História da Historiografia Medieval: Novas Abordagens / História da Historiografia / 2020

Decolonizar a historiografia medieval: Introdução à ‘História da Historiografia Medieval – Novas Abordagens’

“Entendemos por consciência histórica o privilégio do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião.”

Hans-Georg Gadamer, 1963

“Há muito tempo acredito que as formas medievais e pós-modernas de consciência histórica são similares, de modo que a narrativa fundamental da ruptura modernista com o passado medieval encontra pouco crédito e que, em realidade, é o modernismo que representa o momento estranho da concepção ocidental de história”.

Gabrielle Spiegel, 2016

“Os passados subalternos são indicações dessa fronteira [temporal]. Com eles atingimos os limites do discurso da história. A razão de ser disto reside, como afirmei, no facto de os passados subalternos não fornecerem ao historiador um princípio de narração que possa ser racionalmente defendido na vida pública moderna”

Dipesh Chakrabarty, 2000

Nossa relação com o período medieval é ambígua. Por vezes, a Idade Média é negada, distante e estrangeira. Por outras, é muito próxima, senão presente, um passado vivo que nunca se furta aos mais criativos usos. Dentro dessa oscilação entre identidade e alteridade, nesse jogo entre a imagem de uma “origem” e o papel de um “outro ausente”, alguns desejam conhecê-la, outros querem sê-la (SPIEGEL 1997, p. 59; ANKERSMIT 2005, p. 327; CHAKRABARTY 2005, p. 227). O passado, afinal, não costuma aflorar sem a agência humana. Para tanto, é preciso que se organize, na esteira das políticas do tempo, toda uma série de “práticas de sincronização” (JORDHEIM 2014). As mais vulgares dessas práticas utilizam o procedimento clássico dos paralelos: vociferam Deus Vult e inundam a internet com releituras da “descoberta” do Brasil no âmbito de uma “Última Cruzada” (PACHÁ 2019; LANZIERI JÚNIOR 2019; COELHO; BELCHIOR 2020). As mais sofisticadas argumentam sobre a permanência de estruturas de longa duração, relegando-nos, ainda assim, à condição de débito eterno para com a Europa. Outras perspectivas abrem contra as primeiras um combate de morte, e em seu lugar performam os símbolos dos excluídos, das bruxas em luta e dos camponeses em jacquerie. Nelas, alegorias mobilizadas pelos feminismos decoloniais chegam a questionar as consequências políticas da própria sincronização (Cf. OLIVEIRA 2020). No centro dessas tensões, e tentando atravessar tais fenômenos como problemas históricos, estão os dois sentidos tradicionalmente atribuídos ao termo historiografia: o estudo da escrita da história pelos medievais, interessado pela pesquisa de um conjunto limitado de fontes narrativas que permitam a problematização de uma “operação historiográfica” êmica; e os estudos historiográficos que discutem modelos interpretativos, fazem análises de recepções, identificam apropriações, registram efeitos e simultaneidades entre tempos heterogêneos, chegando a denunciar usos e abusos ético-políticos que da Idade Média são feitos desde o mundo contemporâneo (GUENÉE 1980, p. 11-12). Em suma, continuamos a encontrar o presente no passado e o passado no presente. Leia Mais