History, literature, critical theory – LACAPRA (Topoi)

LACAPRA, Dominick. History, Literature, Critical Theory. Ithaca, Nova York: Cornell University Press, 2013. Resenha de: FELIPPE, Eduardo Ferraz. Sobre fronteiras e permeamentos. Topoi v.15 n.29 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.

Mais conhecida por aqueles que lidam com discussões que tangenciam história, filosofia e literatura, a obra de Dominick LaCapra ainda não obteve uma tradução de fôlego no Brasil. Por mais que entendamos essa lacuna como uma entre muitas, o agora professor emérito da universidade de Cornell propõe uma obra que impõe problemas destacáveis para a historiografia e alça sua reflexão a uma das mais necessárias do cenário universitário contemporâneo. Pode-se conceber que as variações propostas em seus diversos livros, desde as abordagens voltadas à história intelectual, do início da década de oitenta do século passado, até aquelas direcionadas à análise de alguns ficcionistas contemporâneos, tenham sido variações de um problema central da historiografia: os limites e possibilidades da história intelectual. Seus livros dialogam entre si ao mesmo tempo que apresentam uma distinção sensível entre eles; girando sobre seus próprios passos, LaCapra permanece em diálogo com um temário vivo desde os primeiros livros, enquanto joga luzes a um novo horizonte de sentido.

Em tempos de predominância do estruturalismo, LaCapra começou sua carreira acadêmica ao interrogar-se acerca da tese hegemônica da submissão do intelectual ao edifício da história. Nesse instante, percebeu a necessidade de reforma e deslocamento da história intelectual de seu lugar de sinopse de ideias e sistemas de grandes pensadores ou da autoconsideração enquanto história da filosofia. LaCapra dialoga com o cânon ocidental, discutindo e ampliando-o, por meio da crítica aguda a autores contemporâneos seus, como Derrida e Foucault, até autores que o marcaram, como Marx e Benjamin. Inicialmente aposta em uma perspectiva interdisciplinar, de modo que seu ataque às teorias totalizantes não implicou o embarque em propostas pós-modernas pouco atentas à historicidade do texto. Já em Soundings in Critical Theory (1989) o marxismo, a psicanálise e o pós-estruturalismo são articulados à historiografia em sua dimensão crítica e autocrítica. Desse modo, o caminho da história intelectual, em sua diferenciação frente à história social, se bifurca com o caminho da historiografia, sendo a dupla face de uma mesma proposta intelectual sustentada pelo professor de Cornell.

A interdisciplinaridade do início da carreira pode ser detectada nas suas considerações sobre os limites da noção de contexto que impõe a autores como Flaubert e Baudelaire. Essa questão será alvo de uma avaliação específica de Hayden White em “The context in the text: Method and Ideology in Intellectual History” em seu The Content of Form: Narrative Discourse and Historical Representation (1990) em que dialoga com a obra prévia do autor de History, Literature, Critical Theory. O problema do contexto já está presente no início na tese de livre-docência de LaCapra, ao ponderar que Durkheim não deve ser compreendido somente como uma metodologia de pesquisa, mas um texto a ser lido e articulado dentro do contexto. A partir dele, critica algumas análises que o submetem a esse contexto pela utilização de argumentos firmes, postos em contradição com algumas considerações do próprio Durkheim. Essa perspectiva de um ataque ao “historicismo” na leitura dos textos enfatiza sua perspectiva dialógica de relacionamento com o passado. Não se trata de recusar completamente os protocolos de análise, e sim complementá-los e superá-los.

Longe está LaCapra de um subjetivismo relativista que apresenta os textos como desligados do contexto. Afirma, de modo incisivo, em seu History and Criticism (1985), manter uma distância preventiva do chamado “fetichismo de arquivo” (p. 92). A questão central para LaCapra é a recusa explícita de um empirismo radical, utilizado muitas das vezes como “recusa a se ler os textos”, como pondera em Rethinking Intellectual History (1983) (p. 14). A noção de leitura como interpretação é central em toda a sua trajetória intelectual, especialmente aquela enfatizada na década de 1980. O historiador deve evitar uma acumulação neopositivista de informação com o fito de empreender leituras novas que não se resumam a descobrir novas fontes.

Esse percurso levou Dominick LaCapra a entrar em contato com as propostas do “linguistic turn”; contudo, não se deve afirmar, pelo menos de modo tão imediato, que LaCapra deve ser considerado um “historiador derrideano”. Creio que LaCapra não concordaria plenamente com a noção de que não há nada fora do texto; pelo contrário, há uma leitura apropriativa e altamente seletiva voltada a criticar oposições binárias sustentadas por opções historiográficas pouco atentas ao texto. Transcender a análise binária não implica o desconhecimento da sua importância em processos históricos ou no presente, em outro viés, considera que periodização histórica é um tema destacável ao historiador. A desconstrução é incorporada, mas não adotada de forma plena; Derrida e Heidegger estão entre outros autores, como Marx, Freud e Bakhtin, que, por fim, valorizam a intertextualidade como procedimento de escrita, tendo como centro a dimensão retórica dos textos. A estratégia da história intelectual combina investigação empírica com vozes do presente e do passado, que incluem o autor e suas fontes em uma temporalidade marcada por deslocamentos, continuidades e rupturas.

Já em seu History, Literature, Critical Theory (2013), Dominick LaCapra continua sua exploração acerca das relações complexas entre história e literatura, entendendo a história como processo e representação. Trata-se, como sempre fez questão de deixar claro, da incorporação atenciosa da obra de Hayden White, especialmente de seu livro mais famoso, Metahistória (1973). Em termos gerais, seu livro se divide entre um ensaio inicial, três capítulos de análise específica de alguns autores contemporâneos, como W. G. Sebald e J. M. Coetzee, e termina com um epílogo acerca da questão da violência em Slavoj Žižek. Um motivo recorrente do livro é a questão do sagrado, a relação problemática estabelecida com o sacrifício e sua virulenta manifestação como violência política e social.

O foco da discussão acerca da história está na questão da violência, com atenção particular a tema que já se dedicou anteriormente: a “solução final”. Em termos gerais, o autor está atento ao contato entre o sublime, o sagrado, o “pós-secular” e a questão da redenção absoluta, assim como as possíveis implicações da procura pela violência e, por vezes, sacrificial ou as práticas quase-sacrificiais envolvendo transgressão radical, vitimização e a expiação (p. 1). Por diversas vezes, LaCapra deriva o argumento para a reflexão acerca do que chama de “pós-secular”, a época atual. O termo provém de sua leitura de Hans Blumenberg, especialmente de duas obras, The Legitimacy of modern age (1986) e Work on Mith (1985). LaCapra destaca que, para Hans Blumenberg, a descontinuidade entre o mundo pré-moderno e o mundo moderno fundamenta o termo “legitimidade da época moderna”. Esse argumento torna-se mais claro quando propõe a aproximação entre Blumenberg e Jürgen Habermas em seu “Notes on a Postsecular society” (2008), por meio de uma abordagem que valoriza a tradição filosófica e a sociologia.

Em seu livro mais recente, é a questão do trauma e do genocídio nazi o disparador da escrita e dos paradoxos nela enredados. A leitura feita de Coetzee e Sebald, as soluções narrativas levantadas por Jonathan Littell, o fechamento da proposta com Slavoj Žižek, a conexão com a violência, tem no tópico do trauma o porto onde se ancoram afirmativas e de onde partem novos rumos. Está posta, de modo inexorável, a questão da narrativa em nossa lida com o passado. “A abordagem do trauma, mormente sua expressão narrativa, tem sido acompanhada por um paradoxo ou um duplo enlace: o indizível ainda clama por um discurso sem fim” (p. 33). Por vezes um processo de intensificação, por outras um ato de abrandamento, as semelhanças e diferenças entre os testemunhos e todas as tentativas de “representar as experiências traumáticas e eventos” são determinadas por meio da forma com que esse paradoxo é negociado na narrativa.

O temário do trauma ganhou tessitura consistente em seus argumentos ao longo das décadas de 1990 e 2000. A empreitada mais significativa nessa direção foi Writing History, Writing Trauma (2001). A adaptação de conceitos psicanalíticos para a análise histórica está associada ao emprego da crítica sociocultural e política para elucidar o trauma e seus efeitos na cultura. Writing History, Writing Trauma (2001) também marca a tentativa explícita de LaCapra de se diferenciar de Hayden White, por mais que concorde em muitos aspectos, especialmente os dedicados à narração. Atento à leitura que White faz de Roland Barthes, LaCapra enfatiza o vínculo entre o autor de Metahistória e o livro Escrever, verbo intransitivo, especialmente no debate levantado quando da publicação do livro Probing the Limits of Representation: Nazism and the “Final Solution” (1992), de Saul Friedländer.

Especialmente J. M. Coetzee (Elisabeth Costello e Desonra) e W. G. Sebald (Anéis de Saturno) são os ficcionistas atrelados às principais considerações de LaCapra. Além da semelhança por pseudônimos, a escolha por emigrarem de suas terras natais, e a atenção dada pelo primeiro ao segundo, destaca-se a sofisticação da questão da linguagem e a combinação entre análise crítica de outros autores (especialmente de Kafka e Flaubert) com uma autorreflexão profunda ou um “diálogo interno”, nos termos de Mikhail Bakhtin. LaCapra percebe que o Holocausto representa para Sebald aquilo que o apartheid e o colonialismo significam para Coetzee: a questão do mal e o abusivo tratamento de humanos e não humanos. A presença da pesquisa de arquivo, notória em W. G. Sebald, mas também presente em J. M. Coetzee, e a questão da memória estão coligadas ao problema do realismo, especialmente do traumático realismo, em relação à técnica formal de ambos.

O tema do trauma, enquanto modalidade do sublime, permite a LaCapra outros voos associados aos limites e às possibilidades da narrativa. Na verdade, um deslocamento. Passa a estar em jogo o tema da dimensão ética do historiador. Para tanto, a entrada em cena do romance de Jonathan Littell e as questões postas por Saul Friedländer auxiliam no entendimento da questão. Especialmente atento às preocupações do autor de As Benevolentes (2006), de modo destacado por sua atenção ao discurso dos agressores, LaCapra considera que “entender os agressores é importante epistemologicamente, eticamente e politicamente”. Antes, lembra-nos do valor do reconhecimento empático ao inveterar em acontecimentos extremos. Há um duplo caminho sendo percorrido por veredas nem sempre coincidentes ao longo do livro: por um lado, admitir a nossa própria possibilidade de envolvimento no crime, posto que nenhum de nós está plenamente cônscio em suas respostas e, por outro lado, propiciar nossa autocompreensão por meio da tentativa de imputar sentido a Max Aue, personagem principal, como um homem qualquer.

Littell discorda de que seu romance deveria ser chamado de um novo Guerra e paz. A leitura que fez de Maurice Blanchot e Georges Bataille, duas de suas preferências, fundamenta a “zona cinzenta” da escrita na qual todo escritor repousa – o espaço literário que necessita para criar e lapidar o seu Max Aue. A natureza da relação entre agressor e vítima em As benevolentes é confusa e marcada pela ambiguidade do personagem central. O que constitui a “verdade romanesca” para Littell permanece em sombras, mas há a busca por ir além de uma “verdade histórica” sem necessariamente transcendê-la ou falsificá-la. “As benevolentes transcendem a verdade histórica (…) em sua tentativa de amalgamar ou reverter a relação entre agressor e vítima” (p. 116).

O último capítulo e o epílogo deslocam a atenção para a obra de Slavoj Žižek. Ao destacar sua recente exposição midiática, o gosto pelo choque e a presença do paradoxo em sua escrita, LaCapra vai tecendo, com calma e sem grande densidade, seu aproveitamento e crítica da obra de Žižek. O rápido exemplo é quando avalia que o autor de Violência proporciona sempre a “overdose do antídoto” por vezes o “extremo” (p. 154). Sem deter-me em demasia no argumento, LaCapra destaca a busca pelo sublime de Žižek, com sua particular mistura de Lacan e Marx. Enfatiza que a violência é intrínseca à linguagem, especialmente quando pergunta se “os humanos excedem os animais em sua capacidade de violência?” (p. 120). Sua rápida análise de Žižek é concluída com a ponderação de que “para Žižek a essência do humano é o monstruoso, o excesso inumano que marca a incursão do real a possuir uma saída política…” (p. 125)

O texto de LaCapra merece leitura atenta. Tendo sido a coletânea de alguns escritos publicados anteriormente, esse livro tem a marca de um fechamento, não conclusão, de uma carreira de um professor dedicado a pensar Teoria da História e Historiografia. Se esse novo livro dá pouca atenção a alguns temas da década de 1980, como a questão da retórica, tão presente em Rethinking Intellectual History (1983), marca o desaguar de suas reflexões sobre o trauma e algumas ponderações acerca da importância do sublime para a escrita da História.

Sem a preocupação de detalhamentos excessivos acerca da História, ficção ou filosofia, como fez por vezes Hayden White, LaCapra termina por reafirmar o valor do texto, em sua singularidade e historicidade. Evita cair, desse modo, em considerações, por vezes descomedidas, do caráter inovador de alguns projetos intelectuais que, apenas com o título, propõem a reformulação de um campo. De forma sutil, LaCapra coloca interrogações à identidade do historiador sem excessivo alarde, sem demasiado estrondo; contribui, enfim, para novas reflexões para a História sem reduzi-la completamente ao seu nível discursivo, não somente nas cátedras de teoria ou história da historiografia.

Eduardo Ferraz Felippe – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), professor da Escola SESC de ensino médio e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: ­ [email protected].

Fictions of Embassy: literature and diplomacy in early modern Europe – HAMPTON (Topoi)

HAMPTON, Timothy. Fictions of Embassy: literature and diplomacy in early modern Europe. Ithaca: Cornell University Press, 2012. Resenha de: DUARTE, João de Azevedo e Dias. Em busca de uma “poética diplomática”. Topoi v.15 n.28 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

A trama de um dos últimos romances publicados em vida de Henry James, Os embaixadores (1903), gira em torno de uma missão “diplomática” frustrada. Lambert Strether, um norte-americano de meia-idade, é incumbido por sua noiva, a autoritária e rica viúva de Woolet, Nova Inglaterra, mrs. Newsome, de viajar a Paris para resgatar seu futuro enteado, o herdeiro Chad, supostamente envolvido em uma relação indecorosa com uma aristocrata europeia. Previsivelmente, o tiro sai pela culatra e é o “embaixador” Strether quem acaba seduzido pelos encantos do velho mundo, numa reviravolta que põe em risco suas pretensões matrimoniais originais. Metaforicamente empregando aspectos da cultura política da diplomacia na construção do enredo de sua narrativa de ficção, Henry James, talvez inadvertidamente, dava continuidade a uma tradição de diálogo entre duas formas simbólicas iniciada na primeira modernidade, entre os séculos XV e XVII, na Europa.

A “interseção entre a história diplomática e a história da literatura” (p. 1), durante esse período, é precisamente o tema de Fictions of Embassy, terceiro livro de Timothy Hampton, professor de literatura francesa e comparada da Universidade de Califórnia, Berkeley. Imerso na disciplina do novo historicismo, Hampton dedicou-se, em ensaios e livros anteriores, a explorar as relações entre história, política e literatura no Renascimento europeu. Esse seu último livro – uma reedição do original publicado em 2009 – continua no mesmo caminho, examinando as implicações culturais da emergência de uma nova prática política, a diplomacia moderna.

Ainda que o termo “diplomacia” só tenha sido cunhado no século XVIII, a atividade diplomática precede em muito a primeira modernidade, remontando à Antiguidade. No entanto, “durante os séculos XV, XVI e XVII na Europa, a diplomacia sofreu uma série de transformações sem precedentes, tanto práticas quanto teóricas, que fizeram dela um poderoso e importante elemento na política de Estado (statecraft)” (p. 1). A moldura mais geral na qual se encerraram essas inovações – entre as quais se destacam a instituição do embaixador profissional, fixo ou “residente”, e da negociação contínua em lugar dos “favoritos” reais e das embaixadas ad hoc medievais – foi o longo processo de constituição do sistema europeu de Estados soberanos. Tendo como marco histórico a chamada Paz de Westfalia de 1648, acordo que deu fim aos conflitos civil-religiosos no continente europeu, a nova ordem estatal emergente tanto requereu para sua conformação como tornou necessária para sua manutenção subsequente inéditos esforços sistemáticos de diplomacia. Esses requisitos práticos, por sua vez, geraram uma série de problemas – relativos à extraterritorialidade, aos limites da imunidade, às dinâmicas de delegação, representação e ratificação de acordos etc. -, cujas soluções teóricas, extrapolando a cultura retórica e moral do humanismo renascentista, ajudaram a delimitar, nos séculos XVII e XVIII, o campo das “relações internacionais”, um espaço jurídico regido por negociações contingentes entre Estados soberanos que se reconhecem como inimigos potenciais.

Fictions of Embassy não é, contudo, uma “história da diplomacia”. Para as minúcias relativas à constituição da diplomacia moderna, Hampton apoia-se em uma vasta bibliografia, devidamente referida nas notas de rodapé. Como já afirmei, Fictions of Embassy ocupa-se antes da relação entre literatura e diplomacia – “meu foco é menos nos detalhes da história diplomática do que nos discursos que modelam a ação pública” (p. 7). Uma forma de compreender o objeto desse livro é visualizar a diplomacia “como um contexto para o estudo de uma série de grandes obras literárias” (p. 5). Desnecessário dizer que “contexto”, neste caso, não é um dado sólido e fixo (uma “infraestrutura” rígida) do qual se deduz o texto literário, mas sim, ele próprio, um “texto”, até certo ponto aberto, requerendo também uma leitura, da mesma forma que o seu análogo literário. À maneira novo-historicista, Hampton interessa-se pelos processos dinâmicos de conflito e negociação entre formas simbólicas que informam a cultura; o que faz dele, o analista e crítico literário, também uma espécie de diplomata, em busca do que ele mesmo define – ecoando a formulação de Stephen Greenblatt do new historicism como uma “poética da cultura” – como uma “poética diplomática”, i.e.: “tanto uma maneira de ler literatura que seja sensível (attuned) à sombra do Outro na fronteira da comunidade nacional, quanto uma maneira de ler a diplomacia que leve em consideração as suas dimensões fictícias e linguísticas” (p. 2-3).

Vista de uma tal perspectiva, a relação entre literatura e diplomacia na primeira modernidade aparece não como meramente temática ou unidirecional, mas sim como uma relação estrutural e de mão dupla. Mais do que simplesmente fornecer um repertório de materiais (cenas, personagens e tópicos) a escritores de peças, poemas e ensaios (o que não deixava de fazer), a diplomacia oferecia à literatura imaginativa um análogo discursivo, com consequências importantes para ambas. Há semelhanças entre a palavra do diplomata e a palavra do poeta, sugere Hampton, que insiste ser “a diplomacia […] o ato político simbólico por excelência” (p. 5 – ênfase no original), tanto por sua natureza semiótica (sua relação íntima com a produção e a interpretação de signos, gestos e palavras), como pelo fato de que é também uma prática escrita, conscientemente envolvida com questões de representação, narrativa, retórica e autoridade textual. Ademais, na medida em que depende da invenção de “ficções jurídicas” – tal como aquela que determina a “imunidade” do diplomata em missão, como se ele estivesse em seu próprio país -, a diplomacia implica ainda, à semelhança de textos literários, atos de “produção de ficção” (fiction making) – “por ‘produção de ficção’ eu entendo a criação de textos que definem para si mesmos um modo de representação que não pretende um acesso direto à verdade teológica ou epistemológica” (p. 10). Sendo, então, “uma forma de ação política […] profundamente estruturada pela dinâmica da significação”, conclui Hampton, “a diplomacia oferece uma analogia poderosa para com a prática de construção de sentido a que chamamos literatura” (p. 10).

Hampton não está dizendo que a diplomacia e a literatura sejam práticas de representação indistintas, mas sim que, nesse período crítico da modernidade europeia, elas se articulavam de maneiras variadas e complexas, modelando-se mutuamente. “A nova ferramenta política da diplomacia e a cultura emergente da literatura secular modelam-se uma a outra de maneiras importantes”: de um lado, “os textos literários fornecem um terreno único e privilegiado para estudar as linguagens da diplomacia”, dando voz a certas ansiedades e tensões não explícitas da política diplomática, do outro, “a cultura diplomática desempenha um papel dinâmico na história literária, na invenção de novas formas, convenções e gêneros literários” (p. 2). Uma das conclusões importantes do livro é que, exatamente por causa de sua proximidade, a diplomacia acabou por servir como um contramodelo para a literatura de ficção, ajudando-a, por oposição, a definir sua própria voz.

Os capítulos – cuja sucessão segue frouxamente a ordem cronológica, iniciando-se ao final do século XV e terminando ao final do século XVII, com uma coda sobre o século XIX – dividem-se em três seções, cada uma abordando questões em torno a algum tema ligado à atividade diplomática, respectivamente: negociaçãomediação e representação. Com leituras de Guicciardini, Maquiavel, Thomas Morus, Rabelais, Tasso e Montaigne, os capítulos 1 e 2 examinam a relação entre a diplomacia e a cultura do humanismo renascentista, no âmbito da qual aquela recebe as suas primeiras formulações teóricas, explorando as tensões entre as expectativas éticas do humanismo e as contingências práticas, nem sempre “honoráveis”, das “úteis” negociações diplomáticas. Esses capítulos iniciais estabelecem também um padrão analítico para a interpretação da interseção entre teoria diplomática e literatura de ficção. De início, delimita-se um conjunto específico de problemas ligados à atividade diplomática (nesse caso, questões relativas ao caráter do embaixador e à extensão de sua liberdade no uso da linguagem no contexto da negociação diplomática) a partir de textos de teoria política e diplomática para, em seguida, discutir o modo como tais problemas são tratados em textos de caráter ficcional, com atenção para seus aspectos linguísticos e retóricos e para tensões ideológicas ocultas.

Já nos primeiros capítulos, Hampton chama a atenção para uma tensão crescente entre os mundos da política e da literatura de ficção; uma tensão que emerge, nos textos, por meio da representação de cenas de diplomacia frustrada, uma recorrência nas obras analisadas no livro. Na leitura de Hampton, a representação literária da diplomacia (e de seu fracasso) serve como um momento crítico, um momento privilegiado não apenas para a reflexão sobre ansiedades e conflitos político-sociais não explícitos, mas também para uma autorreflexão, da qual se origina um estranhamento em relação à política. Na medida em que “a negociação diplomática é vista como a sinédoque da retórica política pública”, argumenta Hampton, então, “é mostrando o colapso da diplomacia que as obras literárias podem reivindicar sua própria autoridade linguística e genérica” (p. 34). Esse movimento duplo de representação dos limites da diplomacia e de autoafirmação discursiva, envolvendo, com frequência, a invenção (ou reinvenção) de novas formas literárias, repete-se ao longo dos capítulos – “por meio do fracasso diplomático, a literatura cria o espaço de seu desdobramento” (p. 186).

Os capítulos 3 e 4 abordam a épica, um dos gêneros narrativos mais importantes do período, a partir de questões relativas ao espaço: deslocamento, extraterritorialidade e encontros entre europeus e não europeus. Por meio de leituras originais de Jerusalem libertada, de Torquato Tasso, e Os lusíadas, de Luís de Camões, Hampton explora a tensão entre as convenções diplomáticas e os ideais heroicos que informavam o gênero. Escrevendo no final do século XVI, num momento em que a cultura retórica e moral do humanismo encontrava-se sob a pressão da nova Igreja militante da Contrarreforma, ambos os autores empregaram a linguagem diplomática para repensar o gênero épico. Negociando uma identidade poética e epistemológica com as formas rivais da épica clássica, da historiografia e das narrativas romanescas, Jerusalém libertada e Os lusíadas tematizam a caducidade dos códigos cavalheirescos medievais e a emergência de um mundo pós-heroico – o mundo do direito internacional, do mercantilismo e das burocracias diplomáticas.

Finalmente, os três últimos capítulos dão conta de questões ligadas ao papel da nova ferramenta política da diplomacia no processo concomitante de constituição dos Estados nacionais e do estabelecimento de um sistema jurídico internacional, tais como: o reconhecimento político da soberania de novas entidades políticas por meio da recepção e do envio de embaixadas; a transição do antigo quadro teológico-moral do ius gentium (a lei das nações) para o novo quadro secular do direito codificado, ius inter gentes (a lei entre nações) nas relações internacionais; e a “domesticação” da aristocracia por meio de sua conversão em uma casta burocrática de diplomatas profissionais. A forma literária escolhida para a discussão dessas questões é o drama, a forma privilegiada nas cortes europeias do século XVII. As análises de Hampton de três grandes tragédias, ­Nicomède, de Pierre Corneille, ­Hamlet, de William Shakespeare, e Andromaque, de Jean Racine, mostram como a tragédia, mais do que qualquer outro gênero, tematizou a diplomacia de modo a expor o caráter instável e frágil da nova ordem política. Ao mesmo tempo que projeta uma modernidade pós-heroica – de paz e negociação civilizada entre nações em lugar do amor obsessivo e da violência privada pré-estatal -, a tragédia conjura essa imagem, trazendo ao palco o desejo e a vingança recalcados que põem em risco as próprias instituições que vislumbra.

Fictions of Embassy é, sem dúvida, um livro inovador e instigante, que enriquece e complexifica nosso entendimento de um período crítico da história ocidental, por meio de uma abordagem audaciosa que combina enorme erudição histórica e sensibilidade crítica para explorar o cânon literário da primeira modernidade. Trata-se de um livro denso que, a despeito de seu tamanho diminuto (230 páginas), é capaz de cobrir uma extensão impressionante de tópicos, oferecendo leituras originais de um conjunto não menos impressionante de obras. No entanto, é possível que, ao fim da leitura, o leitor se sinta um tanto ou quanto frustrado com o resultado final de um projeto que lhe parecia de início tão promissor e excitante. É que, em seu afã para persuadir o leitor do papel histórico da diplomacia como o agente decisivo de inovação na história literária, Hampton acaba por, em certos momentos, forçar demais seu material, gerando conclusões apressadas que produzem no leitor o efeito contrário ao esperado. Tenho dúvidas, por exemplo, se “a poética de Tasso e o autorretrato de Montaigne” são mesmo “os subprodutos de suas próprias tentativas de reinventar (reimagine) a ação política por meio de uma reflexão sobre a diplomacia” (p. 71), como Hampton sugere; ou se “a diplomacia é um elemento estruturante central no poema” de Camões (p. 101) ou no Hamlet, de Shakespeare (p. 144-162); ou ainda se “Corneille é o primeiro grande dramaturgo da geopolítica” (p. 122). Eis alguns casos nos quais menos entusiasmo e mais prudência seriam recomendáveis. Ademais, para alguém tão interessado na intersecção e mútua influência entre diplomacia e literatura, Hampton dá pouca atenção aos tratados diplomáticos, utilizando-os apenas de forma subsidiária à leitura das obras de ficção, e nem sequer aborda a carta diplomática, provavelmente o gênero mais importante para a prática da diplomacia na primeira modernidade. Faz falta também uma abordagem mais cuidadosa acerca das transformações ocorridas na diplomacia ao longo do tempo, em especial, na transição da Idade Média à primeira modernidade. Por fim, um diálogo com obras que trataram de usos mais metafóricos e menos literais da diplomacia na literatura, como o brilhante La diplomatie de l’esprit, de Marc Fumaroli, poderia ter sido interessante, sobretudo para a compreensão da influência da cultura diplomática sobre o gênero maior da modernidade, o romance. Em que pesem essas ressalvas, Fictions of Embassy é ainda um livro altamente recomendável a todos aqueles interessados na literatura ou história intelectual da primeira modernidade.

O livro é concluído com um breve posfácio, contendo um comentário sobre O vermelho e o negro, de Stendhal, com o intuito de apontar para a continuidade da história traçada até ali. Se a história narrada em Ficitons of Embassy foi “primordialmente uma história da cultura aristocrática”, a conclusão volta-se rapidamente para “uma consideração acerca de como os temas diplomáticos são transmutados quando apropriados pelo gênero dominante da modernidade burguesa – o romance” (p. 190). Numa leitura perspicaz, ainda que breve, Hampton argumenta que é na obra de Stendhal que a carreira literária moderna da diplomacia toma um rumo decisivo (é possível, porém, que uma leitura do livro supracitado de Marc Fumaroli o desmentisse, antecipando essa virada). O vermelho e o negro, sugere ele, marca o momento em que a diplomacia deixa de ser “a sinédoque da retórica política pública” – ao mesmo tempo o modelo dialógico rival e prenúncio da política burocrática moderna – que havia sido para a literatura imaginativa durante a primeira modernidade. Aliviada de seu peso político, apartada do mundo dos grandes dramas da negociação entre as nações, a diplomacia converte-se numa metáfora social para negociar as intrigas que dão forma aos pequenos (porém profundos) dramas cotidianos, dos costumes, da consciência moral, do refinamento estético e da felicidade (ou infelicidade) conjugal, nos quais estão envolvidos os Julien Sorel, Lambert Strether e as mrs. Newsome, de Woolet, Nova Inglaterra.

João de Azevedo e Dias Duarte – Doutor em história social da cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, bolsista de pós-doutorado pelo PNPD Capes. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].