Contra o juízo: Deleuze e os herdeiros de Spinoza – HEUSER (ARF)

HEUSER, E. M. D. (Org.). Contra o juízo: Deleuze e os herdeiros de Spinoza. Curitiba: Appris, 2019, 207p. Resenha de: MENEGHATTI, Douglas. Aufklärung – Revista de Filosofia, João Pessoa, v.7, n.2., p.131­-136, mai./­ago., 2020.

O livro é uma coletânea de textos escritos por 17 autores, organizados pela Prof. Ester Heuser, que se apresenta como um movimento de insurreição à doutrina do juízo. Para contrapor-se ao juízo são chamados à cena os filósofos que Deleuze nominou de “herdeiros de Spinoza”: Nietzsche, D. H. Lawrence, Kafka e Artaud. Conforme sugere o subtítulo presente na Apresentação, esses “herdeiros” podem ser considerados “cavaleiros do apocalipse ao revés”, cujo empreendimento é vencer o juízo, através de uma batalha libertadora que visa restabelecer o devir criativo, contrapondo o sistema transcendente do juízo à existência. Muitos são os tremores e temores daqueles que se opõem aos ‘castigos’ oriundos dos julgamentos sacralizados pela própria história, entretanto, como contrapartida, o livro deixa bem claro que o único caminho é resistir e lutar.

A menção ao apocalipse nos remete ao último livro do Novo Testamento da Bíblia cristã, mais especificamente a um texto de João de Patmos no qual é consumada a escatologia do juízo final da doutrina de salvação da cristandade. A profecia teleológica presente no apocalipse transforma o Cristo amoroso dos evangelhos em um Cristo vingativo, onde a justiça divina se torna preponderante sobre a misericórdia, por meio de um julgamento definitivo em que prevalece o ressentimento contra o pecado e todos os deleites de uma ‘vida profana’1. Para contrapor a visão determinista do apocalipse são apresentadas contundentes reflexões dos “cavaleiros do apocalipse ao revés”, numa perspectiva que leva o leitor desde a compreensão do livro de João de Patmos até a crítica ao mesmo, com uma visão de Deleuze-Lawrence.

Lawrence chega a duvidar que o evangelho de João e o Apocalipse tenham sido escritos pela mesma pessoa. Pois no Evangelho se encontra um Cristo afável e amoroso, enquanto no Apocalipse um Cristo rancoroso e vingativo (LAWRENCE, 1990, p. 2022).

Essa dicotomia levou Anna Lorenzoni et al, autores do capítulo: “Lawrence e Deleuze entre apocalipses: o julgamento final e o final do juízo”, a acentuar a conclusão de Lawrence: “João, o apocalíptico, trabalha imerso no terror e na destruição, fundamentando sua profecia em uma mescla infesta de ameaça e pânico; enquanto João, o evangelista, seguia de perto Jesus, trabalhando o amor humano e espiritual” (p. 117).

Teria então João de Patmos distorcido a doutrina de seu grande mestre Jesus de Nazaré? Para Lawrence, essa parece ser uma conclusão inevitável, uma vez que o “patmismo” se aproxima muito mais do antigo Judaísmo e do Paganismo do que dos Evangelhos.

Contra o juízo é um livro primoroso para quem deseja se iniciar na leitura da filosofia da imanência, haja vista que traz a tona, de forma original, uma perspectiva acerca dos herdeiros de Spinoza, numa conotação de combate ao transcendente e busca pela imanência que se revela nos encontros trazidos pelos autores do livro. No que tange a questão do juízo, ou “juízo de Deus”, como prefere Deleuze, o livro é relevante àqueles que desejam um estudo pormenorizado da questão, ou mesmo, adentrar na temática. Organizado em 4 partes, o trabalho começa com uma reflexão sobre a herança de Spinoza e uma análise da doutrina do julgamento na tragédia grega (Parte um: Juízo e Tragédia), passando por uma análise dos herdeiros de Spinoza e suas lutas contra o juízo nas partes dois e três (Os herdeiros de Spinoza e Contra o Juízo: a luta de Nietzsche, Lawrence, Kafka e Artaud, respectivamente) e finaliza com a apresentação de formas de contrapor a existência ao juízo (Parte quatro: Existências contra o Juízo) .

Presente na história desde a tragédia grega, o juízo se impõe como fundamento sagrado da praxis humana, uma vez que subjaz ontologicamente a qualquer ato. Para Deleuze, a doutrina do juízo: “nos condena a uma escravidão sem fim e anula qualquer processo liberatório” (DELEUZE, 1997, p. 195). A consciência de dívida como alerta constante que antecede a ação coloca todos os viventes sob a égide da doutrina de julgamento, ceifando o “processo liberatório” ao qual se refere Deleuze, os indivíduos se tornam prisioneiros de suas consciências, num processo em que a dívida é selada ontologicamente numa consciência pré-reflexiva.

Nesse processo, cuja ação é seguida pelo julgamento, transparece um estado constante de vigilância e culpa, que pode ser sintetizado pelas próprias palavras do Apocalipse: “Se não vigiares, virei a ti como um ladrão, e não saberás a que horas te surpreenderei”. (BÍBLIA, Ap, 3, 3).

A inspiração que fez germinar o livro Contra o juízo está no capítulo “Para dar um fim do juízo”, presente na obra Crítica e Clínica de Deleuze (1997). Nele o autor apresenta diligentemente os herdeiros de Spinoza que, justamente por terem padecido do juízo, conseguiram transpor o fardo do julgamento por meio de um combate altivo e corajoso que resultou na grandiosidade das obras destes pensadores. Ocorre que a oposição ao juízo é uma tarefa complexa, uma vez que está arraigada à psicologia do sacerdote: “a lógica do juízo se confunde com a psicologia do sacerdote como inventor da mais sombria organização: quero julgar, preciso julgar” (DELEUZE, 1997, p.144). O veredito do juízo atua como parâmetro subjacente a ação, proliferando uma realidade em que ser vítima, culpado, constrangido e pecador passa a fazer parte da “natureza” humana. A lógica do juízo, que estratifica a todos numa posição de submissão e expectativa por um polo transcende que possa servir de recompensa àqueles que se submetem a uma existência ignominiosa, não perfaz apenas o meio religioso e político em grande medida. Os próprios grandes sábios e pensadores, vulgo filósofos, se alimentaram um após o outro do socratismo e suas ramificações cristãs que ascenderam num polo transcendente em que conceitos petrificados serviram de âncora para a construção de ideais norteadores da existência. Situação que levou Nietzsche a conclusão de que “Em todos os tempos, os homens sábios fizeram o mesmo julgamento da vida: ela não vale nada” (GD/CI “O problema de Sócrates” § 1).

Vejamos, se contrapor ao juízo implica nada menos que se opor a uma ordem milenar que se arrasta desde o famoso julgamento de Orestes na antiga Grécia. Para Leandro Nunes, autor do capítulo “Spinoza: o mais feroz combatente às ordens transcendentes e ao juízo”, “O julgamento está intrincado nos modos de vida produzidos pelo homem ocidental, ao menos desde 458 a.C., quando Ésquilo apresenta sua tragédia Eumênides, em que monta o primeiro tribunal, tal como o conhecemos hoje” (p. 25). Na tragédia, Orestes é acusado de matricídio, no entanto, teria realizado este ato funesto para vingar a morte de seu pai, assassinado pela sua mãe. Como o julgamento termina empatado, a própria juíza Atena vota em prol do sentenciado, absolvendo-o.

No enredo, pesam a dor e a vingança de Orestes, a dor da perda do pai e a vingança reparativa contra a mãe, situação que constitui o que Deleuze (2005, p. 118) chamou de “processo de restituição de equilíbrio ou de compensação” renovado a cada desfecho que desencadeia novas reações de causa e efeito que tendem ao infinito.

O juízo de valor arraigado numa concepção moral da realidade nem sempre esteve presente nas tragédias gregas, porém com a construção de uma tirania da razão contra os instintos, protagonizada pela razão socrática apolínea, a espontaneidade e a embriaguez dionisíaca se esfacelaram frente a um novo poder esclarecedor da razão, que aos poucos se tornou a luz que ilumina e orienta o Olimpo – fazendo com que cada indivíduo se encolha frente ao comum, àquilo que a todos orienta e conduz ao caminho do ‘bem’2. Aliás, é praticamente inconcebível a construção de uma ética teleológica com vistas à felicidade, como pretendeu Sócrates e seus disseminadores, sem que o desregramento e a indeterminação dionisíaca sejam postas a prova. Para tanto, ascendeu a necessidade da individuação, para que cada qual possa ser julgado em seus próprios méritos e deméritos.

Associado às belas formas, Apolo é considerado o deus criador do Olimpo, através dele a existência torna-se suportável frente aos poderes titânicos da natureza.

Simbolizando as singularidades por meio do estado do sonho, Apolo traz a ordem ao caos. No entanto, no Nascimento da tragédia, Nietzsche apresentará o impulso apolínio como ilusório, uma vez que nega a multiplicidade da natureza por meio da afirmação do Principium individuationis, ou seja, transparece um estado de ofuscamento em que a realidade é representada a fim de se tornar suportável. Daí decorre a necessidade de emparelhamento dos impulsos antagônicos, de modo que o exagero e a fruição dionisíaca se descarregam sobre o equilíbrio e a moderação apolínea. Acerca desta relação, Heuser (p. 197), ao tratar da “Embriaguez e insônia” sintetiza: “[…] é a conjugação entre lucidez e a embriaguez, a união entre o apolíneo e o dionisíaco, a própria condição para que, no sentido deleuziano, o pensamento seja forçado a pensar – o que é sinônimo de criar, preocupação central da filosofia de Deleuze”.

Em Deleuze, toda a filosofia, arte e ciência se justificam na criação, que emerge da múltipla fluidez do devir. Nesse viés, não há espaço para o predomínio apolíneo ou para a exacerbação do espírito teórico em detrimento do dinamismo dionisíaco. Deleuze faz do filosofar uma atividade criativa ad infinitum, sem espaço para o SER oriundo da tradição platônica. Em sua construção filosófica, os universais não passam de criações que se escondem numa atemporalidade criada e, portanto, apolínea (ilusória). Seu pensamento rizomático é uma contundente negação do juízo: Oposto a uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos e posições, por correlações binárias entre estes pontos e relações biunívocas entre estas posições, o rizoma é feito de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindoa, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 43).

A partir desta conotação de esfacelamento dos polos opostos que se sustentam dialeticamente na metafísica, a filosofia deleuzeguattariana rompe as raízes do juízo e seus efeitos não são mais capazes de produzir causalidade no mundo da praxis, isto é, a negação do juízo implica no resgate da embriaguez dionisíaca que afasta o dever moral e abre margens para a inocência. Para Nietzsche: O fato de que ninguém mais é feito responsável, de que o modo de ser não possa ser remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade nem como sensorium nem como “espírito”, apenas isto é a grande libertação (grosse Befreiung) – somente com isso é restabelecida a inocência do viraser (Unschuld des Werdens) (GD/CI, Os quatro grandes erros, § 8).

Não havendo mais necessidade de ‘fazer culpados’ se apagam as relações de credor e devedor e, consequentemente, não faz mais sentido emitir julgamentos. Para Stefano Busellato, autor do Capítulo “Nietzsche além do limite de Deleuze: Das Gericht”: “Nietzsche desmascara e, com isso, põe fim ao juízo” (p. 67). Embora presente no mundo da vida em suas mais diversas manifestações, o juízo também é uma construção e, como tal, pode ser desterritorializado e reterritorializado. Disso depende o que Nietzsche mencionou como “grande libertação”, como caminho para o übermensch. Uma construção da realidade aquém do juízo, eis o que propõem os autores do livro em análise, obviamente não se trata da construção de um novo mundo e nem de uma utopia, talvez o seja, mas a efetividade da existência é tamanha que não caberia no espaço de um sonho.

Unificar as cores, os tamanhos, os sentimentos, as virtudes, enfim, igualar as diferenças é um dos fundamentos pelos quais o julgamento se mantém ativo entre os povos. Em prol de seres unívocos e orquestrados pelo dever operam muitas escolas, igrejas, tribunais e tantas outras espécies de instituições mantenedoras dos valores tradicionais que perpetuam o passado indiscriminadamente, como se a certeza do futuro dependesse da reprodução e vivacidade de um passado longínquo, mas ‘glamoroso e glorioso’. Hoje camuflado sobre a falácia da família tradicional, os juízos imperam e se alastram destruindo a diversidade e o poder criativo de novos indivíduos que insistem em resistir em meio a ‘ordem preestabelecida’. Impossível não lembrar a canção de Belchior (1976), que fez sucesso no mesmo ano com a contundente voz de Elis Regina, “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmo e vivemos como nossos pais”. Nosso passado por vezes nos condena a repetir e a se sujeitar aos antigos juízos, a vivermos como nossos pais, a repetir e novamente repetir os jargões que nos foram repassados, como se os constantes sonhos do passado nos impedissem de viver. O que, também Belchior, numa contunde crítica ao juízo, imortalizou na canção a premissa “Viver é melhor que sonhar”. Viver versus sonhar: um combate travado pela vida contra o juízo, onde se encontram em relação de tensão o impulso apolíneo em seu estado do sonho e o impulso dionisíaco em seu estado de embriaguez.

Ester Heuser, no Capítulo “Elogio a insônia contra o juízo” (p. 196197), expõe: Se o deus solar comanda o sonho e o tribunal, se ele nos encerra na forma orgânica e limitada, em nome da qual julgamos, Deleuze precisa do notívago Dioniso para dar um fim ao juízo. Mais propriamente da embriaguez dionisíaca que só pode se manifestar por meio do ‘sono sem sonho onde, no entanto, não se dorme, essa insônia que, todavia, arrasta o sonho até os confins da insônia’ (DELEUZE, 1997, p. 148).

O sono sem sonhos ao qual Deleuze se refere possibilita o afastamento dos tribunais, afinal o sonho continua a produzir reflexos do dia que insiste em governar e imperar imagens de domínio sobre a mente, então, mesmo durante a noite o efeito onírico não me afasta de meu ego, me tornando subserviente. A psicanálise ao dar significação aos sonhos, nos torna “outro”, um alguém passível de ser vislumbrado, decodificado e, porque não, aprisionado. Para Heuser (p. 195): “Se durmo e sonho, me aproximo da noite, Reterritorializo o sono e também a mim mesma, já não posso mais dizer ‘eu durmo’, nem mesmo dizer ‘eu’. Não sou eu nem outro, sou uma sonhante que não pode ‘verdadeiramente’ ser”. Romper o efeito onírico do sonho é ser capaz de um “autoesquecimento” derivado de uma negação do sujeito em sua individuação, esse esfacelamento do “eu” é o que Nietzsche chamou de efeito ditirâmbico oriundo da embriaguez extasiante de Dionísio. Para Gonzalo Aguirre, autor do capítulo: “Rumino, ergo cogito: para recuperar cada vez el juicio” (p. 110): “El Organismo passional proprio del Juicio nunca puede alcanzar satisfacción, y lo toma todo com esa insatisfacción persistente que, organizada por uma Gramática de la vigilia, avanza incluso sobre las potencias oníricas”.

Criar mecanismos contra o juízo, que se encontra arraigado até no subterrâneo dos sonhos é tarefa que mobilizou escritores como Kafka. Adriana Dias e Paulo Schneider, autores do capítulo: “Kafka: uma escrivida ‘para dar fim ao juízo’”, assim descrevem o estilo do escritor: “A sua escrita é, de certo modo, como um caco de vidro virado contra si, está virado contra qualquer vontade divina, contra a sua condição judaica, contra o caráter social e familiar, a profissão, a justiça, o casamento” (p. 83).

Este domínio que vai até as zonas mais remotas do universo também encontrou solo fértil no inconsciente, fato percebido por Deleuze e Guattari, que encontraram relações de poder e dominação na relação entre analista e paciente. Assim, o juízo opera soberano exercendo violência física e simbólica contra os corpos, corpos vislumbrados em sua estrutura orgânica, como um todo onde cada parte cumpre uma função em vista de uma finalidade maior. Para opor-se a esta estrutura consciente que visa solapar os limites do inusitado, Deleuze lançará mão, alavancado por Artaud, do conceito de Corpo sem Órgãos, noção explorada por Evânio Guerrezi no capítulo “O caso Artaud: o corpo sem órgãos para acabar com o julgamento de Deus”. Para Artaud, apresentado na segunda parte do livro por Cristiano Bedin da Costa, em “Ainda Artaud”, o corpo sem órgãos é condição para a superação do juízo: “Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade” (ARTAUD, 1983, p. 161162).

A questão do juízo psicanalítico é abordada, essencialmente, no capítulo “No teatro do capital o juízo psicanalítico encena um espetáculo trágico”, escrito por Ronaldo dos Santos. O objetivo apontado é situar a psicanálise como “um produto social e historicamente datado, que nasce, desenvolve-se e é posto a serviço do capital como uma das instâncias de elaboração do juízo” (p. 50). Nesse viés, Freud encontrou no elemento trágico de Édipo uma forma de perpetuação da culpa que faz com o que o indivíduo ressentido se curve mediante seu próprio inconsciente, numa sina onde a divida permanece viva e se alimenta da debilidade de um ser incapaz de sanar seus próprios limites: “O paciente deve deixar de culpar os outros pelos seus sofrimentos e imputar a si mesmo a responsabilidade por aquilo que se passa, o ressentimento tornase culpa” (p. 52).

O mea culpa, mea maxima culpa3 faz com que o indivíduo esteja numa condição de vulnerabilidade, a qual só pode ser superada mediante o arrependimento, seguido da penitência e, por fim, do perdão de Deus. A psicanálise segue um rito muito similar: “Em sua interpretação da realidade, a psicanálise aprisiona os indivíduos nos seus dilemas edípicos, distanciando-os dos determinantes históricos e sociais aos quais estão submetidos” (p. 53). Essa situação levará Deleuze à conclusão de que se trata de um sistema alimentado por uma dívida infinita, impedindo o aparecimento de qualquer novo modelo de existência, uma vez que se crê que a natureza humana dispõe de uma universalidade lógica que a rege em padrões e estereótipos que se repetem.

A transcendência dos valores encontra seu modus operandi no juízo, afinal para manter um sistema vertical em funcionamento é necessário algum tipo de pudor que leve os indivíduos a respeitar e manter a engrenagem do sistema. Para sustentar a falácia do juízo é comum a instituição de um telos que fornece sentido aos atos humanos, assim, aparecem o deleite da felicidade, do bem comum, da pátria, do paraíso e de tantos outros universais inventados e que ganham um caráter ontológico de atemporalidade. Enfim, Contra juízo é uma insurreição de resistência contra a transcendência.

Embora o livro não trace um paralelo filosófico direto entre pensadores que defendem uma filosofia transcendente e os herdeiros de Spinoza, o mesmo traz uma grande variedade de discussões sobre a questão da imanência num viés deleuziano. Dada a diversidade de autores e temáticas abordadas, o livro não traz uma reflexão aprofundada de algum autor em específico, fator que dificulta uma análise mais específica do livro.

No entanto, se apresenta como uma excelente ferramenta introdutória a alguns dos principais escritores do pensamento da imanência, além de instigar e resgatar uma contundente discussão sobre a nefasta influência do juízo à existência. Conforme salienta Ester Heuser no final da apresentação da obra: “Com resistência se responde ao que nega a existência”.

Referências

ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. Tradução Cláudio Willer. Porto Alegre: LP&M, 1983.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico Católico. São Paulo: Ave Maria, 1996.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad.: P. Pal Pelbart. São Paulo: 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. Sobre Nietzsche e a Imagem de Pensamento. In: A ilha deserta e outros textos. Trad.: T. Tadeu e S. Corazza. São Paulo: Editora Iluminuras, 2005.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, v. 1. Trad.: Ana L. de Oliveira, A. G. Neto e C. P. Costa. São Paulo: 34, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos ídolos – ou, como se filosofa com o martelo. Trad.: P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Notas

1 ‘Para Luiz Palauro, autor do capítulo “Malditos mestres subversivos: vinde estragar nossos sonhos”: “O Cristo terreno era doce e aristocrata (de alma). O ‘filho do homem’ é expressão do mais alto grau de ressentimento das ralés, tudo nele é vingança, destruição e impotência remoída, o ódio fermentado” (p. 184).

2 A respeito da questão dos impulsos apolíneo e dionisíaco, bem como acerca da questão do elemento trágico em Nietzsche e Deleuze, Contra o Juízo dispõe do capítulo: “Tragédia grega e a doutrina do julgamento”. Escrito por Ana Acom.

3 Na tradição do catolicismo o “ato de contrição” é professado durante as celebrações da missa e é o simbolismo máximo da admissão dos pecados e da abertura do pecador para o perdão divino. Na íntegra: “Confiteor Deo omnipotenti, beatae Mariae semper Virgini, beato Michaeli Archangelo, beato Joanni Baptistae, sanctis Apostolis Petro et Paulo, omnibus Sanctis, et tibi pater: quia peccavi nimis cogitatione verbo, et opere: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.”  * Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus Toledo. Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico EBTT, do Instituto Federal do Paraná. Email: [email protected]

Douglas Meneghatti – Instituto Federal do Paraná, Brasil

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