Religião, poder, civilização e etnia na cidade colonial / Urbana / 2006

Durante muito tempo, a cidade colonial foi vista pela historiografia como espaço da desordem, do desleixo e da anomia. Para muitos também a cidade era uma exceção no espaço da América portuguesa, eminentemente rural, ou dominada pela natureza selvagem do continente. A partir da década de 1980, todo um debate se constituiu em torno da ordem ou desordem dos núcleos urbanos portugueses na América, com a contribuição de historiadores, geógrafos, arquitetos, antropólogos etc. Trabalhos importantes demonstraram como estas imagens, carregadas de preconceitos em alguns casos, não podiam ser estendidas a todas as cidades portuguesas de ultramar, sobretudo a partir do século XVIII, com o governo pombalino. A reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755, a construção de novas cidades planejadas no reino, como Vila Nova de Santo Antônio, ou no Brasil, como na Amazônia ou no Mato Grosso, por exemplo, demonstram como normas de construção ordenadas e preocupações com simetria, higiene, localização dos sítios urbanos não eram desconhecidas nem desprezadas pelos lusitanos.

Como o objetivo da Revista Urbana é tematizar a cidade nos diversos campos do conhecimento, sobretudo na História, escolhemos justamente a cidade colonial como tema de nosso primeiro número. Com o dossiê Religião, civilidade e etnia na cidade colonial, mais do que limitar a temática das contribuições, pretendemos justamente demonstrar a multiplicidade das pesquisas atuais com relação a esta cidade, que refletem exatamente a multiplicidade de registros e experiências presentes numa cidade construída em contexto colonial, na qual conviviam diversas etnias, com diferentes formas de vida e civilização, estatutos jurídicos e sociais próprios, homens livres e escravos, além dos libertos, uma administração dividida entre poderes laicos e religiosos, que por vezes trabalham juntos, por outras passam por importantes conflitos. Sem esquecer de que estas cidades são, muitas vezes, instrumentos de conquista nas quais determinados povos e homens deveriam ser dominados e inseridos na cultura da Metrópole mas também das elites locais que efetivamente administravam-nas. Nesse sentido, tanto a religião como a civilidade, tão importante sobretudo para os administradores ilustrados do século XVIII, são entendidas aqui como instrumentos de enquadramento e controle destas populações de índios, africanos, mestiços e livres pobres.

Nestas cidades, a aparente desordem, que tanto chamou a atenção quer dos governadores portugueses, quer dos viajantes ou da historiografia, indica a presença destas formas de dominação e controle e, também, das resistências a elas. Portanto, com este dossiê, pretendemos ir um pouco além do debate ordem / desordem, buscando estas formas de ordenamento jurídico, social, espacial etc., que não têm relação ainda com uma racionalidade urbanística criada apenas no século XIX.


TORRÃO FILHO, Amilcar. Apresentação. Urbana. Campinas, v.1, n.1, 2006. Acessar publicação original [DR]

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