Poderes, Instituições e Redes Políticas na América Portuguesa / Crítica Histórica / 2017

Para alguns indivíduos, o período colonial ficou no passado, momento em que D. João VI retornava ao reino lusitano e possibilitava que seu rebento, D. Pedro I, aliado com as elites fluminenses, concretizava a emancipação política em 1822. De lá para cá o Brasil vivenciou duas monarquias, algumas ditaduras, curtos momentos de democracia, tentativas e concretudes de golpes políticos e experiências presidencialistas catastróficas. E o passado? Sempre assombrando o presente… seja para relembrar que nada mudou ou para rememorar aquilo que não se concretizou. Alguns exemplos…

Segundo Bárbara Libório e Tai Nalon, os estabelecimentos que em pleno século XXI ainda usam o trabalho escravo são perenes. De acordo com os jornalistas, no ano de 2015, houve uma investigação em 257 empresas através de 143 ações policiais de fiscalização contra o trabalho escravo, culminando em uma identificação de 1.010 indivíduos que poderiam ser enquadrados nas características desse tipo de utilização de mão de obra1. Para combater tal condição, a PEC 438 trazia uma perseguição rígida àqueles que ainda usavam deste tipo de prática, culminando, inclusive, na expropriação das terras que seriam destinadas a programas sociais.

Ainda que tal emenda não saísse do papel, em pleno 2017, o governo do presidente Michel Temer surpreendeu a todos, causando uma espécie de motim nas redes sociais, pois visando agradar a banca ruralista no senado, alterou as regras de fiscalização do trabalho escravo que restringia esta classificação como resultado das limitações de locomoção dos trabalhos e não às práticas de trabalhos extenuantes e sem remuneração adequada. Além disso, impedia a divulgação pública dos estabelecimentos desse tipo de prática e obrigava que a fiscalização só poderia ser feita com a intervenção policial. Diante das críticas e manifestações sociais que eclodiram em diversos espaços virtuais, o governo teve que recuar da medida, acatando o que havia sido determinado em outros expedientes judiciais.

Como se não bastasse, algum tempo depois, a juíza Luislinda Valois, Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e ex-ministra dos Direitos Humanos do mesmo governo em tela, protocolava um pedido ao governo federal para incorporação da gratificação à sua aposentaria enquanto magistrada dos valores adquiridos como ministra do governo, somando a importância de R$ 62 mil reais mensais, muito além do teto permitido pelo INSS. Como justificativa, comparava as suas condições de trabalho análogas à escravidão, tendo em vista que os já R$ 31 mil reais de aposentadoria que recebia não a permitiam sobreviver com dignidade. Tal postura levou a uma crítica sagaz de todo jornalismo brasileiro e mídias sociais, corroborando com notas de repúdio de várias comunidades do movimento negro brasileiro repudiando a postura da magistrada que além de “afrontar a dignidade da população negra, a posição da ministra é um atestado cabal da falta de compromisso com o combate ao racismo e com verdadeira cidadania de negros e negras” [2].

Esses casos, como tantos outros envolvendo a perseguição à grupos LGBT, intolerância religiosa, restrições à política de aborto, sem falar nos casos envolvendo alianças políticas, formação de redes de poder e perfeita sincronia entre os poderes legislativo, judiciário e executivo, apontam para uma longa duração dos aspectos do mundo colonial na sociedade brasileira contemporânea. As práxis coloniais nunca estiveram tão presentes nas rodas de discussão, conversas de bar, panfletagem nas redes sociais e no cotidiano do brasileiro. Para os alagoanos e pernambucanos, especialmente 2017, viu-se emergir a rememoração dos efeitos e uma análise do que poderia ter sido a insurreição de 1817. O bicentenário do movimento republicano da elite pernambucana de 1817, insatisfeitas com o modelo agrário e excludente do governo português joanino, se para os moradores no atual Estado de Alagoas representou as possibilidades de se emancipar frente à égide do governo da Capitania de Pernambuco [3] e dar existência a um conjunto de identidades em constante metamorfose dicotômica à elite que a dominava; para os pernambucanos era a uma tentativa de protagonismo no cenário político colonial, mas sufocado por uma violenta repressão e novas posturas político-econômicas de D. João VI para as antigas “Capitanias do Norte” [4].

E o mundo colonial mais uma vez vinha à lume no debate social… Emancipação por traição? Os pernambucanos queriam um federalismo para quem? A comarca das Alagoas já tinha condições de autonomia? Os impeditivos impostos à elite da antiga donataria de Duarte Coelho não foram excessivos? Questões que não se esgotam em eventos, documentos e reflexões…

Em contrapartida, entre os historiadores, aqueles que sempre tem o papel de lembrar do passado, segundo muitos teóricos da área e a população em geral, a América Portuguesa, como assim prefiro chamar, nunca saiu de cena. Sempre esteve ali, no dia a dia dos brasileiros a partir das dificuldades sofridas pela população de cor em conquistas de direitos sociais, nas coerções exercidas pelas religiões católicas e protestantes condenando práticas e comportamentos sociais, ou pelas alianças políticas de vereadores, deputados e todas as classes de políticos que sempre buscam vilipendiar a massa populacional. A coroa portuguesa, no sentido coletivo mesmo, só se transferia de lugar ao longo dos modelos políticos, e ganhava vários indivíduos em busca da consolidação do poder e saque dos recursos econômicos produzidos por aqueles que constroem o país.

A historiografia colonial tentou explicar tais fenômenos, essencialmente políticos, Antigo Sistema Colonial [5], Modo de Produção Escravista Colonial [6], Antigo Regime nos Trópicos [7], Monarquia Pluricontinental [8] e, mais recentemente, Um Reino e suas Repúblicas [9]! Vários conceitos para uma só dinâmica. Mas na essência duas questões se sobressaem: de um lado, as tentativas de controle desenfreado pela monarquia portuguesa sobre seus espaços americanos, visando não só a sua consolidação político-econômica no cenário moderno europeu ainda que demonstrasse uma imensa dependência financeira destes mesmos espaços, diferentemente do que ocorreu com suas congêneres monarquias; e por outro lado, as manifestações locais e do cotidiano dos moradores separados por um oceano vastíssimo e que permitia, por conta da inexistência da presença física deste mesmo monarca, em experimentar condições de autonomia, liberalidade e sobrevivências fluídas, complexas, dinâmicas e não encarceradas em um único modelo, mas variáveis nas diferentes espacialidades, temporalidades e das necessidades dos diversos grupos nele cotejados.

Essas duas características foram perfeitamente costuradas por outras duas condições indeléveis e essenciais para a construção do poder: a escravidão e o catolicismo. O modelo religioso imposto pela monarquia portuguesa solidificou costumes e construiu práticas comportamentais que reforçassem o poder régio, não no aspecto centralizador, como muito se pensou, mas em um domínio imaginário, num corpo presente ainda que ausente, condição chamada por Ernst Kantorowicz de corpus mysticum [10]. E, por mais incrível que possa parecer, a escravidão, onipresente em todos os ambientes daquela sociedade, não entrava em choque com tais questões. Como bem frisou Stuart Schwartz, antes de mais nada esta era uma Sociedade Mercantil Escravista [11], tendo em vista a utilização deste tipo de mão de obra ser a grande responsável pelas estratificações sociais, pelo desenvolvimento das condições econômicas, pela classificação de distinções sociais e, acima de tudo, pela demarcação de diferença entre uns e outros.

Dependência econômica, criatividade das gentes, escravidão e catolicismo. Quatro elementos presentes no continuum brasílico do Quinhentos aos tempos atuais… É o mundo colonial no presente ou presente no mundo colonial? Causando-nos uma estranha sensação de nunca termos saído dessa condição… e saímos?

Enfim, o presente dossiê “Poderes, Instituições e Redes Políticas na América Portuguesa” buscou aprofundar este debate, onde o poder, as suas instituições e seus agentes passam a ser compreendidos na imbricada malha escravista, nas necessidades econômicas dos seres, nas determinações eclesiásticas e nas visões de mundo apreendidas pelos homens que cruzaram o Atlântico. Mas do que delegadas pelas composições políticas e institucionais do reino, nas conquistas as especificidades locais e a natureza enraizada dos personagens (colonos e agentes) forjaram peculiaridades de poder, malhas administrativas e estruturas de justiça própria, adaptadas à ordem e aos interesses daqueles que conduziam o cotidiano colonial em prol da manutenção do poder, soberania e autoridade régia. São essas questões que interessam e ajudam a compreender uma outra experiência, mais dinâmica, complexa e permeadas de vicissitudes e particulares.

O dossiê consta de cinco artigos e mais uma análise documental.  Hugo André Flores Fernandes Araújo em O aprimoramento da governabilidade no Estado do Brasil durante a segunda metade do século XVII: regimentos, jurisdições e poderes se debruça na análise sobre o principal centro administrativo e político na América portuguesa até a segunda metade do Século XVIII. Sua compreensão é de um Estado do Brasil marcado por sobreposição de poderes que tinham a necessidade constante de aprimoramento de jurisdição. Com uma conquista ainda em consolidação, o governo lusitano através de seus agentes buscava uma gestão dos espaços muitas vezes marcados pela fragmentação e outros centros interligados. Por fim, o texto também vislumbra as mudanças administrativas implementadas após expulsão dos batavos e a instituição do Conselho Ultramarino, bem como os receios no que tange a criação da Repartição Sul e o provimento de ofícios regulados por agentes monárquicos.

Fabiano Vilaça dos Santos em Governadores e capitães-generais do Estado do Maranhão e Grão-Pará e do Estado do Grão-Pará e Maranhão (1702 a 1780): trajetórias comparadas se envereda por um outro domínio português no Atlântico, o Extremo Norte. Muitas vezes compreendido como autônomo e com suas particularidades, o Estado do Maranhão e Grão Pará constitui-se como uma peça chave na política colonial portuguesa, sendo assim, o autor investiga os perfis sociais e as carreiras dos Governadores encaminhados para representar o monarca em grande parte do século XVIII. Homens solteiros, naturais de Lisboa, alguns familiares do Santo Ofício, formados em Coimbra, militares e com uma vasta relação social com indivíduos entre os mares. O autor percebe a ilha da Madeira como um lugar de passagem anterior destes agentes e uma grande circularidade destes governadores por outros espaços de poder. Na prática, ainda que com perfis parecidos, o autor apresenta as diferenças entre os ministros régios na primeira e na segunda metade do século XVIII.

Mônica da Silva Ribeiro em Trajetórias Administrativas da Capitania do Rio de Janeiro (1710-1763) analisa alguns personagens encaminhados para o Rio de Janeiro antes da instituição do lugar como o novo eixo político econômico da América Portuguesa, ainda que na prática, após as descobertas dos veios de ouro nas Capitanias das Minas, a localidade já havia se tornado a principal praça das conquistas lusitanas. A compreensão do perfil dos ministros do rei em seus domínios americanos auxilia na apreensão do modelo de colonização escolhidos pela monarquia portuguesa, bem como identifica como a estrutura administrativa se moldava às conjunturas e às necessidades dos modos de governar da coroa lusitana.

Nara Maria de Paula Tinoco em Gabriel Fernandes Aleixo: Trajetória e Ascensão nas Minas Gerais (1720-1757) insere-se no debate historiográfico sobre trajetórias administrativas que investiga o caminho percorrido entre São Paulo, Santos e Minas Gerais de um agente régio. Seu personagem, que pleiteou a habilitação da ordem de Cristo, foi escrivão da Ouvidoria de Vila Rica de Ouro Preto, sendo um indivíduo importante na região por gerenciar contratos, dízimos, pagamentos de soldos e controle de terras. As trajetórias administrativas, com verniz de história social, possibilitam um descortinar dos homens que buscavam todos os meios para se solidificar na sociedade colonial.

Anne Karolline Campos Mendonça em As Facetas Jurídicas de um Homem Subalternizado. Alagoas Colonial, 1755 se debruçou sobre a justiça na Comarca das Alagoas em meados no século XVIII. Partindo do conceito de negociação, a autora identifica os limites e as restrições do aparelho judicial moderno, através do caso de Lázaro Coelho de Eça. Tal personagem imbricado em uma rede de relações de força, de ideologia de gratidão, recompensa de serventias e fundamentação dos direitos de conquista, visa através da justiça remediar sua condição. Sua história permite identificar a trajetória de alguns grupos “inferiores” na sociedade colonial e sua relação com a justiça, tendo em vista de remeter aos grupos de índios da aldeia de Urucu (Alagoas do Norte) e abrir o debate sobre o “estatuto de cor” naquela sociedade.

Por fim, Alex Rolim Machado na seção Documentação traz à lume Cinco Documentos para a História das Alagoas – Contribuição para os Estudos Demográficos, Econômicos, Geográficos e Administrativos, 1749-1814 uma análise de alguns conjuntos primários imprescindíveis para se pensar Alagoas enquanto região subordinada à Capitania de Pernambuco. Tais conjuntos são 1) a Informação Geral da Capitania de Pernambuco; 2) a ordem do Governador e Capitão General Luiz Diogo Lobo da Silva em seu último ano de Governo (1756-1763); 3) os ofícios de Justiça e Fazenda de várias Capitanias, Comarcas e Vilas do Brasil Colonial, feito em 1767, a pedido do Marquês de Lavradio, na Bahia; 4) a Ideia da População da Capitania de Pernambuco; e 5) as Notas Corográficas sobre a Comarca das Alagoas em 1814. Os documentos auxiliam no preenchimento de lacunas interpretativas sobre a parte sul da Capitania de Pernambuco, bem como os moradores se relacionaram com sua sede e com o centro administrativo e político português.

Enfim, é um conjunto de artigos e fontes que possibilitam ao historiador – e a qualquer indivíduo – entender mais do que as permanências e rupturas do mundo colonial nos tempos contemporâneos, mas acima de tudo, compreender a complexidade daquelas centúrias bem como as particularidades que marcavam cada uma das conquistas – do Maranhão às Minas Gerais. Os textos são costurados pelo viés da História Política e História Social da Administração que entendem a imbricação das questões econômicas, mentais, sociais e religiosas para compor o mundo político. Quem sabe assim, podemos melhor analisar as condições que vivenciamos na atualidade e buscamos alternativas outras para mudanças de status quo atual. Boa leitura.

Comarca das Alagoas, Massayó, novembro / 2017

Notas

1. LIBÓRIO, Bárbara & NALON, Tai. “Sem Regulação, PEC do Trabalho Escravo está Parada há 2 anos no Senado”, 13 / 05 / 2015. Disponível em Acessado em 28 nov 2017 às 7h04min.

2. Congresso em Foco. “Ministra que Comparou Salário de R$ 31 mil a trabalho escravo não representa os negros, diz movimento”, 04 / 11 / 2017. Disponível em acessado em 28 nov 2017 às 7h40min.

3. COSTA, Craveiro. A Emancipação Política das Alagoas. Maceió: Secretaria de Estado dos Negócios de Educação e Cultura, 1967; BRANDÃO, Moreno. O Centenário da Emancipação de Alagoas. Maceió: Catavento, 2004; CAVALCANTI, Rosiane Rodrigues. Bicentenário em Prosa: 200 anos de Alagoas. Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2017.

4. MELLO, Evaldo Cabral de. A Outra Independência – O Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004; MOURÃO, Gonçalo de Mello. A Revolução de 1817 e a História do Brasil. Belo Horizonte, 1996; BUYERS, Ann Marie. “Em Defesa da Honra: a Emancipação de Alagoas no Imaginário Institucional” In: Crítica Histórica. Maceió: Centro de Pesquisa e Documentação Histórica, Volume 1, Nº 2, jul-dez, 2010.

5. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Publifolha, 2000; NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 2005.

6. CARDOSO, Ciro Flamarion. “Sobre los modos de Produción Colonial en America” In: SANTIGO, Théo (Org.) America Colonial: Ensaios. Rio de Janeiro, 1975.

7. BICALHO, Maria Fernanda Baptista; FRAGOSO, João; & GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

8. FRAGOSO, João e SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (Orgs.). Monarquia Pluricontinental e a Governança da Terra no Ultramar Atlântico Luso. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

9. FRAGOSO, João e MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Orgs.) Um Reino e Suas Repúblicas no Atlântico: Comunicações Políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos Séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

10. KANTOROWICZ, Ernst. Os Dois Corpos do Rei – Um Estudo sobre a Teologia Política Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

11. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos – Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Antonio Filipe Pereira Caetano – Professor Associado 1 – Universidade Federal de Alagoas Coordenador Grupo de Estudos América Colonial – GEAC


CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 8, n. 16, dezembro, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Movimentos Sociais / Crítica Histórica / 2010

Quando a história apareceu como área de conhecimento desgarrada da filosofia, nos idos do século XIX, o seu caminho para “cientificidade” passou pela formação de um método e teoria atrelado ao que os historiadores denominaram de “história positivista”. Genuinamente alemã, este modelo de pensar o passado não só exigia o uso de documentos (exclusivamente escritos e preferencialmente oficiais) como prioritários para a realização da análise de um fato, mas também elegia o mundo político como o locus central para se entender a realidade. Neste caso, a história de grandes personagens célebres (Luis XVI, Napoleão Bonaparte, D. Manuel e D. Pedro) e mais precisamente da elite econômica e política fora devassada pelos historiadores que seguiram o modelo rankeano.

No Brasil, tais instruções e / ou orientações foram absorvidas pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) que visando à construção de uma identidade nacional também “olhou para trás” buscando seus personagens mais “ilustres”. Assim, não foi por acaso que com a necessidade de demonstrar raízes mais profundas do sentimento do nativismo brasílico que a figura de Tiradentes tenha sido a eleita para corporificar estas expectativas. Neste caso, apesar de representar um episódio muitas vezes considerado como “libertino” e na época “crime de lesa-majestade”, Joaquim José da Silva Xavier fazia parte de um grupo: a elite das Minas. Para os membros do IHGB, ávidos por demonstrar que a independência não havia sido pensada em 1822 (sob os auspícios de D. Pedro I, um português) e sim em 1789, Tiradentes reunia todos os ingredientes necessários para servir de espelho e identificação para os criadores desse mito.

Mas, por outro lado, a população de uma maneira geral podia (e provavelmente) enxergava tal personagem muito distante de suas características sociais. Ou seja, apesar do esforço incomensurável (?) dos pensadores do IHGB em associar o movimento social como matriz da história nacional, sua identificação não representava ainda o bojo da população. Assim, é quase lícito afirmar que a história política quando se debruçou sobre os movimentos sociais (talvez sendo os primeiros a já fazerem isso, há de se ressaltar!) não conseguiram dar voz, fala e apelos aos personagens comuns, aos homens do cotidiano e aos episódios que tinham como figura justamente estes indivíduos.

Somente como a Escola dos Annales, no início do século XX, e com os trabalhos que tinham como base as teorias marxistas que a história dos movimentos sociais ganharia uma nova roupagem. Evidentemente, a mais importante e principal delas esteja relacionada a entender os conflitos, as revoltas, as revoluções, as devassas, os motins, as insurreições, as bernardas, as conjurações e as greves também levando em consideração o povo (neste caso, pensando também na própria metamorfose que o conceito de povo sofreu na virada das centúrias), o homem comum e o cidadão explorado e vilipendiado por um grupo, por um sistema, por uma pessoa ou por um comportamento social.

Tais críticas foram absorvidas até mesmo pelos historiadores políticos no terceiro quartel do Novecentos, quando “a nova história política” passava a entender que outros atores sociais também deveriam ser levados em consideração para a compreensão dos embates de uma sociedade. Indo além disso, não só a política fora repensada como a “cultura política” passava a fazer partes dos textos para compreensão das ações sociais, interconectada com os elementos econômicos, religiosos, comportamentais, religiosos e culturais. O resultado desta mudança de análise e até mesmo posicionamento teórico, redundou em investigações sobre as revoltas escravistas, as greves dos sindicatos, a interpretação das ONG’s, o papel dos movimentos culturais, os motins anteriores a insurreição mineira de 1789, a resistência indígena e dentre outras temáticas. Logo, o que se percebe é a ampliação e variabilidade temática dos estudos sobre os movimentos sociais nos tempos atuais, debate essencial em grande parte dos cursos de graduação e pós-graduação do país.

Assim, tendo em vista o cenário amplo, irrestrito, rico e diferenciado para esta temática, o presente número da revista Crítica Histórica tem por objetivo, em seu Dossiê, abri espaço para discussão desta temática. Para isso, seu primeiro artigo Os amotinados e seus algozes: A construção de imagens do homem rebelde na América Portuguesa (Séculos XVII-XVIII) escrito por Antonio Filipe Pereira Caetano analisa como os revoltosos na América Portuguesa eram vistos por aqueles que sofriam seus reveses, bem como pela coroa portuguesa, entendida como a reguladora das relações sociais e de poder nos dois lados do Atlântico. No fundo, a intenção também é entender como esses homens agiam e de que maneira usaram tais recursos como barganhas políticas para a construção do espaço ultramarino. Rumando ao século XIX, Anna Marie Buyers em Em Defesa da Honra: a Emancipação de Alagoas no Imaginário Institucional faz uma breve análise historiográfica sobre um dos episódios mais controversos e debatidos na historia alagoana, a Insurreição Pernambucana de 1817 que culminou na separação da comarca das Alagoas da capitania de Pernambuco. Expondo as versões sobre o fato, a autora demonstra a existência dos interesses de cada grupo institucional em fazer com que sua “verdade” prevalecesse sobre o movimento, contribuindo para dificuldades de interpretações, mas das vezes não fundamentadas em um corpus documental.

Chegando ao início do século XX, Filipe Pinto Monteiro nos traz A Santíssima Trindade nos Sertões: Severino Tavares e a Gestação do Movimento Messiânico-Milenarista de Pau de Colher (Casa Nova, Bahia, 1934-1928), onde tenta inserir seu personagem beato no rol dos episódios conectados com aqueles ocorridos com o Padre Cícero Romão Batista (no Ceará) e José Lourenço Gomes da Silva (Caldeirão dos Jesuítas), praticamente ocorridos ao mesmo tempo. Desta feita, a intenção é fazer um estudo comparativo apresentando as aproximações e as divergências entre o ocorrido em Pau de Colher e as outras localidades nordestinas. Ainda discutindo movimento social, Igreja Católica e religiosidade, Celia Nonata da Silva em “Os pobres herdaram a terra”: Conflitos rurais e a Igreja Católica no Brasil na Segunda Metade do Século XX analisa de que maneira as Conferências de Medellín e Puebla alteraram a forma de pensar dos líderes religiosos e camponeses na luta pela terra, construindo discursos que resgatam o papel missionário e de luta da Igreja nos sertões brasileiros que remontam ao século XIX.

Afastando-se da discussão religiosa, mais ainda permanecendo no debate da problemática da terra, Edson Hely Silva discute em Os Índios Xucurus e as Ligas Camponesas (Pesqueira / PE, 1961) de que maneira os ameríndios lutam para a garantia de seus espaços invadidos por proprietários de terras locais. Com uma farta documentação (oral e escrita) o texto demonstra também como havia um discurso forjado pelas autoridades de manipulação dos índios pelos grupos comunistas da época, desprezando o entendimento de que os mesmos já se enquadravam na condição de trabalhadores assalariados e explorados pelos proprietários de terra. Finalizando o dossiê, mas incluído na seção Documentação, Alberto Vivar Flores nos prestigia com a transcrição da entrevista do General Emiliano Salazar Zapata para o Diário Nova Era, em 1911, momento em que revelava os bastidores da Revolução Mexicana (1910). Tal documento torna-se oportuno neste momento, justamente em que o episódio completa seu centenário de aniversário e ainda é considerado por muitos como um dos pilares da discussão sobre a reforma agrária, a valorização dos indígenas e a ampliação dos direitos e liberdades na América Latina.

Nos artigos de fluxo contínuo Loiva Canova avalia em As Representações de Antônio Rolim de Moura Sobre a Paisagem no Interior da América Portuguesa no Século XVIII como este funcionário através de uma viagem que percorreu o Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso em meados do Setecentos não só descortinou o cenário maçoeiro como analisa a impressão da fauna, flora e aspectos da morfologia destes espaços ultramarinos. Enquanto isso, Marcos Guedes Vaz Sampaio em Padrão dos Investimentos Britânicos e a Modernização Conservadora na Economia Baiana Oitocentista explora como a infra-estrutura baiana (sobretudo a de transporte) foi ventilada pela inserção de capital norte-americano na segunda metade do século XIX, o que não implicou em alterações nos mecanismos produtivos da agricultura, mas apenas reforçando sua condição agro-exporadora. Saindo do mundo da história econômica e flertando com a história cultural, Diogo Cesar Nunes em História, Linguagem e Literatura: Dilemas e Perspectivas da Historiografia Contemporânea ousadamente nos apresenta como a crítica ao contextualismo e apologia a interpretação contribuíram para redefinições teóricometodológicas na própria histórica que possibilitaram uma sobrevivência e maior aproximação entre a História e a Literatura.

Ainda na discussão sobre teoria, José D’Assunção Barros em seu texto Os Tempos da História: do Tempo Mítico às Representações Historiográficas do Século XIX faz uma análise historiográfica sobre as diversas interpretações sobre o tempo ao longo da História que perpassa desde a antiguidade até fins do século XIX, buscando compreender como essa relação tempo-história se forjou em concepções e representações. Já Gabriel Magalhães Beltrão propõe em A Continuidade da Abordagem Positivista Acerca do Folklore na Obra de Théo Brandão uma análise sobre olhar sobre o conceito de folclore em um dos principais representantes desta área no Estado de Alagoas. Neste caso, a intenção também é entender como o positivismo intervém nas construções epistemológicas no fenômeno folclórico. No debate sobre política pública e educação, Caio Penko em Multiculturalismo e Direitos: do marco legal à política pública interpreta como as alterações previstas na Lei 11.645 / 08 deflagrou uma ação diferenciada na educação brasileira visando tratamentos diferenciados as minorias étnico-raciais, elementos constituintes das novas políticas governamentais de reconhecimento social e minimização das diferenças étnicas.

Encerrando esta seção, Ticiane Oliveira de Sales nos desafia a compreender a relação entre história e patrimônio em Práticas Urbanísticas e Preservação Patrimonial no Brasil onde discute como o debate de preservação do patrimônio tem se desenvolvido na formação social do país, principalmente mediante ao crescimento urbano e os impedimentos que o desenvolvimento das cidades acarreta para a manutenção patrimonial.

Por fim, na seção Resenhas João Vinicius Bobek em Distinção e Divulgação: a civilidade e seus livros nos apresenta uma análise da obra Leitura e Leitores na França do Antigo Regime do Antigo Regime de Roger Chartier como uma alternativa para a compreensão do perfil cultura dos homens do Antigo Regime.

Logo, como se pôde observar este número da Revista Crítica História privilegiou não só uma discussão diversificada dos movimentos sociais (temática de nosso dossiê) como também ampliou possibilidades teóricas, metodológicas e de temáticas em seu conteúdo complementar. Função esta que tem como principal objetivo continuar contribuindo para um debate aberto e plural no meio historiográfico nacional.

Antonio Filipe Pereira Caetano – Conselho Editorial

Maceió, dezembro de 2010


CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Editorial. Crítica Histórica, Maceió, v. 1, n. 2, dezembro, 2010. Acessar publicação original [DR]

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