Ciência da Lógica – HEGEL (V)

HEGEL, G. W F. Ciência da Lógica. Tradução de CHRISTIAN G. Ibrer e Frederico Orsini. Petrópolis; Vozes; Brgança Paulista: Editora universitária São Francisco, 2018. (A doutrina do conceito, V. 3). Resenha de: WOHLFART, João Alberto. VERITAS, Porto Alagre, v. 64, n. 3, jul.-set. 2019.

Veio a lume o livro III da Ciência da Lógica, A Doutrina do Conceito. Temos agora em nossa Língua Portuguesa e em nossas mãos a tradução completa da Ciência da Lógica, em um significativo passo para o estudo e o aprofundamento da filosofia hegeliana no Brasil. Isto significa dizer que agora podemos ler em nosso português uma das mais complexas obras filosóficas da história e da literatura universal. A tradução completa da obra é um convite à realização de seminários e congressos, à leitura direta do texto em cursos de Graduação e Pós-Graduação em Filosofia, especialmente é um convite para que os maiores conhecedores de Hegel no Brasil aprofundem os seus conhecimentos. Indiretamente, a leitura do texto hegeliano é um desafio para todo o universo acadêmico, pois se trata de um conhecimento fundamental para todas as áreas.

A tradução foi realizada por Christian G. Iber e Federico Orsini, coordenada por Agemir Bavaresco, com as colaboradoras Marloren L. Miranda e Michela

Bordignon e revisada por Francisco Jozivan Guedes de Lima. Os três volumes traduzidos, respectivamente intitulados A Doutrina do Ser, A Doutrina da Essência e A Doutrina do Conceito, integram a coleção Pensamento Humano, da Editora Vozes e da Editora Universitária São Francisco. Vai um cordial agradecimento aos tradutores e equipe tradutora pelo fantástico trabalho desenvolvido e pela contribuição ímpar à racionalidade filosófica.

A Doutrina do Conceito é o terceiro livro da Ciência da Lógica, dialeticamente significa uma síntese entre os dois volumes anteriores e aparece como centro de articulação de todo o sistema filosófico hegeliano. Ela é resultado da dura crítica hegeliana à filosofia de Kant e Espinosa, levada a cabo no final da Doutrina da Essência, especialmente na seção onde Hegel formula a relação absoluta estruturada em relação de substancialidade, relação de causalidade e interação. Como Hegel, na Doutrina da Essência, empreendeu um processo de demolição da metafísica tradicional, do transcendental kantiano e da substância spinozista, dessa crítica resulta a Doutrina do Conceito recentemente traduzida, editada e que ora resenhamos. Para compreender de forma adequada esse livro, a passagem da Necessidade para a Liberdade é a problemática básica empreendida por Hegel e sistematicamente exposta como conceito. Hegel, depois de um radical empreendimento crítico a que submeteu a filosofia clássica e a filosofia de seu tempo, formula a noção de contradição absoluta como dinamismo e como verdade de toda a realidade.

A partir do coração da Doutrina do Conceito, a referência básica para a compreensão da filosofia hegeliana é a lógica da contradição, que perpassa o pensamento, a realidade e articula o movimento.

A Doutrina do Conceito segue uma estrutura dialética tripartite, em subjetividade, objetividade e ideia. A parte sobre a subjetividade é estruturada em conceito, juízo e silogismo; a parte sobre a objetividade é estruturada em mecanismo, quimismo e teleologia; e a parte sobre a ideia é estruturada em vida, ideia de conhecimento e ideia absoluta. O conceito hegeliano não pode ser confundido com a denominação usual de conceito, segundo a qual o pensamento abstrai os objetos materiais e a realidade empírica em forma de conceito, como uma abstração do real, mas o conceito significa a força do movimento contraditório do pensamento em autodesenvolvimento e autodeterminação. De forma análoga, o conceito caracteriza a própria inteligibilidade do real em seu processo de contradição e autodesenvolvimento, portanto, não uma racionalidade conceitual aplicada às coisas, mas caracteriza a realidade mais íntima e o dinamismo mais profundo de tudo. Em relação à Essência, na qual as coisas são insuficientes nelas mesmas, razão pela qual são dispostas num sistema universal de relações, no Conceito cada determinação é a totalidade do conceito, razão pela qual a relação e a contradição constituem a estrutura de tudo.

Hegel expõe o centro de seu pensamento filosófico logo no começo da Doutrina do Conceito, precisamente enquanto conceito subjetivo, articulado nas categorias de universalidade, particularidade e singularidade. Trata-se de uma espécie de racionalidade dialética na qual as três categorias são dialeticamente integradas na exposição da genuína lógica da contradição, segundo a qual uma nega a outra, e na recíproca negação, conjuntamente se afirmam como sistema. Para Hegel, “o universal, ao contrário, mesmo quando se põe em uma determinação, permanece nela o que é. Ele é a alma do concreto, ao qual é imanente, sem impedimentos e igual a si mesmo na multiplicidade e diversidade dele” (2018, p. 68). Hegel não considera a universalidade como se fosse uma inteligibilidade transcendental oposta ao empírico e à diversidade, como na tradição kantiana, mas o universal é inseparável de sua negação e diferenciação na particularidade e na diversidade.

A universalidade não caracteriza um puro conceito separado, mas a autodeterminação na imanência da particularidade, em um processo de autoparticularização como um momento constitutivo seu. No interior da particularidade, o conceito se dá a si mesmo como um infinito processo de negação e de superação desta na negação da negação, quando se afirma positivamente enquanto conceito. O momento da particularidade, por sua vez, não é uma determinidade exteriormente acrescentada ao universal para preencher a sua indeterminação, mas caracteriza uma determinação intrínseca da própria universalidade. Para Hegel, “o particular é o próprio universal, mas ele é a sua diferença ou a relação com um outro, é o seu aparecer para fora; porém, não está presente nenhum outro do qual o particular seria diferente senão o próprio universal” (2018, p. 72). A particularidade não é o outro da universalidade, na forma de uma exterioridade vazia e posteriormente acrescentada, mas é o próprio universal na sua determinidade, na sua diferença imanente e na lógica de autodesenvolvimento e autocontradição. Dessa forma, a particularidade expõe a universalidade na sua determinidade, nas condições próprias da determinação e no momento preciso desse processo.

Na exposição hegeliana, a singularidade aparece como a síntese entre a universalidade e a particularidade, na forma do retorno da universalidade a si mesma por meio da determinidade do conceito universal. Para Hegel, “A singularidade, como resultou, já está posta pela particularidade; esta é a universalidade determinada, portanto, a determinidade que se relaciona consigo, o determinado determinado” (2018, p. 85). O retorno à universalidade por meio da particularidade não caracteriza o simples retorno à universalidade vazia do começo, mas um autodesenvolvimento dialético mais elevado na universalidade concreta da singularidade. Hegel caracteriza este momento como determinado, na dupla potencialidade da determinação, na segunda determinação positiva na qual a universalidade e inteligibilidade são devolvidas à determinação. É o determinado que se relaciona consigo mesmo na autorreflexividade. A singularidade pode ser interpretada numa dupla acepção, primeiramente na singularidade de Hegel e de Marx como síntese condensada entre a universalidade do gênero e a particularidade da espécie humana expressas na concretude da singularidade, na condição de sujeitos conscientes de si mesmos. O momento da singularidade também pode ser interpretado como universalidade e totalidade concreta, como síntese entre a universalidade do gênero humano e a particularidade do indivíduo na totalidade concreta da sociedade humana. Em um exemplo tipicamente hegeliano, a singularidade é a síntese entre a universalidade da Ciência da Lógica e a particularidade da Filosofia da Natureza na universalidade concreta da Filosofia do Espírito, contendo a totalização do movimento da lógica do sistema filosófico. Do ponto de vista estritamente lógico, a universalidade é a substancialidade intrínseca da multiplicidade da particularidade, na qual a singularidade expressa o sistema relacional no qual a universalidade e a particularidade são reciprocamente imanentes um no outro.

A teoria do juízo expõe as múltiplas formas de entrelaçamento entre o sujeito e o predicado, na perspectiva da identificação entre os mesmos.

Para Hegel, “Mas, enquanto agora o sujeito é o autossubsistente, assim aquela identidade tem a relação de que o predicado não tem um subsistir autossubsistente para si, mas, ao contrário, tem seu subsistir apenas no sujeito; ele lhe inere” (2018, p. 97). A mútua compenetração entre o sujeito e o predicado tem um desdobramento complexo e multifacetário, nas inúmeras formas de singularização e de universalização que esta lógica compreende. Numa primeira aproximação, o predicado é uma universalidade que inere, como uma substancialidade imanente, na estrutura do sujeito. Por outro lado, o sujeito caracteriza uma base real de aplicação de uma multiplicidade de predicados. A teoria hegeliana do juízo supõe uma multiplicidade de predicados e uma multiplicidade de sujeitos, todos eles implicados na mediação da cópula. Nessa implicação, a universalidade do predicado é ilimitada e a singularidade do sujeito é restrita e empiricamente determinada. Na medida em que a singularidade é uma das determinações do predicado, o sujeito singular é subsumido pelo predicado que o envolve em si mesmo. Na contramão deste movimento de inerência do predicado no sujeito, o sujeito é um sistema de predicados e de determinações concretas, transformando-se numa universalidade concreta. O predicado, por sua vez, se transforma em singularidade porque figura como uma das atribuições possíveis, enquanto preserva a sua universalidade em razão de sua inerência em múltiplos sujeitos. Dessa forma, sujeito e predicado invertem as suas atribuições fundamentais e as preservam, na medida em que o predicado não se restringe a nenhum sujeito, e o sujeito é uma síntese de uma multiplicidade de predicados, tornando-se concreto.

Assim, adentramos no terreno do silogismo. A compreensão dos silogismos é fundamental para a exposição do sistema filosófico hegeliano, pois além da formulação realizada por Hegel no coração de sua Ciência da Lógica, o faz em todas as esferas filosóficas e articula silogisticamente todo o seu sistema. Para Hegel, “Mas na razão os conceitos determinados estão postos na sua totalidade e unidade. O silogismo não é, portanto, apenas racional, mas todo o racional é um silogismo” (2018, p. 135). Hegel expõe a sua filosofia em silogismos com a finalidade de integrar a unidade e a diversidade, a totalidade e a unidade, para superar toda a forma de dualismos filosóficos e formas indiferenciadas de racionalidade. Na formulação hegeliana dos silogismos, a totalidade é o ponto de equilíbrio entre a unidade e a diversidade, pois a estrutura complexa se universaliza num sistema de relações, como uma unidade na diversidade, como substancialidade imanente ao diverso, e como diversidade na unidade, como diversidade interrelacionada na formação da universalidade concreta. Para Hegel, o silogismo não é apenas racional enquanto forma de pensamento possível, mas todo o racional é um silogismo porque a racionalidade é a integração e a mediação de múltiplos círculos de racionalidade e de realidade.

No formato de organização silogística exposta por Hegel em toda a sua obra, não há mais uma universalidade vazia contrastada à particularidade empírica, mas o silogismo é a expressão da universalidade preenchida de conteúdo, enquanto totalidade racionalmente articulada. De agora em diante, tudo passa a se transformar num sistema de mediações, no qual uma determinação ou círculo medeia na medida em que é mediado, e é mediado na medida em que medeia. As trilogias hegelianas verificáveis em toda a sua obra, tais como ser, essência e conceito; universal, particular e singular; Lógica, Natureza e Espírito; espírito subjetivo, espírito objetivo e Espírito absoluto, todas estas estruturas de racionalidade são expostas em silogismos nos mais variados formatos de mediação.

Na Doutrina do Conceito, a passagem da subjetividade para a objetividade é um momento estruturante. Na mediação da universalidade, alcançada pelo silogismo da necessidade e a consequente interiorização das determinações concretas de singularidade e de particularidade como constitutivas, o conceito é suprassumido em objetividade. Nesta dialética, a objetividade não é um momento exterior à subjetividade e a ela acrescentada, mas caracteriza o autodesenvolvimento da subjetividade em objetividade. Nessa exposição, Hegel retoma a prova ontológica, de Santo Anselmo, para afirmar que o conhecimento de Deus e a realidade de Deus não são momentos separados, como na tese kantiana da impossibilidade do conhecimento de Deus pela razão teórica, mas o conhecimento de Deus por parte do sujeito constitui momento do próprio Deus. Para Hegel, “Mas precisamente, enquanto é o objeto absoluto, Deus não se contrapõe à subjetividade como uma potência hostil e tenebrosa, mas a contém, antes, em si mesmo como momento essencial” (HEGEL, 1995, §194, Zusatz). Na passagem para a objetividade, Deus não é um objeto exterior à razão teórica e impossível de ser por ela conhecida, não é um objeto tenebroso contraposto à subjetividade finita e contingente, mas é determinado como objeto absoluto. Hegel já superou a oposição entre Deus e homem, entre absoluto e relativo, mas a subjetividade humana através da qual Deus pode ser conhecido é determinada como momento do autoconhecimento de Deus. Nessa formulação, todas as antinomias e relações assimétricas entre termos já foram superadas, porque Deus, na sua absoluticidade e totalidade, penetra tudo, perpassa tudo, interliga tudo, especialmente penetra no pensamento humano, na condição de Deus em tudo. Por outro lado, tudo se desenvolve e se relaciona em Deus como determinabilidade universal de tudo, no círculo segundo o qual tudo está em Deus. Nesta exposição, Hegel conjuga ontologia e epistemologia, na medida em que a objetividade da natureza e do mundo são racionalmente conhecidos, e o conhecimento é constitutivo da própria objetividade.

O ponto de chegada da Ciência da Lógica é a unidade dialética entre subjetividade e objetividade, alcançada na ideia. Esta esfera lógica é como um oceano no qual desembocam todas as estruturas categoriais e de racionalidade da Ciência da Lógica, estruturada por Hegel em ideia de vida, ideia de conhecimento e ideia absoluta. “O objeto, o mundo objetivo e subjetivo em geral, não devem meramente ser congruentes com a ideia, mas eles mesmos são a congruência do conceito e da realidade” (HEGEL, 2018, p. 239).

A unidade do conceito e da objetividade significa que o conceito não é mais restrito à sua formalidade meramente teórica, assim como a objetividade não é mais a exterioridade fenomênica imediata. A unidade entre o conceito, primeiro capítulo da Doutrina do Conceito, e a objetividade, segundo capítulo da Doutrina do Conceito, na Ideia significa que a objetividade corresponde ao seu conceito a ele intrínseco, e o conceito se determina na objetividade.

Dessa forma, no universo da Filosofia do real, o Estado corresponde ao seu conceito quando os cidadãos são efetivamente livres e as suas relações ético-políticas são estruturantes da vida ética e social. Uma igreja corresponde ao seu conceito quando ela é capaz de congregar os seus fiéis no amor e difundir no mundo a lógica do amor como realidade mesma de Deus.

Assim, no capítulo final sobre a Ideia, a confluência sintética entre conceito e objetividade caracteriza a imanência do conceito na realidade, a sua inteligibilidade, e marca o autodesenvolvimento da realidade no desdobramento metódico, enquanto estrutura do conteúdo. Sob o ponto de vista estrito do pensamento filosófico, o capítulo final da Ideia caracteriza o sistema da racionalidade filosófica em seu autodesenvolvimento metódico, na expressão da significação filosófica no conteúdo das estruturas macrossistemáticas da filosofia, como por exemplo, o desenvolvimento da totalidade da História da Filosofia o dos sistemas do Idealismo alemão.

A vida não é apenas o processo interno do autossentimento de si mesmo, mas é traduzida no processo vital de posição da objetividade externa da universalidade real no processo de gênero. Na exposição hegeliana, o gênero consiste na superação da restrição imposta pela exterioridade objetiva ao sujeito, pela autoposição dele mesmo no processo de gênero, no qual o relacionamento com a exterioridade caracteriza uma relação fundamental consigo mesmo. “Este universal é o terceiro estágio, a verdade da vida, na medida em que essa ainda está encerrada no interior da sua esfera. Este grau é o processo que se relaciona consigo do indivíduo, onde a exterioridade é o seu momento imanente” (HEGEL, 2018, p. 258). No processo de gênero, o sistema de objetividade não é mais estranho ao indivíduo, mas o seu próprio processo de universalização transforma a objetividade em determinação imanente sua; por outra, a subjetividade do indivíduo é a próVERITAS pria inteligibilidade da objetividade. Dentro da multiplicidade de indivíduos autossubsistentes, o gênero integra no sentimento de si mesmo do indivíduo o sentimento recíproco em relação a todos os outros, significa dizer que a coletividade é constitutiva do sentimento de si. A reflexão do gênero dentro de si mesmo produz a universalidade genérica em que todos os indivíduos são entrelaçados em relações que formam todo o sistema, como uma força intrínseca que se desdobra a todos os seres vivos. “A reflexão do gênero dentro de si é, segundo esse lado, aquilo através do qual o gênero obtém efetividade, na medida em que o momento da unidade negativa e da individualidade é posto nele – a propagação das gerações vivas” (HEGEL, 2018, p. 259). A reflexão do gênero em sua interioridade produz a efetividade no desdobramento das gerações, na negatividade preservadora da unidade fundamental e incrementa o desenvolvimento qualitativo no qual uma geração se atualiza em relação à outra. A questão de gênero formulada por Hegel na parte da Lógica compreende dois movimentos sistemáticos integrados, na unidade intrageracional da atual geração, em seu sistema de vida, e na projeção intergeracional impulsionadora do desenvolvimento e a atualização do movimento genético.

A ideia de conhecimento acontece no duplo movimento integrador das formas do analítico e do sintético. O conhecimento analítico se restringe ao imediatamente conhecido, sem a consideração de suas determinações e de seus desdobramentos. Integra apenas a forma do conhecimento, sem a consideração do seu conteúdo. Quando se considera, por exemplo, o conhecimento matemático, o momento analítico se restringe simplesmente aos números matemáticos e às suas operações, sem a aplicação à realidade quantificada a partir dessas fórmulas. Trata-se apenas do conceito de racionalidade, sem a consideração de suas estruturas reais e concretas. Na consideração da racionalidade filosófica, o conhecimento analítico se restringe às formas lógicas mais elementares, não entrando em consideração o desdobramento histórico dessa racionalidade e as mediações históricas efetivas. Esse momento integra apenas a genética originária da racionalidade, o seu momento mais indeterminado e vazio, sem a consideração de seus mais variados desdobramentos. Para Hegel, “A partir da natureza a ideia do conhecer resultou que a atividade do conceito subjetivo, por um lado, tem de ser vista somente como desenvolvimento daquilo que já está no objeto” (2018, p. 275). Por esta via, o conhecimento analítico considera o objeto em sua imediaticidade, em sua pura objetividade, como um dado apriorístico, sem a mediação da subjetividade. “O conhecer sintético visa ao compreender daquilo que é, quer dizer, visa apreender a multiplicidade de determinações em sua unidade” (HEGEL, 2018, p. 281).

Enquanto o conhecimento analítico separa as determinações como um atomismo epistemológico, o conhecimento sintético apreende a realidade na riqueza sintética das suas determinações dialeticamente integradas como uma totalidade concreta. O conhecimento sintético não aborda apenas a estrutura concreta e o sistema de interconectividade do real apreendido pela subjetividade, mas o processo de desdobramento das determinações, no desenvolvimento intersistemático em estruturas cada vez mais complexas e concretas. Trata-se de um processo de determinação do que estava indeterminado no momento analítico, numa progressiva evolução do círculo dialético do conhecimento em sempre mais extensa concretude e objetividade, e em sempre mais intensiva subjetividade e interioridade.

A Ciência da Lógica conclui com o capítulo intitulado “A ideia absoluta”. Em um dos mais difíceis textos da filosofia hegeliana, para ele desemboca toda a estrutura dialética da Ciência da Lógica em sua evolução dialética, como também abre para as outras esferas do sistema filosófico na Filosofia da Natureza e na Filosofia do Espírito. Na formulação hegeliana, a ideia absoluta não é apenas uma esfera lógica, mas uma esfera interdisciplinar e interesférica que interliga os círculos da Lógica, da Natureza e do Espírito.

Na ideia absoluta, Hegel aborda a questão do método, não como uma forma externa aplicada ao conteúdo, mas como autodeterminação racional do próprio conteúdo, no movimento da atividade absoluta. Para Hegel, “O método é, por isso, a alma e a substância e qualquer coisa é compreendida e sabida na sua verdade somente enquanto está perfeitamente submetida ao método; ele é o método próprio de cada Coisa mesma” (2018, p. 315). A ideia absoluta é estruturada por Hegel como unidade entre ideia teórica e ideia prática, entre conceito e objetividade, entre ideia de conhecimento e ideia de vida no movimento racional do próprio conteúdo. No método, o conceito é a alma impulsionadora do movimento e o conteúdo é a estrutura de objetividade, na síntese do automovimento do próprio conteúdo.

Como alma do conteúdo, a universalidade do método se determina na objetividade do conteúdo enquanto sistema de totalidade sistemática, em círculos de universalidade que são formas de autodeterminação da ideia absoluta. A Lógica, a Natureza e o Espírito caracterizam círculos diferenciados de autoparticularização da ideia que se determina em objetividade e em oposição à objetividade. Em cada círculo de autodeterminação, a ideia se universaliza, retorna a si mesma e se abre para outra esfera de efetivação, estabelecendo um sistema de totalidade em movimento, no qual ela própria é a força articuladora desta estrutura e mediadora universal.

O método caracteriza um processo de autodesenvolvimento imanente e de contínua ampliação das estruturas de objetividade, sustentado com o retorno à subjetividade enquanto reflexividade do método.

Resenhamos alguns pontos que consideramos estruturantes na Doutrina do Conceito hegeliana. Porém, ela não se restringe ao sistema e à filosofia hegeliana, mas ela é estendível aos nossos tempos. Na atualidade, partir dessa parte da filosofia hegeliana permite atribuir a ela outras funções e estendê-la para o complexo campo da realidade atual.

Hegel nos legou a ideia de contradição como estrutura fundamental do pensamento e da realidade, e a apresenta como um processo em construção em círculos de negação, de contradição e de novos níveis de afirmação. Depois de Hegel, a Doutrina do Conceito ainda é a melhor referência filosófica que temos para compreender a realidade dinâmica, complexa e contraditória. O processo de particularização e de singularização exposto no começo indicam essa lógica. A teoria do silogismo, na forma de sistemas de mediação, é um recurso lógico e epistemológico que nos abre à totalidade do mundo e seus processos.

Agora temos em mãos a tradução completa da Ciência da Lógica, de Hegel, em português. É uma das principais e mais difíceis obras da literatura universal. É uma obra que precisa ser estudada sempre, em razão de seu conteúdo e de sua significação inesgotáveis. Mesmo que ela seja estudada durante uma vida inteira, jamais alguém seria capaz de apreender toda a sua estrutura de racionalidade. Como Hegel escreveu uma Filosofia da História universal, a História universal vai manifestando o seu significado, e, coextensivamente, a Ciência da Lógica ajuda a compreender o significado profundo da História universal. Mesmo com uma vasta bibliografia já acumulada em estudos e comentários, na condição de literatura secundária, ainda estamos longe de conhecê-la satisfatoriamente.

A complexidade da obra desafia qualquer leitura, estudo e grau de conhecimento que se tenha dela, especialmente porque ela vai explicitando novos sentidos e possibilidades de interpretação. Na Doutrina do Conceito, de modo particular, aprendemos de Hegel a não aplicação de uma racionalidade a um conteúdo determinado, a não separação entre universalidade e particularidade, mas um desenvolvimento dialético que parte de dentro e se universaliza progressivamente. Essa noção de racionalidade, estendida ao campo do real, significa que o mundo não é consequência de uma força superior e exterior, mas especialmente a História universal se desdobra a partir de uma racionalidade que carrega dentro, e a própria História aprofunda essa racionalidade.

João Alberto Wohlfart- Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor no Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE), Passo Fundo, RS, Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4126-3961. E-mail: [email protected] Ciência da lógica | João Alberto Wohlfart João Alberto Wohlfart1 Instituto Superior de Filosofia Berthier, Passo Fundo, RS, Brasil. Endereço Postal: Instituto Superior de Filosofia Berthier R. Sen. Pinheiro, 350 – Vila Rodrigues, Passo Fundo – RS, CEP 99070-220

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A doutrina da Essência – HEGEL (V)

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A doutrina da Essência. V. 2. Equipe de Tradução: Christian G. Iber e Federico Orsini. Coordenador: Agemir Bavaresco; Colaboradores: Marloren L. Miranda e Michela Bordignon. Revisor: Francisco Jozivan G. de Lima. Petrópolis, Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2017, pp. 271. Resenha de: WOHLFART, João Alberto. Veritas, Porto Alegre, v. 63, n. 2, p. 801-813, maio-ago. 2018.

Veio a lume a tradução do segundo volume da Ciência da Lógica intitulado “A Doutrina da Essência”, uma tradução realizada por Christian Iber, Federico Orsini, resultante de um trabalho em equipe coordenado pelo professor Agemir Bavaresco. O belo livro que temos em mãos integra a coleção de obras filosóficas denominada Pensamento Humano, editado e publicado pela Editora Vozes. Com esta tradução, os falantes de língua portuguesa e os estudantes de filosofia de todos os níveis têm em mãos uma obra fundamental do pensamento hegeliano para a leitura, abordagem em aula, produções filosóficas e aprofundamento do conhecimento da filosofia hegeliana, especialmente no Brasil. Para os que lemos uma das principais obras filosóficas da história, durante anos, no idioma do filósofo Hegel, agora temos a agradável surpresa de ter em mãos este texto difícil na nossa língua portuguesa.

Esta tradução já fora antecipada pela tradução do primeiro volume da Ciência da Lógica, a Doutrina do Ser, e a sua adequada leitura e compreensão deve ser antecipada pela leitura do primeiro volume. A Doutrina do Ser termina com o círculo categorial da desmedida, portanto na abstração e na indeterminação universal, sem que nada possa ser determinado e diferenciado em relação a outras coisas. Por este viés, a primeira questão a ser abordada por Hegel na Doutrina da Essência é a determinação e diferenciação das coisas, o estabelecimento do estatuto lógico da multiplicidade e da diversidade. Do ser para a essência qual a indeterminação universal do ser mergulha na interioridade de sua reflexão, o que resulta no revestimento do ser por determinações concretas.

Hegel, na Doutrina da Essência, não ressuscita a velha noção metafísica de essência e não se apropria da sua noção kantiana, mas submete a metafísica tradicional a uma radical crítica. Dualismos metafísicos de toda a espécie são demolidos, aplainados e integrados num mesmo círculo relacional no qual cada polaridade subsiste na outra e pela outra. De modo geral, a Doutrina da Essência pode ser interpretada como uma crítica radical, demolidora e destruidora da metafísica tradicional, dos dualismos clássicos, do pensamento moderno e das formas estáticas de pensamento. Desta forma, ao longo deste volume da Ciência da Lógica são unificados dialeticamente binômios como essência e aparência, condicionado e incondicionado, necessidade e contingência, substância e acidente, absoluto e relativo, substância e interação etc. Ao longo da exposição hegeliana, estes opostos vão sendo progressivamente integrados, dissolvidos em outros níveis de pensamento, ao mesmo tempo em que o filósofo vai expondo a mais profunda crítica filosófica até então conhecida, especialmente no processo de dissolução de estruturas consagradas da metafísica tradicional.

O livro não é apenas surpreendente no seu processo de exposição, com uma linguagem filosófica dificilmente compreensível a partir de uma simples leitura, mas surpreende com um olhar atento do índice do livro. A segunda parte que trata do aparecimento surpreende porque sinônimos como aparência e fenômeno não são mais interpretados como contrários à razão, mas a aparência se torna uma dimensão fundamental da própria razão. Neste sentido, uma das novidades fundamentais da Doutrina da Essência é a introdução, como constitutiva da razão, de uma dimensão que sempre lhe foi negada. Com esta abordagem hegeliana, não há mais nenhum fundamento inabalável para a razão, nem de ordem metafísica, ou teológica, ou lógica, mas a razão se autofundamenta no seu próprio caminho de constituição, de forma que a Lógica hegeliana não tem o recurso a uma esfera exterior a ela.

A Doutrina da Essência apresenta uma trilogia dialética constituída pela essência, pelo aparecimento e pela efetividade. Cada uma destas seções é também tripartite, na essência estruturada em aparência, nas determinações da reflexão e no fundamento; o aparecimento estruturado em existência, em aparecimento e em relação essencial; a efetividade estruturada em absoluto, na efetividade e na relação absoluta. Para traduzir em palavras simples o significado filosófico das três seções da Doutrina da Essência, a essência se refere às determinações imanentes da essência, tais como a identidade, a diferença e o fundamento; o aparecimento se refere à exteriorização da essência, especialmente na destruição da coisa, na interação entre as coisas e na relação essencial; a efetividade se refere ao substancial processo de aparecimento da razão, especialmente na lógica das modalidades e no sistema da relação absoluta, no qual conclui a Doutrina da Essência. Em toda a trajetória desta exposição, conceitos opostos vão se integrando, se alternando, e a razão como um todo se constitui através do processo de mediação. Assim, com a incorporação do aparecimento como constitutivo da razão, ela se transforma num movimento sistêmico de negação e de constituição.

A primeira seção da Doutrina da Essência trata das determinações da reflexão, especialmente a identidade, a diferença e a contradição. Talvez, nesta seção compreendemos a razão para se escrever uma Doutrina da Essência, não para legitimar a clássica noção de essência, mas para dissolvê-la por completo. Por este viés, não existe mais uma simples noção de identidade na clássica fórmula A=A, com a exclusão do outro, mas a identidade somente é tal com a inclusão da diferença. Ela somente pode ser explicada e fundamentada pela diferença, pois somente algo é idêntico pela sua diferenciação em relação à alteridade, e a diferença somente é tal diante da identidade. Na formulação hegeliana, identidade e diferença se compenetram mutuamente, pois a identidade se constitui diante da diferença, e a diferença é identidade consigo mesma e diferença em relação à identidade. Por seu curso, a identidade é diferença em relação à diferença, de modo que, identidade e diferença, cada qual, é duplamente constituída pela identidade e pela diferença. Neste raciocínio, cada uma destas determinações somente é pela outra, pois cada uma é refletida em si mesma a partir de seu outro. As várias modalidades de diferença expostas por Hegel são a diferença absoluta, a diversidade, a oposição e a contradição, pois a diferença absoluta diz respeito à relação da diferença em relação a si mesma, na medida em que absolutamente tudo estabelece relação com a sua diferença.

Hegel estabelece a unidade entre a identidade e a diferença na categoria de fundamento. Para Hegel, fundamento não significa uma base incondicionada e imóvel sobre a qual é edificada uma consequência ou uma causalidade segunda linearmente deduzida do fundamento primeiro, mas o fundamento constitui o círculo relacional entre a identidade e a diferença. O fundamento caracteriza uma espécie de totalidade relacional segundo a qual todas as coisas são idênticas consigo mesmas na medida em que se diferenciam, e tudo se diferencia na identidade. Trata-se, portanto, de uma extensão universal de interpenetração entre a identidade e a diferença, pois estas duas determinações da essência se encontram distribuídas por tudo. O fundamento, portanto, não é mais a identidade originária e absoluta de algo que exclui de si a alteridade, mas caracteriza a universal interpenetração da identidade e da diferença. Para Hegel, “a essência, na medida em que ela se determina como fundamento, determina-se como o não determinado, e somente o suprassumir de seu ser determinado é seu determinar-se” (93). Desaparece, em Hegel, a noção clássica de essência como algo determinado e específico, para dar lugar à indeterminação universal capaz de integrar os opostos como um círculo de autofundamentação universal. Neste sentido, se todas as coisas são confluência de identidade e de diferença, o fundamento constitui a estrutura universal integradora e sintetizadora de tudo.

Hegel expõe várias expressões e desdobramentos da categoria fundamento. A primeira delas é fundamento absoluto, em binômios categoriais como forma e essência, forma e matéria, forma e conteúdo. Nesta modalidade de fundamento, o primeiro é a condição e o segundo é o condicionado e a essência é o fundamento do aparecimento, da efetividade, enfim, o fundamento incondicionado de toda a Ciência da Lógica. A segunda modalidade de fundamento é fundamento determinado, expressa na necessidade de determinação geral e múltipla nas diferentes dimensões da razão e da realidade. Em outras palavras, o fundamento somente é tal na medida em que se expressa e se determina numa condição fundada, enquanto o fundamento é restringido pela condição de sua determinação. A terceira modalidade de fundamento é o fundamento completo, desdobrado no relativamente incondicionado e no incondicionado absoluto. Esta última modalidade é a bilateralidade relacional entre condição e condicionado, pois a condição se determina diante do condicionado, e o condicionado contém em si mesmo a condição.

A noção hegeliana de incondicionado absoluto não fixa uma dimensão diante da outra como polos irredutíveis e excludentes, mas desencadeia-se uma determinação recíproca entre condição e condicionado. Mesmo que não seja esta a problemática abordada por Hegel nesta seção, por exemplo, Deus somente pode ser considerado como absoluto e incondicionado se o homem o determina como absoluto na sua capacidade de pensá-lo e conhecê-lo.

A essência passa dialeticamente para o aparecimento. A noção hegeliana da essência não a deixa escondida num espaço numinoso e impenetrável, atrás das aparências, mas a essência deve aparecer na forma da diferença e da exterioridade. Desta forma, o aparecimento não significa uma expressão posterior e superficial de uma essência imóvel e incomunicável, mas no aparecer a essência se determina e põe as suas determinações racionais no processo de aparecimento. Para Hegel, “mas este ser, em que a essência se transforma, é o essencial, a existência; um ser que saiu da negatividade e da interioridade” (143). O aparecimento não é uma manifestação posterior e secundária, mas no aparecimento a essência se determina como essência, na condição dialeticamente qualificada da existência. Trata-se de um movimento de saída da interioridade abstrata e superficial, porque a existência é estruturada no equilíbrio entre a interioridade e a exterioridade, num contínuo processo de exteriorização e de interiorização, em níveis nos quais estes dois movimentos se integram e se diferenciam em novas configurações. Na noção hegeliana de aparecimento, fenômeno e existência têm em comum a lógica do movimento, porque nada mais pode ser interpretado como simplesmente dado, mas todas as determinações de racionalidade, mesmo as de caráter estritamente ontológicas e essencialistas, são resultado de um movimento de aparecimento.

A existência, tal como exposta por Hegel, pode ser considerada como uma densificação e universalização do fundamento, na dialética entre a mediação e o mediado. Mediação e mediado constituem-se reciprocamente na posição da mesma realidade. Assim, “a mediação através do fundamento se suprassume, mas não deixa o fundamento embaixo, de modo que aquilo que surge dele seria um posto, o qual teria sua essência em outro lugar, a saber, dentro do fundamento, mas esse fundamento, enquanto abismo, é a mediação desaparecida” (137). Desaparece a relação unilateral entre fundamento e fundado, entre

mediação e mediado, de modo que o que é fundado é portador da mesma fundamentação que o fundamento, ou seja, a mediação determina o mediado da mesma forma que o mediado determina a mediação. A noção hegeliana de existência, exposta nesta parte da Doutrina da Essência, forma uma espécie de abismo universal reintegrador e unificador de todos os dualismos metafísicos clássicos e kantianos, na condição de uma existência preenchida. Assim, ficou suprassumida a noção de essência enquanto fundamento da existência e do fenômeno, e o fundamento enquanto determinação primeira ficou positivado no fundamento universal. Em termos teológicos e religiosos, apenas para exemplificar, Deus não é mais uma transcendência inatingível pelo conhecimento finito, mas o abismo universal também preenchido e mediado pelo conhecimento humano.

Esta argumentação converge num aspecto estruturante no universo da Ciência da Lógica. Refere-se a um item intitulado por Hegel “a destruição da coisa”, pois ali o filósofo quebra com um dos dogmas fundamentais da velha metafísica sustentada em coisas densas, incomunicáveis e impenetráveis, e as dissolve numa espécie de configuração de relações. Coisas fixas são dissolvidas e substituídas por um movimento universal de interpenetração de matérias e de intercruzamento de movimentos de organização. De mônadas incomunicáveis, as “coisas” se transformam em polos abertos pelos quais e através dos quais outras matérias perpassam e o universo material é suprassumido num sistema universal de intercâmbio material. Assim, em todas as coisas são compreendidas múltiplas outras coisas, de forma que Hegel atualiza um fundamento clássico de racionalidade dialética segundo o qual “tudo está em tudo” e tudo está implicado em tudo. Isto expõe o princípio segundo o qual em cada coisa elementar está compreendida a totalidade, estruturada a partir da dialética do microcosmos e do macrocosmos, da elementaridade e da totalidade, do simples e do complexo etc. Para Hegel, “essa dissolução é um tornar-se determinado externo, tal como também o ser da mesma; mas sua dissolução e a exterioridade e seu ser é o essencial desse ser; ela é somente o também; ela consiste somente nesta exterioridade” (150). Para Hegel, as coisas não são constituídas na identidade própria, num conjunto de predicados que constituem o seu ser absoluto e incomunicável, mas são constituídas pela exterioridade de outros materiais e movimentos externos. Em outras palavras, uma coisa não é a identidade de si mesma, mas uma coisa é a sua própria exterioridade e diferença, em cujo movimento é muito mais forte e intensiva a heterodeterminação e heteronomia que a autodeterminação.

A Ciência da Lógica, especialmente na Doutrina da Essência, procede duplamente um caminho de destruição e de construção. Na segunda seção da Doutrina da Essência, que trata do aparecimento, Hegel destrói a essência e a aparência, mas suprassume estas determinações destruídas por uma configuração racional mais elevada e mais complexa. A pergunta é esta: qual seria a síntese mais elevada entre a essência e a aparência destruídas? Se Hegel destruiu o que sempre foi considerado como existente necessário, a essência metafísica, o que efetivamente existe? A resposta hegeliana a esta questão está no terceiro capítulo da segunda seção, a relação essencial. A relação dissolve e suprassume a essência e a aparência porque, por um lado, é constituído um sistema global no interior do qual tudo está relacionado, pois o que é fundamental em tudo e em todas as coisas são as relações que estabelecem. Nesta configuração, nada é imediatamente idêntico consigo mesmo, mas a relação é a unidade entre a referência a si mesmo e a referência a outro, pois na referência a outro se torna referente a si mesmo. Nesta sistemática, cada coisa ou sujeito está constitutivamente aberto a múltiplos outros sujeitos, e entre todas as coisas e sujeitos se estabelece um sistema de relação universal no qual todas as coisas estão relacionadas com todas as coisas, cada coisa e cada sujeito se relacionam com a totalidade e a totalidade com cada coisa, enquanto todas as coisas se constituem no interior da teia infinita e complexa que é a totalidade. Para Hegel, “ela é, portanto, algo quebrado dentro de si mesmo; mas esse seu ser suprassumido consiste no fato de que ela é a unidade de si mesma e de seu outro, portanto, um todo, e justamente por isso ela tem existência autossubsistente e é reflexão essencial dentro de si” (172).

Hegel fecha a Doutrina da Essência com a terceira seção dedicada à efetividade, qualificada como unidade dialética entre interioridade e exterioridade, essência e aparência. A efetividade não deve ser entendida como o resultado de uma reflexão anterior produtora de um efeito, mas enquanto unidade de essência e aparecimento, ela se determina como um movimento reflexivo de autodeterminação e autodesenvolvimento universais, na forma de aparecimento sistêmico e permanente. Hegel, como nas partes anteriores, estrutura esta seção na trilogia dialética

composta por “o absoluto”, “a efetividade” e “a relação absoluta”. Evidencia-se, nesta parte, uma teoria sobre o absoluto, numa densíssima exposição que vai além de todas as abordagens e formulações já realizadas até então pela História da Filosofia. Nesta construção, o absoluto é inseparável de um sistema de relações conjugada em binômios dialéticos como necessidade e contingência, substancialidade e acidentalidade, absoluto e relativo, substancialidade e relacionalidade. Para Hegel, “a identidade do absoluto é, por conseguinte, a identidade absoluta, pelo fato de que cada uma de suas partes é, ela mesma, o todo, ou seja, cada determinidade é a totalidade” (194). O absoluto não é verticalmente sobreposto ao mundo relativo e contingente, mas o absoluto é a totalidade universal internamente estruturado por um sistema de determinações no qual cada determinidade é a totalidade. Isto significa dizer que cada uma está mergulhada no abismo universal do absoluto como todas as outras, razão pela qual todas elas convergem em cada uma como configuração densificada de um sistema de relações. Vale aqui a proposição neoplatônica segundo a qual tudo está em tudo e por meio de tudo num sistema de interpenetração universal, como um movimento de singularização da totalidade e de totalização da singularidade. Para Hegel, “mas o próprio absoluto é a identidade absoluta; essa é a sua determinação, na medida em que toda a multiplicidade do mundo que é em si e do mundo que aparece ou da totalidade interior e exterior está suprassumida nele” (194). Não há uma exterioridade fora o absoluto ou uma manifestação externa rebaixada, tal como a noção criacionista cristã na qual o mundo está fora do absoluto, mas uma universalidade sistemática ilimitada que suprassume num único universo a interioridade e a exterioridade.

Dentro desta lógica, Hegel expõe o atributo do absoluto e o modo do absoluto. O atributo do absoluto não caracteriza dois lados de sua estrutura imanente, tais como o essencial e o inessencial, o númeno e o fenômeno, mas o atributo absoluto caracteriza simplesmente o absolutamente absoluto. Para Hegel, “dentro do absoluto, pelo contrário, essas imediatidades diferentes são rebaixadas à aparência, e à totalidade, que é o atributo, é posta como seu subsistir verdadeiro e único; mas a determinação, na qual ele é, está posta como o inessencial” (197). Os atributos não representam, para Hegel, diferenças qualitativas substancialmente diferentes entre si e, por consequência, incomunicáveis, mas as diferenças internas se tornam inessenciais na medida em que estão mergulhadas na mesma substancialidade universal. A curiosa inessencialidade indiferente universal é idêntica à essencialidade absoluta, pois, como veremos logo abaixo, a intercomunicação universal de todas as coisas produz uma espécie de substancialidade indiferente na qual as diferenças de coisas mergulham na indiferença global. Enquanto o atributo do absoluto produz a sua interiorização como lógica da identidade absoluta, o modo absoluto produz a exteriorização e a diferenciação, na radical cisão e contradição interna. Para Hegel, “o absoluto é a forma absoluta, a qual, como a cisão de si, é pura e simplesmente idêntica consigo, o negativo como negativo, ou aquilo que se junta consigo e somente assim é a identidade absoluta consigo, que igualmente é indiferente frente a suas diferenças ou é conteúdo absoluto; o conteúdo é, portanto, somente esta própria exposição” (199). A negação da identidade absoluta se dá na radical cisão enquanto o seu conteúdo é automanifestação, não no sentido de que o conteúdo da essência se manifesta em determinadas formas exteriores, mas no movimento de identificação da forma e do conteúdo como automanifestação absoluta. A autocontradição de si mesma enquanto autonegação passa a ser a identidade através da qual o absoluto se automediatiza consigo mesmo como exposição de si.

No capítulo segundo, Hegel expõe a lógica das modalidades, um dos capítulos muito estudados de toda a literatura hegeliana. Para Hegel, “então, como a manifestação de que não tem outro conteúdo e não é nada mais do que o fato de ser sua manifestação, o absoluto é a forma absoluta. A efetividade tem de ser tomada como esta absolutidade refletida” (205). A lógica das modalidades tem como significação fundamental a forma absoluta da manifestação, distribuída na possibilidade e necessidade formais; na necessidade relativa ou efetividade, possibilidade e necessidade reais; e na necessidade absoluta. De modo geral, Hegel não expõe uma necessidade cega que elimina a diferença, a multiplicidade, a possibilidade e a contingência, como, num outro plano, a História estaria conduzida por uma causalidade inexorável onde tudo estaria incondicionalmente predeterminado. A noção hegeliana de necessidade absoluta se dá porque passa a ser constitutiva da racionalidade a contingência e a multiplicidade. Não se trata de uma lógica que elimina a contingência, mas o que propriamente é absoluto é a ciranda e a dança das modalidades e a metamorfose de uma modalidade nas outras. Para Hegel,

“[…] suas diferenças não são, por conseguinte, como determinações da reflexão, mas sim como multiplicidade que é, como efetividade diferenciada, que tem a figura de outros autossubsistentes uns frente aos outros” (218).

Na multiplicidade, as modalidades são determinadas umas frente às outras, são reciprocamente mediadas num sistema absoluto, o que resulta na identidade absoluta internamente diferenciada na transformação da efetividade em possibilidade e da possibilidade em efetividade. Não se trata, portanto, da necessidade absoluta que elimina a contingência, mas o movimento entre a possibilidade, a contingência, a multiplicidade, a realidade e a efetividade resultam na necessidade absoluta.

Hegel conclui a Doutrina da Essência com um capítulo sobre a relação absoluta. Trata-se de um capítulo decisivo na Ciência da Lógica como um todo, no pensamento hegeliano e na literatura filosófica universal. Como Hegel expõe uma lógica da contradição, a relação absoluta aparece como a expressão máxima da contradição e da Doutrina da Essência como um todo. A descoberta fundamental da Doutrina da Essência agora se torna plena, ao conjugar dialeticamente a absoluticidade e a relatividade. Nesta lógica, a relatividade se torna absoluta em função da interrelacionalidade global de todas as coisas que constituem o sistema do absoluto propriamente dito, e o absoluto se torna relativo em função da autorrelação universal consigo mesmo na autorreflexão. A dissolução da coisa enquanto metafísica da mônada incomunicável e impenetrável resultou no conceito de relação absoluta na qual todas as coisas são essencialmente interconectadas entre si no interior da totalidade do absoluto, de forma que a relatividade tem a mesma abrangência e profundidade da absolutidade. Para Hegel, “a essência enquanto tal é a reflexão ou o aparecer; mas a essência enquanto relação absoluta é a aparência posta como aparência, a qual, como esse relacionar consigo, é a efetividade absoluta” (221). Conforme observamos acima, agora a essência não se exterioriza mais num fenômeno posterior e superficialmente relacionado ao fundamento imóvel, mas a relação absoluta aparece no movimento e aparência universal, como autorrelação absoluta e efetividade absoluta. Em outras palavras, as sólidas e dinâmicas relações entre a multiplicidade variada de coisas se universaliza no movimento e na aparência quee resulta na autorreflexividade do absoluto. Em suma, poderia se afirmar que o resultado da Doutrina da Essência é a relatividade universal, a ponto de absolutizar a relatividade, numa espécie de manifestação da efetividade absoluta igual a si mesma.

A primeira forma de relação absoluta é a relação de substancialidade efetivada na implicação de imanência entre substancialidade e acidentalidade. A substancialidade se desdobra na multiplicidade de acidentes e os acidentes se organizam na imanência da substancialidade. Para Hegel, “o aparecer é o aparecer que se relaciona consigo, assim ele é; este ser é a substância como tal. Inversamente, este ser é apenas o ser posto idêntico consigo, assim ele é a totalidade que aparece, a acidentalidade” (222). A substancialidade aparece como a autorreflexividade do aparecimento que se traduz no sistema de acidentalidades em totalização reflexiva. Nesta perspectiva, a substancialidade é a absoluta atuosidade em autocontradição de si mesmo manifestada na coextensividade entre destruição e criação, pois a força da substancialidade cria na medida em que destrói, e destrói na medida em que cria. A relação de substancialidade se transforma em relação de causalidade porque a absoluta atuosidade tem como resultado a produção do efeito. Na verdade, causa e efeito constituem a mesma realidade da autocausalidade da substância.

A Doutrina da Essência conclui com a categoria da interação. A relação de substancialidade e a relação de causalidade desaparecem e dão lugar à interação. Segundo Hegel, “inicialmente, a interação apresenta-se como uma causalidade recíproca de substâncias pressupostas que se condicionam, cada uma é, frente à outra, substância ativa e passiva ao mesmo tempo” (238). Entre as diversas substâncias estabelece-se uma interação que consiste na causalidade recíproca entre uma e outra; numa multiplicidade indeterminada de substâncias em causalidade recíproca; cada substância singular é causada pela totalidade de substâncias; cada substância individual causa a totalidade substancial. Esta multilateralidade interacional e interconectividade universal produz uma força de interação no interior da qual as múltiplas substâncias estão mergulhadas como um complexo sistema relacional. A imagem adequada para expressar este sistema é a rede, na qual cada nó representa uma substância e os fios indicam as múltiplas conexões com e entre as substâncias. Aliás, as substâncias desaparecem como autônomas e se transformam em configurações de relações por onde converge e atravessa todo o movimento interacional da totalidade do sistema. Hegel subverte a tradição ao proporcionar dinamicidade e densidade substancial às relações e transformar em fenômeno as “coisas” individuais. Para Hegel, “a necessidade é o ser porque ele é, – a unidade do ser consigo mesmo, o qual tem por si o fundamento; mas, inversamente, porque ela tem um fundamento, não é ser, é pura e simplesmente aparência, relação ou mediação” (239). As múltiplas substâncias não têm o fundamento nelas mesmas e são exteriormente relacionadas entre si, mas a relacionalidade e interrelacionalidade universal é a substância no interior da qual tudo é mediatizado com tudo. Agora, as substâncias se transformam em elos de relação e em aparências, pois são formas diferenciadas de aparecimento do mesmo sistema universal que se diferencia internamente em várias formas de densificação relacional.

Não pode ser esquecida a passagem da Doutrina da Essência para a Doutrina do Conceito. Na última parte do texto sobre a interação Hegel dá importantes pistas sobre esta passagem, caracterizada especialmente pela passagem da causalidade e da necessidade na lógica da liberdade, da autodeterminação e da intersubjetividade. Hegel mesmo aponta que o mais difícil caminho é o da passagem na necessidade na liberdade, da causalidade na autodeterminação, da substancialidade no conceito. Neste caminho dialético, a relação de substancialidade é suprassumida na universalidade do conceito, na inteligibilidade conceitual que permanece idêntica consigo mesma na multiplicidade. A relação de causalidade é suprassumida pela particularidade do conceito enquanto autodesenvolvimento e autodeterminação imanente que forma a totalidade do conceito. Nesta exposição, a universalidade é inseparável da diferenciação imanente, pois, pelo caminho inverso, a universalidade ficaria suspensa num plano transcendente e reduzida a uma mera particularidade formal e vazia. A interação é suprassumida na singularidade do conceito como um círculo que reconduz a estrutura da racionalidade dialética da particularidade para a universalidade, na condição da universalidade concreta.

A Doutrina da Essência vai muito além da sua estrutura interna sinteticamente reconstruída acima. Ela contém dentro de si uma crítica profunda e demolidora dos dualismos metafísicos tradicionais e uma crítica ao pensamento moderno, especialmente de Kant e de Espinosa. Hegel mostra que o pensamento filosófico não é constituído por monumentos fixos e determinados neles mesmos, mas todas as formas de pensamento filosófico constituem aparências de um movimento universal. Além de estabelecer a passagem dialética para a Lógica do Conceito, a Doutrina da Essência vai muito além dela, estendendo as suas luzes para as contemporâneas Teorias da Complexidade e dos Sistemas. A compreensão do mundo atual, da natureza, da sociedade e do Universo como um complexo sistema relacional, como um sistema de sistemas complexos interrelacionados, tem a sua matriz fundamental na Doutrina da Essência hegeliana. É o marco referencial da Lógica, da Epistemologia e da Ontologia de uma época, acrescido do movimento dialético e processual de constituição destes sistemas. A Doutrina da Essência pode ser considerada como a mediação fundamental entre o modelo clássico, metafísico e dogmático de pensamento e o modelo contemporâneo relativista e pragmatista de pensamento. Isto se sustenta porque Hegel constrói um sistema dinâmico dialeticamente articulado, com momentos estruturantes neste processo de construção.

 João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor titular de Filosofia no Instituto Superior de Filosofia Berthier. E-mail: [email protected].

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