A Sombra dos Homens: A Saga de Tajarê: Livro I | Roberto de Sousa Causo

Persiste no Brasil, pelo menos desde o final do século XIX, o mito arqueológico correspondente a uma possível colônia Viking no país. Tal mito nasce por volta de 1839, quando os membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro recebem uma carta que faz menção à existência de inscrições feitas em uma montanha próxima por povos possivelmente anteriores a Cabral [1].

Desde então, as especulações e fantasias sobre navegadores perdidos nunca cessaram de ocorrer até nossos dias no imaginário popular e nas obras de alguns intelectuais. Ainda que nenhum historiador ou arqueólogo leve tais teorias a sério, elas continuam a ser exploradas pelos escritores “esotéricos” e também por escritores de fantasia.

É justamente o que faz Roberto de Sousa Causo no livro: A Sombra dos Homens – A Saga de Tajarê: Livro I. Não é intenção do autor tentar provar a veracidade destas teorias, mas sim usá-las para contar uma boa história de fantasia. Sua narrativa é fluente, direcionada ao publico jovem, que tem na obra uma boa oportunidade de conhecer um pouco das lendas e mitos vikings e brasileiros.

É justamente esta mistura de criaturas mitológicas de continentes e matrizes culturais tão diferentes que torna este pequeno livro uma pérola para iniciar os jovens no conhecimento da mitologia, tanto a de matriz viking européia quanto a de matriz ameríndia brasileira.

A narrativa tem semelhanças estéticas com aquelas desenvolvidas pela fantasia heróica internacional – J. R. R. Tolkien, Robert Howard e Marion Zimmer Bradley. Nos vemos, assim, imersos nesta paisagem de magos, espadachins, monstros, reis e feiticeiros. Um universo onde o herói, Tajarê, à semelhança de Conan o bárbaro, personifica certos traços humanos, no caso, bravura aliada à força física.

Roberto Causo, com bastante competência, faz interagir em sua narrativa diferentes criaturas mitológicas: Caaporas (os homens dos pés virados), Anhangá (deus indígena), Loki (deus nórdico), Guaranguás (peixes-boi), botos e etc. Também faz interagir concepções místicas / religiosas de ambas as culturas através dos personagens Sjala (uma feiticeira nórdica) e Sotowái (pajé indígena).

Na parte final do livro descreve uma batalha entre duas criaturas mitológicas: o Kraken [2] e o Mboitatá (criatura mitológica brasileiro-ameríndia). Outro destaque são as guerreiras amazonas avistadas por Carvajal em 1541, as Icamiabas, que segundo tradição folclórica, seriam guerreiras de uma sociedade matriarcal. Estas têm um papel importante no desenrolar da narrativa.

O autor, entretanto, comete alguns erros ao apresentar os Vikings, baseando algumas de suas descrições em lugares comuns difundidos pela mídia e não em pesquisa histórica mais detalhada, como ao apresentar, tanto em suas descrições quanto nas ilustrações que compõe o livro, os guerreiros Vikings com elmos adornados com chifres.

Segundo o professor Johnni Langer:

“A maior diferença entre o estereótipo moderno e o verdadeiro guerreiro, reside no uso de capacetes. Um dos únicos exemplares recuperados, em um túmulo norueguês, é abobadado com um penacho central e uma viseira para proteger o nariz e as faces. Em desenhos gravados em megalíticos, pedras decoradas e estatuetas, todas apontam para uma mesma conclusão: o capacete era de formato cônico, liso e sem qualquer protuberância, especialmente cornos” (LANGER, 2005).

Na verdade foram os povos escandinavos que evoluíram durante a Idade do Bronze (2000 a 500 a.C.), que “muitas vezes usavam os capacetes com cornos, que se tornaram símbolos das caricaturas dos vikings. Quando a era viking chegou, entretanto, essas coberturas já estavam em desuso havia muito tempo” (HALE, 2005: 75).

Estes pequenos erros históricos acontecem durante a sua narrativa, mas na mão de um professor competente podem se tornar aliados importantes no ensino-aprendizagem, pois possibilitam ao professor confrontar tais descrições com descobertas arqueológicas, construindo assim um conhecimento crítico e não apenas “empanturrando” o aluno de datas e dados poucos significativos para eles, ainda que possam ser inestimáveis e interessantes para o professor.

Outro elemento importante a destacar nesta obra é a forma como diferentes culturas apresentam-se umas às outras, ou seja, aquele estranhamento do primeiro contato entre povos distintos. Em tempos de guerras étnicas e religiosas, a forma com que Roberto Causo aborda este primeiro contato é bastante significativa, ao evidenciar em sua narrativa que sempre olhamos o outro a partir de nossa própria matriz cultural. Vejamos um exemplo:

“Tajarê viu que das tantas-águas surgiam grandes monstros maiores que um jacaré-açu ou uma jibóia-gigante e que só podiam ser cobras-mboi que eram contadas nas lendas. Tajarê sentiu medo, porque tinha pensado que não mais habitava as feituras mágicas,.

As cobras-mboi foram chegando mais perto e rastejaram com muitas pernas pra areia e então Tajarê entendeu que estes não podiam ser bichos-vivos. Quando homens esquisitos saíram das cobras-mboi, Tajarê de igual entendeu que esses eram na verdade canoas muito grandes cheias de remos e com uma cara feia como devia ser a de uma cobra-mboi entalhada no alto de um pau bem na frente” (CAUSO, 2004: 22).

Este relato da chegada de um drakkar [3] , barco nórdico com proa em forma de dragão as praias brasileiras na visão de um indígena, é bastante significativo ao evidenciar tanto a forma como diferentes culturas podem se “olhar” e “ver” o outro a partir de suas próprias matrizes culturais. Contudo, também evidencia o cuidado do autor com a linguagem, sempre tentando não usar termos e referências lingüísticas modernas para descrever ambientes, pessoas e criaturas mitológicas.

Já foi demonstrado por diversas pesquisas históricas que mitos arqueológicos de uma possível colonização Viking ou Fenícia no Brasil não passaram de projeções culturais dos intelectuais da jovem nação brasileira, esperando com isso construir um passado glorioso e europeu que justificaria a possibilidade de se formar uma civilização de matriz européia nos trópicos.

Ainda que estes mitos não tenham se confirmado podem ser bem trabalhados pela literatura de fantasia, possibilitando tanto a constituição de uma literatura brasileira de gênero, quanto um ponto de partida para o ensino de história, principalmente para aqueles professores que têm a difícil tarefa de despertar o interesse dos alunos do ensino fundamental e médio para questões históricas. Afinal, nada como uma boa “estória” para despertar a vontade de conhecer a história.

Notas

1. Para maiores detalhes aconselhamos a leitura do artigo: Vikings no Brasil? do professor Johnni Langer, disponível em: http://www.nossahistória.net/default.aspx?pagid=EPKCNQRK. Acesso em: 16/10/2005.

2. No livro, o escritor apresenta o Kraken como uma criatura mitológica supostamente Viking, suposição esta que se mostra errônea. Na verdade, este mito surge após a Idade Média durante as grandes navegações da Idade Moderna, provavelmente nos séculos XVI e XVII. Ver: The Kraken http://www.unmuseum.org/kraken.htm.

“Ele é produto direto da mentalidade cristã medieval, não tendo subsídios na mitologia viking. Teria sido influenciado pelo Leviatã hebraico e por narrativas reais de polvos e lulas gigantes. Segundo a lenda teria sido a causa de vários naufrágios, onde seus tentáculos levavam os navios para o fundo do mar, especialmente no norte europeu.” Cf: RONECKER, Jean-Paul. O simbolismo animal. Paulus: SP, 1997, 205-207.

O relato do kraken tornou-se mais popular a partir do século XVIII, com a intensificação da navegação, especialmente na Noruega. Um relato muito famoso é o do bispo de Pontoppidan, de Bergen, 1755. No século XIX, poetas românticos ajudaram a popularizar o kraken, como Lorde Tennyson. Cf. O grande livro do maravilhoso e do fantástico. Seleções do Reader’s Digest, Lisboa: 1977, p. 421.” Informações gentilmente cedidas por Luciana de Campos, na lista de discussão [email protected].

3. Segundo o professor Johnni Langer, “Drakkar, é uma denominação latinizada de origem francesa, empregada para os navios Vikings. O termo escandinavo original para navio de guerra era Langskip”.

(LANGER, 2003: 60. Nota 16). No caso especifico de um navio Viking que pudesse navegar até o continente americano, como é narrado no livro, o modelo a ser usado seria o Knorrer, já que: “Barcos à vela foram construídos para comércio, exploração e colonização: por exemplo, os pesados navios de calado profundo, os Knorrer, transportavam os vikings, através do Atlântico, até o continente americano”. (HALE, 2005: 77).

Referências

HALE, John. Os Navios Vikings. Scientific American História – Ciência na Idade Média. São Paulo: Segmento-Duetto, 2005 (01): 72-77.

LANGER, Johnni. O Mito do Dragão na Escandinávia (Primeira parte: Período Préviking). Revista Brathair 3 (1), 2003: 42-64. Disponível em: http://www.brathair.com

____________. Os Vikings na História e na Arte Ocidental. 2005. http://www.nethistoria.com/index.php?pagina=ver_texto&titulo_id=137&secao_id=460&imageField 222.x=19&imageField222.y=8.

Edgar Indalecio Smaniotto – Filósofo. Professor do ensino fundamental, Mestrando em Ciências Sociais, UNESP/Marília. E-mail: [email protected]


CAUSO, Roberto de Sousa. A Sombra dos Homens: A Saga de Tajarê: Livro I. São Paulo: Devir, 2004. Resenha de: SMANIOTTO, Edgar Indalecio. Mitologias vikings e ameríndias encontram-se numa emocionante história de fantasia heroica. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.5, n.2, p. 117-120, 2005. Acessar publicação original [DR]