e o princípio unitário. Já em relação aos critérios e parâmetros definidores do que é contrarrevolucionário, pairam as incertezas, uma vez que dependem do arbítrio do poder, variando conforme as circunstâncias de momento. Em sua análise do campo político-cultural cubano na atualidade, Yvon Grenier destaca o perfil pouco combativo dos intelectuais tradicionais, vislumbrando nos jovens músicos e artistas (rappers, grupos punk-rock, muralistas, etc.) as forças de protesto, os praticantes da resistência simbólica.

Uma análise da cultura hip-hop cubana como meio privilegiado de expressão e de resistência cultural é empreendida pela socióloga Sujatha Fernandes no capítulo “Quando os rappers cubanos negociam com o Estado”. Para além de apresentar as condições — econômicas, sociais e de expressão — muito específicas que marcam a emergência do rap cubano em meados dos anos 1990, a autora destaca as ambiguidades presentes nas relações entre os rappers e o Estado cubano, as quais são caracterizadas por negociações, subversões, mas também por cooperações conscientes com o regime. Entre as muitas particularidades que envolvem o rap na ilha caribenha está a menor pertinência, em relação a outros países, da divisão entre rappers comerciais e rappers undergrounds. Isto porque em Cuba são estes últimos que comumente se enredam nas relações do poder, produzindo em consonância com o discurso oficial do regime socialista e buscando que o Estado, em contrapartida, não apenas patrocine e promova a sua inserção nos espaços institucionais, mas principalmente atenda às suas reivindicações relativas às desigualdades raciais no país. De acordo com Sujatha, os modos mais ou menos autônomos com que são abordados temas como, por exemplo, as políticas raciais, o nacionalismo e o anticapitalismo apontam, a um só tempo, para a pluralidade e as especificidades do movimento hip-hop cubano.

Os seis capítulos que compõem a obra atestam as significativas contribuições por ela trazidas para a compreensão da vida cotidiana em Cuba no transcurso de mais de cinco décadas de experiência revolucionária. Não bastasse isso, eles ainda são acompanhados de um prólogo e um posfácio que enriquecem a publicação, permitindo perceber os aspectos que lhe conferem unidade, apesar da diversidade temática.

O historiador Rafael Rojas destaca, no prólogo, o descompasso e as contradições entre uma sociedade sob o signo da mudança e um Estado que permanece atrelado às mesmas premissas, instituições, líderes e ideologia do tempo em que foi instaurado o comunismo no país. Além disso, aponta como um dos grandes méritos de “Cuba, um regime no cotidiano” o fato de não apresentar as polarizações binárias que caracterizam a maior parte dos estudos sobre a Revolução Cubana: socialismo versus capitalismo, Cuba versus Estados Unidos, Cuba pré-revolucionária versus Cuba revolucionária.

No posfácio, o escritor Antonio José Ponte aborda a centralidade de José Martí — entronizado pelos cubanos como herói da independência nacional — no imaginário político do país, demonstrando como sua figura tem sido submetida às mais diversas apropriações com o fim de legitimar o regime castrista. Enfatiza ainda o fato de Martí ser evocado não apenas pelo governo revolucionário, mas também pelos grupos de oposição, o que indicaria as limitações de um imaginário político partilhado por forças antagônicas, uma vez que, em suas críticas ao regime, os dissidentes cubanos permanecem atrelados à reivindicação do mesmo referencial libertário que é utilizado por Fidel Castro em suas estratégias de legitimação da experiência revolucionária.

“Cuba, um regime no cotidiano” é leitura obrigatória para todos aqueles que querem pensar além do discurso oficial, que não se satisfazem com reducionismos e simplificações, com interpretações panfletárias e extremistas tanto por parte da esquerda quanto da direita. Trata-se, pois, de uma obra meritória, entre outras razões, pelo princípio epistemológico que a norteia; por superar os horizontes de inteligibilidade próprios dos tempos da Guerra Fria, mas ainda presentes em parte dos estudos recentes acerca da Revolução Cubana; e por apresentar as complexidades e singularidades desta Cuba multifacetada do século XXI.

Giliard da Silva Prado – Doutorando em História pela Universidade de Brasília, com estágio de doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS/Paris). E-mail[email protected].

Abipones en las fronteras del Chaco. Una etnografía histórica sobre el siglo XVIII – LUCAIOLI (Tempo)

LUCAIOLI, Carina P. Abipones en las fronteras del Chaco. Una etnografía histórica sobre el siglo XVIII. Buenos Aires: Sociedad Argentina de Antropología, 2011. 352 p. Resenha de KOK, Glória. Dinâmicas abipones nas fronteiras do Chaco no século XVIII. Tempo v.19 no.34 Niterói jan./jun. 2013.

Nas últimas décadas, publicações de historiadores, etno-historiadores e antropólogos lançaram novos olhares sobre as fronteiras da América do Sul.1 Superando as dicotomias resistência e aculturação e vencedores e vencidos, estudos recentes focalizaram o caráter multiétnico de territórios originalmente indígenas, os quais, imprecisos, flexíveis e porosos, configuraram-se como “zonas de contato”, “espaços socialmente construídos”. Nestes locais os povos nativos estabeleceram estratégias, relações e negociações internas e interétnicas com adventícios e diversos grupos indígenas durante o processo de conquista.

À esta linhagem de estudos, filia-se o livro da professora auxiliar do Departamento de Ciências Antropológicas da Facultad de Filosofía y Letras da Universidad de Buenos Aires (FFyL-UBA), Carina P. Lucaioli, intitulado Abipones en las fronteras del Chaco. Una etnografía histórica sobre el siglo XVIII. Fruto da tese de doutorado, sob a orientação da professora doutora Lídia Nacuzzi, a obra foi publicada pela editora da Sociedad Argentina de Antropología, em 2011.

Depois da leitura de documentos variados, manuscritos e impressos (atas, correspondências de religiosos e governadores, informes, entre outros) nos arquivos da Argentina, do Chile, do Rio de Janeiro, do Paraguai e da Sevilha, a autora realizou um primoroso estudo etno-histórico dos abipones. Este é um grupo nômade de caçadores e coletores da família linguística Guaycurúque, residente na região do Chaco, na Argentina. Com o intuito de desvendar as ações e as interações políticas dos nativos com os agentes coloniais, a autora dividiu o livro em quatro capítulos, iluminando as dinâmicas das fronteiras e as redes do Chaco no século XVIII.

O capítulo 1, “Los abipones en el Chaco austral: representaciones, recursos y usos del espacio”, traz uma análise rica das populações indígenas que viviam no Chaco, entre as quais os abipones, das estratégias de adaptação e dos usos do território pelos colonizadores e nativos, além da construção dos distintos imaginários e discursos elaborados em torno do espaço chaquenho.

La construcción del Chaco como espacio ajeno al dominio colonial, tierra de indígenas no dominados, se desenvolvió de manera simultánea al proceso de configuración y consolidación de sus distintos espacios fronterizos: la frontera occidental en la jurisdicción del Tucumán, la frontera del Paraguay y la frontera santafesina (p. 21).

Em virtude da riqueza de recursos, aspectos geográficos e seus habitantes, o espaço do Chaco tornou-se “una pieza clave en el mantenimiento de la autonomía indígena, desde donde los grupos podían ofrecer resistencia al avance colonial” (p. 65).

Organizados em “cacicados“, que, por sua vez, dividiam-se em “parcialidades” (riikahé, nakaigetergehé e yaaukanigá) baseadas em grupos familiares móveis formados por laços de parentesco e alianças matrimoniais, os abipones enfrentaram, em meados do século XVIII, as políticas fronteiriças de 1751 que tinham o objetivo de “sedentarizar” e “civilizar”, ou, nas palavras do documento, “conquistar infieles, descubrir sus tierras, fundarles pueblo, mantenerlos en él” (p. 75).

Em resposta, os abipones, ora confederados a outros grupos, como calchaquíes e mocovies, ora solitários, fizeram guerras, assaltos e malocas (ataques surpresa com pilhagem de bens europeus) em cidades, fazendas e povoados fronteiriços. “Las alianzas interétnicas eran tan móviles como lo era la posibilidad de renovar las alianzas políticas y sociales de carácter segmentario” (p. 81), conforme explica a autora.

No entanto, os abipones não fizeram apenas uso da violência em suas relações fronteiriças, foram também protagonistas de acordos que garantiram momentos pacíficos nos quais se intensificaram os intercâmbios comerciais de bens incorporados dos europeus — cavalos, gado, cativos, moedas de ouro e prata, vestimentas —, a prestação de serviços e a circulação de pessoas nas fronteiras.

O capítulo 2, “Las reducciones jesuítas de abipones: estratégias, interacción e intercâmbios”, enfocou os diferentes processos de negociação que deram lugar à fundação das reduções de abipones na região do Chaco, inaugurando uma nova etapa de relações interétnicas. Cada redução teve uma trajetória própria, liderada por caciques, e formou um enclave gerador de formas de interação inéditas, com distintos setores coloniais e grupos indígenas. Como afirma Carina Lucaioli:

Portales entre un mundo colonial y un espacio indígena, sítios mestizos casi por definición, propiciaron la circulación y el intercambio de bienes, personas y ideas. Así planteadas las cosas, las reducciones generaron nuevas posibilidades sociales, económicas y políticas que los abipones supieron amoldar a sus proprios intereses en complejos procesos de ‘aculturación antagônica’ (p. 96).

Na ocasião da Fundação de San Javier, em 1743, a primeira missão de mocovíes no Chaco austral, os pactos e acordos começaram antes do século XVIII entre distintos atores e setores coloniais. Como bem observa a autora, não se trata de pensar em uma política imposta aos grupos derrotados.

Las reducciones brindaron, a muchos abipones, mayores posibilidades para el acceso a determinados recursos y permitieron otras actividades económicas — sobre todo, las relacionadas con el gana do vacuno —, así como instauraron nuevas vías de interacción más estrechas y asiduas con las ciudades coloniales (p.105).

A escolha do espaço das missões ficou a cargo dos índios que optaram por locais distantes dos povoados espanhóis, resguardados por rios, protegidos de possíveis incursões militares, expedições punitivas e ataques de outros grupos indígenas. Na história dos abipones, portanto, a escolha do espaço foi crucial para a manutenção da mobilidade e da autonomia da população das missões.

O capítulo 3, “El liderazco indígena: formas de autoridade, tratou das trajetórias particulares dos caciques, escolhidos tanto por direito hereditário como por méritos guerreiros, desvendando suas estratégicas políticas de atuação nas fronteiras, muitas vezes ambíguas, como a aprendizagem de idiomas e das formas de diplomacia espanhola, posicionando-os ora como amigos, ora como inimigos dos espanhóis. Para os povos nativos, esclarece a autora, as missões constituíram “espacios de centralización y distribución e intercambio de determinados recursos económicos que los jesuitas y funcionarios coloniales otorgaban a los indios reducidos” (p. 209).

No último capítulo, “Relaciones interétnicas al calor de las armas: amigos, enemigos, aliados y cautivos”, Carina Lucaioli traça, a partir da dinâmica da violência, a história do contato entre abipones e ibero-americanos, da qual se destacam a guerra colonial, a guerra indígena e as malocas. Segundo a autora, a violência era o principal recurso utilizado pelos abipones no período colonial, que corria por vias paralelas ou sobrepostas, já que muitos acordos desembocavam em enfrentamentos armados.

Perspicaz no entendimento da engrenagem das dinâmicas e das redes mercantis dos grupos abipones sob a perspectiva das formas de interação com a sociedade colonial nos espaços fronteiriços do Chaco no século XVIII, Carina Lucaioli nos brinda com uma obra de referência para os estudos de história indígena, etnografia e antropologia históricas e história colonial das terras baixas da América do Sul. Eficaz no desmonte de ideias cristalizadas, a autora destacou, nas entrelinhas da documentação, a mobilidade, as identidades coletivas forjadas e — entre formas de violência, pactos, negociações e acordos —, a construção dos rumos da história dos abipones na gestação do mundo colonial.

1 Nádia Farage, As Muralhas do Sertão: os povos Indígenas no Rio Branco e a Colonização, Rio de Janeiro, Paz e Terra/Anpocs, 1991; Lídia Nacuzzi, Identidades impuestas, Buenos Aires, Sociedad Argentina de Antropologia, 1998; Guillaume Boccara, Los vencedores: los mapuche en la época colonial, Santiago de Chile, Instituto de Investigaciones Arqueológicas y Museo, 2007; Silvia Ortelli; Glória Kok, O Sertão Itinerante: expedições da Capitania de São Paulo no século XVIII, São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2004; Elisa F. Garcia, As diversas formas de ser índio, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional de Pesquisa, 2007; Maria Regina Celestino Almeida; Sara Ortelli, “Atravesando fronteras. Circulación de población en los márgenes iberoamericanos. Siglos XVI-XIX (primera y segunda parte)”, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates 2011, 2012, Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/62628>, Acesso em: 07 de fevereiro de 2013.

Glória Kok – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); estágio de pós-doutorado em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail[email protected].

 O expresso Berlim-Bagdá. O Império otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918 – McMEEKIN (Tempo)

McMEEKIN, Sean. O expresso Berlim-Bagdá. O Império otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918. São Paulo: Globo, 2011. 495 p. Resenha de BERTONHA, João Fábio. O Império otomano e a Primeira Guerra Mundial. Tempo v.18 no.33 Niterói  2012.

Sean McMeekin é autor de vários livros sobre as origens da Primeira Guerra Mundial e sobre a Revolução Russa, tendo publicado alguns trabalhos de grande importância – ainda que controversos – sobre os objetivos do Império czarista na guerra, suas responsabilidades na eclosão daquele conflito e também sobre os tratados de paz entre os alemães e os bolcheviques em 1918.

Seu novo livro – O expresso Berlim-Bagdá. O Império otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918 (São Paulo: Globo, 2011. 495 p.) – traz a seus leitores uma temática tradicionalmente negligenciada no mundo ocidental, ou seja, a participação do Império turco-otomano na guerra de 1914-1918 e, especialmente, a ação alemã no Oriente Médio durante o conflito. Nesse sentido, ele aborda não apenas o esforço alemão para, com a ferrovia Berlim-Bagdá, colocar o território turco-otomano em sua área de influência, como também a tentativa de Berlim de instigar os muçulmanos que viviam nos Impérios russo, francês, inglês e italiano a se insurgirem contra seus dominadores por meio da bandeira da jihad islâmica.

Os alemães gastaram, realmente, muito tempo, esforço e, acima de tudo, dinheiro para dar conta desses objetivos. O autor calcula que, dos cerca de 200 bilhões de marcos (5 trilhões de dólares, a preços de hoje) gastos pela Alemanha em seu esforço de guerra, cerca de 1,5%, ou seja, 3 bilhões de marcos (75 bilhões de dólares), foi utilizado para sustentar o esforço de guerra turco ou para tentar espalhar a bandeira da jihad pelo amplo território do Marrocos à Índia. Eles tentaram mobilizar os xiitas no Irã, várias tribos afegãs, árabes ou sudanesas e os sanussis no Norte da África.

Apesar de tanto ouro, dinheiro e armas alemãs fluírem para esses grupos e de eles terem conseguido que o califa turco e altos clérigos xiitas declarassem a guerra santa, os resultados obtidos foram escassos. Ao contrário do que eles imaginavam, ou seja, de que os muçulmanos, movidos por seu fanatismo religioso, incendiariam a região, quase nada foi em frente. Mesmo a ferrovia, que, com seus 3.200 quilômetros, deveria ter sido capaz de reforçar a autoridade do sultão em todo o seu território, permitir a integração econômica turco-alemã e dar suporte logístico para ações militares na direção do Egito ou do Irã, não ficou pronta, em sua totalidade, a tempo.

Ao contrário do que o título sugere, assim, o livro não se limita a narrar as peripécias na construção da Berlim-Bagdá, mas acaba por abordar temas pouco conhecidos, especialmente para os que leem unicamente em português, como o envolvimento otomano na Primeira Guerra Mundial, sua participação nesta, a história do Islã etc. Também o tema do genocídio armênio é abordado pelo autor, com o uso de fontes russas e turcas.

Alguns desses temas merecem destaque. A decisão de Constantinopla de entrar na guerra ao lado de Berlim parece lógica, dados os laços que uniam os dois países desde o fim do século XIX e a oposição de ambos aos futuros Aliados. O autor demonstra, contudo, que a relação bilateral era muito mais dinâmica, com muitas idas e vindas. Ao final, a posição pró-Alemanha triunfou no governo turco-otomano, mas essa decisão não estava dada desde o início, e o governo turco hesitou muito antes de se comprometer.

Durante a guerra, igualmente, apesar de aliados, alemães e turcos viveram uma relação de amor e ódio, com tensões culturais, interesses conflitantes e desconfianças mútuas envenenando o relacionamento. Com as derrotas, o ressentimento mútuo apenas cresceu e, na disputa pelos espólios do Império russo em 1918, soldados turcos e alemães chegaram a trocar tiros perto de Baku, no Azerbaijão.

Outro aspecto da ação ocidental no Oriente Médio naqueles anos abordado pelo autor é o sionismo. Ele indica como, depois da tragédia do Holocausto, nós tendemos a esquecer que a sede mundial do sionismo no período anterior era a Alemanha, e que esse foi, em linhas gerais, apoiado pelo governo do Kaiser, ainda que por motivos instrumentais. Os ingleses abraçaram, até certo ponto, a causa sionista apenas durante a guerra, para tirar essa bandeira dos alemães, gerando um movimento antissemita árabe que depois, paradoxalmente, se ligou ao nazismo de Hitler, como no caso do mufti de Jerusalém e na criação das divisões muçulmanas da Waffen-SS.

As informações que ele levanta sobre o fronte caucasiano entre russos e turcos durante a guerra também são inéditas para os não especializados, e suas análises das fragilidades militares do Império turco-otomano são, no mínimo, instigantes, com muitos dados sobre as dificuldades dele de manter o fluxo de recrutas no Exército, financiá-lo e armá-lo.

Pensando nas conexões entre o período que ele estuda e o momento atual, algumas questões se tornam evidentes. Uma delas é, utilizando termos contemporâneos, que instrumentos de soft power, como subversão política de minorias em outros Estados ou apelos à solidariedade ideológica ou religiosa em geral, não funcionam a não ser que sejam apoiados e sustentados por elementos de hard power, como dinheiro, armas, vitórias militares etc.

Os alemães tentaram várias estratégias desse tipo durante a Primeira Guerra, como a tentativa de jogar o México contra os Estados Unidos, a exploração do sionismo no Império russo e na Palestina ou a deflagração da jihad no mundo islâmico, mas tudo isso falhou por falta de alicerces materiais mais sólidos, mesmo com todo o esforço alemão. Como indica o autor, a única aposta alemã em termos de subversão interna que deu certo foi o envio de Lenin para a Rússia e o apoio aos bolcheviques entre 1917 e 1918, mas foi algo isolado e que só funcionou pelas condições especiais da Rússia naquele momento.

Outro erro alemão que continuou a ser repetido pelas outras potências imperialistas que tentaram conquistar posições na região nas décadas seguintes foi o desconhecimento da cultura e das tradições locais. Os alemães não entenderam que o que movia as tribos árabes eram seus interesses próprios, e não um mítico apelo à solidariedade islâmica ou a um obscuro nacionalismo árabe. Ao contrário do que aparece em filmes como Lawrence da Arábia, o nacionalismo árabe era algo incipiente, e as tribos estavam mais interessadas em dinheiro, ouro, armas, posições sociais e, em alguns casos, a defesa de sua visão do Islã do que em conceitos vagos como o nacionalismo.

Os alemães também não entendiam as sutilezas da jurisprudência ou da fé islâmicas ou as diferenças entre sunitas e xiitas, e isso os levava a erros de avaliação. Os militares americanos no Iraque e no Afeganistão também aprenderam, a duras penas, como é lidar com sociedades não mais puramente tribais, mas nas quais vínculos além da nacionalidade ou da política ainda são fortes e, muitas vezes, contraditórios. Para elas, ainda hoje, muitas vezes a demonstração de poder e a disponibilidade de dinheiro para suborno ainda são mais importantes do que ideais vagos como democracia ou Estado de direito.

É muito interessante igualmente quando ele comenta como vários problemas do Oriente Médio de hoje tiveram sua origem na tentativa alemã de controlar a região e como certos padrões e questões estão sempre presentes na realidade local. Vale destacar, nesse ponto, suas reflexões sobre como o obscurantismo religioso sempre serviu, na região, para sufocar ideais progressistas e como o disfarce da modernidade anti-islâmica foi instrumental para certos regimes reprimirem as populações locais em nome do laicismo. Ele também menciona como a decisão inglesa de bancar os wahabitas na hoje Arábia Saudita, em boa medida para combater as pretensões de Constantinopla e Berlim na região, gerou o regime saudita atual, uma das fontes centrais da versão contemporânea mais reacionária do Islã. Para quem acompanha o noticiário recente sobre o mundo árabe, tais reflexões são mais do que atuais.

Claro que várias questões e hipóteses que ele levanta podem levar a questionamentos e a dúvidas. Ele deixa a entender, por exemplo, que a Drag nach Osten alemã visava essencialmente ao espaço muçulmano e que os interesses alemães na Europa do Leste só se tornaram predominantes com a oportunidade única do colapso russo em 1917. Isso ignora a larga tradição alemã de olhar para o Leste europeu como sua futura base de poder imperial e superestima a ambição alemã pelo território turco-otomano. Os alemães, provavelmente, gostariam de ter tudo, formando um império que iria de Berlim a Moscou e Teerã. Mas a prioridade sempre foi o Leste europeu, e as ambições no Oriente Médio, a meu ver, eram acessórias. Se os alemães tivessem de escolher entre Kiev e Cairo, as planícies ucranianas seriam as escolhidas.

Ele também peca quando tenta, em poucas páginas, resumir o nazismo a uma explosão de antissemitismo autopiedoso, a forma com que os alemães formataram seu ressentimento pela derrota na Primeira Guerra. Que o ódio ao judeu foi reforçado no pós-1918 em boa medida como uma tentativa de explicar como a grande Alemanha poderia ter sido derrotada é um fato, mas essa explicação reduz a questão do antissemitismo nazista a um quase nada, ignorando séculos de antissemitismo, racismo científico etc.

O livro também traz alguns equívocos de tradução e vários erros tipográficos que poderiam ter sido evitados por uma revisão mais cuidadosa. O autor também merece questionamentos por sua tendência de buscar “complôs” e intrigas em toda parte, e fica evidente no livro seu tom fortemente pró-turco e antirrusso. Ele parece, nesse e em outros livros, fazer o mesmo que Fritz Fischer e sua escola fizeram com a Alemanha décadas atrás: identifica na Rússia a grande culpada da guerra e relativiza a ação dos outros, como a Alemanha e o Império turco-otomano, como mais reativas do que ativas. Isso forma uma contradição, aliás, com a tese do próprio livro, que trabalha, como visto, com os projetos e esforços alemães naquela região, os quais, muitas vezes, respondiam aos outros atores (russos, ingleses e franceses), mas não de modo exclusivamente defensivo ou reativo.

Mesmo assim, suas hipóteses são, em geral, consistentes, calcadas em um número imenso de fontes coletadas em arquivos austríacos, franceses, ingleses, americanos e, especialmente, alemães, turcos e russos. Um esforço de pesquisa e linguístico que pode ser questionado, em alguns aspectos, em termos de análise, mas que deve e pode ser valorizado, já que escapa da armadilha de tentar abordar um tema multinacional sem o uso de fontes de vários países.

Enfim, não é sempre que eu, que já estudo temas ligados aos impérios, à Rússia e à Primeira Guerra Mundial há vários anos, consigo encontrar um livro que me forneça uma nova perspectiva desses temas e/ou que me faça aprender realmente algo novo sobre eles. Foi esse o caso, contudo, do livro de Sean McMeekin, e é por isso que recomendo sua leitura, o qual só tem a acrescentar, mesmo que não se concorde com todas as suas propostas para o entendimento do tema e do período.

João Fábio Bertonha – Doutor em História pela Unicamp, com estágios de pós-doutorado na Università degli Studi di Roma e na Universidade de São Paulo; pós-graduado em assuntos estratégicos internacionais pela National Defense University (EUA); professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá e pesquisador bolsista do CNPq. E-mail: [email protected].

História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna – MONTEIRO; MATTOSO (Tempo)

MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Org.); MATTOSO, José (Dir.). História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011. 494 p. Resenha de: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Do privado ao oculto. Tempo v.18 no.32 Niterói  2012.

O segundo volume da coleção editada pelo Círculo de Leitores tem como referência a edição francesa de 1986. Mas, escrito em outro momento e sobre o contexto mais delimitado de Portugal na época moderna, o livro organizado por Nuno Monteiro, sob a direção de José Mattoso, evita os paradigmas do Estado justiceiro e financista, bem como da família moderna, para explicar o surgimento de uma suposta esfera privada em Portugal, contraposta à pública. Na introdução, Monteiro alerta para a distinção entre os dois âmbitos, só consagrada na contemporaneidade. Conscientes do anacronismo da proposta para o período, os autores esmeram-se para abordar temas hoje considerados da vida privada, mas que na época moderna, em Portugal, não o eram. Desse modo, o volume confronta os modelos propostos por Habermas, Elias ou Ariès com investigações recentes da historiografia portuguesa. Questionam-se o teleologismo da ideia de modernização e a aplicação de uma cronologia de matriz francesa na história de Portugal, em que a afirmação da monarquia não foi linear, e a difusão da leitura e da escrita, limitada à época estudada. Trata-se, assim, de contemplar os temas questionando sua procedência. Essa é uma característica do livro, em um entrecruzar de teoria e empiria que marca o ofício do historiador. Se os portugueses modernos não viajaram muito a outros reinos europeus, circularam pela Espanha durante a união das coroas e pelos espaços ultramarinos, construindo, também, sua privacidade integrada ao mundo colonial, em especial à América portuguesa. Procurou-se, ainda, não escrever uma história do cotidiano ou da cultura material, embora a fronteira entre esses aspectos e a “vida privada” fosse tênue.

O volume em tela divide-se em cinco partes. A primeira trata dos poderes normatizadores da monarquia e da Igreja – sobretudo pós-tridentina. Com dois capítulos de António Manuel Hespanha e um de Joaquim Ramos de Carvalho, salta aos olhos a discrepância de abordagens. Hespanha adota a macroanálise para explicar a importância da ordem, do controle e do autocontrole no mundo ibérico, em uma sociedade que vigiava a si mesma. E particulariza os juristas, detentores dum saber especializado e de cargos na monarquia, como grupo social acima da pluralidade de poderes. Os juristas integravam uma cultura escrita afinada a um mundo dominado pelo direito em latim – uma língua quase sacral. O discurso jurídico era meio de distinção social e de eficácia da lei. Já Ramos de Carvalho analisa a Igreja, os indivíduos e os territórios de forma mais concreta, com riqueza factual e alusões a comportamentos em que o privado era associado ao ilícito ou oculto, em meio a visitas pastorais, devassas, denúncias e castigos. Nesse âmbito, as determinações tridentinas não encontraram oposição do poder régio em Portugal, diferentemente de outros países europeus. Constituía-se, assim, uma sociedade em que a articulação entre o privado e o público marcava-se pelas concepções de salvação e pecado.

Na segunda parte, que analisa as relações entre indivíduos e famílias, Isabel dos Guimarães Sá considera o tratamento distinto da infância por parte dos pais em relação à mocidade, quando a expectativa de morte dos filhos enfim diminuía. Os jovens portugueses não teriam muita margem de decisão: os primogênitos estudavam pouco devido ao sistema de morgadio, as viagens europeias não eram frequentes, tampouco os manuais de civilidade. Os das camadas populares eram amamentados pelas mães biológicas, e a proliferação do abandono de crianças expostas geraria o sistema da roda em 1783. Em vários tópicos, a autora relativiza as ideias propostas por Ariès, pois, no que toca às crianças, a esfera familiar passava mais ao controle público da Igreja ou da coroa. Por sua vez, Ramos de Carvalho aborda as sexualidades sob o prisma do “padrão de casamento europeu” vigente em Portugal. Nessa lógica, faz sentido o relato da mulher mais velha e órfã em Soure, ao início do século XVIII, que consumara relações sexuais antes do casamento para conseguir um marido improvável. A vida sexual baseava-se no controle dos instintos, mediante o casamento tardio, a contracepção e a pressão da Igreja. No entanto, o sistema permitia conflitos e hesitações em torno da sexualidade ilegítima. A esfera familiar como entrave ao privado retorna no capítulo de Monteiro sobre a casa nobre – acepção diferente da “família moderna” e defendida pelo autor como central na sociedade estudada. Contrariando a ideia de que os nobres acompanhavam as transformações sociais e psicológicas dos séculos XVII e XVIII, Monteiro observa o controle dos casamentos pela monarquia portuguesa no período, com o fortalecimento da primogenitura e a nobreza ou fidalguia transmitidas por linha paterna ou materna – diferentemente de outros países europeus. Mas a diversidade não seria pensada em termos de atraso ou situação periférica, pois no século XVI a Península Ibérica era centro de referências.

A terceira parte é a mais longa do livro, com experiências do privado em vários espaços. Pedro Cardim estuda a corte régia com referência inequívoca à teoria de Elias, inclusive no tocante às relações entre indivíduo e sociedade. Indaga-se até que ponto esse modelo francês seria pertinente a Portugal, onde não havia nobreza de corte até meados do século XVI e onde a austeridade dos primeiros reis Braganças produziu uma corte pouco sofisticada no XVII. Supõe, assim, que a afirmação da corte lusa como arquétipo social foi mais gradual que em outros reinos europeus. Não obstante, concede atenção a cartas de cortesãos, reis e rainhas, a áreas reservadas do palácio, à vida familiar e de corte, por fim, a ministros “privados” ou favoritos régios. Em seguida, Mafalda Soares da Cunha e Nuno Monteiro voltam ao tema das “grandes casas”. Em Portugal, elas tiveram origem em uma mercê régia e confundiam-se com os fidalgos convocados para assembleias de cortes. No século XVII, os principais nobres portugueses passaram a residir em Lisboa. Embora não fossem refinadas, as grandes casas tinham vários andares e muita gente: senhores, filhos sucessores (mesmo casados), irmãos, tios e criados. O tamanho da criadagem relacionava-se com a importância do titular da casa; de modo semelhante ao ocorrido em Madri, mas diferente dos casos inglês e francês. Em termos de divisões internas, constata-se um aumento dos corredores e do espaço “privado”; mas a cozinha continuava imensa. Não havia apego às artes, e eram poucos os nobres partícipes de academias literárias. A análise das bibliotecas e coleções foi prejudicada pelo terremoto de 1755.

Também na terceira parte, Fernanda Olival ocupa-se dos lugares do privado nos grupos populares e intermédios. Na difícil tarefa de estudar segmentos sociais tão heterogêneos, a perspectiva de encontrar “muita gente em uma só casa” é detalhada pela autora ao lidar com registros paroquiais e concelhios de vários pontos do país. Mas os agregados não eram apenas consanguíneos: aprendizes moravam com seus mestres; caixeiros, com os mercadores. Em todo caso, a dimensão de uma família seria semelhante à média europeia, de quatro a seis pessoas. No interior das habitações, a privacidade era reduzida em relação à rua pelas janelas sem vidros, e aos vizinhos, pelas frestas. As divisões internas variavam, sendo também analisadas por áreas geográficas portuguesas. Olival envereda, então, pelo uso dos colchões, esteiras, leitos, estrados, oratórios e “privadas” – no que flerta com a cultura material. No campo da higiene pessoal, vale-se de exemplos franceses para constatar sua precária existência em Portugal, mediante inventários e tombos. A casa dos setores médios e populares era mais abrigo que refúgio de intimidade, enquanto o “privado” era associado ao interdito ou velado. A propósito, outro capítulo de Isabel Sá compreende os ambientes que alteravam a identidade de seus internos. Nos conventos femininos, entre clarissas e carmelitas descalças, a autora analisa a dependência de esmolas das primeiras, a relação com o século, as beatas, os princípios de entrada em uma ordem religiosa. Aborda, então, a prática do cilício e as disciplinas, a roda e o ralo como meios de comunicação com o exterior, e a moda freirática nos séculos XVII e XVIII. Sim, muitas freiras eram cultas e atraíam os homens. Mas a escrita conventual podia relatar experiências místicas arriscadas à perseguição inquisitorial, sobretudo se vindas de cristãs-novas. Sente-se falta, aqui, da menção aos conventos masculinos. Com consultas às obras de Francisco Manuel de Melo e Rafael Bluteau, os recolhimentos com estada provisória para mulheres também são contemplados, bem como as casas de misericórdia, sua distribuição de dotes e a assistência em segredo aos “pobres envergonhados” – diferentes dos que expunham a miséria nos hospitais. Misericórdias que também assistiam aos presos, pois nos cárceres portugueses a segregação não era total. Mas as condições de higiene das prisões eram péssimas, e nelas vigia a mistura de crimes e condições, albergando inclusive loucos.

Portugal foi dos primeiros países a valer-se da pena do degredo, em uma hierarquia de lugares: do degredo interno ao Brasil, até as ilhas de São Tomé e Príncipe e África. Ainda na terceira parte, viaja-se para a América portuguesa, pelo recorte feito por Laura de Mello e Souza ao relatar aspectos da vida privada dos seus governadores no século XVIII. Até meados desse século, para esses homens o novo cargo significava a ruptura com a vida familiar, a solidão combatida no trabalho. Sentiase medo do desconhecido, do clima, das revoltas, das expedições. A autora explora os cardápios dessas aventuras pelo Sertão, os alimentos dos matos e a penúria de meios. Quanto às casas desses governadores, só por eufemismo eram chamadas “palácios”. Nesse tópico, é pena não se ter explorado a escravidão doméstica. Os administradores criavam, pela correspondência, uma solidariedade com colegas de governo no interior do Brasil, ou com os que estavam de passagem vindos da África ou da Índia. Forjavam-se, assim, relações pessoais: as cartas do marquês de Lavradio, vice-rei no Rio de Janeiro, mostram como ele escrevia menos aos amigos da corte e cada vez mais aos governantes de outras regiões, de quem se sentia mais próximo. O que era público tornava-se privado.

No único capítulo da quarta parte, João Luís Lisboa e Tiago C. P. dos Reis Miranda dedicam-se aos usos da leitura e da escrita. De forma original, relativizam as diferenças entre manuscrito e impresso. Mas o impresso, mais que o manuscrito, forçava a entrada do livro nos espaços privados. Analisam as novas formas de sociabilidade em torno da escrita, enquanto a leitura tornava-se individualizada e silenciosa. Contudo, são atentos à alta “iliteracia” em Portugal no contexto do sul europeu, diferenciando o saber assinar do escrever e ler. Mas, em parte devido a reformas clericais que repercutiam no ensino, o público leitor era alargado. Com mais escolas, aprendiam também os de novas profissões, além das moças, que passavam a escrever. Surgiam, assim, os gostos literários: nas bibliotecas dos juristas, os livros de direito, história, política e administração; já os nobres eram mais ecléticos, enquanto os romances agradavam aos mercadores. O apreço pela posse dos livros fica evidente nas inscrições encontradas em alguns deles, ameaçando quem os perdesse. Envereda-se, então, pelos usos da correspondência, na preocupação com o estilo das cartas próprio de uma sociabilidade cortesã, familiar ou amical. Desse modo, a publicação de cartas é contraposta às que deveriam permanecer secretas; por exemplo, na conjuntura da prisão dos Távoras.

A última parte contrapõe velhas e novas relações entre vida privada e política. Mafalda Cunha e Nuno Monteiro estudam as mobilizações de nobres e comunidades. Definem um contexto paradoxal, com persistências e novidades em relação ao medievo: os conflitos políticos continuavam pulverizados, mas as demandas eram, então, dirigidas aos tribunais régios – e não mais às cortes. A dissimulação era admissível para alguns, como resguardo de oportunidade, reveladora da virtude da prudência. Em decorrência, havia grande concorrência social, indissociável da “microconflitualidade”. A exposição esquemática ao início do capítulo ganha vida com a exposição de casos. Entra-se, assim, nas brigas de senhores, suas criadagens e clientelas nos séculos XVII e XVIII em Lisboa, quadro que pode explicar a inexpressividade de duelos e grandes motins em Portugal à época. Por fim, Maria Alexandra Lousada aborda o espaço público luso setecentista nas novas sociabilidades culturais, mormente em academias, salões e cafés – espaços “informais” distintos da corte e do governo. Justifica, assim, o não tratamento das maçonarias no capítulo, tidas como grupos formais. O argumento é frágil, uma vez que as tardias academias portuguesas guardavam forte relação com o poder régio, e as maçonarias eram sociedades secretas. Não obstante, as várias remissões a Habermas fazem mais sentido neste último texto, ao captar suas definições de “público” e “burguês”. A autora situa o debate historiográfico com interpretações díspares sobre a vida cultural em Portugal ao fim do Antigo Regime. Se os trabalhos sobre academias literárias são bastante conhecidos, salta aos olhos a análise das assembleias – mais mundanas e menos literárias que os salões – e dos outeiros – reuniões poéticas nas grades de conventos femininos. Adentramos, enfim, os cafés do final do século XVIII, com Bocage e a boemia literária lisboeta, sob a vigilância do intendente Pina Manique. Embora eles não tenham originado clubes como em Londres ou Paris, constituíam um espaço “semipúblico” fora da influência acadêmica ou aristocrática. Neles, os atos de governo eram comentados.

Seria desejável, no decorrer do livro, um maior cuidado na uniformidade do uso de maiúsculas ou minúsculas nos nomes de instituições, épocas etc., além de um apreço da editora pela reforma ortográfica, que beneficia todo o mundo lusofônico forjado por Portugal na época moderna. Apesar das lacunas temáticas verificadas ao longo da obra, algumas justificadas pela dificuldade das fontes, outras revelando adequação às especializações dos autores, o volume organizado por Nuno Monteiro sobre a vida privada no Portugal moderno possui um grande mérito, porque consegue transpor para a especificidade portuguesa da época conceitos que não foram pensados para ela, sabendo-os discutir e problematizá-los. Faz despontar, assim, uma privacidade lusa refém da conversão forçada ao catolicismo e das disposições de Trento, bem como da opulência de algumas casas nobres que sufocava, justamente, esse âmbito particular. Tal engenho decorre em parte da capacidade de pesquisa de muitos autores, e de sua erudição. Não obstante, a passagem de abordagens entre o abstrato e o concreto é, por vezes, abrupta na obra, e em alguns momentos não há harmonia dentro de um mesmo capítulo. Ainda assim, louva-se o empenho da equipe de autores – em geral, mais afeita ao signo da alteridade do “Antigo Regime” do que à etiqueta progressista de “Idade Moderna” que sela a obra – em manejar com habilidade esse deslocamento conceitual. Resta saber se a historiografia francesa contemporânea hoje produziria um volume bastante diferente daquele de 1986, ou os modelos pioneiros permanecem com a sua força para inspirar trabalhos tão interessantes.

Rodrigo Bentes Monteiro – Professor-doutor da Universidade Federal Fluminense.

Linguagens e comunidades nos primórdios da Idade Moderna – BURKE (Tempo)

BURKE, Peter. Linguagens e comunidades nos primórdios da Idade Moderna. São Paulo: Unesp, 2010. Resenha de: WEBER, Regina. Discussões preciosas, interlocutores ausentes. Tempo v.18 no.32 Niterói  2012.

Neste livro, que resulta de um conjunto de ensaios originados de palestras, publicado em inglês em 2004, mais uma vez Peter Burke desenvolve um tema com sua peculiar erudição, expondo inúmeras referências que embasam seus argumentos.1 O autor nos faz compreender, por exemplo, como o latim, a língua universal na época (cap. 2), mesmo sofrendo a competição dos vernáculos em cada país, teve uma sobrevida como língua dos círculos diplomáticos porque neutralizava a competição pela hegemonia cultural, principalmente por parte do italiano, do espanhol e do francês, até ser superado por este último como língua diplomática. Lançando mão de pesquisas linguísticas, ele situa o aumento do repertório dos vernáculos e ficamos sabendo das contribuições de Thomas More e Shakespeare para o inglês (cap. 3), e também que essa língua, até o século XVIII, possuía pouca expressão no mundo europeu continental (cap. 5), menor, em muitas regiões, que uma língua hoje desconhecida, o romanche. Se a contextualização da gênese de determinadas representações modernas não é a principal contribuição de Linguagens e comunidades, não deixa de ser importante conhecermos a origem da expressão “macarrônico”, designando modos de falar considerados grosseiros (p. 136 e 149).

A temática da linguagem não é nova na produção do autor, estando presente em várias coletâneas, a maior parte delas em parceria com Roy Porter e todas editadas no Brasil pela Editora da Unesp, não necessariamente na mesma ordem em que foram publicadas em inglês: História social da linguagemLínguas e jargões: contribuições para uma história social da linguagem, e Linguagem, indivíduo e sociedade, acessível em português desde 1993. Recentemente, foi lançado e traduzido A tradução cultural, escrito em parceria com Ronnie Po-chia Hsia.

Burke tornou-se a principal referência em História Cultural, pelo menos para o público brasileiro, tendo mais obras publicadas em português que Roger Chartier, um dos autores que inspiraram as primeiras pesquisas em História Cultural em vários programas de pós-graduação em História do País.1 Burke tem demonstrado versatilidade, retomando temas que ele próprio já trabalhara e inserindo-os em discussões que se tornaram relevantes para os historiadores nas últimas décadas, tais como identidade coletiva, relações entre língua e política, unificação e pluralismo linguísticos. Antes dos acontecimentos do final do século XX, provavelmente não teriam muito significado para o leitor não especializado, particularmente aqui na América, termos frequentes nesse texto do autor, como “esloveno”, “eslavo”, “lituano”, “servo-croata”, Bósnia e Herzegovina. A referência à globalização era inevitável, permitindo a Burke afirmar que “a mistura de línguas em nível global começou séculos atrás” (p. 128).

Um importante debate contemporâneo, para o qual o autor encaminha a discussão, é o do nacionalismo, constituindo o último capítulo um epílogo sobre o tema “línguas e nações”, avançando no tema da “invenção” da nação e da “comunidade imaginada”, que, se não é tão novo (o livro de Benedict Anderson é de 1983), tem sofrido importantes desdobramentos. Participar de tais discussões parece ser o objetivo do autor, que, com seus “estudos sobre a história social da língua, com sua ênfase em múltiplas comunidades e identidades”, pretende questionar um “tipo de história nacional, ou até nacionalista” (p. 189). Não há dúvidas de que o livro traz importantes elementos para tais discussões, mas o que esta resenha tenta explorar é que Burke adentra o debate deixando de lado aprofundamentos críticos já em curso no campo dos estudos sobre o nacionalismo e em um campo que não comparece ao livro, o campo dos estudos étnicos, que tem estreita relação com o estudo de comunidades locais e regionais, sempre potenciais criadoras e veiculadores de falares específicos, o que é demonstrado com tanta riqueza em Linguagens e comunidades. Mas, considerandose as imensas contribuições de Peter Burke para o estudo do período denominado História Moderna, entende-se que, nessa obra, faltam interlocuções com as análises do processo de transição para a sociedade “moderna”.

Para a temática da formação dos Estados modernos, Burke agrega dados preciosos sobre o recuo de línguas que não foram padronizadas para uso administrativo e jurídico, destacando opapel das elites leigas e religiosas, de acadêmicos e de tipógrafos nesse processo (caps. 3 e 4). Ainda que aponte as relações entre “língua e política” (p. 91), só reconhece existir um processo de “nacionalização” da língua a partir do fim século XVIII (p. 183), no qual a escola, os exércitos e as ferrovias teriam seu papel. Nesse tema, seria oportuno um diálogo com as interpretações de Gellner, que demonstra que, na passagem da sociedade agrária para a sociedade industrial, tornou-se imprescindível um “meio de comunicação standartizado”,2 por meio de um sistema educacional nacional. Da mesma forma, interpretações como a de que “uma língua-padrão se adequava à lógica econômica da indústria da imprensa” (p. 108) poderiam vir acompanhadas de uma referência ao “capitalismo tipográfico” de Anderson.3 Tanto Gellner quanto Anderson interpretam o nacionalismo como um fenômeno da sociedade contemporânea, cuja emergência, por outro lado, deve ser buscada em um amplo período de tempo. Se os defensores da “purificação das línguas” contra a penetração dos termos estrangeiros (cap. 6) eram patrícios, professores e tipógrafos (p. 175), enquanto a elite era francófila, a xenofobia linguística dos séculos XVII e XVIII não poderia ser associada ao aparecimento de líderes de camadas médias com vocação nacionalista? A afirmação de Burke, de que não se tratava de um “nacionalismo linguístico no sentido moderno”, não exclui, em princípio, a hipótese de estarmos diante de manifestações precursoras de um nacionalismo.4

Na verdade, a análise dos fenômenos culturais desse período de transição poderia se beneficiar do diálogo com algumas interpretações do longo processo de transição para a moderna sociedade capitalista, especialmente do “absolutismo”. A leitura de Burke, de que estaria ocorrendo uma “defesa do território linguístico” (p. 172), não tem paralelo com a ideia de “Estado territoria“,5 processos políticos concomitantes ao processo cultural descrito em Linguagens e comunidades? Aqui também a resposta de Burke é negativa: ainda que considere “tentador” estabelecer um paralelo entre a centralização do governo e o controle da língua, prioriza fatores como “rivalidade entre França e Espanha no domínio linguístico” (p. 173) e motivos religiosos, chegando mesmo a cogitar uma interpretação psicanalítica para justificar a obsessão dos puristas com a pureza: eles se enquadrariam na categoria freudiana “anal-retentivos” (p. 174). Para criticar o emprego não apenas do termo “nacionalismo”, mas também de “protonacionalismo”, para a preocupação governamental com a língua, Burke (p. 180) opta pela expressão “estatismo”, traduzindo a preocupação dos governantes com um Estado forte (integração política), e não como uma nação unificada (integração cultural). Apoiados em vários autores, podemos questionar essa argumentação de Burke de que a integração política não implicava uma integração cultural.

Todo o livro Los inicios de la Europa moderna, de Van Dülmen segue uma argumentação da indissociabilidade dos empreendimentos políticos, econômicos e culturais na gestação do mundo moderno. A nova ordem estatal dos séculos XVI e XVII buscou regulamentar âmbitos diversos da sociedade, da economia ao mundo privado.6 Operou-se uma “revolução educativa”, mesmo que muitas escolas, particularmente da elite, continuassem a ensinar em latim. Para o autor, o crescente abandono do latim em favor do vernáculo, por parte dos literatos, revelava uma maior vinculação à “sociedade nacional”, à qual pertenciam e de onde extraíam os temas tratados.7 Ao se propor explicar a expulsão de judeus e mouros pela Espanha, entre os séculos XV e XVII, Braudel mostrou a religião ocupando uma função que seria da política no que tange à “unificação”: “A Espanha está no caminho da unidade política que só pode conceber, no século XVI, com uma unidade religiosa.”8 Compondo o conjunto de ações que Apostolidès denomina “projeto Colbert” para implantar uma nova imagem do soberano (Luís XIV), a Academia Francesa foi encarregada de oficializar a língua comum dos membros da nação,9 o que tem consonância com a interpretação de Mucheblend, de que o absolutismo não era apenas uma teoria do poder real prolongado por uma máquina administrativa, mas pretendia a criação de uma nova dinâmica cultural.10 Para Gellner, após um período de transição dominado pelo conflito, ocorre a unificação entre o Estado e a cultura, que caracteriza o nacionalismo.11

É oportuno lembrar que “estatismo” é o termo que Wallerstein emprega para descrever a ideologia do período de formação da economiamundo europeia baseada no modo de produção capitalista.12 As monarquias absolutistas, para se fortalecerem, além de burocratização, monopolização da força e criação de mecanismos de legitimação, promoveram a homogeneização cultural da população, o que explica a expulsão de judeus e estrangeiros de países onde florescia uma burguesia indígena.13 Operando-se com um enfoque de transição e incorporandose contribuições de vários campos históricos, argumentos que parecem contrapostos poderão ser vistos como complementares. Seria necessário, por outro lado, ter claro qual é esse “tipo” de “história nacional, ou até nacionalista”, que Burke entende estar contrapondo.

Quanto ao “problema da comunidade”, Burke o situa com clareza no Prólogo: o termo “parece implicar uma homogeneidade, uma fronteira e um consenso que simplesmente não são encontrados quando se realizam pesquisas básicas” (p. 21). Os estudiosos do tema da etnicidade, que apontam a complexidade das delimitações dos grupos étnicos, em contraposição à noção reificada de etnia ou raça para o senso comum, não teriam dificuldades em concordar com isso. Um dos grandes balizadores da moderna teoria da etnicidade, Fredrick Barth, destacou ocaráter móvel da fronteira étnica em texto de 1969.14 As distinções linguísticas às quais Burke se refere não dizem respeito unicamente a diferentes grupos étnicos, pois os “socioletos” (cap. 1) poderiam variar entre o campo e a cidade, entre homens e mulheres, conforme a hierarquia social, ou de acordo com grupos específicos dentro de uma mesma camada social (monges, acadêmicos ou nobres). Entretanto, os desenvolvimentos teóricos dos estudos étnicos auxiliariam a explicar muitos desses fenômenos.

Ao analisar como cada nação, região ou cidade elogiava sua própria língua e depreciava a dos vizinhos ou estrangeiros (cap. 3), Burke utiliza a expressão “narcisismo coletivo”, quando o fenômeno poderia ser interpretado como uma forma de “etnocentrismo”. Os recortes por bairros das “cidades poliglotas” (cap. 5) podiam ter uma configuração religiosa (huguenotes), mas também étnica (“Veneza com seus bairros gregos, judeus e eslavos”, p. 134).15 O emprego de uma teoria desenvolvida no estudo de fenômenos contemporâneos para interpretar manifestações de outras épocas, se, por um lado, acarreta o risco do anacronismo, por outro, na mão de um hábil historiador, pode transformar-se em um poderoso instrumento heurístico, como ocorre em História social da mídia, de Burke e Briggs.16 Ao chamar a atenção para a persistência das variedades linguísticas (p. 185), contrapondo-se a uma “história triunfalista”, Burke descreve inúmeros casos de resistências de linguagens regionais e locais, os quais permitem associações com estudos contemporâneos que mostram que identidades étnicas ora entram em conflito, ora convivem com as identidades nacionais, possibilitando aos indivíduos aquilo que os teóricos denominam “manipulação identitária”.17

O que se pode concluir é que Peter Burke realizou um esmerado trabalho de abordagem de um tema extremamente importante para várias áreas das ciências humanas, mas abriu pouco espaço a estudos que agregariam agudeza na interpretação do assunto. Contudo, é preciso ter claro que destacar essas ausências só faz sentido em um esforço de análise crítica, que, de resto, salienta alguns elementos de um conjunto amplo de sistematizações.

Ou seja, o que o leitor recebe do autor é bem mais vasto em relação àquilo que possa ser interpretado como uma falta. Por outro lado, esta resenha talvez esteja demandando mais diálogos com outros campos interdisciplinares (História Política, História Econômica, Antropologia) de um historiador que, justamente por seu trânsito por diversificados campos das ciências humanas, tem contribuído para renovar as frentes da pesquisa histórica.

1 Ronaldo Vaifas (História das mentalidades e história cultural. In: Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 150),         [ Links ] ao alinhar três correntes que tiveram influência na configuração da nova História Cultural, as vincula aos historiadores Carlo Ginzburg, Roger Chartier e Edward Thompson.
2 GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 1997. p. 58.         [ Links ] 3 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1983]. p. 46.         [ Links ] Burke faz uma breve menção à expressão no Epílogo (p. 183).
4 Analisando o cosmopolitismo na Prússia do século XVIII, René Pomeu mostra que, ao lado de uma corte francófona, foi se desenvolvendo em Berlim uma burguesia nacionalista, e, em várias cidades, foram fundadas sociedades de pensamento por uma classe média composta por pastores, médicos, livreiros, tudo contribuindo para o florescimento de um germanismo (POMEAU, René. La Europa de las luces. Cosmopolitismo y unidade europea en el siglo XVIII. México: Fondo de Cultura Económica, 1988 [1966]         [ Links ]).
5 DÜLMEN, Richard Van. Los inicios de la Europa moderna 1550-1648. 4. ed. Madri: Siglo XXI, 1990 [1982]         [ Links ].
6 Id. Ibid., p. 335.
7 Id. Ibid., p. 274 e 293.
8 BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico. Lisboa: Martins Fontes, 1984 [1966]. p. 187.         [ Links ] 9 APOSTOLIDÈS, Jean-Marie. O rei-máquina: espetáculo e política no tempo de Luís XIV. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: EDUnB, 1993 [1981]. p. 30.         [ Links ] 10 MUCHEMBLED, Robert. Société, cultures et mentalités dans la France moderne. XVe – XVIIIsiècle. 2. ed. Paris: Armand Colin, 1994 [1990]. p. 121.         [ Links ] 11 GELLNER, Ernest. Op. cit., p. 66.
12 WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mun dial moderno. Porto: Afrontamento, [1974, ingl.]. v. 1.         [ Links ] 13 Id. Ibid., p. 148.
14 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.         [ Links ] 15 Em um dos poucos momentos em que Burke se refere ao conceito, referindo-se à língua “etnicamente” pura (p. 158), o assunto não é desenvolvido.
16 BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.         [ Links ] 17 POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo: Editora da Unesp, 1998. p. 168.         [ Links ]

Regina Weber – Professora-doutora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Salazar: uma biografia política – MENESES (Tempo)

MENESES, Filipe Ribeiro de. Salazar: uma biografia política. 3. ed. Lisboa: D. Quixote, 2010. Resenha de: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. A monografia de um tempo português. Tempo v.17 no.31 Niterói  2011.

Em 2007, a RTP (Rádio e Televisão de Portugal) promoveu um concurso intitulado “Os Grandes Portugueses”, a fim de escolher o nome mais representativo de sua história. Concorrendo com personagens da grandeza de Camões, Vasco da Gama e Fernando Pessoa, entre outros, o ditador do Estado Novo Oliveira Salazar saiu vencedor com pouco mais de 40% dos votos.12

A despeito de sua “representatividade”, Salazar ainda não havia sido objeto de um trabalho acadêmico rigoroso. A lacuna foi, entretanto, preenchida com a chegada do estudo de Filipe Ribeiro de Meneses.

Publicada originalmente para um público não português, a obra consiste em um aprofundado estudo que integra as vidas pessoal e pública de um professor de Economia, católico e solteirão que incorporou para si a tarefa de fazer os portugueses viverem habitualmente, conforme disse ao pensador católico francês Henri Massis. O viver projetado por Salazar consistia em uma ditadura alheia às aventuras revolucionárias dos fascismos clássicos alemão e italiano ou mesmo do militarismo de pendor cesarista de seu vizinho espanhol. Filipe de Meneses consegue perceber os importantes traços de continuidade entre o filho de Santa Comba Dão, o ex-seminarista que, quando ingressou como professor da Universidade de Coimbra, apresentou uma tese defensora da pequena propriedade agrícola, e o chefe de governo que nunca deixou de afirmar a superioridade do campo sobre a cidade, esta lugar dos “vícios dissolventes” da tradição portuguesa.

Filho caçula de uma família pobre, com quatro irmãs, Salazar estudou no seminário de Viseu. Destacado aluno, ingressou na Universidade de Coimbra, onde se formou em 1911. Dessa época o livro aponta para relações de amizade que permaneceram ao longo de toda a vida do futuro ditador, como Mário de Figueiredo e Manuel Gonçalves Cerejeira, o futuro patriarca da Igreja Católica em Portugal.

Militante na Universidade do Centro Católico, Salazar foi sempre fiel aos valores legados de um pensamento social católico que tem na Encíclica Rerum Novarum a sua principal referência. Foi, por isso, um forte opositor tanto do liberalismo e da democracia parlamentar quanto do comunismo e dos movimentos socialistas. Seu projeto político-ideológico sempre foi a constituição, em Portugal, de um regime centralizado e fiel às tradições que, a seu ver, marcam a formação portuguesa: um catolicismo marcado por uma forte vocação messiânica, cruzadista e expansionista.

O livro é rico em exemplos que demonstram a capacidade de Salazar em mediar com interesses conflitantes no seio do regime autoritário. Como ministro das Finanças, arquitetou a transição de uma ditadura militar para uma ditadura civil e corporativa sob o seu controle. Mantendo sempre um militar na presidência, não deixou de acalentar as esperanças dos monarquistas ávidos pela mudança do regime. Na montagem do governo, incorporou à sua máquina republicanos conservadores, católicos e até mesmo militantes do integralismo lusitano, a versão portuguesa do fascismo. Nesse caso, sobretudo, trouxe para a esfera da administração jovens universitários que, em breve tempo, teriam espaço e importância crescente no regime, como Pedro Teotónio Pereira e Marcello Caetano. Ciente do complexo leque de alianças que o apoiava, Salazar dissolveu o Centro Católico e criou um partido único, um “não partido”, de acordo com suas palavras, a União Nacional. A constituição aprovada em 1933, corporativa e autoritária, manteve, entretanto, um verniz liberal quer na permanência de uma Câmara, aliás duas, se contarmos a Câmara Corporativa, quer na eleição, por sufrágio universal, do presidente da República.

Apesar da preocupação em analisar a vida privada de Salazar, o livro cresce nos momentos em que relata as crises vividas pelo Estado Novo português e as medidas tomadas por Salazar. Como durante a Segunda Guerra Mundial, quando a incerteza a respeito da continuidade do Estado Novo era motivo de euforia para seus opositores e preocupação para seus adeptos. Naquela conjuntura, Salazar adotou uma política de neutralidade, ao mesmo tempo em que envidava todos os esforços para impedir que a vizinha Espanha aderisse ao conflito. Neutralidade que, entretanto, não impediu a cessão para os Aliados da Base Militar dos Açores. A estratégia do ditador garantiu a entrada imediata de Portugal na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e a continuidade do regime no pós-guerra. No final da década de 1950, novo período de instabilidade, com a campanha à presidência da República de Humberto Delgado. Uma campanha de massas, “à americana”, estranha e incômoda ao regime. Também na década de 1950, Salazar se viu obrigado a mediar as disputas entre setores “conservadores”, sob a liderança de Santos Costa, e “modernos”, capitaneados por Marcello Caetano.

Mas foi na década de 1960 que o “caldo” começou de fato a entornar. Os estudantes saíam às ruas e misturavam reivindicações tanto acadêmicas como políticas. Nas relações diplomáticas, a Europa tornava-se um parceiro cada vez mais constante, relativizando a natureza atlântica, tão cara aos adeptos do Estado Novo. Mas, sobretudo na África, os movimentos de libertação começavam, em 1961, a defender a ruptura com a antiga metrópole. Apesar de tentativas de mediação por parte das diplomacias americana, brasileira, espanhola ou mesmo do Vaticano, Salazar recusava-se a ceder ou mesmo negociar. “Estamos cada vez mais orgulhosamente sós”, foi o que disse em resposta às insistentes pressões internacionais. Em 1968, ano em que sofre o acidente caseiro que o impossibilita de continuar a governar, a guerra colonial já não tinha retorno. Com ela, o país vê seus braços partirem. Para o ultramar alguns. Para a França ou para o Brasil outros. Que se a participar de um conflito que não compreendiam e não aceitavam, pelo menos não a ponto de se alistarem na tropa. Um paradoxo: o ditador recusava-se a mover qualquer palha em um país que já não vivia mais “habitualmente”. Essa última década de vida política de Salazar foi também a que sofreu mais questionamentos, inclusive internos. A recusa de ceder no caso africano reproduzia-se também na relação com o poder. Cedê-lo pressupunha a possibilidade de ser criticado por sucessores. Nesse caso, a aparência franciscana podia também ser confundida com arrogância e alhea-mento para com os outros.

Disse Gramsci que a trajetória de um homem pode ser a monografia de seu tempo. O livro de Filipe Ribeiro de Meneses, sólido, erudito, bem-documentado, é uma referência obrigatória para o entendimento da recente história portuguesa.

Francisco Carlos Palomanes Martinho – Professor do Departamento de História da USP e pesquisador do CNPq.

 

 

 

MENDONÇA, Sonia Regina de. O Patronato Rural no Brasil Recente (1964-1993). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2010. Resenha de: MOTTA, Márcia. Uma zona de sombra: o rural de nossos dias. Tempo v.16 no.30 Niterói  2011.

Uma zona de sombra da historiografia. É com estas palavras que a historiadora Sonia Mendonça apresenta o tema de sua trajetória acadêmica, mais uma vez registrada em livro. Ao perseguir as relações intraclasse dominante agrária, Mendonça discute em “O Patronato Rural“, como se estabelecem as relações e os fortes interesses dos grandes proprietários rurais no interior das agências estatais, entre os anos de 1964 a 1993.

O objeto de pesquisa por si só não é dos melhores, se entendemos uma obra a partir do registro de um passado festivo, cheio de glórias e comemorações.

O tema é feio e seus efeitos são ainda piores, mas eles fazem parte do lado obscuro de nossa história, ainda tão presente e tão pouco estudado. Como fantasmas, seus efeitos perseguem alguns poucos historiadores, suficientemente preparados para desvendá-los por detrás dos véus.

Na contracorrente de uma história bonita, Mendonça dilacera nossas visões mais otimistas e demonstra que estamos ainda longe de um país mais generoso para com os seus. Ao perseguir e esquadrinhar os sentidos das “modernizações”, a autora nos revela as estratégias utilizadas pelos terratenentes para chamar de nossos os seus interesses.

O livro exige leitura atenta, cuidadosa, já que a rigor o leitor mais desavisado, há de ter alguma dificuldade para acompanhar as principais ilações ali registradas. Para os mais interessados, asseguro: o esforço vale a pena. O próprio estilo da autora expressa uma resistência, contra as leituras prazerosas e superficiais de nossos dias. O leitor não estará lendo um resumo dos argumentos da imprensa diária, sempre pronta a falar sobre o que não sabe e a construir juízos de valor acerca de grupos sociais que desconhece. Também não há de encontrar ali um estilo poético, pois não há nada de poesia nos mecanismos de dominação/convencimento empregados pelos “nossos fazendeiros”.

O capitulo primeiro é uma aula, dessas que – como dizíamos quando jovens – só mesmo a Sônia Mendonça para ministrar. Ao deslindar as propostas presentes no Estatuto da Terra do governo Castelo Branco, a autora nos oferece uma oportunidade ímpar de conhecer a fundo quais eram os distintos projetos políticos da Sociedade Nacional de Agricultura e da Sociedade Rural Brasileira – entidades patronais – na “luta travada entre elas pela condição de porta-vozes autorizados e legítimos das facções agrárias da classe dominante agrária”. Mas se havia divisão, havia também união, cumplicidade; principalmente em relação aos projetos de reforma agrária dos setores de esquerda, na conjuntura que culminou com o Golpe de 64. É em oposição à mobilização camponesa e sua proposta de reforma que irão se insurgir as agremiações patronais, contra aquilo que consideram o mais grave dos crimes: o ataque à grande propriedade e ao direito de ser proprietário.

Não é preciso repetir aqui o que todos sabem e naturalizam. A partir do Golpe de 64, a grande propriedade rural é absolvida e consagra-se a ideia de que ela não deve ser discutida, questionada, mas estimulada. A concentração territorial não é mais um pecado; é, quanto muito, a expressão de nossa especificidade, num país que orgulhosamente chamamos de continental.

Não á toa, os anos de abertura política reinauguraram as tensões entre as entidades patronais, sempre dispostas a defender a política de modernização da agricultura com subsídios fiscais. Mas a abertura também implicou a renovação da esperança, a expectativa de um acerto de contas com o passado, expresso – por exemplo – na promulgação do Plano Nacional de Reforma Agrária do governo Sarney, cuja proposta, a princípio, visava atender às demandas sociais mais urgentes no campo, principalmente em relação aos conflitos fundiários. O fracasso da proposta expressou, mais uma vez, que a despeito das diferenças, as entidades patronais não estiveram dispostas a construir um consenso político a favor das mudanças.

O papel específico da Sociedade Nacional da Agricultura é o tema do capítulo dois. Nele, Mendonça analisa a revista A Lavouracorpus documental raras vezes utilizado pelos historiadores. Enquanto entidade de classe, a SNA defendeu suas propostas a partir de cinco eixos: a modernização da agricultura, a difusão do cooperativismo como instrumento de desenvolvimento agrícola, a necessidade de se empreender algum tipo de reforma agrária, a implementação de uma justiça agrária e o combate ao tabelamento de preços. Para além da excepcionalidade da entidade na defesa de algum tipo de reforma agrária e de justiça social (questões ausentes da pauta de outras entidades patronais) destaca-se também o apelo nos últimos anos em favor da causa ecológica, no esforço de consagrar-se como a legítima e histórica entidade preocupada com as questões ambientais.

O terceiro capítulo é dedicado à Sociedade Rural Brasileira, cujas visões de classe são expressas em outra revista A Rural, também pouquíssimo explorada por historiadores. Coerente com suas bases sociais, a entidade procuraria defender os interesses dos grandes cafeicultores, agropecuaristas e empresas agroindustriais. Em nome deste grupo, a SRB se poria radicalmente contra qualquer alteração da estrutura fundiária no país, na defesa de uma posição assentada na intocabilidade da propriedade territorial. Mas a entidade também criou uma dada concepção de reforma agrária que se consubstanciou na defesa de uma política agrícola e na construção de uma nova imagem do “moderno” produtor rural, “de cujos atributos a entidade ressaltava o uso da tecnologia/pesquisa de ponta”.

Mas se a história do campo brasileiro tem a marca da complexidade, parece-nos óbvio que suas demandas e perspectivas não se resumem apenas a duas entidades de classe. Para além do dualismo e das disputas entre a SNA e a SRB, o quarto capítulo é dedicado ao estudo da Organização das Cooperativas Brasileiras, umas das mais jovens agremiações patronais que, após a abertura política, tornar-se-ia a grande força dirigente do patronato “agrário” nacional. Na OCB, o foco é o apelo ao cooperativismo, enquanto expressão maior da democracia e do igualitarismo. Entende-se assim que a reforma agrária defendida pela entidade está assentada na ideia do cooperativismo. Seus dirigentes se veem como os porta-vozes do que há de mais moderno: o agronegócio, modernizando a agricultura brasileira em bases empresariais e internacionalizadas. A atuação da entidade é ainda o exemplo emblemático das estratégias de construção de hegemonia e de representação política no interior do Estado Brasileiro.

O coroamento desta hegemonia – expressa na consolidação do papel e importância do agronegócio – é exemplificado pela criação da Associação Brasileira de Agribusiness, objeto do último capítulo. Em nome do novo – o agronegócio – e da necessidade de encontrar novos canais de representação política, a ABAG, como é comumente chamada, constitui-se na face mais obscura do poder dos empresários rurais, não apenas como uma entidade patronal de defesa de seus interesses de classe, mas como uma agremiação de empresas. A “responsabilidade social dos empresários do agronegócio com a sustentação alimentar de uma comunidade internacional altamente ‘globalizada’ seria o grande argumento de sua legitimação e da produção do consenso em âmbito nacional”. Na construção deste discurso e na falácia do consenso, a sociedade brasileira condena – sem ao menos se dar a conhecer – a pequena produção familiar que, mais uma vez, é refém de valores sociais que lhe são impostos de fora: atrasada, antiprodutiva, sem função.

Há, em suma, um novo projeto para a agricultura brasileira, vendido em prosas e versos nas campanhas publicitárias, nas propostas do governo, nas telenovelas, nos jornais. Tal projeto – o agribusiness – dificulta o nosso olhar sobre os problemas e mazelas do campo brasileiro e deslegitima e condena ao esquecimento a trajetória e luta dos pequenos agricultores deste país, responsáveis – eles sim – por parte ainda importante da produção de alimentos do Brasil. Eu conto nos dedos quantos historiadores estão cientes desta elementar informação…

Márcia Motta – Doutora em Historia e Professora da Universidade Federal Fluminense.

A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário – LINEBAUGH; REDIKER (Tempo)

LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Tradução de Berilo Vargas. Resenha de: ALADRÉN, Gabriel. História atlântica vista de baixo: marinheiros, escravos e plebeus na formação do mundo moderno. Tempo v.16 no.30 Niterói  2011.

“Deus não é respeitador de Pessoas”: evocando essa passagem bíblica, os Diggers3 lutavam contra o cercamento dos campos na Inglaterra. A frase tinha uma conotação universalista que remontava às origens do cristianismo e advertia que Deus não diferenciava a humanidade por critérios de raça, etnicidade, classe, gênero ou nação. A terra seria uma criação divina e seu uso comunitário deveria ser livre para todos, de forma igualitária, “sem respeitar pessoas”. Versões semelhantes apareciam nas palavras de homens e mulheres que integravam grupos religiosos dissidentes durante a Revolução Inglesa.

Suas ações fizeram parte da resistência do proletariado atlântico ao processo de formação do capitalismo global nos séculos XVII e XVIII. Essa “história oculta do Atlântico revolucionário” é o tema do livro de Peter Linebaugh e Marcus Rediker, A hidra de muitas cabeças, publicado originalmente no ano 2000 e trazido ao público brasileiro em uma bela edição da Companhia das Letras.

Trata-se de um livro inovador, narrado com maestria e paixão e lastreado em uma sólida pesquisa documental. Sua metodologia e estrutura de apresentação são originais. Os autores percorrem casos de motins, revoltas, conspirações e situações que expressam a oposição das classes populares ao nascente capitalismo inglês, construindo uma história do Atlântico vista de baixo.

Para simbolizar esse confronto, Linebaugh e Rediker recorrem ao mito clássico de Hércules. Políticos, filósofos e proprietários o usaram como um emblema do poder e da ordem, no qual seus doze trabalhos representavam o desenvolvimento econômico. O segundo trabalho de Hércules foi a destruição da hidra de Lerna, um monstro de várias cabeças, as quais renasciam constantemente quando decepadas.

Da expansão colonial inglesa aos primórdios da industrialização no século XIX, “os governantes usaram o mito de Hércules e da hidra para descrever a dificuldade de impor a ordem em sistemas de trabalho cada vez mais globais, apontando aleatoriamente plebeus esbulhados, delinquentes deportados, serviçais contratados, extremistas religiosos, piratas, operários urbanos, soldados, marinheiros e escravos africanos como as cabeças numerosas e sempre cambiáveis do monstro” (p. 12).

Ao adotar um ângulo de visão inusitado e ao utilizar com criatividade fontes de natureza variada, os autores demonstram a existência de conexões raramente observadas entre histórias a princípio tão diversas como a dos grupos radicais na Revolução Inglesa, dos náufragos nas primeiras expedições colonizadoras da Virgínia, dos maroons jamaicanos, dos escravos rebeldes e dos servos irlandeses no Caribe, dos piratas e marinheiros, dos conspiradores das cidades portuárias do Atlântico e dos operários ingleses. O impacto do livro na historiografia é significativo e será duradouro, em especial para os estudos sobre a Idade Moderna e para a história do trabalho, pois ele descortina uma perspectiva toda nova para a análise da expansão capitalista e das origens da classe operária.

Um de seus maiores méritos é o de realizar uma genuína história atlântica, na qual os diferentes fatores que condicionam a formação do capitalismo são integrados em uma análise densa e apresentados com uma narrativa primorosa. Em cada um dos casos discutidos ficam claras as forças transnacionais e a circulação de experiências que influenciaram as ações e os anseios revolucionários do proletariado atlântico.

Sublinhar isto não é de menos importância, pois atualmente há uma certa avidez entre os historiadores por vincular seus trabalhos ao rótulo da história atlântica, sem que necessariamente empreguem metodologias e formulem problemas de pesquisa que efetivamente transcendam os quadros nacionais ou, na melhor das hipóteses, imperiais. Tal movimento é salutar na medida em que exige o redimensionamento dos esquemas conceituais de fenômenos históricos usualmente explicados a partir de cadeias de causalidade circunscritas, mas muitas vezes serve apenas para apresentar temas e abordagens tradicionais – e nem por isso menos meritórias – em novas roupagens.4

Isso posto, é necessário fazer uma ressalva ao caráter atlântico do livro, especialmente para os pesquisadores da América do Sul e particularmente do Brasil. Na verdade, se trata de uma história do Atlântico Norte de língua inglesa o que, aliás, é reconhecido pelos próprios autores.

No Atlântico Norte operava o chamado comércio triangular, que conectava os portos ingleses, africanos e americanos e seguia as correntes marítimas que partiam da Europa, passavam pela costa da África e atingiam o Caribe, retornando depois ao noroeste europeu. Tal sistema não gerava simplesmente uma articulação mercantil transoceânica, mas também possibilitava o contato de pessoas de diferentes sociedades que compartilhavam ideias e experiências e criavam novas formas de comunicação e cooperação. Essa circulação levava as ondas revolucionárias e as tradições proletárias, sempre recriadas em cada contexto por novos sujeitos, a todas as margens do Atlântico Norte, acompanhando o fluxo das marés e das transações comerciais.

No Atlântico Sul, funcionava um sistema diferente.5 Desde o século XVII, o tráfico negreiro assentava-se na base de um comércio bilateral, que unia a América portuguesa diretamente à África – em especial o Rio de Janeiro a Luanda e Salvador à Costa da Mina. Essa ligação foi duradoura, passou praticamente incólume pela independência do Brasil e só foi ser rompida com o término do tráfico atlântico em 1850.6 A veiculação de ideias e tradições de resistência no Atlântico Sul passava mais por essa comunicação direta entre Brasil e África do que por rotas triangulares que eram típicas do sistema mercantil do Atlântico Norte.7

Outro  ponto  importante  é  a  discussão  sobre  o  proletariado  atlântico, um conceito chave do livro. Linebaugh e  Rediker  partem  de  Marx  para  ir além, encontrando conexões e vínculos insuspeitados e até uma espécie de consciência   coletiva   contra-hegemônica  –  no  que  às  vezes  incorrem  em certo impressionismo – entre os trabalhadores das diferentes partes do império britânico. O proletariado atlântico era constituído de camponeses ingleses expropriados,   ameríndios   inseridos em regimes de trabalho compulsório, africanos escravizados, marinheiros de diversas  nações  e  indentured servants irlandeses.  Homens  e  mulheres  que não eram, necessariamente, indivíduos livres vendendo sua força de trabalho em troca de salário, conforme a acepção mais restrita de Marx.

A ousadia de incluir trabalhadores tão distintos – sob critérios étnicos, raciais, nacionais, culturais e jurídicos – em um mesmo conceito é uma das forças do livro. Permite que se faça uma leitura ampla da história do mundo atlântico e se identifiquem relações geralmente encobertas entre as diversas formas de exploração do trabalho que foram cruciais para a gênese da modernidade.

Nesse sentido, o livro navega na tradição teórica que enfatiza as relações entre modernidade, capitalismo e escravidão.8 Um de seus mais notáveis representantes é C.L.R. James, que há muito divisou a proximidade das condições dos escravos das plantations com o proletariado moderno.9 No entanto, essa identificação era pensada por James em uma chave de leitura mais convencional, na medida em que ele considerava que os escravos antecipavam as experiências coletivas dos proletários – e aqui pensava em trabalhadores fabris –, mas não se confundiam com eles.10

Na conclusão, Linebaugh e Rediker apresentam uma síntese da constituição histórica do proletariado no Atlântico Norte. Na primeira fase, de 1600 a 1640, o capitalismo surgiu na Inglaterra e se expandiu via comércio e colonização, deixando para trás uma massa de plebeus expropriados transformados em proletários na África, na Irlanda, na Inglaterra, no Caribe e na América do Norte. Na segunda fase, de 1640 a 1680, o espectro da resistência se ergueu, inicialmente com a revolução na metrópole e posteriormente com as revoltas de escravos africanos e indentured servants em Barbados e na Virgínia. Suas derrotas abriram caminho para a estruturação do tráfico negreiro britânico na África Ocidental e para a montagem das plantations nas colônias.

A terceira fase, de 1680 a 1760, foi marcada pela consolidação do capitalismo atlântico, baseado na organização de um Estado marítimo inglês que garantia política e militarmente os capitais que operavam no lucrativo comércio colonial. Nesse cenário, o controle da mão-de-obra dos navios mercantes e da marinha de guerra tornou-se fator decisivo, e o uso da violência e do terror passou a ser fundamental no recrutamento de marinheiros e na repressão aos motins nos portos e em alto mar.

Em oposição à rígida hierarquia do Estado marítimo, os piratas construíram uma ordem alternativa e democrática que ameaçou a estabilidade do comércio britânico no Caribe e na costa africana. As várias gerações de piratas e marinheiros rebeldes foram reprimidas até serem silenciadas na década de 1720.

As lutas do proletariado atlântico passaram a se manifestar no ciclo de rebeliões escravas caribenhas nas décadas de 1730 e 1740 e culminaram com uma conspiração na zona portuária de Nova York em 1741, da qual participaram soldados, marujos e escravos irlandeses, hispano-americanos e africanos, que foram chamados pelas autoridades de “os párias das nações da Terra”.

A quarta e última fase ocorreu entre 1760 e 1835. Na Jamaica, a Revolta de Tacky envolveu quilombolas e escravos e assustou os proprietários das plantations. Na América do Norte, a horda heterogênea de marinheiros, escravos e negros livres lutou para marcar a Revolução Americana com um caráter abolicionista, mas foi contida pelos pais da pátria que arquitetaram uma república escravista. Na década de 1790, uma segunda onda de revoltas estourou na América e na Europa e contribuiu para difundir os direitos do homem e, a longo prazo, para abolir o tráfico e a escravidão.

A “era das revoluções” foi o canto do cisne do proletariado atlântico. A industrialização metropolitana, a construção dos estados nacionais e a repressão à revolução no Haiti concorreram para quebrar seus vínculos e bases materiais. A formulação da ideia biológica de raça e da categoria política e econômica de classe em fins do século XVIII expressa a divisão, que se aprofundaria nas décadas subsequentes, entre os operários brancos ingleses e os escravos negros nas Américas.

A historiografia sobre a classe operária costuma iniciar daí, sem observar que em suas origens, as aspirações dos operários ingleses estavam profundamente carregadas de uma dimensão atlântica. Linebaugh e Rediker formulam uma crítica às narrativas dominantes sobre o tema, sobretudo à influente obra de E.P. Thompson11, por apenas identificarem as tradições estritamente nacionais que conformaram a classe operária na Inglaterra. Essa crítica é ilustrada pela análise da conspiração de Edward e Catherine Despard e da Sociedade Correspondente de Londres, fundada por Thomas Hardy.

Edward Marcus Despard era irlandês, coronel do exército britânico e servira na Jamaica, na Nicarágua e em Belize, antes de retornar a Inglaterra e ser executado em 1803, sob acusação de ter planejado um atentado contra o rei. Catherine, sua esposa, era uma afro-americana que o conhecera no Caribe. Juntos chegaram a Londres no ano de 1790, e naquela década turbulenta, participaram do movimento abolicionista que então entusiasmava os trabalhadores ingleses. Linebaugh e Rediker argumentam que os Despards compartilhavam, junto com pessoas como o poeta William Blake, Thomas e Lydia Hardy, o escritor C.F. Volney e os ex-escravos abolicionistas Olaudah Equiano e Ottobah Cugoano, uma concepção de liberdade e igualdade universais, expressa na ideia de “raça humana”, em oposição aos critérios de raça e nação que estavam se impondo.

Thomas e Lydia Hardy e Olaudah Equiano eram amigos e viveram juntos entre 1790 e 1792. Quando Thomas fundou a Sociedade Correspondente de Londres, evento considerado por Thompson como um marco na formação da classe operária inglesa, pediu auxílio a Equiano para estabelecer contatos em Sheffield. No início, a Sociedade tinha entre seus objetivos o combate à escravidão e a luta pela igualdade de todos “fossem negros ou brancos, superiores ou inferiores, ricos ou pobres” (p. 288). No entanto, logo passou a se dirigir a um público mais restrito, britânico e branco, deixando para trás a questão da igualdade racial. Essa mudança foi fruto da reação inglesa à revolução de São Domingos, que empregou o racismo para combater o exército negro de Toussaint L’Ouverture. Nesse contexto, Hardy preferiu evitar discutir o tema, que se tornou delicado, e circunscreveu o escopo da Sociedade aos limites nacionais.

O argumento de Linebaugh e Rediker é de que a década de 1790 foi um divisor de águas para a história do proletariado atlântico. Ao mesmo tempo em que chegou ao seu auge, a circulação de ideias revolucionárias foi duramente reprimida e a solidariedade entre os trabalhadores da Inglaterra e das Américas foi quebrada com a gênese das concepções modernas de raça, classe e nação: “O que ficou para trás era nacional e parcial: a classe operária inglesa, os negros haitianos, a diáspora irlandesa” (p. 300). É como se o bumerangue revolucionário, para retomar expressão utilizada por Linebaugh,12depois de ter ido tão longe, tivesse caído bruscamente, abatido pela forte rajada de vento que reprimiu as aspirações do proletariado atlântico.

A análise e a periodização proposta pelos autores são apropriadas para a história do Atlântico Norte e do capitalismo inglês. Na América Latina, a construção dos estados nacionais e a afirmação das concepções modernas de raça e classe seguiram ritmos bem distintos. Talvez justamente por isso, as contribuições do livro são potencialmente interessantes para a historiografia latino-americana. Novas pesquisas poderão dizer se a hidra, decepada no hercúleo processo de globalização capitalista no Atlântico Norte, no Sul ainda levantaria suas subversivas e heterogêneas cabeças ao longo do século XIX.

3 Os Diggers, Levellers e Ranters eram grupos populares radicais que atuaram na Revolução Inglesa defendendo ideais igualitários. Ver Christopher Hill, O mundo de ponta-cabeça. Ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.         [ Links ] 4 Uma excelente análise de exemplos positivos da “virada atlântica” na historiografia do Brasil colonial pode ser encontrada em Stuart B. Schwartz, “A historiografia dos primeiros tempos do Brasil moderno: tendências e desafios das duas últimas décadas”, História: Questões & Debates, n. 50, Curitiba, 2009, pp. 175-216.         [ Links ] 5 Mesmo no Atlântico Norte, o comércio triangular era complexo e envolvia rotas mercantis que escapam a um modelo simplificado. Ver Herbert S. Klein, The Atlantic Slave Trade, Nova York, Cambridge University Press, 1999.         [ Links ] 6 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.         [ Links ] 7 João José Reis, por exemplo, discute as dimensões africanas da Rebelião dos Malês. Ver João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.         [ Links ] 8 Sobre o tema ver Robin Blackburn, A construção do escravismo no Novo Mundo: do barroco ao moderno, 1492-1800 , Rio de Janeiro, Record, 2003.         [ Links ] No campo dos estudos culturais ver Paul Gilroy, O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro, Editora 34/UCAM, 2001.         [ Links ] 9 C.L.R. James, Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos, São Paulo, Boitempo, 2007.         [ Links ] A publicação original é de 1938.
10 Convém lembrar o importante trabalho de Sidney Mintz, que escreveu sobre a necessidade de integrar analiticamente o estudo dos escravos e dos proletários, sem distingui-los radicalmente do ponto de vista conceitual. Ver Sidney W. Mintz, “Was the plantation slave a proletarian?”, Review, vol.2, nº1, 1978, pp. 81-98.         [ Links ] 11 E. P. Thompson, A formação da classe operária inglesa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.         [ Links ] 12 Peter Linebaugh, “All the Atlantic mountains shook”, Labour/Le Travailleur, n. 10, 1982, pp. 87-121.         [ Links ] Linebaugh usa o termo bumerangue para simbolizar a circulação de experiências históricas de luta contra a exploração capitalista no Atlântico que levava tradições revolucionárias da Europa para as Américas e para a Àfrica e vice-versa.

Gabriel Aladrén – Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense.

Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico – SCHWARTZ (Tempo)

SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. Resenha de: SOUZA, Jorge Victor de Araújo. “Menocchios Atlânticos”. Tempo v.15 no.29 Niterói jul./dez. 2010.

O dicionarista Raphael Bluteau, no início do século XVIII, definiu “tolerância” como: paciência, certa permissividade e conveniência. Uma dessas acepções, pelo menos, encontrava-se presente nos atos de diversas personagens elencadas pelo historiador Stuart B. Schwartz no resultado de sua busca pela tolerância religiosa no mundo atlântico Ibérico.

Stuart Schwartz, professor titular de história na Universidade de Yale, na década de oitenta expôs os “segredos internos” da produção açucareira no recôncavo baiano dos séculos XVI ao XVIII. Desta vez, sua lide enquadra-se em uma história sociocultural preocupada com as incongruências entre sistemas normativos ortodoxos, práticas religiosas diversas e discursos ambíguos. O caso do moleiro Menocchio, estudado por Carlo Ginzburg, foi o estopim do interesse pelo tema, como o próprio autor admite. Entre indivíduos de diversos estratos sociais, vassalos das coroas mais intransigentes em aspectos religiosos, Schwartz encontrou proposições cuja tópica era, com algumas variantes, que “cada um pode se salvar na sua lei”.

O livro é dividido em três seções. Na primeira, “Dúvidas ibéricas”, Schwartz mapeia, em quatro capítulos, diversas discordâncias religiosas e um determinado “relativismo religioso” presente no Velho Mundo, notadamente na Espanha. A segunda parte, “Liberdades americanas”, é constituída por três capítulos que tentam englobar a possibilidade de “tolerância” nos trópicos. O destaque fica por conta das análises sobre circularidade de livros e de ideias. A terceira parte, “Rumo ao tolerantismo”, com dois capítulos, ocupa-se da imbricação entre Estado e Igreja. Apontando que ao longo da modernidade o Estado foi se laicizando, Schwartz analisa a penetração de ideias iluministas na Península Ibérica, culminando em legislações que garantiram, mesmo que minimamente, a “liberdade de consciência” no alvorecer do século XIX.

A partir da documentação, principalmente inquisitorial, são analisados múltiplos discursos em torno de crenças salvíficas, nos quais são destacadas as vozes dissonantes que, em assuntos como a sexualidade, ousaram ir de encontro às normas da ortodoxia religiosa. Vozes como a de Pedro Navarro de Granada que afirmava que “ter acesso carnal um homem com uma mulher não era pecado mortal e bastava ser venial, porque os homens devem ir com as mulheres e as mulheres com os homens” (p. 55). De acordo com Schwartz, as declarações sobre fornicação simples constituem uma chave interpretativa – pode-se, através delas, acessar uma racionalidade prática, que expunha opiniões sobre atitudes da vida privada, a despeito das determinações teológicas sobre o tema.

Se a fornicação simples, pelo menos no século XVI, era tema recorrente entre o povo comum, a possibilidade de salvação fora da Igreja era muito menos propalada. Todavia, Schwartz encontra opiniões que colocam em xeque o senso comum sobre o período, como a de um mourisco na Espanha que, com boa dose de ironia, ousou: “Deus não fez bem seu serviço fazendo uns mouros, outros judeus e outros cristãos” (p. 62). Ao final do primeiro capítulo, Schwartz chama a atenção para a crença da unidade religiosa como condição sine qua non para a paz interna de um território, assertiva presente em obras como a do teórico político Diego Saavedra Fajardo. Nesse sentido, os que pensavam em uma chave religiosa relativista eram vistos como perigosos, pois colocariam em risco a própria unidade sociopolítica do Império.

Além dos católicos, Schwartz analisa os conversos e os mouriscos, recordando que na Península Ibérica, durante a Idade Média, as três grandes religiões monoteístas – islamismo, cristianismo e judaísmo – conviveram em diversas ocasiões. Eram, então, comuns as referências às três leis – a de Maomé, a de Cristo e a de Moisés. Aos poucos, a lei de Cristo foi se sobrepondo às demais, chegando ao ponto da tolerância não ser tão possível assim. Porém, nem todos os vassalos davam importância às questões espirituais. Isto, segundo o autor, é um “alerta contra as tendências de se enxergar o mundo no início da modernidade apenas em termos de religião e salvação” (p. 113).

São apresentadas possibilidades de atitudes tolerantes, mesmo entre os grupos mais insuspeitos, como os clérigos. Também é destacada a descrença como atitude possível, relativizando a famosa tese de Lucien Febvre em O problema da incredulidade no século XVI. Ao final de um capítulo, Schwartz teoriza que “o caminho da crença de cada um parece ter sido determinado mais por decisões e convicções individuais do que por características sociais” (p. 146). Um dos muitos aspectos discutíveis na obra.

“Portugal: cristãos-velhos e cristãos-novos”, capítulo aberto com uma frase que, como toda boa epígrafe, sintetiza perspicazmente as questões que serão desenvolvidas: “Se Deus não queria que os cristãos-novos fossem cristãos, por que haviam os senhores inquisidores de querer fazer os ditos cristãos-novos por força?” (p. 147). Trata-se de questão proferida em Évora, no ano de 1623, por um tal Domingos Gomes. Para a sociedade portuguesa, de acordo com o autor, os cristãos-novos constituíam um problema no que dizia respeito às dúvidas sobre a ortodoxia das práticas católicas. Todavia, mesmo em uma sociedade com estas características, era possível o surgimento de religiosos católicos que discordavam da opinião geral da Igreja. Foi o caso do insigne jesuíta Antônio Vieira, mesmo que motivado por certo pragmatismo econômico.

O Brasil é alvo do sétimo capítulo, onde a questão crucial é a possibilidade de salvação em uma “sociedade escravocrata”. São apresentados os agentes basilares das reformas tridentinas, os padres da Companhia de Jesus, cujas atuações já são bem conhecidas pelos historiadores. Schwartz aponta as desavenças entre jesuítas e outros letrados que insistiam em fazer leituras sui generis de diversas obras. Deparamos, então, com o caso do florentino Rafael Olivi, morador da Fazenda São João, em Ilhéus, e dono de muitos livros. Suspeito de heresia, Olivi foi preso em 1584, por ter feito severas críticas ao Papa e ao alto clero. Segundo Schwartz, o caso do florentino serve para demonstrar que “nem mesmo os remotos confins da colônia estavam fora do alcance de ideias alternativas” (p. 278).

O livro de Stuart Schwartz, traçando um amplo panorama que encobre áreas tão vastas – do Caribe a Cádiz e do Maranhão à região do Porto, por exemplo – traz grande contributo aos estudos sobre religiosidades e relações sociais no mundo atlântico, servindo de contraponto aos inúmeros exemplos de intolerância religiosa que abundam a documentação inquisitorial. Em tempos de intolerâncias explícitas e falsas tolerâncias, esta obra não poderia ser mais oportuna.

Jorge Victor de Araújo Souza – Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense.

O Jogo da Dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil – ALBUQUERQUE (Tempo)

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da Dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, 319 p. Resenha de: GOMES, Tiago de Melo. Dissimulação e outros jogos. Tempo v.15 no.29 Niterói jul./dez. 2010.

“‘Saber o seu lugar’ é uma dessas expressões capazes de traduzir regras de sociabilidades hierarquizadas que, sendo referendadas ou contestadas, atualizam-se cotidianamente. É construindo e conhecendo tais ‘lugares’ que as pessoas estabelecem relações, reconhecem formas de pertencimento e estruturam disputas próprias ao jogo social. Mas quais seriam os sentidos imprimidos a essa expressão no contexto das mudanças políticas e sociais das últimas décadas do século XIX? Em que medida a desarticulação da escravidão fundamentava as leituras que os contemporâneos faziam dos diferentes lugares naquela sociedade?” (p. 33).

Essa é a maneira pela qual Wlamyra R. de Albuquerque define a problemática de seu livro em sua introdução. O tema central de O Jogo da Dissimulação é uma interrogação a respeito da reorganização das hierarquias sociais com o fim da escravidão, um dos pilares centrais de todo um sistema de dominação que dava sentido àquela sociedade. Sendo esse alicerce removido, como os senhores poderiam manter suas políticas de domínio? E como os dominados poderiam buscar uma nova inserção em um mundo sem a presença da escravidão? Sobre tais questões, Albuquerque constrói seu O Jogo da Dissimulação.

O livro possui, dessa maneira, uma ancoragem muito sólida na história social, algo que é mantido com coerência pelos quatro capítulos do livro. Os quais, por sinal, a despeito de interligados, podem ser lidos em separado sem maiores prejuízos para o leitor. Mas o livro não carece de unidade: a problemática enunciada na citação acima é perseguida da primeira à última página, de modo que o que se tem não é uma coleção de artigos, mas um livro com início, meio e fim.

Segundo a autora, o primeiro capítulo seria centrado “nas dissensões flagrantes nos meetings e ações dos abolicionistas, diante das atitudes da população de cor” (p. 39). No entanto, não é uma definição particularmente feliz. Os abolicionistas só entram em cena com o capítulo bem adiantado, na terceira (e última) parte. Através deles, a autora nos mostra que para Salvador valia algo que outros autores já haviam demonstrado para Rio de Janeiro e São Paulo: abolicionismo não é incompatível com racismo. E naquele contexto não era raro as duas coisas andarem juntas, pois muito do abolicionismo de elite era fundado exatamente no desejo de se livrar dos negros para substituí-los por imigrantes brancos.1 Albuquerque nos mostra isso com competência, o que, embora não seja propriamente original, nunca deixa de ser relevante, principalmente com a exaltação que muitos ainda se ocupam de fazer a figuras como Joaquim Nabuco2.

Mas o que efetivamente vale a leitura do capítulo são suas primeiras duas partes. A partir da chegada de dezesseis africanos em 1877, com intenção de se estabelecer em Salvador como comerciantes, a autora nos conduz por uma história incrível. Embora livres e portadores de passaportes ingleses, o grupo é proibido de se estabelecer e mandado de volta para a África. Um episódio que gerou um pequeno choque diplomático com os ingleses e envolveu o chefe de polícia da cidade, o governador da província, chegando à alta instância do Conselho de Estado. Mais admirável é que Albuquerque nos mostra não ter se tratado de fenômeno isolado. Pode ser mais bem definido como parte de um esforço consciente do Estado brasileiro de impedir a entrada de imigrantes de cor sem que houvesse a necessidade de recorrer a uma legislação específica. Ao mostrar outros casos com a mesma problemática e o mesmo final, Albuquerque deixa claro que o Estado brasileiro lutou em várias frentes pelo embranquecimento da nação. Não apenas se esforçou para trazer imigrantes que clareassem o Brasil, mas deliberadamente impediu africanos e afrodescendentes de outras nacionalidades de entrar no país.

O que é uma importante contribuição para inserir de forma mais consistente o papel do Estado brasileiro na promoção da desigualdade racial. A ausência de legislação discriminatória tem feito com que historiadores não deem ao Estado um papel de destaque nesse processo.3 Estudos sobre ações semelhantes em outros contextos, aliados ao trabalho de Albuquerque, fornecem elementos impossíveis de serem ignorados, que apontam claramente nessa direção.4

O segundo capítulo, centrado no contexto imediatamente anterior e posterior ao 13 de maio, é um dos pontos altos do livro. Albuquerque nos conduz por um intenso jogo de reconstrução de sentidos causado pela remoção de um dos pilares sobre o qual se construía a sociedade brasileira até então. Sem a escravidão, os senhores percebiam a derrocada de toda uma política de domínio longamente estabelecida, e o medo do caos social se disseminava (para não mencionar as consequências econômicas, em especial para uma província já decadente). Do lado dos subalternos, a excitação ante a possibilidade da reconstrução de todo um contexto social em termos que lhes fossem mais favoráveis.

Em meio às festividades e desafios políticos que os dominados promoviam, ou a tentativas desesperadas e eventualmente patéticas de manter a antiga ordem social por parte dos dominantes, Albuquerque nos introduz a repensar algo há muito consagrado sobre aquele período. Há uma tendência a pensar na década de 1880 como uma desagregação definitiva da escravidão, e no 13 de maio como apenas o último ato de uma situação praticamente já consolidada. Mergulhando em bairros negros de Salvador, em engenhos do recôncavo e em vilas afastadas no interior, Albuquerque nos lembra com muita intensidade o quanto a escravidão ainda era naquele momento a peça-chave de todo um sistema de dominação que era intensamente presente no cotidiano daquela sociedade.

Já o terceiro capítulo tem um brilho menor. Contém uma ideia muito interessante, e que em certos momentos consegue fascinar o leitor: a de que a racialização da visão de mundo do universo dominante de fins do século XIX não se deve apenas à influência do ideário racista europeu, mas também deve ser vista como uma tentativa de reorganização das hierarquias a partir do declínio da escravidão. Uma ideia das mais interessantes, mas que às vezes é soterrada no capítulo por discussões menos originais. Pintar republicanos como essencialmente brancos bem educados de classe média e alta, em contraposição a uma paixão popular (e sobretudo negra) pela monarquia, por exemplo, é algo que hoje já se transformou em lugar-comum. Muitas páginas são dedicadas a essa questão, sem trazer ganhos palpáveis a uma discussão que, se perseguida de forma mais sistemática por todo o capítulo, poderia ter resultado em uma discussão do mais alto interesse.

Já o quarto e último capítulo muda o rumo da discussão, se embrenhando em uma discussão aberta há muitos anos por Beatriz Góis Dantas,5 mas que poucos tentaram prosseguir. Trata-se da imagem da Bahia como capital afro-brasileira, ideia em grande parte referendada em uma determinada africanidade (a jeje-nagô), que nessa visão seria mais “pura” ou até mesmo “superior” às outras áfricas que aportaram em território nacional.

Se Albuquerque segue o trabalho de Dantas ao se ocupar da visão de atores como Nina Rodrigues, Manoel Querino, Édson Carneiro e Artur Ramos (fundadores e difusores daquela imagem), inova ao acrescentar um dado novo: os próprios africanos e afro-brasileiros que viveram aqueles anos. No capítulo, podemos ver os portadores daquela cultura afro-brasileira que foi alvo de tantos escritos representando a si próprios e a própria África. Aprendemos que não era apenas na faculdade de medicina de Salvador ou nas publicações de literatos que o tema estava na ordem do dia. Blocos carnavalescos, terreiros, batuques, bancas de jogo do bicho, qualquer espaço parecia bom naquele momento para pensar a relação entre África e Bahia.

E o mínimo que se pode dizer a partir da leitura do capítulo é que naquele contexto havia uma multiplicidade de representações disponíveis sobre o continente africano, que não aparecia apenas como espaço da barbárie. Havia outros elementos a ele associados, tais como resistências ao imperialismo europeu. Disso resulta que era evidente o conflito de significados associados àquele continente, com evidentes implicações político-raciais. Áfricas diferentes também significavam diferentes percepções sobre o lugar de seus descendentes em território brasileiro.

O último capítulo de O Jogo da Dissimulação é um convite para que o tema da construção de uma determinada leitura da capital baiana seja mais problematizado por historiadores. O capítulo não é propriamente conclusivo, trazendo mais perguntas do que respostas. De toda forma, desperta a curiosidade do leitor para o tema sobre o qual se debruça, o que é sem dúvidas um mérito dos mais relevantes.

Um pequeno reparo que deve ainda ser feito em uma leitura global do livro se refere ao título. Que poderia ser ótimo, se fosse adequado ao seu conteúdo. Mas a verdade é que não temos em mãos um livro sobre dissimulação. O termo só aparece no primeiro capítulo, para descrever as tentativas do Estado brasileiro de barrar a entrada de africanos e afrodescendentes no país, sem recorrer a uma racialização explícita. No mais, o que temos são confrontos, projetos, choques de visão de mundo, mas nunca dissimulação.

O Jogo da Dissimulação, ao fim, mostra-se um livro instigante, que deixa no leitor uma vontade de saber mais sobre o assunto. É de esperar que sua publicação contribua para que as questões discutidas possam avançar. São temas muito importantes e nem sempre tratados como deveriam pela historiografia brasileira.

Gostaria de encerrar com uma questão de caráter mais geral que o livro levanta: o papel da escravidão na trajetória posterior dos afro-brasileiros. Albuquerque nos lembra de algo muito importante: o destino dos afro-brasileiros após 1888 poderia ter sido muito diferente. A escravidão não pode ser vista, portanto, como uma origem que explica toda uma trajetória posterior de desigualdades raciais. Vemos claramente no livro como o encaminhamento da “questão servil”, desde o momento em que a abolição afigurou-se como inevitável, foi conduzido de forma a produzir desigualdades em um mundo sem escravidão. Vemos os grupos dominantes buscando na racialização uma maneira de reorganizar as hierarquias de forma a manter a existência de senhores, mesmo em um mundo sem escravos. Em um momento em que essa questão está na ordem do dia, Albuquerque nos lembra com muita propriedade o quanto essas diferenças e hierarquias se reconstroem permanentemente. Somos todos atores desta história.

1 O trabalho seminal sobre o assunto é Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites – século XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
2 Novamente é preciso lembrar o trabalho de Célia Azevedo, em textos como “Quem Precisa de São Nabuco?”, Estudos Afro-Asiáticos, vol. 23, nº 1, Rio de Janeiro, 2001, p. 85-97.
3 Uma exceção importante é o trabalho de Anthony Marx, em obras como “A Construção da Raça e o Estado-Nação”, Estudos Afro-Asiáticos, nº 29, Rio de Janeiro, 1996, p. 9-36 e Making Race and Nation: a comparison of the United States, South Africa and Brazil, Cambridge-New York, Cambridge University Press, 1998.
4 Episódios semelhantes foram documentados na década de 1920, ver Teresa Meade e Gregory Alonso Pirio, “In Search of the Afro-American ‘Eldorado’: attempts by North American blacks to enter Brazil in the 1920s“, Luso-Brazilian Review, vol. 25, nº 1, Madison, 1988, p. 85-110; Tiago de Melo Gomes, “Problemas no Paraíso: a democracia racial brasileira frente à imigração afro-americana (1921)”, Estudos Afro-Asiáticos, vol. 22, nº 2, Rio de Janeiro, 2003, p. 307-331; Jair de Souza Ramos, “Dos Males Que Vêm Com o Sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 1920”, in: Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (orgs.), Raça, Ciência e Sociedade, Rio de Janeiro, Fiocruz-CCBB, 1996, p. 59-82.
5 Beatriz Góis Dantas, Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1988.

Tiago de Melo Gomes – Professor Adjunto da Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-mail: [email protected].

Hitler’s Empire – How the Nazis ruled Europe – MAZOWE (Tempo)

MAZOWE, Mark. Hitler’s Empire – How the Nazis ruled Europe. New York: Penguin Books, 2008, 725 p. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. O Império de Hitler. A “Nova ordem” nazista na Europa, 1939-1945. Tempo v.14 no.28 Niterói jun. 2010.

Vários mitos rondam a história da Alemanha nazista. A princípio, seria esta o Estado mais eficiente que já existiu, já que combinava a tradicional eficiência e organização alemã com o sistema político nazista, o qual seria completamente hierárquico e centralizado. Um super Estado, que funcionaria como um relógio, substituindo a anarquia da sociedade liberal democrática que ele vinha a substituir.

A pesquisa histórica dos últimos anos tem indicado como estas qualificações para o III Reich são, acima de tudo, mistificações, criadas, em parte, pela própria propaganda nazista. O Estado nazista, longe de ser hierárquico e centralizado, era uma verdadeira coleção de instituições, organizações e indivíduos disputando poder e influência. É evidente que Hitler detinha, no limite, o poder de decisão final, mas isso não implicava na formação de uma estrutura tão coesa e hierarquizada como se supunha.

Isso fica evidente, por exemplo, na produção de armamentos durante a Segunda Guerra. Estados Unidos e a Grã-Bretanha conseguiram articular a coordenação estatal com a livre empresa, enquanto a URSS adotou um modelo mais centralizado e com planejamento central. Todos estes países conseguiram aumentar significativamente sua produção bélica durante o conflito, enquanto a Alemanha, o suposto Estado mais eficiente do mundo, ficou muito atrás e isso ocorreu, em boa medida, pelas disputas sem fim de seus líderes e instituições.

Mark Mazower derruba mais um mito sobre a Alemanha nazista em seu novo livro. Em Hitler´s Empire – How the Nazis ruled Europe (New York: Penguin Books, 2008, 725 p.), ele demonstra como, ao contrário do que tradicionalmente se imagina, os nazistas não tinham nenhum plano definido e perfeito de como dominar o mundo e que ninguém mais do que eles se espantou com a enormidade de suas conquistas entre 1939 e 1941.

O autor, na verdade, não rompe com a análise tradicional que indica que, nas mentes dos líderes nazistas, haveria sim algumas prioridades e diretrizes gerais a seguir na busca do Império. Unificar todos os germânicos numa grande Alemanha, conseguir o controle da Europa e, especialmente, da Rússia européia, eram os estágios mais ou menos certos a serem seguidos. Um dia, no futuro, talvez, haveria um grande conflito com os Estados Unidos, mas isso estava apenas no campo das especulações, sem nenhuma indicação imediata de que iria ocorrer.

O que Mazower indica é que, na verdade, mesmo para os estágios iniciais, os nazistas não tinham muita segurança do que fazer. A unificação dos povos alemães dentro de um Estado nazista era algo mais ou menos simples de conceber e imaginar. No entanto, mesmo os passos posteriores, apesar de sempre pensados, nunca haviam se convertido em planos e diretrizes prontas a serem aplicadas. Assim, quando quase toda a Europa caiu sobre o controle alemão, entre 1939 e 1941, a ideologia nazista oferecia apenas alguns esboços gerais do a ser feito, sendo necessárias inúmeras adaptações e experiências para tentar delimitar o que fazer.

Assim, em pouco tempo, vários órgãos e instituições começaram a debater sobre como agir frente ao novo Império. A Ucrânia, por exemplo, era vista como o seu futuro celeiro. Mas seria ela um protetorado com algum grau de autonomia ou uma colônia? E a França, seria ela retalhada ou manteria alguma autonomia? E os países nórdicos, fariam parte de algum tipo de confederação germânica ou seriam anexados ao Reich? Essas e outras questões começaram a surgir naqueles anos em que parecia que a Alemanha tinha vencido a guerra e não havia resposta clara a elas.

Claro que algumas diretrizes centrais já estavam mais ou menos estabelecidas. Haveria uma hierarquização geral dos povos europeus com base na doutrina racial e todos os recursos desse espaço serviriam para manter a máquina de guerra alemã e, ao seu final, para o engrandecimento desse Império. Também está claro como haveria povos que seriam mais ou menos tolerados, como os europeus ocidentais, e outros destinados a escravidão, como os poloneses, além, é claro, da eliminação, pela emigração ou morte, dos judeus. Mas isso eram apenas idéias gerais, que, ao serem confrontadas com a realidade, levaram, muitas vezes, a improvisação e a experiências diversas.

Os nazistas tiveram que recorrer, assim, às únicas fontes de inspiração possíveis, ou seja, os velhos padrões colonialistas europeus, os tradicionais objetivos geopolíticos alemães na Europa do Leste e as suas obsessões raciais. Foi com base nisto que eles construíram suas políticas, numa combinação de tradição e novidade realmente notável.

Dessa forma, a ocupação da Polônia, por exemplo, refletia um histórico de luta entre alemães e poloneses que já vinha de séculos, mas os nazistas incluíram, na mesma, um padrão de guerra racial que implicava na impossibilidade de qualquer autonomia para a Polônia. Eles tendiam a ver, no Leste Europeu, um verdadeiro “Far West” nos moldes da conquista americana do oeste, no qual eles exterminariam os povos nativos, ou uma Índia, a ser dominada pela raça superior. Ou seja, eles seguiam padrões tradicionais para o colonialismo europeu, com o diferencial de estarem aplicando estes padrões no continente europeu e os combinando com a obsessão racial.

Estas tradições e obsessões, contudo, eram tão vagas que permitiam que o Exército, o Partido, os diversos ministérios civis, a SS e muitas outras instituições apresentassem a sua versão do correto a fazer, levando a reorganização do espaço europeu a se tornar mais um campo de disputa entre os pólos de poder nazista.

Assim, enquanto Rosenberg e outros líderes políticos queriam oferecer, aos ucranianos, sérvios e mesmo aos russos algum grau de autonomia para atraí-los ao campo do Eixo, a SS e o próprio Hitler preferiam uma política de terra arrasada, de repressão contínua, que acabou por ampliar cada vez mais a resistência.

Já muitos militares e burocratas do Ministério dos armamentos não se conformavam com a morte de milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, ciganos e judeus enquanto a necessidade de mão-de-obra no Reich crescia a olhos vistos. Pessoas do Ministério do exterior, por sua vez, queriam oferecer algum tipo de recompensa mais palpável para os colaboracionistas em toda a Europa, enquanto a SS e outras forças se recusavam a compactuar com os racialmente destinados a obedecer.

Enfim, fica claro como havia um intenso debate a respeito da política a ser seguida. A idéia dos nazistas como monstros que só pensavam em matar e destruir nos faz perder a realidade de que aqueles eram homens que podiam defender, dentro de certos limites, propostas diferentes.

Mazower indica, além disso, como a própria experiência da guerra levou a política nazista a se radicalizar de forma expressiva. Assim, enquanto o “problema judeu” era uma constante no pensamento nazista, a idéia de exterminá-los fisicamente foi emergindo aos poucos, até a criação dos campos de extermínio, não previstos desde o primeiro momento.

Na verdade, tenho dúvidas se todas estas opções menos brutais, que o autor elenca com cuidado, tinham realmente chance de ser colocadas em prática. Em alguns momentos, aliás, Mazower dá a impressão de considerar que todas as várias propostas tinham chances iguais de serem transformadas em políticas, o que me parece complicado. Afinal, mesmo que reconheçamos que havia várias percepções nazistas sobre o mesmo assunto, fato é que o nazismo se caracterizava por uma idolatria à violência e à dominação e a vitória das propostas mais radicais, de dominação total e ostensiva, como as da SS, me parece quase lógica.

Um ponto interessante do livro, igualmente, é quando ele começa a discutir o significado de raça e política racial dentro do pensamento nazista e, especialmente, as inúmeras adaptações que a doutrina racial teve que se submeter para se tornar minimamente prática na organização do novo Império.

Assim, no afã de colonizar as partes ocidentais da Polônia, substituindo os poloneses por alemães, eles encontraram um problema demográfico insuperável. Não apenas os poloneses eram numerosos, como não havia germânicos em número suficiente para substituí-los. A solução, em boa medida, passou pela germanização forçada de muitos poloneses que tinham as características adequadas para serem assimilados, numa louca tentativa de encontrar alemães para os objetivos colonialistas do regime.

Duas questões de interesse emergem, a meu ver, dessa sua observação. A primeira é que o nacionalismo etno-linguístico do século XIX e a visão mais racialista do nazismo não eram completamente incompatíveis. As discussões sobre raças, na Europa do XIX, giravam sempre em torno de questões de língua e cultura, com a possibilidade de aculturação e assimilação do “outro” sempre presente. Mas havia também um tom racial, que identificava uma determinada cultura com determinada raça e nem sempre se aceitava que a assimilação desta ou daquela raça era aceitável e/ou desejável.

A Alemanha nazista inverteu esse padrão, absorvendo os ideais do racismo científico e levando a raça ao posto de divisor central entre povos e pessoas. Mas um tom etno-cultural também existia. Assim, havia eslavos mais próximos da cultura alemã, como parte dos tchecos, que poderiam ser assimilados, enquanto os poloneses, dado a histórica rivalidade entre os dois povos, só o seriam em mínima parte. O nazismo levou o racismo biológico ao seu máximo desenvolvimento, mas as idéias de assimilação cultural e lingüística também estavam presentes, sendo judeus e ciganos, provavelmente, os únicos aos quais essa possibilidade foi cem por cento negada.

O segundo ponto que me chama a atenção é a facilidade com a qual Estados quase totalitários, como a Alemanha de Hitler, planejaram e executaram projetos de engenharia populacional de uma magnitude inacreditável. Discutia-se a morte ou o deslocamento de dezenas de milhões de pessoas e a reorganização espacial de todo um continente com uma facilidade impressionante. Em um momento, chegou-se a imaginar até o envio de milhões de eslavos ao Brasil, o qual, em troca, devolveria a população de origem germânica ali emigrada (p. 209). Um total absurdo, mas que indica a facilidade com que estes projetos de reorganização espacial e populacional eram pensados e como, no caso nazista, eles foram colocados em prática ao menos em parte.

A ironia maior indicada pelo livro, contudo, é a de que o próprio estilo de administração alemã da Europa ocupada colaborou para o seu fim. Ao pilhar toda a economia européia (ao invés de permitir o seu desenvolvimento), desperdiçar a sua força de trabalho em massacres inúteis e não oferecer nenhuma opção aos povos dominados que não a dominação, o nazismo não conseguiu extrair, do continente, tudo o que poderia em termos de força militar, o que facilitou a sua derrota pelos Aliados. Na sua brutalidade, na sua violência gratuita, estava a semente da sua destruição. Uma conclusão não inédita, mas que ele consegue detalhar e explicitar em detalhes.

O livro de Mazower, assim, é uma leitura que vale a pena. Ele não explora fontes primárias e se baseia, em essência, na imensa bibliografia acumulada sobre o tema nas últimas décadas. Em alguns momentos, o esforço para absorver e reorganizar toda a massa de informação recolhida se transmuta em repetições e numa prolixidade que cansa o leitor. Mesmo assim, é um estimulante relato a respeito dessa história de idéias, adaptações, morte e construção imperial que merece ser lido não apenas pelos especialistas em nazismo ou em políticas imperiais, mas por todos os interessados em estudar o processo pelo qual idéias e (pré) conceitos se adaptam a realidade e, ao mesmo tempo, fazem a realidade se adaptar a eles.

João Fábio Bertonha – Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá/PR e Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected].

Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição – VAINFAS (Tempo)

VAINFAS, Ronaldo. Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 384 p. Resenha de: SANTOS, Maria Cristina dos. Lições da Traição: a redução da escala na análise histórica. Tempo v.14 no.27 Niterói  2009.

Desde a década de 1980, a quantidade de traduções e publicações acerca das discussões sobre os novos paradigmas teóricos e metodológicos da pesquisa histórica supera em muito os títulos resultantes de pesquisas que ousaram aplicar os novos paradigmas em discussão, indicação clara de que, na produção do conhecimento histórico no Brasil, muito se discute sobre como fazer, mas pouco se arrisca ao realizar uma pesquisa documenta. Esta particularidade pode ser observada no boom editorial que ocorreu nas publicações sobre a História das Mentalidades, História Cultural, de Gênero, da Vida Privada, entre outras.

Algo semelhante ocorria, até então, com a metodologia da redução da escala de análise histórica. Entre as inúmeras discussões realizadas, alguns autores tentaram vincular à metodologia da microanálise os restritos resultados de suas pesquisas locais e/ou regionais. Nada mais distante. Essas tentativas cômodas, oriundas de leituras superficiais, foram usadas para justificar pesquisas, ou melhor, recopilação de documentos, sem alcance analítico para ultrapassarem os limites locais onde foram realizadas. O impulso metodológico da microhistória não é small is beautifull; não é a pequenez do gesto, mas a análise, a escala de observação.1 Conforme Medick, é importante destacar a perspectiva de conhecimento microanalítica como um, mas de forma alguma o único, método específico de investigação. Mas só ele permite – partindo das ações, experiências e condições de vida de pessoas individuais – localizar, de uma maneira nova, seu envolvimento em redes sociais, culturais e econômicas, incluindo seus efeitos e limites nos contextos globais.2

Não foi por mera coincidência que Vainfas iniciou seu ensaio sobre Os Protagonistas Anônimos da História, apresentando de forma crítica a micro-história em meio a uma “teia de equívocos”, evidenciando, assim, o que ela “não é”.3

Entre os inúmeros debates realizados no âmbito acadêmico, Sandra Pesavento não titubeou ao afirmar: “realizar microanálise é dizer mais sobre um recorte do real a partir de um método, mas isto é dado também pela bagagem de conhecimento prévio e à parte deste recorte de escala”.4 A peremptória afirmação beira o desafio: dizer mais sobre um recorte do real. Isso pressupõe que realizar uma pesquisa documental, conforme os paradigmas conceituais e metodológicos da micro-história, não é tarefa fácil, tampouco para principiantes. Tal constatação fica demonstrada na forma, no conteúdo e nos enlaces descortinados por Vainfas na Traição.

A construção da narrativa seduz o leitor, quer pela forma, quer pelo conteúdo. Sobre a forma, cabe salientar que Vainfas subverte o formato da narrativa histórica clássica, ao começar pela descrição do ambiente das cenas finais da trama urdida por Manoel de Moraes, tal como num romance policial. A realização de uma exaustiva pesquisa histórica não é, nesse caso, justificativa para apresentar os resultados em textos longos, aborrecidos e recheados de um vocabulário hermético. As aventuras e desventuras desse protagonista, até então quase anônimo, são apresentadas numa sequência de quarenta capítulos, em sua maioria, curtos e construídos literariamente de maneira a prender o leitor e desconcertar o historiador, sobretudo aquele mais tradicional. Mas, o que parece inusitado na forma avança ainda mais no conteúdo.

Vainfas reconstituiu a história de Manoel de Moraes em uma narrativa envolvente que não abandona em nenhum momento o necessário rigor acadêmico. O prazer da leitura de um texto literariamente sedutor traz consigo vários questionamentos teóricos e metodológicos sobre a historiografia do período colonial.

Manoel de Moraes nasceu em São Paulo, tornou-se jesuíta e atuou como missionário em Pernambuco. Participou de forma ativa, junto com Felipe Camarão, das guerras entre Portugal e Holanda, na primeira metade do século XVII. No posto de Capitão do Gentio, Manoel atuou, com armas em punho e em uso, na frente de batalha. “O lado paulista de Manoel de Moraes veio à tona com força máxima nos combates contra o holandês […] na verdade, lutava e matava com garra, agindo como autêntico paulista nos matos, esquecido dos mandamentos de Deus e de suas obrigações como sacerdote”(p. 43-45). Mas, ao perceber a iminente derrota, Manoel cruza o campo de batalha e se oferece aos holandeses. O limite entre a rendição e a traição no final da guerra da Paraíba é quase invisível – o que, segundo Vainfas, dá quase no mesmo. Manoel de Moraes passou para o lado dos holandeses e levou consigo todos os índios que comandava. “No mínimo salvou a própria vida e logo vislumbrou novos horizontes”(p.65).

A partir daí, o leitor, seja alheio ao assunto ou um especialista, será levado a caminhos inimagináveis, traçados tanto pela trajetória oblíqua do personagem, como pela habilidade de Vainfas como narrador. Manoel de Moraes passa, então, a protagonizar uma sequência de traições – que estão para muito além de gregos, troianos e pernambucanos.

Depois de trair os princípios contrarreformistas do Concílio de Trento, onde havia começado sua formação religiosa, mudou-se do Brasil para a Holanda. Foi aí que se casou por duas vezes, dentro dos rituais calvinistas. O primeiro casamento foi por conveniência política e econômica; já o segundo, nosso Manoel acabou por ceder “às fraquezas da carne e aos excessos contra o sex[t]o mandamento”(p.126-154). Foi também na Holanda que ele se escondeu do primeiro processo da Inquisição portuguesa, quando foi julgado e condenado à fogueira. Na ausência do réu, uma estátua deste foi queimada em praça pública (p.180), conforme as determinações do Santo Ofício. Tornou-se um informante privilegiado dos holandeses contra os portugueses, inclusive na questão da forma de como atuar junto aos indígenas no Brasil. Entre as várias obras que produziu, elaborou um “Plano para o Bom Governo dos Índios”, utilizando o modelo jesuítico, porém sem jesuítas (p.121). Trocou uma Companhia (de Jesus) por outra (a das Índias Ocidentais), como um padre troca de batina.

missa de Manoel, no entanto, não está nem na metade. Surpreendentemente, ele faz o caminho de volta. Atormentado pelos dramas de consciência, talvez resquícios de sua formação jesuítica, empreende uma viagem de retorno ao Brasil e ao catolicismo, porém não à vida sacerdotal strictu sensu. Nesta circunstância é que Manoel de Moraes se converte num traidor perfeito.

Traiu os jesuítas, traiu os portugueses na guerra de resistência; voltou a traí-los, prometendo servir a D. João IV em troca de mercês e perdões, enquanto arrancava dos holandeses o contrato do paubrasil; traía, ao mesmo tempo, a WIC [West International Company], oferecendo-se aos embaixadores portugueses para combater os holandeses no Brasil; traiu Adriana Smetz, não nos esqueçamos dela [e de sua beleza estonteante], ao abandoná-la com três crianças em Leiden. Não haveria de ser como brasileiro que Manoel honraria algum contrato (p.230).

De volta a Pernambuco, com um empréstimo da WIC, Manoel torna-se senhor escravista, negociante de pau-brasil, e passa a viver provavelmente amancebado à “negra Beatriz”, que desempenhava nada menos do que a função de feitora [!] (p.232). Durante seus últimos anos no Brasil, consegue algumas outras façanhas, tais como: enriquecer como negociante, passar o calote na Companhia das Índias e ainda conceber “a peculiar e absurda perspectiva de vir a ser uma espécie de predicante católico. Católico na fé, com direito a pregar e oficiar missas, mas sem o voto de obediência (exceto a militar), muito menos os de pobreza e de castidade. Uma espécie de mescla entre o predicante calvinista e o padre católico”(p.259). Tanto fez que, por fim, foi preso e levado ao Tribunal do Santo Ofício da metrópole lusitana.

Em Lisboa, encarcerado na Casa Negra do Rocio, Manoel de Moraes começa uma terceira e derradeira etapa de suas estratégias. Será durante seu segundo julgamento que as habilidades retóricas e as artimanhas mais audaciosas desse memorável personagem terão mais espaço.

Atitudes, propósitos e convicções, aparentemente contraditórias, são constantes na tortuosa vida de Manoel de Moraes. Pelo texto de Vainfas, tais contradições convertemse em luzes sobre um passado cristalizado pela historiografia tradicional, como blocos homogêneos, quase sempre antagônicos. De um lado está o Ocidente católico e civilizador; de outro, os nativos a serem cristianizados e cooptados pelas forças colonizadoras. Nesta historiografia de antagonismos, não há espaço para fraturas, para desvios de comportamento ou para qualquer exceção.

Não foi pouco o esforço teórico e metodológico que a academia empreendeu, em particular, na última década para demonstrar as diversidades internas de supostos conjuntos sócio-religiosos-econômicos e culturais dos nativos, com os quais um Ocidente se enfrentou. Vainfas apresenta muito além da vida de altos e baixos de Manoel de Moraes e ressalta a importância de uma pesquisa séria como base de uma análise histórica consistente. Por meio das traições de Manoel de Moraes, Vainfas constrói uma audaciosa trilha até então minoritária na academia. Ao longo do texto, são apontados inúmeros elementos para relativizar a suposta constância do Ocidente nas Américas. Em particular, a pretensa homogeneidade de uma instituição como a Companhia de Jesus, criada com o intuito de atuar como elemento de coesão do mundo católico ameaçado pelas fraturas provocadas pelos diversos movimentos reformistas, tais como o Luteranismo, Anglicanismo e Calvinismo.

Ao leitor leigo, as peripécias de Manoel como Capitão dos Gentios, Fantasma, Calvinista, Delator, Pertinaz Valentão, ou entre Paixões Flamengas, despertará curiosidades e dúvidas no conhecimento sobre a América Portuguesa, o Brasil Holandês e as disputas europeias do século XVII, disseminadas no senso comum. Ao leitor acadêmico, a trajetória deste personagem, aliada ao refinamento teórico-metodológico de Vainfas, evidencia por que e como a rigorosa pesquisa documental ainda se mantém como o grande diferencial entre o pensar, fazer e escrever História e o escrever sobre História.

Todas as afirmações estão documentalmente comprovadas e a cronologia incluída no final da obra contextualiza os eventos narrados. Se para alguns leitores tais informações podem servir como bússola das intrigas na qual Manoel esteve inserido, para outros servirá também para evidenciar que o período moderno, tanto na Europa Ocidental quanto em suas ramificações coloniais, não pode ser explicado somente como a transição do feudalismo ao capitalismo, ou como a época de ouro do pensamento mesti ço. Manoel de Moraes é tudo isso e muito mais.

Ao longo do texto, no século XVII, Espanha, Portugal, Holanda e Brasil aparecem formando complexas redes de poder e de conflito que possibilitaram circunstâncias nas quais as lealdades eram naturalmente volúveis. Manoel de Moraes, com suas aventuras e dramas pessoais, é utilizado para expor os conflitos religiosos, os ambientes em que viviam os personagens e os processos de mediação cultural que desenham uma conjuntura colonial muito mais complexa do que aquelas estabelecidas pelas macroanálises.

No ofício da pesquisa, o historiador deve questionar suas fontes e estabelecer conexões, por meio do cruzamento de informações. Se o momento vivido por Manoel de Moraes assim o exige, Vainfas não se abstém de ampliar a escala de análise, demonstrando, assim, como esse exercício é fundamental na pesquisa histórica.

Em contrapartida, o Santo Ofício desconhecia completamente o que se pode alcançar noutras fontes, a exemplo das preciosas informações que Manoel dera aos holandeses logo depois de se render na Paraíba, as quais, sem dúvida, adensavam suas culpas. Se soubessem disso, ou do que Manoel tinha contado ao irlandês O’Brien em Amsterdã, em junho de 1635 (!), os inquisidores talvez estreitassem a relação entre traição e heresia, percebendo essa última já nas ações do ex-padre desde fins de 1634. Não deixa de haver, portanto, alguma semelhança entre o mameluco paulista e o irlandês aventureiro, seja na audácia das atitudes, seja no ânimo irrefreável de romper fronteiras, seja ainda na fluidez das lealdades e compromissos (p.186).

Nesta ocasião, entre outras, Vainfas evidencia as particularidades da aplicação metodológica na pesquisa, pois

é próprio do método da microhistória estabelecer esta rede de relações […] na medida em que estas relações pressupõem um in e um out com relação à escala escolhida, a micro-história seria um método que jogaria com as dimensões do geral e do específico, do todo com a parte, do particular com o geral, da regra com a anomalia, do consensual com a diferença ou ainda do texto com o contexto5 .

Portanto, seja qual for o intuito do leitor ao se aproximar da mais recente obra de Vainfas, encontrará muito mais que os caminhos da construção/compreensão das intrigas do passado, tal como já advertiu Paul Veyne, no clássico texto Como Escrever História.6 Com toda a certeza, entenderá que o mérito de o verdadeiro métier do historiador pode ser tão, ou mais, encantador que o do curioso que se apropria de temas históricos com o intuito de popularizar a História. As constantes traições cometidas por Manoel de Moraes foram utilizadas também para mostrar como a produção do conhecimento histórico tem avançado na forma e no conteúdo. É bem verdade que nosso Manoel não chegou a questionar as origens do Universo como Menocchio.7 Entre este último e Manoel de Moraes há mais de um século e um oceano que os separa. Mas, os resultados apresentados por Vainfas são exemplares para demonstrar como fazer a redução da escala de análise, constituindo-se assim, numa referência historiográfica made in Brazil. Como oposição complementar, Vainfas manteve-se fiel a sua vinculação acadêmica e transformou uma rigorosa pesquisa documental num texto sedutor. A Traição traz várias lições; basta tentar aprendê-las.

1 Brad S. Gregory, “Is small beautiful? Microhistory and the history of everday life”, History and Theory Studies, Middletown, Wesleyen University, vol. 38, nº 1, p. 100 -110, 2002.         [ Links ] 2 Hans Medick, “Quo Vadis Antropologia Histórica? A pesquisa histórica entre a ciência histórica da Cultura e a Micro-História”, Aula Inaugural na Faculdade de Filosofia de Erfurt, 03 jul. 2000. Tradução René Gertz, Métis: história & cultura, Caxias do Sul, EDUCS, vol. 2, nº 3, p. 199-216, 2003, p. 209.         [ Links ] 3 Ronaldo Vainfas, Micro-história: Os Protagonistas Anônimos da História, Rio de Janeiro, Campus, 2000, p. 07-51.         [ Links ] 4 Sandra Jatahy Pesavento, “O corpo e a alma do mundo. A micro-história e a construção do passado”, História Unisinos. Dossiê: Teoria e metodologia da História, São Leopoldo (RS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos, vol. 8, nº 10, 179-189, 2004. p. 180.         [ Links ] 5 S. J. Pesavento, op. cit. 2004, p.183.
6 P. Veyne, Comment on écrit l’histórie, Paris, Editions du Seuil, 1971.         [ Links ] Tradução portuguesa: Como escrever História, Lisboa, Edições Anos 70, 1987, p. 107-136.         [ Links ] 7 Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pel a Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. Edição original: 1976.         [ Links ]

Maria Cristina dos Santos – Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].

Trama de una guerra conveniente: Nueva Vizcaya y la sombra de los apaches (1748-1790) – ORTELLI (Tempo)

ORTELLI, Sara. Trama de una guerra conveniente: Nueva Vizcaya y la sombra de los apaches (1748-1790). México, D.F.: El Colegio de México, Centro de Estudios Históricos, 2007. 259 p. Resenha de: GARCIA, Elisa Frühauf. De protagonistas a coadjuvantes: a ameaça “apache” na província de Nueva Vizcaya (Norte do México, segunda metade do século XVIII). Tempo v.13 no.26 Niterói  2009.

A partir de rigorosa pesquisa documental, acompanhada de fina interpretação histórica, Sara Ortelli desmonta, passo a passo, alguns dos pressupostos estabelecidos sobre a história da província de Nueva Vizcaya, norte do México, durante a segunda metade do século XVIIII. Até então, as análises sobre o período estavam calcadas nas ameaças dos índios hostis à sociedade colonial, personificados nos “apaches”, considerados o principal elemento para compreender a atmosfera de perigo e violência evidenciada na documentação.

Analisando uma vasta gama de fontes, localizadas em arquivos no México e na Espanha, a autora busca perceber como surgiram e a quem serviam os informes sobre a iminência de um ataque dos índios. Inserindo a pesquisa na conjuntura específica da segunda metade do século XVIII, Ortelli aponta a aplicação das medidas bourbônicas, orientadas ao maior controle do poder central sobre áreas que até então gozavam de relativa autonomia, como um dos elementos explicativos para a irrupção não da violência em si, mas dos reclames generalizados sobre o perigo representado pelos “apaches” e pela sensação de insegurança vigente na província. Em sua argumentação, a aplicação dessas medidas ameaçaria o lugar ocupado por alguns dos principais membros das elites locais, que exerciam cargos relacionados à manutenção da segurança da região, especialmente nos fortes destinados ao controle da fronteira. Muitos dos seus membros, que alardeavam o perigo “apache”, mantinham com esses índios relações bastante próximas, incluindo trocas comerciais, colaboração em atividades militares e laços pessoais. Assim, “a exaltação do perigo da guerra (tanto em seu aspecto real como potencial e imaginário) e a presença do inimigo (tanto em seu caráter de perigo efetivo, como mediante sua construção como perigo iminente) serviram para sustentar interesses, justificar situações e defender privilégios” (p. 51).

Além desses agentes, beneficiários diretos da manutenção da atmosfera de violência, surgem outros grupos e as relações sociais se complexificam, à proporção que uma leitura atenta dos documentos vai descortinando novos sujeitos, estratégias diferenciadas e incertezas no seio da própria administração. Os administradores coloniais, especialmente os designados em função da aplicação das medidas bourbônicas e, em alguns momentos, desconfiados que os alardes sobre a insegurança poderiam estar sendo usados como subterfúgios, organizaram expedições para averiguar a real dimensão do perigo “apache”. Nessas expedições, foram raros os momentos em que de fato se depararam com “o inimigo”, embora a simples possibilidade disto acontecer era suficiente para encher de temor os seus integrantes, devido aos rumores sobre a ferocidade dos “apaches” e seus hábitos supostamente antropofágicos.

Os funcionários reais, além de divisarem um território onde as ameaças não eram onipresentes, mas meramente circunstanciais, quando se deparavam com bandos que praticavam ataques orientados ao roubo de rebanhos, não encontravam exatamente os “apaches”, mas grupos heterogêneos, compostos por indivíduos de origens diversas. Dentre eles havia espanhóis, italianos, membros das “castas”, africanos e seus descendentes, além de índios fugidos, temporária ou definitivamente, dos pueblos.

Os roubos de animais também eram praticados por outros grupos, denominados especificamente como abigeatários. Para a autora, longe de ser uma prática ocasional, o abigeato era uma atividade a qual alguns grupos se dedicaram ao longo de anos e de gerações sucessivas. Seus membros muitas vezes estavam interligados por redes de parentesco e laços pessoais, tanto verticais quanto horizontais, que viabilizavam a continuidade da prática e certa imunidade diante de possíveis condenações pelos roubos. Ao constatar que, uma vez aprisionados, esses homens não eram condenados pela justiça, Ortelli demonstra as suas relações com integrantes das famílias de elite da região, que os vinculavam à sociedade local e transformavam suas práticas em algo estrutural na província. Novamente a autora discorda frontalmente com interpretações consolidadas na historiografia, que imputavam tais roubos a situações de instabilidade política e econômica ou à “desordem” social por ocasião da independência.

As expedições de reconhecimento e a maior percepção sobre a realidade local trouxeram aos funcionários reais uma conclusão surpreendente: as ameaças na região não provinham de grupos localizados fora da sociedade colonial, como no caso dos “apaches”, mas eram formadas pelos habitantes das vilas e povoados da província. Por outro lado, a complexa teia de interesses por trás dos roubos e as dificuldades encontradas para efetivamente visualizar quem eram afinal os responsáveis pelos mesmos, assim como para puni-los uma vez descobertos, demonstraram também os limites para a aplicação das medidas formuladas na corte. Ao tentarem aplicar as medidas bourbônicas, os agentes do rei encontraram uma sociedade com uma dinâmica própria, articulada de acordo com privilégios adquiridos, cujos beneficiários não seriam facilmente alijados e/ou remanejados para satisfazer os macro-interesses geopolíticos, administrativos e econômicos do Império espanhol.

Os “apaches” propriamente ditos, apesar de raramente divisados pelos funcionários reais, participavam da cadeia de roubos como receptadores dos gados e dificilmente como perpetradores dos assaltos aos rebanhos. Em troca do gado, ofereciam peles e uma mercadoria importante para o desempenho das atividades dos bandos: roupa “tipicamente apache”. Munidos dessas vestimentas e com o rosto pintando com carvão, os integrantes dos bandos praticavam os assaltos com a intenção de que fossem atribuídos aos “apaches”. O disfarce tinha ainda outra função: dificultar a sua identificação, pois muitos deles faziam parte da sociedade colonial e temiam ser reconhecidos enquanto praticavam tais atividades.

Ao abordar os índios aldeados e sua interação com os demais segmentos da sociedade colonial, a autora enfrenta questões importantes e atuais nos estudos sobre a temática. Analisando a sua mobilidade, inclusive a participação em atividades consideradas ilícitas, demonstra como a existência de duas repúblicas distintas, de espanhóis e de índios, era uma representação idealizada que pouco condizia com a realidade da província. A despeito disto, tal representação continuava a ser usada pelos espanhóis para perceber a sociedade em que viviam e orientava a formulação de medidas que buscavam intervir na mesma. Os aldeados, por sua vez, apesar das representações idealizadas que os circunscreviam ao espaço dos pueblos e controlados pelas ordens religiosas, possuíam amplas relações sociais e econômicas fora dos aldeamentos e a opção por ir e vir dos mesmos era uma possibilidade manejada por muitos deles. Além de não estarem rigidamente apartados da “república de espanhóis”, mantinham ainda relações com os índios não inseridos na sociedade neovizcaína, como os próprios “apaches”. Tais relações foram interpretadas pelos funcionários reais como uma desagregação da “república de índios”, principalmente após a expulsão dos jesuítas dos domínios americanos. Neste ponto, Ortelli novamente destaca o descompasso entre a representação do mundo colonial e seu funcionamento efetivo, pois essas relações eram anteriores ao estabelecimento dos espanhóis na região e se mantiveram ao longo do tempo, ainda que reformuladas e ressignificadas.

Como demonstrado também por estudos em várias regiões da América portuguesa, as relações dos diferentes grupos indígenas entre si e suas interações com a sociedade colonial eram dinâmicas e orientadas, na medida do possível, pelas suas próprias demandas. Assim, apesar das tentativas dos colonizadores de classificar de maneira estanque as populações indígenas a partir dos diferentes mecanismos de sua inserção na sociedade colonial, suas relações eram marcadas pela fluidez, variando de acordo com a reformulação de suas demandas diante das oportunidades e desafios enfrentados em diversas conjunturas.1

Outro aspecto importante levantado pela autora é a interpretação vigente em certa historiografia que considerava os ataques, entendidos como protagonizados pelos índios, como uma manifestação de resistência à sociedade colonial. De modo um pouco genérico, essa resistência era entendida como ataques deliberados contra o “sistema colonial”, destinados a miná-lo, expulsando os espanhóis e retomando o domínio sobre o território que teria sido dos índios antes da conquista. Longe disso, os roubos, assim como as eventuais violências deles decorrentes, eram um elemento estrutural daquela província, cujos envolvidos pertenciam a diferentes estratos sociais. Assim, não eram iniciativas contra o “sistema colonial”, mas existiam em função do mesmo. Esta questão é demonstrada a partir da convergência entre os períodos de maior incidência de roubos de rebanhos e os picos da atividade mineradora. Dependente do uso de animais, especialmente mulas utilizadas no processo necessário para a extração da prata e para o transporte, a mineração era usualmente abastecida com animais roubados. Os roubos, portanto, tinham um destino certo: compradores que necessitavam dos animais para assegurar o funcionamento da mineração e, no limite, a própria manutenção da lucratividade da região para os colonos e para o Império espanhol.

Após descortinar esta gama de agentes interessados, por motivos diversos, na manutenção da situação de guerra, real ou fictícia, na província, Ortelli conclui que muito pouco deste contexto estava diretamente vinculado aos “apaches”, pois a violência daquela sociedade “respondia às ações de grupos de atribuição étnica heterogênea e que a alusão aos ‘apaches’ era, na maior parte dos casos, um lugar comum que permitia encobrir um fenômeno que não provinha do exterior do sistema” (p. 209). Assim, a investigação não está tanto orientada em aprofundar quem de fato eles eram, mas como essa ameaça surge, e posteriormente arrefece, em contextos específicos. Neste sentido, a autora demonstra com propriedade que essa ameaça não se originou de uma alteração nas relações sociais até então vigentes na província. Pelo contrário, foi a possibilidade de uma mudança, gerada pelas tentativas de aplicação das medidas bourbônicas, que fez surgir o perigo “apache”. Nessa conjuntura, o termo foi reformulado e o seu significado extrapolava uma mera atribuição étnica, pois passou a simbolizar um determinado modo de vida, identificado como “apache”, porém não restrito aos índios. Assim, tal como vários etnônimos em diferentes partes das Américas, aquele era um atributo genérico e maleável, cujos significados transformavam-se ao longo do tempo e cujos usos variavam de acordo com os interesses em questão. Devem, portanto, ser problematizados e entendidos como uma construção colonial.

De um lugar predominante na historiografia sobre Nueva Vizcaya, os “apaches”, na realidade desvelada por Ortelli, aparecem como apenas mais um dos grupos envolvidos nos roubos de gado, muitas vezes desempenhando a função de coadjuvantes. Fruto da tese de doutorado da autora, defendida no Centro de Estudios Históricos do Colegio de México em 2003 e vencedora no mesmo ano do prêmio de Melhor Tese de Doutorado em Ciências Sociais e Humanidades outorgado pela Academia Mexicana de Ciencias, Trama de una guerra conveniente merece ser lido com atenção pelo público brasileiro, não apenas pela excelência do trabalho, mas também pela semelhança de muitas situações investigadas com as enfrentadas em nossa historiografia. Dentre elas, principalmente, a dinâmica fronteiriça e a latência de ataques dos índios hostis, característica da América portuguesa em vários momentos, não apenas em relação aos limites com as possessões de outros Estados, mas também no seu interior, especialmente nas regiões vagamente denominadas de sertão.2

Nestes casos, o livro de Ortelli sugere que qualquer análise sobre os grupos nativos deve ser acompanhada de um estudo criterioso das fontes e das dinâmicas locais. Tal como no caso de Nueva Vizcaya, também no Brasil muitos eram beneficiários dos perigos, reais e imaginários, atribuídos à “ferocidade” dos índios. Se, como apontou Beatriz Perrone-Moisés, o “inimigo” indígena foi muitas vezes construído pelos colonos que visavam legitimar expedições de apresamento,3 nessas construções também estavam subsumidos outros interesses que, através da propagação do perigo latente, apresentavam determinados grupos locais como imprescindíveis à manutenção de certa ordem. Tal ordem era, em muitas situações, a preservação de um status quo do qual os principais beneficiários eram esses mesmos grupos, na medida em que utilizavam o “perigo indígena” para manter e/ou adquirir posições e privilégios na sociedade local.

1 Sobre o tema veja-se, dentre outros: Maria Regina Celestino de Almeida, Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003;         [ Links ] Elisa Frühauf Garcia, As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional (no prelo);         [ Links ] Patrícia Sampaio, Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia: sertões do Grão-Pará, c.1755-c.1823, tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFF, 2001;         [ Links ] Almir Diniz de Carvalho Junior, Índios cristãos: a conversão dos gentios na Amazônia portuguesa (1653-1769), tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp, 2005;         [ Links ] Márcia Malheiros, “Homens da Fronteira”: Índios e Capuchinhos na ocupação dos Sertões do Leste, do Paraíba ou Goytacazes, séculos XVIII e XIX, tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFF, 2008.         [ Links ] 2 Sobre os significados do termo sertão na sociedade colonial veja-se: A.J.R. Russel-Wood, “Fronteiras do Brasil colonial”, Oceanos, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, n.40, out.-dez. 1999.         [ Links ] Para diferentes abordagens sobre as populações indígenas que habitavam as regiões denominadas como sertão veja-se, dentre outros: Nadia Farage, As muralhas dos sertões: os povos indígenas e a colonização do Rio Branco, Rio de Janeiro, Paz e Terra/Anpocs, 1991;         [ Links ] Glória Kok, O sertão itinerante: expedições da capitania de São Paulo no século XVIII, São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2004;         [ Links ] Maria Leônia Chaves de Resende e Hal Langfur, “Minas Gerais indígena: a resistência dos índios nos sertões e nas vilas de El-Rei”, Tempo, vol.12, n.23, jul-dez.2007.         [ Links ] 3 Beatriz Perrone-Moisés, “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII), in: Manuel Carneiro da Cunha, História dos índios no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/Fapesp, 1992, p.125.        [ Links ]

Elisa Frühauf Garcia – Doutora em História pela UFF e pós-doutoranda em antropologia na Unicamp, bolsista do CNPq. E-mail: [email protected].

A Independência brasileira: novas dimensões | Jurandir Malerba

Em meio aos preparativos para a comemoração dos 200 anos da vinda da corte portuguesa para o Brasil, surge no mercado editorial a A Independência brasileira: novas dimensões. Organizado por Jurandir Malerba, o livro é um convite à reflexão sobre um momento crucial da nossa história. Há muito a historiografia sobre o período colonial vem sendo revista por novas teses que compartilham perspectivas inovadoras e dialogam com o que há de mais recente no meio historiográfico internacional. Os artigos da coletânea, originalmente apresentados no seminário New Approaches to Brazilian Independence, em 2003, na Universidade de Oxford, são o resultado de pesquisas de uma nova geração de historiadores sobre o tema. Seu subtítulo (Novas dimensões) visa tanto sublinhar o valor de uma obra que marcou época – organizada, em 1972, por Carlos Guilherme Mota –, quanto distanciar-se de seus pressupostos e métodos de abordagem histórica.

O instigante artigo de Jorge Pedreira, Economia e política na explicação da Independência do Brasil, abre a primeira parte do livro. Ao discutir os argumentos de uma historiografia “clássica” sobre o tema, contesta as interpretações de Fernando Novais e de Carlos Guilherme Mota, baseadas na crise do antigo sistema colonial, uma vez que, segundo o autor, o império luso-brasileiro conheceu uma notável expansão comercial em sua fase final. O conceito de vulnerabilidade – já utilizado por Valentim Alexandre em Os sentidos do império – aplica-se, segundo Pedreira, para designar aquela conjuntura complexa e mutante, pois nada indicava que o sistema colonial estivesse condenado à desintegração. Analisa as convulsões políticas que abalaram Portugal, a transmigração do rei e da corte para o Brasil, a abertura dos portos, o tratado de 1810, o isolamento do grupo mercantil no Reino. Tais fatores teriam gerado um conjunto impreciso de idéias, assim como projetos de “regeneração nacional”. A análise do espaço de convergência entre os interesses dos corpos mercantis de Lisboa e do Porto e as perspectivas políticas de uma importante facção das cortes constituintes levam-no a concluir que, apesar da relevância das questões econômicas, a dinâmica que desembocou na secessão do Brasil teve um caráter essencialmente político. Leia Mais

Minas e os fundamentos do Brasil moderno | Ângela de Castro Gomes

Minas e os fundamentos do Brasil moderno é uma obra capitaneada pela Fundação Israel Pinheiro e integra o projeto “Os caminhos do Brasil moderno”, um conjunto de ações promovidas pela própria entidade, que inclui também a edificação do Espaço Israel Pinheiro, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, além da criação do Museu Casa de João Pinheiro, na cidade de Caeté (MG). Ou seja, este livro deve ser compreendido como uma obra integrada a uma série de iniciativas que procuram preservar uma dada memória do desenvolvimentismo no Brasil, tendo como foco central a contribuição de João Pinheiro e, mais tarde, de seu filho Israel Pinheiro na política brasileira.

Em síntese, os artigos procuram sustentar a concepção de que a gênese do projeto desenvolvimentista já estava configurada desde o início da República na figura do próprio João Pinheiro, presidente do Estado de Minas Gerais, e que tal ideário teria sido conduzido por seus filhos, parentes e políticos de um círculo de influências que incluiu, entre outros, Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves. Para defender essa hipótese explicativa, o livro conta com um prefácio, uma apresentação, um texto de abertura e 10 capítulos divididos em três partes bem distintas – e bastante desiguais. Leia Mais

Rebeldes literários da República: história e identidade nacional no Almanaque Brasileiro Garnier (1903-1914) | Eliana Regina de Freitas Dutra

Corria a primeira década do século XX e a segunda da República no Brasil, quando a Livraria Garnier, uma das mais tradicionais e prestigiosas casas editoras do Rio de Janeiro, decidiu publicar um almanaque que marcaria os anos nos quais circulou: o Almanaque Brasileiro Garnier (1903-1914). Uma opção nada banal, pois se desejava utilizar a tradição de um gênero de impresso popular, consagrado na Europa há séculos e conhecido no Brasil, para conquistar leitores, divulgando, preferencialmente, autores e livros editados pela Garnier. Sem dúvida, uma moderna estratégia de mercado, mas que em nada prejudicava a possibilidade de difundir idéias e valores entre um amplo público leitor que acabava de ver proclamada a República. Ao menos, é assim que pensam os editores convidados para o Almanaque, Ramiz Galvão e João Ribeiro, bem como o amplo grupo de intelectuais por eles mobilizado para contribuir na publicação. Tratava-se, e esta é a tese da autora, de fazer do Almanaque Brasileiro Garnier um “vetor cultural” capaz de instruir e civilizar o povo da nova nação, ainda tão desprovida de escolas e de livros. Tratava-se de torná-lo um “substitutivo funcional do livro”, uma espécie de “biblioteca portátil” e, como tal, um instrumento eficiente para a difusão de um projeto político e intelectual (então indissociáveis), voltado para a construção de um Brasil republicano e moderno. Leia Mais

Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial | Cristina Pompa

Abordagens interdisciplinares são recorrentes nas histórias das etnias americanas. Embora viabilizem uma análise mais consistente das sociedades indígenas, sobretudo de seus ritos e mitos, elas nem sempre se coadunam com a perspectiva da análise diacrônica. De todo modo, esses historiadores buscam harmonizar a diacronia à sincronia dos modelos teóricos, mas, de fato, ao recorrer às Ciências Sociais, eles, muitas vezes, negligenciam a temporalidade dos registros do passado. Este procedimento raramente é explicitado nas obras dedicadas à etno-história que, em geral, acabam por apresentar critérios pouco objetivos para estabelecer similitudes entre os conjuntos mítico-rituais. Essas filiações teóricas também incentivam uma apropriação do passado que, não raro, contraria a crítica aos testemunhos, a análise dos contextos narrativo e cultural, bem como a sua inserção social e geográfica.

Esses impasses, porém, não se encontram apenas nos escritos da história das etnias americanas. Nos anos 1990, o ambicioso livro de Carlo Ginzburg, História noturna (1989), provocou uma enorme polêmica ao combinar a morfologia e a história do Sabá, seus significados sincrônicos e desenvolvimento diacrônico. O historiador italiano pretendia, então, harmonizar o estruturalismo à perspectiva histórica dos mitos, descobrir homologias formais e reconstruir seus contextos espaço-temporais.1 Para explicar a existência de substrato comum de crenças e rituais eurasianos, Ginzburg recorreu à difusão cultural promovida pelas migrações e a uniformidade psíquica, combinação capaz de promover o entrelaçamento entre história e morfologia. Leia Mais

As transformações dos espaços públicos, imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840) | Marco Moreil

A partir de meados da década de 1990, a historiografia luso-brasileira tem visitado o tema “da emergência e ordenação do império luso-brasileiro à definição do império do Brasil” – assunto correlato surge nos estudos históricos hispano-americanos, sobretudo à luz da obra de François-Xavier Guerra. Neste prisma, o livro se insere como poucos e areja suas abordagens. Primeiro, por centrar-se nas agitadas décadas de 1820-1840 no Rio de Janeiro. De antemão, busca não projetar a corte para todo o Brasil, como se um fosse gêmeo do outro ou mera decorrência. Antes, considera o Rio de Janeiro uma cidade imperial. Esta acepção, nada ingênua, remete a uma geografia do poder, que se almeja centralizado-e-centralizador em um vasto território, conforme as inspirações literárias e históricas de então do Império Romano. As palavras, as ações e as propostas empreendidas na cidade imperial – simultaneamente, corte da monarquia constitucional – reverberavam com maior contundência na Europa, em especial em Portugal, e no próprio Brasil. Por outro lado, o debate internacional acerca do liberalismo constitucional, do ideário contra-revolucionário, das memórias e das narrativas sobre as experiências políticas nas Américas e na Europa encontrava aí alargada recepção, divulgação, (re)tradução e (re)apropriação. Neste sentido, o Rio de Janeiro gozava de um forte apelo junto às elites locais e regionais do Brasil, sem que isto, obrigatoriamente, implicasse uma posição unânime e coerente dos atores políticos. Morel logo esclarece: nesse período e nessa cidade, chegou-se, às vezes, a duvidar da pertinência e da necessidade de se lutar e manter a integridade e a unidade do território brasileiro. Em miúdos, não reafirma a idéia de que uma outra parte do Brasil – por suposto, as regiões Norte, Nordeste e Sul – postularia uma quebra ou uma reorganização do território político e uma redefinição da autonomia política de cada uma. Longe disto, tal possibilidade efetiva atravessava a pauta política no Rio de Janeiro. Em circunstâncias tão delicadas e específicas das décadas de 1820-1840, Morel estuda a emergência da modernidade política no Rio de Janeiro. Nessa medida, data o surgimento de tal modernidade e marca as balizas internas dessa periodização. Leia Mais

Dicionário Crítico Câmara Cascudo | Marcos Silva

Desde o primeiro momento em que me deparei com o Dicionário Crítico Câmara Cascudo e, depois, à medida que o lia – ou melhor, saboreava cada página – uma pergunta se impunha: que outro escritor brasileiro poderia ser comparado a Câmara Cascudo, seja pelo volume de livros publicados, seja pela impressionante contribuição que deu aos mais diferentes campos do conhecimento? Que outro mereceria a organização de um dicionário para reunir e explicar sua produção intelectual? E, apesar de alguns nomes me ocorrerem, nenhum parecia superar o norte-rio-grandense, tal o inegável impacto de seu trabalho para a cultura brasileira. Como poucos, Cascudo introduziu no cenário nacional o testemunho de uma experiência sertaneja e a cosmovisão de um mundo nordestino, até então muito pouco conhecido e geralmente ignorado pela elite intelectual do país.

A vasta bibliografia de Câmara Cascudo (1898-1986) contabiliza cerca de uma centena de obras e se encontra espalhada pelos campos da história, da etnografia, da antropologia, da literatura, da crítica literária, da cultura popular, da religião, da geografia e, principalmente, do folclore. Como se não bastasse, há ainda um importante detalhe: seja qual for o tema estudado, o texto cascudiano prima por ser também literário. O escritor norte-rio-grandense desenvolveu ao longo de sua produtiva vida intelectual um estilo muito próprio, cujo ponto alto é justamente uma especial habilidade no trato com a linguagem, que resulta sempre em um texto sedutor, leve e singular, pontuado de imagens e de expressões poéticas que encantam o leitor e aliviam com muita sensibilidade a aridez da informação documental. Leia Mais

Les Ouvriers D’Une Vigne Stérile. Les jésuites el la conversion des Indiens au Brésil 1580-1620 | Charlote Castelnau-L’Estoile

Nas últimas décadas, índios e jesuítas têm ganhado espaço pesquisas interdisciplinares que procuram repensar suas relações de contato. Nestes estudos, os índios, em geral, surgem como principal foco de interesse dos pesquisadores que em procuram refletir sobre as mudanças por eles vivenciadas, considerando-os também agentes destas mudanças. O aspecto religioso costuma ser priorizado e os jesuítas aparecem como importantes atores com os quais interagem os índios nestes processos de metamorfose. Cristina Pompa, Eduardo Viveiros de Castro, John Monteiro, Manuela Carneiro da Cunha e Ronaldo Vainfas são alguns exemplos de historiadores e antropólogos que, dos anos 1990 para cá, têm abordado o tema nesta perspectiva. Nestes trabalhos, bem como em outros que os antecederam, em perspectiva diversa, os inacianos desempenham papel essencial como agentes transformadores das culturas indígenas e, sobretudo, como produtores de fontes primárias fundamentais para o tema, porém não constituem o foco central de suas abordagens. Mais recentemente, José Eisemberg inovou ao abordar as missões, privilegiando o pensamento político da ordem jesuítica e refletindo sobre suas mudanças a partir da prática missionária. Leia Mais

História & Ensino de História | Thais Nivia Fonseca

História & Ensino de História é o sexto livro da coleção História & Reflexões, da Editora Autêntica, lançado em 2003. Apesar do intervalo entre seu lançamento e a apresentação desta resenha, a obra mantém-se atual por sua qualidade, temática e contribuição à ampla área constituída pela História da Educação, ensino e história do ensino de História. O texto conciso consegue descortinar parte importante da problemática da história do ensino de História no Brasil e trata do tema apresentando o percurso da História como disciplina escolar e sua realização como pesquisa até as últimas décadas do século XX. Por conseguinte, sua leitura é de interesse do amplo público formado por professores e pesquisadores da área.

O acerto do empreendimento somente seria possível a alguém que conhecesse bem o território a ser desvendado. Thais Nivia de Lima e Fonseca, pesquisadora em História da Educação da UFMG, participa de projetos sobre práticas culturais e educativas em diversos períodos, especialmente o colonial. O resultado de suas pesquisas contribui para o adensamento do texto com documentos e sua análise. Na escrita do livro, transita no território interdisciplinar da pesquisa em História e em Educação, cuidando de fontes documentais e preocupando-se com a mediação cultural, seja na escola ou fora dela. A amplitude de sua inserção está indicada no diálogo com um amplo leque de referências bibliográficas. Leia Mais

Do Terror à Esperança: auge e declínio do neoliberalismo | Theotônio dos Santos

Se tivesse que recomendar a meus alunos de história três livros sobre globalização e neoliberalismo que eles devessem levar para uma ilha deserta, facilmente poderia incluir este último livro de Theotônio dos Santos, juntamente com Globalização em Questão, de Paul Hirst e Grahame Thompson (Ed. Vozes, 1998) e Globalization and its Descontents, de Joseph Stiglitz (W.W. Norton & Company, 2002). Hirst & Thompson desmistificam muitas das crenças infundadas sobre a globalização, provando que não é um fenômeno tão novo assim (os movimentos líquidos de capital em relação ao tamanho das economias eram maiores nas décadas do padrão-ouro, anteriores à Primeira Guerra Mundial, do que nas últimas décadas do século XX), nem tão “global” assim (a maioria das companhias ditas “transnacionais” tem claro centro decisório nacional; a maior parte de sua produção é realizada e vendida no país-matriz, o mercado de mão-de-obra absolutamente não é global, etc.).

Já a imperdível obra de Stiglitz me faz lembrar aqueles livros de ex-agentes da CIA que desnudam a Agência por dentro. Stiglitz, prêmio Nobel de economia em 2001, ex-Economista-Chefe do Banco Mundial, critica, com o conhecimento embasado de um insider, o funcionamento de organismos como o FMI, que, em seu afã “globalizante” de disseminar doutrinas de cunho neoliberal nos anos 1990, acabavam por condenar países em desenvolvimento a políticas recessivas. Quanto a este último livro, fica apenas o lamento de que, como as memórias de ex-agentes da CIA, as críticas geralmente vêm post factum, ou seja, após os atualmente criticados golpes de estado, promovidos pela CIA no Terceiro Mundo, ou políticas econômicas equivocadas para os países devedores terem sido implementadas… Leia Mais

Histoires d’un Historien Kantorowicz | Alain Boureau

Na Biblioteca da Pós-graduação em História, Antropologia e Ciência Política da UFF, encontra-se um livro pouco conhecido do público brasileiro, mas que trata de autor de inegável influência nas historiografias medieval e moderna, bem como na ciência política. Alain Boureau, historiador francês especializado nas concepções de poder no Antigo Regime, pretende neste ensaio desfazer o “monumento” Ernst Kantorowicz, autor de dois livros clássicos: a biografia do imperador Frederico II, publicação original alemã de 1927, e o célebre Os Dois Corpos do Rei, publicado primeiramente em inglês, em Princeton, 1957, com edição brasileira de 1998.

Boureau parte da perspectiva de que a produção intelectual de Ernst Hartwig Kantorowicz (1895-1963) se confunde com sua própria vida. A princípio, pode-se pensar que o ensaio consiste em mero exercício biográfico, ao serem relatados episódios concernentes ao nascimento de Ernst na Posnânia – terra de origem polonesa, que passou ao domínio da Prússia em 1793, depois ao II Reich – como filho de família judia ligada à produção e ao comércio de licores e espirituais. Sua participação na guerra entre 1914 e 1919 também é descrita. Após ser ferido em 1916, o jovem Ernst participa de missões na Ucrânia e na Turquia. No retorno à Alemanha, estuda economia em Munique e ingressa no círculo literário do poeta Stefan George, conhecido por seu culto ao Belo e pelo desejo de uma Alemanha renovada, na miríade de movimentos direitistas que assolavam a frágil República de Weimar. Neste âmbito, Kantorowicz escreve a biografia de Frederico II, após visitar o túmulo do imperador em Palermo, sul da Itália. O sucesso do livro garantiu sua entrada na Universidade de Frankfurt, em 1930, mas sua condição judia impõe-lhe crescentes obstáculos, ante a ascensão do nazismo e a fundação do III Reich. Leia Mais

Em guarda contra o “perigo vermelho”: O anticomunismo no Brasil (1917-1964) | Rodrigo Patto Sá Motta

Os trabalhos que discutem com propriedade o anticomunismo no Brasil, em sua maioria, são recentes. A dificuldade de acesso às fontes primárias e a preferência por estudos ligados aos movimentos de esquerda foram os maiores obstáculos para o crescimento desta vertente de pesquisa. No Brasil, ainda não existe uma historiografia consolidada sobre o ideário anticomunista, mas existem trabalhos interessantes e importantes para os historiadores que se interessam pelo tema – como, por exemplo, o livro de Rodrigo Patto Sá Motta. O autor procura estudar o anticomunismo entre 1917 e 1964, concentrando-se nos períodos de 1935-1937 e 1961-1964, alegando haver neles uma maior intensidade das manifestações anticomunistas.

Em relação à década de 1930, o autor identifica o manifesto escrito por Luiz Carlos Prestes – em maio de 1930, onde declarava sua adesão ao marxismo-leninismo e à causa do proletariado – como uma das primeiras influências de relevo no aumento do temor ao comunismo e, simultaneamente, dos sentimentos anticomunistas. Este aumento pode ser constatado, segundo ele, pela considerável expansão na publicação de livros anticomunistas. Além disto, o surgimento de várias greves, em 1934, em algumas capitais brasileiras, contribuiu para a criação de instrumentos repressivos legais, que se tornaram úteis ao governo na medida em que a esquerda ampliava a sua atuação. Entre 1930 e 1935, tais sentimentos estiveram ligados à percepção de que era necessária uma ofensiva em defesa da ordem, intensificada sobremaneira pela tentativa revolucionária comandada pelo PCB, em 1935, e pela Guerra Civil Espanhola, em 1936. Leia Mais

Luta subterrânea. O PCB em 1937-1938 | Dainis Karepovs

Só muito recentemente os historiadores brasileiros tomaram a si a tarefa de estudar a história dos partidos políticos no Brasil, área, até então, essencialmente ocupada por sociólogos e cientistas políticos. Em que pese este fato, demasiado relevante para as ciências humanas e sociais, tendo em vista as possibilidades metodológicas que se abriram com os estudos destes profissionais, são ainda poucos os trabalhos que recortam o tema à maneira dos historiadores. Ainda que se deva destacar o mérito do pioneirismo com que sociólogos e cientistas políticos promoveram tais estudos ao primeiro plano das grandes temáticas e preocupações da academia, não deixa de surpreender positivamente quando um pesquisador renuncia ao uso corrente de categorias funcionais, tipos ideais ou explicações essencialmente macroestruturais, numa investigação sobre as atividades e o pensamento de um partido político como o PCB, certamente o mais pesquisado do Brasil e um dos mais conhecidos entre os Partidos Comunistas do mundo, para mergulhar no universo pouco conhecido dos pormenores da produção intelectual e política dos seus principais dirigentes. Leia Mais

Tempo | UFF | 1996

TEMPO3

Fundada em 1996, Tempo (Niterói.online) é uma publicação do departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Desde 2016, tem sido publicada três vezes ao ano.

A revista se dedica à publicação de artigos originais (artigos avulsos e artigos em dossiês), resenhas e entrevistas em português, inglês, espanhol e francês. Os autores devem ser doutores. A revista não cobra taxas dos autores para realizar avaliação, edição e publicação de seus textos. O título abreviado do periódico é Tem, que deve ser usado em bibliografias, notas de rodapé, referências e legendas bibliográficas. A coleção inteira da revista está disponível.

Periodicidade quadrimestral.

Tempo adota a licença CC-BY como atribuição principal de Acesso Aberto

ISSN 1413-7704 (Impressa)

ISSN 1980-542X (Online)

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