Arméniens: le temps de la délivrance – MINASSIAN (RH-USP)

MINASSIAN, Gaïdz. Arméniens: le temps de la délivrance. Paris: CNRS Éditions, 2015. 500 pp. Resenha de: BOGOSSIAN-PORTO, Pedro. Para além do genocídio: novas luzes sobre a Questão Armênia. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Arméniens: le temps de la délivrance, de Gaïdz Minassian, é uma obra de fôlego sobre a história e a memória dos armênios, na qual o autor propõe-se a analisar, ao longo dos quase três mil anos de existência desse grupo étnico, suas diferentes configurações políticas e sociais. Seu objetivo é destrinçar o conhecimento científico produzido a respeito da “questão armênia” e, assim, abrir espaço para novas perspectivas históricas (p. 32). O genocídio dos armênios, realizado pelo Império Otomano ao longo da Primeira Guerra Mundial, e o reconhecimento internacional desses massacres como “genocídio” são componentes centrais daquilo que o autor define como a “questão armênia”, mas seu estudo não se restringe a esses dois elementos: outras questões atualmente relevantes para os armênios, incluindo a própria existência da Armênia enquanto um Estado independente, são igualmente objeto de reflexão.

A partir da premissa de que as narrativas a respeito dos armênios são marcadas pela primazia da memória coletiva sobre o conhecimento histórico, Minassian divide o seu trabalho em quatro partes: a primeira, em que se analisa a relação entre história e memória, tem como foco as formas de dominação a que os armênios estiveram submetidos através do tempo; a segunda se volta à superação de uma lógica exclusiva da memória; a terceira introduz uma reflexão sobre as potencialidades da memória; por fim, a quarta se propõe a desbloquear a relação história-memória. Cada uma dessas partes se subdivide em três capítulos extremamente densos e marcados pela descrição, em grande profundidade, dos processos históricos e das conjunturas em que eles se desenvolveram.

O primeiro capítulo, intitulado La domination internationale (p. 43-125), é o mais longo de todo o texto e se compõe de três seções. Nesse capítulo, o autor remonta às primeiras formas de organização política da população armênia para refletir sobre o tratamento que lhe foi conferido pelas potências internacionais e pelos grupos vizinhos. Dividida em dois momentos, a primeira seção do capítulo trata dos períodos em que os armênios constituíram Estados independentes e dos períodos de submissão a poderes estrangeiros. Segue-se uma discussão acerca da “questão armênia”, de finais do século XIX até os dias de hoje, com reflexão a respeito da forma como as potências estrangeiras e os Estados vizinhos têm se portado em relação à existência de um Estado armênio. A terceira seção do capítulo se volta aos movimentos de criação de uma estrutura política independente, descritos pelo autor como “haitadismo” (termo originado a partir do radical hai, que significa “armênio” na língua armênia).

No segundo capítulo, La domination politique-religieuse (p. 127-176), faz-se um novo recuo histórico para analisar as estruturas políticas e religiosas nas quais os armênios se organizaram através dos séculos. O capítulo é novamente dividido em três seções, cada uma delas dedicada a uma instituição social: o sistema dinástico, a Igreja e os partidos políticos. Embora não haja uma nítida análise cronológica, é possível associar essas instituições a determinados períodos históricos – respectivamente a Idade Média, o período de dominação otomana e uma espécie de século XX estendido (dos anos 1880 até hoje). De acordo com o autor, a célula dessas formas de organização seria a família patriarcal (p. 129), que lhes serviria não apenas de unidade constituinte mas também de modelo de organização: dinastias, Igreja e partidos se estruturariam, assim, nos moldes da estrutura familiar.

A terceira forma de dominação é a socioeconômica, objeto da análise do capítulo 3 (p. 177-209). O principal argumento dessa parte do texto é que a longa experiência de dominação estrangeira condicionou o pensamento dos armênios e os colocou sob forte dependência econômica e social (p. 177). Essa situação teria dois importantes desdobramentos: em primeiro lugar, impediu o avanço de um pensamento individualista e reforçou, pelo contrário, as demandas coletivas (p. 188); em segundo lugar, teria dado origem a uma sociedade profundamente violenta, que perceberia no enfrentamento direto o principal meio de resistência à dominação estrangeira (p. 193). Os massacres realizados pelo sultão Abdul Hamid II, o genocídio e as perseguições dos períodos stalinista e pós-stalinista seriam alguns dos exemplos da violência de massa à qual a sociedade estaria submetida e à qual ela teria respondido de modo igualmente violento.

Dedicado ao movimento revolucionário, entre 1878 e 1914, o capítulo 4 (p. 215-250) tem como principal objeto de reflexão a fundação da Federação Revolucionária Armênia – Dashnaktsutiun (FRA / Dashnaktsutiun) e as ações empreendidas por esse partido durante a passagem do século XIX para o século XX. Na realidade, o foco recai quase que exclusivamente sobre a figura de Christapor Mikaelian, descrito pelo autor não apenas como um “fundador do partido” ou como “profeta da revolução”, mas como a própria encarnação da autoridade entre os armênios (p. 216). Outras organizações ou personagens atuantes no período são relegadas a um segundo plano na análise, que apresenta o “grande homem” Christapor como o sujeito de todas as importantes ações e decisões. É tamanho o protagonismo dessa personagem que o autor cunha um termo para definir todo o período, christaporismo, e dedica à sua análise uma parte significativa do capítulo, a seção Christaporisme, le politique incarné (p. 217-242).

O capítulo 5 (p. 251-271), o segundo da parte II, volta-se à chamada 2a República da Armênia, período em que o país esteve sob dominação soviética (1920-1991). A partir do pressuposto de que foi pela cultura que os armênios assumiram o controle de sua história entre os anos 1920 e a queda do muro de Berlim (p. 251), desenvolve-se aqui uma investigação sobre as manifestações artísticas dessa população, enfocando não apenas a produção oriunda da República Soviética da Armênia, mas também incorporando aquela realizada nas comunidades da diáspora. Toda essa produção é observada à luz da sua contribuição para a preservação de um sentimento de armenidade e do fortalecimento da ideia de uma nação armênia – em acordo com o propósito do livro de analisar os armênios enquanto grupo étnico, não necessariamente vinculado a uma instituição política ou a um Estado nacional. A atuação estritamente política dos armênios, tanto dentro da URSS quanto na diáspora, ocupa aqui uma posição secundária, sendo-lhes dedicadas apenas as cinco páginas finais do capítulo.

Instituída a partir da crise da União Soviética, é objeto de investigação do capítulo 6 a 3a República da Armênia, mais precisamente o primeiro decênio desse período, de 1988 a 1998. Ao observar o renascimento político e o deslocamento do eixo econômico da Armênia ao longo da década de 1990, o autor pretende aqui avaliar a relevância de dois processos distintos, embora conectados: por um lado o declínio e o desmembramento da União Soviética e, por outro, a transferência do território do Alto Karabakh para a República da Armênia. O argumento do autor é que as decisões tomadas nesse período pautariam todo o posicionamento político posterior da Armênia e, para sustentar sua posição, ele apresenta a discussão a respeito do “inimigo a ser enfrentado” pelo Movimento do Karabakh (p. 277-8), se o governo central em Moscou ou se o governo da República do Azerbaijão, em Baku. Vinculado administrativamente à República do Azerbaijão, a região do Alto Karabakh era habitada por uma maioria armênia pelo menos desde os anos 1920 e, por isso, o Movimento Karabakh reivindicava a sua transferência para a República Socialista Soviética da Armênia. A opção pelo enfrentamento ao governo azerbaijanês, tomada pelos líderes do Movimento, produziu um alinhamento a Moscou que até hoje persiste e que pauta grande parte das decisões do governo armênio atualmente, o que implica em certa dose de dependência em relação à Rússia. Outro importante desdobramento da opção pelo enfrentamento a Baku teriam sido as significativas vitórias armênias, que lhes proporcionaram uma “revanche sobre a história” (p. 290) e possibilitaram que os “traumas psicológicos se apagassem pouco a pouco do pensamento”, um aspecto que teria impacto direto sobre a memória do genocídio mantida na República da Armênia.

O capítulo 7, Fortunes et infortunes de la révolution culturelle haïtadiste, 1972-1991 (p. 307-333), volta-se ao movimento de revalorização da identidade armênia, que teria se desenvolvido nas diferentes comunidades da diáspora a partir de 1972. Originada no congresso realizado pela FRA em Viena naquele ano, essa revolução cultural teria dado origem a um “nacionalismo de diáspora” (p. 314), marcado pelo reposicionamento dos armênios na cena política internacional: o partido estabelecia então uma agenda terceiromundista, em que rechaçava o alinhamento automático a qualquer dos polos envolvidos na Guerra Fria e tentava estabelecer sua própria pauta de reivindicações. O resgate e a preservação da língua armênia voltaram a ser uma prioridade, bem como o reconhecimento do genocídio pela comunidade internacional e, mormente, pela Turquia – o que motivou os ataques aos quadros da diplomacia turca ocorridos a partir dos anos 1980.

Enquanto o capítulo 7 se concentra quase que exclusivamente na análise de processos ocorridos na diáspora, o capítulo 8, L’État mémoriel arménien, de 1998 à nos jours (p. 335-350), é dedicado a temáticas mais estritamente relacionadas à República da Armênia, embora não perca de vista as relações entre o Estado e a diáspora. O autor aborda aqui o papel desempenhado pela memória na construção da ideia de “nação armênia”, dividindo a temática, porém, em duas dimensões opostas: no primeiro momento, destaca-se a centralidade da memória na construção de uma identidade coletiva, na qual a tradição, a religião e o genocídio exercem uma função primordial (p. 336) – o que explica a denominação de État mémoriel no título do capítulo; no segundo momento, por outro lado, destaca-se a impossibilidade do trabalho de memória, uma vez que são recalcadas páginas importantes do passado armênio, tais como os crimes do período stalinista ou a atividade dos grupos terroristas armênios. A argumentação do capítulo evolui no sentido de demonstrar que a memória é evocada ou silenciada de acordo com os interesses dos grupos que controlam o governo, o que fica claro, por exemplo, nos movimentos de aproximação e de afastamento em relação à diáspora, à Rússia e à Europa.

A utilização da memória para fins políticos é também o objeto de análise do capítulo 9 (p. 351-373), que se volta ao negacionismo turco em relação ao genocídio dos armênios. Seu objetivo é compreender as causas e os mecanismos empregados pela historiografia definida como “historiografia de Estado” turca, para preservar certa narrativa a respeito de seu passado. Novamente, o autor aborda dois posicionamentos opostos sobre a questão: primeiramente o discurso negacionista, desde aquele produzido pela administração otomana durante a Primeira Guerra até as análises realizadas atualmente nos meios acadêmicos; em seguida, os estudos que, desenvolvidos por autores de origem turca ou com ampla utilização de arquivos locais, rompem a barreira de discurso monológico instituído pelo governo turco. Apoiado em obras recentes, o autor aproveita para discutir aqui teses tradicionais como a compreensão de que o período republicano representaria uma ruptura profunda com o período imperial na Turquia: para Minassian, o governo instituído por Mustafa Kemal herdou do período anterior não apenas a estrutura política e econômica, mas também o discurso em relação ao genocídio (p. 269).

A quarta parte do livro se inicia com um capítulo intitulado Democratiser l’identité (p. 381-403), cujo foco recai sobre as relações entre a República e a diáspora, por um lado, e entre o Estado e a sociedade, por outro. Embora tenha como objeto de investigação a identidade coletiva armênia, o capítulo é marcado pela percepção de uma desconfiança da população em relação às instâncias de participação coletiva: desconfiança em relação à integração com a diáspora (p. 383), em relação ao governo (p. 385), em relação aos partidos políticos e especialmente em relação à FRA (p. 386-7), em relação ao apoio russo (p. 389)… Na segunda seção do capítulo, o autor apresenta o que parece ser o seu receituário para o Estado armênio sair da crise de legitimidade em que se encontra e entrar no que seria o “mundo das democracias modernas”: romper com a suserania russa (p. 395), libertar-se do trauma do genocídio (p. 397), promover uma real conquista do Estado pela população (p. 398) e racionalizá-lo (p. 399), realizar uma reforma política que leve à adoção do bicameralismo (p. 400) e integrar a diáspora no sistema decisório (p. 401). A análise se volta a diferentes temáticas, mas, embora algumas das propostas apresentadas possam de fato trazer benefícios para o país, a argumentação em defesa delas muitas vezes carece de fundamentação e parece desconsiderar aspectos importantes da realidade local.

O capítulo 11, Trouver les voies et les voix du dialogue avec les Turcs (p. 405-446), propõe uma reflexão sobre a necessidade de se restabelecer as relações diplomáticas entre a Armênia e a Turquia, bem como os recursos disponíveis para isso. Seu principal argumento é que, ainda que o governo turco possa ser refratário a essa aproximação e à discussão da questão do genocídio, é não apenas possível, mas também necessário estabelecer um diálogo direto com a sociedade daquele país, que frequentemente não teria acesso a uma informação completa e/ou precisa. Estabelecida como temática a normalização das relações diplomáticas, torna-se imprescindível observar os protocolos armeno-turcos, assinados em 2009 precisamente com essa finalidade: identificar os agentes envolvidos, as motivações de cada um e as razões para o fracasso das negociações tornam-se objetivos centrais para a reflexão desenvolvida ao longo do capítulo.

Já abordada no primeiro capítulo do livro, a atuação das potências internacionais em relação aos armênios é trazida novamente à discussão no capítulo 12 (p. 447-494), L’engagement de la communauté internationalle et scientifique, em que se demonstra como as grandes forças da cena mundial têm utilizado a “questão armênia” para atingir seus próprios objetivos. A primeira seção do capítulo trata desses diferentes usos da questão armênia e de como ela vem sendo empregada para legitimar determinadas políticas – os exemplos são abundantes. O Genocídio, por exemplo, não é reconhecido por Estados que prontamente se apresentam como defensores da paz e dos direitos humanos, como Estados Unidos e Inglaterra (p. 449). A Rússia, supostamente comprometida com a paz na região do Nagorno Karabakh, não se furta a fornecer armas para os dois países beligerantes e mantê-los, assim, sob a sua tutela (p. 454). A União Europeia busca atrair a República Armênia para a sua zona de influência desde que isso signifique o enfraquecimento russo (p. 462), e não movida por uma preocupação com o desenvolvimento econômico e social na região.

A segunda seção do capítulo se volta à aplicabilidade do conceito de genocídio ao caso armênio e ao debate em torno das leis sobre o negacionismo na França: a discussão é intensa e envolve políticos, intelectuais e formadores de opinião, que oscilam entre legitimar uma “restrição à liberdade de expressão” e tolerar a “negação de eventos históricos”. Esse debate traz à luz uma reflexão sobre o papel do historiador como detentor da “verdade” e sobre a legitimidade de o Estado definir os discursos históricos legalmente aceitos: negar o genocídio dos armênios não seria, assim, diferente de negar o holocausto ou a escravidão (p. 472).

O principal mérito de Arméniens: le temps de la délivrance é introduzir, no campo de estudos sobre a Armênia e sobre os armênios, questões que fogem à temática do genocídio sem, contudo, negligenciar esse tema. Trata-se de um movimento de suma importância, uma vez que grande parte das pesquisas relacionadas aos armênios adota como enfoque exclusivo os acontecimentos ocorridos durante a Primeira Guerra Mundial – proporção ainda mais representativa no caso dos estudos realizados por pesquisadores originários das comunidades armênias da diáspora.

O interesse que essas comunidades têm no tema é facilmente explicado se considerarmos que são elas que abrigam a maior parte dos descendentes das vítimas das perseguições, que formaram, em seu exílio, o embrião das comunidades que existem atualmente. Contudo, observar a história dos armênios unicamente sob a ótica dos sobreviventes do genocídio traz o risco de empobrecer a reflexão sobre o assunto, visto que os estudos passam a girar quase que exclusivamente em torno de um mesmo ponto. Nesse sentido, a ampliação do foco das pesquisas proposta por Gaïdz Minassian é muito bem-vinda, pois possibilita romper com um discurso monotônico e diversificar os tópicos relacionados à “questão armênia”, conferindo-lhe, assim, maior complexidade.

Todavia, para um estudo dessa magnitude e que se propõe a tão importante deslocamento do eixo das análises, o livro, ainda que relacione uma vasta bibliografia, apresenta muito poucas referências a fontes primárias que possam dar sustentação aos seus argumentos. Afirmações relativas a assuntos sobre os quais não há consenso poderiam ser mais desenvolvidas e melhor fundamentadas. Esse é o caso, por exemplo, da menção à quantidade de armênios executados durante o Genocídio, apresentado pelo autor como sendo 1,5 milhão (p. 44): mesmo entre os pesquisadores que concordam com o conceito de genocídio para definir o caso armênio, há grande discordância sobre os números, que variam entre 800 a 1,5 milhão, em função do estudo e da metodologia aplicada. Não informar o leitor a respeito de tal divergência numérica em relação a uma questão elementar para o estudo dessa temática traz o risco de fragilizar a argumentação e de colocar em xeque toda a obra, que poderia então ser classificada mais como uma obra de divulgação do que um texto com rigor científico.

As afirmações pontuais que não apresentam fontes que lhes sustentem, a despeito de tratarem de temas relevantes, são diversas – poder-se-ia destacar a alusão a “le rêve de libération de l’Arménie occidentale sous l’administration de la Turquie” (p. 61) surgido na Armênia soviética nos anos 1950 ou a declaração de que “contrairement à ce que rapporte la légende, les premiers à s’être prononcés pour le maintien du haut-Karabakh à l’Azerbaïdjan ne sont pas les Bolcheviques, mais les Britanniques” (p. 77), entre outros. Mais problemático do que essas afirmações, porém, parece ser o texto cair muitas vezes na armadilha daquilo que ele pretende combater, a saber: observar a “questão armênia” a partir de uma lógica da memória, reificando narrativas espacial e temporalmente localizadas e que não necessariamente correspondem aos processos históricos. Nesse sentido, o autor frequentemente assume uma perspectiva recorrente nas comunidades da diáspora e que não observa os movimentos internos à República da Armênia, de 1918 até hoje, em todas as suas especificidades.

A implicação de se observar a República da Armênia sob a ótica da diáspora é avaliar os posicionamentos adotados pelo Estado a partir de parâmetros que lhe são estranhos ou que desconsideram as dinâmicas locais e regionais. Quando o autor afirma, por exemplo, “les Arméniens ont collectivement le sens de la politique, mais pas le sens du politique” (p. 128), ele avalia e classifica essa coletividade a partir de uma lógica que deslegitima toda a experiência social na Armênia como dotada de um “senso do político”. O mesmo ocorre quando, ao tratar da aproximação com a Europa, ele afirma “l’Arménie doit s’appuyer sur ce socle démocratique [européenpour assurer son avenir, la paix régionale et son développement économique (…) Mais Erevan a opté, sous la pression de Moscou, pour l’union douanière du projet poutinien d’Union eurasienne avec la Russie” (p. 338-9), sem contudo avaliar os fatores estratégicos que conduzem a Armênia a se aproximar da Federação Russa em detrimento da Europa. O Estado armênio é retratado, assim, como movido por certa ingenuidade ou como uma estrutura inábil na realização de cálculos políticos.

Esse posicionamento do texto, no entanto, não abala a qualidade da obra, que continua sendo um trabalho extremamente original, articulado a uma bibliografia atualizada e que aborda com grande profundidade diferentes questões. Trata-se de um livro indispensável a qualquer estudo que se proponha a refletir hoje sobre a temática armênia, em qualquer de suas dimensões.

Referências

MINASSIAN, Gaïdz. Arméniens: le temps de la délivrance. Paris: CNRS Éditions, 2015. 500 p. [ Links ]

1Resenha do livro: MINASSIAN, GaïdzArméniens: le temps de la délivrance. Paris: CNRS Éditions, 2015. 500 p.

Pedro Bogossian-Porto – Doutorando em Antropologia na Université Paris 7 – Paris Diderot (UP7) e bolsista do Programa de Doutorado Pleno da CAPES (Processo nº 99999.001062/2015-08). Com interesse na memória e na identidade nacional armênia, o pesquisador possui mestrado em Antropologia e bacharelado em História, ambos pela Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, RJ, e é membro associado do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (Neom/UFF) e da Unité de Recherche Migration et Société (Urmis/UP7). E-mail: [email protected].

BRUN, E. Les situationnistes (RH-USP)

BRUN, Eric. Les situationnistes. Une avant-garde totale. Paris: CNRS Éditions, 2014. 454p. Resenha de: RODRIGUES, Lidiane Soares. Desinteresse interessado. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo  2017.

Em 30 de novembro de 1994, Guy Debord suicidou-se em sua casa com um só tiro no peito. Ele tinha 63 anos e uma doença incurável oriunda do consumo de álcool. Àquela altura, o animador da Internacional Situacionista (IS) amargava sua notoriedade, adquirida contra os princípios que orientaram sua produção artística e teórica.

A IS foi fundada em 1957 e autodissolvida em 1972. Inicialmente, reunia alguns pequenos grupos: a) a Internacional Letrista (IL, fundada em 1952), cujos representantes eram Guy Debord e Michèle Bernstein, sua primeira esposa; b) o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista(MIBI, fundado em 1953), cujos representantes eram AsgerJorn, Piero Simondo, Pinnot-Gallizio, Walter Olmo e Elena Verrone; c) a Associação Psicogeográficade Londres, fundada também em 1957, logo integrada à IS por seu único representante, Ralph Rummey. Em linhas gerais, os situacionistas entendiam que a divisão social do trabalho, a especialização das atividades que dela resulta e a decorrente cisão entre profissionais e leigos seriam superadas pela revolução. A “verdadeira revolução” colocaria fim ao reino da escassez materiale instauraria a satisfação plena do homem, tornado autêntico, para o qual seria possível “caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite e fazer crítica depois da refeição (…) sem por isso se tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico”.

Modularam este adágio do jovem Marx em tom próprio, nutrindo-se de outros autores, como Johan Huizinga do Homo Ludens. Imaginavam as profissões e especializações sendo substituídas por uma nova prática: a “construção de situações”, entendida como reapropriação coletiva da história humana e de todas as esferas da vida em conjunto. Elaboraram uma crítica da “representação burguesa da felicidade” e teorizaram a “vida que vale a pena ser vivida”. Esta foi concebida com referência à “vida boêmia”, tal qual resulta do acúmulo de gerações de vanguardas artísticas desde o final do século XIX: recusar a disciplina e a rotina, desembaraçar-se das coerções da reprodução econômica, exercitar a dimensão lúdica, viver aventuras, praticar jogos e lazeres não convencionais, criar conscientemente “situações” intervindo/testando a vida cotidiana.

A jurisdição a respeito da legitimidade deste estilo de vida depurado da degradação burguesafoi construída ao longo do percurso do movimento, variando segundo suas fases. Por um lado, elas são marcadas pela colaboração e concorrência com os representantes de diversas fontes: literárias (especialmente poética);artísticas (pintura,cinema, arquitetura e urbanismo); filosóficas (Feuerbach, Hegel, Marx – por meio de Henri Lefebvre);e político-revolucionárias (reivindicavam, particularmente, a Comuna de Paris e o comunismo de conselhos,1 discutiram muito com Argumentos, e Socialismo ou Barbárie). Se hoje obras situacionistas são evocadas em áreas as mais diversas (das artes plásticas à teoria da revolução), isso se deve a esta diversidade de interesses. Por outro lado, estas fases se caracterizam também por modificações substantivas na morfologia do grupo ede seu público. O crescimento deste último- resultante não prevista tanto de sua movimentação, indo das artes à teoria revolucionária, quanto de sua eleição a profetas em maio de 1968 – conduz o grupo à aporia final impeditiva da manutenção da lógica de integração construída na base do “quem perde ganha”.Eis o objeto do livro de Eric Brun – Les situationnistes. Une avant-garde totale –cuja apresentação é feita a seguir.

“Quem perde ganha” era o princípio gerador das práticas, das criações estéticas e teóricas do grupo, e seu líder carismático, elo entre a IL e a IS, Guy Debord, fez-se fazendo-o.

Segundo Brun,o problema que dá origem ao “quem perde ganha”, isto é, ao desinteresse interessado em ser reconhecido como desinteressado,responde à dificuldade de ser uma vanguarda autêntica nos anos 1950.Tal experimento precisava ser capaz de se proteger tanto da rotinização “pela vida burguesa vulgar e danificada” quanto da consagração que atingiram vanguardas anteriores. Eis uma das fontes da intransigência ética e do forjamento de um estilo de vida que tinha por princípio a austera recusa do sucesso. A rejeição do êxito torna-se o fiador da legitimidade do pertencimento à grade de valores do grupo. Daí, o decreto permanentedos limites“revolucionários” dos outros, animando a busca pela “ultrapassagem” politicamente radical, articulado ao comportamento contra a cultura vigente e ao risco de consagração, tornar-separa os integrantes o regramento máximo a partir da qual se julgam reciprocamente. E, obviamente, controlam-se reciprocamente. Trata-se de uma lógica do desinteresse pelo mundo -que os torna tanto mais interessados uns aos outros quanto mais a satisfação de suas demandas simbólicas depende desta libido socializada -fundada na honra de ser desprezado pelos que não pertencem ao grupo (a sociedade burguesa). Já para os aspirantes a “situs”, aquela régua de radicalismo torna-se uma barreira a atravessar, posto que delimitasse o direito de ingresso no coletivo em que fracassar é ser bem-sucedido (p. 103). Os interessados em ser situs deviam dar provas de seu desinteressenas glórias mundanas, afiançar o gosto não pela arte como parte da vida, mas de exercer “a vida como arte”; e, sobretudo, entrar no jogo paroxístico das negações bem orquestradas – “a poesia só sobreviverá por meio de sua destruição” (p. 149). Por fim, parao líder, o “quem ganha perde” como princípio gerador da prática foi fonte de acumulação e monopolização do carisma, malgrélui-même. É que a dinâmica de ultrapassagem que move a integração e a desintegração dos minúsculos grupos militantes os ultrapassa.

É este modus operandi do militantismo de pequenos grupos que a pesquisa infatigável de Eric Brun disseca ao esquadrinhar o labirinto da negação do status quoe da acumulação de “capital de radicalismo”, ao recuperar a leitura da sociologia da religião de Max Weber proposta por Pierre Bourdieu.2 Nada de se satisfazer, portanto, com o paralelismo fácil das posições do campo religioso no campo da cultura, tão ao gosto de um direitismo ideológico pouco diligente e zombeteiro. O “carisma (do profeta) não explica, [mas é ele que]precisa ser explicado” (p. 10).

A inteligibilidade do percurso que conduz o grupo das artes à políticapressupôs a reconstituição diacrônica e sincrônica da eleição de aliados/ adversários, assim como dos lances de cumplicidade e concorrência dela oriundos. A matéria diacrônica é o eixo da primeira parte do livro – em que o autor procura deslindar “[a]s coordenadas do posicionamento situacionista” – composta por quatro capítulos, a saber: “O envelhecimento social do surrealismo”; “Um novo pretendente à vanguarda: o letrismo”; “A internacional letrista à margem do campo literário”; “Guy Debord ‘na e para além’ da boemia”. O “espaço de posicionamento” se constitui do conjunto de aliados/ adversários a que os agentes se reportam – isto é, com os quais se importam. Esta eleição, por sua vez, resulta de esquemas de classificação do mundo socialmente fabricados pela trajetória social dos produtores e pela história dos campos nos quais suas aspirações são investidas. Então, ao invés de partir de uma definição fixa e normativa de vanguarda, Brun recupera os conflitos para defini-la em perspectiva relacional e histórica.Ao adotar essa abordagem, ele pôde surpreender no programa dos situs o empenho em se diferenciar dos antecessores eleitos.Omovimento apresenta-se como uma vanguarda artística pela filiação reivindicada (futurismo, dadaísmo, surrealismo), pelos princípios de valorização que mobiliza e pelos instrumentos de manifestação pública que emprega. A busca por proteger-se da degradação/consagração orienta tanto o ideal da “beleza como situação” quanto a conversão do grupo em agente que se dirigirá às disputas do subcampo político dos teóricos revolucionários. Tal reorientação consiste na aposta para superar a armadilha da consagração/degradação a que os outros sucumbiram em sua posteridade.

Há muitos exemplos dessa dinâmica, destaquem-sedois. Por exemplo, a reação do jovem Debord face ao balanço do surrealismo proposto por Maurice Nadeau -antigo militante comunista, depois trotskista e frequentador de André Breton. Ele indica o padrão de exigências a que se submeteram os situs:“[a superação do surrealismo se localiza no futuro] e provavelmente em outro plano que o da arte”, afinal, este movimento “antiliterário, antipoético, antiartístico só conseguiu criar uma nova literatura, uma nova poesia (…)”, inferior ao que havia prometido (p. 147). Daí, face ao diagnóstico do desgaste das experimentações formais em poesia, imaginarem a proposição das “situações” como “ação direta na vida cotidiana”, posto que provisórias, vividas verdadeiramente e conscientemente construídas (em oposição ao espontaneísmo surrealista). É pela elaboração de uma “retórica da negação” que Debord vai construindo “uma lógica de ultrapassagem incessante” do que for a convenção artística, e posteriormente teórica e política em vigência. Um segundo exemplo: sendo simpático à recusa de prêmios, seja Nobel seja Goncourt, isso não era suficiente. Uma vanguarda autêntica não deveria merecê-lo.

O mesmo impulso da diferenciação e ultrapassagem, surpreendido na relação diacrônica com os antecessores, orienta o grupo em direção à política. O marxismo das esquerdas revolucionárias externas e adversárias do Partido Comunista Francêsé central, obviamente. Em afinidade com os situs, o jogo eleitoral(mundano do PCF) não é, para elas, “jogo verdadeiro”. Por isso,a “teoria revolucionária”converte-seem centro de sua disputa – num típico movimento de “rechaço ao mundo” – sendo mesmo a base tanto de sua integração (contra o PCF) e de sua cissiparidade em grupúsculos (processo que leva à bolsa de “valores do radicalismo”).3 Como ocorre com frequência, este marxismo depurado da vida política real é a forma por excelência que assume a tomada de posição radical entre produtores simbólicos, conformando o estoque de anti-herois legítimos e de leituras “perigosas” exigidas assim como o banco de citações rotinizadas nesse universo – cujo uso eficaz depende do habitus militante, apto a acioná-los no momento exato e de modo correto.

Assim, se da IL (1952) à IS (1956) e durante os primeiros anos desta “o espaço de posicionamento” se delineia por controvérsias em torno do título de vanguarda cultural – e sua rede internacional se compõe de pintores, críticos de arte e intermediários de galerias de vanguarda -, a partir de 1959, sempre por iniciativa de Debord, é o espaço das revistas intelectuais radicais que passa a interessar a IS. Eric Brun acompanha, por meio da correspondência privada,4 a atenção de Debord voltada à controvérsia entre Arguments e Socialisme ou Barbarie (SouB), a respeito do comportamento da classe operária – sempre menos revolucionária do que gostariam os intelectuais – assim como as suas reações e a inserção da IS neste debate. Orienta-o, é evidente, a lógica da ultrapassagem e o típico procedimento de reenviar o adversário à posição inferior, parcial e insuficientemente revolucionária. Assim, comas duas revistasposiciona-se de acordo com o diagnóstico da apatia da classe operária e,contraArguments,nega a negativa do potencial revolucionário do proletariado;discorda da proposta dos então fundadores da sociologia do trabalho (Touraine, Collinet e Crozier, que assinam a intervenção) defendendo a integração da classe operária no sistema capitalista por meio de sua participação na gestão das empresas.Inicialmente cifradas no que tange à teoria, as críticas a Arguments são explícitas e impiedosas quando esta tratar de arte. O princípio dos situsé acotovelar estabelecidos para entrar no jogo e, uma vez nele, esbofetear quando o assunto for de seu domínio. Na lógica desse espaço, a rivalidade com Arguments favorece tanto a patronagem do então renovador do marxismo francês (modo eufemizado de dizer, “divulgador de Marx a serviço da crítica do PCF”), ou seja, Henri Lefebvre, quanto a aproximação com SouB.Trata-se do ponto alto da análise: a lógica argumentativa e o princípio de criação artística (ultrapassagem/quem ganha perde) dos situs/Debord correspondem à lógica de agrupamento/ruptura e cumplicidade/concorrência,em alta rotatividade e ritmo acelerado. Assim, a aliança com Lefebvre dura um biênio, com SouB, um triênio.

Se é impossível reproduzi-la neste texto, é incontornável assinalar o êxito da poderosa chave explicativa para a cisão entre SouB e IS, e para autodissolução desta última. Trata-se de um problema que ronda o subcampo político em questão e está na origem da ginástica classificatória e da multiplicação de seus labels, fazendo da ultraesquerda um caldo de sopa de letrinhas denominando as organizações múltiplas. Ora, a afinidade de disposições, de palavras de ordem, o mesmo sistema de oposições aos vícios mundanos do PCF etc. ameaçam os pequenos grupos de indiferenciação. Como não podem se confundir com a “direita” da esquerda, diferenciar-se dela é regra. Daí as rupturas públicas, amplificando diferenças criadas a partir de divergências mínimas.

A análise da autodissolução após a consagração e o aumento de efetivos pró-situs decorrentes de maio de 1968 é uma lição de como empatia ao objeto pode trabalhar a serviço da objetivação dele.Brun constata que a lógica da ultrapassagem também entraria aí em operação: Debord desqualifica seus adeptos, rechaça a moda situ, a adesão sem análise da inteligência e sentencia: “só se não precisarmos do grupo temos direito a fazer parte dele”.No limite, segundo “os critérios de avaliação das qualidades pessoais pouco explícitos e objetivamente controlados por Debord”, “só poderia restar um neste grupo: o próprio Debord”. Ao cabo de uma série de eliminações e renúncias, Debord “dá livre curso à disposição aristocrática”, intensificando o desprezo por tudo e por todos a seu redor (p. 424).

Guy-Ernest Debord nasceu em 1931 em Paris, mas passou infância e adolescência nosul da França. Ele perdeu o pai precocemente, foi criado pela mãe e avó. Sua aquisição da cultura literária clássica e legítima não se deu por via familiar, mas escolar, notadamente, por manuais de feitio lansoniano. Na composição global do capital de sua família, o econômico tinha mais peso do que o cultural. Desde muito jovem fascinado pelos surrealistas e inclinado a se expressar literariamente, suas relações com a autoridade escolar vão aos poucos se constituindo de modo desviante e herético. Não há espaço para a delicada reconstituição do habitus realizada por Brun, então que seja digno de nota o seguinte achado documental. Por ocasião das provas do “baccalauréat” ele e um amigo oanunciam, como se fosse um aviso de falecimento num cartão que convidasse para o velório: “é com pesar que informamos o sucesso no bac”. O potencial heurístico de uma “biografia sociológica”5 se entrevê em tudo que Brun é capaz de extrair em termos interpretativos deste registro – que não passaria de uma brincadeira para um pesquisador incauto.

Não se mensura a inovação promovida por Eric Brun quando se desconhece o estado da discussão a respeito da trajetória de Debord e deseu grupo: até então havia publicações de universitários, mas não pesquisas universitárias. Para o primeiro, a intenção explicativa mal alcançava até a simplória transferência do esquema edipiano da vida pessoal para a vida artística: tendo perdido o pai precocemente, Debord teria de matá-lo na vida simbólica – daí a “ruptura” com André Breton. Quanto ao grupo, a discussão não era muito animadora. Como na bibliografia brasileira sobre grupos e intelectuais de esquerda, explicava-se o fenômeno pela quadratura do círculo, isto é, suas intenções pelo que disseram, o que disseram pelo que pensaram, o que pensaram pelo que eram suas intenções.O raciocínio só poderia redundar num cenário idêntico ao dos estudos brasileiros sobre as esquerdas e os marxismos: o número de estudos dedicados ao grupo era o mesmo de “influências” (re)conhecidas, pois o diálogo entre os especialistas reproduzia a disputa dos agentes estudados. Pudera. Em que se pese o interesse da erudição dos radicais por estas “influências”,raciocinar nestes termos consiste em se deixar dominar por disposições cognitivas forjadas na dinâmica dos debates situs – documentando novamente a experiência e renunciando à sua inteligibilidade.

A saída de Brun às leituras teleológicas e anacrônicas, às explicações tautológicas das intenções/influências não redundou no postulado do cinismo pragmático das escolhasestratégicas – pois ele sabe que esta é uma conduta, entre muitas possíveis, a rigor, a mais fácil de ser explicada. Difícil é compreender o interessesincerono desinteresse, a ação verdadeiramente orientada pelo trágico do “quem ganha perde”.Esta elegante mescla de empatia e objetivação não seria tão sagaz sem uma meditada construção do problema de pesquisa. Ora, sendo os vanguardistas críticos sagazes e opositores sistemáticos do processo de diferenciação técnica/social do trabalho, como valer-se da ciência social que não rejeita esse processo por princípio, e pretende, explicando-o, dar conta das condicionantes deste rechaço em suas modalidades estéticas, intelectuais, políticas e organizacionais?

Elaborada por Pierre Bourdieu para dar conta do processo de diferenciação e especialização das atividades sociais, a teoria dos campos e o conjunto conceitual que a acompanha (habitus, campo, capital) pareciam ser desafiados por um grupo como este e por seus homólogos, posto que recusassem precisamente esta direção do mundo moderno e, para fazê-lo, tornassem-se sujeitos multiposicionais.6 Digamos que um pesquisador descuidado fosse, entretanto, encorajado a mobilizá-la para o “caso”. Certamente, depois de pensar sem refletir, diria, satisfeito: “Eureka! Trata-se do campo das vanguardas!”.

Na avaliação de Eric Brun, este tem sido um “uso sistemático e vulgarizado” (p. 6),responsável por um inflacionamento questionável dos “campos” e estéril para os situacionistas.Impregnado pelo espírito atrevido dos situs, Brun recusou este uso, carente de imaginação analítica e de malícia teórica.Se esta vanguarda se constitui na sucessão de oposições – às artes (diacronia/surrealismo) e aos grupos intelectuais (sincronia/Arguments, SB, Henri Lefebvre) – segundo ele, a pesquisa perderia caso se contasse com o enquadramento grosseiro do “campo das vanguardas”. Por isso, ele escolheu localizá-los nas relações de “com/contra” por meio da qual se construíram.

Por tudo o que foi apresentado – e também pelo que não coube neste texto – trata-se de uma pesquisa exitosa, pelos procedimentos adotados,pela laboriosaatenção à minúcia, pela exploração documental, pela reconstituição histórica e domínio pleno da teoria dos agentes que analisa, sem deixá-la se confundir com a teoria que mobiliza na sua análise. Sobretudo no que tange à construção do problema de pesquisa, tem abrangência mais ampla.As questões de método são idênticasàs de quem se dispusesse a mobilizar a teoria dos campos para analisar a produção intelectual de marxistas, as práticas de militantismo teórico, dentre outros. Por isso, vale a pena meditar a respeito delas e, torcendo pela tradução linguística do livro de Eric Brun, trabalhar por suatradução intelectual – infinitamente mais árdua e para a qual esta resenha gostaria de contribuir.

Referências

BOLTANSKI, Luc. L’espace positionnel: multiplicité des positions institutionnelles et habitus de classe. RevueFrançaise de Sociologie, 14(1), 1973. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: MICELI, Sérgio (org. e trad.). A economia das trocas simbólicas. 5ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2003. [ Links ]

GOTTRAUX, Philippe. Socialisme ou barbarie. Un engagement politique et intellectuel dans la France de l’après-guerre. Lausanne: Éditions Payot, 1997. [ Links ]

HEILBRON, Johan. Comment penser la genèse des sciences sociales?Revue d’Histoire des Sciences Humaines, n.15, 2006/2 .Disponível em: http://www.cairn.info/ revue-histoire-des-sciences-humaines-2006-2-page-103.htm. [ Links ]

1Grosso modo, grupos políticos antistalinistas, não trotskistas, que reivindicam um comunismo conduzido direta e democraticamente pela base, constituído por “conselhos de trabalhadores”. Inspiram-se nas experiências da revolução alemã (derrotada em 1918-1919) e, por vezes, no levante húngaro anti-URSS (de 1956).

2BOURDIEU, P. Gênese e estrutura do campo religioso. In. MICELI, Sérgio (org. e trad.). A eco nomia das trocas simbólicas. 5ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2003.

3Dispensável dizer que os termos são utilizados pela precisão e não pelo tom pejorativo – que comprometeria qualquer análise desta experiência. Particularmente, “bolsa de valores do radica lismo” é uma ideia que Eric Brun explora a partir do seminal estudo de Philippe Gottraux sobre o grupo de Claude Lefort e Cornelius Castoriadis(GOTTRAUX, Philippe. Socialisme ou barbarie. Un engagement politique et intellectuel dans la France de l’après-guerre. Lausanne:Éditions Payot, 1997).

4Recentemente disponibilizada no acervo da Biblioteca Nacional da França e imprescindível para algumas conclusões do trabalho em tela.

5HEILBRON, Johan. Comment penser la genèse des sciences sociales?Revue d’Histoire des Sciences Humaines, n.15, 2006/2, p. 114.Disponível em: http://www.cairn.info/revue-histoire-des-sciences-humaines-2006-2-page-103.htm.

6BOLTANSKI, Luc. L’espace positionnel: multiplicité des positions institutionnelles et habitus de classe.Revue Française de Sociologie, 14(1), 1973.

Lidiane Soares Rodrigues – Doutora pelo Programa de Pós-graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo – FFLCH/ USP. Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: [email protected].