O legado de Marte. olhares múltiplos sobre a Guerra do Paraguai | Marcello José Gomes Loureiro

Marcello Jose Gomes Loureiro Imagem Mondes Americains
Marcello José Gomes Loureiro | Imagem: Mondes Americains

Guerras são episódios traumáticos que marcam de maneira indelével países e populações. Por tratar-se do último grande conflito bélico platino e por sua extensão, dramaticidade e sanguinolência, a Guerra do Paraguai marcou a história das Américas. Dela quase todas as quatro nações envolvidas saíram prejudicadas, sobretudo o Paraguai, todas passaram por mudanças, tanto nas relações entre si, quanto nas suas vidas políticas e institucionais internas, e suas populações tiveram as vidas alteradas.

O Brasil não estava preparado para uma guerra de tamanha envergadura como a campanha contra o Paraguai, e teve que mobilizar às pressas a população para constituir um exército, transformando civis em combatentes. Além disto, o governo imperial teve que enfrentar uma série de desafios, militares, diplomáticos e de política interna. Os seis anos do conflito desviaram a atenção do governo das reformas internas; levou a enormes gastos com a luta, gerando um déficit público que persistiu até 1889; explicitou as contradições de uma sociedade que tinha a escravidão como principal instituição; colocou à prova elementos definidores das relações sociais e da cidadania e transformou o exército em importante agente político. Além disto, os historiadores são praticamente unânimes em considerar que a guerra marcou o princípio de erosão do sistema monárquico. Leia Mais

Democracia em tempos difíceis: interdisciplinaridade/política e subjetividades | Mériti de Souza

O livro Democracia em tempos difíceis: interdisciplinaridade, política e subjetividades, organizado por Mériti de Souza, possui 12 capítulos escritos por diferentes autores, com diversidade epistemológica e referenciados em diferentes campos de estudo, porém com um objeto comum: a análise da democracia na sua relação com a produção da subjetividade brasileira. A coletânea torna-se uma publicação preciosa ao refletir sobre a conjuntura atual, analisando a constituição histórica das resistências ou disputas pela democracia e o esmagamento das políticas públicas pelo neoliberalismo. Também discute a adesão à ideologia capitalista consumidora de subjetividades por meio de simulacros do espetáculo em nome de uma suposta liberdade, enquanto são produzidas respostas violentas às manifestações de diversidade de gênero e sexualidade. Leia Mais

A invenção do profissionalismo no futebol: tensões e efeitos no Rio de Janeiro (1933-1941) | Eduardo de Souza Gomes

Luciano do Valle
Luciano do Valle| Imagem: Ludopedio/Band

Apesar da inserção recente nas pesquisas historiográficas,2 o esporte vem se tornando um objeto de estudo rotineiramente utilizado pelos historiadores que visualizam neste fenômeno uma rica veia de possibilidades para compreender diversas manifestações sociais, culturais e econômicas. Esta obra resenhada, escrita pelo historiador brasileiro Dr. Eduardo de Souza Gomes se inclui nesse contexto ao utilizar o futebol para problematizar aspectos históricos ligados à profissionalização da modalidade esportiva no Rio de Janeiro (Brasil) e na Colômbia.

O livro está organizado em três capítulos, amparados por pressupostos metodológicos da história comparada.3 Neles, o autor aborda o processo de profissionalização do futebol na Colômbia e na cidade do Rio de Janeiro que, na época investigada, era a capital federal do Brasil e tinha influência na movimentação política e social ao nível nacional. Além disso, o autor ressaltou a impossibilidade de tratar a profissionalização no Brasil como um todo, visto as disparidades desse processo entre os estados brasileiros. A Colômbia, por sua vez, conforme o Gomes, possuiu um processo de profissionalização que abrangeu o país como um todo, facilitando tratar esse processo em âmbito nacional. Leia Mais

Direitos LGBT: a LGBTfobia estrutural e a diversidade sexual e de gênero no direito brasileiro | Caio Benevides Pedra

Caio Benevides Pedra
Caio Benevides Pedra | Imagem: DIVERSO/UFMG

O livro Direitos LGBT: a LGBTfobia estrutural e a diversidade sexual e de gênero no direito brasileiro (2019) é resultado da dissertação de mestrado em direito, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais, por Caio Benevides Pedra, professor, advogado, ativista em direitos humanos e pesquisador de questões relacionadas à cidadania da população LGBT.

A partir da análise da atuação do Estado e do Direito na garantia de direitos a essa população, o volume objetiva facilitar a compreensão de quatro conceitos introdutórios e fundamentais para os debates atuais sobre gênero e diversidade: identidade de gênero, expressão de gênero, orientação sexual e sexo biológico, pois, diante das divergências que se apresentam na sociedade e no mundo jurídico, a compreensão desses conceitos possibilita uma atuação mais adequada dos operadores do Direito, no Brasil. Leia Mais

Da Monumentalidade à Demolição: O Prédio do Jardim da Infância Anexo à Escola Normal de São Paulo (1896-1939) | Sandra Aparecida Melro

O livro Da Monumentalidade à Demolição: O Prédio do Jardim da Infância anexo à Escola Normal de São Paulo (1896-1939) (2021), de Sandra Aparecida Melro é fruto da sua dissertação de mestrado defendida em 2019, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), sob a orientação da Prof. Mirian Jorge Warde, que prefacia este livro. A dissertação de Melro (2019) compõe um escopo de pesquisas orientadas por Warde, nos últimos 25 anos, acerca da Escola Caetano de Campos, antiga Escola Normal de São Paulo, desde sua criação, mas com atenção no período da Proclamação da República até os anos de 1930, instituição que representa os ideais republicanos para a educação paulista que se tornou modelo nacional.

Melro (2021) faz excelente uso das publicações sobre o tema, apresentando, por sua vez, uma importante contribuição para os estudos sobre a educação, no período pesquisado, sobretudo sobre o Jardim de Infância e as propostas republicanas para a educação nacional que previam abranger a população em geral, incluindo o estrangeiro. Leia Mais

Representação dos árabes e muçulmanos na televisão brasileira | César Henrique de Queiroz Porto

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César Henrique de Queiroz Porto | Imagem: Arquivo pessoal/UNIMONTES

A telenovela tem uma importância transcendental para a cultura brasileira. No ar há quase 70 anos2, o Brasil já se viu, por muitas vezes, representado nas inúmeras narrativas ficcionais produzidas e exibidas pelas emissoras brasileiras de televisão. Contudo, não foram apenas as telenovelas com enredos repletos de brasilidade que acompanhamos nesse longo período de teledramaturgia brasileira, haja vista que – dada a originalidade dos novelistas3 – também pudemos acompanhar tramas que trouxeram ao telespectador culturas e costumes de outros povos como, por exemplo, a telenovela O Clone, de autoria de Glória Perez, produzida e exibida entre 2001 e 2002, pela TV Globo.

O Clone foi exibida no emblemático ano de 2001, marcado não apenas pelo início do século XXI, mas também pelos ataques terroristas contra os Estados Unidos, promovidos pela organização fundamentalista islâmica Al-Qaeda, liderada pelo saudita Osama Bin Laden. No dia 11 de setembro de 2001, os terroristas lançaram ataques suicidas – através de aeronaves – contra os prédios do Pentágono, em Washington, e no World Trade Center (também conhecido como Torres Gêmeas), em Nova York, resultando na morte de mais de três mil pessoas. Foi nesse contexto histórico que vinte dias após o atentado terrorista, em 01 de outubro de 2001, estreou a telenovela O Clone, trazendo em sua espinha dorsal toda a cultura muçulmana, além de outros temas tabus como clonagem humana e dependência química. Leia Mais

Literatura/História e Memória em Gabriel García Márquez | Michelle Márcia Cobra Torre

O Caribe Colombiano é um território mágico e singular, com múltiplas influências culturais e uma vasta produção artística. Na literatura, citando apenas alguns nomes, autores como Álvaro Cepeda Samudio, Roberto Burgos, Clinton Ramirez, Teobaldo Noriega expressam essa riqueza e diversidade. Nascido em Aracataca, pequeno povoado do Departamento de Magdalena, um ambiente rodeado por trens, telégrafos e fazendas bananeiras – sob a exploração da legendária United Fruit Company –, Gabriel García Márquez se tornou um escritor universal e consagrado, laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 1982. Leia Mais

História Concisa dos Bairros de Curitiba: do Abranches ao Xaxim | Felippy Strapasson Hoy

Pode-se dizer que a história de Curitiba nunca esteve tão presente no cenário curitibano como ocorrera nos tempos mais recentes. O livro, cuja publicação fora feita em 2019 e que tem como título “História concisa dos bairros de Curitiba: do Abranches ao Xaxim”, fez de Felippy Strapasson Hoy2 um dos historiadores mais jovens a incorporar, dentro da historiografia paranaense, discussões e debates acerca da identidade curitibana. Assim, o autor visa fazer com que o(a) seu(sua) leitor(a) viaje pelos bairros da “antiga Curitiba” e entenda a sua formação a partir de divisões geográficas, curiosidades e desdobramentos que (por trás de um passado histórico) constituíram o alvorecer da capital paranaense.

Trata-se de um livro não muito extenso, composto por 182 páginas e que traz ao público-alvo uma gama de investigações baseadas nas evoluções histórica e urbana da cidade brasileira nos últimos séculos. A escrita do livro flui ao longo de suas páginas, caracterizando a leitura da obra como prática, direta, didática e de fácil compreensão ao(a) leitor(a). Leia Mais

As ações de liberdade no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no período entre 1871 e 1888 | Carlos Henrique Antunes da Silva

Muito se discute atualmente sobre o papel do Poder Judiciário no Brasil. Em fins do século XIX, permearam as instâncias e as decisões judiciais ações cíveis cujo objeto era a liberdade de escravos. Sem os meios de comunicação de que hoje dispomos, ainda assim parte da sociedade estava atenta ao assunto. Para além da opinião pública e dos movimentos sociais de então, o trabalho que temos em mãos tem como ponto de partida um elemento bastante presente nas fontes utilizadas para o estudo da escravidão, mas nem sempre em evidência nas investigações relacionadas ao tema: o Estado. De que modo os agentes atuantes na estrutura judiciária do Império lidaram com os processos impetrados pela liberdade de homens e mulheres na condição de escravos? Que instrumental advogados e desembargadores operaram em suas argumentações e decisões?

O livro que nos coloca essas e outras questões é resultado de uma pesquisa de mestrado em História defendida na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em 2015. Seu autor, Carlos Henrique Antunes da Silva, é formado em Direito, História e Filosofia, adentrando também a Sociologia do Direito neste estudo. O referencial teórico adotado por ele está na obra do sociólogo Pierre Bourdieu, em sua reflexão sobre as representações e relações simbólicas de poder. A noção “campo jurídico”, particularmente, busca dar a ver o movimento de definição do Poder Judiciário durante o Brasil Império, sem deixar de lado as especificidades da época, como a vigência da escravidão de africanos e descendentes. Leia Mais

As ações de liberdade no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no período entre 1871 e 1888 | Carlos Henrique Antunes da Silva

Tribunal da Relacao do Rio de Janeiro
Primeira sede da Relação do Rio de Janeiro, prédio que abrigava a cadeia e o Senado | Imagem: Migalhas.com

SILVA As acoes de liberdade Muito se discute atualmente sobre o papel do Poder Ju­diciário no Brasil. Em fins do século XIX, permearam as instâncias e as decisões judiciais ações cíveis cujo objeto era a liberdade de escravos. Sem os meios de comunicação de que hoje dispomos, ainda assim parte da sociedade estava atenta ao assunto. Para além da opinião pública e dos movimentos sociais de então, o trabalho que temos em mãos tem como ponto de partida um elemento bastante presente nas fontes utilizadas para o estudo da escravidão, mas nem sempre em evidência nas investigações re­lacionadas ao tema: o Estado. De que modo os agentes atuantes na estrutura judiciária do Império lidaram com os processos impetrados pela liberdade de homens e mulheres na condição de escravos? Que instrumental advogados e desembargadores operaram em suas argu­mentações e decisões?

O livro que nos coloca essas e outras questões é resultado de uma pesquisa de mestrado em História defendida na Universidade Fede­ral Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em 2015. Seu autor, Carlos Hen­rique Antunes da Silva, é formado em Direito, História e Filosofia, adentrando também a Sociologia do Direito neste estudo. O referen­cial teórico adotado por ele está na obra do sociólogo Pierre Bourdieu, em sua reflexão sobre as representações e relações simbólicas de po­der. A noção “campo jurídico”, particularmente, busca dar a ver o mo­vimento de definição do Poder Judiciário durante o Brasil Império, sem deixar de lado as especificidades da época, como a vigência da escravidão de africanos e descendentes. Leia Mais

No rendilhado do cotidiano: a família dos libertos e seus descendentes em Minas Gerais (C. 1770 – C. 1850) | Sirleia Maria Arantes

No rendilhado do cotidiano
No rendilhado do cotidiano: a família dos libertos e seus descendentes em Minas Gerais (C. 1770 – C. 1850) – Detalhe de capa

A perspectiva da micro-história e das redes sociais vem colaborando de forma categórica na historiografia brasileira sobre a família e ampliando o escopo de conceitos, interpretações e metodologias. Publicado em 2020, o livro No rendilhado do cotidiano: a família dos libertos e seus descendentes em Minas Gerais (C. 1770 – C. 1850), de Sirleia Maria Arantes, representa mais um esforço nessa direção. Em diálogo com a historiografia da família negra no período escravista, Arantes desenvolveu uma complexa análise que conjuga microanálise à demografia histórica, contribuindo para a literatura que discute a experiência de vida familiar de libertos e escravizados em Minas Gerais na virada do século XVIII para o XIX.

A preocupação em ampliar o estudo sobre a experiência familiar negra no contexto escravista, não é recente. Desde a década de 1970, estudiosos caminharam no sentido de repensar a forma que a família escrava aparecia na historiografia brasileira, se atentando a problematizar a visão de relações sociais instáveis dentro e fora do cativeiro e o conceito de patriarcalismo. Nesse sentido, os trabalhos do historiador Robert W. Slenes – especialmente o célebre Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – teve um papel relevante na renovação das interpretações sobre a família escrava no Brasil, na perspectiva de tomar a família como uma importante estratégia de sobrevivência e preservação das heranças culturais. Pesquisas recentes também avançaram no estudo das estratégias familiares dos escravizados e libertos, colocando ao centro o protagonismo destes atores sociais, se valendo das contribuições da demografia histórica e da micro-história. Os estudos de Cacilda Machado para São José dos Pinhais, Paraná (2008), de Roberto Guedes para Porto Feliz, São Paulo (2008) e de Tarcísio R. Botelho, para Minas Gerais (2007) são apenas alguns dos esforços recentes, além das dissertações e teses não publicadas – como a tese de Isabel Cristina Ferreira dos Reis para a Bahia, no século XIX. Leia Mais

As ações de liberdade no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no período entre 1871 e 1888 | Carlos Henrique Antunes da Silva

Muito se discute atualmente sobre o papel do Poder Judiciário no Brasil. Em fins do século XIX, permearam as instâncias e as decisões judiciais ações cíveis cujo objeto era a liberdade de escravos. Sem os meios de comunicação de que hoje dispomos, ainda assim parte da sociedade estava atenta ao assunto. Para além da opinião pública e dos movimentos sociais de então, o trabalho que temos em mãos tem como ponto de partida um elemento bastante presente nas fontes utilizadas para o estudo da escravidão, mas nem sempre em evidência nas investigações relacionadas ao tema: o Estado. De que modo os agentes atuantes na estrutura judiciária do Império lidaram com os processos impetrados pela liberdade de homens e mulheres na condição de escravos? Que instrumental advogados e desembargadores operaram em suas argumentações e decisões?

O livro que nos coloca essas e outras questões é resultado de uma pesquisa de mestrado em História defendida na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em 2015. Seu autor, Carlos Henrique Antunes da Silva, é formado em Direito, História e Filosofia, adentrando também a Sociologia do Direito neste estudo. O referencial teórico adotado por ele está na obra do sociólogo Pierre Bourdieu, em sua reflexão sobre as representações e relações simbólicas de poder. A noção “campo jurídico”, particularmente, busca dar a ver o movimento de definição do Poder Judiciário durante o Brasil Império, sem deixar de lado as especificidades da época, como a vigência da escravidão de africanos e descendentes. Leia Mais

NGOENHA Severino E. (Aut), Resistir a Abadon (T), Paulinas (E), QUITUNGA Asbel D. (Res), Monções UFGD (Mçr), Filosofia, Relações Internacionais, Pensamento Alemão, Ulrich Beck, Sociólogo | Carlos R. S. Milani

A obra “Solidariedade e interesses: motivações e estratégias na cooperação internacional para o desenvolvimento”, escrita por Carlos Milani e publicada em 2018, é uma importante contribuição recente para a área das Relações Internacionais, em especial para os estudos da cooperação internacional para o desenvolvimento (CID). Ao longo de quatro capítulos, Milani (2018) analisa diferentes temas e dimensões da cooperação internacional para o desenvolvimento tendo como fio condutor a coexistência de solidariedade e de interesses nas práticas enquadradas sob a categoria da CID1.

A primeira grande contribuição consiste na apresentação, na Introdução, de uma definição parcimoniosa, e por isso, com grande potencial de generalização, para a cooperação internacional para o desenvolvimento. Nas palavras do autor, define-se a CID “[…] como um campo político – portanto, necessariamente, permeado por relações de poder – em que inúmeros atores competem por legitimidade, reconhecimento e recursos materiais […]” (MILANI, 2018, p. 23). Tal definição abrange tanto as práticas tradicionais e históricas dos países doadores do Norte, quanto as ações dos parceiros emergentes, como China, Turquia, Brasil, Índia e México. Leia Mais

História & outras eróticas | Marcos Antonio de Menezes, Martha S. Santos e Robson Pereira da Silva

Historia e outras eroticas3
Orestes perseguido por las Furias, de William-Adolphe Bouguereau (1862) | Domínio público |

SANTOS M Historia e outras eroticas 2Ninguém vai poder, querer nos dizer como amar
Um novo tempo há de vencer
Pra que a gente possa florescer
E, baby, amar, amar, sem temer
Eles não vão vencer
– Johnny Hooker

Apesar dos constates ataques que a educação e a ciência têm sofrido no Brasil, principalmente nos últimos anos, por conta da gestão genocida empreendida por Jair Bolsonaro bem como por todos os outros ignóbeis que se somam a ele, ainda assim é possível notar uma resistência por parte daqueles que não aceitam abaixar a guarda e continuam firmes na produção de um conhecimento que busca reflexões contínuas da sociedade atual e da pluralidade de indivíduos nela inseridos.

Desse desejo de resistir é que nasceu História e outras eróticas (2020), organizado por Martha S. Santos, Marcos Antonio de Menezes e Robson Pereira da Silva. A obra mostra a que veio logo em suas primeiras páginas, ao dar as boas-vindas aos leitores com uma citação do sociólogo inglês Anthony Giddens que, dentre outros assuntos, investiga as transformações contemporâneas e seus reflexos nas relações amorosas e eróticas, e também com um trecho do single God Control (2019), de Madonna, que em sua música faz um manifesto contra o porte de armas nos Estados Unidos e relembra no clipe da canção o massacre [2] ocorrido em uma boate LGBT, no mesmo país.

A coletânea de textos que se seguem é inaugurada por Tamsin Spargo, que no primeiro capítulo do livro tece considerações abarcando sexo, gênero e sexualidade, partindo principalmente dessas temáticas para promover reflexões que vão desde o tratamento misógino que observou em ambientes de trabalho dos quais fez parte até a maneira como a pornografia colabora para as representações sexualizadas de corpos hiperbólicos. Em seu texto, Spargo dialoga em grande medida com o filósofo Michel Foucault, umas das maiores referências no que diz respeito as temáticas de sexualidade e educação, bem como a relação destes com o poder. Ademais, a autora ainda relembra a publicação de seu ensaio Foucault e a teoria queer (1999), onde ela explora o modo como o pensamento do filósofo teria refletido na construção e entendimento da referida teoria.

Na sequência, Luisa Consuelo Soler Lizarazo reflete sobre as fronteiras sexuais que ainda perduram paralelamente a diversidade de gênero, sobretudo àquelas observadas em sociedades transculturais, ao mesmo tempo em que problematiza a ordem moral que continuamente busca impor um modelo de família funcional apenas à sistemas patriarcais e capitalistas. A autora faz um levantamento de como as questões relacionadas ao assunto foram observadas ao longo dos séculos e evidencia a importância do direito de se exercer a possibilidade de escolha de cada sujeito.

Ao longo do tempo tem-se observando a História e a ficção protagonizando discussões acaloradas que resultaram em mudanças e reestruturações no fazer historiográfico. Seguindo nessa linha de raciocínio, Peterson José de Oliveira constrói seu texto a partir da relação dos historiadores com a verdade e a ficção e traz para o leitor a novela, um gênero um tanto quanto subestimado e ainda pouco estudado. Para suas análises, Oliveira concentra seu trabalho principalmente a partir do uso da montagem e da polifonia, duas formas narrativas essenciais para a construção de O mezz da gripe (1998) de Valêncio Xavier que, por meio maneira de sua narrativa, mescla ficção e realidade e, por conseguinte, reflete sobre os efeitos de verdade presentes na novela.

No capítulo seguinte a autora Lúcia R. V. Romano promove reflexões importantes a respeito das intersecções entre as artes cênicas e o feminismo, elucidando a importância da história para a construção de um diálogo entre os dois campos e pontuando a colaboração cada vez mais notável da historiografia para os estudos feministas. Em seu texto, Romano deixa claro que muitas são as questões atuais envolvendo a história, o teatro e o pensamento feminista e abre espaço para se pensar o artivismo feminista, com ênfase no Madeirite Rosa, um coletivo teatral paulistano.

Outra linguagem artística colocada em pauta ao longo da obra História e outras eróticas (2020) é o cinema, abordado no texto de Grace Campos Costa e Lays da Cruz Capelozi, que trazem para os leitores um debate precioso sobre a representação feminina a partir da filmografia de Catherine Breillat. Em um texto bastante didático e rico em imagens, as autoras apresentam uma discussão que vai de encontro a um tabu ainda muito atual: o prazer feminino. Como objeto de estudo é analisado o filme Romance X (1999) e ao longo do texto, além de conhecer um pouco mais sobre o cinema de Breillat também é possível compreender a forma como ela se posiciona antagonicamente aos estereótipos que ainda são observados no que diz respeito ao desejo feminino em representações cinematográficas.

No capítulo seguinte, Ana Lorym Soares faz um interessante paralelo entre a realidade a qual temos vivido e a distopia, lançando seu olhar para o romance O conto da Aia (1939), de Margaret Atwood. A autora explica que em outras obras de distopia o que se observa é um padrão onde os personagens principais são, na grande maioria das vezes, homens, de modo que no romance estudado, Margaret Atwood inova ao trazer uma mulher como personagem central da obra, fugindo dos padrões observado neste gênero da literatura. Desse modo, além de importantes reflexões a respeito da escrita feminina de Atwood, direito das mulheres e seus corpos enquanto campo de poder, Ana Lorym Soares ainda deixa evidente a importância de um olhar atento a realidade, a fim de que as distopias permaneçam no campo de conhecimento da ficção.

Também no campo da literatura, Marcos Antonio de Menezes, constrói seu texto a partir de romances e poesias, sendo que nas páginas que se seguem os leitores serão levados a refletir sobre a(s) representações do(s) feminino(s) na obra de Charles Baudelaire, levando em consideração questões postas em pauta pelo movimento feminista atualmente. Indo contra a grande maioria das produções literárias do século XIX, tecidas a partir da ótica masculina e burguesa, os leitores poderão conhecer um pouco mais sobre a estética, a recepção e as temáticas abordadas nos enredos de grandes obras, como As flores do mal (1857), de Baudeleire e Madamy Bovary (1856), de Gustave Flaubert.

No capítulo seguinte, Robson Pereira da Silva, apresenta-nos ao subversivo Hélio Oiticia, um dos artistas mais completos e importantes da arte brasileira. No texto é apresentada e discutida a antiarte e a arte de subversão de Oiticica nos anos de 1960 e 1970, onde através da performance o mesmo combatia todo e qualquer autoritarismo institucionalizado. O texto é essencial para compreender as configurações do corpo como objeto inventivo bem como do uso da contraviolência de Hélio Oiticica, que se valia da arte para combater a repressão vivida no contexto da ditadura militar no Brasil. O trabalho de ativistas/artivistas negros queer no estado da Bahia é preconizado por meio do texto de Tanya Saunders, que a partir do seu estudo relacionado a discussões de gênero, raça e sexualidade debate de que maneira se tem observado a construção crescente do “não humano”. No capítulo, o retrocesso vivido atualmente no Brasil é colocado em xeque e debatido através da ótica da colonialidade, do afrofuturismo e da necropolítica, que de maneira cada vez mais pungente e perigosa busca ditar quem têm ou não importância em sociedade.

No capítulo seguinte, Martha S. Santos toca com coragem em uma ferida ainda aberta, especialmente, ao problematizar a importância da compreensão da instituição da escravidão no Brasil a fim de que se entenda de uma vez por todas os reflexos desta para a criação e manutenção de privilégios desfrutados por determinadas classes sociais em nosso país. Em seu texto, a autora busca fazer um rápido balanço historiográfico dos estudos ligados a escravidão nas últimas quatro décadas no Brasil além de apresentar seus estudos, concentrados no interior do Ceará, e dialogar intrinsicamente com os estudos de gênero ao refletir sobre a maneira pela qual mulheres e crianças aparecem inseridas no processo da escravidão.

Com um olhar voltado também para a escravidão, Murilo Borges da Silva dialoga com o texto anterior ao abordar os relatos de viajantes no estado de Goiás, bem como as contribuições destes para a produção de corpos femininos negros e representações do feminino muitas vezes equivocadas.

Em seu texto, Silva trabalha com os relatos de Saint-Hilaire (1975) e Johann Emanuel Pohl (1976) para verificar como as mulheres negras aparecem nestes relatos, através dos quais nota-se que há uma tentativa de silenciamento por parte dos viajantes em questão, que não raras vezes, faziam de seus escritos um lugar seletivo, tornando visível determinados fatos e invisíveis outros, da maneira como lhes era favorável e de acordo com aquilo que consideravam necessário.

Logo em seguida os leitores são postos frente a questões direcionadas principalmente aqueles que se dedicam a produção de conhecimento, pois Fábio Henrique Lopes lança um problema grave que diz respeito a maneira como muitas vezes utilizam-se de pessoas transsexuais e de outras identidades de gênero apenas como objetos de estudo. Partindo dessa colocação, o autor torna possível um olhar mais atento ao lugar de fala que cabe a nós, pesquisadores. Aqui, fica claro que é necessário que haja um repensar do fazer historiográfico e epistemológico de modo a não ferir o outro e deixa a todos uma breve, mas, importante advertência: “incluir, excluindo é fácil […]” (LOPES, 2020, p. 276).

O próximo capítulo é um nó na garganta, daqueles que a cada palavra lida cresce um pouco mais, pois logo de cara, Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Diego Aparecido Cafola lançam alguns fatos que não podem serem ignorados: a heterossexualidade e a cisgeneridade compulsória tem acarretado na invisibilização e precarização da existência da população LGBTQI+ e, consequentemente, na sua eliminação física. Os autores afirmam que o conhecimento produzido na academia não tem ultrapassado seus muros e que os reflexos dos discursos construídos em cima de conservadorismos podem ser notados cada vez mais através da violência com que a população LGBTQI+ tem sido alvo constante. Em um texto tocante, os autores colocam em xeque a noção atual de humanidade e questionam o processo de exclusão de grupos marcados pela diferença, ou melhor, que as maiorias silenciadas têm sofrido.

No texto que se segue as problemáticas levantadas dialogam com estas do texto anterior, porém, são levadas para o espaço escolar ao demonstrar como a escola tem atuando como agente da normatividade. Neste capítulo, Aguinaldo Rodrigues Gomes problematiza a hierarquização e o silenciamento de corpos dissidentes por meio do discurso falacioso da “ideologia de gênero” difundida, inclusive, como uma das principais bandeiras levantadas e defendidas durante a eleição de Jair Bolsonaro. O autor reitera os ataques aos quais a educação tem sofrido no campo dos estudos de gênero e da educação sexual, além de expor o cerceamento de professores, aos quais os conservadores e reacionários tentam colocar em uma redoma cujas grades é a ignorância e o preconceito.

Por fim, o último capítulo traz aos leitores uma “greve selvagem” que resultou na derrota do capitalismo em uma luta protagonizada por estudantes e trabalhadores. Em seu texto, João Alberto da Costa Pinto aborda a Revolução do Maio de 1968, a mais importante revolução anticapitalista do século XX. Sua análise parte da trajetória política e teórica de Raoul Vaneigem e se expande para outros militantes que fizeram parte do movimento que ficou conhecido como Internacional Situacionista (IS). De forma clara, Pinto explana o que levou dez milhões de trabalhadores e estudantes a frearem o capitalismo na França de forma totalmente espontânea e auto-organizada.

Dessa feita, levando em consideração o cenário hostil em que a produção de conhecimento científico se encontra em discrédito, como política de governo, bem como os ataques que as populações negras, índigenas, de mulheres e LGBTQI+, sobretudo àqueles sujeitos e sujeitas marcadas pela pobreza e precariedade da vida e do mundo do trabalho tem sofrido cotidianamente com as políticas de morte e indiferença, conclui-se que a coletânea de textos reunida em História e outras eróticas (2020) além de sinônimo de resistência é também um contributo a produção intelectual que se preocupa em pensar, refletir e problematizar os campos de estudo da política, raça, femininos e performatividades de gênero. Nas páginas desta obra, os leitores irão encontrar questionamentos relevantes acerca de temas atuais e necessários, fazendo com que a obra se configure como um alento a defesa dos direitos humanos, revestido de esperança, força e coragem para continuar na luta por igualdade.

Nota

2. O massacre na boate “Pulse” aconteceu em Orlando, no dia 12 de junho de 2016. Na data, Omar Mateen abriu fogo dentro do local e assassinou quarenta e nove pessoas e deixou cinquenta e três gravemente feridas.

LOPES, Fábio Henrique. Efeitos de uma experimentação político-Historiográfica com travestis da primeira geração. Rio de janeiro. In: MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.

MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.

Natália Peres Carvalho – Graduada em História pela Universidade Federal de Goiás e mestranda no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de Goiás. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9841094387536865. E-mail: [email protected].


MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: CARVALHO, Natália Peres. História & outras eróticas (2020) – Uma obra urgente e necessária. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.184-188, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

História & Outras Eróticas | Martha S. SAntos e Marcos Antonio Menezes

O que pode um corpo sem juízo? Quando saber que um corpo abjeto se torna um corpo objeto e vice-versa? Não somos definidos pela natureza assim que nascemos Mas pela cultura que criamos e somos criados

Sexualidade e gênero são campos abertos

De nossas personalidades e preenchemos

Conforme absorvemos elementos do mundo ao redor

Nos tornamos mulheres – ou homens,

Não nascemos nada

Talvez nem humanos nascemos

Sob a cultura, a ação do tempo, do espaço, história

Geografia, psicologia, antropologia, nos tornamos algo

Homens, mulheres, transgêneros, cisgêneros, heterossexuais

Homossexuais, bissexuais, e o que mais quisermos

Pudermos ou nos dispusermos a ser

O que pode o seu corpo?

Jup do Bairro.

História & Outras Eróticas, organizado por Martha S. Santos, Marcos Antonio Menezes e Robson Pereira da Silva, é fruto de um esforço científico coletivo que extrapola a materialidade dos textos que compõe a obra. O troca-troca cultural entre arte e agenda política (MEIHY, 2020, p. 13) que nos chega, tem origem na realização do VI Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Goiás, Regional Jataí. Desta feita, os louros pela excelência são creditados aos/às autores/as e estendem-se aos discentes e docentes do Curso de Licenciatura em História da referida universidade, bem como, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo investimento na produção científica brasileira. Leia Mais

Guerra Fria: História e Historiografia | Sidnei José Munhoz (R)

Bilros 5
Sidnei José Munhoz | Foto: Jornal da UEM |

Critica Historiografica capas 10A obra Guerra Fria: História e Historiografia, de Sidnei Munhoz, foi lançada em 2020 pela Appris Editora com o objetivo de apresentar não somente os principais eventos desse conflito que marcou o século XX (1947-1991), mas também um balanço historiográfico sobre o tema. O objetivo desse trabalho é resenhar esse livro, fruto de anos de pesquisa do autor, que se tornou um dos maiores especialistas sobre o assunto no Brasil.

Munhoz é pós-doutor pela Brown University e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em História Contemporânea e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. É professor visitante sênior do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina e professor voluntário do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Foi research student da The London School of Economics and Political Science (1995-1996). Dentre suas obras podemos citar Cidade ao avesso: desordem e progresso em São Paulo no limiar do século XX (2015), além de atuar como um dos organizadores da Enciclopédia de Guerras e Revoluções do século XX (2004) e do livro Impérios na História (2009). Por fim, atua como coordenador do Opening Archives Project em uma parceria com James Green e a Brown University. Leia Mais

Educação a distância e tecnologia digital: interação, atitude e aprendizagem | Agnaldo Oliveira

O autor, Agnaldo de Oliveira, é brasileiro, com doutorado em Matemática pela Unesp (Rio Claro – SP), docente da rede municipal de ensino de Campo Grande – MS, pesquisador nas áreas de Formação Continuada de Professores e de Tecnologias de Informação e Comunicação.

O presente livro é fruto da pesquisa de mestrado, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Nele, Oliveira analisa os estudos realizados sobre o uso de tecnologias digitais no ensino e aprendizagem de funções do primeiro e segundo grau na exploração de propriedades de triângulos e quadriláteros. Para este efeito, além de introdução e conclusão, dividiu a obra em três capítulos, a saber: 1. Formação de Professores e Tecnologias Digitais: interação, atitudes e aprendizagem, que corresponde ao referencial teórico, tendo optado pelos estudos sobre “estar junto virtual” e a atitude de “habitante”, e é partir deles que foi possível analisar as possibilidades de aprendizagens dos sujeitos com o uso do computador em ações na modalidade EaD; 2. Caminho Metodológico da Pesquisa, no qual delineia o caminho percorrido na investigação e a constituição do grupo de estudo, nomeadamente os participantes da ação formativa. Neste capítulo são também apresentados o ambiente virtual de aprendizagem (AVA), espaço em que ocorre o desenvolvimento da ação de formação, e a proposta de ação de formação; 3. Uma Experiência com Formação de Professores de Matemática em EaD: possibilidades de aprendizagem em AVA, no qual apresenta a análise de dados a partir de três categorias: aprendizagem do conceito matemático, aprendizagem na interação entre sujeitos e atitude do formador. Leia Mais

A Campanha Abolicionista na Revista Ilustrada (1876-1888): Ângelo Agostini e a educação do povo | Mônica Vasconcelo

A obra é resultado da dissertação de mestrado defendida em 2017 no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. No livro, Mônica Vasconcelo analisa as caricaturas de Ângelo Agostini (1843-1910) publicadas na Revista Illustrada (1876-1888), na província do Rio de Janeiro, com a temática da defesa do fim da escravidão. O objetivo dessa obra é compreender a totalidade social e histórica bem como as contradições presentes no discurso da escravidão. A ação política e educativa inerente ao próprio discurso e aos interesses da classe dominante sombreava a participação de Ângelo Agostini nos embates sobre a abolição do regime escravocrata.

Ângelo Agostini nasceu na província de Alessandria, na Itália, em 1843. Viveu sua infância e adolescência em Paris, onde aprendeu a arte do desenho litográfico. Em 1859, Agostini chega ao Brasil e, anos mais tarde, insere-se no debate político abolicionista. Fundou a Revista Illustrada em 1876 com o ideal de que o periódico servisse como uma publicação política, abolicionista e republicana, temas tratados de forma satírica e irônica. Leia Mais

Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível | Helois Helena Meirelles dos Santos

O livro Esther Pedreira de Mello, uma mulher (in)visível, é fruto da tese de doutorado em Educação da historiadora e pedagoga Heloisa Helena Meirelles dos Santos1 , intitulada Esther Pedreira de Mello: Múltiplas faces de uma mulher (in)visível (1880-1923), defendida em 2014. Publicada em 2017, a presente obra, aqui resenhada, tem como objetivo principal dar visibilidade às múltiplas faces de uma educadora que viveu no final do século XIX e início do XX, fruto de um silenciamento na História, em especial, na historiografia da educação brasileira.

Seu nome, como destacado no título, é Esther Pedreira de Mello. Nascida em Cachoeira, no sertão da Bahia, em 1880, filha de D. Clara Pedreira de Mello e do advogado Dr. Isaias Guedes de Mello, a biografada estudou na Escola Normal, no Rio de Janeiro, em 1897 e exerceu, posteriormente, diversas atividades sociais, tais como: inspetora de ensino (1903), Diretora da Escola Normal (1920), editora de periódicos destinados ao magistério, dentre outras. Dessa maneira, como a educadora pode diferenciar-se das mulheres de seu tempo? Como a personagem narrada teria conseguido ocupar um cargo como inspetora escolar e dirigir a Escola Normal, período em que adentrar a Instrução Pública não era cabido à uma mulher, “tidas como ardilosas, perigosas até, se não demonstrassem subserviência aos homens” (SANTOS, 2017, p. 27)? Leia Mais

Corpos em Aliança: Diálogos Interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade | Ana Claudia Martins e Elias Ferreira Veras

Nas últimas décadas, temos testemunhados constantes transformações sociais, históricas, políticas e culturais, que abalaram as estruturas cishetonormativas dos antigos padrões de gênero, raça e sexualidade. As lutas feministas, as conquistas LGBTQIA+, os movimentos trabalhistas e a descolonização dos países africanos, por exemplo, que perpassaram o século passado, desdobrando-se até os dias atuais, culminam em novas formas contemporâneas de fazer política e ciência.

A obra Corpos em Aliança: Diálogos Interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade, organizada por Elias Ferreira Veras e Ana Claudia Aymoré Martins, professor/a da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), aparece nesse contexto teórico-metodológico-político de transformações, sendo oriundo dos debates realizados durante o II Colóquio diálogos interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade: corpos em aliança, organizado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Gênero e Sexualidade (GEPHGS/CNPq), do Curso de História da UFAL – com apoio do CNPq -, em Maceió (AL), no mês de maio de 2019. Leia Mais

Karl Marx: uma biografia dialética | Angelo Segrillo

O livro de Angelo Segrillo (professor Livre Docente de história contemporânea, coordena o Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História da USP; Graduou-se pela Southwest Missouri State University (EUA), cursou mestrado no Instituto Pushkin de Moscou (Rússia) e doutorado na UFF; É especialista em história da Rússia e ex-URSS eurasiana) se soma a outros dois trabalhos, com escopo biográfico, publicados por pensadores brasileiros. O primeiro deles, “Marx – vida e obra” de Leandro Konder publicado no Rio de Janeiro pela editora Paz e Terra, nos anos 1970 (em 2015 foi publicado em nova edição pela Editora Expressão Popular) e o outro, “Marx Vida e Obra” do professor José Arthur Giannotti publicado em 2000 na coleção L&PM Pocket Filosofia. Porém, enquanto estas duas obras abordam com maior ênfase aspectos teóricos do pensador alemão, Segrillo produz um trabalho com foco na vida de Karl Marx.

‘Karl Marx: uma biografia dialética’ é dividido em 10 capítulos, além da introdução, da conclusão, de um anexo (que é a cronologia da vida de Marx) e da bibliografia. As seções do livro não são proporcionais, uma vez que cada uma delas analisa como Marx viveu, em cada cidade pela qual passou. Dessa forma, lugares em que o Mouro (apelido pelo qual Marx era conhecido em razão da cor de sua pele, mais escura que os seus amigos e familiares) permaneceu por menos tempo tiveram um espaço menor no livro, sendo o décimo capítulo, “Londres, agosto 1849-14 de março 1883”, o maior de todos. Leia Mais

Ser mãe é… A maternidade normalizada pelo discurso jornalístico | Ariane Carla Pereira

Qual a melhor temperatura para a água do banho? O que fazer se ele engasgar? Se eu comer abobrinha ele vai ter cólica? Essas, entre outras perguntas e respostas, a autora Ariane Pereira buscava em leituras de revistas especializadas, desde o momento em que descobriu sua gravidez, em 2006. Dos vários periódicos com que teve contato, destacou-se a revista Pais & Filhos, publicada pela editora Bloch, a qual dedicava-se mensalmente em publicações para quem espera e/ou tem um bebê.

Quatro anos mais tarde, os discursos da revista, que soavam como um manual da maternidade, foram dando espaço para o olhar analítico de uma jornalista e pesquisadora da área de comunicação. Assim, as inquietações da autora a levaram a examinar quatro décadas de publicações de Pais & Filhos (1968-2008), resultando em sua tese de doutorado em Comunicação e Cultura, defendida na UFRJ, em 2014. As mais de 450 edições do periódico foram foco de uma investigação que teve como principal objetivo analisar como os discursos jornalísticos são capazes de moldar a sociedade de uma determinada época, construindo práticas discursivas identitárias. Com efeito, a obra de Ariane Pereira pôs em debate os modos de objetivação/subjetivação da mulher, procurando pensar acerca de como o jornalismo intervém em práticas sociais e discursivas que condicionam a constituição da mulher-mãe na contemporaneidade. Identidades maternas que ora remetem à mãe capaz de resolver todos os problemas, movida pelo amor materno, incondicional; ora a uma mãe que busca a superação a todo instante, mas caso venha a fracassar, sua identidade é marcada pela culpa. Leia Mais

Trabalhadores e trabalhadoras rurais boias frias: exclusão/ imprensa e poder | Antonio Alvez Bezerra

Antonio Alves Bezerra é graduado em História pela UNESP, mestrado pela PUC/SP e doutorado em História pela mesma universidade. É professor do curso de graduação e pós-graduação em História pela UFAL, como também, coordenador do laboratório de Ensino de História e líder do Grupo de Estudos: História, Ensino de História e Docência.

A obra intitulada Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Boias Frias: exclusão, imprensa e poder é um estudo sobre o avanço do processo de modernização do setor sucroalcooleiro com o resultante aumento da exclusão social e econômica dos trabalhadores rurais. O prof. Rodrigo Costa escreve um breve prefácio sobre a obra e observa que ela “oferece uma visão sob um grupo social cuja presença se faz notar e sentir no cotidiano das grandes áreas rurais do país, os trabalhadores rurais boias-frias”, que também, estão presentes no agreste alagoano e no sertão pernambucano. Existência historicamente negada nos discursos do poder público, da mídia e do poder econômico. Leia Mais

O Pensamento de Pierre Lévy – comunicação e tecnologia | Guaracy Carlos da Silveira

Há algumas décadas, muito se tem refletido e discutido sobre a importância e as aplicabilidades da comunicação e sua simbiose com a tecnologia, principalmente em tempos de disseminação das redes de comunicação digital. Porém, o que vinha sendo debatido de forma parcimoniosa, numa tentativa de compreender de forma mais profunda, ganhou certa notoriedade nos últimos dias, visto a urgência de atender as demandas sociais.

Almejando reflexionar as reivindicações da sociedade sobre essa temática que se insere a obra: O Pensamento de Pierre Lévy – comunicação e tecnologia, de Guaracy Carlos da Silveira, publicada em 2019 pela Editora Appris. A presente composição, tem como escopo, apresentar a evolução das ideias de Pierre Lévy a uma recente geração de leitores que já nasceram imersos em um cenário de constantes mudanças tecnológicas, cotejando a pertinência do seu pensamento no contexto atual. Leia Mais

A construção da memória da Revolução Cubana: a legitimação do poder nas tribunas políticas e nos tribunais revolucionários | Giliard da Silva Prado

“Vá pra Cuba! Vá estudar História!”, assim que o Prof. Dr. Jaime de Almeida inicia seu Prefácio para a obra do historiador Giliard da Silva Prado, A construção da memória da Revolução Cubana: a legitimação do poder nas tribunas políticas e nos tribunais revolucionários. Tal comentário e o tema do trabalho de Prado são profundamente atuais no contexto político em que vivemos. Numa intensa e fixa polarização da esquerda e da direita políticas os brasileiros estão cada vez mais sujeitos a optarem por um desses parâmetros. Uma das funções da historiografia, nesse debate, é apresentar que necessitamos avaliar cuidadosamente os elementos históricos que estão a nossa frente, construindo nosso pensamento crítico. A Revolução Cubana é um caso emblemático nesse debate, primeiro por conta do que sugere o comentário de Almeida no início, muito utilizado pelos que se reconhecem à direita ao clamarem o imperativo a qualquer indivíduo identificado como de “esquerda”. Segundo, pelo fato de que alguns historiadores julgarem que não podemos olhar criticamente os feitos da Revolução e do regime socialista que se implementou posteriormente a 1961, defendendo a ferro e fogo o governo e fazendo vista grossa para seus erros e tensões. Leia Mais

Ney Matogrosso…para além do bustiê: performances da contraviolência na obra de Bandido (1976 – 1977) | Robson Pereira da Silva

As sensibilidades se apresentam, portanto, como operações imaginárias de sentido e de representação do mundo, que conseguem tornar presente uma ausência e produzir, pela força do pensamento, uma experiência sensível do acontecido. O sentimento faz perdurar a sensação e reproduz esta interação com a realidade. A força da imaginação, em sua capacidade tanto mimética como criativa, está presente no processo de tradução da experiência humana.

SANDRA JATAHY PESAVENTO.

Tão importante quanto analisar as letras dos compositores da Música Popular Brasileira (MPB) e contextualizá-las historicamente, se faz extremamente necessário não perder de vista o trabalho dos intérpretes que além de ressignificar as canções, ainda possuem um árduo trabalho criativo e corporal que corrobora para que essas canções ganhem sentidos que são intrínsecos as questões do seu próprio tempo. Leia Mais

Contra o juízo: Deleuze e os herdeiros de Spinoza – HEUSER (ARF)

HEUSER, E. M. D. (Org.). Contra o juízo: Deleuze e os herdeiros de Spinoza. Curitiba: Appris, 2019, 207p. Resenha de: MENEGHATTI, Douglas. Aufklärung – Revista de Filosofia, João Pessoa, v.7, n.2., p.131­-136, mai./­ago., 2020.

O livro é uma coletânea de textos escritos por 17 autores, organizados pela Prof. Ester Heuser, que se apresenta como um movimento de insurreição à doutrina do juízo. Para contrapor-se ao juízo são chamados à cena os filósofos que Deleuze nominou de “herdeiros de Spinoza”: Nietzsche, D. H. Lawrence, Kafka e Artaud. Conforme sugere o subtítulo presente na Apresentação, esses “herdeiros” podem ser considerados “cavaleiros do apocalipse ao revés”, cujo empreendimento é vencer o juízo, através de uma batalha libertadora que visa restabelecer o devir criativo, contrapondo o sistema transcendente do juízo à existência. Muitos são os tremores e temores daqueles que se opõem aos ‘castigos’ oriundos dos julgamentos sacralizados pela própria história, entretanto, como contrapartida, o livro deixa bem claro que o único caminho é resistir e lutar.

A menção ao apocalipse nos remete ao último livro do Novo Testamento da Bíblia cristã, mais especificamente a um texto de João de Patmos no qual é consumada a escatologia do juízo final da doutrina de salvação da cristandade. A profecia teleológica presente no apocalipse transforma o Cristo amoroso dos evangelhos em um Cristo vingativo, onde a justiça divina se torna preponderante sobre a misericórdia, por meio de um julgamento definitivo em que prevalece o ressentimento contra o pecado e todos os deleites de uma ‘vida profana’1. Para contrapor a visão determinista do apocalipse são apresentadas contundentes reflexões dos “cavaleiros do apocalipse ao revés”, numa perspectiva que leva o leitor desde a compreensão do livro de João de Patmos até a crítica ao mesmo, com uma visão de Deleuze-Lawrence.

Lawrence chega a duvidar que o evangelho de João e o Apocalipse tenham sido escritos pela mesma pessoa. Pois no Evangelho se encontra um Cristo afável e amoroso, enquanto no Apocalipse um Cristo rancoroso e vingativo (LAWRENCE, 1990, p. 2022).

Essa dicotomia levou Anna Lorenzoni et al, autores do capítulo: “Lawrence e Deleuze entre apocalipses: o julgamento final e o final do juízo”, a acentuar a conclusão de Lawrence: “João, o apocalíptico, trabalha imerso no terror e na destruição, fundamentando sua profecia em uma mescla infesta de ameaça e pânico; enquanto João, o evangelista, seguia de perto Jesus, trabalhando o amor humano e espiritual” (p. 117).

Teria então João de Patmos distorcido a doutrina de seu grande mestre Jesus de Nazaré? Para Lawrence, essa parece ser uma conclusão inevitável, uma vez que o “patmismo” se aproxima muito mais do antigo Judaísmo e do Paganismo do que dos Evangelhos.

Contra o juízo é um livro primoroso para quem deseja se iniciar na leitura da filosofia da imanência, haja vista que traz a tona, de forma original, uma perspectiva acerca dos herdeiros de Spinoza, numa conotação de combate ao transcendente e busca pela imanência que se revela nos encontros trazidos pelos autores do livro. No que tange a questão do juízo, ou “juízo de Deus”, como prefere Deleuze, o livro é relevante àqueles que desejam um estudo pormenorizado da questão, ou mesmo, adentrar na temática. Organizado em 4 partes, o trabalho começa com uma reflexão sobre a herança de Spinoza e uma análise da doutrina do julgamento na tragédia grega (Parte um: Juízo e Tragédia), passando por uma análise dos herdeiros de Spinoza e suas lutas contra o juízo nas partes dois e três (Os herdeiros de Spinoza e Contra o Juízo: a luta de Nietzsche, Lawrence, Kafka e Artaud, respectivamente) e finaliza com a apresentação de formas de contrapor a existência ao juízo (Parte quatro: Existências contra o Juízo) .

Presente na história desde a tragédia grega, o juízo se impõe como fundamento sagrado da praxis humana, uma vez que subjaz ontologicamente a qualquer ato. Para Deleuze, a doutrina do juízo: “nos condena a uma escravidão sem fim e anula qualquer processo liberatório” (DELEUZE, 1997, p. 195). A consciência de dívida como alerta constante que antecede a ação coloca todos os viventes sob a égide da doutrina de julgamento, ceifando o “processo liberatório” ao qual se refere Deleuze, os indivíduos se tornam prisioneiros de suas consciências, num processo em que a dívida é selada ontologicamente numa consciência pré-reflexiva.

Nesse processo, cuja ação é seguida pelo julgamento, transparece um estado constante de vigilância e culpa, que pode ser sintetizado pelas próprias palavras do Apocalipse: “Se não vigiares, virei a ti como um ladrão, e não saberás a que horas te surpreenderei”. (BÍBLIA, Ap, 3, 3).

A inspiração que fez germinar o livro Contra o juízo está no capítulo “Para dar um fim do juízo”, presente na obra Crítica e Clínica de Deleuze (1997). Nele o autor apresenta diligentemente os herdeiros de Spinoza que, justamente por terem padecido do juízo, conseguiram transpor o fardo do julgamento por meio de um combate altivo e corajoso que resultou na grandiosidade das obras destes pensadores. Ocorre que a oposição ao juízo é uma tarefa complexa, uma vez que está arraigada à psicologia do sacerdote: “a lógica do juízo se confunde com a psicologia do sacerdote como inventor da mais sombria organização: quero julgar, preciso julgar” (DELEUZE, 1997, p.144). O veredito do juízo atua como parâmetro subjacente a ação, proliferando uma realidade em que ser vítima, culpado, constrangido e pecador passa a fazer parte da “natureza” humana. A lógica do juízo, que estratifica a todos numa posição de submissão e expectativa por um polo transcende que possa servir de recompensa àqueles que se submetem a uma existência ignominiosa, não perfaz apenas o meio religioso e político em grande medida. Os próprios grandes sábios e pensadores, vulgo filósofos, se alimentaram um após o outro do socratismo e suas ramificações cristãs que ascenderam num polo transcendente em que conceitos petrificados serviram de âncora para a construção de ideais norteadores da existência. Situação que levou Nietzsche a conclusão de que “Em todos os tempos, os homens sábios fizeram o mesmo julgamento da vida: ela não vale nada” (GD/CI “O problema de Sócrates” § 1).

Vejamos, se contrapor ao juízo implica nada menos que se opor a uma ordem milenar que se arrasta desde o famoso julgamento de Orestes na antiga Grécia. Para Leandro Nunes, autor do capítulo “Spinoza: o mais feroz combatente às ordens transcendentes e ao juízo”, “O julgamento está intrincado nos modos de vida produzidos pelo homem ocidental, ao menos desde 458 a.C., quando Ésquilo apresenta sua tragédia Eumênides, em que monta o primeiro tribunal, tal como o conhecemos hoje” (p. 25). Na tragédia, Orestes é acusado de matricídio, no entanto, teria realizado este ato funesto para vingar a morte de seu pai, assassinado pela sua mãe. Como o julgamento termina empatado, a própria juíza Atena vota em prol do sentenciado, absolvendo-o.

No enredo, pesam a dor e a vingança de Orestes, a dor da perda do pai e a vingança reparativa contra a mãe, situação que constitui o que Deleuze (2005, p. 118) chamou de “processo de restituição de equilíbrio ou de compensação” renovado a cada desfecho que desencadeia novas reações de causa e efeito que tendem ao infinito.

O juízo de valor arraigado numa concepção moral da realidade nem sempre esteve presente nas tragédias gregas, porém com a construção de uma tirania da razão contra os instintos, protagonizada pela razão socrática apolínea, a espontaneidade e a embriaguez dionisíaca se esfacelaram frente a um novo poder esclarecedor da razão, que aos poucos se tornou a luz que ilumina e orienta o Olimpo – fazendo com que cada indivíduo se encolha frente ao comum, àquilo que a todos orienta e conduz ao caminho do ‘bem’2. Aliás, é praticamente inconcebível a construção de uma ética teleológica com vistas à felicidade, como pretendeu Sócrates e seus disseminadores, sem que o desregramento e a indeterminação dionisíaca sejam postas a prova. Para tanto, ascendeu a necessidade da individuação, para que cada qual possa ser julgado em seus próprios méritos e deméritos.

Associado às belas formas, Apolo é considerado o deus criador do Olimpo, através dele a existência torna-se suportável frente aos poderes titânicos da natureza.

Simbolizando as singularidades por meio do estado do sonho, Apolo traz a ordem ao caos. No entanto, no Nascimento da tragédia, Nietzsche apresentará o impulso apolínio como ilusório, uma vez que nega a multiplicidade da natureza por meio da afirmação do Principium individuationis, ou seja, transparece um estado de ofuscamento em que a realidade é representada a fim de se tornar suportável. Daí decorre a necessidade de emparelhamento dos impulsos antagônicos, de modo que o exagero e a fruição dionisíaca se descarregam sobre o equilíbrio e a moderação apolínea. Acerca desta relação, Heuser (p. 197), ao tratar da “Embriaguez e insônia” sintetiza: “[…] é a conjugação entre lucidez e a embriaguez, a união entre o apolíneo e o dionisíaco, a própria condição para que, no sentido deleuziano, o pensamento seja forçado a pensar – o que é sinônimo de criar, preocupação central da filosofia de Deleuze”.

Em Deleuze, toda a filosofia, arte e ciência se justificam na criação, que emerge da múltipla fluidez do devir. Nesse viés, não há espaço para o predomínio apolíneo ou para a exacerbação do espírito teórico em detrimento do dinamismo dionisíaco. Deleuze faz do filosofar uma atividade criativa ad infinitum, sem espaço para o SER oriundo da tradição platônica. Em sua construção filosófica, os universais não passam de criações que se escondem numa atemporalidade criada e, portanto, apolínea (ilusória). Seu pensamento rizomático é uma contundente negação do juízo: Oposto a uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos e posições, por correlações binárias entre estes pontos e relações biunívocas entre estas posições, o rizoma é feito de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindoa, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 43).

A partir desta conotação de esfacelamento dos polos opostos que se sustentam dialeticamente na metafísica, a filosofia deleuzeguattariana rompe as raízes do juízo e seus efeitos não são mais capazes de produzir causalidade no mundo da praxis, isto é, a negação do juízo implica no resgate da embriaguez dionisíaca que afasta o dever moral e abre margens para a inocência. Para Nietzsche: O fato de que ninguém mais é feito responsável, de que o modo de ser não possa ser remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade nem como sensorium nem como “espírito”, apenas isto é a grande libertação (grosse Befreiung) – somente com isso é restabelecida a inocência do viraser (Unschuld des Werdens) (GD/CI, Os quatro grandes erros, § 8).

Não havendo mais necessidade de ‘fazer culpados’ se apagam as relações de credor e devedor e, consequentemente, não faz mais sentido emitir julgamentos. Para Stefano Busellato, autor do Capítulo “Nietzsche além do limite de Deleuze: Das Gericht”: “Nietzsche desmascara e, com isso, põe fim ao juízo” (p. 67). Embora presente no mundo da vida em suas mais diversas manifestações, o juízo também é uma construção e, como tal, pode ser desterritorializado e reterritorializado. Disso depende o que Nietzsche mencionou como “grande libertação”, como caminho para o übermensch. Uma construção da realidade aquém do juízo, eis o que propõem os autores do livro em análise, obviamente não se trata da construção de um novo mundo e nem de uma utopia, talvez o seja, mas a efetividade da existência é tamanha que não caberia no espaço de um sonho.

Unificar as cores, os tamanhos, os sentimentos, as virtudes, enfim, igualar as diferenças é um dos fundamentos pelos quais o julgamento se mantém ativo entre os povos. Em prol de seres unívocos e orquestrados pelo dever operam muitas escolas, igrejas, tribunais e tantas outras espécies de instituições mantenedoras dos valores tradicionais que perpetuam o passado indiscriminadamente, como se a certeza do futuro dependesse da reprodução e vivacidade de um passado longínquo, mas ‘glamoroso e glorioso’. Hoje camuflado sobre a falácia da família tradicional, os juízos imperam e se alastram destruindo a diversidade e o poder criativo de novos indivíduos que insistem em resistir em meio a ‘ordem preestabelecida’. Impossível não lembrar a canção de Belchior (1976), que fez sucesso no mesmo ano com a contundente voz de Elis Regina, “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmo e vivemos como nossos pais”. Nosso passado por vezes nos condena a repetir e a se sujeitar aos antigos juízos, a vivermos como nossos pais, a repetir e novamente repetir os jargões que nos foram repassados, como se os constantes sonhos do passado nos impedissem de viver. O que, também Belchior, numa contunde crítica ao juízo, imortalizou na canção a premissa “Viver é melhor que sonhar”. Viver versus sonhar: um combate travado pela vida contra o juízo, onde se encontram em relação de tensão o impulso apolíneo em seu estado do sonho e o impulso dionisíaco em seu estado de embriaguez.

Ester Heuser, no Capítulo “Elogio a insônia contra o juízo” (p. 196197), expõe: Se o deus solar comanda o sonho e o tribunal, se ele nos encerra na forma orgânica e limitada, em nome da qual julgamos, Deleuze precisa do notívago Dioniso para dar um fim ao juízo. Mais propriamente da embriaguez dionisíaca que só pode se manifestar por meio do ‘sono sem sonho onde, no entanto, não se dorme, essa insônia que, todavia, arrasta o sonho até os confins da insônia’ (DELEUZE, 1997, p. 148).

O sono sem sonhos ao qual Deleuze se refere possibilita o afastamento dos tribunais, afinal o sonho continua a produzir reflexos do dia que insiste em governar e imperar imagens de domínio sobre a mente, então, mesmo durante a noite o efeito onírico não me afasta de meu ego, me tornando subserviente. A psicanálise ao dar significação aos sonhos, nos torna “outro”, um alguém passível de ser vislumbrado, decodificado e, porque não, aprisionado. Para Heuser (p. 195): “Se durmo e sonho, me aproximo da noite, Reterritorializo o sono e também a mim mesma, já não posso mais dizer ‘eu durmo’, nem mesmo dizer ‘eu’. Não sou eu nem outro, sou uma sonhante que não pode ‘verdadeiramente’ ser”. Romper o efeito onírico do sonho é ser capaz de um “autoesquecimento” derivado de uma negação do sujeito em sua individuação, esse esfacelamento do “eu” é o que Nietzsche chamou de efeito ditirâmbico oriundo da embriaguez extasiante de Dionísio. Para Gonzalo Aguirre, autor do capítulo: “Rumino, ergo cogito: para recuperar cada vez el juicio” (p. 110): “El Organismo passional proprio del Juicio nunca puede alcanzar satisfacción, y lo toma todo com esa insatisfacción persistente que, organizada por uma Gramática de la vigilia, avanza incluso sobre las potencias oníricas”.

Criar mecanismos contra o juízo, que se encontra arraigado até no subterrâneo dos sonhos é tarefa que mobilizou escritores como Kafka. Adriana Dias e Paulo Schneider, autores do capítulo: “Kafka: uma escrivida ‘para dar fim ao juízo’”, assim descrevem o estilo do escritor: “A sua escrita é, de certo modo, como um caco de vidro virado contra si, está virado contra qualquer vontade divina, contra a sua condição judaica, contra o caráter social e familiar, a profissão, a justiça, o casamento” (p. 83).

Este domínio que vai até as zonas mais remotas do universo também encontrou solo fértil no inconsciente, fato percebido por Deleuze e Guattari, que encontraram relações de poder e dominação na relação entre analista e paciente. Assim, o juízo opera soberano exercendo violência física e simbólica contra os corpos, corpos vislumbrados em sua estrutura orgânica, como um todo onde cada parte cumpre uma função em vista de uma finalidade maior. Para opor-se a esta estrutura consciente que visa solapar os limites do inusitado, Deleuze lançará mão, alavancado por Artaud, do conceito de Corpo sem Órgãos, noção explorada por Evânio Guerrezi no capítulo “O caso Artaud: o corpo sem órgãos para acabar com o julgamento de Deus”. Para Artaud, apresentado na segunda parte do livro por Cristiano Bedin da Costa, em “Ainda Artaud”, o corpo sem órgãos é condição para a superação do juízo: “Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade” (ARTAUD, 1983, p. 161162).

A questão do juízo psicanalítico é abordada, essencialmente, no capítulo “No teatro do capital o juízo psicanalítico encena um espetáculo trágico”, escrito por Ronaldo dos Santos. O objetivo apontado é situar a psicanálise como “um produto social e historicamente datado, que nasce, desenvolve-se e é posto a serviço do capital como uma das instâncias de elaboração do juízo” (p. 50). Nesse viés, Freud encontrou no elemento trágico de Édipo uma forma de perpetuação da culpa que faz com o que o indivíduo ressentido se curve mediante seu próprio inconsciente, numa sina onde a divida permanece viva e se alimenta da debilidade de um ser incapaz de sanar seus próprios limites: “O paciente deve deixar de culpar os outros pelos seus sofrimentos e imputar a si mesmo a responsabilidade por aquilo que se passa, o ressentimento tornase culpa” (p. 52).

O mea culpa, mea maxima culpa3 faz com que o indivíduo esteja numa condição de vulnerabilidade, a qual só pode ser superada mediante o arrependimento, seguido da penitência e, por fim, do perdão de Deus. A psicanálise segue um rito muito similar: “Em sua interpretação da realidade, a psicanálise aprisiona os indivíduos nos seus dilemas edípicos, distanciando-os dos determinantes históricos e sociais aos quais estão submetidos” (p. 53). Essa situação levará Deleuze à conclusão de que se trata de um sistema alimentado por uma dívida infinita, impedindo o aparecimento de qualquer novo modelo de existência, uma vez que se crê que a natureza humana dispõe de uma universalidade lógica que a rege em padrões e estereótipos que se repetem.

A transcendência dos valores encontra seu modus operandi no juízo, afinal para manter um sistema vertical em funcionamento é necessário algum tipo de pudor que leve os indivíduos a respeitar e manter a engrenagem do sistema. Para sustentar a falácia do juízo é comum a instituição de um telos que fornece sentido aos atos humanos, assim, aparecem o deleite da felicidade, do bem comum, da pátria, do paraíso e de tantos outros universais inventados e que ganham um caráter ontológico de atemporalidade. Enfim, Contra juízo é uma insurreição de resistência contra a transcendência.

Embora o livro não trace um paralelo filosófico direto entre pensadores que defendem uma filosofia transcendente e os herdeiros de Spinoza, o mesmo traz uma grande variedade de discussões sobre a questão da imanência num viés deleuziano. Dada a diversidade de autores e temáticas abordadas, o livro não traz uma reflexão aprofundada de algum autor em específico, fator que dificulta uma análise mais específica do livro.

No entanto, se apresenta como uma excelente ferramenta introdutória a alguns dos principais escritores do pensamento da imanência, além de instigar e resgatar uma contundente discussão sobre a nefasta influência do juízo à existência. Conforme salienta Ester Heuser no final da apresentação da obra: “Com resistência se responde ao que nega a existência”.

Referências

ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. Tradução Cláudio Willer. Porto Alegre: LP&M, 1983.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico Católico. São Paulo: Ave Maria, 1996.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad.: P. Pal Pelbart. São Paulo: 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. Sobre Nietzsche e a Imagem de Pensamento. In: A ilha deserta e outros textos. Trad.: T. Tadeu e S. Corazza. São Paulo: Editora Iluminuras, 2005.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, v. 1. Trad.: Ana L. de Oliveira, A. G. Neto e C. P. Costa. São Paulo: 34, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos ídolos – ou, como se filosofa com o martelo. Trad.: P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Notas

1 ‘Para Luiz Palauro, autor do capítulo “Malditos mestres subversivos: vinde estragar nossos sonhos”: “O Cristo terreno era doce e aristocrata (de alma). O ‘filho do homem’ é expressão do mais alto grau de ressentimento das ralés, tudo nele é vingança, destruição e impotência remoída, o ódio fermentado” (p. 184).

2 A respeito da questão dos impulsos apolíneo e dionisíaco, bem como acerca da questão do elemento trágico em Nietzsche e Deleuze, Contra o Juízo dispõe do capítulo: “Tragédia grega e a doutrina do julgamento”. Escrito por Ana Acom.

3 Na tradição do catolicismo o “ato de contrição” é professado durante as celebrações da missa e é o simbolismo máximo da admissão dos pecados e da abertura do pecador para o perdão divino. Na íntegra: “Confiteor Deo omnipotenti, beatae Mariae semper Virgini, beato Michaeli Archangelo, beato Joanni Baptistae, sanctis Apostolis Petro et Paulo, omnibus Sanctis, et tibi pater: quia peccavi nimis cogitatione verbo, et opere: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.”  * Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus Toledo. Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico EBTT, do Instituto Federal do Paraná. Email: [email protected]

Douglas Meneghatti – Instituto Federal do Paraná, Brasil

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História das Ideias do Ensino da Dança – VIEIRA (Urdimento)

VIEIRA M S História das ideias do ensino da dança TOPO

VIEIRA M S História das ideias do ensino da dançaVIEIRA, Marcilio de Souza. História das Ideias do Ensino da Dança na Educação Brasileira. Editora Appris, 2019. 183p. Resenha de: NASCIMENTO, Diego Ebling do; RICHTER, Sandra Regina Simonis.  Urdimento, Florianópolis, v.1, n.37, p. 456-462, mar/abr 2020.

No livro História das ideias do ensino da dança na educação brasileira, o professor, pesquisador e artista da dança Marcilio de Souza Vieira apresenta o resultado das investigações realizadas em seu pós-doutoramento na Universidade Federal da Paraíba. Na obra, o autor apresenta conteúdos de documentos – Leis, Resoluções, Minutas, Diretrizes, Parâmetros e Base Curriculares – com o objetivo de realizar uma reflexão crítica do pensamento pedagógico brasileiro a partir do percurso histórico da frágil presença da Dança na educação brasileira.

Como afirma o autor, ao destacar sua opção metodológica pela “nova história” como contraposição às grandes narrativas ou teorias de cunho positivista, há que “desfazer a mitologia do olhar isento e indicar o sentido e a intenção do olhar do estudioso em/da Dança” (Vieira, 2019, p. 20). Para tanto, propõe uma obra em três atos – As Bases da Arte, Os Sistemas e As Problemáticas: A crise revelada – compostos por 14 cenas que permitem situar distintas concepções de arte e políticas para o ensino da dança no pensamento educacional brasileiro, desde a Educação Infantil até o Ensino Superior, incluindo os Cursos Técnicos de Dança. As cenas propostas são pautadas por uma revisão analítica sustentada na perspectiva da historiografia da dança moderna brasileira e ocidental.

A relevância da investigação realizada por Vieira em torno da presença – ou não – da dança na educação brasileira está em contribuir para compreendermos com Jorge Larossa (2006) que a produção, legitimação e controle de determinados modos de pensar, acessar e constituir conhecimentos refletem, indistintamente, na formulação de políticas educacionais que favorecem certos modos do corpo linguageiro aprender a estar sendo no e com o mundo. Em outros termos, implica compreender que a legitimação e o controle educacional de distintas experiências de linguagem produzem diferença na corporalidade, na sensibilidade, nas possibilidades singulares de imaginar e sonhar, de perceber e agir na pluralidade mundana.

Nesta compreensão, em sua revisão analítica do ensino das artes no Brasil, sem a intenção de esgotar a amplitude do tema, o autor discorre sobre o lugar da dança nas instituições de ensino e demonstra que ela sempre esteve à margem nas políticas educacionais em nosso país até a implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) n. 9.394/96, ou seja, apenas há pouco mais de duas décadas. Essa conquista, destaca Vieira, decorre da constituição de associações de arte no Brasil e dos movimentos em prol das artes na educação que emergiram na década de 1970.

Tais movimentos exerceram relevante força política para garantir o debate em torno da inserção do componente curricular “educação artística” nas escolas e na formação de professores, sendo os propulsores para a inclusão das diferentes dimensões das linguagens da arte nas LDBEN de 1971 (Lei n. 5692/71) e de 1996 (Lei n.

9394/96). Porém, se a formação em dança no ensino superior e técnico é garantida na LDBEN de 1971, é apenas com a LDBEN de 1996 que será afirmada como ensino obrigatório na educação básica brasileira. Mesmo assim, destaca o autor, não há hoje garantias satisfatórias para a presença da linguagem da dança nas escolas de educação básica e na formação superior.

Não há garantias para a presença da dança nos currículos escolares e na formação de professores de artes pois, de acordo com o autor, hoje, o ensino de Artes na Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017) “é relegado à subcomponente e à unidade temática, favorecendo uma aprendizagem polivalente da área e negando a produção de conhecimento de cada uma das linguagens que o aluno da educação básica tem direito” (Vieira, 2019, p. 135). O autor destaca que a implementação da BNCC, na especificidade do ensino das Artes/Dança, consiste em uma retroação que empobrece os currículos escolares e, consequentemente os de formação de professores, por equiparar-se “aos problemas não muito diferentes daqueles associados ao passado” (Vieira, 2019, p. 133). Ou seja, a histórica instabilidade do acesso à Dança na escola é dada pelas opções políticas voltadas para a formação específica de profissionais habilitados a exercerem o ensino das diferentes dimensões linguageiras da arte. As artes na escola continuam sendo um tenso campo de disputa.

Nesse sentido, a legitimidade da temática emerge do momento histórico da BNCC (Brasil, 2017) se encontrar em fase de implementação e o próprio contexto escolar se constituir como um espaço eficaz de resistência à permanência das artes nos currículos da Educação Básica. Resistência que aponta a relevância educacional de manter a insistência em fomentar uma educação estética e poética que potencialize a vida e os modos de existir.

A ausência da dança em diversos registros de diferentes períodos da história da educação brasileira faz com que até a “Cena 5” do livro o autor se debruce na discussão do encontro entre artes e educação escolar focalizando o ensino das artes do desenho e da música. Tal ênfase indica que o ensino da Dança ocorria prioritariamente em espaços não escolarizados, porém não explora como este ensino acontecia. A Dança, por inúmeras vezes, é tratada apenas como um “assunto” que de quando em quando é resgatado.

Neste sentido, é um livro que anuncia, pelo seu título, a especificidade da dança na educação, mas que muitas vezes não fala sobre ela, nela ou dela. A constatação decorre de um percurso histórico que demonstra, no resgate realizado pelo autor, a resistência à presença da dança nas políticas educacionais do país e, consequentemente, na escola e na formação de professores.

No “Terceiro Ato”, voltado para “As problemáticas: a crise revelada”, há uma tentativa de focalizar a Dança a partir da interrogação pelo “lugar reservado às Artes/ Dança na Base Nacional Comum Curricular” (Vieira, 2019, p. 129), porém, mais uma vez, muitos parágrafos são dedicados a trazer conceitos e discussões que evitam ou driblam a proposta da “História das Ideias do Ensino da Dança na Educação Brasileira” ao priorizar a diluição da área Arte – e suas consequências na formação de professores de Arte – com o campo da Dança.

Ainda neste Terceiro Ato, Vieira (2019) aponta diferentes políticas educacionais implementadas nos últimos anos para a garantia da Dança nos diferentes níveis de ensino: Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior. No entanto, esquece o Ensino Técnico. O que é bastante intrigante, pois em momentos políticos como o nosso discutir a formação técnica nos parece extremamente relevante.

Será que o Ensino Técnico em Dança também não estará em crise? Outro apontamento que consideramos importante sublinhar nesta resenha é a desconsideração pelos estudos contemporâneos em Arte e Educação os quais vêm, cada vez mais, legitimando modos de fazer/pensar/viver dos povos originários do Brasil. O que aqui questionamos é a manutenção da ampla tendência da abordagem eurocêntrica na história do encontro político entre artes e educação no Brasil – desencadeado pelos Jesuítas e reduzido à cognição pelo ensino pragmático de listagens de conteúdos formulados como “direitos e objetivos de aprendizagem” na terceira versão da BNCC (Brasil, 2017). Ao seguir tal tendência, o autor expõe não apenas a intencionalidade política no apagamento da forte presença popular das matrizes culturais africanas e indígenas como a tensão conceitual gerada pela opção educacional de conceber arte como cognição passível de ser formulada em prévios conhecimentos ou “objetivos de aprendizagem” a serem ensinados.

A tensão é dada pelo esquecimento de que “se pensa sempre com o corpo” (Zumthor, 2007, p. 77), ou seja, pela desconsideração conceitual de que, primordialmente, “arte não faz sentido, faz sentir” (Nancy, 2016, p. 18). Talvez, essa tensão ou imprecisão nas concepções de arte no processo formativo de crianças, jovens e adultos, antes de ser limitadora, possa impulsionar outras interrogações que permitam expor o esquecimento pedagógico de que o enigma da força poética da arte/dança emerge da impossibilidade de apreender a transfiguração do sensível pois, como já disse Merleau-Ponty (1999), esta emerge de uma intencionalidade do corpo que independe de “representações”. Aqui, o paradoxo da ludicidade e lucidez que traduz os perigos da linguagem (Richter, 2016).

A publicação do livro de Vieira contribui para fomentar o debate em torno das memórias de dança no meio acadêmico e artístico ao sistematizar documentos orientadores do ensino da arte. Sua escrita cria condições para que possamos compreender, de modo amplo, a constituição histórica das políticas públicas para a área da Arte e da Educação, na qual a dança ocupa um lugar periférico no texto, evidenciando que necessita encontrar o seu lugar na educação brasileira.

Por fim, a importância da análise histórica realizada por Vieira na especificidade da presença da arte/dança no país está em expor o tenso percurso da disputa política pelos modos como educacionalmente definimos quais saberes optamos em apresentar aos novos que chegam no mundo e com qual atitude pedagógica nos posicionamos frente a eles. Nesse sentido, a publicação contribui para ampliar uma bibliografia tão escassa quanto relevante para o inadiável debate em torno do encontro entre artes e educação.

O livro é recomendado para estudantes, professores, pesquisadores e artistas que têm por objetivo adentrar nos paradoxos dos percursos históricos do ensino da Arte no país. O texto é acessível ao possibilitar a todos e todas, independente de sua área de atuação, realizar uma instigante leitura sobre as políticas educacionais brasileiras e suas relações com o ensino da arte/dança na escola e no ensino superior.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Base Nacional Comum Curricular. Secretaria de Educação Básica e Conselho Nacional de Educação. Brasília: SEE/CNE, 2017.

LARROSA, Jorge. Uma lengua para la conversación. In: MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten (Eds.). Mensajes e-ducativos desde tierra de nadie. Traducción de María Rosich. Barcelona: Laertes, 2006, p. 45-56.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

NANCY, Jean-Luc. Demanda. Literatura e filosofia. Florianópolis: Ed. UFSC; Chapecó: Argos, 2016.

RICHTER, Sandra R.S. Educação, arte e infância: tensões filosóficas em torno do fenômeno poético. Revista Crítica Educativa, v. 2, n. 2, 2016, p. 90-106, Dossiê: Infância e Educação Infantil: abordagens e práticas.

VIEIRA, Marcilio de Souza. História das Ideias do Ensino da Dança na Educação Brasileira. Editora Appris, 2019.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

Diego Ebling do Nascimento – Doutorando em Educação na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC); professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT). [email protected].

Sandra Regina Simonis Richter – Doutora em Educação, professora e pesquisadora da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC; Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Educação da UNISC, líder do grupo de pesquisa Estudos Poéticos: Educação e Linguagem UNISC/CNPq. [email protected].

Ney Matogrosso… para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976-1977) | Robson Pereira da Silva

O segredo não é somente o estado de uma coisa que escapa ou se revela em um saber. Ele designa um jogo entre atores. Ele circunscreve o terreno de relações estratégicas entre quem o procura e quem o esconde, ou entre quem suspostamente o conhece e quem supostamente o ignora (o “vulgar”).”

Michel de Certeau

Glauber Rocha, em citação no livro Impressões de Viagens, de Heloísa Buarque de Hollanda, argumenta que as produções artísticas de Ney Matogrosso, Gal Costa e Dias Gomes em 1970, não passavam de “texto da decadência da colônia do Rio de Janeiro”2, por conta do apelo ao espetáculo midiático e a performance erótica para dialogar com o público. O cineasta é incisivo na diminuição da relevância desses personagens históricos para a circularidade e reflexão do cenário político da época. No entanto, a fala direta e agressiva do diretor não perpassa apenas ao seu nicho individual de concepção estética, o referido pronunciamento dialoga ao menos com duas memórias históricas3; o conceito de Indústria Cultural da escola de Frankfurt e uma determinada historiografia da música brasileira, que valoriza os compositores – escrita – e desvaloriza a importância dos performers na vida política da segunda metade da década 70; interpretação que ajudou na consolidação do imaginário de “vazio cultural”. Leia Mais

O jardineiro de Napoleão. Alexander von Humboldt e as imagens de um Brasil, América (sécs. XVIII e XIX) | Thiago Costa e Adriadne Marinho

Não resta dúvida de que o naturalista alemão Alexander von Humboldt representa um marco fundamental na história das ciências no século XIX. Lido e adorado por quase todos os homens cultos de sua época, Humboldt serviu de inspiração intelectual para ninguém mais ninguém menos que Charles Darwin e despertou os ciúmes de um megalômano Napoleão Bonaparte. Foi comparado à Aristóteles, Arquimedes, Copérnico e Newton, e considerado um “segundo Colombo”, o “redescobridor da América”. De acordo com Laura Dassow Walls, a popularidade do pesquisador alemão era tão generalizada no interior dos Estados Unidos em meados do oitocentos que acabou por consolidar o que a pesquisadora chamou de “fenômeno Humboldt”. Leia Mais

Gritam os muros: pichações e ditadura civil-militar no Brasil | Thiago Nunes Soares

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Lançado em 2018, pela Editora Appris, o livro Gritam os muros: pichações e ditadura civil-militar no Brasil, do historiador Thiago Nunes Soares, se propõe a apresentar as pichações produzidas nesse período como um dos instrumentos de resistência utilizados pelos militantes das esquerdas no país. Temática ainda pouco discutida dentro da militância nos anos de chumbo, as pichações surgiram como um canal de mobilização e arregimentação política, sendo uma das formas de atuação da esquerda jovem do país na luta pela democracia e direito ao voto.  A obra de Soares (2018) traz uma importante contribuição às historiografias local e nacional sobre o tema e o período.

O autor utilizou uma vasta documentação para desenvolver sua análise. Trabalhou com dossiês dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS- PE), com periódicos, tanto da grande imprensa quanto dos veículos alternativos, além de entrevistas de história oral. Nesse sentido, as memórias foram analisadas como um mosaico para a composição da sua pesquisa, cruzando-as com outras fontes, problematizando-as e levando em consideração as suas especificidades. Assim, foi possível tecer um panorama elucidativo acerca das experiências políticas dos autores e autoras de pichações e dos embates em torno das lutas em prol das liberdades democráticas.  Dessa forma, Soares (2018) analisa vestígios produzidos de forma clandestina nos muros da cidade, de 1979 a 1985, em um momento em que os seus autores eram alvo de intensa vigilância e repressão policial. Leia Mais

A invenção do recreio escolar: uma história da escolarização no estado do Paraná (1901-1924) – MEURER (RBHE)

MEURER, S. S.. A invenção do recreio escolar: uma história da escolarização no estado do Paraná (1901-1924). Curitiba: Appris, 2018. Resenha de: MORAES, L. C. L., GOMES, L. do C., & MORAES E SILVA, M. O lugar da educação das sensibilidades e dos sentidos – apontamentos sobre o livro A invenção do recreio escolar: uma história de escolarização no estado do Paraná (1901-1924). Revista Brasileira de História da Educação, 19. 2019.

A obra A invenção do recreio escolar: uma história de escolarização no estado do Paraná (1901-1924) foi publicada no ano de 2018 pela editora Appris. Escrita pelo professor Dr. Sidmar dos Santos Meurer, tal obra trata-se da pesquisa realizada por ele durante o mestrado, desenvolvido na linha de história e historiografia da educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). O autor apresenta aos leitores um livro que tem o propósito de colocar os recreios escolares no Paraná, no início do século XX, como objeto de investigação histórica. Para alcançar tal intento, a obra divide-se em apresentação, prefácio, introdução, duas partes principais compostas de três subtítulos cada, tópico conclusivo e, ao fim, um capítulo dedicado à apresentação das fontes primárias da pesquisa.

Sidmar Meurer graduou-se em educação física pela UFPR em 2005, obteve título de mestre em Educação pela mesma universidade em 2008 e defendeu seu doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2019. O autor é professor assistente no setor de educação da UFPR, atuando na formação de professores e no âmbito da pesquisa, no qual faz investigações sobre escolarização, história da educação, história da escolarização, história da educação dos sentidos e das sensibilidades e história da educação do corpo.

A apresentação, registrada pelo próprio autor, complementa-se pelo prefácio, escrito pelo professor Dr. Marcus Aurélio Taborda de Oliveira, o qual foi orientador de Sidmar Meurer durante a graduação, o mestrado e o doutorado e atualmente é docente titular do departamento de ciências aplicadas à educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da UFMG. No prefácio, Taborda de Oliveira reconhece as contribuições e qualidades do trabalho realizado pelo seu orientando, indicando a

importância da obra para o campo da história da educação. Cabe destacar que as ponderações levantadas, tanto na apresentação quanto no prefácio, trazem à tona a pretensão da obra como um todo, que é fazer com que o leitor reflita sobre o fenômeno social da escolarização, mais especificamente sobre a história do recreio no Paraná na temporalidade de 1901 a 1924.

A introdução traz como premissa o olhar e o cuidado do autor ao manusear as documentações das instituições de ensino. Esse tipo de procedimento possibilitou a construção da narrativa de sua investigação, a qual, conforme enfatizado pela própria autoria, apresenta preocupações com as práticas e ações típicas da ambiência escolar, que ainda não eram uma problemática para os estudos de uma historiografia mais tradicional da educação. Com o intuito de embasar o entendimento do leitor sobre o trato com as fontes, Meurer explora trechos dos relatórios de docentes, apresentando inúmeras interpretações e potencialidades desses exemplares. O autor potencializa tais fontes em diversos momentos, manifestando as peculiaridades do período, da escola e dos comportamentos, o que acaba por auxiliar a responder e/ou alimentar um debate sobre os diversos elementos que contribuíram para a consolidação dos recreios nas escolas paranaenses no início do século XX.

A parte I, intitulada ‘Justificativas pedagógicas para os recreios escolares; expectativas sociais para a escola primária’, inicia-se com o subtítulo ‘Forjar a ‘alma’, descansar o ‘espírito’, fortalecer o corpo: a educação como empreendimento moral, intelectual e físico’, que trata das pretensões tanto dos professores quanto dos políticos para com as implementações e reformas do ensino primário, além de enfatizar como surgem os denominados ‘recreios’ e/ou ‘intervalos’. Para realizar tal feito, o autor utilizou-se de relatórios de docentes, disponíveis no Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná/DEAP-PR, provenientes de diversos lugares do Paraná, deixando explícitas as metamorfoses das ideias sobre o entendimento do que e de como seria a escola primária em um período de republicanização, a qual deveria prezar por uma educação do físico, do intelecto e da moral e cívica, surgindo, então, a intenção de desenvolvimento integral do aluno.

A autoria aponta que nesse período existia certa confusão de significados e propostas em relação aos recreios. Afinal, eram atribuídos tempos distintos em cada instituição e o espaço (jardins, salas de aulas, quarto, pátio) e os exercícios implementados (gymnastica, respiração, canto, declamação) também variavam. Na sequência de seus argumentos, o autor indica que o tempo do recreio foi adequando-se às demandas que o ensino primário em reforma procurava, ou seja, a um projeto de escolarização que proporcionasse conhecimentos úteis a uma vida ativa e prática.

Já o segundo subtítulo, intitulado ‘A escola primária como instituição cardeal da sociedade paranaense: quando um projeto de escolarização pretende ser motor de mudança social’, baseia-se em dois conjuntos de fonte: os relatórios de autoridades do ensino paranaense e a revista A escola. A autoria apoiou-se em tais materiais para contextualizar o período de reforma do ensino primário, que deveria ser alicerçado de acordo com a tríade da formação física, intelectual e moral dos alunos. A preocupação apresentada nos documentos sobre a educação gratuita e universal, bem como a formação de indivíduos conscientes, aborda tópicos relevantes para se refletir sobre o processo de organização escolar, a relação entre educação e política e as questões relacionadas ao papel utilitário da educação.

Para esmiuçar esse amplo repertório de colocações, Meurer apresenta algumas referências na área da história da educação, destacando as contribuições de Marta Carvalho, numa perspectiva interpretativa de documentos das instituições de ensino, atribuindo à escola a preparação de mão de obra, e de Mirian Jorge Warde, que chama atenção para a ampliação do sentido e a função dada à escola, indo ao encontro de um entendimento de que a ação reguladora da instituição está mais associada à construção de hábitos, desenvolvimento de comportamentos e sensibilidades humanas. Diante dessas duas concepções, o autor apresenta fontes que favorecem a posição levantada por Mirian Jorge Warde.

O autor menciona que, para explicitar sua percepção, foram acionados os trabalhos de Jean Hérbrard, que tratam da escola francesa, e conceitos de ‘ferramentas mentais’, de Lucian Febvre. Com base em tais concepções, Meurer indica que a escola do período de republicanização desejava produzir maneiras de sociabilidades e construir conjuntos de sensibilidades e espírito prático que poderiam levar a sociedade a um suposto progresso. Os recreios surgiram como parte desse projeto de construção de sensibilidades, vistos como uma prática útil e necessária.

Em ‘Os recreios escolares e a ‘marcha do ensino’: por uma escola ‘moderna’, ‘útil’ e ‘atraente’’, última fração da primeira parte da obra, sobressaem-se resquícios do material empírico utilizado, que contém, além dos citados anteriormente, artigos do jornal A República, trecho da revista Pátria e Lar e um texto do médico José Maria de Paula. Contudo, o autor lembra que a escola era alvo de críticas oriundas dos segmentos médicos, pedagógicos e políticos, sobretudo por apresentar um ensino marcado pela memorização de conteúdo sem praticidade. A desaprovação mais eminente, constatada por Sidmar Meurer, relaciona-se à falta de cientificidade no ensino. Essa discussão repercutiu na racionalização de uma rotina escolar mais estruturada da qual o recreio fazia parte, contando, nesse momento, com o apoio de pressupostos pedagógicos para ser legitimado.

Todavia, o autor, analisando os discursos médico e pedagógico, indica que os médicos culpabilizam os professores pela pouca aproximação do ensino com aspectos científicos. Muitos dos relatórios traziam breves declarações que englobavam nomes influentes no âmbito pedagógico, como Spencer, Pestalozzi, Froebel, Rousseau e Locke, demonstrando pelo menos uma ligação e/ou uma tentativa com tópicos mais científicos para serem abordados na escola, como psicologia, ciências naturais e higiene. Meurer reconhece ainda que os documentos analisados apontavam que o público infantil apresentava especificidades que deveriam ser levadas em consideração no processo de ensino na escola primária paranaense.

A segunda parte do livro, intitulada ‘Dispositivos de institucionalização e normatização dos recreios escolares. Tempos, espaços e modos de proceder’, apresenta o quarto subtítulo, denominado ‘Da conformação dos espaços, um lugar para recrear – os pátios de recreio’. Para adentrar os espaços que se constituíram durante o período, o autor retoma as noções e os significados de recreios e/ou das formas de se recrear que foram encontradas na pesquisa. Tais significações apresentam uma ligação com a modernização do ensino, porém, sem pertencer ao currículo escolar formal, utiliza-se de um momento pedagógico, constituído por atividades de canto, exercícios de ginástica e desenhos. Meurer chama atenção para que se entenda o processo de mudança nos recreios como um movimento não linear. Além disso, o autor dá sentido de institucionalização ao recreio, pois, com o passar do tempo, aquele se diferencia de outros componentes escolares.

Entretanto, a disponibilidade de recursos para se investir em um espaço para os recreios era escassa e o movimento de instalações de grupos escolares, com o intuito de modernizar o ensino paranaense, acabou por ganhar força, surgindo como novo modelo para o processo de organização de um sistema público de educação. A Escola Xavier da Silva, primeiro grupo escolar do Estado do Paraná, teve relatórios de seus docentes frequentemente analisados pelo autor, visto que a instituição buscou realizar uma ampla reforma educacional, revelando preocupação com espaços específicos para os recreios, o que a tornou um exemplo a ser seguido. Foi somente em 1915, com o Código de Ensino, que ocorreu a normatização do recreio com seu respectivo espaço, recuado para as laterais e para os fundos das estruturas, que deveria seguir parâmetros de higiene e ser arborizado e composto de flores. Por fim, o autor demarca que os fatores e desejos que compunham esse espaço foram racionalizados, priorizando-se os aspectos higiênicos e estéticos, vistos como potencializadores da percepção dos alunos, que dispunham de esperada espontaneidade e intuição imprescindíveis para a modernização do ensino.

O quinto tópico, intitulado ‘Da contagem e demarcação do tempo de recrear – a passagem dos ‘intervalos’ ao ‘recreio’’, trata especificamente da delimitação temporal para os recreios. Uma fonte bastante explorada pela autoria, nessa parte do livro, foi o Código de Ensino do Estado do Paraná de 1915. Documento este que apresentava inúmeros elementos para se pensar a organização escolar, desde o controle temporal das atividades até as determinações de séries graduais do ensino. Mesmo com todos os pontos colocados por essas normatizações, que tinham o propósito de dar caráter mais educativo e disciplinar às escolas, poucas eram aplicáveis às outras instituições escolares. Com todo esse processo de mudanças e anseios por ‘inovações’, conforme enfatiza o autor, tentou-se, no modus operandi da época, constituir um conjunto de sensibilidades em relação ao tempo (otimizado) na escola a partir do pleito legal.

Por fim, no último subtítulo do livro, denominado ‘Modos de proceder na escola – os recreios como rotina escolar’, analisou-se o recreio sob a perspectiva dos modos de comportamento e das funções dos envolvidos nesse determinado tempo e espaço que salvaguardavam sua distinção perante os demais componentes curriculares. Ao se entender que todo espaço com a aglomeração de pessoas denominava-se ‘recreio’, passou-se a prescrever ações que diferenciavam os ‘recreios’ dos períodos de entrada e saída das aulas. As novas significações produzidas em relação a esses intervalos visavam atender às demandas fisiológicas e psicológicas dos alunos, além de enfatizar uma noção de recompensa pelo desempenho obtido nas atividades escolares. Abria-se também uma lacuna para que se utilizasse essa gratificação como castigo, apoiando-se na privação deste quando fosse necessária. Posteriormente, o recreio passou a tratar-se também de um espaço-tempo apropriado para a realização da merenda/alimentação.

Ao retomar alguns trechos dos relatórios, o autor enfatiza que os recreios passaram a conter uma disciplina diferenciada da exigida em sala de aula, consistindo em um ordenamento não silencioso, permitindo brincadeiras, atividades espontâneas e a concentração de todas as classes em um único espaço e tempo, sob a fiscalização dos agentes das instituições. Porém, conforme constata o autor, nada tem a ver com a disposição e o desenvolvimento da liberdade e autonomia do aluno, visto que todos os elementos constitutivos do recreio se unem para a formação de sensibilidades e na racionalização de um sistema que permite a aquisição de um ethos almejado.

Por último, em ‘Palavras finais – Pensar a escola e sua organização a partir de seus processos e práticas’, o autor faz ponderações sobre a sua pesquisa, apresentando reflexões para a área da educação. Diante disso, suas considerações finais apresentam aportes teóricos de filósofos como Michel Foucault e Theodor Adorno e dos historiadores Edward Thompson e Cristopher Hill. Um eixo importante do livro, que é válido mencionar, reporta-se à diversidade dos materiais empíricos, utilizados na construção da narrativa do livro, fazendo com que as fontes guiassem as análises que foram distribuídas nas partes e que conseguiam embasar ao leitor o contexto relacionado à temática principal, além de responder às problemáticas evocadas antes de assinalar os saberes e sentidos mobilizados pela oferta dos recreios num projeto de escolarização paranaense.

A título de apontamentos finais, observa-se que a leitura da obra convida o leitor a repensar no desenvolvimento dos recreios no Paraná, além de possibilitar aos interessados na história da educação e das sensibilidades que tenham um material qualificado para embasar novos estudos, visto que o livro é amparado numa abordagem historiográfica que facilita a realização de futuros trabalhos com tais características, constituindo-se, portanto, em uma leitura atrativa para pesquisadores interessados na temática da escolarização e dos diversos processos de educação do corpo.

Referências

Meurer, S. S. (2018). A invenção do recreio escolar: uma história de escolarização no estado do Paraná (1901-1924). Curitiba, PR: Appris.

Letícia Cristina Lima Moraes – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

Leonardo do Couto Gomes – mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

Marcelo Moraes e Silva – professor doutor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

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Lacan para historiadores | Danieli Machado Bezerra

Se buscássemos um tema constantemente presente na trajetória de pesquisa da historiadora Danieli Bezerra, certamente a psicanálise seria logo destacada. Sua tese de doutoramento, publicada pela editora Appris em 2018 com o título de Lacan para historiadores, aprofunda seu interesse debruçando-se nas teorias de Jacques Lacan (1901 – 1981), e nos leva a um diálogo interdisciplinar entre história e psicanálise2. Esta desafiadora obra vem enriquecer estudos de teoria da história, e será aqui apresentada ao leitor. Leia Mais

Argumentação no ensino de ciências: tendências, práticas e  metodologia de análise – VIEIRA; NASCIMENTO (EPEC)

VIEIRA, Rodrigo Drumond; NASCIMENTO, Silvania Sousa do. Argumentação no ensino de ciências: tendências, práticas e  metodologia de análise. Curitiba: Appris, 2013. Resenha de: BERNADO, José Roberto da Rocha. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 277-280, jan./abr., 2015.

Nas duas últimas décadas, as pesquisas em Educação em Ciências vêm recomendando atenção às práticas argumentativas em sala de aula. Nesse sentido, Rodrigo Drumond Vieira e Silvania Sousa do Nascimento apresentam em sua obra Argumentação no ensino de ciências: tendências, práticas e metodologia de análise um texto de leitura obrigatória tanto para pesquisadores interessados em desen­volver trabalhos sobre o tema quanto para estudantes de graduação e professores da educação básica.

Em diálogo com referências consagradas e diversificadas, os autores de­senvolvem um texto de fácil compreensão, que traz uma boa discussão teórica, ao mesmo tempo em que apresenta exemplos de análises de situações argumentativas de salas de aula. As análises apresentadas se baseiam em uma metodologia

bem-fundamentada proposta pelos autores e discutida no texto.

O livro é dividido em oito capítulos. O primeiro é dedicado à apresen­tação do conceito de argumentação. Apoiados, principalmente, nas contribuições de Michael Billig, os autores procuram situar o leitor em relação às especificida­des que envolvem o processo argumentativo, sem deixar de dialogar com outros autores de diferentes nacionalidades. O capítulo avança em relação à discussão sobre “O que é uma argumentação?” identificando e destacando a importância do conceito de orientação discursiva, desenvolvendo uma explicação elucidativa a respeito dos aspectos que caracterizam as orientações discursivas explicativas e as diferenciam das argumentativas.

No segundo capítulo, os autores se dedicam a discutir “como identificar e caracterizar argumentações em sala de aula”. Mais uma vez, as ideias de Michael Billig, articuladas com outras referências que também embasam o primeiro capí­tulo, subsidiam o desenrolar do texto, sobretudo os conceitos de contraposição de ideias e de justificações, para fundamentar a proposição de dois importantes marcadores para identificar argumentações, adaptados dos conceitos anteriores.

São eles a contraposição de ideias (opiniões) e as justificações recíprocas dessas ideias. Os marcadores propostos são o embrião da base analítica para identificação dos aspectos que diferenciam a argumentação de outras orientações discursivas.

O segundo capítulo avança na discussão apresentando as caracterís­ticas de argumentações que são contempladas pelos marcadores, tais como: a persuasão, a disputa, certo grau de simetria entre os interlocutores, verossimi­lhança das declarações (opiniões), presença de mais de uma opinião e justifica­tivas para as opiniões.

Os autores concluem o segundo capítulo ilustrando a aplicabilidade dos marcadores em duas situações de ensino e aprendizado, que correspondem a pesqui­sas desenvolvidas por eles. Em um dos casos identifica-se uma situação argumen­tativa e no outro, uma situação de explicação.

No terceiro capítulo, os autores destacam a importância da multimoda­lidade para as pesquisas sobre os discursos em salas de aula de Ciências, consi­derando as múltiplas modalidades que os sujeitos em situações reais de interação discursiva utilizam para se comunicar, “desde fala, textos, diagramas, imagens, até gestos, variações de proxemia, dentre outros”. Apoiados em autores do cam­po da Sociolinguística, destacam ainda o papel das pistas de contextualização, que incluem pausas, prosódia, variações na proxemia e fixação do olhar, nos proces­sos argumentativos em sala de aula, e o quanto essas pistas sinalizam, para os sujeitos em interação e para os analistas, como interpretar os significados que emergem dessas interações. Mais uma vez, o terceiro capítulo traz exemplos ilustrativos retirados de pesquisas realizadas pelos autores, sobre as pistas de con­textualização discutidas no texto.

No quarto capítulo, os autores destacam a importância do padrão do ar­gumento de Toulmin para analisar argumentações no ensino de Ciências e a sua ampla utilização nos contextos nacional e internacional. Embora reconheçam as críticas em relação ao uso do padrão, defendem que sua associação com o método de análise proposicional por eles desenvolvido pode ser de grande utilidade conside­rando a compatibilidade entre os dois métodos. Assim, o capítulo apresenta uma discussão objetiva sobre o uso do padrão de argumento de Toulmin e introduz o método de análise proposicional de forma cuidadosa, visando deixar o leitor esclarecido sobre o método, que consiste basicamente na segmentação das falas dos parti­cipantes em proposições de acordo com critérios sociolinguísticos. A partir da identificação de “significados convergentes”, as proposições são agrupadas em Pro­cedimentos Discursivos. A aplicação do método ao discurso do professor, segundo os autores, possibilita identificar o que chamam de Procedimentos Discursivos Didá­ticos (PDD). A exemplo do capítulo anterior, o quarto capítulo procura contribuir para a compreensão do método lançando mão de exemplos obtidos de pesquisas realizadas pelos autores em situações reais de sala de aula.

No quinto capítulo, os autores retomam a discussão a respeito das di­ferenças entre orientação discursiva argumentativa e orientação discursiva explicativa para chamar a atenção sobre a necessidade de analisar e repensar os discursos em aulas de ciências. A estrutura analítica proposta possibilita esclarecer a natureza dos procedimentos discursivos dos professores e como eles se relacionam com o cum­primento de objetivos didáticos bem-estabelecidos. Nesse sentido, a metodologia coloca em destaque a importância da tríade “Orientação discursiva – Objetivos didáticos – Procedimentos Discursivos Didáticos (PDD)” nas ações do professor. As ações do professor são mapeadas pelo quadro de narrativas e os procedimentos discursivos, pelo quadro proposicional, ambos instrumentos de análise discutidos e exemplifi­cados ao longo do capítulo. Mais uma vez, os exemplos fazem parte da estratégia de elucidação da discussão trazida pelos autores.

O sexto capítulo é dedicado especialmente à ilustração do uso da meto­dologia proposta, por meio de uma “análise detalhada de uma argumentação” de duas ações: uma com orientação discursiva dialogal e outra com orientação discursiva ar­gumentativa, que se estabeleceram no contexto de uma aula da disciplina de Prática de Ensino de Física. Os autores recorrem ao padrão de argumento de Toulmin eventualmente, ao longo da análise realizada, com o objetivo de indicar a posição dos PDD na estrutura dinâmica discursiva. A partir do detalhamento das análises das duas ações, realizam o fechamento do sexto capítulo apresentando um esquema dinâmico da estrutura procedimental argumentativa do formador, no episódio de ensino analisado.

No sétimo capítulo, os autores apresentam, de forma objetiva, um modelo para a compreensão do “ritmo discursivo” em aulas de Ciências. O texto destaca a importância da análise em níveis como estratégia para lidar com a grande diversidade e densidade dos dados que caracterizam as pesquisas de análise do discurso de sala de aula.

No oitavo capítulo, os autores promovem um fechamento do livro a par­tir de uma discussão sobre a situação atual e as perspectivas futuras com relação à argumentação no ensino de Ciências no contexto brasileiro. Em suas reflexões, apontam as dificuldades dos professores para lidar com a argumentação em sala de aula, já que estas envolvem a associação de diversos campos do conhecimento. Além disso, há a questão da falta de familiaridade deles com práticas argumentati­vas em situações escolares. A resistência da própria escola e o engessamento dos currículos também são apontados pelos autores como mais uma dificuldade. Con­siderando o que essas dificuldades podem representar em termos de demandas por mais estudos, os autores defendem que a proposta metodológica apresentada no livro tem implicações para a pesquisa e para a prática docente, o que inclui os modos pelos quais argumentação e demais orientações discursivas oferecem oportunidades de aprendizagem e como os procedimentos discursivos didáticos dos professores se rela­cionam com o ensino e a aprendizagem de Ciências, sobretudo no que se refere à formação para a democracia e para a prática social.

Assim, a obra se caracteriza como um texto de fácil compreensão que traz a metodologia proposta de forma clara sem que os autores abram mão de uma consistente fundamentação teórica. Nesse sentido, é importante destacar o cuidado dos autores com os exemplos ilustrativos de situações reais que têm papel fundamental na elucidação do que é discutido. Sem dúvida, a metodologia propos­ta pode contribuir para o campo, com implicações para a pesquisa e para a prática docente. Assim, a obra se apresenta como leitura obrigatória para os envolvidos com investigações em argumentações no ensino de Ciências, inclusive estudantes de graduação e professores experientes em serviço interessados em compreender esses processos.

José Roberto da Rocha Bernardo – Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]  Acessar publicação original

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Políticas educacionais e Estado federativo: conceitos e debates sobre a relação entre município, Federação e educação no Brasil – ARAÚJO (ES)

ARAÚJO, Gilda Cardoso de. Políticas educacionais e Estado federativo: conceitos e debates sobre a relação entre município, Federação e educação no Brasil.Curitiba: Appris, 2013. 371p. Resenha de: BARBOSA, Luciane Muniz Ribeiro. Políticas educacionais e Estado federativo. Educação & Sociedade, Campinas, v.34 no.125 out./dez. 2013.

O livro Políticas educacionais e Estado federativo: conceitos e debates sobre a relação entre município, federação e educação no Brasil é uma adaptação da tese de doutorado de Gilda Cardoso de Araujo. Trata-se de pesquisa resultante de estudo teórico, de natureza histórica e conceitual, sobre a configuração das instituições políticas municipais e federativas, a forma de assimilação destas no Brasil e de sua articulação com a organização da educação nacional.

Por que e para que mais um estudo sobre municipalização do ensino? Essas são questões que a própria autora nos apresenta e se compromete a responder não somente com dados que evidenciam o município como o responsável pela maior parte das matrículas do ensino fundamental na atualidade, ou diante do fato de que tal municipalização já estaria consagrada como um dos eixos da política educacional brasileira. As respostas que revelam a pertinência do estudo relacionam-se com o fato de que a discussão sobre a municipalização do ensino tornou-se algo comum e específico da área da educação. Entretanto, a produção existente não dialoga com a longa tradição do pensamento político que articulava a organização do Estado brasileiro com a discussão sobre a organização da educação nacional, desprezando também a análise da formação das instituições políticas municipais e federativas e configurando o processo de municipalização do ensino como que descolado dos problemas relativos ao Estado e à sua organização política e administrativa.

Daí se depreende o objetivo da obra de Gilda Cardoso de Araujo: apresentar os fundamentos, em um quadro conceitual e histórico, do processo de municipalização no Brasil, analisando o município e a Federação como instituições políticas, bem como a relação destas com a organização da educação como uma tarefa do Estado nacional.

No primeiro capítulo “Federação e município: uma articulação necessária” apresenta-se a ideia da Federação como uma construção histórica com estreita relação com o município como instituição política. Inicialmente, analisa-se o que se constitui “esse nosso desconhecido federalismo”, ressaltando que a história do Estado brasileiro está associada à própria história da ideia da Federação e que esta, como instituição política, possui um histórico “que contribui para o direito à educação como modernamente inscrito e realizado na política educacional brasileira” (p. 37).

Com base nesses pressupostos, debate-se a relação entre poder local, Federação e educação, questionando sobretudo a constante associação realizada entre descentralização federativa e democracia. Tal análise é apresentada mediante o resgate: das abordagens clássicas dos formuladores do federalismo americano, como James Madison, Alexander Hamilton e John Jay; das contribuições de Alexis de Tocqueville, ao distinguir duas espécies de centralização: a governamental e a administrativa e ao defender que a soma das duas em um só poder se tornaria prejudicial para o desenvolvimento das nações; e da proposta de federalismo total de Pierre-Joseph Proudhon, com o desafio de se estabelecer um equilíbrio entre a autoridade e a liberdade. As contribuições de tais autores fundamentam teoricamente todo o trabalho, revelando-se presentes nos debates de temas como: federalismo; poder local; poder nacional; maior ou menor descentralização do Estado.

No segundo capítulo – “Instituições políticas: municipalismo e federalismo” – são apresentadas as origens históricas e conceituais da instituição municipal, acompanhando sua trajetória iniciada em Roma e sua chegada ao Brasil e ressaltando os momentos em que ela se insere na organização federativa do país, assim como as complexidades, contradições e equívocos resultantes desse processo.

Município e Federação são destacados e analisados em cada momento histórico, com realce para as discussões que envolveram tais temas nos debates constituintes e sua explicitação nos textos constitucionais. Dessa maneira, é possível compreender como a Federação brasileira, originada como resposta à centralização unitária do período colonial e imperial, deixa de ser considerada como grande questão nacional na Era Vargas, substituindo-se o debate pelo tema do municipalismo, reflexo das demandas por autonomia local; ou, ainda, como o Estado Novo, instaurado em 1937, culminou como um processo de centralização autoritária, perdendo-se o sentido da ideia de Federação descentralizada, anteriormente erigida pela Constituição de 1891. Também é possível entender a trajetória (permeada de equívocos conceituais e históricos) de construção da proposta de Federação tridimensional e a defesa do municipalismo, impulsionada pela campanha municipalista e tendo ganhado força especialmente na Constituinte de 1946; a maneira como a Federação tridimensional é secundarizada no regime militar, marcado pelo excessivo controle do poder central, assim como sua retomada vigorosa na década de 1980, momento de um novo processo constituinte e reabertura política do país.

O terceiro capítulo – “Município, Federação e Educação: instituições políticas” – aborda a articulação da organização do ensino com o municipalismo e com o federalismo brasileiro. As origens da relação entre município e educação, desde a Baixa Idade Média, são evocadas para se expor a trajetória dessa relação e o tipo de educação que chegou às vilas brasileiras no século XVI. Na sequência, a história da educação brasileira é apresentada, destacando-se o movimento pendular entre centralização e descentralização política e administrativa que marcou a relação entre as esferas de poderes no Brasil.

O debate histórico e conceitual apresentados no segundo capítulo, assim como o rigor com que os dados da história da educação são apresentados permitem a compreensão do processo de municipalização do ensino no Brasil, não apenas como expressão de um debate em torno de temas como centralização ou descentralização, autoritarismo ou democracia, mas sim como um processo histórico de autonomia municipal estreitamente vinculado “à complicada história de Federação no Brasil” (p. 233).

Ressalta-se, ainda, que a história das instituições políticas do século XIX e XX, base para a constituição do município como ente federado e para as teses municipalistas da área da educação, revela o já destacado movimento pendular entre centralização e descentralização política e administrativa no país, desconsiderando-se, entretanto, o debate sobre as desigualdades regionais na oferta da educação elementar, tema que, na avaliação da autora, permanece como a grande questão a ser resolvida pelas políticas públicas atuais.

O quarto capítulo – “Município, Federação e Educação: ideias políticas” – cumpre com o grande desafio de situar o tema da organização do ensino como intrinsecamente vinculado ao tema da organização do Estado nacional. Dado que as ideias de município, Federação e educação foram abordadas por diferentes correntes teóricas e políticas, verifica-se que, somente mediante a análise dessas correntes, torna-se possível superar os equívocos presentes nos pressupostos que envolvem o debate sobre a descentralização do ensino.

Para tanto, a autora apresenta a origem do debate sobre as três categorias de análise (município, federalismo e educação) na tradição liberal, examinando as obras e pensamento político de Tavares Bastos e Rui Barbosa e suas propostas de implantação da descentralização federativa. Na sequência, analisa como o debate anterior foi incorporado pela tradição evolucionista e positivista, expondo a defesa de Alberto Sales pelo separatismo como solução para a crise do Império e para a organização política e administrativa do país, e o uso que Júlio de Castilhos fez do separatismo como bandeira política positivista no Rio Grande do Sul. As obras e os pensamentos de Alberto Torres e Oliveira Vianna, representando a tradição autoritária, são utilizadas para a apresentação do debate sobre a organização do Estado e da educação nacionais com base em seus argumentos sobre a necessidade de se adequar as instituições políticas à realidade brasileira. Por fim, são analisadas as ideias de Anísio Teixeira e Carlos Correa Mascaro, destacando suas propostas específicas sobre o processo de municipalização do ensino, não distantes, contudo, do debate teórico e político sobre a centralização ou descentralização como forma de organização do Estado brasileiro.

O resgate de tais autores para a área de educação mostra-se de grande relevância, dado seu sentido “de recolocar a Federação na sua relação com o poder local (município) e com a educação, como um problema nacional e não apenas educacional […], problematizando-os mediante o enfoque da teoria política brasileira” (p. 238).

Encontra-se ainda, nas “Conclusões”, um excelente resgate das principais ideias apresentadas nos capítulos da obra, ressaltando os momentos e fatos históricos relevantes para o debate teórico e conceitual do municipalismo, federalismo e educação, assim como os equívocos presentes na redução desse debate aos temas da centralização ou descentralização.

Longe de se configurar como um estudo de abordagem “muito ideologizada ou muito concreta” sobre o tema da municipalização do ensino, predominantes na área, a obra de Gilda Cardoso de Araújo cumpre com o objetivo proposto de se apresentar como um estudo de enfoque teórico e conceitual sobre os temas do municipalismo, federalismo e educação. Trata-se de um trabalho de fôlego e coragem, ao apresentar os equívocos nos quais os estudiosos da área costumam incorrer ao analisar tais temas, superando-os com minuciosa pesquisa bibliográfica e detalhada análise histórica e conceitual.

Em um momento em que tanto se discute a relevância e as complexidades de se constituir um Sistema Nacional de Educação, assim como os objetivos e conteúdos de um Plano Nacional de Educação que seja de fato nacional, federativo e democrático, a obra de Gilda Cardoso de Araújo revela-se de fundamental relevância, preenchendo importante lacuna na área da educação.

Luciane Muniz Ribeiro Barbosa – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo (SP) – Brasil. Contato com a autora: <[email protected]>

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Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt – CASTELO BRANCO (C)

CASTELO BRANCO, P. H. V. B. Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt. Curitiba: Appris, 2011. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 2, p. 187-190, maio/ago, 2012.

A obra de Carl Schmitt foi, durante muito tempo, lida em função das ligações de seu autor com o Terceiro Reich na Alemanha nazista. Entre essa e outras razões permaneceu silenciada na França, como nos indica o estudo de Jean-François Kervégan (2006), ao analisar as dimensões da ideia de político e da ação política nas obras de Hegel e Schmitt. Além disso, prossegue o autor, “o fato de Schmitt ter se alinhado ao nacional-socialismo, cuja vitória foi descrita por ele mesmo como ‘a morte de Hegel’, parece ser a confissão de um xeque especulativo: o decisionismo professado durante os anos 1920″. (2006, p. XIV). Isso, por acaso, não redundou somente na França, mas também na Itália, na Alemanha e nos Estados Unidos, na elaboração de estudos polêmicos, cujo norte era justamente o de alinhar a obra de Schmitt ao antissemitismo e ao nazismo.

Ainda que não parta de avaliação semelhante, a obra de Castelo Branco procura justamente destacar em que medida as tentativas de secularização da política e do direito permaneceram inacabadas na obra de Schmitt.

Versão revista de sua Tese de Doutorado, seu texto nos apresenta de que maneira Schmitt construiu seu projeto político e intelectual. Para Gabriel Cohn, que faz o prefácio da obra, secularização “é mais do que trânsito de ideias no éter dos significados”, pois é “literalmente trazê-las para o século, torná-las efetivas aqui e agora, manchá-las com a marca da empiria e da existência concreta”. (2011, p. 15). Para efetuar tal análise, Castelo Branco efetua um estudo minucioso da obra de Carl Schmitt, detalhando como  apreendia a questão da lei e da decisão, qual era a representatividade do Estado e qual era a função da secularização nos processos de formação de suas estruturas institucionais, e em que medida a secularização do conceito de político agiria em prol desse processo. Nesse aspecto, sua hipótese é de que “o conceito de secularização é um pressuposto imprescindível para compreender alguns dos principais temas abordados por Schmitt nos seus estudos, como é o caso da decisão, do significado do Estado e do indivíduo e dos critérios do político”; assim, por “desempenhar um papel epistemológico no pensamento de Schmitt, entender seu conceito de secularização é uma condição essencial para tornar acessível o modo como o autor desenvolve outros conceitos, como decisionismo, exceção, mediação e soberania”. (2001, p. 20).

Desse modo, antes de aprofundar como Schmitt entende a secularização, o autor nos demonstra seu itinerário, tendo em vista que o progresso da razão universal e autônoma da época das Luzes do século XVIII teria eliminado os laços tradicionais e realizado a independência de uma esfera temporal. Sob este ponto de vista, os conceitos jurídicos e políticos do Estado moderno encontrariam seu fundamento racional no aperfeiçoamento moral e no progresso de um desenvolvimento histórico. O uso do conceito de secularização é objeto de disputa, por ser utilizado para legitimar a descontinuidade da modernidade e, consequentemente, do fundamento dos conceitos jurídicos que surgem com o Estado moderno. (p. 21).

E que, aliás, estaria na obra de Schmitt, apesar de suas preocupações, numa forma inacabada. Mas entender como tal questão se processa em sua obra não é uma tarefa nada fácil, e Castelo Branco conduz com desenvoltura seus argumentos para nos demonstrar que, ainda que esteja em estado inacabado, a ideia de secularização construída na obra de Schmitt é fundamental para entender todos os nexos de sua interpretação do político e do Estado, da lei e da decisão. Apesar de se aproximar da concepção de secularização de Löwith, que “não reconhece uma modernidade autônoma”, Schmitt percebe que a “transformação da religião em assunto privado não elimina a existência de um núcleo metafísico ou a crença de que o privado ocupe o lugar de algo sagrado”, entre outras razões, porque a “cultura da satisfação individual, do consumo ou da possibilidade de subjetivação de toda sorte de experiência, remete ao tema da secularização e, consequentemente, ao problema do esvaziamento de referências supraindividuais de orientação da conduta”. (p. 22). Por isso, o autor indica que “sob o ponto de vista político, mais importante do que a privatização dos bens da Igreja seria examinar a privatização do meio ambiente que fornece a medida ou diretriz às ações humanas” (p. 23), e é esse o caminho que segue para compreender a obra de Schmitt.

Ao centrar seu olhar sobre a obra de Schmitt, a partir da maneira que ele constrói seu conceito de secularização, o autor entende que sem ela esse não teria chegado a seu conceito de decisão. Daí a importância de inquirir a lei e a decisão, como se articulam e como são produzidas e empreendidas.

Com isso, passa a inquirir como a secularização constitui um dos alicerces fundamentais, para dar solidez à formação do Estado moderno, significado às suas instituições e bases às suas regulamentações. Por fim, demonstra como o conceito de secularização atua sobre o conceito de político.

Depois de efetuar tal análise, observa que “o sentido principal do conceito de secularização de Schmitt revela que a negação dos conflitos eleva o grau de contingência, aumentando o risco dos antagonismos”, pois a “omissão ou o encobrimento do conflito impede a sua restrição”, e o “reconhecimento da impossibilidade de se extinguir os antagonismos da vida humana abre a possibilidade para a sua contenção” (p. 291), ao se efetuar uma distinção clara entre amigo e inimigo. Além disso, o “conceito de secularização de Schmitt intenta recuperar as distinções nítidas alcançadas pelo Estado moderno europeu com a neutralização das guerras religiosas, a fim de postular o monopólio do político pelo Estado e evitar sua subordinação a categorias econômicas e princípios universalizantes”.

(p. 292). Por outro lado, após definir amigo e inimigo, e revelar o caráter inevitável dos antagonismos, o autor nos indica que secularizar, para Schmitt, “consiste em romper a generalidade e a regularidade de ordenamento de normas e expor a realidade concreta do sentido político do agir e decidir humanos”, tendo em vista que “não está mais em jogo o enfrentamento do poder espiritual de representantes da Igreja que buscam intervir na esfera secular de um domínio público, mas combater o encobrimento do político por parte do liberalismo e do positivismo”. (p. 295).

Portanto, ao descortinar os nexos e os significados do conceito de secularização na obra de Carl Schmitt, Castelo Branco, além de nos oferecer caminhos instigantes para rever a obra desse autor, a oportunidade de verificar que, apesar de aparecer de modo inacabado, a secularização constituía verdadeiramente um dos núcleos pelos quais Schmitt pensou a política, definiu a ideia de amigo e inimigo, como os antagonismos poderiam ser arrefecidos, mas não anulados completamente, e de que forma lei e decisão estavam articuladas em sua obra para perfazer a compreensão do conceito de político.

Referências

KERVÉGAN, J-F. Hegel, Carl Schmitt: o político entre a especulação e a positividade. Barueri: Manole, 2006. Recebido em 26 de abril de 2012.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). Professor na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Uems). E-mail: [email protected]

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