Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política – RIDENTI (EH)

RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política.  São Paulo: Editora Unesp, 2010. Resenha de: RODRIGUES, Lidiane Soares. Revolução e mercado. Estudos Históricos, v.24 n.48 Rio de Janeiro July/Dec. 2011.

“Fracasso político e sucesso profissional”: eis o subtítulo que um resenhista atrevido talvez sugerisse para Brasilidade revolucionária, que vem a lume pela Editora da Unesp, em 2010, sem a mais remota intenção de descredibilizar o subtítulo escolhido pelo próprio autor, “um século de cultura e política”. No entanto, é notável a tensão mantida em suspenso em seus trabalhos anteriores e que o autor ousa dar trato enfático nesse livro. O sociólogo Marcelo Ridenti empenha esforços, atiçado pelas dúvidas, estímulo de trabalho insubstituível, da geração dos nossos anos 1960. A reconstituição do “seu” século ambiciona responder, salvo equívoco de nossa leitura, a seguinte interrogação: como foi possível obras, artistas, livros, convicta e sinceramente anticapitalistas, alçarem tanto sucesso nos mercados correspondentes a suas atividades?

O livro compõe-se de cinco capítulos, abarcando o período que vai da Primeira República aos anos 1980. Em cada um dos contextos sociopolíticos tratados, é eleito um autor, grupo ou instituição, estratégicos para surpreender os elementos da “brasilidade revolucionária” como “estrutura de sentimento” – noção emprestada de Raymond Williams. A “brasilidade revolucionária” consiste “numa vertente específica de construção da brasilidade, aquela identificada com ideias, partidos e movimentos de esquerda – e presente também de modo expressivo em obras e movimentos artísticos” (p. 10). Já “estrutura de sentimento” refere-se ao conjunto mais representativo de agentes, práticas e produções culturais que deram conteúdo àquela “brasilidade revolucionária”, espécie de “sentimento pensado”/”pensamento sentido”. Essas noções não são os únicos suportes conceituais do livro, mas são centrais, perpassando todos os capítulos. Entre eles, o encadeamento se estabelece cronológica e significativamente; afinal, da Primeira República aos anos 1980, há uma espécie de emergência, auge e decadência da “brasilidade revolucionária” na “estrutura de sentimento”, processo apreendido em materiais expressivos os mais diversos, produzidos por agentes e instituições escolhidos para cada capítulo/período tratado.

Desse modo, o primeiro capítulo é dedicado à reconstituição e ao exame do percurso de Everardo Dias, uma biografia estratégica para o interessado nas lutas políticas do início do século XX no Brasil, bem como nos limites de abertura social do período, dada sua origem imigrante, seu zigue-zague entre prisão e liberdade, o trânsito em organizações de esquerda e na “sociedade dos bacharéis”. Nesse capítulo inicial, a sensibilidade historiográfica parece dar o tom que marca todo o livro. A escolha dessa biografia permite ao autor ligar o primeiro ao último capítulo do livro, a emergência ao ocaso da brasilidade revolucionária, por meio do auge dela.

Ao tomar como mote a segunda edição de História das lutas sociais no Brasil, de 1977, livro mais conhecido de Everardo, e anunciar que “a reedição expressava o elo que se buscava não apenas com as lutas do início do século ali retratadas, mas também com os embates do pré-1964, data de sua publicação original”, o autor parece dar uma piscadela de olho para o leitor, como que adiantando, mas não muito, projetos e derrotas de que tratará adiante. Não bastasse isso, o cruzamento de fontes de natureza distinta contribui para um bom rendimento interpretativo: memórias, edições de livros, cartas, dedicatórias. Se a leitura for correta, vale o adendo, o sentido dos três tempos – República Velha, retomada nos 1970, mediada pela derrota de 1964 – e o manejo da documentação são de fazer inveja a historiadores.

Dada a proposta de enquadramento das relações entre intelectuais e artistas e Partido Comunista, que se encontra no segundo capítulo, vale dizer, o autor vem abrir uma lacuna. Se já foi escrita uma biblioteca a respeito do tema da cooptação dos primeiros pelo segundo, há muito para ser pesquisado a respeito do outro lado da moeda: qual rendimento tal vinculação ofereceu para os produtores simbólicos, num momento em que a indústria cultural era incipiente e o espaço de atuação profissional universitário ainda em consolidação? Casos paradigmáticos, como o de Jorge Amado e o de Nelson Pereira dos Santos, são salutares para que se indague a respeito das “contrapartidas que mantinham intelectuais e artistas na órbita partidária, apesar de tudo” (p. 61), casos que não foram os únicos para os quais a militância no interior do partido foi uma “garantia de atuação profissional” (p. 65). No final das contas, a instância de organização da produção simbólica que hegemonizou o espaço profissional gabaritado, na ausência de um campo autônomo – com instituição especializada na formação dos agentes, mercado de trabalho correspondente e segmentação do consumo de bens culturais – foi o “Partidão”, tese implícita à análise.

Daí que a seguir – nos capítulos “Brasilidade revolucionária como estrutura de sentimento: os anos rebeldes e sua herança” e “Questão da terra no cinema e na canção. Dualismo e brasilidade revolucionária” – o autor atente à produção de agentes desligados do partido. Assim, pode aquilatar a centralidade de que gozou na cena cultural, e a perda dela mesma, pari passu o ocaso político, decorrente não apenas, mas fortemente, da fragmentação da esquerda e de sua autocrítica desencadeada pelo regime civil-militar. Desse modo, “especialmente depois de 1964, com a consolidação da indústria cultural no Brasil, surgiu um segmento de mercado ávido por produtos culturais de contestação à ditadura: livros, canções, peças de teatro, revistas, jornais, filmes etc. de modo que a brasilidade revolucionária, antimercantil e questionadora da reificação, encontrava contraditoriamente grande aceitação no mercado” (p. 98).

Toda a ambiguidade do quadro fica indicada pela reconstituição da repercussão do livro Tudo que é sólido desmancha no ar de Marshall Berman, publicado em 1986. Nota-se, novamente, a escolha bem pensada do material para o tratamento do problema que move o trabalho, pois com ele, acessa a “porta de entrada para pensar o entrelaçamento entre o campo intelectual e a indústria cultural no Brasil, bem como a relação entre mercado e pensamento de esquerda” (p. 145). Para dizer tudo num jargão familiar aos leitores: forma mercantil com conteúdo do campo “revolucionário” – é contraditório, mas, oferece síntese? Se sim, qual; se não, que fazer? No plano das trajetórias, o dilema se manifesta, genericamente, na figura do “intelectual atormentado com sua condição relativamente privilegiada, de portador de projetos de vanguarda numa sociedade subdesenvolvida e desigual”, mas “crescentemente seduzido pelo acesso individual ao desenvolvimento de um mundo globalizado, embora seu discurso por vezes mantenha tons esquerdistas” (p. 169).

Se nos fosse permitido, elaboraríamos a questão do seguinte modo. Assinala-se o ocaso do partido como instância fundamental da organização da produção afinada com o repertório cultural de esquerda, após 1964. Porém, a empreitada da modernização encampada após essa derrota requeria mão de obra qualificada. Tudo se passa como se a estrutura produtiva avançasse mais rapidamente do que as condições sociais correspondentes a ela, levando a deslocamentos de capital e mão de obra. O ritmo galopante do crescimento não comportava “esperar” a formação desta mão de obra, e se apropriou, nesse ritmo, da disponibilidade profissional – e não política – de tal qualificação. A consolidação da indústria cultural no Brasil é indissociável disso. Muito já foi dito a respeito das contradições da indústria cultural, mantendo-se rente aos conteúdos desse “cultural”. É tempo de se atinar para a “indústria”. A rotação das atenções para ela, parece-nos, segundo modesta leitura, consistir numa das contribuições salutares do presente trabalho, que tanto gostamos de ler.

Lidiane Soares Rodrigues – Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil ([email protected]).