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Le dossier sauvage | Philippe Artières
Philippe Artières | Imagem: Acervo do autor/LintervalleBlog
No mês de outubro de 2019 o imaginativo historiador Philippe Artières publicou O dossiê selvagem. Quanto a isso, nenhuma dúvida. O fato está aí, posto com clareza: um livro foi publicado, em tal data, por tal editora e, principalmente, sabe-se verdadeiramente sua autoria. Entretanto, ao longo das breves 160 páginas do livro, o leitor se depara com uma narrativa que se assenta na linha divisória, cinzenta, onde se equilibra e brinca com o falso e o verdadeiro, o factual e o contrafactual, o real e o ficcional, sem que em nenhum momento, contudo, abandone o terreno da história.
Mas o que é o “dossiê selvagem” que dá título ao livro? Trata-se de um conjunto de documentos (anotações manuscritas, reprografias de jornais ou revistas) agrupados em uma pasta de arquivo dos anos 1970, identificada com os dizeres “Vies sauvages”, numa caligrafia bastante familiar para o autor. Esses registros, fragmentados, essencialmente lacunares, referem-se a pessoas que, por razões diversas, saíram da cidade e foram morar em florestas, cavernas, regiões inóspitas onde, em sua maioria, buscaram estabelecer um modo de vida solitário e independente da civilização urbano-industrial. Esse conjunto reúne nomes e informações de pessoas que viveram desse modo “selvagem” em diferentes momentos da história, do século das Luzes aos anos 1980. Com raras exceções, a maior parte habitou regiões inóspitas da Europa e da América do Norte. Voltaremos a elas. Antes é importante familiarizarmo-nos com a descrição do material, aproximarmo-nos de sua história, a começar pelo modo como esse arquivo ganhou uma existência complexa e intrigante. Leia Mais
Pandemia cristofascista | Fábio Py
Fábio Py | Imagem: CONIC
Quando o presidente de um país, cujos mandatários há décadas não ousam descuidar do eleitor religioso, precisando também lidar com uma crescente bancada evangélica, usa o termo “cristofobia” em discurso diante da Organização das Nações Unidas – ONU, é sinal de que a religião ali não pode ser um tema menor na escrita da História atual. Pelo menos desde as últimas duas décadas do século XX enchendo estádios, templos e urnas, o movimento evangélico no Brasil, todavia, tem participação no curso dos acontecimentos da nossa contemporaneidade desproporcional à atenção que lhe tem sido dedicada pela academia. O livro Pandemia cristofascista, do teólogo Fábio Py, pode ser visto como um alerta sobre o custo que temos pago pela falta de compreensão deste fenômeno.
Trabalho sucinto, cujo eixo principal é a análise da “unção” conferida ao presidente Jair Bolsonaro por líderes das maiores organizações evangélicas do país durante a semana da Páscoa de 2020, o opúsculo divide-se em quatro seções. São elas: introdução; histórico e crítica da Frente Parlamentar evangélica (mais conhecida como “bancada evangélica”); estudo do processo de construção de uma imagem santificada do presidente da República em meio à escalada da pandemia de Covid-19; e conclusão, onde o comportamento dos líderes religiosos que contribuíram para a minimização da crise sanitária de 2020 é criticamente contraposto ao que seria esperado de sacerdotes genuínos, segundo o livro bíblico Levítico. Leia Mais
O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo | Leandro Pereira Gonçalves
Leandro Pereira Gonçalves | Imagem: Arquivo pessoal/BBC News Brasil
O historiador dos fascismos históricos tem uma dupla dificuldade em tratar dos neofascismos, uma de ordem moral, outra de ordem teórica. Sobre a primeira – e em vista das sucessivas ondas de neofascismos do mundo posterior à Segunda Guerra – paira a pergunta: o que fazer quando a sensação de déjà-vu se apresenta para a sociedade? Inevitavelmente, ela se volta para aqueles que ela entende como os ‘guardiões do passado’, requerendo explicações sobre o fenômeno reincidente. No que concerne à segunda ordem de dificuldades, é certo que um dos mandamentos do historiador é ‘não farás pontes entre passado e presente em vão’. Se isso está correto, é certo também que aos historiólogos é imputada a obrigação de explicar o passado à luz do presente e o presente à luz do passado, numa espécie de retroalimentação.
Embora escoimados de certos rigores da ‘cenografia’ acadêmica, os autores de O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo, apresentam à sociedade algumas pontes entre passado e presente que estão longe de serem vãs. Na obra publicada pela Editora da Fundação Getúlio Vargas (2020), os dois especialistas no campo dos ‘estudos verdes’ (um do campo dos fascismos históricos, outro dos neofascismos) juntaram forças numa tentativa, bem-sucedida, em nosso julgamento, de demonstrar o quão perigoso é enterrar o conceito de fascismo em 1945, abandonando, assim, o olhar fenomenológico. Nosso argumento ficará mais claro ao longo desta avaliação crítica. Leia Mais
Ghetto: the invention of a place, the History of an idea | Mitchell Duneier
Mitchell Duneier | Foto: Aaron Salcido/Zócalo
Em 25 de maio de 2020, a morte de George Floyd, um homem negro, em Minneapolis, por um policial branco, reascendeu uma onda de protestos trazendo novamente à tona questionamentos sobre como se dá a atuação das forças policiais contra a comunidade negra. Episódios como este têm sido recorrentes nos últimos anos: em 2014, em Ferguson, no Missouri, um policial branco matou o jovem de 18 anos, Michael Brown, e em 2015, em Baltimore, Freddie Gay, de 25 anos, também foi assassinado por um policial branco. Tal contexto nos faz indagar: quais são os fatores que levam a uma crescente violência contra as comunidades negras estadunidenses? O livro Ghetto: the invention of a place, the history of an ideia de autoria de Mitchell Duneier, de 2016, nos mostra que qualquer tentativa de compreensão desse fenômeno desassociada de uma análise de longa duração terá seu objetivo frustrado.
Professor de Sociologia da Universidade de Princeton, Duneier é autor de livros como Slim’s Table: Race, Respectability, and Masculinity, que venceu em 1994 o prêmio de melhor publicação acadêmica da American Sociological Association, e de Sidewalk, de 1999, que ganhou o prêmio de melhor livro pelo jornal Los Angeles Times. Formado em Direito pela Universidade de Nova Iorque, Duneier obteve seu doutorado pela Universidade de Chicago em 1992, tendo como objeto de estudo a etnografia urbana dos anos de 1920. Em Ghetto, o autor historiciza a construção desse conceito, mostrando como sua utilização foi mobilizada em diferentes contextos em virtude de questões sociais e políticas específicas. O livro abrange uma temática atual, uma vez que grande parte dos pontos abordados ao longo de seus seis capítulos permanece ainda hoje manifesto, e assistimos a uma retomada desses mesmos discursos no cenário político. Leia Mais
O romance de formação | Franco Moretti
Franco Moretti | Imagem: Salon
There is no stillness at that point. Its components split and diverge each time we try to bring them into focus, as if interior continents were wrenching askew in the mind.1
Eros the Bittersweet
Em prefácio à segunda edição (1999) de O romance de formação, Franco Moretti, crítico e historiador da literatura, reconhece com uma precisão impressionante um dos limites da sua primeira grande obra e de sua abordagem teórica de então, nomeadamente a união direta entre história literária e história ideológica. A intenção de produzir uma associação quase imediata entre literatura e ideologia já é confessada, mas sem que seja entendida como excesso, no prefácio original, a partir do emprego da categoria do filósofo Ernst Cassirer de “forma simbólica”. A definição com a qual opera, estabelecida de saída, delimita bem a questão direcionada aos seus disputados objetos (romances com uma crítica literária abundante), mas sobretudo o permite se posicionar criticamente ao que considera ser a longa tendência da Historiografia Literária (Cf. MORETTI, 2007): a de dispor do objeto estético como dotado de uma força que transcende seu contexto histórico, e não como parte dele. Leia Mais
Magie als Waffe gegen Schlangen in der ägyptischen Bronzezeit | Katharina Stegbauer
Angela Kaiser, Daniela Rutica e Katharina Stegbauer | Foto: fhm
Contextualização
A obra aqui analisada foi composta, originalmente, como uma tese doutoral na Fakultät für Geschichte, Kunst und Orientwissenschaften – Universität Leipzig. Após a publicação da tese, em 2010, o texto passou por incontáveis revisões bibliográficas e atualizações conceituais até a publicação do livro em seu formato final. Uma vez procedida a atualização da obra, ela veio inaugurar uma nova série acadêmica: “Ägyptologische Studien Leipzig”, que se dedica à publicação de estudos monográficos sob as regras do regime “Open Access”, via Propylaeum-ebooks1.
Graças à sua estruturação acadêmica original, a obra fornece ao leitor uma importante contextualização temática e conceitual sob a forma de um estado da arte sintetizando um século de desenvolvimento dos debates sobre a magia egípcia. Desse modo, a autora apresenta uma discussão historiográfica sobre como a antropologia cultural exerceu e exerce influência sobre o debate egiptológico. Leia Mais
Texto/ imagem e retórica visual na arte funerária egípcia | Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira
Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira | Imagem: Café História
Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira é um egiptólogo brasileiro radicado em Portugal. Atua na graduação e pós-graduação em História da Universidade Nova de Lisboa e é o autor da primeira gramática de egípcio médio oficialmente publicada em língua portuguesa (PEREIRA, 2016).1 Com a publicação de sua gramática e, agora, do livro ora resenhado, Pereira vem contribuindo largamente para o desenvolvimento dos estudos sobre o Egito antigo no Brasil.
A obra Texto, imagem e retórica visual na arte funerária egípcia consiste em um erudito manual introdutório ao estudo da arte egípcia. O livro foi concebido de forma que possa ser utilizado em cursos de graduação e pós-graduação e, sobretudo, suprir a lacuna causada pela raridade de cursos de língua egípcia no Brasil hoje em dia. Porém, não se trata de um manual em um manual de língua egípcia propriamente dito; o estudo da língua é somente introduzido em relação àquele das representações artísticas – de suas convenções e elementos ocultos que podem ser lidos como textos, na medida em que os hieróglifos são essencialmente representações visuais que constituem as formas de construção e comunicação do simbolismo da arte egípcia. Portanto, tal como apresentado na introdução, o conhecimento da língua é considerado crucial para que se possa decodificar a arte como fonte de informações sobre a sociedade e a cultura egípcias. Leia Mais
A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil | Lilia M. Schwarcz e Heloísa M. Starling
A pandemia de gripe espanhola foi um dos fenômenos mais devastadores que a humanidade já vivenciou. A doença irrompeu no hemisfério norte na primavera de 1918 e em menos de seis meses, matou milhões de pessoas em todo o mundo. Fenômeno global, a pandemia teve maior alcance e ceifou mais vidas do que a peste bubônica, que assolou grande parte da Ásia e da Europa em meados do século XIV. Apesar da abrangência e da destrutividade da pandemia de gripe de 1918-1919, durante muitos anos ela foi silenciada não só pelos que sobreviveram à catástrofe, mas também pelos historiadores, mais inclinados a investigar questões relativas à economia, à política e às guerras. Não à toa, o historiador norte-americano Alfred Crosby a denominou de “a pandemia esquecida”.
Contudo, nas últimas décadas do século XX, período marcado por sucessos da medicina, como a erradicação da varíola, e de derrotas imprimidas pela reemergência de doenças tidas como erradicadas e surgimento de novas, como a Aids, o olhar dos historiadores se voltou para a história da saúde e das doenças. Nesse contexto, estudos sobre epidemias e pandemias se multiplicaram em vários países e o Brasil tem seguido essa tendência com uma produção crescente de estudos sobre epidemias e pandemias do passado, realizados, sobretudo, nos programas de pós-graduação. Dentre as epidemias e pandemias estudadas, figura a de gripe espanhola (1918-1919), que vem sendo mapeada em várias partes do mundo, incluindo-se o Brasil. Leia Mais
O feroz mosquito africano no Brasil: o Anopheles gambiae entre o silêncio e a sua erradicação (1930-1940) | Gabriel Lopes
Já vai longe o tempo da história dos grandes homens, dos manuais escolares ilustrados com figuras varonis. Nas últimas décadas, o público leitor se acostumou com histórias da vida privada, do cotidiano, das mulheres e de outros atores ou mesmo protagonistas que até então eram vistos como subalternos ou meros coadjuvantes de uma história por demais eurocêntrica. Em 1961, Jean-Paul Sartre anteviu a emergência de novos atores na contemporaneidade ao prefaciar o livro Os condenados da terra, de Frantz Fanon. O filósofo percebeu que os indivíduos do “terceiro mundo” seriam os novos protagonistas de uma história pós-colonial. Alguns anos depois, Emmanuel Le Roy Ladurie propôs uma história assaz diferente. Ao estudar as oscilações climáticas na longa duração, o historiador contribuiu para relativizar o papel do ser humano e do seu lugar no palco da história.1 Na década seguinte, o balbuciar de uma história ambiental favoreceu novas perspectivas, menos dualistas e mais ecológicas, com ênfase nas complexas interações entre os seres vivos e suas correlações em diferentes ecossistemas (PÁDUA, 2010). Leia Mais
Pandemia cristofascista | Fábio Py
O pesquisador Fábio Py lançou, em junho de 2020, Pandemia cristofascista, publicação em formato e-book, pela editora Recriar. A obra é o quarto volume da série “Contágios infernais”, organizada por Fellipe dos Anjos e João Luiz Moura. O autor da obra em questão é doutor em teologia pela PUC-Rio e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). O texto de Fábio Py chama a atenção logo no título, que é justificado pelo próprio autor:
São reflexões que versam sobre o contexto e vivência da pandemia desde os primeiros casos do novo coronavírus, no território. No título, há o termo ‘cristofascista’ porque essa é a forma de governo que está gerindo o contexto da pandemia. ‘Cristofascista’ porque instrumentaliza seu mandato pelo fundamentalismo evangélico conservador (PY, 2020, p. 9). Leia Mais
A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade | Ulrich Beck
O diálogo com sociólogos como Jürgen Habermas e Pierre Bourdieu ampliaram os horizontes da História e levaram a produções fundamentais dentro da historiografia. Contudo, parece que o trabalho de Ulrich Beck ainda não foi devidamente apreciado pelos historiadores. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade pode ser uma oportunidade interessante para se aproximar de sua teoria social, além disso, é um diagnóstico histórico ambicioso sobre as transformações do mundo contemporâneo.
Ulrich Beck foi professor de sociologia na Universidade de Munique, na London School of Economic’s and Political Science e doutor honoris causa por diversas universidades europeias. As preocupações e questões desenvolvidas no conjunto de sua obra o colocam ao lado dos grandes intérpretes da modernidade, como o próprio Jürgen Habermas, Michel Foucault e Zygmunt Bauman. Beck tornou-se conhecido após a publicação de Risikogesellshaft (1986), traduzido para o português com o título Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade (BECK, 2011). Esse livro foi publicado no mesmo ano em que ocorreu o acidente nuclear de Chernobyl, as incertezas e o sentimento de falta de controle em relação ao uso da energia nuclear apresentavam uma impressionante coincidência com as análises desenvolvidas por Beck. Leia Mais
Formulário médico. Manuscrito atribuído aos jesuítas e encontrado em uma arca da igreja de São Francisco de Curitiba | Heolisa Meireles Gesteira, João Eurípedes Franklin Leal e Maria Claudia Santiago
A interpretação e a materialidade de manuscritos da Época Moderna, conforme a preposição “da” atrás empregada, procura ressaltar que os manuscritos a serem analisados são provenientes do período situado, grosso modo, entre os séculos XVI e XVIII. Não raro esses textos chegam ao presente experimentando autorias diversas, além de intervenções de copistas, proprietários, restauradores e leitores. Portanto, os manuscritos não deveriam ser percebidos hoje como se estivessem simplesmente “na” Época Moderna – eis aí a sutil diferença. A perspectiva vincula-se ao tema da materialidade social, uma apropriação do trabalho de Donald McKenzie sobre a bibliografia entendida como sociologia dos textos (MCKENZIE, 2018). Os textos, enquanto tecidos com textura (conforme a origem latina das palavras), sejam manuscritos ou impressos, possuem uma materialidade a ser estudada. Mas sua matéria é também social e histórica, a ser considerada na análise de um artefato proveniente de outro tempo, que passa por metamorfoses até chegar ao momento atual. Decorre daí a importância de se abordar nas pesquisas o percurso dos documentos – manuscritos ou impressos – em meio a arquivos particulares ou públicos. É fundamental também lidar com as diferentes leituras, por vezes expressas no próprio corpus documental, do objeto, mediante comentários, anotações nas margens etc., ou quando os manuscritos são transcritos, editados e impressos em forma parcial ou integral e passam a ser comentados por leitores vários, assumindo divulgação mais ampla por meio de publicações. Leia Mais
Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia | João José Reis
O livro Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia foi lançado em agosto de 2019 e preenche uma importante lacuna da historiografia a respeito das greves promovidas por escravos ou libertos. Como homens e mulheres escravizados viveram o cotidiano da escravidão urbana? O autor, João José Reis (UFBA), especialista em contar como os escravos se revoltavam, nos oferece uma riqueza de detalhes sobre a vida desses homens que resistiram a uma maior exploração dos seus corpos numa grande cidade escrava. O final da história está no título do livro e representa o nome dado a esses homens que ousaram contra a municipalidade soteropolitana: ganhadores, pois também venceram uma batalha que durou 10 dias e que paralisou a cidade de Salvador. Além deles, com esse livro ganharam todos os interessados em discutir a escravidão, o trabalho, a liberdade e a cidadania negra no oitocentos. Leia Mais
Ditadura/ anistia e transição política no Brasil (1964-1979) | Renato Lemos
Em tempos em que proliferam disputas narrativas e versões negacionistas a respeito da ditadura militar brasileira, a publicação do livro Ditadura, anistia e transição política no Brasil (1964-1979), do historiador Renato Lemos, chega em boa hora. Enquanto parte da população brasileira e políticos têm feito apologia do regime ditatorial, o autor expõe no livro o projeto daqueles que não agem assim por desconhecimento, mas sim por comprometimento com a face mais brutal da dominação burguesa no Brasil, como diz o professor Marcelo Badaró (UFF) no prefácio do livro.
Renato Lemos é professor titular de História do Brasil na Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordena o Laboratório de Estudos sobre os Militares na Política (LEMP/UFRJ)1. O historiador marxista defende o uso da nomenclatura “ditadura empresarial-militar” para designar o regime de 1964-1985, no lugar de “ditadura militar”, por entender que esta generaliza os militares, ao mesmo tempo em que oculta os vínculos de classe das lideranças civis beneficiadas pelo golpe. Leia Mais
História Pública e divulgação da história / Bruno L. P. de Carvalho e Ana Paula T. Teixeira
Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira / Fotos: Comunicação Ages e Café História /
Este livro tem como proposta apresentar as experiências e as reflexões sobre as formas de divulgar o conhecimento histórico acumulado, demonstrando a ampliação dos suportes de circulação da produção historiográfica.
A obra é uma coletânea composta de seis capítulos e três entrevistas produzidas por historiadores, jornalistas e por gente que transita nesses dois campos. São profissionais com perspectivas históricas variadas, com diferentes experiências e inserções distintas como produtores/mediadores de representações da História. O conjunto dos textos deste livro compreende diferentes linguagens e suportes da História Pública, com discussões sobre como ampliar o acesso do conhecimento histórico pesquisado em revistas acadêmicas, livros, vídeos do Youtube, sites, museus e espaços públicos da cidade.
Os coordenadores Bruno Leal Pastor de Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira são investigadores da História Pública no Brasil e contribuíram neste volume para o desenvolvimento da temática ao colocar juntos colegas que trabalham a dimensão pública do conhecimento histórico. Leia Mais
The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution | Julius S. Scott (R)
Julius Sherrard Scott / Foto: Scholars and Publics /
Professor emérito do Departamento de Estudos Afro-Americanos e Africanos da University of Michigan, nos Estados Unidos, Julius Sherrard Scott III doutorou- -se em 1986 na Duke University, em Ann Arbor, com a tese intitulada The Common Wind: Currents of Afro-American Communication in the Era of the Haitian Revolution. Com uma ligeira mudança no subtítulo, a tese ganhou o formato de livro em 2018: The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution. Os mesmos cinco capítulos da tese compõem o livro, acrescido de um prefácio escrito por Marcus Rediker, [1] professor da University of Pittsburgh, já bem conhecido do leitor brasileiro, com quem o diálogo e a perspectiva teórica da história vista de baixo são evidentes.
É difícil entender o intervalo de mais de trinta anos entre a defesa da tese e a impressão do livro, sobretudo porque o conteúdo manteve-se praticamente inalterado, porque o assunto é relevante e a narrativa é bem construída. Desinteresse editorial, desejo do autor em rever sua obra ou espera por um momento oportuno para reavivar a lembrança coletiva de que o Haiti ainda existe, como o terremoto de 2010, talvez possam ser elencados como hipóteses possíveis para essa longa espera. A bibliografia sobre o Haiti e, de forma mais ampla, o Grande Caribe, como Scott aborda no livro, não é extensa em inglês e é praticamente inexistente em português. [2] Por isso, talvez o primeiro ponto a ser destacado nesta resenha seja a necessária iniciativa de traduzir esse livro no Brasil, sem esperar a passagem de outras três décadas para que os leitores possam acessar uma experiência tão próxima à história colonial e imperial do país e tão inspiradora para os estudos históricos sobre a formação cultural brasileira e a história marítima ainda pouco praticada por aqui.
Chama a atenção a profusão e diversidade de materiais de que Scott se valeu para a escrita de sua história da circulação de ideias revolucionárias no Caribe setecentista: manuscritos oficiais de agentes da Coroa em arquivos espanhóis e cubanos, o mesmo tipo de fontes para a administração britânica em Londres e nas Índias Ocidentais, documentos de fundos privados em coleções estadunidenses, baladas cantadas por marinheiros negros e brancos em circulação por aquelas águas, narrativas de viajantes, propaganda abolicionista e jornais editados na América do Norte, nas Antilhas, no Reino Unido e na França. Exceto por periódicos que circularam em Portau-Prince e Cap Français, as fontes haitianas são praticamente ausentes do estudo, sinal de seu desaparecimento ou inacessibilidade ao longo da conturbada história humana e natural do país desde o século XVIII. “Pandora’s Box: The Masterless Caribbean at The End of the 18th Century”, o capítulo inicial, anuncia o contexto da ação revolucionária no Caribe. A perspectiva não é exatamente comparativa, mas leva em conta a diversidade de experiências coloniais e a grande expansão econômica baseada no boom da produção de açúcar na região. Aqui são consideradas também as formas de dominação oriundas de diferentes autoridades europeias a partir da vitória contra os piratas, bucaneiros e renegados que ocupavam aquelas ilhas e se organizavam por meio de regras próprias. Foi ao longo do século XVIII que a presença de escravizados africanos passou a se dar no Caribe de forma massiva – o que, se veio a transformar substantivamente a região, ao mesmo tempo manteve a imagem daquelas ilhas como lugares atrativos para desertores, escravos fugidos e toda a multidão de gente espoliada que pretendia viver sem obedecer às ordens de senhores.
O capítulo 2, “Negroes in Foreign Bottoms’: Sailors, Slaves, and Communication”, remete à visão de mundo de escravizados e seus senhores. Ambos reconheciam o potencial transformador do conhecimento das técnicas e formas de navegação. Tratava-se de algo perigoso e que criava homens insolentes, na visão senhorial, e que tendia para a construção de uma igualdade, no entendimento dos escravos. Olaudah Equiano, escravo marinheiro em meados do século XVIII e autor de uma celebrada autobiografia que parece guiar o capítulo, percebeu claramente que a mobilidade advinda dessa ocupação permitia certa igualdade com seus senhores, e não hesitou em “dizê-lo para sua mente”. Desgraçadamente para os senhores, muitos escravos com dificuldades de aceitar a disciplina que se lhes queria impor se engajaram no mundo do trabalho marítimo, inclusive porque seus senhores queriam se ver livres deles justamente por serem indisciplinados.
O terceiro capítulo, “The Suspense Is Dangerous in a Thousand Shapes’: News, Rumor, and Politics on the Eve of the Haitian Revolution”, pretende dar um aporte maior ao entendimento da revolucionária década de 1790 considerando seus antecedentes. O foco está dirigido à mobilidade de escravos, homens livres de cor e desertores militares e da marinha mercante que circulavam entre uma propriedade e outra, entre o campo e as cidades e entre as diversas ilhas, colocando em questão o controle social e a autoridade imperial. Ao fazer isso, alimentaram uma tradição de “resistência móvel” construída ao longo do Setecentos e que se radicalizaria nas décadas finais daquele século e no início do Oitocentos. As reações e tentativas de controle social mais severo por parte de autoridades metropolitanas e coloniais inglesas, espanholas e francesas são apresentadas nesse capítulo.
O capítulo 4, “Ideas of Liberty Have Sunk So Deep’: Communication and Revolution, 1789-93”, lança novas luzes sobre a repercussão da Revolução no Haiti nas demais ilhas. Ideias revolucionárias circularam não apenas em busca de adeptos, mas também como estratégia das autoridades imperiais em interação repressiva. Além de informações, oficiais baseados em uma ilha trocavam, com seus homólogos de outras Coroas, ajuda de todo tipo, militar inclusive. Os da Martinica pediram tropas ao governador de Cuba em 1790, diante das desordens que enfrentavam naquela colônia e da confusão revolucionária em que a própria metrópole francesa mergulhara em 1789, inviabilizando o envio de qualquer apoio. A causa da manutenção do controle social ultrapassava fronteiras linguísticas, imperiais e senhoriais. Mas os acontecimentos de 1789 e 1790 no Caribe, como afirma Scott, também ativaram as redes de comunicação afro-americanas. Se autoridades e proprietários ingleses, espanhóis e franceses construíram diálogos e articularam ações para se autopreservarem no Caribe ao longo do tempo, os escravos e homens livres de cor fizeram o mesmo.
O quinto capítulo, “Knows Your Interests’: Saint-Domingue and the Americas, 1793-1800”, concentra-se no impacto pós- -revolucionário nos impérios coloniais remanescentes e nos Estados Unidos. Porém, a amplitude geográfica do capítulo é menor do que o título promete. Houve mobilização militar nas colônias, num esforço para manter a ordem. Os escravos, por sua vez, mobilizaram- se e articularam ações que não foram apenas respostas ao aumento da severidade e da vigilância, mas que diziam respeito às suas próprias tradições organizativas. Esse processo foi intenso em Cuba [3], na porção oriental de Hispaniola, na Venezuela, em Curaçao e na Luisiana, apenas para mencionar algumas colônias em que a escravidão era a base da exploração dos trabalhadores. Desafortunadamente, a América portuguesa, maior colônia escravista do continente, ficou fora do quadro comparativo, decerto pela falta de domínio da língua portuguesa por parte do autor e pela reduzida bibliografia sobre a repercussão da Revolução Haitiana produzida no Brasil e em Portugal.
A circulação ou mobilidade espacial é o grande tema do livro. Negros africanos ou nascidos no Caribe e mestiços iam de uma colônia às outras, navegando distâncias que, embora relativamente curtas, lhes davam acesso a comunidades estrangeiras, com diferentes línguas e experiências de escravização e resistência. As oportunidades de disseminar conhecimentos e ideias e trocar informações objetivas não foram perdidas por aqueles escravos que se ganharam o mar e o mundo além do horizonte. O movimento dos navios e dos marinheiros oferecia não só oportunidades de desenvolver habilidades ou viabilizar fugas, mas criava formas de comunicação de longa distância e permitia que os afro-americanos transportassem, física e simbolicamente, seus modos de enfrentar as adversidades do cativeiro a outras partes, construindo resistências e concepções de liberdade globais.
A cultura marítima no Caribe era multirracial e multinacional. Escravos africanos ou nascidos nas colônias americanas eram partes importantes do contingente de trabalhadores do mar, mas o “submundo dos marinheiros” na região ao fim do século XVIII era formado também por milhares de britânicos e franceses. Tratava-se de uma população instável e que, por vezes, em razão de questões de mercado de trabalho ou de saúde, se estabelecia em alguma ilha à espera de melhores condições, enraizando- -se na cultura local de transitoriedade e de exposição às informações que circulavam rapidamente para os padrões daqueles tempos. No Caribe sabia-se dos acontecimentos das ilhas vizinhas, da Europa e da América do Norte: ali era a encruzilhada do mundo Ocidental, mais especificamente do hemisfério Norte, graças às correntes de comunicação estimuladas pela relativa proximidade, pelas facilidades da navegação e pelo aumento da atividade agroexportadora caribenha ao longo do século XVIII.
O axioma segundo o qual marinheiros eram desordeiros em terra encontrava plena comprovação no Caribe. Milhares de homens em trânsito representavam um problema para as autoridades locais responsáveis pela manutenção da ordem. Inúmeras leis foram postas em vigor para discipliná-los, do mesmo modo como se fazia para tentar regular a conduta dos escravos. Em tempos mais explicitamente conflituosos, como na Guerra dos Dez Anos (1780-1790), chegou-se a proibir que marujos britânicos nas Índias Ocidentais servissem a príncipes ou Estados estrangeiros. A proibição mostrou-se ineficaz.
A comparação entre escravos e marinheiros não é aleatória no trabalho de Scott. Ele nos deixa ver como ambos tiveram experiências em comum e causas pelas quais militavam juntos: o engajamento compulsório independentemente da condição, a submissão a punições arbitrárias, a pressão para embarcarem em navios mercantes contra sua vontade e a visão sobre ambos como perturbadores da ordem pública. Bom exemplo foi um ato policial de 1789, em Granada, prevendo penalizar escravos, mestiços livres e marinheiros que atentassem contra a própria saúde e a moral, porque seus comportamentos, vistos como dissolutos, eventualmente seduziam pessoas de outras condições.
Escravos e marinheiros conviviam a bordo, como tripulantes dos mesmos navios, mas a experiência também replicava em terra. Marinheiros eram os consumidores naturais das roças escravas caribenhas e, apesar do empenho policial, era difícil impedir que escravos lavradores ou em fuga fizessem comércio com marinheiros famintos e fragilizados depois de uma longa viagem, ávidos sobretudo por frutas e outros alimentos frescos. O contato e o convívio entre marinheiros e negros naquelas ilhas não tiveram apenas consequências econômicas, mas também forjaram elementos da cultura: muitas canções de trabalho populares no mar, disseminadas por marujos britânicos pelo mundo afora no século XIX, têm extraordinária semelhança com as canções escravas do Caribe. Scott afirma haver evidências consideráveis de que muitas canções podem ter se originado da interação de marinheiros e negros nas docas das Índias Ocidentais e que a teoria da origem e desenvolvimento das línguas crioulas no Caribe enfatiza o contato entre marinheiros europeus e escravos africanos e africano-americanos.
O ponto de intersecção de toda essa gente trabalhando em trânsito era Saint-Domingue, lugar de extraordinária diversidade de grupos de marinheiros europeus, a julgar pelos relatos do próprio ministério da Marinha francês na década de 1790. Mesmo com os monopólios coloniais e suas diferentes nomenclaturas (a flota espanhola, o exclusif francês, o British Navigation Act inglês), o contrabando grassava por ali, pondo em contato colonos europeus, marinheiros de diferentes metrópoles e escravos caribenhos e de variadas origens africanas. A razão dessa diversidade também entre os escravos, para além do tráfico direto com a África, era a sede por mão de obra em Saint-Domingue, o que fazia daquela colônia francesa um repositório de escravos fugidos a partir de 1770, vindos de Jamaica, Curaçao e, a julgar pela língua de alguns deles, também do Brasil. Muitos desses escravos em fuga se engajaram ativamente em rebeliões antes mesmo de 1789 e desempenharam papéis relevantes nos anos revolucionários – por exemplo Henry Christophe, segundo presidente do Haiti independente, nascido em St. Kitts, nas Índias Ocidentais britânicas.
O comércio e a circulação de marinheiros por aquelas bandas não só traziam notícias de fora como transmitiam ao resto do mundo o que se passava em Saint-Domingue. Scott reconhece que as revoltas de negros no Caribe em fins do século XVIII inspiraram os escravos nos Estados Unidos e em muitas das Antilhas. Em termos materiais, a afirmação encontra base no volume comercial entre Estados Unidos e Saint-Domingue em 1790: o montante das trocas, nessa altura, excedia aquelas feitas com todo o restante do continente americano, e era superado apenas pelo comércio com a Grã-Bretanha.
Scott foi um dos primeiros historiadores a identificar na mobilidade espacial advinda da navegação um importante indicador de autonomia e, eventualmente, liberdade para os cativos que conseguissem trilhar esse caminho. Os navios carregados de açúcar e rum circulando pelo Caribe possibilitavam escapar do rigoroso controle social existente nas sociedades escravistas e principalmente os navios menores eram vistos como instrumentos de fuga. Problemas diplomáticos e policiais decorriam dessa mobilidade não autorizada, mas o foco do autor se firma nos marinheiros e escravos desertores que elegeram as ilhas caribenhas como seus locais preferidos.
No Atlântico, mais do que em outros oceanos, e no Caribe, de forma concentrada, o comércio marítimo de longa distância e de cabotagem envolvia homens escravos e livres de cor. No caso dos escravos, envolvia também perspectivas de autonomia e liberdade dadas não só pela mobilidade como também pelas chances de se diluir em meio à multidão reunida nos portos, formada por indivíduos que, ao serem observados, não podiam ser definidos como livres ou cativos apenas pela cor de suas peles. Os mesmos jornais jamaicanos que publicavam anúncios de senhores vendendo negros especializados em trabalhos marítimos também publicavam anúncios de fuga de gente que certamente usara o mar como rota para desaparecer das vistas de seus senhores. Scott interpreta a “mística do mar” nas sociedades escravistas insulares do Caribe, ao salientar a vida a bordo de um pequeno navio de cabotagem ou do comércio intercolonial como uma alternativa atrativa à vida marcada pela hierarquia severa nas lavouras açucareiras. Mesmo escravos sem experiência marítima podiam conhecer alguns termos náuticos graças aos versos das canções populares e fingirem serem marinheiros livres. Ávidos por força de trabalho, os capitães dos navios quase nunca inquiriam cuidadosamente cada marinheiro engajado. Durante a década de 1790, antes e depois da Revolução de Saint-Domingue, sujeitos envolvidos no mundo do trabalho marítimo – marinheiros da navegação de longa distância, de pequenos navios de cabotagem no comércio intercolonial, escravos fugidos, marujos desertores brancos e negros – assumiram o centro do palco. No mar ou em terra, homens e mulheres sem senhores desempenharam um papel vital, espalhando rumores, reportando notícias e atuando como correia de transmissão de movimentos antiescravistas e, finalmente, da revolução republicana em curso na Europa.
A Revolução do Haiti tornou-se lendária não só porque foi a primeira experiência de liberdade coletiva e de construção de uma nação por ex-escravizados que retiraram à força seus senhores de cena, mas também pelo que representou como possibilidade na imaginação de escravos e senhores espalhados pelo mundo ocidental onde a escravidão era a base da acumulação de riquezas. A crença na determinação histórica, fruto da autocondescendência pela suposta descoberta de modelos explicativos eficazes, encontra nesta encruzilhada do Ocidente um incômodo para os historiadores mais seguros de suas opções teóricas. O passado torna-se sempre mais complexo quando é considerado da perspectiva de seus agentes.
Referências
ANDRADE, Everaldo de Oliveira. Haiti, dois séculos de história. São Paulo: Alameda, 2019.
FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana. Almanack, n. 3, p.37-53, jun. 2012.
FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana na época da Revolução Haitiana. In: CUNHA, Olívia Maria Gomes da.
Outras ilhas: espaços, temporalidades e transformações em Cuba. Rio de Janeiro: Aeropolano/FAPERJ, 2010. p. 37-64.
GRONDIN, Marcelo. Haiti. Col. Tudo é História. São Paulo: Brasiliense, 1985.
JAMES, Cyril Lionel Robert [1938]. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000.
REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
REDIKER, Marcus; LINEBAUGH, Peter. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SCOTT, Julius S. The Common Wind: Afro- American Currents in the Age of the Haitian Revolution. Londres; Nova York: Verso, 2018.
Notas
- Autor de A hidra de muitas cabeças: marinheiros, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário (em parceria com Peter Linebaugh) (2008) e O navio negreiro: uma história humana (2011).
- Exceções são os livros de Grondin (1985); de Andrade (2019) e, é claro, a tradução muito tardia de James (2000), editada pela primeira vez em 1938.
- O impacto da Revolução do Haiti em Cuba pode ser conhecido pelo leitor brasileiro com mais detalhes pelos trabalhos já traduzidos de Ada Ferrer (2010 e 2012).
Jaime Rodrigues – Professor da Universidade Federal de São Paulo / Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas / Departamento de História, Guarulhos/SP – Brasil. E-mail: rodriguesjaime@gmail.com.
SCOTT, Julius S. The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution. Londres; Nova York: Verso, 2018. 246p. Resenha de: RODRIGUES, Jaime. Uma encruzilhada do Ocidente: o Caribe setecentista como espaço histórico Topoi. Rio de Janeiro, v.22, n.46, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF].
A renovação da Antiguidade pagã – WARBURG (Topoi)
Aby Warburg. Retrato-montagem de “Let’s Talk about Aby Warburg / youtube.com
WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Tradução de Markus Hediger, Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. Resenha de: FERNANDES, Cássio. O legado antigo entre transferências e migrações. Topoi v.15 n.28 Rio de Janeiro Jan./June 2014.
Fora do restrito círculo de estudiosos da arte e da cultura do Renascimento, Aby Warburg (1866-1929), ao longo do século XX, ficou mais conhecido como criador de uma biblioteca pessoal transformada em instituto de pesquisa do que propriamente pelo teor de seus escritos. Por certo, sua biblioteca, sediada originalmente em Hamburgo e transferida para Londres depois da ascensão nazista na Alemanha, simbolizou o interesse que percorreu seu inteiro trajeto de estudioso. O Instituto Warburg para a Ciência da Cultura, ligado à Universidade de Londres, reúne um vasto material sobre a vida póstuma da Antiguidade, ou seja, a influência da cultura antiga sobre os séculos posteriores e seu papel na formação da Europa moderna. O tema de sua biblioteca paraleliza-se com o tema de sua obra.
Porém, a obra de Warburg não se constituiu como um corpus organizado em forma de livros ou de conjuntos de textos sistematizados pelo próprio autor. Ao contrário, Warburg jamais escreveu um livro, jamais obteve uma cátedra acadêmica, jamais tratou de delimitar de próprio punho o que desejava fosse publicado do vasto material composto por escritos curtos, conferências, cartas ou cursos ministrados como convidado na Universidade de Hamburgo. Os livros que se constituíram dos escritos de Warburg foram produto do interesse e da sistematização de outrem. Ele próprio editou apenas de modo fragmentário parte de sua produção textual, em revistas científicas, em publicações da própria Biblioteca Warburg ou como pequenos volumes separados. Mesmo assim, grande parte de seus escritos permaneceu inédita até o final de sua vida.
Os escritos de Warburg conheceram uma primeira sistematização, produto de um projeto editorial, no início da década de 1930, pelo esforço de Gertrud Bing, que, ao lado de Fritz Saxl, dirigia a biblioteca ainda em Hamburgo. Ambos haviam trabalhado ao lado de Warburg e também durante o interregno de sua ausência, entre 1918 e 1923, em que passou em tratamento na clínica psiquiátrica de Kreuzlingen, na Suíça. Do trabalho de organização de Gertrud Bing surgiu em 1932, pela editora alemã Teubner, a Gesammelte Schriften, que deveria constituir apenas a primeira parte do projeto de edição do legado textual de Warburg. Esse projeto, porém, delineado brevemente por Fritz Saxl na edição original, jamais seria levado a cabo. O livro de 1932 tornou-se, ao longo do século XX, a edição canônica dos escritos de Aby Warburg, sendo desde então reimpresso em língua alemã ou traduzido para outros idiomas. Esse livro ganha, em 2013, sua primeira edição brasileira, pela Editora Contraponto, do Rio de Janeiro, sob o título A renovação da Antiguidade Pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu, com tradução de Markus Hediger. Antes disso, o que se conhecia de Warburg em língua portuguesa era apenas a sua tese de 1893, publicada em Portugal, em 2012, O nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli, pela Editora KKYM, de Lisboa.
A edição brasileira do livro canônico de Warburg tem o mérito de trazer, além do prefácio da edição de 1932, de autoria de Gertrud Bing, também o prefácio da edição de estudos de 1998, assinado em conjunto por Horst Bredekamp e Michael Diers. O prefácio de 1998 nos ajuda a compreender o contexto de surgimento do livro de 1932, numa perspectiva da história da fortuna da obra de Warburg, bem como aponta alguns aspectos que determinaram a interrupção do projeto editorial de sua obra.
Aby Warburg provinha de uma família judia de banqueiros de Hamburgo. Após uma incursão juvenil no estudo da medicina, voltou seus interesses aos temas estéticos e culturais, ingressando na Universidade de Bonn em 1886. Em Bonn, assistiu às aulas do historiador da cultura Carl Justi e do estudioso do mito e das religiões gregas antigas Hermann Usener, concentrando-se, já nos primeiros anos de estudo, na ideia de corrigir, sob um fundamento histórico-cultural, a concepção de Winckelmann a respeito da serenidade olímpica da Antiguidade. Esse ideal, formulado na juventude, transformar-se-ia numa espécie de obsessão, que, em certo modo, o acompanharia até o final de suas forças. Uma primeira viagem a Florença, em 1888, possibilita-lhe o encontro com o historiador da arte August Schmarsow, que, naquele momento, tentava formar, na cidade dos Medici, um instituto alemão de história da arte. Warburg permance em Florença por seis meses. Poucos anos depois, Schmarsow veria criado o Kunsthistorisches Institut in Florenz. De Florença, Warburg sairia com a ideia da futura tese, defendida não em Bonn, mas em Estrasburgo, sob orientação de Hubert Janitschek, estudioso do Renascimento, organizador da edição do De pictura de Leon Battista Alberti. A tese de Warburg, editada em 1893, trataria das pinturas mitológicas de Sandro Botticelli, na perspectiva da leitura, por parte do humanismo florentino do ambiente de Lorenzo de’ Medici, da tradição homérica pela via da transmutação latina realizada por Ovídio. Era uma compreensão do diálogo entre palavra e imagem no seio do humanismo florentino dos anos 1480, somada a uma perspectiva histórico-artística que perseguia a relação entre artista, comitente e conselheiro erudito. Warburg defendia, na tese, que as pinturas de Botticelli, O nascimento de Vênus e a Primavera, surgiram da encomenda de Lorenzo de’ Medici e sob a base iconográfica formulada pelo literato e professor de Ovídio na Academia Platônica de Florença, Angelo Poliziano. Poliziano, então, seria o mediador da relação entre Botticelli e Ovídio nas pinturas, que teriam sido executadas justamente para ornar o salão de debates da referida academia. A tese de Warburg aparece como primeiro capítulo em A renovação da Antiguidade pagã.
Na tese sobre Botticelli, Aby Warburg apresentava já o interesse pelo processo constitutivo das obras de arte e, ao mesmo tempo, sua disposição de seguir o caminho das transmissões do legado antigo no limiar da era moderna. E tudo isso é realizado num estudo de caso, analisando dois quadros para compreender, de modo individualizado, um problema histórico que certamente não se apresentava isoladamente, mas, ao contrário, indicava um edifício maior. Decerto, seu aprendizado em Bonn, com Carl Justi, teria contribuído para a elaboração de uma perspectiva microscópica. Justi havia aprendido com seu antecessor e mestre, Anton Springer (1825-1891), como abordar amplos problemas históricos focados em personagens individuais. Springer é o criador de um gênero historiográfico, muito empregado no âmbito dos estudos culturais e artísticos, que ficou conhecido como Monographie. Carl Justi transformou-se no mestre do gênero monográfico, autor de monografias sobre Michelangelo, Velazquez e Winckelmann.
Mas Warburg estivera também em Estrasburgo e, sob orientação de Janitschek, autor do livro Die Gesellschaft der Renaissance und die Kunst in Italien (A sociedade do Renascimento e a arte na Itália), aproximara-se da perspectiva da história social da arte. Esse aprendizado estava presente na tese de 1893, no movimento de ampliação da interpretação da arte florentina do Quattrocento do âmbito propriamente do artista em direção às etapas do processo criativo, que incluía, em primeira escala, as figuras do comitente e do idealizador erudito. Era um modo muito concreto de compreender a arte no âmbito da cultura do Renascimento.
O termo cultura do Renascimento, entretanto, remetia Warburg a um estudioso cujo nome é já uma referência ao tema e de quem Warburg afirmaria, logo depois, ser um seu continuador. Tratava-se de Jacob Burckhardt, a quem Warburg enviou a tese sobre Botticelli e recebeu de volta uma carta com as seguintes palavras: “com o seu escrito o senhor fez cumprir um passo adiante no conhecimento do medium social, poético e humanístico no qual Sandro [Botticelli] vivia e pintava”.
Burckhardt concedera a Warburg, de fato, o tema da cultura do Renascimento sob uma perspectiva de movimento e inter-relações culturais que o estudioso de Hamburgo aprofundará ao longo de seus estudos. O livro de Warburg é organizado em seções que, por sua vez, são compostas por textos de várias fases de sua vida, revelando que o autor lidou com alguns temas mais gerais, revisitando-os ao longo de sua trajetória. Algumas dessas seções temáticas são inteiramente ligadas a caminhos trilhados por Jacob Burckhardt. O mais claro exemplo é a primeira seção, “A Antiguidade na cultura burguesa florentina”, da qual faz parte a tese sobre Botticelli, seção facilmente referível ao centro do estudo de Burckhardt contido em seu livro mais conhecido, A cultura do Renascimento na Itália, de 1860. Além disso, é importante citar o texto warburguiano de 1902, “A Arte do retrato e a burguesia florentina”, que se anuncia, já na “Nota preliminar”, como continuação ao livro de Burckhardt sobre o tema, recentemente editado no Brasil: O retrato na pintura italiana do Renascimento. Warburg se utiliza de um único afresco, pintado por Domenico Ghirlandaio na Capela Sassetti, na igreja florentina de Santa Trinità, para compreender o problema da relação entre cristianismo medieval e paganismo antigo na Florença da segunda metade do século XV. A abordagem de Warburg colocava, de novo, no centro a relação entre comitente e artista, nesse caso, entre o retratista, Ghirlandaio, e o retratado, Francesco Sassetti, que representa o figura do burguês laico e culto do primeiro Renascimento florentino. Sassetti é o banqueiro, assolado cotidianamente pelo pecado da usura, que manda pintar sua capela fúnebre em homenagem a São Francisco, santo que simboliza o despojamento dos bens materiais e exalta a pobreza como redenção.
Entretanto, seria interessante nos voltarmos a outras duas seções do livro de Warburg, com o intuito de compreender o quanto foi-lhe importante o ensinamento de Burckhardt. A primeira delas intitulou-se “O intercâmbio entre as culturas florentina e flamenga”. Dois acontecimentos editoriais marcaram o encontro de Warburg com o tema das relações culturais entre Florença e Flandres no Quattrocento. O primeiro foi a edição póstuma de parte dos últimos escritos de Burckhardt sobre a arte italiana do Renascimento, em 1898, as Beiträg zur Kunstgeschichte von Italien (Contribuições à história da arte na Itália), que conteve três ensaios “O retrato na pintura”, “O retábulo de altar” e “Os colecionadores”. Uma das linhas interpretativas que atravessavam esses textos de Burckhardt era a importância da pintura flamenga para a formação do gosto artístico de uma classe de mercadores florentinos encomendantes das obras artes e, consequentemente, seu papel da execução da pintura em Florença. O outro acontecimento editorial importante para Warburg, nesse momento, foi o aparecimento, em 1888, do livro de Eugène Müntz sobre as coleções dos Medici no século XV, Les collections des Médicis au quinzième siècle, que também tinham sido de grande valia para os citados estudos de Burckhardt. O estudo do inventário dos Medici permitia compreender um progressivo interesse, em Florença, pela pintura de cavalete, sobre tela ou sobre madeira, em comparação com a tradicional pintura a fresco. Com esse processo, era possível perceber a importância da arte flamenga no ambiente dos Medici, e não apenas do ponto de vista da pintura, mas também da tapeçaria. A partir do livro de Müntz, era possível concluir que os flamengos tinham condicionado o desenvolvimento do primeiro colecionismo italiano, em especial, pela capacidade realística da pintura a óleo desenvolvida em Flandres, mas também pela facilidade de circulação dos tecidos, dos tapetes e dos quadros flamengos de pequenas dimensões, fato que antecede a circulação dos próprios artistas nórdicos na Itália. Desse modo, os inventários das coleções dos Medici confirmavam a importância da ligação entre a tarefa ditada pelo colecionador e o conteúdo de uma obra. Warburg, então, dedica-se a ampliar e aprofundar as indicações a esse respeito, presentes nos textos de Burckhardt, com estudos de casos entre os anos de 1899 e 1907. Toda a seção do livro trata desse tema, refletindo, uma vez mais, o interesse de Warburg em compreender as imagens como símbolos de circulações, de migrações de homens e de ideias, seu esforço em perfazer os caminhos das conexões, dos encontros entre elementos distintos, sua determinação em entender a fronteira como o próprio terreno da história. Além disso, encantava-lhe o fascínio do mundo refinado toscano pelos meios de expressar o vivo, trazidos à luz pela arte flamenga. Para Warburg, essa pintura é um exemplo emblemático da compreensão espontânea demonstrada pela burguesia toscana em direção à arte nórdica, resultado da mescla de elementos humanos que se atraem por seu contrário.
A outra seção que demonstra quão perene foi o influxo de Burckhardt sobre a obra de Warburg é aquela relativa ao tema da “Antiguidade e o presente na vida festiva do Renascimento”. Burckhardt tinha intitulado a parte 5 de A cultura do Renascimento na Itália de “A sociabilidade e as festividades”, entrelaçando o esplendor artístico nas cidades da Itália renascentista às festividades em sua formulação mais elevada, como um movimento superior da vida do povo, momento no qual seus ideais religiosos, morais e poéticos assumem uma forma visível. Warburg, por sua vez, buscou conceber a expressão humana na obra de arte figurativa como imagem da vida prática em movimento, tanto para o caso do culto religioso, quanto para aquele do drama da cultura por meio da festividade ou do palco cênico. A festa era, portanto, não apenas o momento de apresentação da expressividade artística, com todo o aparato que compõe a arquitetura decorada, mas sobretudo o palco da encenação da existência, quase uma transição da vida para a arte. Os cortejos e as encenações festivas eram, para Warburg, ocasiões para contemplar a vida social, bem como para interpretar o aparato artístico de que eram compostos. Esse aparato, em sua concretude, revelava-se, então, documento do significado histórico da Antiguidade clássica para os homens dos séculos XV e XVI na Itália, bem como no mundo nórdico, indicando ainda as ligações entre esses dois universos culturais.
Exatamente a busca de diálogo entre norte e sul dos Alpes havia movido Warburg a idealizar sua biblioteca particular. Sua intenção era reunir um acervo de livros e documentos que constituíssem as malhas de ligação entre o Sul e o Norte da Europa, concentrando num único lugar a livre consulta de publicações fundamentais sobre esse contato cultural. Ele, então, escolheu um tema que pudesse amalgamar sua proposta de seguir o diálogo e as relações transalpinas, sem deixá-los dispersar-se no infinito. Escolheu o tema da influência da Antiguidade, com o qual desenvolvia já à época seu trabalho de pesquisa.
Corria o ano de 1902 e, numa conversa em família, Aby Warburg adquiriu, por parte de seu pai, com o apoio de seu irmão mais velho, Max, a quantia de 1.700 marcos para instalar sua biblioteca no edifício onde permanecera até 1933, em Hamburgo. Era o início da Biblioteca Warburg para a Ciência da Cultura, transformada depois em instituto de pesquisa. A biblioteca nascia, assim, como fruto de um problema histórico de alta relevância, e talvez ainda hoje não explorado a contento: o problema das transposições históricas do mundo mediterrânico em direção è Europa nórdica, um tema que seguia, no início do século XX, a contrapelo dos caminhos políticos da Europa à beira dos conflitos nacionais. Enquanto Warburg buscava os contatos culturais, as transposições, as circulações de modelos literários e imagéticos da Antiguidade aos tempos modernos, do Sul em direção ao Norte, venciam, na Europa das primeiras décadas do Novecentos, as ideias de identidades nacionais, baseadas na noção de fronteiras naturais na formações dos povos europeus. Assim, ao final da Primeira Guerra, Warburg sucumbiu a uma forte crise psiquiátrica e foi internado numa clínica na Suíça, onde permaneceu até 1923.
No que se refere ao livro em questão, é importante salientar a intensificação dos estudos de Warburg em temas históricos que permitem um aprofundamento das inter-relações e transferências culturais entre o mundo mediterrânico e a Europa nórdica. As demais seções do livro apontam nessa direção, indo, nesse sentido, muito além da perspectiva de Burckhardt.
Em primeiro lugar, Warburg aborda o tema da Antiguidade italiana na Alemanha a partir da obra de Dürer, estudando, em 1905, a circulação de gravuras provenientes do ambiente de Andrea Mantegna no âmbito do artista de Nüremberg. Interessa a Warburg compreender, além propriamente da transposição da arte italiana ao mundo germânico, também a face bifrontal da influência da doutrina clássica no Renascimento, tanto ao norte, quanto ao sul dos Alpes. Warburg queria demonstrar que a Antiguidade chegou a Dürer, por intermédio da Itália, na forma de estímulos dionisíacos, mas também com a sobriedade apolínea.
Em 1908, estudando desenhos, gravuras e calendários dos séculos XV e XVI, provenientes da Itália e do mundo germânico, Warburg aponta para o momento em que ocorre uma mudança estilística nessas imagens pela entrada em cena das influências da escultura clássica sobre as representações tardo-medievais de imagens de deuses oriundos da Antiguidade tardia. Há, portanto, para o estudioso de Hamburgo, uma refiguração de ilustrações medievais provocada pela redescoberta renascentista da arte da Antiguidade. Para isso, ele realizava também, no estudo de 1908, as primeiras incursões no tema da astrologia.
De fato, Warburg dedica-se de modo sistemático aos estudos astrológicos a partir da leitura, realizada em 1907, do livro de Franz Boll (1867-1924). Filólogo clássico e professor na Universidade de Heidelberg, eminente especialista em história da astrologia, Franz Boll havia publicado, em 1903, Sphaera. Neue griechische Texte und untersuchungen zur geschichte der Sternbilder. Nesse livro, Boll, mediante fragmentos de textos e referências indiretas, conseguiu restituir um dos mais influentes tratados sobre o céu da Antiguidade Clássica, a Sphaera barbarica, do babilônico Teucro (séc. I a.C.). Partindo, então, do tratado de Teucro, Franz Boll empreende uma reconstrução detalhada da migração da astrologia e da astronomia grega por meio de suas transmissões no Oriente e na Idade Média latina. O texto de Teucro mostrava já, por sua vez, a contaminação e o enriquecimento da sphaera clássica com novos asterismos orientais, ou seja, o catálogo das estrelas fixas de Arato (séc. III a.C.). Na época helenística, esse céu de poucas constelações foi preenchido com novas figuras provenientes da tradição egípcia, aramaica e babilônica. Esse catálogo de constelações, mescla de elementos gregos e orientais, teve grande fortuna e, no curso do tempo, foi enriquecido com ornamentos astrológicos indianos e persas. Portanto, o tema do livro de Franz Boll é a história da compilação de Teucro, e de suas migrações na Antiguidade e na Idade Média, entre diversas culturas no Oriente e no Ocidente.
Warburg, por seu turno, havia começado a estudar intensamente a história da mitografia e da astrologia, focalizando a descrição das divindades pagãs nos textos medievais e a continuidade do imaginário astrológico da antiguidade nos tempos modernos. O livro de Boll despertou-lhe o interesse pelo estudo dos textos astrológicos indianos, o que seria fundamental para sua interpretação da iconografia das pinturas do Palácio Schifanoia de Ferrara. Em 1909, imerso no estudo sobre astrologia, Warburg entra em contato epistolar com Franz Boll. Em 1912, Aby Warburg apresenta, no X Congresso Internazionale di Storia dell’Arte di Roma, uma conferência em que decifra os afrescos do Palácio Schifanoia a partir da história da tradição astrológica. A conferência de 1912 representaria também o momento de apresentação para um público internacional de sua metodologia histórico-artística, onde a abordagem iconológica figurava em gênese. Na conferência, que na edição brasileira apresenta o título “A arte italiana e a astrologia internacional no Palazzo Schifanoia de Ferrara”, Aby Warburg encontrava nos afrescos a confirmação de sua hipótese de trabalho, qual seja, a transmissão ao Renascimento italiano de uma tradição iconográfica grega antiga, através da mediação indiana e árabe. Era essa uma forma de sobrevivência dos deuses pagãos que passava por um grande percurso migratório até tocar o território da Península Itálica, marcando a importância da tradição antiga para a formação da Europa moderna.
Com a conferência de 1912, Warburg observava o quanto o classicismo grego estava perpassado por elementos orientais, oriundos do Egito, da Pérsia, da Mesopotâmia. Portanto, sua noção de “antigo” tinha uma forte dose do primitivismo a minar o equilíbrio olímpico das divindades gregas. Paralelamente, sua noção de Renascimento ampliava-se ainda mais, ultrapassando em muito as relações entre arte nórdica e primeiro Renascimento na Itália, que até 1907 tinha dado um sentido a seus estudos histórico-artísticos. Com a conferência de 1912, Warburg distanciava-se de Burckhardt, tanto na concepção da Antiguidade grega, quanto na noção de Renascimento. Com o estudo sobre os afrescos astrológicos do Palácio Schifanoia de Ferrara, o Renascimento de Warburg absorve o vasto universo das interpretações árabes e indianas do mundo grego antigo, compreendendo, assim, um caminho migratório muito amplo a conectar o Renascimento italiano à Antiguidade grega.
O texto de 1912 é, então, emblemático na obra de Warburg por indicar um rompimento com todas as fronteiras que os estudiosos da arte e da cultura do Renascimento tinham até então estabelecido, dando um caráter internacionalista a sua interpretação. Nem mesmo as históricas fronteiras entre Ocidente e Oriente permaneceriam de pé depois de seu estudo apresentado em Roma. É curioso que essa abordagem tenha permanecido fora do centro nefrálgico dos estudos histórico-artísticos durante o século XX.
Assim, o livro canônico de Warburg, agora editado em língua portuguesa, cumpria em parte a tarefa de apresentar às gerações futuras o autor formado em ambientes intelectuais que, no final do Oitocentos, comunicavam a história social da arte com a história da cultura, a história das religiões e a nascente antropologia. Um autor que, de fato, jamais teve a intenção de dar vida a uma disciplina específica, mas, ao contrário, percorreu, movendo-se por resultados que a psicologia, a antropologia, a linguística da época lhe ofereciam, a evolução dos mecanismos fundamentais da expressão humana, que tinham conduzido determinadas culturas do antropomorfismo ao pensamento simbólico. Warburg, na verdade, procura demonstrar que o comportamento humano é sempre mediado pelo uso de símbolos. Com base nisso, sua busca não foi a de mover os símbolos para captar uma presumível verdade histórica neles submersa. Ao contrário, o movimento intelectual presente na obra de Warburg consiste em interrogar os símbolos sobre o que eles comunicam, localizando sua indagação no intervalo entre o páthos e o símbolo propriamente. Assim, Aby Warburg concentrou-se no intervalo pré-linguístico da experiência humana, situado entre a comoção causada pelos fundamentais sentimentos do homem, tais como a dor, a morte, o amor, e o impulso de representá-los com imagens, transformando-os em símbolos.
Desse modo, seu estudo direcionou-se ao mundo das formas simbólicas (então o mito, a arte, a linguagem, a ciência), como as tinha definido seu amigo e colaborador dos anos finais em Hamburgo, Ernst Cassirer, autor do livro dedicado a Warburg, A filosofia das formas simbólicas. No livro, Cassirer compreende as formas simbólicas não como imitações do real, e sim como órgãos da realidade, ou seja, como modo de converter o real em objeto de captação intelectual, tornando-o visível para nós.
Porém, a fase de maior colaboração intelectual entre os dois infelizmente não ficara registrado em A renovação da Antiguidade pagã. Exatamente a fase final de seu trabalho, após a recuperação da crise psicológica e o retorno, em 1923, às atividades na biblioteca de Hamburgo. Cassirer tinha chegado à cidade, para ensinar na recém-fundada universidade, em 1920, ao lado de Erwin Panofsky e do jovem Edgar Wind, este último estudante de doutorado. Essa fase da atividade de Warburg diz respeito a sua conferência sobre “O ritual da serpente”, ao projeto inacabado do “Atlas Mnemosyne”, à conferência autobiográfica “De arsenal a laboratório”, ao texto sobre Burckhardt e Nietzsche, aos cursos ministrados como convidado na Universidade de Hamburgo sobre Burckhardt e sobre “O método da ciência da cultura”. Também esteve fora do livro de 1932, traduzido no Brasil em 2013, uma série de textos de Warburg anteriores ao internamento na Suíça. A maior parte desse volumoso corpus permanece inédita em português, e, na verdade, só se tornou pública no início dos anos 2000, sobretudo na Itália e na Alemanha. Vale citar aqui o fundamental trabalho a partir dos manuscritos realizado pelo estudioso italiano, Maurizio Ghelardi, que traduziu diretamente ao italiano e publicou em dois volumes, em 2004 e 2008, as Opere de Aby Warburg. O trabalho de Maurizio Ghelardi traz ainda o mérito de editar a inédita correspondência entre Warburg e Cassirer, além da publicação em conjunto na Alemanha (traduzida na França) dos últimos escritos de Warburg, de algumas de suas cartas e da introdução ao Atlas Mnemosyne. Ghelardi é responsável, ainda, pela edição italiana dos estudos de Warburg sobre os índios pueblos do Novo México, bem como do próprio Atlas Mnemosyne. Este último, organizado a partir da edição alemã, que, sob os cuidados de Martin Warnke, é uma nova seleção dos escritos do estudioso de Hamburgo. É importante citar, ainda, a edição alemã de 2010, que mescla textos presentes no livro de 1932 com outros até então inéditos em alemão. Não citaremos aqui as edições de comentadores da obra de Warburg, surgidas sobretudo desde os anos 2000, trazendo importantes releituras de sua produção.
Tudo isso decerto não tira o mérito da edição recentemente traduzida no Brasil. Porém, revela a importância da obra de Warburg para o estudo das imagens, seja no âmbito da história da arte e da cultura, seja no campo da pesquisa antropológica ou da teoria da imagem. Oxalá a edição brasileira de 2013 sirva de incentivo para novas traduções e edições de escritos de Aby Warburg no Brasil.
Cássio Fernandes – Professor adjunto do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. E-mail: cassiofer@hotmail.com.
A imagem sobrevivente – DIDI-HUBERMAN (Topoi)
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2013. Resenha de: Di GIOVANNI, Julia Ruiz. Histórias de fantasmas para gente grande. Topoi v.15 n.28 Rio de Janeiro Jan./June 2014.
Uma ciência da cultura
Georges Didi-Huberman, filósofo, historiador da arte e professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, é um autor de destaque: tem mais de trinta trabalhos publicados na França, muitos dos quais foram e continuam sendo traduzidos em diferentes países. Tendo a história da arte e a teoria das imagens como temas principais, seus trabalhos vão do Renascimento aos problemas da arte contemporânea, e têm sido recebidos com interesse renovado entre historiadores e antropólogos, mas também no campo crescente da curadoria de arte. É também como curador que Didi-Huberman vem ao Brasil, em 2013, na ocasião do lançamento de A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, trabalho publicado em versão original na França há mais de dez anos. Em conjunto com o lançamento do livro foi realizada, como uma das primeiras atividades a ocupar o espaço do recém-inaugurado Museu de Arte do Rio (MAR), a exposição Atlas suite. A mostra exibiu fotografias cujo objeto é outra exposição também curada por Didi-Huberman, esta muito maior, realizada em Hamburgo, em 2011: Atlas: como carregar o mundo nas costas, produzida originalmente em 2010 no Museu Reina Sofia, em Madri. Segundo a sinopse do MAR, tratava-se não de quadros, mas de “fantasmas” de uma exposição espalhados pelo chão do novo Museu.
Atlas, a exposição original de 2010, era um desdobramento dos estudos de Didi-Huberman sobre Aby Warburg (1866-1929), historiador alemão a que se dedica o extenso trabalho de A imagem sobrevivente: “Warburg é nossa obsessão, está para história da arte como um fantasma não redimido – um dibuk – para a casa que habitamos” (p. 27). Os modos de pensar de Warburg, tal como inspiram Didi-Huberman em seu percurso de produção teórica e agora também curatorial, recebem no livro um tratamento aprofundado, sendo apresentados menos por uma forma argumentativa linear do que por meio de séries de aproximações entre textos, imagens, referências teóricas e objetos de diversas naturezas. Demonstrando influências explícitas e implícitas nos estudos deste “antropólogo das imagens” – Burckhardt e Nietzsche, Lucien Lévy-Bruhl, E. Tylor, Darwin, entre outros – e propondo relações intensas entre sua abordagem e as proposições de contemporâneos – Sigmund Freud e Walter Benjamin, fundamentalmente -, Didi-Huberman busca destacar elementos para uma apreensão de Warburg que vai muito além da história da arte antiga e do Renascimento a que este em princípio se dedicara. Para o autor, trata-se fundamentalmente de reconhecer em Warburg modelos temporais, culturais e psíquicos que abrem a história da arte a “problemas fundamentais”, em grande medida “impensados” da disciplina, não por fornecer-lhe uma lei geral alternativa, mas por colocar as singularidades das imagens para funcionar na descrição das relações entre modos de figuração e modos de agir, de saber ou de crer de uma sociedade: “passamos de uma história da arte para uma ciência da cultura” (p. 41).
Uma compreensão expandida da obra de Warburg como teoria da cultura tem motivado interesse crescente em suas ideias e inspirado diversas extensões de seus conceitos e procedimentos metodológicos, construídos no contexto de estudos da arte renascentista e barroca, para as análises da sociedade industrial e contemporânea. José Emilio Burucúa já indicou a importância desse entusiasmo por um sistema warburguiano percebido como capaz de englobar os conflitos do tempo presente, identificando na última década certa tendência desses interesses a se converterem em uma moda intelectual ou mania acadêmica na América Latina.1 A publicação do livro de Didi-Huberman, embora possa ser lida superficialmente como reforço dessas extrapolações tão interessantes quanto arriscadas, propõe ao leitor brasileiro a possibilidade de uma confrontação mais aprofundada com a densidade do pensamento de Warburg. O estudo detido de Didi-Huberman – organizado em três grandes segmentos: a imagem-fantasma, a imagem-páthos e a imagem-sintoma – oferece uma série de elementos a serem problematizados no percurso (que tanto nos interessa) de formulação de teorizações mais gerais sobre a cultura que tenham a arte e as imagens como foco e como perspectiva a partir da qual pensar as relações sociais e sua historicidade.
A indagação sobre as estruturas e dinâmicas dos regimes visuais que Warburg inspira parece acenar com a possibilidade de acedermos, por meio da complexidade das imagens, ao “olho do furacão” dos processos sociais, abarcar os lapsos e esquecimentos, recuperar tudo o que parece escapar a modos verbais e lineares da escritura da história. A obsessão pelas imagens está ligada, como afirma Stéphane Huchet, a um fascínio em torno do “estrato da experiência e da intuição anterior às formalizações científicas” e de uma ambição de incorporação dessa dimensão ao saber teórico.2 Essa ambição intelectual, se considerada apenas a partir de Warburg, já apresenta manifestações múltiplas o suficiente para ser irredutível a qualquer moda passageira. Mas admitindo, como propõe Huchet, estarmos na presença de “certa atmosfera warburguiana”, é relevante deixar-nos guiar pela leitura de Warburg construída por Didi-Huberman: não para reproduzi-la impensadamente, mas sobretudo para buscar entender quais são as particularidades da imagem que nos prometem ver o que fontes de outra natureza não mostram. De que modo, segundo ele, na ciência warburguiana da cultura, as imagens se tornam não apenas objetos do pensamento, mas elementos com os quais pensar o passado, o presente e o futuro?
Sobrevivência e fórmula gestual
Segundo Didi-Huberman, Warburg foi um pesquisador dotado de “maravilhosa lucidez quanto à história transindividual de seus objetos de estudo e paixão: as imagens” (p. 423-424). A primeira chave de apreensão dessa sensibilidade é um conceito tão fundamental quanto, dirá Didi-Huberman, mal interpretado: a sobrevivência ou Nachleben. Antes de mais nada, o modo de análise criado por Warburg nos coloca diante da imagem como algo que não se define apenas por um conjunto de coordenadas positivas (como autor, data, técnica, iconografia etc.). Uma composição visual é uma sedimentação de uma multiplicidade de movimentos históricos, antropológicos e psicológicos que começam e terminam fora dela. Não é um corte em uma linha do tempo, mas um “nó” de temporalidades: “ficamos diante da imagem como diante de um tempo complexo” (p. 34; destaque do autor). Onde a história da arte precedente explicava o “retrato” como gênero das belas-artes surgido no Renascimento graças ao triunfo do humanismo, do indivíduo e de novas técnicas miméticas, Warburg encontrará uma forma em que se entrelaçam marcas de diferentes tempos: práticas pagãs antigas, formas litúrgicas medievais cristãs e problemas artísticos e intelectuais do século XV italiano. Nessa perspectiva, a obra de arte não se deixa resolver tão facilmente pela história, apresenta-se antes como um “ponto de encontro dinâmico” (p. 41) de historicidades heterogêneas e sobredeterminações: relações com as múltiplas dimensões da vida, com os modos de agir, pensar ou crer, sem os quais toda imagem, segundo Warburg, perderia “seu próprio sangue” (p. 41). Haveria assim uma dinâmica interna das imagens, um tempo que lhes é próprio: denso, porque formado de sobreposições e misturas entre instâncias históricas particulares. A sobrevivência, do alemão Nachleben, é o nome deste tempo, afirma Didi-Huberman.
Inspirada inicialmente pelo uso do termo por Edward Tylor (survival) para descrever os vestígios de um estado social já desaparecido, que resiste sob formas deslocadas – como o arco e a flecha de guerras antigas sobrevivem como brinquedos infantis -, a noção warburguiana designa a intrusão de formas anacrônicas que obriga a uma visão complexa do tempo histórico. Embora evoque um horizonte epistemológico evolucionista, a forma sobrevivente de Warburg não é aquela que vence suas concorrentes em uma corrida contra a morte, e sim a forma inapta que sobreviveu subterraneamente ao próprio desaparecimento para reemergir de modo inesperado em outro ponto da história. Ao introduzir o conceito de sobrevivência para discutir o Renascimento italiano, período a que estava remetida a invenção da história da arte como tal, Warburg lançava luz sobre o caráter fundamentalmente impuro desse renascimento, pois “cada período é tecido por seu próprio nó de antiguidades, anacronismos, presentes e propensões para o futuro” (p. 69). Isso equivalia, segundo Didi-Huberman, a comprar uma briga quanto ao estatuto do discurso histórico em geral (p. 60-66).
Inspirado por Burckhardt, como afirma Didi-Huberman, Warburg reconheceria essa complexidade da articulação temporal como uma articulação formal (p. 89). Na arte, a forma dos detalhes, o movimento dos adornos ou as nuances cromáticas são vestígios dos conflitos em ação no tempo, as formas são portanto vivas, portadoras de jogos de força em estado de latência. É nesse sentido que as imagens de que trata Didi-Huberman são “sobreviventes”: formas da sobrevida de tensões já mortas, disponíveis para assombrar as periodizações e causalidades definidas pela história. Warburg definiria a história das imagens que praticava como uma “história de fantasmas para gente grande” (p. 72), pois desvelava em sua temporalidade específica, híbrida, a palpitação de conflitos que, apesar de enterrados, pareciam nunca encontrar repouso.
Uma morfologia das imagens sensível a seu caráter de “nó” temporal jamais pode prescindir de registrar seu caráter dinâmico: “não há morfologia, ou análise das formas, sem uma dinâmica, ou análise das forças” (p. 90), afirma Didi-Huberman; “toda a problemática da sobrevivência passa, fenomenologicamente falando, por um problema de movimento orgânico” (p. 167). O segundo conceito central daquilo que o autor chama de “lucidez” warburguiana a respeito do caráter das imagens responderia a este problema: de que modo as formas dinâmicas do tempo sobrevivente se manifestam como movimentos dos corpos?
A questão conduziu o historiador a uma antropologia das formas do gesto intensificadas por sua recorrência em tempos históricos e modos de representação díspares, da Antiguidade ao século XX europeu, passando pelos hopis na América do Norte. Warburg reconheceu essas formas recorrentes como fórmulas, modos de operação da tragicidade do tempo. Chamou-as de Pathosformeln, ou fórmulas de páthos. O conflito não resolvido estaria contido em uma memória do gesto, em uma tensão corporal que se repete deslocada, transformada ou convertida em seu contrário, como as mênades pagãs que reaparecem nos anjos renascentistas. Graças a sua atenção às imagens, Warburg teria encontrado vínculos entre o problema do tempo histórico e o tempo psíquico nos corpos agitados por afetos. As contorções, inclinações e texturas da forma humana, sua força patética, fornecem a matéria das imagens fantasma. A pesquisa sobre as fórmulas primitivas ou sobreviventes do movimento corporal era um caminho para compreender o que esse “primitivo” ou “antigo” queria dizer no presente (p. 193).
Lições do olhar
Ao explorar os conceitos de sobrevivência e fórmula de páthos construídos por Warburg, Didi-Huberman desenvolve a que talvez seja a proposição central de A imagem sobrevivente: a complexidade das imagens tal como tratada por Warburg é de natureza “sintomal”. Do entrelaçamento entre o presente do páthos, o passado da sobrevivência e a imagem do corpo, ele dirá: “Que é afinal esse momento senão o do sintoma (…) no qual só permite pensar a psicanálise freudiana, contemporânea de Warburg?” (p. 229).
O sintoma freudiano é o modelo que Didi-Huberman utilizou para demonstrar a atualidade das tensões que o olhar de Warburg destacava nas imagens e extrapolar esse olhar, desenvolver como formulações mais gerais seus modelos temporais e semióticos. Como sintoma, segundo o autor, é que as imagens se tornam uma via de acesso aos processos invisíveis e formas paradoxais da cultura: a imagem é nesse sentido um retorno do conflito recalcado sob uma forma deslocada, uma “formação de compromisso”. A clínica da histeria teria fornecido ao próprio Warburg um modelo sintomatológico para interpretar as fórmulas expressivas e encontrar nas imagens a temporalidade latente dos traumas.
No entanto, ao contrário do médico que busca reduzir a mobilidade de corpos atravessados por crises a um quadro de regularidades, Warburg teria buscado preservar e incorporar em sua leitura da história da arte as descontinuidades, diferenças e incongruências entre manifestações das mesmas fórmulas. Segundo o autor, a epistemologia de Warburg é definida pelo procedimento de montagem. Na criação de Mnemosyne – o atlas aberto em que Warburg criava e recriava composições de imagens em busca de uma interpretação das fórmulas de páthos – e de sua própria biblioteca, Warburg teria antecipado a ideia de montagem de Walter Benjamin, que aproxima a construção cinematográfica contemporânea das operações de quebra e recomposição próprias dos processos mnemônicos (p. 419).
Didi-Huberman encontra assim “lições do olhar” ensinadas por Freud e Benjamin como chaves para a compreensão e o desdobramento de uma abordagem warburguiana das imagens em geral e, mais além, de todo objeto da cultura – como “tensão em ato” (p. 162). A leitura do movimento, a descrição da estrutura contraditória dos gestos e a dialética das relações entre imagens, apreendida por seu incessante deslocamento combinatório, por uma atitude interpretativa que recusa a se fechar: “Warburg havia compreendido que devia renunciar a fixar as imagens“, afirma o autor (p. 389).
Warburg sintoma
O sintoma como categoria crítica, dirá Didi-Huberman, e a montagem como operação investigativa e interpretativa seriam portanto definidores de um modo de estar diante das imagens que encontra atualmente novos desenvolvimentos, como ramos ressecados que inesperadamente se põem a brotar fora de estação (p. 428). Não é esse o tema warburguiano por excelência, o das coisas que rebentam fora de seu tempo “natural”? É também por meio da descrição freudiana da formação dos sintomas psíquicos que Didi-Huberman apresenta ao leitor o fundamento “anacrônico” desse olhar sobre a cultura: assim como uma lembrança recalcada só ganha dimensão de trauma a posteriori, na medida em que reemerge distorcida na forma do sintoma, as “fontes primitivas” da imagem só se constituem no processo de seu reaparecimento (p. 289).
Para Didi-Huberman, esse movimento estrutura a maneira warburguiana de perscrutar o antigo a partir de suas reconfigurações contemporâneas. A conferência de 1923 sobre o ritual da serpente, que Warburg apresenta no sanatório onde se encontrava internado em grave crise psicótica, é considerada por Didi-Huberman uma síntese epistemológica. A um só tempo uma regressão e uma invenção: no momento da crise, o retorno ao périplo passado – a viagem ao território hopi realizada trinta anos antes – possibilita a produção de um novo conhecimento, “que tirou do fato de estar em perigo os fundamentos de sua eficácia” (p. 318).
Como teórico e curador, Didi-Huberman não deixa de mimetizar os procedimentos que identifica em Warburg, buscando apresentar ideias e imagens em seu caráter estruturalmente dúbio e parcialmente inacessível, sujeitando-as de modo explícito a “deslocamentos” ou “desvios”. As formas de montagem caleidoscópica que apresenta em seus textos e nas exposições que tem organizado fornecem, hoje, provavelmente, o paradigma mais visível e persuasivo para a recepção dos trabalhos de Warburg – que se torna mais presente no Brasil com a publicação.
Parece pertinente dirigir a essas formas a pergunta que nos ensinam: a que responde, no presente, o emprego das figuras da sintomatologia e da montagem modernista na narrativa historiográfica ou antropológica? A aspiração por uma anticiência, que ambiciona dar a ver as instâncias obscuras ou recalcadas da história, não deixa de ser uma das fórmulas patéticas que habitam nossas práticas de pesquisa e modas intelectuais. Seria desejável nesse sentido interpretar os conflitos persistentes e novos compromissos que se manifestam no destaque que vem recebendo a obra de Warburg e nas proposições sobre essa obra feitas por Didi-Huberman. Nas aproximações sempre férteis entre história e antropologia, sob inspiração do próprio autor, devemos estar dispostos a ler tais proposições e seus modos de difusão como sintomas, observar atentamente sua forma e temporalidade.
Em grande medida, o Warburg que vemos surgir no livro de Didi-Huberman – fortemente freudiano e benjaminiano, deleuziano em algumas passagens – é, ele mesmo, uma imagem: fantasma, montagem e sintoma. O Warburg “pescador de pérolas” (p. 423), mestre dos procedimentos intelectuais que nos parecem indispensáveis para a decifração do tempo presente (este tempo em que as imagens se multiplicam tão vertiginosamente a ponto de não mais as vermos), não nos precede cronologicamente apenas, como uma forma original resolvida, transmitida por imitação. Ele se constitui no próprio processo de deslocamento graças ao qual (re)aparece ao nosso interesse, uma “origem que só se constitui no atraso de sua manifestação” (p. 289).
1 BURUCÚA, José Emilio. Repercussões de Aby Warburg na América Latina. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 2, n. 21, dez. 2012. Disponível em: <http://concinnitas.kinghost.net/texto.cfm?edicao=21&id=97>.
2 HUCHET, Stéphane. O historiador e o artista na mesa de (des)orientação. Alguns apontamentos numa certa atmosfera warburguiana. Revista Ciclos, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 3-18, set. 2013. Disponível em: <www.revistas.udesc.br/index.php/ciclos/issue/view/291/showToc>.
Julia Ruiz Di Giovanni – Doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: judigiovanni@gmail.com.
A ditadura na tela: o cinema documentário e as memórias do regime militar brasileiro- DELLAMORE et. al. (Topoi)
DELLAMORE, Carolina; AMATO, Gabriel; BATISTA, Natalia. A ditadura na tela: o cinema documentário e as memórias do regime militar brasileiro. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018. Resenha de: CARDOSO, Igor Barbosa. História cultural, linguagem fílmica e ditadura militar brasileira. Topoi v.21 n.43 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2020.
Há algumas décadas, os estudos culturais flexibilizaram uma tradição de estudos históricos a fim de refletir sobre as políticas de identidade que discutem a questão do sujeito a partir de conflitos sociais em que há afirmação ou negação de identidades étnicas, nacionais, etárias, de gênero, de classe e outras. A renovação dos estudos históricos impactou as análises fílmicas no sentido de superar o diagnóstico estrutural da produção cultural de massa para voltar o olhar às condições efetivas e específicas de produção e recepção da obra. O olhar histórico e sociológico tendo o cinema como fonte de pesquisa passou a privilegiar, quando muito, o nível narrativo-dramático, em detrimento dos componentes propriamente estéticos.
Sob a organização dos doutorandos Carolina Dellamore, Gabriel Amato e Natalia Batista, o livro A ditadura na tela procura equilibrar as análises oriundas dos estudos culturais, levando em consideração a linguagem cinematográfica, em uma articulação interdisciplinar. Logo na introdução (“A ditadura na tela: questões conceituais”) – escrita pelos organizadores -, três pressupostos orientam a curadoria: os filmes documentais são tratados como “trabalhos de recordação interessados na construção de identidades e de projetos políticos no tempo presente de sua produção” (p. 12); são previamente indexados de modo que pactuam com o espectador um “compromisso de exploração da realidade” (p. 13); e são resultados de uma conformação cultural atual que demanda narrativas memorialísticas. A partir desses pressupostos, os historiadores articulam – alguns com mais sucesso – elementos fílmicos e extrafílmicos para compreender os posicionamentos assumidos pelos diretores em seus trabalhos bem como a relação de suas obras com o público.
A ditadura na tela é fruto do projeto de extensão, de título homônimo, conduzido pelo Núcleo de História Oral da UFMG. Em parceria com equipamentos públicos de Belo Horizonte – Centro de Referência da Moda e Museu da Imagem e do Som (MIS) Cine Santa Tereza -, o projeto exibiu, entre 2014 e 2017, diversos documentários a respeito do período ditatorial brasileiro (1964-1985), seguidos de discussões fomentadas por pesquisadores convidados. O livro é constituído de duas partes. A primeira (“As batalhas de memória no cinema documentário sobre a ditadura”) é resultado da reunião de dez artigos oriundos dessas intervenções públicas. Em parte por isso, não é possível encontrar unicidade metodológica de análise. Os temas abordados também são diversos: a militância de mulheres, estudantes universitários e operários; a relação entre Estado, futebol e imprensa; na produção cultural, a literatura de temática lésbica de Cassandra Rios, o grupo inovador Dzi Croquettes, o movimento (musical) tropicalista e os silêncios sobre o cantor Wilson Simonal.
Juliana Ventura Fernandes analisa Repare bem (2012), documentário da cineasta portuguesa Maria de Medeiros. No artigo, alguns aspectos próprios da composição fílmica são abordados, tais como a construção cênica (locações quase sempre na casa das entrevistadas), a montagem (que faz coincidir a fala das entrevistadas com imagens documentais, reforçando o argumento apresentado) e, especialmente, a oralidade (considerando tanto os momentos de maior contundência do discurso, quanto os depoimentos mais fragmentários e fugidios, além dos silêncios e pausas). A análise da violência e da perseguição política pelas quais três gerações de mulheres foram submetidas, proposta de Medeiros, é compreendida por Fernandes no campo das estratégias estatais de construção de uma memória sobre a ditadura, uma vez que o documentário é fruto da iniciativa do projeto Marcas da Memória, que tem por finalidade construir alternativas à atuação dos órgãos oficiais de reparação – geralmente, de caráter pecuniário – ao fornecer material para o reconhecimento de experiências de violência durante a ditadura.
De modo relativamente semelhante, Gabriel Amato analisa Memória do movimento estudantil (2007), documentário dirigido por Silvio Tendler, relacionando os elementos propriamente fílmicos e o debate historiográfico sobre a União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade que financiou a produção documental por meio de Lei Federal de Incentivo à Cultura. A partir do conceito exposto por Marie-Claire Lavabre, de que a memória histórica é uma sobreposição das fronteiras entre a prática social da memória e a atividade intelectual historiográfica, Amato propõe que a estética realista de Tendler corrobora a narrativa hegemônica sobre o movimento estudantil desenvolvida em O poder jovem (1968), de Arthur Poerner, segundo o qual “o estudante brasileiro é um oposicionista nato” (p. 56). Amato explora com acuidade o recorte realizado pelo documentarista dos documentos de época, das trilhas sonoras não originais, dos acontecimentos, das personagens e das entrevistas. Segundo o articulista, a seleção prévia expressa determinada visão de mundo que acaba por reduzir “a participação política dos estudantes brasileiros à história da UNE e a determinado modelo de militância dentro da entidade” (p. 59). Com efeito, a contracultura e o hippismo, duas manifestações culturais caras à juventude das décadas de 1960 a 80, permanecem silenciadas face à memória histórica da UNE – o que se reflete no trabalho de Tendler.
Também encontramos boa discussão historiográfica e de linguagem fílmica com Davi Aroeira Kacowicz, que analisa Tropicália (2012), documentário dirigido por Marcelo Machado. Como Amato sugeriu em relação a Memórias do movimento estudantil, Kacowicz discute a reprodução de certa memória histórica sobre a efervescência cultural dos anos 1960 no documentário de Machado, qual seja a de que a tropicália, conceito estético que designou uma constelação de vanguardas culturais, acaba reduzido ao tropicalismo, movimento musical de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Torquato Neto e tantos outros. Em contrapartida, Kacowicz evidencia que a historiografia mais recente compreende a contracultura brasileira para além das fronteiras da cena musical, a exemplo dos importantes trabalhos de Frederico Coelho (Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado, 2010), de Christopher Dunn (Brutalidade jardim, 2009) e de Heloísa Buarque de Hollanda (Impressões de viagem, 2004). Apesar disso, o artigo aponta que o levantamento documental empreendido por Machado traz fatos inéditos que podem revisar em parte a discussão historiográfica, como as cenas do Festival da Ilha de Wight de 1970 e a versão ao vivo da faixa Alfômega, apresentada por Caetano e Gil na rede de televisão portuguesa em 1969. Além da raridade material, Kacowicz atenta para o cuidadoso trabalho dispensado em Tropicália na condução da trilha sonora (sugerindo haver um refinamento técnico das músicas), dos efeitos de pós-produção (com inserção de cores vivas nas imagens em p&b) e de montagem, capazes de envolver o público em um “painel imagético-sonoro do contexto” (p. 133).
Da mesma forma que Kacowicz acredita que Tropicália pode contribuir para novas questões ao debate historiográfico, Natália Batista defende a tese de que o documentário Dzi Croquettes (2009), de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, inaugurou uma discussão que ainda não havia sido feita pelos historiadores, isto é, o papel do teatro na resistência à ditadura pelo viés do escracho e do humor, com a abordagem das homossexualidades. Batista também explicita que o esquecimento/apagamento em torno do grupo teatral dificulta a construção documentária na falta de outras ancoragens narrativas. De todo modo, por meio de entrevistas, imagens de arquivo e trilha sonora, Batista acredita que Issa e Alvarez conferem uma dimensão de engajamento do grupo diante da ditadura e um reconhecimento de sua importância tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Ademais, segundo Batista, o documentário permite questionar o pressuposto de “vazio cultural dos anos 1970” e, em especial, o papel dos corpos como atos políticos.
Ana Marília Menezes Carneiro debate a questão de gênero a partir de Cassandra Rios: a Safo de Perdizes (2013), documentário dirigido por Hannah Korich que conta com depoimentos de familiares, estudiosos e pessoas próximas da escritora, que escreveu romances bastante populares com temáticas homoeróticas. Carneiro ressalta a importância do documentário por reapresentar Cassandra Rios para além dos estereótipos muitas vezes preconceituosos e, ainda, por levar em consideração o amplo alcance de público, expressão de uma demanda social latente pelos temas ficcionalizados pela escritora. Apesar da boa discussão mobilizada por Carneiro em torno do silenciamento midiático sobre Cassandra Rios – reproduzindo em parte o argumento apresentado no depoimento de Laura Bacelar, editora de grande parte dos romances de Rios -, talvez fosse interessante resgatar reportagens de época em importantes meios de comunicação a fim de melhor explorar – e quem sabe nuançar – a tese sobre a recepção de suas obras durante a década de 1970, a exemplo do perfil elaborado sobre Cassandra Rios pela revista Realidade em 1970 e da crítica ao romance Carne em delírio escrita por Marina Colasanti e publicada pelo Jornal do Brasil em 1972.
Como no artigo de Juliana Ventura, a participação de mulheres na resistência à ditadura também é tema discutido por Débora Raiza Carolina Rocha Silva, que analisa Que bom te ver viva, documentário dirigido por Lúcia Murat e lançado em 1989. Silva retoma o contexto de produção memorialística e historiográfica sobre a ditadura militar nos finais da década de 1980 para compreender a representação do feminino na obra de Murat, em especial no que diz respeito à tortura de cunho sexual contra mulheres. Também lança um olhar atento sobre a recepção da obra no meio midiático. O artigo não explora o estatuto do documentário de Murat, constituído de cenas dramatizadas e depoimentos, o que poderia enriquecer enormemente a análise sobre as fronteiras do dizível, uma vez que a ficção é aí elemento central na abordagem de um tema sensível.
O artigo de Isabel Cristina Leite da Silva também aborda a representação do feminino durante a ditadura. Analisa Subversivas – Retratos femininos de luta contra a ditadura (2013), documentário dirigido por Fernanda Vidigal e Janaina Patrocínio. O texto destaca a inclusão de novos temas pelo documentário para compreender o período da ditadura militar, como o de conciliação entre o mundo político e o mundo privado, a maternidade, a revolução sexual e os novos comportamentos por parte de setores da sociedade brasileira frente ao aborto. A leitura realizada pela autora privilegia a exposição da narrativa desenvolvida pelo documentário, sem colocar questões com relação à linguagem propriamente fílmica.
A partir de Simonal – ninguém sabe o duro que dei (2009), documentário dirigido por Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, Bruno Vinicius de Morais tematiza o corpo negro do cantor Wilson Simonal como parte de uma memória subterrânea sobre o período ditatorial. Por meio de entrevistas concedidas por Manoel, que também foi comediante do grupo global Casseta & Planeta, Morais identifica um projeto de releitura sobre o período ditatorial brasileiro pretensamente assentado na renovação historiográfica empreendida por Daniel Aarão Reis Filho, para quem os anos de chumbo foram de relativo consenso e legitimação social, sendo que as esquerdas não apresentavam até então um programa democrático face ao autoritarismo de direita. Morais avalia que a forma pela qual o documentário foi recebido pela opinião pública em jornais e revistas é significativa: em geral, Wilson Simonal é representado como um artista ingênuo e apolítico; por outro lado, a esquerda é associada a um “stalinismo midiático”, tão autoritária quanto a própria ditadura. Segundo Morais, a apreensão conservadora sobre o regime militar acaba por se silenciar acerca de outras questões caras à trajetória do cantor, como as denúncias que fazia contra o racismo e a afirmação do orgulho negro em plena década de 1960, quando o debate racial carecia de espaços institucionalizados.
Já o artigo de Carolina Dellamore versa sobre Greve! (1979), documentário de João Batista de Andrade, que registrou o movimento grevista dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo (SP). Para Dellamore, o cineasta não somente mostrou a greve, mas buscou especialmente intervir na realidade, na medida em que o que ele filmou foi a situação criada a partir da presença da câmera, o que Jean-Claude Bernadet denominou de “dramaturgia da intervenção” (p. 87). O artigo explora a narrativa em off, que muitas vezes chega a ser irônica se contrapondo à exibição das imagens e às falas dos entrevistados. Outro aspecto da construção narrativa evidenciada por Dellamore reside na montagem empreendida por Andrade, que faz o depoimento do interventor Guaracy Horta em defesa da “normalidade” nos sindicatos ser contradito pelas imagens de repressão policial sobre os trabalhadores nas ruas. A trilha sonora, com músicas de Belchior, também é explorada como elemento diegético que sugere por vezes ambiguidade com relação às imagens exibidas. O movimento de câmara é analisado ao final, quando o cineasta privilegia a perspectiva do operário em vez do ponto de vista do palanque, das lideranças, revelando a posição crítica de desconfiança assumida por Andrade.
Marcus Vinícius Costa Lage escreve sobre Memórias do chumbo: o futebol nos tempos do Condor (2012), uma série de quatro documentários realizada por Lúcio de Castro sobre o uso político do futebol pelas ditaduras militares de Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. Exibida pelo canal televisivo ESPN Brasil, a série é analisada por Lage a partir da construção narrativa, ora atentando-se para a composição da trilha sonora, ora para os cenários nos quais os entrevistados depõem sobre o tema. Segundo o articulista, a abordagem escolhida por Castro privilegia a denúncia contra a corrupção das entidades desportivas, que seriam caracterizadas pela manipulação da opinião pública por meio do futebol, com interferência direta dos governos autoritários. O contexto de produção e lançamento da série – isto é, seis meses antes da realização da Copa das Confederações da FIFA no Brasil, quando parte da imprensa discutia a promoção de megaeventos esportivos que demandaram vultoso financiamento estatal – ajuda a explicar, segundo Lage, o posicionamento crítico do cineasta bem como do canal televisivo.
Na segunda parte do livro (“O fazer e o guardar no campo do cinema documentário sobre a ditadura”), a cineasta e professora Anita Leandro (UFRJ) escreve sobre o método de “montagem direta” utilizado em seu documentário Retratos de identificação, que consiste no comparecimento da imagem de arquivos – muitas delas inéditas e produzidas pela polícia para fins de identificação e controle do prisioneiro – diante da testemunha. Segundo a autora, o método precede a montagem propriamente dita de modo que de entrevistada a testemunha torna-se narradora de uma história na primeira pessoa. Apesar de existir uma seleção prévia das imagens e uma ordem de apresentação que designam um roteiro, a metodologia de Anita Leandro possibilita um novo campo de pesquisa ao despertar a potência mnêmica dos materiais de arquivo com a fala das testemunhas. Ainda com relação à segunda parte do livro, Marcella Furtado faz um apanhado geral sobre o acervo do MIS de Belo Horizonte, composto basicamente por cinejornais institucionais produzidos pela prefeitura e por materiais brutos e editados pela TV Globo Minas.
Por fim, vale ressaltar que o livro A ditadura na tela se mostra relevante para o atual debate historiográfico por diversos motivos. Em primeiro lugar, a própria seleção dos documentários privilegia a inclusão de novos sujeitos – mulheres, negros, homossexuais – para a compreensão mais plural da ditadura militar brasileira, que por vezes é centrada pela atuação de partidos e lideranças políticas. Em segundo lugar, no caso dos documentários que abordam atores já consagrados tanto pela memória quanto pela historiografia, como no caso da atuação do movimento estudantil ligado à UNE, o tratamento analítico dos articulistas procura explorar os desvios em relação às narrativas hegemônicas. Por fim e em terceiro lugar, ainda que nem todos os artigos se debrucem mais detidamente sobre a linguagem fílmica, fica nítido o esforço de levar em consideração tanto os elementos de produção e recepção das obras quanto os elementos estéticos específicos de fontes audiovisuais. Em tempo de revisões grosseiras sobre o período, A ditadura na tela contribui para um debate público qualificado, ultrapassando a interlocução entre pares, algo cada vez mais necessário.
Referências
DELLAMORE, Carolina; AMATO, Gabriel; BATISTA, Natalia(orgs.). A ditadura na tela: o cinema documentário e as memórias do regime militar brasileiro. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018. [ Links ]
Igor Barbosa Cardoso – Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais / Departamento de História, Belo Horizonte/MG – Brasil. E-mail: igorbcardoso@gmail.com.
Uma editora italiana na América Latina – SCARZANELLA (Topoi)
SCARZANELLA, Eugenia. Uma editora italiana na América Latina: o Grupo Abril (décadas de 1940 a 1970). Campinas: Editora da Unicamp, 2016. Resenha de: NASCIMENTO, Aline de Jesus. A família Civita e a imprensa na América Latina. Topoi v.21 n.43 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2020.
Escrever acerca da trajetória dos fundadores até a consolidação da Abril é tarefa que exige fôlego. Em meados do século XX, os seus criadores remodelaram os nichos editoriais na América Latina, principalmente no que tange ao caso brasileiro. Além do tradicional almanaque e das mais diversas coleções de fascículos, os produtos foram diversificados em vários suportes impressos não se limitando apenas às revistas, destinadas aos mais diversos públicos. A Abril segmentou o mercado de impressos e levou às bancas o mais variado tipo de revistas, que iam do esporte à moda, do gerenciamento e decoração da casa à informação semanal, enfim, uma diversidade de conteúdos que acabavam por agradar diferentes leitores e interesses, o que permitiu à empresa construir um verdadeiro império no campo editorial e tornar as bancas de jornais locais de informação e entretenimento. Uma empresa com tal renome não passaria impune aos historiadores, há uma gama de trabalhos acadêmicos acerca das principais revistas produzidas pela empresa, cada qual com sua metodologia.
O livro da professora de História da Universidade de Bolonha, Eugenia Scarzanella, seguiu uma linha interessante ao se basear na trajetória dos italianos pertencentes à família Civita na segunda metade do século XX. Especialista em América Latina, o livro representa sua primeira investida na empresa Abril. Sem deixar de entrelaçar as publicações da editora com o contexto político vigente, Scarzanella esmiuçou, com maestria, uma análise que levou em conta a experiência da Abril na Argentina, no Brasil e no México. Portanto, apesar da editora Abril constituir-se objeto comumente pesquisado, a autora contribui para as relações internacionais de um empreendimento que não afetou apenas o campo econômico, mas também o cultural. Dessa maneira, o título da obra por si já fornece indícios do que o leitor irá encontrar ao se debruçar no texto: a experiência de uma editora italiana na América Latina.
Cabe destacar dois pontos: a data de lançamento da tradução em português foi oportuna, visto que o atual cenário da editora não é mais promissor como o das décadas anteriores; a edição brasileira foi publicada pela Editora Unicamp, renomada por disseminar grandes títulos na área acadêmica.
Além do obstáculo da escassez de estudos que contemplem a trajetória da editora nos três países, outro desafio da pesquisa concerne às fontes. A fragmentação de documentos da editora Abril, que se encontram espalhados em diferentes bibliotecas e arquivos históricos, elencados na apresentação do livro, exigiu o empenho da pesquisadora não apenas na recolha, mas também no estabelecimento de uma linha de raciocínio diante de tantas frações. Também, a ausência de indícios fez com que Scarzanella levantasse diversas fontes para cobrir possíveis brechas na história. As fontes orais foram contribuições relevantes para o trabalho da historiadora. Além de compartilharem lembranças dos membros da família Civita, os testemunhos dos funcionários da empresa forneceram informações que não puderam ser acessadas nos escassos documentos oficiais.
A obra privilegia os primeiros anos da editora na Argentina, ao evidenciar como ocorreu a investida da empresa e quais foram as obras de mais destaque naquele país. A questão das relações étnicas e de como os italianos ocuparam espaço desse empreendimento na Argentina foi delineado pela autora e representa um novo olhar acerca da empresa. O livro, desse modo, contribui para novas perspectivas acerca dessa grande empresa que não se limitou apenas a um espaço geográfico.
O Brasil aparece como pano de fundo, quando a Abril constituiu-se numa empresa autônoma, mas que soube se apropriar de determinadas publicações de sua vizinha. Ao México foram destinadas poucas páginas no final do livro. A partir da atuação da família Civita na América Latina, o livro está dividido em seis capítulos com títulos claros acerca do que cada componente irá abordar. Acrescenta-se dois recursos interessantes: o índice onomástico e o caderno de imagens, elementos pós-textuais de grande relevância para quem quer realizar uma rápida consulta de revistas citadas no decorrer dos capítulos.
Scarzanella abordou os passos iniciais dos fundadores das empresas, a família Civita, desde o momento que fizeram parte da estatística dos exilados que se espalharam nos territórios da América por causa dos regimes totalitários entre 1920 e da Segunda Guerra Mundial que eclodiram na Europa. Cabe lembrar que uma parcela desses exilados era pertencente à classe social média alta, com elevados recursos econômicos e culturais. A atividade editorial da família Civita dentro do território latino-americano iniciou-se na Argentina com Cesare, empenhado em publicações de revistas em quadrinhos. Uma rede de relações e parcerias, firmadas por Cesare, na qual estavam envolvidos contatos com a comunidade judaica e italiana na Argentina, possibilitou um leque de novos financiadores e leitores. Em 1944, a Abril argentina publicou uma revista em pequeno formato da Disney: El Pato Donald. Trabalhar nesse local não significou apenas um privilégio econômico comparado a outros empregos no setor, simbolizava a possibilidade de compartilhar um ambiente dinâmico, jovem, culto e divertido.
Vittorio seguiu o caminho do irmão e, com os direitos autorais da Disney, publicou no Brasil, em junho de 1950, o Pato Donald, marcando o momento inicial da empresa que dominaria as bancas em poucos anos. A sede da editora sempre foi São Paulo, estado que se destacava do ponto de vista econômico e que então contava pouco mais de dois milhões de habitantes. O mundo do jornalismo, assim como o da cultura e dos intelectuais, era largamente dominado pelo eixo Rio de Janeiro/São Paulo e a cidade foi uma aposta do fundador que acabou por se revelar bastante acertada.
Scarzanella estabeleceu os traços comuns entre os dois países, que não se limitaram apenas pela escolha do mesmo nome para a editora. O desenvolvimento paralelo da Abril no Brasil e na Argentina prosseguiu por todos os anos de 1950. O caso da revista de fotonovelas Capricho merece destaque nessa relação devido ao seu grande sucesso. Lançada em 1952, a revista foi dirigida por uma colaboradora da Abril argentina, a fim de contribuir para o lançamento de novas publicações nesse gênero. Após uma mudança de formato e o início da publicação de histórias completas em cada número, o periódico chegou a uma tiragem de 500 mil cópias e uma versão em espanhol passou a ser distribuída na Argentina.
O segredo da Abril consistia em colocar no mercado novos produtos com publicações diferenciadas e destinadas a determinadas faixas de consumidores, em uma velocidade imposta pelas nuances do mercado editorial. Assim, em 1959, foi lançada em São Paulo a primeira revista de moda, Manequim, que utilizava material fotográfico proveniente de Buenos Aires.
Ainda na década de 1960, Parabrisas na Argentina foi grande sucesso relacionada ao desenvolvimento da indústria automobilística no país. O êxito acarretou no aumento de sua periodicidade – de mensal para semanal – a fim de estar mais presente nas bancas. Foi rebatizada como Corrida (1966) e Raúl Horacio Burzaco foi convidado para dirigi-la. Em agosto de 1960, a Abril de São Paulo lançou a revista Quatro Rodas, sob direção do jornalista Mino Carta, nos moldes da publicação argentina, igualmente especializada em turismo e automóveis.
Em 1961 surgiu nas bancas Claudia, publicação homônima à argentina lançada em 1957. Seguindo os moldes de Marie Claire, Grazia e Ladies’ Home Journal, esse semanal feminino foi de imediato grande sucesso. Destinado a donas de casa, explorou o uso de fotografia e publicidade nas suas páginas. No caso brasileiro, foi a primeira revista feminina que trouxe no título o nome de uma mulher. Os periódicos renovaram o gênero e sempre estiveram em sintonia com o crescimento da urbanização e das camadas médias. Porém, progressivamente ambas as revistas, brasileira e argentina, se distanciaram, ao adequar-se aos poucos cada qual a sua realidade nacional. Com grande sucesso até os dias atuais, no Brasil, Cláudia, destinada à mulher casada, deu origem a subprodutos como Casa Cláudia.
A Abril firmou-se no mercado brasileiro em função de projetos grandiosos e inovadores. Para garantir maior eficiência na vendagem, a editora criou uma rede de distribuição própria, comprou bancas e financiou jornaleiros para os quais organizou também cursos de formação. A editora brasileira antecipou-se à argentina no mercado de enciclopédias e fascículos com A Bíblia mais bela do mundo (1965), Os pensadores (1974), Os economistas (1982).
Pode-se levantar hipóteses de que a Abril brasileira pôde usufruir da vantagem de melhores relações com o poder público, mesmo com as dificuldades ligadas à limitação da liberdade da imprensa, fator que não se repetiu com a ditadura na Argentina. O regime militar brasileiro foi provavelmente para os empresários um interlocutor mais estável e mais hábil na gestão da economia em relação ao regime militar argentino, que fez as empresas naquele país “navegar[em] em águas difíceis, adaptando-se à mudança brusca de governos, à pretensão recorrente dos militares de impor à censura (e com ela a moral católica e conservadora) e à hostilidade dos seguidores de Perón (de direita e de esquerda), em guerra permanente entre si” (p.113).
A irmã brasileira lançou Realidade, em 1966, e Veja, em setembro de 1968. A censura impediu a circulação da primeira durante dois anos devido aos conteúdos considerados ofensivos (sexo, aborto, divórcio). O momento de lançamento da última não foi feliz porque, em dezembro do mesmo ano, foi decretado o Ato Institucional nº 5, com o qual o regime militar suspendia as garantias constitucionais. Entre 1975 e 1976, Veja teve que se submeter à aprovação prévia da censura e evitar tratar de uma lista de temas proibidos. Inclusive, de acordo com a historiadora, a demissão do diretor da revista, Mino Carta, teria sido uma exigência da ditadura, informação contestada de acordo com a versão do Roberto Civita (ALMEIDA, 2009, p. 151). Veja conseguiu sobreviver à ditadura e quando a editora brasileira comemorou 50 anos foi a revista com mais exemplares vendidos no país.
A Abril argentina não teve a mesma sorte, seus semanários de atualidade foram alvos de forte censura, houve intimidação e violência contra jornalistas, proprietários e tipógrafos. Em 1975, a organização de direita Aliança Anticomunista Argentina (Triple A) explodiu, diante do prédio da editora, uma bomba lança-panfletos contendo ameaças aos funcionários e à família Civita. Uma contribuição interessante do livro, mas que é pincelada pela autora foi que o empresário Cesare decidiu deixar o país e tentar se instalar em São Paulo, mas Vittorio teria dito que não havia modos de utilizá-lo dentro da sociedade. Esse tema pouco explorado representa uma nova perspectiva sobre a relação dos dois irmãos e questionamentos acerca dos conflitos de interesse das empresas.
A partir dos anos de 1960, Cesare tentou se inserir no México, com a Mex-Abril. enviando o genro Giorgio de Angeli para gerir esse novo empreendimento. Claudia também recebeu uma versão nesse país, com ingredientes locais, com divulgação de material de escritores e comerciantes, assuntos sobre homens e roupas que podiam ser compradas em boutiques nacionais, além de belas mulheres da televisão e sobre o cinema do país. A Mex-Abril não se revelou tão próspera quanto as irmãs e, no livro de Scarzanella, não houve muitas páginas dedicadas a essa investida de Cesare.
O destino da Abril argentina não se mostrou feliz desde os anos de 1970, explorado no encerramento do livro. Scarzanella enfatizou que o “capital social” de Cesare não foi o suficiente para transformar a editora argentina, empresa essencialmente familiar, em um empreendimento internacional. Os políticos, militares e lobistas teriam conquistados a Abril, como a própria autora afirmou no título do último capítulo.
O caso brasileiro foi mais frutífero. No ano de 2000, em seu cinquentenário, a empresa contava com 219 títulos nas bancas. Destarte, uma obra que demonstra as relações sociais e os empreendimentos na imprensa latino-americano dentro da família Civita, se caracteriza como uma leitura imprescindível. Principalmente, ao se considerar o entrelaçamento da Abril argentina com o contexto político do país que influenciou a sorte da empresa. Para um leitor que busca conhecimento acerca da Abril no Brasil e no México, o livro não contempla um estudo detalhado, o título original justifica o motivo: Abril – De Perón a Videla: um editore italiano a Buenos Aires. O assunto está longe de se esgotar dentro da obra, sendo, dessa maneira, um instrumento interessante para multiplicar as pesquisas sobre o assunto na área de História.
O estilo de escrita e a divisão dos capítulos permitem uma leitura fluída, inclusive para aqueles que não são especialistas na área. A obra se destaca por ser o resultado de uma pesquisa intensa com grande diversidade de fontes, motivo que contribui para os debates em torno da editora Abril e também abre espaço para se pensar acerca das redes étnicas criadas pela família Civita.
Referências
ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. São Paulo: Jaboticaba, 2009. [ Links ]
SCARZANELLA, Eugenia. Uma editora italiana na América Latina: o Grupo Abril (décadas de 1940 a 1970). Campinas. Editora da Unicamp, 2016. [ Links ]
Aline de Jesus Nascimento – Mestranda da Universidade Estadual de São Paulo / Departamento de História, campus Assis, Assis/SP – Brasil. Bolsista Fapesp, processo nº 2017/15451-9. E-mail: lini_nascimento@hotmail.com.
O rei, o pai e a morte – PARÉS (Topoi)
PARÉS, Luis Nicolau. O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: REZENDE, Leandro Gonçalves. A religião vodum e seus indeléveis laços atlânticos. Topoi v.21 n.43 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2020.
O livro O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental, obra publicada em 2016, é fruto de anos de pesquisa de Luis Nicolau Parés, doutor em Antropologia da Religião pela Universidade de Londres e professor da Universidade Federal da Bahia. Autor de variadas publicações, sua produção acadêmica encontra-se no limiar entre a história e a antropologia, destacando-se pelas análises comparativas entre as populações da África Ocidental e as afro-brasileiras, enfocando aspectos religiosos, étnicos e culturais. De modo geral, o livro em questão examina as práticas religiosas na África Ocidental, ou seja, os antigos reinos de Aladá, Uidá e Daomé, região que atualmente corresponde à República do Benim, demonstrando seu dinamismo e sua imbricação na vida política, social e econômica daquelas sociedades, nos séculos XVII, XVIII e XIX.
Da antiga Costa dos Escravos ou Costa da Mina, como denominavam os portugueses, foram embarcadas grandes levas de africanos escravizados, que desembarcaram no Brasil, em especial na Bahia. Trata-se de africanos falantes dos idiomas do grupo gbe, que compartilhavam a fé nos voduns. Fato significativo, pois, uma vez ressignificada, a cultura desses povos será preponderante, desde então, no imaginário afro-brasileiro. Assim, o autor busca entender o processo histórico das práticas religiosas e das crenças associadas aos voduns, destacando-as como importante elemento de identidade cultural, imprescindível para entender aspectos sociais, políticos e econômicos cunhados historicamente em ambas as costas atlânticas.
Trata-se de uma análise comparativa, pois para compreender a religiosidade afro-brasileira, recriada em Salvador, no Recôncavo Baiano ou no Maranhão, faz-se necessário um retorno às origens africanas, principalmente nos períodos de maior intensidade do tráfico de escravos. De fato, são africanas muitas das heranças que o universo brasileiro carrega, porque Brasil e África, desde o século XVI, estiveram conectados, ambos inseridos num contexto maior, o qual se pode denominar Mundo Atlântico. Dessa forma, os povos e culturas que habitavam as duas margens do Oceano Atlântico, mantiveram intensos vínculos, estabelecidos não somente pelo tráfico de escravos, mas por inúmeras formas de trocas, principalmente as trocas socioculturais, que, apropriadas de diferentes maneiras dos dois lados dessa lógica atlântica, conformaram uma cultura e identidade, sendo um de seus pilares a religiosidade. Todavia, o autor é enfático ao afirmar que não busca revelar origens cosmológicas dessa ancestralidade africana, numa tentativa de reelaboração de uma idealizada “África mítica”; mas sim, almeja um sistemático estudo histórico da cultura associada ao vodum, compreendendo sua dinâmica social localizada no tempo e no espaço.
De forma simples, Parés entende a religião “como toda interação ou comunicação entre ‘este mundo’ sensível e fenomenológico dos humanos e um ‘outro mundo’ invisível, onde se supõe habitem entidades espirituais, responsáveis pela sustentabilidade da vida neste mundo” (p. 37). Assim, para além do fenômeno religioso, buscar-se-á a compreensão de um rico universo cultural que mediava e formava parte das variadas relações sociais, como parentesco, poder político, justiça, economia e/ou arte. Logo, percebemos a existência de um sistema de significados coerente e coeso, mas que, com o devir do tempo, soube se moldar, (re)configurando-se, dinamicamente, numa crescente diversificação religiosa, que “não seria possível sem o desenvolvimento paralelo de um alto grau de tolerância religiosa, um dos aspectos mais notáveis do complexo cultural do vodum” (p. 39). Da mesma forma, o autor busca examinar a micropolítica religiosa na sua dinâmica interna, mas também a dialética paralela estabelecida com as influências externas que levam à progressiva inserção do local na economia atlântica global.
Assim sendo, a obra é composta de sete capítulos, num estudo que mantém um diálogo instigante entre as duas costas atlânticas, ou seja, da Costa da Mina ao Brasil e vice-versa, em constantes desdobramentos e reconfigurações. Mesmo que não formalmente, o estudo pode ser dividido em duas partes, que são tangenciadas pela estrutura religiosa associada aos voduns. A primeira é situada na África, compreendendo como as práticas religiosas, ligadas à estrutura de parentesco e ao culto aos ancestrais, se relacionam com a organização política e social desses antigos reinos, centralizada na figura do rei, numa época de intenso tráfico de escravos. Já a segunda parte ocupa-se das dinâmicas trocas culturais, que são ressignificadas de acordo com os novos cenários políticos, econômicos e sociais, os quais foram impostos aos africanos que desembarcaram no Novo Mundo. Assim, analisa-se a dinâmica e os significados dessas práticas e desses elementos rituais, demonstrando suas continuidades históricas, ressignificadas no contexto escravista.
Metodologicamente, o autor trabalha com diversificadas fontes, em especial os diários, correspondências e relatórios de estrangeiros e viajantes, que, geralmente, trazem um olhar eurocêntrico, dominador, intolerante e subjetivo, que precisa ser analisado e interpretado em seu viés ideológico; debatido e contextualizado com outras fontes e conhecimentos, para formar um relevante e útil corpus documental. Nesse sentido, Parés desenvolve uma apurada crítica historiográfica estabelecendo conexões e comparações com as fontes disponíveis, bem como analisando criticamente os discursos que tais fontes empregam, para, desse modo, entender a lógica cultural inerente à ação dos africanos, captando suas concepções locais, seu universo simbólico e sua práxis ritual. O fruto desse trabalho é a reconstrução de um universo religioso africano a partir de suas fontes internas, incluindo diversas tradições orais e elementos arqueológicos; e de suas fontes externas, abarcando os múltiplos tipos de escritos europeus, bem como as visões de mundo mistas e plurais de agentes intermediários, ou seja, dos africanos europeizados e dos europeus africanizados. Também se faz uso da etnografia ritual como subsídio histórico para interpretar comportamentos, aspectos simbólicos, expressivos e comunicativos. Nesse sentido, a tradição oral, em especial os contos, os mitos e as memórias locais sobre as práticas religiosas são importantes fontes históricas, na medida em que auxiliam no entendimento ou interpretação dos relatos, estabelecendo um profícuo diálogo entre a história e a antropologia.
Os primeiros capítulos do livro concentram-se, em parte significativa, nos processos históricos de formação dos antigos reinos de Aladá, Uidá e Daomé, destacando sua centralização política, o apego ao espaço territorial, cuja organização social era estruturada em famílias patriarcais, marcadas por vínculos de pertencimento, de descendência – cultos aos ancestrais -, e de territorialidade. Essas ligações familiares ou identidades coletivas são significativas na configuração das práticas religiosas, ou seja, nos cultos aos ancestrais e voduns: as forças invisíveis, os mistérios ou deuses. O rei era sacralizado e responsável pela manutenção das práticas religiosas locais, prescritas pela tradição, havendo forte mescla entre o cerimonial religioso e o cerimonial da corte. Nessa lógica, Parés examina a complexa interação de forças históricas e culturais que formaram essa cultura, na qual há uma relação direta entre parentesco, política e religião. Desvenda-se assim, o imbricado jogo de palavras que compõem o título da obra: o rei – o político; o pai – o familiar; e a morte – a ligação ancestral, que funciona como a relação basilar das instituições e que garantia a continuidade do reino. Portanto, ganha destaque a centralidade do culto aos mortos e sua eloquência indissociável dos voduns na cultura religiosa da área gbe. Nas palavras do autor, o rei, o pai e a morte são elos de identidade cultural, pois “a análise da organização social dos reinos de Aladá, Uidá e Daomé, das suas formas de legitimação política articuladas em função da ideologia da descendência, dos ritos fúnebres e do culto aos antepassados, permitiu compreender a imbricação entre o parentesco, a política e a religião” (p. 91).
A seguir, o autor apresenta algumas instituições e discursos religiosos emblemáticos da correlação entre os processos de centralização política e o estabelecimento de cultos extradomésticos, como por exemplo, o culto à serpente Dangbé, no reino de Uidá, ou o do leopardo Agassu, no reino do Daomé, demonstrando que os mesmo foram instituições inicialmente associadas à monarquia, mas que, por meio dela, foram promovidas, através de processos identitários, a emblemas e símbolos da nação, garantindo certa coesão social do reino. No caso do Daomé, houve ainda um investimento complementar no culto aos ancestrais reais, celebrados nos festivais conhecidos como Costumes, que poderiam ser distintos entre os “grandes Costumes”, celebrados após a morte de um rei; e os “Costumes anuais”, menores, em que se evocava a memória e se sacrificava para os ancestrais reais. A historiografia sobre os Costumes enfatizou múltiplas dimensões dessa instituição, porém cada autor em questão ressalta um aspecto distinto: fenômeno social total, função política, natureza militar, legitimação do poder real, dimensão econômica/comercial etc. Parés corrobora esses aspectos, todavia, evidencia que em meio a essa multifuncionalidade é fundamental destacar o campo religioso/ideológico, ou seja, “as oferendas sacrificiais aos ancestrais (e a outras divindades) e a concomitante ativação pública da memória do passado, como a lógica estruturante do ciclo cerimonial” (p. 185). Confirma-se também que a centralização política foi acompanhada de uma relativa centralização religiosa, na qual os ancestrais reais foram erigidos como referentes espirituais da nação.
Da mesma forma, a pesquisa destaca que para entender a “economia da escravidão” que se desenvolveu na Costa da Mina é necessário entender a “economia do religioso”, que envolvia a troca de bens materiais e imateriais entre clientes e sacerdotes, e entre homens e deuses. Tratava-se de sociedades nas quais as práticas agrícolas eram fundamentais (economia camponesa), onde se conhecia a escravidão, contudo, não eram sociedades escravistas, pois o processo produtivo não girava em torno de uma mercadoria principal, centrada no trabalho escravo, mas, ao contrário, a principal mercadoria de exportação era por excelência o próprio escravizado, “o corpo humano capaz de gerar força de trabalho” (p. 279). A principal forma de angariar novos cativos era a guerra e essa mercadoria humana era trocada por armamento e munição, ou por produtos de consumo, a exemplo de aguardente e tabaco, ou por bens europeus que denotavam prestígio, visando a aumentar a distinção social daqueles que monopolizavam os “meios de produção escravista”, ou seja, a coroa e os funcionários da corte. Nesse contexto, o pensamento religioso do vodum certamente ocupou lugar de destaque na mediação das relações mercantis, ao orientar as disposições e, em última instância, as decisões dos atores envolvidos, que em suas empreitadas lançavam apelos ao mundo invisível do vodum e ao seu aparato espiritual. Dessa forma, o autor é enfático ao afirmar que a prática religiosa interferia nos processos de escravização, da mesma forma que a realidade da escravidão encontrava expressão no ritual.
Significativo é notar que já em África existia um processo de assimilação e agregação de outros cultos importados ou por conquistas, ou por alianças ou pelo deslocamento de escravos, o que contribuiu para um significativo pluralismo religioso, baseado numa tradição de tolerância religiosa. Partindo dessa interpretação histórica, os capítulos finais do livro fazem uma comparação entre práticas religiosas de origem africana desenvolvidas no outro lado do Atlântico. Apesar das inevitáveis e evidentes transformações acontecidas em ambos os lados do Atlântico, existe um significativo paralelismo, que pode ser identificado em vários aspectos do panteão e das atividades rituais, tal qual a iniciação, que encontra surpreendentes semelhanças. Além disso, as práticas rituais dos devotos dos voduns teriam sido um importante modelo referencial para a organização de diversos grupos religiosos afro-brasileiros, permitindo organizar comunidades coesas, oferecendo aos seus membros recursos e apoio emocional para enfrentar a adversidade imposta pela situação de marginalidade social. Nas palavras do autor:
As religiões afro-brasileiras, ou de matriz africana, como sabemos, são o resultado de um complexo processo histórico de síntese e criatividade cultural em que se emaranharam as contribuições mais diversas, tanto dos vários povos africanos, de sua descendência crioula com o do cristianismo ibérico e das populações ameríndias. Contudo, isso não impedia que certas tradições culturais africanas fossem mais atuantes do que outras no processo de institucionalização dessas religiões. Minha tese é de que, a partir do século XVIII, especialmente na primeira metade do século XIX, os saberes dos sacerdotes dos voduns – relativos à instalação de altares em espaços estáveis, aos processos de iniciação, à hierarquização do corpo sacerdotal e à devoção conjunta a múltiplos deuses – estabeleceram um padrão de grande eficácia para integrar o pluralismo religioso dos escravizados em comunidades de tipo eclesial (p. 322).
Percebemos, assim, que a obra de Parés se enquadra na perspectiva de uma história conectada entre África e Brasil e vice-versa, ou seja, numa circularidade atlântica, em que práticas e discursos geograficamente distantes teriam se constituído mutuamente através do fluxo e refluxo de pessoas, ideias e mercadoria. Nas últimas décadas, percebemos que a ótica dos estudos africanos tem enfocado as relações culturais, que são formadoras de uma base comum, ou seja, uma herança cultural que une diferentes comunidades criadas a parir da diáspora africana, corroborando a existência de uma grande área cultural interligada em intensas trocas culturais e ressignificadas de maneiras distintas e em diferentes realidades no fluxo e refluxo que se deu nas duas costas atlânticas ao longo do tempo. Percebe-se, assim, uma grande redefinição identitária, ou seja, a reelaboração de novas formas de ser, agir e pensar o mundo. Há um diálogo criador, que superou as injustiças e adversidades impostas àqueles indivíduos. As religiões afro-brasileiras podem ser pensadas não apenas em termos de continuidades e sobrevivências africanas, mas sim como um processo de diálogo e interação constante com as práticas e os discursos religiosos africanos recepcionados e reelaborados nos diferentes contextos regionais. Assim, a devoção aos voduns se espalhou pelo Brasil, Haiti, Cuba, Estados Unidos, Jamaica e outros lugares do Caribe, onde essa memória ritual, mediada pelas entidades espirituais, contribuiu para interessantes desdobramentos identitários no contexto atlântico. O campo religioso, sem dúvida, é um espaço privilegiado para reivindicar identidade, para criar formas de pertencimento e até para a mobilização e a ação política. Conforme bem salientou Perés: “A centralidade das práticas religiosas para enfrentar, no nível individual, os momentos de experiência difícil e para negociar, no nível coletivo, as situações de subalternidade política faz delas um tema sempre relevante, qualquer que seja a sociedade ou o momento histórico” (p. 358).
Destarte, concluímos que a obra O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental é uma importante contribuição para a historiografia em língua portuguesa sobre a diáspora africana, demonstrando os impactos das práticas religiosas na economia, política e sociedade dos antigos reinos da Costa dos Escravos em sua correlação com a cultura afro-brasileira. Trata-se de uma obra significativa e referencial que estabelece um diálogo entre dois universos que se conectam por indeléveis laços religiosos confeccionados em contexto histórico marcado pela intolerância, mas que recriados deixaram um grande legado para os dias atuais.
Referências
PARÉS, Luis Nicolau. O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. [ Links ]
Leandro Gonçalves Rezende – Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais / Departamento de História, Belo Horizonte/MG – Brasil. E-mail: leandro9rezende@yahoo.com.br.
Golpes na história e na escola: o Brasil e América Latina nos séculos XX e XXI – MACHADO; TOLEDO (Topoi)
MACHADO, André Roberto de Arruda; TOLEDO, Maria Rita de Almeida. Golpes na história e na escola: o Brasil e América Latina nos séculos XX e XXI. São Paulo: Cortez Editora, ANPUH-SP, 2017. Resenha de: GENARI, Elton Rigoto. Na trincheira das conquistas democráticas: o ensino de história como alvo de ataques e resistência ativa. Topoi v.20 n.42 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2019.
Em 1940, sob a sombria República de Vichy, Marc Bloch se entregou à tarefa de refletir sobre a derrota francesa diante do nazismo, num esforço de compreender tal processo. Escrito em três meses, A estranha derrota é testamento do significado que articular historicamente o passado tinha para Bloch: uma tarefa que exige crítica, observação e honestidade nos estudos, bem como interesse consciente em relação ao seu próprio presente. A história do tempo presente e do tempo imediato sempre apresenta complicações particulares, não apenas pelo alto grau de divergência entre interpretações e pela fugacidade do conhecimento produzido, mas também por, tantas vezes, estar ligada a eventos desestabilizadores. Dificuldade que é também a própria exigência de sua escrita – é a desorientação que leva à busca de meios para agir com mais clareza no calor dos acontecimentos.
Politicamente engajado, Golpes na história e na escola nasce também sob o signo de tempos conturbados, sendo o golpe de Estado de 2016 no Brasil o ponto de partida para sua produção. Com o comprometimento de situar os acontecimentos numa perspectiva histórica, os autores elaboraram reflexões capazes de conectá-los a processos políticos e sociais mais amplos. O livro aponta diversas experiências históricas, formando uma malha de narrativas ligadas pela demanda ética de viabilizar, como afirmou Circe Bittencourt na apresentação da obra, “uma memória social em oposição àquela construída pelos atuais donos dos Três Poderes” (p. 5). E, ao longo da empreitada, fica evidente a conexão entre a política institucional e o conhecimento produzido e circulado nos universos acadêmico e escolar, com ênfase no conhecimento histórico.
A coletânea foi, primeiramente, concebida como um dossiê de revista acadêmica, aprofundando debates iniciados em Historiadores pela democracia1 – obra lançada por um grupo de pesquisadores que se posicionaram em defesa do mandato da presidenta Dilma Rousseff, apontando as irregularidades e os interesses subjacentes ao processo de impeachment levado a cabo contra ela. A proposta inicial tomou o formato de livro com o apoio recebido da seção São Paulo da Associação Nacional de História (ANPUH-SP) e tem, em seu âmago, a preocupação com o recrudescimento das disputas políticas no país, compreendido como uma ameaça não apenas à democracia brasileira, mas à própria concepção de História como área do conhecimento (p. 8). Dessa maneira, o livro se configura também como uma defesa do ofício de historiador, bem como do ensino de história.
O livro foi organizado por Maria Rita de Almeida Toledo (Unifesp) e André Roberto de Arruda Machado (Unifesp), respectivamente, pesquisadora do ensino de história e da formação de docentes, e estudioso da formação do Estado brasileiro. Traz artigos produzidos por historiadoras e historiadores de diferentes nacionalidades e divide-se em duas partes. A primeira engloba reflexões sobre as diversas tensões e interesses em disputa no Brasil nos contextos de golpe e exceção durante a chamada Quarta República, sobretudo o golpe civil-militar ocorrido em 1964, lançando também um breve olhar para o caso da ditadura argentina. A segunda parte trata das recentes tentativas de usurpar ou monopolizar a educação, discutindo os processos de formação da escola pública no Brasil e também na Colômbia, tendo como norte um debate sobre a liberdade de ensino e os projetos de sociedade que pautam diferentes perspectivas sobre a função social da escola.
A introdução avulta-se por articular as especialidades de Toledo e Machado numa reflexão historiográfica que, além de apresentar os trabalhos desenvolvidos em cada capítulo, chama a atenção para os embates entre diferentes sujeitos que permeiam os processos históricos e para o fato de que a sua escrita e seu ensino constituem ferramentas de poder e, em decorrência disso, campos de disputa. Junto disso, o texto apresenta um panorama do processo de despolitização da escola, identificado na própria constituição do sistema escolar brasileiro nos anos 1930 (p. 21-23).
Outro aspecto interessante é a coesão da coletânea, resultado do esforço em estabelecer diálogos entre as produções: os capítulos, mesmo sendo frutos de trabalhos prévios independentes sobre diferentes assuntos e temporalidades, possuem conexões claras. A obra abre espaço para analisar as articulações entre produção historiográfica, prática docente, educação básica e políticas educacionais, o que lhe confere um caráter politizado e colaborativo. Entretanto, nenhum artigo traz proposições ou experiências diretas de professores atuantes no Ensino Básico, o que poderia ter contribuído para fomentar mais diálogo entre o mundo escolar e o acadêmico.
Os primeiros quatro capítulos da Parte 1 se voltam para os atores políticos em contextos de golpe no Brasil, seus objetivos e atuação. O capítulo de abertura é de James Green, que se dedica a pesquisas sobre o Brasil e a América Latina na Brown University e investiga o papel dos Estados Unidos na construção da legitimidade dos processos que levaram às deposições de João Goulart, em 1964, e Dilma Rousseff, em 2016.
Os dois capítulos seguintes tratam do jogo de forças entre os atores nos três poderes. Em Crises políticas e o “golpismo atávico” na história recente do Brasil (1954-2016), Marcos Napolitano, professor da USP, e David Ribeiro percorrem as crises de 1954 e 2016, lançando o foco sobre o caráter desestabilizador que o desgaste das relações entre os poderes Executivo e Legislativo exerce sobre o sistema político. O texto de Napolitano e Ribeiro dialoga diretamente com o trabalho de Marco Aurélio Vannuchi que constitui o terceiro capítulo da coletânea, em que o autor apresenta uma análise sobre a atuação de juristas em oposição a Jango na década de 1960 e as correlações que ela carrega com a contemporaneidade, capaz também de problematizar a visão generalizada sobre a OAB como opositora do regime ditatorial desde a sua instauração.
O quarto capítulo, elaborado por Joana Monteleone, historiadora que pesquisa o apoio civil ao regime militar, em coautoria com o jornalista Haroldo Ceravolo Sereza, demonstra o protagonismo da Fiesp, especialmente através do Grupo Permanente de Mobilização Industrial, na articulação do golpe que derrubou João Goulart. Além de o estudo identificar de modo interessante a lógica da Doutrina de Segurança Nacional nas ações e planejamentos de grupos empresariais, o texto traz a reprodução de parte das fontes analisadas, permitindo seu uso em atividades escolares.
Os três últimos capítulos da primeira parte tratam da atuação de sujeitos na contramão dos regimes autoritários, a começar pelas comparações de Janaína de Almeida Teles entre os casos brasileiro e argentino no enfrentamento dos dilemas das reaberturas políticas, sobretudo ligadas ao direito à memória e à verdade. Em que pese o posicionamento crítico de Teles em relação às notórias limitações da atuação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, o artigo teria se beneficiado de um olhar mais matizado sobre o caso argentino para evitar dar a impressão de que esse teria obtido êxito completo. Ainda assim, Teles oferece uma perspectiva interessante para compreendermos a gênese das Comissões da Verdade e as dificuldades que envolvem a justiça de transição.
O sexto e sétimo capítulos dão enfoque ao protagonismo de movimentos sociais na luta pela democracia. Enquanto Claudia Moraes de Souza demonstra, em seu texto, o papel do Centro de Defesa de Direitos Humanos de Osasco no fortalecimento da luta por Direitos Humanos, o artigo de Petrônio Domingues e Flávio Gomes traz um importante panorama sobre as batalhas em torno dos usos de símbolos ligados a culturas de matriz africana. Além de apresentarem as distinções entre os movimentos organizados e as comunidades quilombolas, nos permitem enxergar suas estratégias, formas de atuação e seu papel fundamental, junto de esforços no ambiente acadêmico, no fortalecimento da luta contra o racismo, sobretudo ligadas ao reconhecimento dessas identidades e comunidades ao longo da Ditadura Civil-Militar. Nesse sentido, os três autores identificam, nas ações desses movimentos, um caráter de resistência e oposição aberta ao regime autoritário.
Em consonância com a primeira, a segunda parte do livro também fornece subsídios para o trabalho docente, com panoramas historiográficos, reflexões inovadoras e material para refletir sobre práticas e abordagens na escola, bem como uso de excertos em atividades educacionais. Esse mérito parece vir do entendimento de que a distinção entre bacharéis e licenciados foi constituída também em processos históricos cheios de tensões, conflitos e interesses políticos. É justamente esse o problema tratado pela co-organizadora Maria Rita de Almeida Toledo, no capítulo inicial da Parte 2. Uma contribuição importante do trabalho é inserir as disputas em torno de reformas educacionais da atualidade num contexto mais amplo, evidenciando continuidades que permitem ver, com mais clareza, a relação desses embates com diferentes projetos de sociedade.
Diante desses enfrentamentos, o capítulo de Fernando Seffner, coordenador da área de Ensino de História da UFRGS, aparece como uma resposta qualificada contra as iniciativas de estabelecimento de um ensino conformador de pensamento. De longe, é o mais voltado ao debate teórico sobre a ação docente, sua dimensão política e sua relação com o ferramental crítico atribuído ao fazer historiográfico. O texto de Seffner pondera sobre os limites, potencialidades e desafios para o ensino de história pensada não apenas como uma disciplina curricular isolada, mas como componente de um quadro mais amplo de saberes escolares fundamentais à construção de uma sociedade democrática. Na segunda parte do texto, Seffner avalia tentativas específicas de controlar e cercear a liberdade de ensinar e aprender, como projetos alterando a LDBEN (1996) e a Escola Sem Partido, também analisados nos capítulos finais.
Em Ideología de género: semblanza de um debate pospuesto, a professora do Centro Nacional de Memoria Histórica da Colombia, Nancy Prada Prada apresenta uma genealogia do conceito-espantalho “ideologia de gênero” nos debates políticos da Colômbia, bem como as finalidades de seu uso. Além de colaborar com a construção de uma crítica consistente às pautas dos grupos políticos que fazem uso do termo, seu trabalho nos ajuda a perceber que muitas convulsões sociais e enfrentamentos políticos de nosso cotidiano estão longe de ser um dilema exclusivamente brasileiro.
À luz de Seffner e Prada, os capítulos seguintes ficam ainda mais esclarecedores. Do arco-íris à monocromia: o Movimento Escola Sem Partido e as reações ao debate sobre gênero nas escolas, de Stella Maris Scatena Franco (USP), traz um histórico do próprio debate sobre gênero das últimas décadas, apontando para uma característica de movimentos como o Escola Sem Partido, a saber, a total recusa a ceder direitos. Nisso reside o elo com o trabalho seguinte, de Fernando de Araújo Penna, coordenador do Laboratório de Ensino de História da UFF, que observa as concepções do Movimento Escola Sem Partido sobre educação e, através das suas representações e discursos sobre o mundo escolar, chama a atenção para seu baixo apreço pela democracia e seus esforços em abolir o próprio caráter educacional da escola.
Esse tema se conecta às análises empreendidas por Antonio Simplicio de Almeida Neto e Diana Mendes Machado da Silva. Atuando na formação de professores e na pesquisa ligada ao ensino, os autores avaliam o papel da escola democrática diante de iniciativas de cerceamento da liberdade e dos ataques à educação de forma geral. Com isso, apontam os riscos que tais iniciativas reacionárias representam e o papel dos professores na defesa da escola e, consequentemente, da democracia.
Ao abrir mão de um fio condutor voltado ao aprofundamento de um único campo em prol de questões políticas do tempo imediato, Golpes na história e na escola traz as temáticas para o presente, demonstrando com clareza de que modos configuram campos de batalha na contemporaneidade. Interessa a uma série geral de pesquisadores por suas reflexões sobre a condição da profissão do estudioso em História, tanto na pesquisa acadêmica quanto na docência. Ao demonstrar a relação entre ensino e pesquisa, nos chama a refletir sobre os problemas ao subestimá-la. Simultaneamente, a obra nos permite compreender fatores que colaboraram para a construção da dicotomia ensino-pesquisa e, assim, percebemos como nossa herança do período ditatorial compõe um quadro mais complexo e multifacetado. De fato, é fundamental que pesquisadores reflitam sobre como suas pesquisas podem romper as barreiras do espaço acadêmico e alcançar a sociedade civil de modo amplo, trazendo a dimensão da educação para seus estudos, ao passo que educadores devem adotar a postura de pesquisadores na formulação e condução das aulas.
Outro aspecto de destaque é que a educação, ao longo das décadas, foi, ao mesmo tempo, campo de batalha e fortaleza sitiada nas disputas por hegemonia política no Brasil, alvo de uma série de discursos e dispositivos de poder em busca de sua instrumentalização. Por essa razão, o livro teria se beneficiado de contribuições que trouxessem experiências de profissionais que atuam no front. Professores que, em seu cotidiano nas escolas e nas pesquisas, produzem importantes análises para o enriquecimento da produção historiográfica e do ensino, não só permitindo um olhar mais esclarecido sobre as disputas em questão, como também caminhos para a superação de preconceitos que conservam uma relação dicotômica entre Universidade e Ensino Básico.
Por outro lado, essa limitação da coletânea apenas evidencia a dificuldade estrutural em aproximar a produção acadêmica da produção escolar, de modo que essa vigore como mais que mero objeto daquela. Atesta, desse modo, a importância das considerações propostas no livro e de ações institucionais que reconheçam a docência no ambiente escolar como prática incessante de pesquisa e não como conhecimento de segunda ordem. Isso é especialmente urgente em tempos em que a memória e o patrimônio nacionais são apagados por incêndios e iniciativas de censura, decorrentes de ações estratégicas e do próprio descaso do Poder Público. Assim, esse reconhecimento é fundamental a qualquer prática intelectual que busque defender e reforçar os alicerces e pilares de nossa jovem democracia, para que não seja necessário resgatar seus restos entre escombros.
Referências
Machado, André Roberto de Arruda; toledo, Maria Rita de Almeida . Golpes na história e na escola: o Brasil e América Latina nos séculos XX e XXI. São Paulo: Cortez Editora / ANPUH-SP, 2017. [ Links ]
MATTOS, Hebe; BESSONE, Tânia; MAMIGONIAN, Beatriz G. Historiadores pela democracia: o golpe de 2016 e a força do passado. Alameda, 2016. [ Links ]
1 MATTOS, Hebe; BESSONE, Tânia; MAMIGONIAN, Beatriz G. Historiadores pela democracia: o golpe de 2016 e a força do passado. Alameda, 2016.
Elton Rigotto Genari – Mestre em Ensino de História pela Universidade Estadual de Campinas / Instituto de Filosofia e Ciências Humanas / Departamento de História, Campinas/SP – Brasil. E-mail: eltonrigotto@gmail.com.
Corporação dos Enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798 – VALIM (Topoi)
VALIM, Patrícia. Corporação dos Enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798. Salvador: EDUFBA, 2018. 327p.p. Resenha de: CHAUVIN, Jean Pierre. Bastidores da Conjuração Baiana de 1798. Topoi v.20 n.42 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2019.
Nos cursos de Letras, quando topamos com periodizações relativas às partes do Brasil entre os séculos XVI e XVIII, costumamos aprender que o “Barroco” baiano durou 167 anos, de 1601 a 1768. Imediatamente após aquele “movimento artístico”, tido por rebuscado, serpenteante e obtuso, teríamos vivenciado 20 ou 30 anos de “Arcadismo”, iniciado muito precisamente em 1768 (ano em que saíram as Obras do desembargador, minerador, escravista e poeta Cláudio Manuel da Costa) e encerrado em data um tanto vaga, após a devassa, a prisão e a execução de um dos chamados “inconfidentes”. A solução que os manuais encontraram para preencher a distância geográfica e o intervalo temporal até a chegada e violenta instalação da Corte no Rio de Janeiro consistiu em fixar e nomear o período que vai de 1792 a 1808 (ou o 7 de setembro de 1822, ou o 2 de julho de 1823) como era “de transição”. Sugere-se que migramos do estatuto “colonial” português para o império da jovem nação brasileira – ainda que sob a tutela inglesa -, mediante os caprichos de um irrequieto d. Pedro I que projetava suas ambições dinásticas no filho: o “conciliador” Pedro II. Supõe-se, também, que a chama “pré-romântica”, com seu pendão protonativista, estivesse embutida no movimento “árcade” e se extinguisse no mesmo cadafalso que recebera o alferes Tiradentes. Em acordo com essa concepção escolar, que ainda vislumbra “espírito cívico” e “patriotismo brasileiro”, décadas antes de o país vir a sê-lo, a prisão dos conjurados também encerraria o brevíssimo e anacrônico “neoclassicismo” greco-latino, redivido no lamaçal de eiras e beiras setecentistas.
Desse modo, a já nem tão reluzente capitania mineira, embalada por “sentimentos antilusitanos” e candidatos a heróis da “pátria”, viveria um período de decadência socioeconômica e cultural, em que quase nada de relevante teria acontecido naquele território ultramarino – exceção feita às denúncias de crimes de lesa-majestade, punidos com a chibata em público, o degredo para possessões na África e, em alguns casos, a forca e o esquartejamento, previstos nas Ordenações do Reino para os mais pobres. Tudo isso para deleite de uma ansiosa tribuna ciosa por tonificar sua moral, ordem e civilidade – devidamente apinhada em torno do patíbulo instalado no Rio de Janeiro. Esquece-se, providencialmente, que as capitanias do Estado do Brasil atuavam pragmaticamente e de modo mais ou menos coordenado, pelo menos naquele tempo. Isso impediria negligenciar o habitual privilégio dos magistrados, o arbítrio das leis, os movimentos de sedição contra diferentes governos e mesmo as variadas representações artísticas – dentre elas, as práticas letradas produzidas por cortesãos sedentos de distinção entre os “homens bons”. Para além dos eventos transcorridos entre 1789 e 1792, nas Minas, haveria que se prestar detida atenção à Conjuração Baiana de 1798, transcorrida em Salvador, apenas seis anos após a execução de Tiradentes no Rio de Janeiro.
Salvo engano, é essa grande lacuna que este livro de Patrícia Valimvem preencher. Dividido em três seções, o estudo parece dialogar com a célebre disposição que Euclides da Cunha estendeu a Os sertões. A estrutura tripartite – anunciada no subtítulo (“Tensão”, “Contestação” e “Negociação política”) – projeta-se desde a capa, cujas cores se aproximam em muito do bleau, blanc, rouge que tingia os ideais republicanos e embalavam a Revolução Francesa, iniciada em 1789. Por sinal, a Conjuração Baiana de 1798 quase reproduzia os três pilares de além-mar: “liberdade, república e revolução” (p. 22). Antes de passar à matéria principal, a pesquisadora revisita a extensa tradição historiográfica produzida sobre a colonização portuguesa, dentro e fora do país (Inácio Accioli, John Armitage, Francisco Adolfo de Varnhagen, Fernandes Pinheiro, Francisco Borges de Barros, Braz do Amaral, Caio Prado Júnior, Affonso Ruy, Fernando Novais, István Jancsó, Carlos Guilherme Mota, Florestan Fernandes, Kenneth Maxwell, etc.) e restabelece a importância dos estudos de Kátia Mattoso e Valentim Alexandre, entre muitos outros que reorientaram os trabalhos, especialmente em torno da chamada “Conjuração Baiana de 1798”.
Como a historiadora adverte, em “Alguma explicação”, Salvador exercia a “capitalidade” no Estado do Brasil, concomitantemente à nova sede do vice-reino (Rio de Janeiro), desde o século anterior. Com dezenas de milhares de habitantes, em 1780, a capitania da Bahia tinha população, estrutura e poder consideravelmente maiores e tão complexos quanto aqueles das Minas, para onde se transferia a atenção da Coroa, interessada em fomentar a exploração dos escravos, com vistas a ampliar divisas da Metrópole, graças ao escoamento de ouro e outras mercadorias pelo porto do Rio – principalmente aquelas que sobrassem do sabido contrabando local, sob as desordens dos “principais do lugar”, a atuar em nome de Deus, da Lei e do pretenso racionalismo das Luzes. Em funcionamento análogo ao das vilas mineiras, “[…] a cidade [Salvador] foi o centro administrativo da colônia e do único vice-reinado no mundo atlântico até 1763, sede da única Relação do Brasil até 1751, sede do único bispado até 1676 e, depois, do arcebispado do Brasil” (p. 66). Além de recorrer a diversos documentos, localizados em numerosos acervos dentro e fora do país, Patrícia Valim dialoga com Arno Wehling, para quem: […] os inúmeros conflitos ocorridos entre vice-reis, governadores e demais autoridades, sobretudo no final do século XVIII […] caracterizavam a natureza intrinsecamente conflitual das relações de poder na colônia – que, antes de significar ausência de racionalidade, era a própria filosofia administrativa da Coroa Portuguesa (p. 77). O que se entendia por “Corporação de Enteados” – ponto de partida para a tese de Valim? De acordo com as cartas e relatos de Luís dos Santos Vilhena, professor régio que atuou em Salvador no final do século XVIII, tratava-se de homens poderosos e sem escrúpulos, a ocupar postos estratégicos no governo da Bahia, que emprestaram feição aparentemente legítima a práticas de enriquecimento pessoal, na proporção direta com que negligenciavam a enorme população de miseráveis, condenada a sobre-existir naquela capitania:
[…] por um lado a Coroa portuguesa tentava recrudescer a fiscalização de todas as variáveis envolvidas no comércio para exportação com a criação das Mesas de Inspeção, das Juntas da Fazenda e do Celeiro Público (…) por outro, ela se colocava em uma situação delicada na medida em que alguns dos principais comerciantes traficantes de escravos, financiadores da economia exportadora e não raras vezes acusados de praticarem contrabando, eram recrutados a ocupar os postos dos órgãos da administração local (p. 82).No primeiro capítulo, destacam-se os muitos papéis e atribuições do Secretário de Estado José Pires de Carvalho e Albuquerque, célebre pela vasta memória arquivística e por encontrar contínuas brechas na legislação vigente, a reforçar a vantajosa parceria com d. Fernando José de Portugal e Castro, governador da Bahia entre 1788 e 1801. No quadro geral, para além da escravidão – o principal eixo da economia baiana -, as “clivagens políticas das elites governativas” (p. 52) aproximam decisivamente os eventos transcorridos em Salvador com os de outras cercanias. Também havia contrabando na Bahia e, a exemplo do que sucedeu nas capitanias de Minas Gerais, Espírito Santo, Maranhão, etc., a troca de influências entre o governo e a justiça (e entre representantes da administração reinol e do clero) resultaram em uma complexa rede de benefícios escusos, restritos aos “principais do lugar”, convenientemente acobertados pela Coroa – mais preocupada em perpetuar o tráfico negreiro e o sistema exploratório do tabaco, do açúcar, do couro e de outras mercadorias: “[…] as falhas dos magistrados eram compensadas pelas funções políticas que eles acabam desempenhando” (p. 125). Dado o aumento do volume de correspondências contendo denúncias a emissários do reino, em Lisboa, e das representações à Vereança, assinadas por comerciantes e políticos locais, a Coroa fechou os olhos aos desmandos; alinhou-se de outras formas com o governo da capitania e passou a remunerar melhor as milícias da guarda real. Daí o relevante testemunho recuperado pela historiadora: “Vilhena associa a queda e a ausência de seus pagamentos à substituição das patentes dos agregados que havia nos corpos de milícias, pois parte dos provimentos do subsídio literário foi usada para a despesa com fardas e patentes que, a seu ver, ‘para nada lhes ficavam servindo’.” (p. 119). Após apresentar o complexo tabuleiro das relações institucionais, orientadas pelo personalismo e a administração irregular do dinheiro, em que sobressaem as imposturas do governador d. Fernando José Portugal de Castro e do secretário José Pires de Carvalho e Albuquerque, Patrícia Valim concentra-se na análise de conjuntura da época, na figura de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, Secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos e do Erário Régio “entre 1796 e 1803” (p. 154). Das numerosas contendas entre os secretários, uma das mais impressionantes envolve a tentativa de se extinguir “o fim dos morgadios” (p. 164), processo que se arrastou durante anos e facultou a José Pires de Carvalho e Albuquerque, em vitória pessoal contra d. Coutinho, acumular impressionantes “348 propriedades” (p. 172), muitas delas surrupiadas a partir de causas alheias. Evidencia-se que d. Rodrigo chocava-se constantemente com o outro Secretário, José Pires de Carvalho Albuquerque, que costumava ser defendido pelo governador d. Fernando, decerto porque as concepções econômicas de d. Rodrigo se aproximavam das medidas adotadas pelo Marquês de Pombal, braço direito do rei d. José I até 1777: “D. Rodrigo de Sousa Coutinho fundamenta-se sobre dois princípios: unidade política e dependência econômica (…)”, por acreditar “na centralidade da mineração na vida econômica da capitania e pujança da monarquia” (p. 155 e 159).
À medida que avançamos no livro, o ano de 1796 assoma como marco temporal decisivo para compreendermos as motivações que levaram, não apenas as camadas populares, ao movimento de sedição, dois anos depois. Com o passar do tempo, d. Rodrigo passou a contar com um aliado fundamental – o provedor José Venâncio de Seixas. Até 1796, a capitania não recorrera a empréstimos que não pudesse saldar. Daí em diante, a situação se inverteu, o que levou o provedor Seixas a implementar a cobrança de novas taxas e impostos, entre outras medidas que desfavoreceram os colonos e comerciantes locais. As constantes intrigas entre os partidários de d. Rodrigo de Sousa Coutinho e o séquito do governador d. Fernando José de Portugal e Castro aumentaram em muito os processos judiciais, especialmente entre membros da própria elite escravista, dentre os quais, destaca-se o “negociante português Antônio José Ferreira (…), obrigado a desistir da prorrogação do contrato do dízimo em razão da pressão exercida pelos negociantes soteropolitanos, com apoio da Junta da Fazenda, do governador da capitania da Bahia e do posterior reconhecimento de D. João VI” (p. 192).
Se o cenário era de tensão constante entre os poderosos, adeptos de posições antagônicas, pode-se imaginar a reverberação das contendas em outros setores e camadas médias e mais populares, o que terá colaborado na publicação de “dez boletins manuscritos” em “12 de agosto de 1798” (p. 195), cuja autoria era ignorada. De acordo com os documentos da época, o levante teria reunido “676 adeptos”, dentre os quais “513 pessoas pertenciam a corporações militares” (p. 196). Vale lembrar que, para além das divergências na cúpula do poder local, o sangrento conflito contrapunha multiproprietários e um exército de despossuídos. A desigualdade estava na base dos conflitos. No bando de lá, brilhavam “o secretário de Estado e Governo e seus parentes (…) [como] os maiores proprietários de engenhos da capitania a Bahia no início do século XIX” (p. 208). Deflagrado o movimento, rápida e barbaramente sufocado pelas forças do governo, que contavam com o aval da Coroa, cumpria identificar e apontar os cabeças do movimento: “O caminho duvidoso escolhido por D. Fernando foi o exame de várias petições antigas que se encontravam na Secretaria de Estado e Governo do Brasil, sob o comando de José Pires de Carvalho e Albuquerque. O objetivo era confrontar as letras dos documentos oficiais com as letras dos ‘pasquins sediciosos’.” (p. 222). Logo começaram a aparecer os bodes expiatórios. A esse respeito, Patrícia Valim notou que: “[…] em 1798, havia uma fluida relação de homens provenientes de vários setores, mas especialmente entre os senhores de escravos e de terras, escravos urbanos e os milicianos das tropas urbanas” (p. 231). A condição dos homens mantidos em cárcere era emblemática: “Em meados de 1799, já eram nove presos – pois um deles, Antônio José, morrera na prisão (…). Dos escravos indiciados nos autos, quase todos eram pardos e nascidos na Bahia” (p. 225). O governo recorria a todos os métodos, em diferentes graus de ilicitude, para punir os “sentenciados”. Outro exemplo de desfecho trágico contava com os conflitos entre os “pardos livres” e “escravos” (p. 228): “Do total de 13 testemunhas que formularam culpa sobre Luiz Gonzaga das Virgens e, depois, em outra devassa, sobre mais três pardos, o poder local aproveitou-se da animosidade existente entre pardos livres e escravos para convocar que estes últimos despusessem sobre o que eles sabiam acerca da ‘revolução projetada’.” (p. 238).
Amparada por extensa bibliografia e documentação, encontrada em arquivos e acervos bibliográficos, Patrícia Valim explicita os mecanismos de favorecimento pessoal, enriquecimento ilícito e a prática quase regularizada do contrabando e da apropriação indébita de recursos do erário real, sob os olhos semicerrados da Coroa – mais interessada em manter e ampliar os empréstimos e favores prestados pela capitania da Bahia. Como os denunciados eram tratados, enquanto aguardavam pela sentença? “[…] o padrão presente no interrogatório dos escravos é o mesmo dos depoimentos e da acareação de Domingos da Silva Lisboa, homem pardo. Encerravam-se as perguntas no momento em que os nomes dos ‘principais’ eram citados e retomava-se o processo um ou dois dias depois, sem que se verificasse a procedência das informações” (p. 248). Conformadas ao sistema de acobertamento, aplicado pela Coroa sobre as numerosas denúncias de corrupção e mau uso do dinheiro na capitania, as instituições continuavam a validar as denúncias, muitas vezes sem qualquer comprovação material. A pesquisadora salienta que, “Embora as autoridades locais não averiguassem as informações fornecidas pelos cativos e milicianos, ao longo de mais de um ano de investigação, as denúncias sobre a participação de ‘homens colocados entre os povos’ chegaram a Lisboa e medidas foram tomadas” (p. 255). Assim como a murmuração mística, pertinente ao Tribunal do Santo Ofício, no plano terreno “o ‘ouvir dizer’ foi mais do que suficiente para a acusação dos quatro milicianos pardos por participarem de reuniões de conteúdo sedicioso e serem os autores dos boletins manuscritos” (p. 257). Avancemos. Eis que se aproxima o momento do castigo exemplar a ser aplicado aos perigosíssimos homens pobres e pardos da capitania: “No dia 18 de outubro de 1799, foram definidos os critérios para as sentenças e o termo de conclusão da devassa instaurada para averiguar a “projectada revolução” (…) dos infelices e desgraçados RR [réus]” (p. 265 – respeitada a grafia original). Os lamentáveis episódios transcorridos em Salvador culminaram com a morte direta de quatro participantes do movimento, cujo procedimento permitiria evocar o que sucedeu ao alferes Tiradentes, em 1792, no Rio de Janeiro:
À execução dos outros dois réus [Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga e João de Deus do Nascimento], seguiu-se o esquartejamento dos corpos. A cabeça de Lucas Dantas foi degolada, assim como a dos outros três, e depois espetada em um poste no Dique do Desterro. Os outros pedaços dos corpos dos réus foram expostos no caminho do Largo de São Francisco, onde Lucas Dantas residiu (p. 272).
Mas, afinal, o que teria acontecido à corporação dos enteados, que mandava e desmandava na capitania da Bahia? O que costumava suceder aos “homens de bem” daquele território: “Após o enforcamento e esquartejamento dos réus da Conjuração Baiana de 1798, a corporação dos enteados manteve-se como setor dominante da capitania da Bahia, voltando a ocupar, inclusive, cargos na Câmara Municipal de Salvador, afastados desde 1796” (p. 278). Estas linhas dizem muito menos do que vai no livro de Patrícia Valim, estudo pioneiro nesta abrangente área de pesquisa. No que toca à famigerada Corporação dos Enteados, porventura, fosse oportuno discorrermos mais longamente sobre a fabricação de leis extravagantes ou sobre a emissão de alvarás que costumavam atender a demandas específicas, quase sempre benéficas àqueles com maior poder de barganha. Também poder-se-ia aventar a hipótese de que certas posturas e práticas, situadas entre os séculos XVIII e XIX, teriam deixado um legado pernicioso às instituições que ainda operam no país.
Talvez ainda haja aqueles que fingem crer na imparcialidade da justiça e, vez ou outra, sacralizem figuras que se propõem tão retas quanto heroicas. Em nosso tempo, estamos longe de assistir a revoluções, para além de assinaturas em petições on-line. Nem por isso, mudou-se o caráter arbitrário e excludente das leis; tampouco abrandou-se a pena com que uns são castigados sem medida e outros são poupados, esses, quase sempre por serem amigos do rei.
Referências
VALIM, Patrícia. Corporação dos Enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798. Salvador: EDUFBA, 2018, 327p. [ Links ]
Jean Pierre Chauvin – Professor da Universidade de São Paulo/Escola de Comunicações e Artes/Departamento de Jornalismo e Editoração, São Paulo/SP – Brasil. E-mail: tupiano@usp.br.
O palácio da memória – DIMEO (Topoi)
DiMEO, Nate. O palácio da memória. Galindo, Caetano W.. 1. edição. São Paulo: Todavia, 2017. 256 pp. Resenha de: SANTOS. O palácio da memória, ou: da arte de contar histórias. Topoi v.20 n.41 Rio de Janeiro May/Aug. 2019.
O palácio da memória, de Nate DiMeo (Todavia, 2017), pode ser descrito como uma obra de caráter transdisciplinar, no âmbito acadêmico-escolar – como leitura obrigatória em aulas relacionadas à História e/ou ao Ensino de História, bem como à escrita ou processos de escrita, tanto no ensino superior como na educação básica – e para além dele – como uma leitura não obrigatória, selecionada sem uma finalidade pedagógica específica.
O fato de se enquadrar de modo peculiar nesses dois espaços formativos que muitas vezes parecem tão distantes um do outro (o acadêmico-escolar, com suas normas e saberes sistematizados, e o do cotidiano, que não estabelece uma rotina tão rígida e apresenta outra relação com os saberes, na sua transmissão e recepção) possibilita ao livro de DiMeo algo que poucas obras conseguem: articular o saber histórico formal com o saber histórico do dia a dia.
Seja para amantes da História ou de histórias, O palácio da memória traz registros históricos contundentes, utilizando uma narrativa autoral que faz da leitura uma experiência no mínimo singular e recomendável.
Nate DiMeo, natural de Providence, em Rhode Island, nos Estados Unidos, é um ex-músico que trabalhou como repórter de rádio por mais de dez décadas, segundo relata Fernanda Ezabella (2017), que realizou uma entrevista com o autor antes de a obra chegar às livrarias brasileiras.1 Nessa entrevista ele explica seu interesse por temas relacionados ao século XIX, ou, mais especificamente, aos anos entre 1880 e 1920, período em que “a vida moderna estava sendo inventada”, como afirma.
É diante do excesso de informação de nossa cultura contemporânea – descrito desde a primeira metade do século passado por Walter Benjamin,2 salientado por Ítalo Calvino3 na metade da década de 1980 e também por Georges Balandier4 no final daquela época – que DiMeo encontra seus personagens e constrói (ou tenta reconstruir, a partir da perspectiva histórica) suas histórias. Diante desse excesso algo sempre surge lhe chamando a atenção, fazendo-o voltar posteriormente para checar a veracidade e pesquisar em museus e arquivos de jornais, para em seguida pensar sobre a forma de contar mais uma de suas histórias.
O que impressiona em seu trabalho, realizado desde 2008, quando estreou o podcast “The Memory Palace”,5 é a sua capacidade de contar histórias e de demonstrar suas potencialidades, bem como a força dessa prática por vezes tão esquecida em nossa era digital-informativa, em que muitas vezes a multiplicidade midiática retira nosso tempo de reflexão sobre determinado conteúdo, nos privando da “riqueza de significados possíveis”, como expressou Ítalo Calvino, pois a superabundância de imagens e de informações muitas vezes “se dissolve imediatamente como os sonhos que não deixam traços na memória”.6
Mas é da adversidade que conseguimos enxergar e criar alternativas, como analisa Marcelo Yuka.7 Nesse sentido, Nate utiliza desse excesso de informação para pegar aquilo que lhe toca e trabalhar em cima do que foi selecionado com a prudência e o cuidado de um historiador de ofício, dando o seu devido tempo e atenção. Desse modo, ele consegue deixar muitos traços das memórias que narra em nossas mentes-corpos – uma vez que estes são elementos indissociáveis de nossa percepção sensorial do mundo -, nos atingindo física e emocionalmente diante de seus relatos.
Se Georges Balandier (1999) ressaltava sobre o processo de banalização e de sobrecarga do imaginário social por meio da constante repetição de imagens e informações sem uma orientação crítica de seus usos, temos em O palácio da memória uma experiência muito diferente. Experiência, a propósito do ato de narrar, de contar histórias surpreendentes, que Walter Benjamim afirmava, em 1936, ser uma arte em vias de extinção.8 Segundo o filósofo alemão:
São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. É cada vez mais frequente que, quando o desejo de ouvir uma história é manifestado, o embaraço se generalize. É como se estivéssemos sendo privados de uma faculdade que nos parecia totalmente segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.9
Essa crise no ato de contar histórias, de intercambiar experiências significativas, é justificada por Benjamin ao afirmar que os fatos reportados em sua época, vindos de todas as partes do mundo, não favoreciam a narrativa – a experiência da narrativa -, pois vinham impregnados de explicações sem a necessidade da escuta atenta e sensível, do processo de efetuar relações e de refletir sobre o ocorrido; em contrapartida, isso favorecia o excesso de informação, que ainda hoje é um dos temas mais abordados por pesquisadores em diferentes áreas e campos do saber, como História, Educação, Sociologia, Comunicação, Mídia, Filosofia, Cinema, entre outros.
E por que a leitura de O palácio da memória é uma experiência narrativa diferenciada? Justamente porque Nate DiMeo consegue manifestar nosso desejo de ler/ouvir histórias, servindo como antídoto a todo o excedente informativo que permeia nossos dispositivos móveis e nossas vidas. Não obstante, ele demonstra que a História, deveras considerada um peso sem significado aparente na vida de muitos jovens estudantes, pode sim ser mais atrativa e carregada dos mais diversos significados.
Este é outro grande mérito desse artista estadunidense, de nos instigar -professores/formadores da educação básica ou do ensino superior – a rever nossos métodos e nossas próprias práticas pedagógicas, a ponto de podermos utilizar O palácio da memória em nossas aulas como um ponto de partida, um meio para elaborar novas possibilidades de ensino, de envolver nossos alunos com os conteúdos curriculares prescritos institucionalmente.
Não há outro meio de se conhecer mais a História e seus acontecimentos se não mergulhando naquilo que ela tem a nos oferecer. DiMeo faz isso, ele mergulha nas histórias que nos conta de modo a se aproximar das práticas relativas aos historiadores que atuam no campo da História Oral, contribuindo nesse terreno do “estudo da subjetividade e das representações do passado tomados como dados objetivos, capazes de incidir (de agir, portanto), sobre a realidade e sobre nosso entendimento do passado”, como sintetiza Verena Alberti10 a respeito dessa metodologia e abordagem historiográfica.
Essa aproximação com a História Oral está presente ao longo de toda obra, quando Nate toma como protagonistas de muitas de suas histórias sujeitos/personagens “comuns”, de “carne e osso” como todos nós, que não fazem parte daquela História seletiva e oficial – ou por muito tempo oficializada – que costumamos aprender nos bancos escolares, mas que, de acordo com Lucília Delgado,11 “anônima ou publicamente deixam sua marca, visível ou invisível, no tempo em que vivem, no cotidiano de seus paí ses e também na história da humanidade”.
Há também algumas grandes figuras conhecidas da História, sobretudo da história estadunidense, onde se passam as narrativas; mas nem por isso perdem seu valor, pois, quando contextualizados com a história social e coletiva da humanidade, conseguimos identificar sua importância e até mesmo relacionar a equivalentes de nossa própria esfera sociocultural.
Alguns desses nomes são de indivíduos que se consagraram em seus respectivos campos de atuação. Todavia, não se busca enaltecer e divinizar, nem tampouco condenar e demonizar tais sujeitos. Suas histórias são transcritas a partir de um contexto histórico-cultural maior, no qual o que importa, no fim das contas, não é reconhecer aqueles considerados e tratados como protagonistas, e sim ter consciência de que a história contada, por si só, teve (e, de certa maneira, continua tendo) uma relevância suficientemente expressiva em determinado tempo e espaço onde elas aconteceram – na verdade para além disso, uma vez que muitas delas cruzaram oceanos e continentes, inscrevendo-se na narrativa da história humana.
O palácio da memória está estruturado em 50 breves narrativas que abordam desde as desventuras de Samuel Finley Breese Morse – que, após perder a esposa e sequer conseguir estar presente ao seu funeral, “passou os quarenta e cinco anos seguintes inventando o telégrafo. […] E desenvolvendo o código Morse” (Distância, p. 9-10), na tentativa de que mais ninguém passasse por aquilo que ele viveu -, ao dia em que muitos nova-iorquinos quase enlouqueceram quando em uma manhã de novembro de 1874 uma alarmante notícia – inventada e publicada pelo jornal New York Herald – trouxe à tona muitos “monstros imaginários”, dando uma lição “que vale a pena recordar de vez em quando” (Enlouquecidos, p. 245-248), sobretudo diante de uma época em que as fake news estão ganhando cada vez mais destaque.
Entre as duas histórias, há muitas outras que emocionam, que chocam, que nos atingem de modo peculiar, nos fazendo pensar sobre o ocorrido ou sobre situações semelhantes que aconteceram também em tempos remotos e em outros lugares, distintos daquele que DiMeo descreve, ou que aconteceram recentemente; ou que acontecem ainda hoje, perto de nós, às vezes conosco, nessa sociedade em que muitos governos gostam de se autoproclamar democráticos, ainda que a democracia seja conhecida por poucos e distante de muitos.
Dentre alguns desses casos, que podem se relacionar de uma forma ou de outra, podemos trazer como exemplo o caso dos meninos de 9 anos que morriam simplesmente por serem crianças e por efetuarem um trabalho perigoso demais (Nipper, p. 17-18). De Minik Wallace, um inuíte de 7 anos de idade que vivia em um pequeno vilarejo na Groenlândia e viu o pai e outros conterrâneos morrerem quando saíram pela primeira vez de seu lugar de origem, convencidos por homens brancos a partirem para a cidade de Nova York, onde foram apresentados como artefatos e atração exótica, e que seriam estudados por cientistas do Museu de História Natural. Após a morte do pai, ele quis realizar um enterro conforme as tradições de sua cultura, descobrindo anos depois que fizera uma cerimônia sagrada inuíte para um saco de pedras, pois o corpo do pai havia sido mantido no museu, onde cientistas o dissecaram, fizeram estudos com o cérebro e deixaram os ossos em exposição (Algumas palavras para os responsáveis, p. 44-47). Das cobaias utilizadas durante o período da corrida espacial entre os Estados Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (Cobaias, p. 103-105). De James Powell e sua mãe, bem como de Odessa Bradford, de Perfecto Bandalan, de Eugene Williams, de Robert Bandy e de outros afro-americanos ou imigrantes esquecidos (Esquecemos, p. 120-122). Da coragem de amar de Charlie Zulu e Anita Corsini (Zulu Charlie Romeu, p. 150-155). Da trágica história de Lucy Bakewell (Um pintor na paisagem, p. 173-181). Do filhote de leão capturado no deserto da Núbia para ser transformado numa das mais conhecidas imagens do cinema – ainda que a imagem não descreva as situações pelas quais ele teve que passar (Vulgo: Leo, p. 198-202). Do simbolismo para a comunidade LGBT do White Horse, o mais antigo bar gay dos Estados Unidos (Um cavalo branco, p. 206-210). Das 77 pessoas que se tornaram mais de 8 mil, numa jornada de 500 quilômetros, na busca dos trabalhadores do campo pelo direito de se organizarem em sindicatos para que pudessem exigir dignidade humana (Peregrinar, p. 233-237). Entre tantas outras…
São histórias inspiradoras que nos levam a rever o momento presente por outra perspectiva, a repensar certos conceitos e a valorizar as potencialidades contidas nas ações humanas, sejam elas realizadas por grandes nomes ou por desconhecidos/as, pessoas que se inscrevem na e escrevem a História, tanto quanto aqueles a quem os livros oficiais mais costumam demarcar como os nomes a serem lembrados (ou, como muitas vezes acontece, decorados) para a realização de uma prova, para a escrita de uma redação ou para a encenação de uma peça teatral escolar.
Nesse contexto, O palácio da memória insere-se como uma importante e necessária ferramenta educativa, ao desmistificar acontecimentos históricos e ao contribuir, no âmbito historiográfico, a dar “inteligibilidade ao vivido e ao narrado”, como destaca Carla Rodeghero.12
O principal ponto de ligação do trabalho de Nate DiMeo com a História Oral se dá por ele trabalhar com memórias, o que Alessandro Portelli13 destaca – neste trabalho entre a História Oral e a Memória – como um “campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginárias” (1996, p. 72), ajudando-nos a compreender cada fragmento (cada pessoa, cada ação) desse mosaico que compõe a sociedade humana.
“Dizem que a memória pode ser um parque de diversões estranho e tortuoso, cheio de viagens em montanha-russa e salas de espelhos deformadores”, recorda o cineasta Michael Moore.14 Nesse parque de diversões que ilustra a memória, a força narrativa presente nos casos que DiMeo menciona nos prende na leitura do livro (ou na audição dos podcasts) de modo bastante satisfatório; como se ganhássemos as entradas para uma diversão previamente garantida – diversão que não se traduz somente em entretenimento, mas que faz pensar para além do habitual, promovendo reflexão.
Destarte, esse é o tipo de obra que eu recomendaria para os historiadores de ofício, profissionais, acadêmicos e para aqueles que não são, porém apreciam uma boa narrativa literária e gostam de ler/ouvir histórias. “Tudo que dizemos tem um ‘antes’ e um ‘depois’ – uma ‘margem’ na qual outras pessoas podem escrever”, acentuou Stuart Hall.15 Essa margem é onde Nate se ancora, utilizando-a com esmero.
Gostaria de finalizar este texto destacando duas questões: primeiro, parabenizar a editora Todavia pela publicação. Olhando em perspectiva, do ponto de vista qualitativo e deixando de lado os dados referentes ao número de exemplares vendidos – que no mercado editorial muitas vezes equivale a dizer se a obra foi ou está sendo um sucesso ou um fracasso -, posso afirmar que essa foi uma aposta significativa, pois permite que diferentes indivíduos (historiadores em formação, profissionais e leigos da área) reconheçam o valor contido nas histórias e no ato de narrar, na experiência que ela possibilita, naquele que talvez seja, como descreve Caetano W. Galindo ao final do livro, “o maior de todos os mecanismos de geração de empatia, de interesse, de comunidade e compaixão. Histórias. Narrativas” (p. 252).
Em segundo lugar, e não menos importante, convém destacar o trabalho de Caetano W. Galindo, responsável por traduzir a obra direto do áudio e apresentar o trabalho aos editores da Todavia. Até o momento, ela está em sua primeira edição impressa em nível mundial – nem em seu país de origem ela foi publicada, pois segundo DiMeo, na entrevista a Fernanda Ezabella mencionada no início do texto, os editores que lhe procuram têm interesse em um livro temático, enquanto ele prefere o formato curto de suas histórias, como faz em seu podcast.
Nate DiMeo, esse colecionador de memórias,16 vai encontrando novos fatos e personagens históricos para continuar compondo seu palácio da memória, compartilhando conosco os feitos de pessoas extraordinárias em tempos conturbados. Até o momento, o último podcast, o do episódio 144, foi publicado no dia 21 de junho de 2019. Se considerarmos que Nate continua realizando seu trabalho e que a edição da obra impressa reúne 50 de suas histórias, ainda há um bom número de casos a serem trabalhados e, quem sabe, publicados em edições futuras. Que as portas do palácio se mantenham abertas para nós!
1 EZABELLA, Fernanda. Ex-repórter de rádio, Nate Dimeo cria podcast que vai virar livro no Brasil. Folha, Los Angeles, 30 de julho de 2017. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2017/08/1904465-ex-reporter-de-radio-nate-dimeo-cria-podcast-que-vai-virar-livro-no-brasil.shtml. Acesso em: abril 2018.
2 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas, v. 1)
3 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
4 BALANDIER, Georges. O dédalo: para finalizar o século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
5Que pode ser conferido em: http://thememorypalace.us/.
6 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. op. cit. p. 73.
7 YUKA, Marcelo. Sua relação especial com o corpo. TEDxSudeste, 30 out. 2010. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WLlN_Xf4CFk. Acesso em: abril 2018.
8É importante situar que o contexto histórico em que Benjamin escreve sobre experiência é o do perío do entre guerras (Primeira e Segunda Guerra Mundial), quando os soldados voltavam dos campos de batalhas sem conseguir narrar sobre o que acontecera, afetando-os de modo permanente.
9 BENJAMIN, Walter, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, op. cit., p. 213.
10 ALBERTI, Verena. O lugar da história oral: o fascínio do vivido e as possibilidades de pesquisa. In: ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 13-43. p. 10.
11 DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Memória e história: multiplicidade e singularidade na construção do documento oral. Cadernos CERU, série 2, n. 12, p. 23-30, 2001. p. 24. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/75083/78649. Acesso em: março 2018.
12 RODEGHERO, Carla Simone. História oral e história recente do Brasil: desafios para a pesquisa e para o ensino. In: RODEGHERO, Carla Simone; GRINBERG, Lúcia; FROTSCHER, Méri (Orgs.). História oral e práticas educacionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. p. 61-84. p. 80.
13 PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996.
14 MOORE, Michael. Adoro problemas: histórias da minha vida. São Paulo: Lua de Papel, 2011.
15 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. p. 41.
16Como a revista Piauí o retratou na edição 129, de junho de 2017, na seção Vozes da América.
Referências
ALBERTI, Verena. O lugar da história oral: o fascínio do vivido e as possibilidades de pesquisa. In: ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 13-43. [ Links ]
BALANDIER, Georges. O dédalo: para finalizar o século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. [ Links ]
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas, v. 1) [ Links ]
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. [ Links ]
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Memória e história: multiplicidade e singularidade na construção do documento oral. Cadernos CERU, série 2, n. 12, p. 23-30, 2001. p. 24. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/75083/78649 . Acesso em: março 2018. [ Links ]
DIMEO, Nate. O palácio da memória. Tradução de Caetano W. Galindo. 1. edição. São Paulo: Todavia, 2017. 256 p. [ Links ]
EZABELLA, Fernanda. Ex-repórter de rádio, Nate Dimeo cria podcast que vai virar livro no Brasil. Folha, Los Angeles, 30 de julho de 2017. Disponível em: Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2017/08/1904465-exreporter-de-radio-nate-dimeo-cria-podcastque-vai-virar-livro-no-brasil.shtml . Acesso em: abril 2018. [ Links ]
HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. [ Links ]
MOORE, Michael. Adoro problemas: histórias da minha vida. São Paulo: Lua de Papel, 2011. [ Links ]
PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996. [ Links ]
RODEGHERO, Carla Simone. História oral e história recente do Brasil: desafios para a pesquisa e para o ensino. In: RODEGHERO, Carla Simone; GRINBERG, Lúcia; FROTSCHER, Méri (Orgs.). História oral e práticas educacionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. p. 61-84. p. 80. [ Links ]
YUKA, Marcelo. Sua relação especial com o corpo. TEDxSudeste, 30 out. 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WLlN_Xf4CFk . Acesso em: abril 2018. [ Links ]
José Douglas Alves dos Santos – Doutorando da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Florianópolis/SC – Brasil. E-mail: jdneo@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7263-4657.
Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso – MOERBECK (Topoi)
MOERBECK, Guilherme. Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso. Curitiba: Prismas, 2017. Resenha de: SILVA, Uiran Gebara. Conflito social, política e culto na Atenas de Eurípedes. Topoi v.20 n.41 Rio de Janeiro May/Aug. 2019.
O livro Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso é um importante trabalho sobre a relação da tragédia com a dimensão política e religiosa da sociedade ateniense do V a.C. Há no Brasil uma grande quantidade de estudos dedicados à poética da tragédia, mas poucos voltados para a investigação histórica por meio das tragédias, não sendo incomum que muitos dos estudantes só possam recorrer ao clássico conjunto de estudos sobre essa intersecção de Jean Pierre Venant e Pierre Vidal-Naquet.1 O autor do livro, Guilherme Moerbeck, já tem um conjunto respeitável de estudos que lida com a intersecção entre política e tragédia na Grécia Antiga. Esse conjunto de investigações se expressa em vários artigos e no livro Guerra, política e tragédia na Atenas Clássica.2 Enquanto no trabalho anterior o propósito foi perseguir a hipótese de que a relação entre política, guerra e a tragédia seria mais bem compreendida por meio da noção de “gerações”, nesta nova obra há um estudo mais interessado em Eurípedes, que põe no centro de suas preocupações a hipótese de que a dinâmica da participação política em Atenas no século V a.C. pode ser entendida como a configuração de um campo político, noção tomada de Pierre Bourdieu.
Para desenvolver essa ideia, na primeira parte do livro Moerbeck articula de maneira bastante competente uma série de questões teóricas. No primeiro capítulo, “Poder simbólico e habitus: aproximações teóricas para a análise das tragédias nas Grandes Dioni síacas”, o autor apresenta e delimita o emprego que faz da teoria dos campos (pensando a distribuição de bens simbólicos, distinções sociais e poder simbólico) e da noção de habitus (produção e reprodução e práticas no interior dos campos), ambas de Bourdieu. Seu ponto de partida é o teatro ateniense como uma prática engastada ou incrustada (seguindo a terminologia de Moses Finley), isto é, uma prática social integrada em outras práticas sociais. Como o teatro está incrustrado tanto na política quanto na religião, no segundo capítulo, “Espaço, ritual e performance na cidade das Grandes Dionisíacas”, o autor busca, por um lado, compreender a dimensão ritual do teatro em sua espacialidade na cidade de Atenas na sua relação com o festival das Grandes Dionisíacas, e, por outro, apreender as conexões com o desenvolvimento das práticas políticas atenienses entre a sua constituição democrática e sua vocação imperial. Isso resulta em intuições significativas no que diz respeito à hipótese da formação de um campo político (e talvez até mesmo de um campo artístico, associado) na Atenas do século V a.C. e ao papel do conflito social como elemento constitutivo da formação desse campo. A contraparte dessa perspectiva atenta à existência integrada das práticas sociais está nas dificuldades oferecidas pelas práticas religiosas na Antiguidade para com as interpretações modernas. O instrumental intelectual desencantado da modernidade3 tem muita dificuldade em compreender adequadamente o lugar do conflito dentro das práticas religiosas (em geral pensadas como homogeneizantes), em lidar com o grau de integração da religião com outras práticas sociais, e em pensar a força do religioso em relação ao político.
Na segunda parte do livro, Moerbeck analisa de modo sistemático duas tragédias de Eurípedes, As suplicantes e As fenícias. Aqui, ao se observar a relação do teatro ora com o campo político, ora com as práticas religiosas (um campo? O autor não o articula nesses termos), aquelas dificuldades se fazem presentes. No terceiro capítulo, “Política, posição social e guerra em As suplicantes de Eurípedes”, o autor demonstra como a recriação de Eurípedes do episódio mítico em que Teseu interfere no ciclo tebano se articula com temáticas políticas e religiosas prementes para a Atenas do V a.C. Do ponto de vista das relações da tragédia com a política, a interferência remete ao próprio debate ateniense sobre a guerra contra a Liga do Peloponeso, ainda em sua primeira fase. Aqui Moerbeck dá destaque aos significados da representação dramática do caráter democrático do governo de Teseu, com especial destaque para a configuração de um discurso de oposição à tirania e para a elaboração da voz do camponês como o representante do bom senso do conjunto dos cidadãos. Já ao observar a relação da tragédia com as práticas religiosas, a análise de Moerbeck adentra o território dos costumes enraizados em um passado distante, o pressuposto religioso por trás do tabu desrespeitado por Creonte ao não permitir o sepultamento devido dos invasores mortos no conflito entre Etéocles e Polinices. Há um conflito de contornos religiosos servindo de motivação para a ação de Atenas em Tebas, uma vez que o estatuto de Atenas e seu rei como responsáveis por zelar por esse costume na Ática é um dos elementos que entram no debate na assembleia presente na tragédia
Já no quarto capítulo, “Ambição, poder e política em As fenícias”, a tragédia que é analisada tem como conteúdo mítico episódios cronologicamente anteriores, mas foi composta posteriormente a As suplicantes. Aqui, Moerbeck reflete sobre como o conflito aristocrático entre Polinices e Etéocles, nela representado, também pode ser articulado com temáticas políticas e religiosas associadas a uma fase tardia da Guerra do Peloponeso. Por um lado, o das conexões com as temáticas políticas, o debate sobre a rotatividade de governantes e a invasão de Tebas por estrangeiros é remetido aos conflitos entre os legisladores e estrategos atenienses da última década do século V, com um papel de destaque para Alcebíades. Essa operação ilumina a dimensão sofística e demagógica dos discursos de Etéocles em favor da tirania na tragédia. Por outro, no que diz respeito às relações da tragédia com as práticas religiosas, o contexto de guerra e o imperialismo ateniense colocam em relevo os vários juramentos quebrados em As fenícias, que Moerbeck remete à problemática da recente destruição de Melos pelos atenienses e a justificativa do poder pelo poder.
Ao abordar nesses dois últimos capítulos a articulação entre esses três conjuntos de práticas sociais, Moerbeck se preocupa em não reduzir uma coisa à outra, buscando integrar da melhor maneira possível tanto as posições de Julian Gallego4 quanto as de Christiane Sorvinou-Inwood.5 O resultado da sua investigação não é transformar a tragédia em metáfora da política, nem reduzi-la a uma forma racionalizada de rituais dionisíacos, mas mostrar como essa tríplice articulação permite ver a formação do campo político em Atenas. E, por isso, o conflito social tem um papel muito importante na sua economia argumentativa. É, porém, exatamente essa centralidade do conflito social que nos reenvia às previamente mencionadas dificuldades da interpretação moderna no que tange às práticas religiosas.
Quando se trata de analisar o conflito social em termos políticos, as ciências humanas têm um instrumental teórico bastante apurado. A História, em particular, uma vez que a observação do conflito social sempre está associada às temáticas da permanência e da transformação de uma sociedade. Na investigação de Guilherme Moerbeck o conflito social com contornos políticos é, sem nenhuma surpresa, definido de várias maneiras em relação às cidades, à polis: há conflito dentro das cidades, fora das cidades, entre cidades. Nesse sentido, na análise de Moerbeck das relações entre o teatro e o campo político em formação, adentra-se numa esfera de observações que a hermenêutica moderna tende a ver como mais dinâmico no que diz respeito à observação dos conflitos sociais. Enquanto o autor busca resguardar a autonomia relativa da prática dramática, há também um esforço de interpretação da relação e do desvelamento das conexões com o conflito. Há uma dificuldade de fundo que se apresenta a interpretações desse tipo, que é o estatuto do mito recriado em cada tragédia específica, de modo que a investigação pode resultar em leituras redutoras que tratam o mito como metáfora ou alegoria do conflito social, da história. A solução de Moerbeck é pensar a própria historicidade da produção do mito (recusando tacitamente visões unitaristas do mito), preocupando-se em incluir na sua análise a diversidade de interpretações concorrentes e as reescritas do mito. Isto é feito por meio da análise tanto intra quanto extradiscursiva das duas tragédias de Eurípedes, principalmente no que diz respeito à observação dos contextos de encenação e as ambiguidades do conceito de performance (e suas implicações em termos de reprodução e criação do mito e das próprias tragédias). Assim, o conflito não é encontrado na metáfora, mas no contrapelo do texto.
A relação do teatro com as práticas religiosas cria dificuldades diferentes, pois, como já dissemos, aquela hermenêutica moderna configura o religioso como um campo mais estático: os ritos são primariamente pensados como tradição e permanência (uma derivação teórica persistente da atenção durkheimiana para com a coesão social). Aqui o risco é a redução do teatro à alegoria moral do costume tradicional, agora como rito que encena o costume. Nesse contexto interpretativo, a associação das tragédias de Eurípedes com uma moralidade pan-helênica pode levar a uma visão a-histórica dessa moralidade, ou tornar certas passagens incompreensíveis, como é o caso da nossa dificuldade em decifrar o sentido do ritual que leva ao sacrifício de Meneceu. A solução de Moerbeck é novamente pensar a produção histórica dos fenômenos, isto é, historicizar o rito.6 O tratamento dado pelo autor à dimensão espacial da produção e reprodução das relações sociais das Grandes Dionisíacas na Atenas do século V a.C. tem como resultado explicitar a interpenetração do político, do econômico e do religioso nos festivais. Outro importante resultado é que aquela moralidade pan-helênica com a qual as tragédias dialogam é vista como algo que é criado, transformado, que se consolida ou se enfraquece, isto é, em termos propriamente históricos. As tragédias de Eurípedes se revelam como um território de observação da contestação constante que se ofereceu a essa moralidade no contexto da Guerra do Peloponeso.
O lugar do religioso em meio às guerras contra os persas e à Guerra do Peloponeso remete necessariamente às regras de comportamento entre as cidades gregas nesse contexto belicoso. Do mesmo modo, a efetividade dessas regras conecta-se à efetividade da dimensão religiosa que lhes dá suporte. A análise de Moerbeck demonstra que tanto as tragédias de Eurípedes quanto a narrativa histórica tucidideana (como no caso de Mitilene e Melos) denunciam a falha sistemática em se cumprir tais regras. E, nesse sentido, uma das poucas lacunas que se pode apontar ao trabalho de Moerbeck é a de não ter explorado mais o quanto sua abordagem de historicizar essa moralidade permite colocar em questão a homogeneidade da identidade pan-helênica, uma homogeneidade que até pouco tempo era tida como consolidada nesse momento da história das cidades da Grécia. Ainda assim, seu estudo é um excelente ponto de partida para os futuros pesquisadores interessados em desenvolver essa linha de investigação.
1 VERNANT, Jean-Pierre, & VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 2005.
2 MOERBECK, Guilherme. Guerra, política e tragédia na Atenas Clássica. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.
3Cf. PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2013.
4 GALEGO, Julian. La democracia em tiempos de tragédia: asamblea ateniense y subjetividad política. Buenos Aires: Miño y Davila, 2005.
5 SOURVINOU-INWOOD. Christiane. Tragedy and Athenian religion. Lanham, MD: Lexington Books, 2003.
6Para uma colocação precisa destes problemas, cf. VERSNELL, H. S.Inconsistencies in Greek and roman Religion 2. Transition and Reversal in Myth & Ritual. Leiden: Brill, 1994.
Referências
GALEGO, Julian. La democracia em tiempos de tragédia: asamblea ateniense y subjetividad política. Buenos Aires: Miño y Davila, 2005. [ Links ]
MOERBECK, Guilherme. Guerra, política e tragédia na Atenas Clássica. Jundiaí: Paco Editorial, 2014. [ Links ]
MOERBECK, Guilherme. Entre a religião e a política: Eurípedes e a Guerra do Peloponeso. Curitiba: Prismas, 2017. [ Links ]
PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2013. [ Links ]
SOURVINOU-INWOOD. Christiane. Tragedy and Athenian religion. Lanham, MD: Lexington Books, 2003. [ Links ]
VERNANT, Jean-Pierre, & VIDALNAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 2005. [ Links ]
VERSNELL, H. S. Inconsistencies in Greek and roman Religion 2. Transition and Reversal in Myth & Ritual. Leiden: Brill, 1994. [ Links ]
Uiran Gebara da Silva – Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco/Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História, Recife/PE – Brasil. E-mail: uirangs@hotmail.com.
Estudos de história metrológica: Medidas de capacidade portuguesas – VIANA (Topoi)
VIANA, Mário. Estudos de história metrológica. Medidas de capacidade portuguesas. Lisboa: Universidade de Lisboa, Centro de História, 2015. 170p.p. Resenha de: TAVARES, Maria Alice da Silveira. Desenvolver a história da metrologia em Portugal: aportações para o estudo das medidas de capacidade. Topoi v.20 n.40 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2019.
Estudos de história metrológica. Medidas de capacidade portuguesas es el primer volumen de Mário Viana , profesor de la Universidad de las Azores, dedicado a esta temática. Se trata de más una etapa para el desarrollo de la história económica y de la metrología, gracias a los esfuerzos del autor en aportar nuevas contribuciones e interpretaciones, en especial, a partir de fuentes portuguesas, al mismo tiempo que evalúa la bibliografía existente. Con este estudio, Viana nos ofrece una panorámica de la metrología en Portugal, desde el siglo IX hasta el XIX, proporcionándonos una perspectiva diacrónica de análisis de amplio espectro cronológico de ocho siglos. La consolidación de esta línea de estudio resulta de la sensibilidad y experiencia por parte del autor que se fue cristalizando a lo largo de estos últimos años, entre 2007 y 2015. Prueba de esto, son los siete capítulos que componen esta obra objeto de la presente reseña. Estos son precedidos por una breve nota previa del mismo autor con la intención de dar a conocer y de aclarar la elección de este objeto de estudio, bien como sus motivaciones. Asimismo, podemos subrayar que los dos primeros estudios tienen una función pedagógica, con los objetivos de proporcionar herramientas de trabajo (fuentes, bibliografía, por ejemplo) y de introducir al lector en las problemáticas de la historia metrológica.
El primer capítulo, “A história metrológica portuguesa. Breve roteiro ideográfico”, de carácter pedagógico, tiene un doble enfoque: dar a conocer la historia metrológica portuguesa desde finales del siglo XII hasta la actualidad y hacer un punto de la situación de las investigaciones desarrolladas en este campo del conocimiento histórico, proporcionando nuevas aportaciones. Asimismo, se pretende introducir al lector en las discusiones actuales sobre esta temática, proporcionándole algunos ejes de discusión relacionados, en primer lugar, con la idea de caos asociada a las iniciativas de uniformización del sistema métrico decimal no solo en Europa, sino también en Portugal, en perjuicio de los pesos y medidas locales. La inflación del sistema métrico decimal y a continuación, las diferencias metrológicas, según las distintas regiones de Portugal, son otros parámetros objeto de atención en este estudio. A modo de colofón, el autor nos proporciona un listado bibliográfico sobre la historia de la metrología en Portugal, proporcionándonos un instrumento de trabajo y un punto de orientación para futuras investigaciones en este campo del conocimiento histórico.
Dentro de la misma temática, el segundo capítulo – “Medidas de capacidade medievais portuguesas: uma revisão” -, consiste en la publicación de los resultados presentados en el evento científico (O reino, as ilhas e o mar oceano. Estudos em homenagem a Artur Teodoro de Matos de Matos, edição de Avelino de Freitas de Meneses e João Paulo Oliveira e Costa, Lisboa – Ponta Delgada, Centro de História de Além-Mar – Universidade dos Açores, 2007, v. I, p. 59-80), celebrado en Portugal. Mário Viana nos hace el estado de la cuestión de las fuentes y de los estudios sobre las medidas de capacidad utilizadas durante la Edad Media en Portugal, mientras que, por otro lado, nos propone una reevaluación de la bibliografía existente sobre este objeto de estudio. Con este ejercicio, el autor pretende hacer una nueva reflexión sobre el sistema metrológico portugués, con el objetivo de demonstrar que se trata de un método con características propias, organizado, contradiciendo las teorías anteriores defensoras de la existencia de una métrica confusa y desordenada.
El tercer capítulo, “As medidas de capacidade nas inquirições de 1258” fue publicado anteriormente en la obra colectiva, Olhares sobre a história. Estudos oferecidos a Iria Gonçalves, Lisboa, Caleidoscópio, 2009, p. 691-702. El título nos remite directamente para el objeto de estudio – las medidas de capacidad -, observadas con base en las actas de las inquiriciones regias, fechadas de 1258, relativas a la región entre los ríos Cávado y Miño, en el Norte de Portugal. Se trata de un artículo con características peculiares, una vez que esta investigación resulta de una ósmosis entre la historia y las tecnologías, gracias a la aplicación (INQExpert) de búsqueda automatizada de texto basada en el sistema de lenguaje Java. Esta metodología posibilitó estudiar y reconstituir el sistema de medidas de capacidad tanto para sólidos, como para líquidos, en el Noroeste portugués. Este output se desarrolló en el ámbito del proyecto INQ1258, coordinado por el propio autor – Mário Viana -, que contó con financiación del Gobierno Autonómico de las Azores (Dirección Regional de Ciencia y Tecnología de las Azores, con la referencia: DRCT00276M2.1.2/I/008/2006).
Como el título nos indica – “Para a história da metrologia em Portugal: um documento de 1353 relativo a Bragança” – el presente capítulo consiste en el estudio de un documento relativo al concejo de Bragança (localizado en Nordeste de Portugal, cerca de la frontera con España), de la segunda mitad del siglo XIV (1353), que se encuentra en el Archivo Distrital de la referida ciudad. Este documento trata de un conflicto entre las gentes de Bragança y el concejo por culpa de las medidas de capacidad utilizadas para medir el vino. Este problema sirvió de punto de partida para explicar la política y la reforma de los pesos y medidas del rey D. Pedro I (1356-1367) que data de 1357-1358. Las informaciones de este texto fueron publicadas en la revista de la Universidad de las Azores: Arquipélago. História, Ponta Delgada, 14-15 (2010-2011). Por último, a modo de colofón, podemos apreciar la edición del documento.
El quinto capítulo – “Para a história da metrologia em Portugal: dois documentos de 1358-1360 relativos a Coimbra” -, es un ensayo con una estructura particular al igual que el anterior, pues Mário Viana trae nuevas contribuciones a partir de documentación referente a situaciones de conflictos. Una vez más, el autor se refiere a una contienda entre el concejo de Coimbra y el monasterio de Santa Cruz que asumió la defensa de la aldea de Ansião, término de la susodicha ciudad. Con base en los dos documentos que se encuentran editados al final del capítulo, en los anexos, el autor pretende demostrar una clara intervención gradual del poder regio en controlar las instituciones económicas locales, entre las cuales los pesos y las medidas utilizadas en los concejos y en sus términos. De este modo, se evidenció el impacto de la aplicación de la reforma metrológica otorgada en 1357-1358 por el rey D. Pedro I (1356-1367), aunque estas conclusiones fueran publicadas, igualmente, en la revista azorina, Arquipélago. História, de la Universidad de las Azores, en el año 2009, con las páginas 281-295)
A continuación, podemos encontrar el sexto texto, “A regulação metrológica em Portugal nos séculos XV e XVI” que fue publicado, de forma parcial, en otro capítulo anterior, “A metrologia nas posturas municipais dos Açores (séculos XVI-XVIII)”, en la obra colectiva: O Faial e a periferia açoriana nos séculos XV a XX. Actas do V Colóquio, Horta, Núcleo Cultural da Horta, 2011, p. 279-312. En este ensayo, el autor enfoca los mecanismos de reglamentación de los pesos y de las medidas y, por otro lado, reflexiona sobre los procesos de uniformización metrológica implementada por el poder regio a lo largo de la Edad Media, con el apoyo del poder local. En este sentido, el presente capítulo está organizado en dos ejes basilares: la implementación de la figura del funcionario regio, “almotacé-mor” en los concejos y su respectiva jurisdicción. El segundo dice respecto a la política de uniformización de pesos y medidas, a par de otras iniciativas que acompañan las tendencias de control del poder local y de desarrollo de una política fiscal.
En el último capítulo, “As medidas de capacidade nos Açores em 1868”, consiste en un estudio que fue publicado anteriormente en la obra colectiva, Aquém e além de São Jorge: memória e visão, Lisboa, Centro de História d’Aquem e d’Além-Mar, 2014, p. 143-164. Como el título indica, Mário Viana nos adentra en las medidas de capacidad utilizadas en el archipiélago de las Azores, en la segunda mitad del siglo XIX, más en concreto, en 1868, en el marco de la implementación del sistema métrico decimal en Portugal. Para lograr sus objetivos, el autor se fundamenta, en especial, en una fuente decimonónica: Mapas das medidas do novo sistema legal comparadas com as antigas dos diversos concelhos do reino e ilhas. A través de esta obra, tenemos acceso a datos metrológicos de 21 “distritos” (circunscripciones administrativas) y 439 concejos portugueses. En el caso particular de las Azores, los datos observados corresponden a los “distritos” de Angra de Heroísmo (isla Terceira), Ponta Delgada (isla de São Miguel) y Horta (isla de Faial). A partir de estas indicaciones metrológicas, el autor analiza y coteja las variaciones de las medidas de capacidad para líquidos y sólidos en el archipiélago azorino, con recurso sobre todo a la cartografía isleña. En el anexo del referido capítulo, podemos encontrar una serie de tablas esquemáticas con las medidas de capacidad (tonel, pipa, almud, “pote”, “canada”, cuartillo, medio cuartillo y cuarto cuartillo) utilizadas en el siglo XIX, en las islas de las Azores.
En suma, se trata de una obra importante para el desarrollo de la historia económica y para el estudio de la metrología en Portugal desde la Edad Media hasta la época contemporánea. Además, Mário Viana nos aporta nuevas investigaciones, sobre todo, en consonancia con el uso de las tecnologías, herramientas de trabajo indispensables en el desarrollo de investigaciones en las ciencias sociales y humanas.
Referências
Mário Viana . Estudos de história metrológica. Medidas de capacidade portuguesas. Lisboa: Universidade de Lisboa, Centro de História, 2015, 170p. [ Links ]
Maria Alice da Silveira Tavares – Investigadora da Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa – Portugal. E-mail: alice.tavares@gmail.com.
Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado – MICELI (Topoi)
MICELI, Sergio. Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado. 1. ed.. São Paulo: Todavia, 2018. 184p.p. Resenha de: TEDESCO, Alexandra. Do retrocesso ao sonho. Topoi v.20 n.40 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2019.
Obedecendo às escolhas teóricas da obra, não se pode acusar o leitor de contrariar o autor ao vincular a publicação do livro Sonhos da periferia (2018) a um projeto mais amplo, que perpassa a trajetória intelectual do sociólogo Sergio Miceli e que, como argumentaremos, parece, em seus termos, se constituir como mais um lance de um robusto projeto existencial, capaz de dotar de sentido heurístico as escolhas de recorte e as operações de enquadramento que organizam o livro. O ponto de vista que aqui se assume está construído a partir de um repertório conceitual afinado com o do autor, o que permite que o argumento do livro, bem como a investida que a publicação representa num campo específico – a saber, aquele da sociologia dos intelectuais e da história intelectual que tanto impulso ganhou nos estudos latino-americanos das últimas décadas a partir da circulação dos aportes de Pierre Bourdieu -, sejam cotejadas de modo simultâneo. Busca-se, com isso, apreciar o livro a partir de um procedimento análogo ao que o autor direciona a seus objetos, objetivando, desse modo, que essa resenha crítica contribua para destacar o caráter frutífero das considerações de ordem teórica e metodológica que perpassam a obra publicada pelo sociólogo e professor titular de sociologia na Universidade de São Paulo, Sergio Miceli.
O livro está dividido em três partes. Além da introdução constam um capítulo sobre as vanguardas argentinas e brasileiras sob prisma comparativo, um artigo sobre a revista Sur e, finalmente, um capítulo dedicado às trajetórias de Alfonsina Storini e Horacio Quiroga. Esta resenha acompanhará os argumentos na ordem de sua exposição, no intuito de dar prioridade às operações de enquadramento e às escolhas de recorte que parecem costurar o ordenamento dos temas, fornecendo assim os subsídios para um balanço final.
Na introdução, Miceli explicita que a escolha do recorte, a década de 1920, se justifica pelo fato de que nesse contexto coincide, em Brasil e Argentina, a emergência de vanguardas literárias imbricadas em regimes oligárquicos de fachada democrática: no caso brasileiro, a aliança que ficou conhecida como república do café com leite, sob predomínio paulista e, no caso argentino, os áureos tempos de Marcelo de Alvear. Especialmente no caso argentino, observa Miceli, os anos 1930 assistem a um processo de crise e de mudança na morfologia da inteligência, contexto que reforça o predomínio de um mercado intelectual fundamentado em relações pessoais de mecenato e legitimação endógena. Em oposição, pois, ao caso brasileiro, no qual análogo estado crítico levou a um regime de cooptação dos intelectuais (aspecto já proficuamente abordado por Miceli, diga-se de passagem, no compêndio publicado em 2001, Intelectuais à brasileira). Essa distinção entre os dois países – a predominância do mecenato privado na Argentina e o regime de engajamento nos cargos públicos no Brasil – perpassa todo o argumento do livro, e é enriquecida, no argumento de Miceli, a partir de outros traços diferenciais, a saber, o estatuto mais internacional (e internacionalizável) do idioma espanhol em relação ao português e, tangencialmente, indicativos como o diferente grau de abertura aos protagonismos femininos: a empreitada de Victoria Ocampo, por exemplo, não tem paralelo brasileiro, nem mesmo tomando em conta a contingente trajetória de Patrícia Galvão. A Sur, aliás, revista de Ocampo, já se erige, nesse momento do texto, como plataforma privilegiada de observação das tensões que Miceli se propõe a perscrutar, não pela sua muito celebrada sofisticação estética mas, ao contrário, pelo que a revista – principalmente a partir da observação da morfologia e da sociabilidade de seus membros fixos – revela da formação daquele campo intelectual. Desse modo, concentrando-se na passagem dos anos 1920 aos anos 1930, Miceli pretende capturar o momento de germinação de um interlúdio que compreende, em seus termos, o estouro da vanguarda martinfierrista e a decantação da reforma literária protagonizada por Sur. A bibliografia prolífica em torno da revista, sustenta Miceli, não incidiu de modo sistemático num aspecto constitutivo da revista, a saber, a materialidade das eleições dos índices, do projeto gráfico, do tamanho das seções, das propagandas de vultosos bens de consumo, da existência de memoriais, enfim, de toda uma sorte de pontos de observação que podem ser acionados na composição de uma análise que leva em conta aspectos como perfil de renda e de gosto dos leitores, pontos fundamentais para sustentar a aposta de Miceli de que toda disposição intelectual retém as marcas das condições nas quais se formou. A continuidade projetiva do livro é o arremedo da introdução, e dá o tom da argumentação subsequente. Em seus termos, “as vanguardas em retrocesso se transmutaram em quadros intelectuais cosmopolitas” (p. 17).
O primeiro capítulo, “A vanguarda argentina na década de 1920”, apresenta-se como resultado de um esforço que se pretende um compêndio de traços estruturais do campo literário argentino no período em questão, a partir da situação periférica que a Argentina ocupava na Republica Mundial das Letras. Esse é, aliás, o primeiro dos objetos aos quais Miceli se dedica em sua tarefa comparativa, na medida em que a relação de Brasil e Argentina com as ex- -metrópoles se apresenta distinta não apenas em grau mas, sobretudo, em efeito no campo – a escolha do título do livro já está, a essa altura, plenamente consonante com as escolhas teóricas do autor. O fato de que, na Argentina, a ausência de iniciativa pública em matéria de cultura tenha sido resiliente chama atenção como dado constitutivo da predominância do mecenato privado, que amplia sua influência conforme a literatura argentina vai reforçando seu intercâmbio internacional. Tal situação é confrontada com o contraexemplo brasileiro, no qual, destaca Miceli, além de não ser possível falar em uma relação sólida com os modernistas portugueses, a estabilidade do funcionalismo público fornecera, aos brasileiros, um estatuto precocemente profissional em relação ao país vizinho.
O caso do Brasil, funcionando enquanto ponto comparativo, ajuda a perceber, na sequência do argumento, que o funcionamento do nascente campo intelectual argentino esteve permeado por fissuras e tensões muito específicas. A questão da imigração, por exemplo, e sua incidência nas discussões sobre o idioma nacional, a partir das quais as posições intelectuais pareciam responder ao chamado de “preservar o que enxergavam como o tesouro do espanhol castiço passou a fazer as vezes de custódia das prerrogativas sociais cuja continuidade parecia em risco” (p. 28), bem como as clássicas fissuras de classe, como aquela explicitada pela sociabilidade de Boedo e Florida, compõem o argumento de Miceli. Tudo se passa como se os brasileiros se tivessem deixado contaminar menos pela vida pública do que os argentinos pelas relações que os cercavam, emoldurando um quadro em que “em ambos os países, o campo intelectual foi sendo modelado por forças sociais de elite cujas bases de sustentação material e simbólica estavam desigualmente sediadas na esfera estatal e no setor privado” (p. 37).
Após esse estudo comparado, o segundo capítulo, que retoma alguns pontos do livro de 2012, Vanguardas em retrocesso, intitula-se sugestivamente “A inteligência estrangeirada de Sur”. Se é ponto pacífico que poucas instituições culturais receberam tantos olhares acadêmicos como a revista dirigida por Victoria Ocampo, não é menos recorrente que as posições de revisão se enfrentem com uma espiral de filiações de prestígio e de recusas ideológicas. Miceli não deixa de situar sua posição, momento em que, inclusive, sua opção pela originalidade que a sociologia dos intelectuais pode aportar a temas canônicos da historiografia e da crítica literária se faz mais proeminente. Nesse sentido, apesar da vasta literatura, salienta Miceli, “posições tão antagônicas por vezes silenciam a respeito de feições sociais, políticas e intelectuais dos patronos das revistas, das quais preferem se esquivar” (p. 38). Apartado, pois, das acusações de que a Sur era um reflexo superestrutural da oligarquia agropecuária e, ao mesmo tempo, da tradição laudatória que a julga a partir de seu próprio cânone, a saber, o gosto bom e belo, Miceli pretende inserir-se na senda aberta por autores como Tulio H. Donghi e John King, a partir das quais a revista se torna objeto de análise social, não somente estético. Nesse sentido, a sociabilidade do círculo íntimo de Ocampo, suas relações familiares, seus gostos e preferências presumidas, todos esses dados ajudam a observar que, para além das adesões refletidas dos membros e do reivindicado apoliticismo da revista, opera um senso prático e um conjunto de posições que garantem a inteligibilidade social do empreendimento.
A narrativa de Miceli é pródiga em acompanhar o amadurecimento de uma tensão que levará ao descrédito da Sur frente à opinião pública nos anos que se seguem à caída de Perón, após 1955, mas que já está posta a partir dos primeiros anos da década de 1940. O efeito que os fascismos europeus causam nas revistas irmãs do empreendimento de Ocampo, a Nouvelle Revue Français e a Revista de Occidente – de Ortega y Gasset – constrangem a Sur a rever sua posição de ostentatória neutralidade. Num espaço de meses, pontua Miceli, relações sólidas da revista, como o próprio Ortega e Drieu de la Rochelle, passam a criticar a postura “ambígua” de Sur frente ao acirramento das tensões no velho continente, momento em que a “neutralidade” deixava de parecer uma opção viável. Politicamente, sugere Miceli, a revista fez o jogo das forças conservadoras enquanto, culturalmente, deu impulso inédito e vigoroso ao mercado editorial. Essa posição de hegemonia das consagrações culturais relacionava-se, para o autor, com uma opção constante na trajetória da revista, a saber, a transmutação das lutas sociais em dilemas civilizatórios, aos quais os intelectuais vinculados à Sur respondiam, a rigor, num tom abertamente espiritualista e impressionista, como se acompanha, sobretudo, a partir dos textos de Eduardo Mallea.
Sociabilidade fundamentada na antiguidade de seu prestígio, aponta Miceli, a Sur é também o espaço privilegiado de consolidação de um cânone, Jorge Luis Borges, a quem Miceli dedica as páginas mais ácidas de sua análise. O autor destaca que, em consonância com o caráter sempre arredio de Borges às críticas dos “especialistas” e à sua postura de juiz sentencioso, a crítica sempre foi imensamente generosa com o escritor. Não por acaso, nesse sentido, “a brigada de comparsas combatia ‘o exercício ilegal da crítica’, a saber, as incursões de acento sociológico, desacatos à ortodoxia dos magistrados do belo” (p. 77). A posição de Borges nas relações de seu tempo, bem como os influxos da crise internacional, são observados, no argumento de Miceli, a partir da própria prosa borgeana, atentando para uma cumplicidade de habitus que se expressa nas narrativas. Alguns efeitos de erudição, como pequenas alusões em francês, por exemplo, contribuem para evidenciar o argumento de Miceli a respeito da relação que Borges mantinha com seus discípulos, entre eles Mallea: “enquanto os artilheiros da brigada destroçam as investidas materialistas do sociologismo, o sumo sacerdote ensaia o esboço da ontologia que lastreia os artifícios literários” (p. 85). A ontologia de Sur, a metafísica de Borges: eficientes modos de negar a temporalização histórica e as análises de cunho social que sua aceitação certamente permite. Em epílogo contrastivo, lemos que esse mesmo Borges, patrono do autodidatismo cultivado dos dândis portenhos, cozinhado em caldo europeu, não encontra análogo brasileiro, o que justifica sua escolha exemplar.
O terceiro e último capítulo pode parecer, num olhar apressado, destoar do tema dos dois anteriores. “Sexo, voz e abismo”, no entanto, não apenas corrobora as teses de Miceli quanto ao hermetismo do círculo de Sur como, positivamente, ajuda a compreender essas redes da década de 1930 como um espectro constitutivo de trajetórias possíveis. Alfonsina Storini e Horácio Quiroga aparecem, em tom dramático, “prensados entre o rechaço movido pelos líderes da vanguarda martinfierrista e a adulação concedida pelos periódicos de ampla tiragem” (p. 97). As duas trajetórias, marcadas por tragédias pessoais e pela resistência profissional que encontraram de parte do grupo das vanguardas e, depois, da própria Sur, são analisadas no marco de uma relação tensional entre a condição biográfica marginal dos dois autores e sua ampla inserção nos projetos mais avançados da indústria cultural de então. Miceli nos apresenta duas trajetórias polivalentes, distantes do tom blasé com o qual seus contemporâneos de Sur criticavam a cultura de massa. Obra e vida de Storini e Quiroga aparecem, ao contrário, perpassadas pela indústria cultural. Assim, o melancólico Quiroga e a provocativa Alfonsina, reabilitados pelas críticas dos anos 1980 e 1990, recuperam o lugar da marginalidade morfológica que é, em termos analíticos, o contraponto necessário das posições de Sur. Para capturar essa tensão, Miceli recorre às fotografias públicas de Quiroga e Alfonsina, recurso que o permite capturar os trejeitos, a sociabilidade e a inserção de suas figuras, tão menos documentadas que as do círculo de Victoria Ocampo, cujas fotografias com grandes nomes do jet set intelectual internacional são, desde muito, célebres.
Chama a atenção, no entremeio da prosa sofisticada de Miceli, o recurso à uma estratégia analítica que, mais que uma sub-reptícia tomada de posição teórica, apresenta-se de modo sumamente honesto ao leitor: a revisão de objetos muito revisitados não é gratuita, mas obedece a um propósito que, se não pode, evidentemente, aparecer aqui como “estratégia oculta” ou mesmo como teodiceia subversiva, certamente pode ser apresentada como uma alternativa à história das ideias que, costumeiramente, é laudatória em relação à figuras simbólicas tão potentes como a Sur. A aposta na morfologia do campo, nas relações de parentesco e antiguidade do prestígio, entre outras, ajuda a pensar as distintas relações que esses intelectuais mantiveram com a indústria cultural e com as demandas de seu tempo enquanto variações de uma disputa mais robusta que envolvia não apenas um ethos, mas uma visão de mundo e, assim, uma aposta normativa sobre ele. Percebe-se, por exemplo, que a prosa sempre robusta de Miceli incide criticamente em Borges e se suaviza quando se trata de pensar o caso dos outsiders Alfonsina e Quiroga. Não compreendendo essa oscilação como uma escolha somente afetiva do autor, mas como um componente de seu argumento, tudo se passa como se a análise de cariz sociológico fosse capaz de restituir, pelo descortinamento que opera, o lugar das figuras menores, obscurecidas por uma tradição que costumava creditar o sucesso ao gênio e vice-versa, sem atentar-se para as inflexões sociais das posições ou, num extremo oposto, associando de modo irrefletido uma tomada de posição teórica a uma adesão ideológica manifesta. A sociologia aparece aqui, como antes aparecia em Bourdieu, como esporte de combate: trata-se de propor uma narrativa menos complacente com a dos sonhos estéticos da vanguarda.
Entrar em contato com o livro de Miceli é, por todo o exposto até aqui, abrir-se para um repertório criativo e inovador de análises que procuram, a partir de luz nova, observar fenômenos consagrados de história intelectual. Para além do rigor documental e da prosa erudita do sociólogo, nesse sentido, a aposta comparativa e a análise de trajetórias contribuem para alocar o livro, sem ressalvas nesse momento, num movimento de renovação que é, sintomaticamente, protagonizado por historiadores e sociólogos argentinos como Alejandro Blanco e Carlos Altamirano. Em certo momento da análise de Sur e dos vínculos societários por ela organizados, Miceli aponta que “para desconcerto dos estetas, o anúncio de pianos de cauda é tão revelador quanto a peroração patrioteira de Mallea ou os artifícios literários de Borges” (p. 14). Ilustrando a tese a partir de seu próprio texto, Miceli nos fornece uma chave de leitura interessante para a dedicatória que inaugura o livro, dirigida aos hermanos Alejandro Blanco, Adrián Gorelik, Carlos Altamirano e Jorge Myers: interlocutores de seu projeto intelectual e colaboradores da aproximação comparativa em termos latino-americanos. Desse modo, a opção pela linguagem marcadamente sociológica, o tom combativo de algumas considerações e, principalmente, essa retumbante vinculação que abre o livro, nos parecem tão reveladores quanto a análise minuciosa da documentação e o rigor analítico do autor, dimensões polifônicas que tornam o livro indispensável para qualquer um que esteja interessado, e aberto, aos temas mais candentes da história intelectual latino-americana e, ao mesmo tempo, à sua interface de colaboração disciplinar.
Referências
MICELI, Sergio . Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018, 184p. [ Links ]
Alexandra Tedesco – Doutora pela Universidade Estadual de Campinas/Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, Programa de Pós-graduação em História, Campinas/SP – Brasil. E-mail: alexandra.tedesco@gmail.com.
A Persistent Revolution: History, Nationalism, and Politics in Mexico since 1968 – SHEPPARD (Topoi)
SHEPPARD, R. A Persistent Revolution: History, Nationalism, and Politics in Mexico since 1968. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2016. 392 p.p. Resenha de: SILVA JÚNIOR, José Antonio Ferreira. Nacionalismo revolucionário e a política do discurso no México. Topoi v.19 n.39 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018.
O México vem atraindo atenção da grande mídia nos últimos tempos principalmente por sua relação cada vez mais delicada com os Estados Unidos. Após a eleição de Donald Trump (2016), o tema dos imigrantes ilegais e a construção de um muro na fronteira mexicana se tornaram tópicos recorrentes. O livro de Randall Sheppard, A Persistent Revolution (disponível on-line na plataforma Project Muse), é uma importante contribuição acadêmica a questões que voltaram a surgir neste contexto e que demonstram como as análises da situação política mexicana ainda são parciais e enviesadas a partir do “poderoso vizinho do norte”. O historiador da Universidade de Leiden, na Holanda, dedica-se a estudar as relações entre política e história na construção do nacionalismo no México dominado pelo Partido Revolucionario Institucional (PRI), partido este que se construiu ao longo do século XX como o suposto herdeiro da Revolução Mexicana.
Esta não é a primeira publicação do autor sobre a história mexicana. O livro é resultado de seu doutorado, conduzido na Univesidade La Trobe, na Austrália. Tendo passado por um pós-doutorado na Alemanha, em Colônia, entre 2013 e 2016, suas produções mostram-se dedicadas a estudar o México durante o século XX. Em dois artigos, analisou a dimensão discursivo-política em torno da crise econômica do México nos anos 1980 e a construção de um pavilhão dedicado ao país num parque temático do Walt Disney World. A Persistent Revolution, como trabalho de maior profundidade, permite a Sheppard pesquisar um período mais amplo e dar conta das transformações que o discurso oficial do nacionalismo revolucionário sofreu ao longo de uma série de conjunturas políticas, econômicas e sociais durante o século XX e início do XXI.
Partindo de aportes teóricos consagrados, como os de Benedict Anderson e Eric Hobsbawm, em torno do nacionalismo, seus argumentos visam compreender como símbolos e mitos da história mexicana foram ressignificados conforme a necessidade do Estado príista e de atores políticos que buscaram legitimidade social no México. Dentre outras referências importantes para este livro estão os trabalhos de Mauricio Tenorio Trillo, historiador mexicano que atua na Universidade de Chicago. Esse autor destaca a importância do nacionalismo como categoria interpretativa da história mexicana. A obra de Claudio Lomnitz, antropólogo chileno da Universidade de Columbia, também é essencial para Sheppard interpretar e aplicar a teoria de Anderson sobre o nacionalismo na América Latina dos séculos XX e XXI. Além deles, os estudos de Ilene O’Malley, Thomas Benjamin, Samuel Brunk e Lynn Stephen são indicados como bibliografia básica no tema.
Segundo o autor, a construção e a consolidação do estado pós-revolucionário pelo PRI utilizou-se de mecanismos políticos e econômicos que pretendiam basear a sociedade em direitos coletivos adquiridos no processo revolucionário: as conquistas trabalhistas, a nacionalização do petróleo de 1938 e a reforma agrária são exemplos de como diferentes grupos foram setorizados na lógica corporativista da relação Estado-sociedade criada e fomentada pelo partido. Da mesma maneira, segundo Sheppard, mecanismos simbólicos foram essenciais nestes anos do século XX, neste período de construção do Estado-nação, para garantir a coesão social em torno do projeto nacional. Referências aos líderes do passado mexicano desde a independência da Espanha, em 1810, constituíram a principal forma de atribuir sentidos e significados às políticas pós-revolucionárias. No período de construção do Estado, então, teria ocorrido a consolidação de uma história nacional que narrava seus processos como momentos de ruptura capazes de estabelecer ou corrigir o percurso de desenvolvimento da nação. A Revolução do começo do XX, assim, foi vista como o “fim da história mexicana” (p. 59). O PRI erigiu-se como a manifestação da vontade da maioria da população que desejaria perpetuar suas conquistas e honrar as lutas daqueles heróis do passado que haviam se sacrificado para que o país atingisse tal momento.
A obra é dividida em seis capítulos que tratam de momentos políticos do país entre 1968 e 2012, investigando desde os usos da história pela política até campanhas eleitorais e resistências enfrentadas pelo PRI. Utilizando principalmente fontes oficiais, como pronunciamentos de líderes políticos em cerimônias cívicas, Sheppard analisa com cuidado a construção e o desenvolvimento do discurso nacionalista como orientador da ação política do governo mexicano.
Os capítulos seguem uma lógica temporal linear, entrelaçando temas políticos, econômicos e culturais com o contexto social do período em questão. Partindo da repressão violenta ao movimento estudantil no chamado Massacre de Tlatelolco (1968), o autor estuda como o presidente em exercício viu-se obrigado a enfrentar o descontentamento com o caráter autoritário que o Estado príista estava desenvolvendo. A partir de então, de acordo com Sheppard, todas as eleições presidenciais foram momentos de reconstrução da identidade e relação entre povo e partido, entre sociedade e Estado, entre os mexicanos e o PRI. As crises internacionais do petróleo na década de 1970 e a consequente crise por conta da dívida externa, já nos anos 1980, indicaram o esgotamento do modelo político-econômico empreendido até então no país. As reformas neoliberais que começaram a ser definidas no governo de Miguel de la Madrid (1982-1988), e caracterizaram um intenso processo de modernização no governo de Carlos Salinas de Gortari (1988-1994), pautaram as maiores transformações na lógica do nacionalismo revolucionário do PRI. Nesse contexto, o partido tinha de se sustentar como herdeiro da revolução enquanto implementava medidas que desconstruíam conquistas sociais que por tantos anos mantiveram a legitimidade do partido no poder. Essa conjuntura dos anos 1980 e 1990, que tem um de seus pontos cruciais na assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), em 1994, é o foco principal do autor neste livro.
Em 2000, o PRI sofreu sua primeira derrota eleitoral na disputa pela presidência do México, chegando ao poder o conservador Partido Acción Nacional (PAN). Assim, Sheppard argumenta e analisa como a crise de representação que retirou o PRI do poder tem, na verdade, raízes mais profundas no modo como o Estado vinha lidando com as necessidades e as questões sociais do país. Ao estudar os governos do PAN (2000-2012), fica claro que não houve uma ruptura com as práticas políticas do Estado príista. O autor demonstra que foi este entendimento que fez o povo mexicano optar nas eleições de 2012 pelo candidato do PRI, agora com uma agenda renovada e estruturada em premissas distintas daquelas dos governos anteriores.
Cada capítulo é precedido por um breve texto introdutório que o autor chama de snapshot, uma descrição aproximada do contexto político e social do país em cada um dos momentos considerados chave para as transformações e as reconfigurações do nacionalismo revolucionário mexicano. Esses textos servem como uma boa estratégia que permite ao leitor não especialista conhecer alguns detalhes de eventos que marcaram a história do país nos últimos anos. Dessa forma, Sheppard tem maior liberdade para abordar alguns acontecimentos, permitindo uma leitura mais fluida. Os capítulos, assim como os snapshots, trazem fotografias de alguns dos eventos mencionados que chamam atenção para a dimensão visual de monumentos, protestos, personagens e líderes.
A construção do discurso nacionalista, como estabelecem Anderson e Hobsbawm, passa também por apropriações populares que se expressam por outros circuitos além dos discursos oficiais, revistas intelectuais e imprensa (principais fontes do autor). O livro, embora não contemple com igual atenção outras manifestações populares, apresenta potencialidades: analisa movimentos sociais independentes ao PRI em protesto contra as diretrizes políticas impostas pelo Estado; elenca uma série de grupos que, longe de aceitar o nacionalismo revolucionário príista, criaram suas próprias dinâmicas de comunicação e construção identitária (sendo o mais representativo o neozapatismo dos anos 1990); e, por fim, indica como algumas minorias baseadas em identidades de diversidade cultural ou de gênero também se envolveram nos processos discutidos no livro. Novas pesquisas e trabalhos podem centrar-se nesses casos para analisar produções socioculturais que nos permitam observar como o nacionalismo e as identidades foram se constituindo em outros âmbitos da sociedade mexicana, além dos oficiais.
Esses temas de investigação já estão sendo explorados em obras como ¡Viva la Historieta! Mexican comics, NAFTA, and the Politics of Globalization (University Press of Mississippi, 2009), de Bruce Campbell, que analisa histórias em quadrinho produzidas no contexto da modernização dos anos 1990 e da assinatura do Nafta. Outro livro neste sentido é Detonación: contra-cultura (menor) y el movimiento fanzine de Tijuana (1992-1994) (NortEstación Editorial, 2014), de Pedro Valderrama Villanueva, que apresenta um coletivo de produção cultural independente, no norte do México, num período em que o PAN ocupava o governo da Baja California pela primeira vez.
Com um estilo claro e simples, o texto de Sheppard permite uma leitura cadenciada mesmo para aqueles com um domínio intermediário da língua inglesa. A obra se destaca por ser o resultado de uma pesquisa intensa que renova os debates sobre o nacionalismo. Sua data de lançamento, no cenário político de eleições presidenciais da América do Norte, se mostra oportuna, e suas contribuições podem ser valiosas para uma perspectiva que entenda o México em suas especificidades históricas, políticas e culturais. A Persistent Revolution é uma obra importante que traz discussões em torno da história recente do México, esclarece como o discurso príista resolveu as aparentes contradições entre neoliberalismo e Revolução no fim do XX e oferece uma competente interpretação do governo do PAN no início do século XXI.
Referências
SHEPPARD, R . A Persistent Revolution: History, Nationalism, and Politics in Mexico since 1968. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2016. 392 p. [ Links ]
José Antonio Ferreira da Silva Júnior – Doutorando da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: joseafsj@gmail.com.
Calibã e a bruxa – FEDERICI (Topoi)
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax, São Paulo: Elefante, 2017. I Tomo, Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017, 194p.p. Resenha de: REIS, Marcus. A normatização dos corpos e a regulação dos gêneros no processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Topoi v.19 n.39 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018.
Calibã e a bruxa não é um livro que foge aos debates atuais envolvendo o movimento feminista. O fato de a tradução desta obra para o português ter sido encabeçada justamente por um “Coletivo”, o Sycorax, demonstra o alcance desse trabalho para além do contexto estadunidense. A proposta de Silvia Federicié clara ainda na introdução de sua obra, afirmando seu desejo em “esboçar a história das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo” como modo de explicar a relação entre essa história e a exploração decorrente desse processo. Por outro lado, não se desvincula dos primeiros momentos em que o feminismo se posicionou contrariamente ao status quo, ainda que a publicação original seja de 2004.
Não há, ressalte-se, um apego ao anacronismo por parte de Silvia Federici, como se o conceito de gênero fosse utilizado para enxergar as raízes do feminismo na Época Moderna. A originalidade de sua obra consiste em se preocupar não apenas com a multiplicidade que o conceito de mulher possui, mas principalmente com os espaços sociais distintos e atrelados ao fenômeno sobre o qual a autora se debruça. É nesse sentido que Federici parte para o uso em plural da ideia de mulher, assumindo, no âmbito de seu trabalho, o entendimento de que as práticas capitalistas são essenciais para perceber como as relações sociais em que as mulheres se inseriram estiveram marcadas por um contexto de exploração (p. 27).
Há, também, a preocupação em discutir os conceitos de caráter marxista antes mesmo de operacionalizá-los, como a noção de acumulação primitiva. Ao tratar dessa noção, a autora a articula ao objetivo central de sua obra, a “caça às bruxas”, afirmando que esse fenômeno, seja no mundo europeu ou no Novo Mundo, “foi tão importante para o desenvolvimento do capitalismo quanto a colonização e a expropriação do campesinato europeu de suas terras” (p. 26). É nesse objetivo que, aliás, Federici destaca seu distanciamento das análises de Marx na medida em que o autor, a seu ver, negligenciou a participação das mulheres no contexto da acumulação primitiva. Se Marx “tivesse olhado sua história {do capitalismo} do ponto de vista das mulheres” (p. 27), não teria afirmado que o capitalismo prepararia o caminho para a libertação do proletariado. É, portanto, na tentativa de ampliar a ótica marxista ao atrelá-la à categoria de gênero que seu trabalho se insere, dividindo-se em cinco capítulos.
Seu primeiro capítulo, intitulado “O mundo precisa de uma sacudida”, parte essencialmente da discussão voltada ao surgimento dos Estados Absolutistas, iniciando o debate ainda no contexto da Baixa Idade Média, caracterizada pelas relações de servidão e seus conflitos. No campo das relações de gênero, a contribuição da autora reside no interesse em atrelar o surgimento desses Estados a uma forte política de regulação dos sexos, dos papéis sociais que homens e mulheres deveriam cumprir, apontando para o forte revés sofrido pelas mulheres por conta da legalização do estupro. O resultado disso, para além da degradação da honra feminina, foi o fato de que essa legalização “insensibilizou a população frente à violência contra as mulheres, preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período” (p. 104).
“A acumulação do trabalho e a degradação das mulheres” confere título ao segundo capítulo da obra de Federici, acompanhando a lógica que finalizou o capítulo anterior, atrelando a emergência dos Estados Absolutistas à maior degradação social das mulheres e à emergência de uma nova feminilidade. É nesse espaço de discussões que, por exemplo, a autora retoma o conceito de acumulação primitiva. Ao defender a hipótese de que esse conceito não diz respeito apenas a uma “acumulação e concentração de trabalhadores exploráveis e de capital”, a autora o entendeu como contexto de reformulação das relações de trabalho a partir da sujeição das mulheres. No entender de Federici, esse contexto contribuiu para o processo de ressignificação das funções sociais prescritas às mulheres, que teria atingido seu auge no século XIX “com a criação da dona de casa em tempo integral”, na medida em que à figura feminina coube exclusivamente o papel de reprodutora, distanciando-a da vida pública por conta da nova divisão sexual do trabalho.1
É também nesse segundo capítulo que a autora passa a apresentar com mais clareza sua hipótese central de trabalho: o fenômeno de caça às bruxas corresponderia à maior derrota sofrida pelas mulheres na medida em que teria culminado no surgimento de um novo modelo de feminilidade. As mulheres seriam, assim, destituídas do universo público, relegadas ao papel de reprodutoras, esposas, viúvas ou prostitutas, ficando, por fim, distantes das “relações coletivas e {dos} sistemas de conhecimento que haviam sido a base do poder das mulheres na Europa pré-capitalista” (p. 187). Desse modo, até finais do século XVII o que predominou foi um novo “cânone cultural”, encarando as mulheres como “selvagens, mentalmente débeis, de desejos insaciáveis, rebeldes, insubordinadas, incapazes de se controlarem”.
Seu terceiro capítulo, “O grande calibã”, analisa como esse processo de disciplinamento dos corpos direcionado às mulheres foi colocado em prática ao longo da Época Moderna, já que, no capítulo anterior, a autora discutiu as bases que permitiram o avanço dessa estrutura normativa. Esse novo contexto foi caracterizado pela dicotomia da “Razão e as Paixões do Corpo”. Como pano de fundo desse binômio, enxergou a emergência de uma “engenharia social” interessada em reinterpretar as funções do corpo e inseri-lo numa nova lógica em que este foi encarado como fonte de todos os males. Sob a filosofia mecanicista, interessada amplamente em destrinchar as funções corporais, Federici percebeu como o controle da classe dominante sobre o mundo natural se deu progressivamente até culminar no “controle sobre a natureza humana”. Como consequência, ocorreu a morte do conceito de corpo enquanto receptáculo de forças mágicas, amplamente difundido ao longo do Medievo. Aqui, sentimos falta de uma reflexão mais atenta à diversidade documental do período. Nesse sentido, em que medida essa morte de fato teria ocorrido nos séculos XVI e XVII se tomássemos por base as narrativas presentes nos processos dos diversos tribunais do Santo Ofício, e não somente os tratados da época?
Outro argumento empregado por Federici baseia-se no crescente interesse da burguesia em desclassificar a magia, encarando-a como principal entrave para o disciplinamento social e, por consequência, do trabalho. Esse ataque aos indivíduos que se valiam do sobrenatural como forma de resposta às demandas cotidianas, foi, inclusive, um dos principais alicerces para que os Estados investissem na perseguição contra a magia, resultando no fenômeno que é base do trabalho da autora. Disciplinar o corpo esteve, portanto, diretamente relacionado à desconstrução da magia, ambas tornando-se “laboratório no qual tomou forma e sentido a disciplina social” (p. 261).
Seu penúltimo capítulo, “A grande caça às bruxas na Europa”, busca, em sua essência, confirmar que o fenômeno da caça às bruxas foi resultado de um processo planejado e encabeçado pelas diversas estruturas de poder, maiormente Igreja e Estados, a fim de levar adiante um disciplinamento social em que as mulheres foram subjugadas.2 Foi, portanto, “iniciativa política”,3 com forte atuação da Igreja Católica por fornecer o “arcabouço metafísico e ideológico” que sustentou as perseguições a partir do século XVI. Além disso, tais perseguições devem ser vistas como uma reação à resistência das mulheres contra as relações capitalistas que ressignificaram a feminilidade. Por fim, esse fenômeno foi instrumento de construção de uma ordem patriarcal que criou modelos de feminilidade prescritos às mulheres, tornando seu “trabalho, seus poderes sexuais e reprodutivos” a serem controlados pelos Estados, segundo a forma de força de trabalho defendida pela burguesia. Se pensarmos numa síntese do que foi esse fenômeno, segundo Federici, poderíamos dizer que a caça às bruxas foi “uma guerra contra as mulheres; {…} uma tentativa coordenada de degradá-las, demonizá-las e destruir seu poder social {…} onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade” (p. 334).
O derradeiro capítulo, “Colonização e cristianização”, se debruça na extensão que o fenômeno da caça às bruxas adquiriu no Novo Mundo. A autora defende que a abrangência desse fenômeno para além do espaço europeu foi motivada pelo interesse das autoridades em utilizá-lo como ferramenta capaz de minar a “resistência anticolonial e anticapitalista” e levar adiante o interesse exploratório. Seu foco se direcionou basicamente ao contexto da América espanhola, percebendo similaridades com o processo de definição da bruxaria no âmbito europeu, como no perfil das mulheres que foram acusadas por esse delito no espaço americano: “as mulheres se converteram nas principais inimigas do domínio colonial, negando-se a ir à missa, a batizar seus filhos, ou a qualquer tipo de cooperação com as autoridades coloniais e os sacerdotes” (p. 402). Tal qual na Europa, a perseguição se direcionou ao combate de práticas e crenças heterodoxas ao catolicismo bem como às revoltas contra o sistema dominante, neste caso, colonialista.
Ao conferir protagonismo a um “sistema em que a vida está subordinada à produção de lucro” (p. 35), o que implica na imposição da violência, a autora acaba por privilegiar sua análise a partir de uma estrutura hegemônica. E, talvez, seja no excessivo olhar estruturante de sua obra que as análises empreendidas por Federici perdem força, principalmente em relação a outros campos de discussões associados ao fenômeno estudado.4 Perde-se a avaliação precisa do peso das práticas encabeçadas pelas mulheres como resultado da própria crença dessas mulheres na sua capacidade de dialogar com o sobrenatural. Ao enxergar nas práticas heréticas protagonizadas por elas ao longo da Baixa Idade Média como exemplos claros de uma verdadeira “revolução sexual”, a autora cai no risco de desconsiderar que, por vezes, essas mesmas mulheres, ao ingressarem no universo do sobrenatural, almejavam apenas a manutenção de seus casamentos, sem que a estrutura normativa fosse colocada em xeque.5
Mesmo ao chamar o “Novo Mundo” para o debate, relacionando-o ao contexto de perseguição à feitiçaria, a autora não se descola de um olhar homogeneizante, como ao considerar o período de 1580 a 1630 como ápice da “caça às bruxas”. Se partirmos para a América portuguesa, espaço que é negligenciado em sua obra, é possível perceber que, mesmo no século XVIII, os índices de denúncias e processos promovidos pela Inquisição portuguesa por esse delito são elevados, até maiores que os números relativos ao século XVI.6
Mesmo nesse século, as realidades são diversas quando comparamos regiões distantes, ainda que seja possível identificar algumas coerências nos argumentos da autora. No contexto inglês, Federici enxerga uma relação intrínseca entre o elevado número de acusações contra supostas feiticeiras em Essex e a grande quantidade de terras cercadas nessa região. O mesmo vale quando a autora, concordando com Henry Kamen, estabelece um paralelo entre as graves crises econômicas e o avanço da perseguição à bruxaria, já que muitas mulheres participaram das revoltas como protagonistas. No entanto, a imprecisão existe quando outros contextos são comparados, como em Portugal, em que a realidade é outra. Conforme apontou Francisco Bethencourt, nesse espaço, a figura da mulher, pobre e marginalizada socialmente, pouco apareceu nos processos da Inquisição lusitana.7
Por fim, outro importante debate historiográfico no qual se insere Calibã e a bruxa diz respeito ao entendimento da autora de que a misoginia, juntamente com o conceito de acumulação primitiva, contribuiu decisivamente para que a “caça às bruxas” se sustentasse como importante ferramenta de submissão das mulheres aos mecanismos de poder marcadamente masculinos. Trabalhos como o apresentado por Silvia Federici demarcam, assim, uma diferença visível em relação a outro viés analítico defendido, por exemplo, por Stuart Clark, no qual o peso da misoginia é relativizado.
Em Pensando com demônios, o conceito de contrariedade é tomado como base para refutar a ideia de que a misoginia foi o grande pilar que sustentou a demonologia e a “caça às bruxas”. Clark parte do entendimento de que a modernidade europeia sustentou suas visões de mundo e interpretações a partir de um “extremismo cognitivo”, do qual a figura da “bruxa” foi resultado direto. Bem e Mal se tornaram conceitos essenciais para tais sociedades.8 Esse novo “idioma” foi recorrente não apenas nos corredores eclesiásticos, mas também no modo como a religiosidade foi vivenciada, fazendo com que a alma do indivíduo fosse objeto de disputas. Assim, a misoginia perde força como categoria explicativa, na medida em que a contrariedade se tornou o elemento capaz de explicar os motivos das mulheres terem sido relacionadas à bruxaria.9
Por isso, ao perceber a pouca ocorrência de tratados que se interessaram exclusivamente em injuriar as mulheres e tendo em vista que os trabalhos da época pouco se direcionaram a “explorar o fundamento da bruxaria no gênero”,10 o autor defendeu a necessidade de se relativizar o uso da noção de misoginia. No entanto, ao afirmar que havia uma conexão óbvia para os estudiosos entre a presença das mulheres e a sua predisposição às influências diabólicas, a ponto de fazerem com que tais autores não sentissem “a menor necessidade de elaborar sobre ela ou apelar para o ódio às mulheres em seu respaldo”, Stuart Clark acabou por abrir uma aresta nos seus pressupostos, o que faz com que trabalhos como o de Silvia Federici seja um importante contraponto a esse viés.
Essa relativização por parte do autor a respeito da misoginia foi sustentada por outras duas interpretações. Clark percebeu que na maioria das vezes os tratados demonológicos não se interessaram exclusivamente em injuriar as mulheres – elemento que, a seu ver, sustenta a ideia de misoginia. Além disso, os tratados interessados em discutir sobre o fenômeno da bruxaria “mostraram pouco interesse tanto em explorar o fundamento da bruxaria no gênero quanto em usá-la para denegrir as mulheres”. Assim, as obras que foram amplamente difundidas pela historiografia como exemplo da misoginia presente nas perseguições à bruxaria, como o Malleus Maleficarum e os tratados de Jean Bodin e Martin del Rio, foram encaradas sob uma leitura isolada que pouco ou quase nada se preocupou com a justificativa da presença de mulheres no fenômeno da bruxaria. Todavia, os argumentos de Stuart Clark também são passiveis de críticas.
Se há uma obviedade na conexão entre a figura das mulheres e a presença do Diabo, conforme aponta o autor,11 não é na identificação desse caráter que reside a chave para a compreensão de todo o fenômeno de “caça às bruxas”. Em Calibã e a bruxa , o aspecto central para responder à problemática levantada consistiu justamente em conferir peso à misoginia como instrumento que sustentou a conexão citada, sem perder de vista que a história das mulheres em meio ao contexto de “caça às bruxas” é uma história eivada de trajetórias por vezes silenciadas, inclusive pelos próprios historiadores que negligenciaram o peso das estruturas de poder na normatização dos corpos, na definição dos gêneros e na sustentação de uma heterossexualidade compulsória. Um dos méritos da obra de Federici consiste justamente em perceber como o consenso entre as autoridades religiosas e civis produziu uma série de mecanismos de vigilância e normatização interessados na manutenção do binarismo masculino/feminino. Vide exemplo apontado pela autora nos discursos que se produziram a respeito do pacto diabólico, em que, mesmo ao defenderem a existência de rituais em que as mulheres negavam o catolicismo, se relacionavam com os diabos e consolidavam sua posição de “feiticeiras”, prevalecia a supremacia masculina: “as mulheres tinham que ser retratadas como subservientes a um homem {o Diabo} e o ponto culminante de sua rebelião – o famoso pacto com o diabo – devia ser representado como um contrato de casamento pervertido” (p. 343).
Calibã e a bruxa é uma obra que merece uma leitura atenta por se preocupar em compreender os longos séculos de associação das mulheres à figura do Diabo, à predisposição ao delito da feitiçaria, ou bruxaria, sem isolar as trajetórias dessas mulheres dos motivos que sustentaram essa associação. Por isso a relevância de sua obra: reafirmar a necessidade de se compreender passado e presente sem negligenciar o peso das relações de gênero e dos papéis sociais atribuídos aos homens e mulheres. Além disso, se levarmos em consideração não apenas a temática em que a autora se debruça, mas também o recorte temporal escolhido, percebemos o quão necessário são as publicações interessadas em articular religiosidade e relações de gênero na Época Moderna, tornando-se exemplos da diversidade de interpretações resultantes dessa interação. Para o contexto brasileiro, que tem acesso relativamente tardio à publicação em português deCalibã e a bruxa , tais aspectos estão igualmente presentes (talvez até com maior peso). Eles nos permitem entender que o estudo da bruxaria está longe de se esgotar quando o conceito de gênero é operacionalizado.
Referências
FEDERICI, Silvia; Calibã e a bruxa . Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. Tomo I: Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. 194p. [ Links ]
1É nesse contexto de disciplinamento dos corpos e de normatização das mulheres, atrelando-as ao papel reprodutivo, que a autora enxerga um forte paralelo com o aumento dos processos envolvendo os delitos de infanticídio e bruxaria (p. 157).
2Um dos argumentos mais sólidos que a autora construiu referente à submissão feminina no âmbito da caça às bruxas diz respeito à mudança de status adquirida pela figura do Diabo a partir do século XVI, deixando de ser escravo e servo das mulheres, tornando-se figura abominável, “seu dono e senhor, cafetão e marido”. Tanto é que o pacto diabólico, considerado pelos demonólogos como auge dos rituais empreendidos pelas mulheres com a figura do Diabo, evocava a supremacia masculina através de tal personagem, para a qual as mulheres deveriam prestar juramento (p. 338).
3A autora chega a afirmar que a “caça às bruxas foi o primeiro terreno de unidade na política dos novos Estados-nação europeus”, muito por conta de protestantes e católicos terem compartilhado do mesmo interesse em coibir a presença da bruxaria entre seus fiéis (p. 303).
4Como, por exemplo, a possibilidade de promover estudos mais aprofundados das crenças, das práticas, da possibilidade de se compreender o universo mágico-religioso e suas relações entre os indivíduos a partir do entendimento de que havia ali uma coerência interna distanciada do materialismo.
5No contexto da Coimbra Seiscentista, José Pedro Paiva identificou a predominância das mulheres casadas como as maiores interessadas em contar com a ajuda das feiticeiras para a manutenção de seus casamentos. Cf.: PAIVA, José Pedro. O papel dos mágicos nas estratégias do casamento e na vida conjugal na diocese de Coimbra (1650-1730). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990, p. 168-169; 180-182.
6MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício no Grão-Pará pombalino. 1750-1774. Jundiaí: Paco Editorial, 2012.
7BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia. Feiticeiras, adivinhos, curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 371. Destaque-se ainda, entre os denunciantes, a multiplicidade de classes sociais interessadas em denunciar o delito da feitiçaria.
8CLARK, Stuart. Pensando com demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna. Trad. de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p. 87.
9Ibidem, p. 187.
10Ibidem, p. 166.
11“Os autores sobre bruxaria evidentemente davam como certo uma maior propensão das mulheres ao demonismo, e tudo em seu ambiente cultural os encorajava a isso. A conexão era tão óbvia para eles, tão profundamente enraizada em suas crenças e comportamento, que não sentiam a menor necessidade de elaborar sobre ela ou apelar para o ódio às mulheres em seu respaldo.” Cf.: Ibidem, p. 168.
Marcus Reis – Doutorando da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: mv.historia@gmail.com.
Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana – SOARES (Topoi)
SOARES, Carmen Lúcia. Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana. Campinas: Autores Associados, 2016. Resenha de: PAULILO, André Luiz. A terra, o ar, o mar e a nossa educação. Topoi v.19 n.38 Rio de Janeiro May/Aug. 2018.
A terra, o ar, o mar e nós. Talvez assim fosse possível resumir, sem interferir demais nos seus sentidos, as histórias que Carmen Lúcia Soares reuniu em Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana (Soares, 2016). Trata-se de uma edição bem cuidada da editora Autores Associados e tecida por mais 11 estudiosos do tema da natureza. São os textos dos franceses Bernard Andrieu e Sylvain Villaret, dos argentinos Laura Marcela Méndez e Pablo Ariel Scharagrosky e dos brasileiros Alexandre Fernandez Vaz, André Dalben, Carlos Herold Junior, Denise Bernuzzi de Sant’Anna, Janes Jorge, Vinicius Demarchi Silva Terra e Joana Carolina Schossler que dão forma ao conjunto das análises das quais resultam uma mesma compreensão da natureza. Aquela que a percebe não como a-histórica ou imóvel, fixa e imutável, mas enquanto construção social, cultural e politicamente constituída. Por todo o livro, tal qual marca d’água na página, há um só tema – a vida ao ar livre e as relações do corpo com uma natureza reconfigurada pela cultura, por nossas crenças e saberes. As mesmas relações de poder e dominação que animam a sociedade e a política fomentam as representações, as sensibilidades e a compreensão que nos enlaçou ao sol e ao mar das praias, às águas e ao calor dos balneários, aos campos e parques da moda desde o último século. É das mudanças dessas representações, sensibilidades e compreensão que o conjunto reunido neste inspirado volume trata.
No capítulo inicial, Carmen Lúcia Soares explicita as questões centrais do conjunto em três notas substanciais sobre as ideias de natureza, a ordem urbana e como a escolarização reordena os hábitos de vida ao ar livre. Em seguida, Alexandre Fernandes Vaz trata do tema da natureza na obra de Walter Benjamim. Depois, Sylvain Villaret, com seu estudo da educação física, e André Dalben, escrevendo sobre parques infantis e colônias de férias, trabalham com a presença da educação na construção da natureza-jardim e do vigor do corpo. Seguem-se as reflexões de Laura Marcela Mendez com Pablo Ariel Sharagrodsky e Carlos Herold Júnior acerca do escotismo. O tema da água e das práticas sociais em torno dela foi tratado em seguida por Denise Bernuzzi de Sant’Anna em relação à distribuição, por Janes Jorge, a respeito da represa, e finalmente, por Vinicius Demarchi Silva Terra em relação à praia. O livro encerra-se com dois belos ensaios sobre o sol e suas implicações sociais. O primeiro deles, de Joana Carolina Schossler, trata da prática do veraneio no litoral gaúcho. O outro, de Bernard Andrieu, ocupou-se dos efeitos dos tratamentos que se desenvolveram com base no uso da luz natural para nossa relação com a natureza.
Ainda que composto por uma dezena de textos de autores diferentes, o argumento central do livro está justamente nesse conjunto que se formou. Por entre a ordem urbana, a crítica romântica, o naturismo, os parques-infantis e as colônias de férias, o escotismo, as águas das cidades, as praias e o seu calor tem-se contato com instituições e práticas voltadas para a vida ao ar livre. É da perspectiva aberta na historiografia francesa por Alain Corbain e Georges Vigarello para estudar as sensibilidades e as relações que os sentimentos mantêm com o corpo que as análises seguem. Entretanto, a história que se vai encontrar neste livro é a cultural e contribui para animar esse campo de pesquisa no Brasil com uma compreensão especial das interfaces existentes entre a ordem urbana, a relação humana com a natureza e a educação. Tanto do ponto de vista das instituições quanto das práticas, o esforço de cada autor reunido neste volume auxilia no entendimento de como as concepções médicas e educativas acerca da vida ao ar livre constituíram-se em um elemento da cultura contemporânea.
Assim, a cultura clubística expressiva da ordem urbana que vai se impondo a partir dos anos 1920 é estudada por meio da análise do que significaram para a cidade os clubes Germânia, de Regatas Tietê, de Regatas São Paulo, Esportivo da Penha, Atlético Indiano, o Internacional de Regatas, de Regatas Saldanha Marino e do Iate Clube Paulista. Sobretudo, em torno das águas, um conjunto de instituições de esporte ou lazer consolidou práticas associadas ao corpo e à sua saúde e sua beleza. Nesse mesmo sentido, a praia como lugar de lazer, espaço por excelência do veraneio, oferece ao corpo o contato com o mar, o banho de sol, o litoral de balneários e hotéis para o turismo de férias. À beira-mar, práticas de bronzeamento, de divertimento e mesmo de exibição estética ou atlética marcam a presença humana na paisagem por meio das distinções sociais e normas impostas pela sociedade. Os diferentes aspectos da mudança de sensibilidade em relação aos benefícios da água e dos esportes para a saúde são tratados nos capítulos “A represa de Guarapiranga e os esportes na região de São Paulo”, “A invenção da praia de Santos” e “Sol e mar: veraneios no litoral gaúcho no início do século XX”, e, especialmente, questionados do ponto de vista dos seus significados políticos e sociais.
Em outra frente de preocupações, o escotismo, a educação extraescolar em parques infantis e colônias de férias desvelam a beleza paisagística do território nacional ou afirmam a natureza-jardim como espaços de cura ou aprendizagem. Desde a serra da Mantiqueira, aqui no Brasil, até Comodoro Rivadavia e Tantil, na Argentina, símbolos pátrios ou signos da vida e da sociabilidade perdida pela urbanização desordenada de metrópoles como São Paulo e Buenos Aires foram produzidos pela exploração da ideia de um valor supremo da beleza natural. Os parques infantis se valeram ainda do jogo de distinção das elites que fazia dos parques um cenário, uma figuração da natureza na trama urbana, para legitimarem-se perante o discurso médico favorável à vida ao ar livre. Na cidade, os parques infantis propunham embelezamento e higiene por meio de uma arquitetura e de desenhos paisagísticos capazes de opor à memória do passado rural “uma natureza inventada como genuinamente nacional” (p. 103). De fato, como mostram Dalben, Méndez e Scharagrodsky e Herold Júnior, as práticas sobre ou a partir da natureza são “uma elaboração social e cultural, uma complexa operação discursiva produzida em um espaço e tempo determinados” (p. 116).
Ao ar livre, o escotismo, a brincadeira infantil, a terapêutica, a disputa esportiva, o lazer da família em férias e a identidade que se constrói pacientemente em consonância com a moda ressignificam a natureza, tornando-a apropriada, codificada, dominando-a, enfim. O significado, então, que a exposição ao sol, a aprendizagem extraescolar ou a vilegiatura adquiriram na vida urbana dependeu da mudança de sensibilidade que a medicina, a educação física e as práticas sociais estabeleceram com a natureza e seus atributos mais visíveis. Nesse livro, assim, há de tudo um pouco para a ascensão da natureza e das práticas ao ar livre no estilo de vida moderno. Instâncias de hidroterapia, a helioterapia, acampamentos, dietas e exercícios, esportes, colônias de férias, parques, balneários, veraneios vão sendo mostrados capítulo a capítulo naquilo que mais nos enlaça à natureza dos nossos ritos sociais, aos modos como nos relacionamos com o cosmos que nos circunscreve: o desejo da felicidade, por meio da saúde, da beleza e da alegria.
Se nisso Bernard Andrieu e Sylvain Villaret arriscam o principal argumento de suas reflexões, Denise Bernuzzi de Sant’Anna lembra que o acesso a bens como a água e a saúde são domínios da desigualdade, efeitos de disputas e práticas sagazes de imposição ou resistência, de força ou astúcia. As relações entre o humano e a natureza que inventamos também são da ordem do acidente e do desastre, da violência, da falta e da polêmica. Entre as notícias que Sant’Anna observa tão bem, o afogamento, o roubo, a proibição, a exploração também circunscrevem a natureza nos negócios humanos.
Não falta, assim, a história dos sujeitos. Os protagonistas da vida ao ar livre são homens, mulheres e crianças comuns, aqueles que, então, deixaram-se apanhar pelo mar e pelo sol, pelas hidro e helioterapias, que subiram as montanhas e passearam no campo, que frequentaram parques e planejaram suas vilegiaturas, que praticaram a ginástica ou o esporte. Trata-se também daqueles que sofreram com o contato com a água ou com sua privação e daqueles que tinham nas colônias de férias apenas a oportunidade de escapar por um tempo dos subúrbios fétidos das grandes cidades. O interesse pelas curas e aprendizagens por meio da natureza, do robustecimento dos corpos, do embelezamento físico envolve cada um de nós com a história daqueles que nos legaram essas práticas que, desde o bronzeamento até o turismo de todas as férias, dizem algo de como experimentamos a vida ao ar livre.
Mas há nomes que são incontornáveis nessa história e cuja menção não se pode escapar de fazer. Nesse sentido, Georges Hébert, Baden Powel, Bernhard Basedow, Peter Villaume e Guts Muths, Arnold Rikli, Sebastian Kneipp, Mario de Andrade, Francisco Pascasio Moreno e Grabiel Skinner participam dessa história como pontos de difusão das práticas que envolveram as pessoas e a natureza-jardim, o sol, o mar, o campo e a montanha. Assim, o método da ginástica natural, o escotismo, o rousseauísmo de parte deles, as estações de tratamento e os parques infantis são as iniciativas exploradas por sua importância na construção de uma nova sensibilidade a respeito da natureza e do natural. É menos do pioneirismo de que trata os textos reunidos nessa coletânea, mas, principalmente, das variadas formas de envolver o corpo a um outro ambiente que não o da metrópole e das suas principais instituições de controle e produção.
Por outro lado, como é típico de livros que arriscam seus argumentos em uma perspectiva própria de compreensão ou em um veio especifico de trabalho, a boas pistas de pesquisa também revelam os principais limites da interpretação. A aposta, então, na análise de práticas, instituições e sujeitos se faz em detrimento de um maior investimento na história dos conceitos e teorias. Atualmente, a questão da circulação dos saberes e das estratégias de apropriação das ideias e saberes mostrou-se profícua ao estudo de grupos específicos e das suas disputas internas. Para aqueles a quem interessam mais as discussões de doutrina, de trajetórias ou dos círculos que animaram autores, práticas ou iniciativas, as escolhas teórico-metodológicas desta edição podem aparecer como limites da análise. Nesse sentido, as belas narrativas com que os autores problematizam seus objetos de pesquisa e reflexão ganhariam com comparações e histórias de apropriação e invenção. Ainda que assim seja, há questões de concepção absolutamente importantes suscitadas pelo conjunto.
Nesse sentido, seria válido nos perguntarmos se tais construções das relações humanas com a natureza não foram resultado de disciplinas, controles e explorações que visavam tornar produtivas as partes do território e da nossa imaginação que ainda estavam livres dos processos capitalistas de produção de valor. Talvez. A linha segura que os textos oferecem ao leitor, entretanto, é aquela que dá entrada a uma firme tradição de pensamento sobre a natureza e as mudanças de atitude humana em relação ao mundo natural. Desde Rousseau até Alain Corbin, passando pelos importantes trabalhos de Keith Thomas e Walter Benjamin, a perspectiva de análise compreende uma reflexão apurada dos constructos humanos que determinam a historicidade daquilo que chamamos de natureza. Da filosofia e da história vem, senão os conceitos, a perspectiva de análise de autores e autoras. No conjunto, a natureza e os seus elementos beneficiam-se das posições jusnaturalistas, das críticas pós-estruturalistas ou da história das sensibilidades para emergir como problema, e não como um dado, em cada um dos diferentes capítulos. As dificuldades que a teoria impõe ao tratamento do tema não impediram a fluidez da escrita, a clareza do texto ou a beleza das histórias que todo o conjunto conta.
Outra história que os textos dão aos leitores é a da educação. Entre tudo aquilo que a própria Carmen Lúcia Soares nota acerca do que implicava o triunfo da concepção de vida ao ar livre, lembra-nos, especialmente, de que não se tratou de um processo espontâneo. Ao contrário, tal processo resultou de um esforço de autoridades públicas em que desfilam inteligências e proposições elaboradas por médicos, educadores/pedagogos, engenheiros, urbanistas. O livro contribui para uma história da educação física, da educação infantil e das instituições escolares naquilo que elas testemunham da invasão dos elementos da natureza na arquitetura escolar e na doutrina pedagógica. A ideia de regeneração que vicejou no discurso de intelectuais de diferentes matizes no Brasil da primeira metade do século passado reservou um lugar especial para a natureza e seus elementos na percepção da sua utilidade à saúde das crianças e dos jovens. O valor educativo da natureza é reiterado em diferentes capítulos, por meio de diferentes perspectivas e, principalmente, analisado desde a escola até as práticas culturais mais cotidianas.
De fato, as contribuições do conjunto de textos reunidos por Carmen Lúcia Soares em Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana são muitas e variadas. Especialmente, para a área da história, concorre para a compreensão de ideias, de práticas, de instituições e de sujeitos que fizeram da natureza um elemento da vida urbana, escolar ou mesmo intelectual já entre as gerações que nos precederam. É como história, mas também como patrimônio e sensibilidade contemporânea, que este trabalho sugere ser a natureza, seus elementos e suas expressões, uma das mais profícuas áreas das invenções humanas. Daí porque, além das qualidades acadêmicas que o livro apresenta, vale deter-se na sua leitura.
Referências
SOARES, Carmen Lúcia (Org.). Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana. Campinas: Autores Associados, 2016. [ Links ]
Como citar: SOARES, Carmen Lúcia (Org.). Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana. Campinas: Autores Associados, 2016. Resenha de PAULILO, André Luiz. A terra, o ar, o mar e a nossa educação. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 38, p. 263-267, mai./ago. 2018. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.
André Luiz Paulilo – Professor da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: paulilo@unicamp.br.
300 años: Masonerías y Masones (1717-2017) – ESQUIVEL et. al. (Topoi)
ESQUIVEL, Ricardo Martínez; ANDRÉS, Yvan Ponzuelo; ARAGÓN, Rogelio. 300 años: Masonerías y Masones (1717-2017). Tomo I: Migraciones, Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. 194pp. Resenha de: CAMARGO, Felipe Corte Real. Migrações sob o esquadro e o compasso: 300 anos de histórias da maçonaria. Topoi v.19 n.38 Rio de Janeiro May/Aug. 2018.
Escrever uma antologia é sempre uma tarefa complexa. Mais do que a reunião de textos diversos sobre um determinado assunto, é necessário ritmo, coerência e coesão; além de unidade temática e estilística, mesmo para textos contraditórios entre si. Tal necessidade aumenta ao se produzir uma antologia em cinco volumes, da qual o primeiro volume é o tema aqui (Esquivel, 2017).
A coleção 300 Años de Masonería (Esquivel, 2017) busca organizar as ideias e os ideais, que bem poderíamos chamar de pós-coloniais, que vêm sendo produzidos em torno da Revista de Estudios Historicos de la Masonería Latinoamericana y Caribeña (REHMLAC). Com dez anos de existência, o periódico ascendeu de um difusor dos trabalhos latinos sobre história da maçonaria para um coletivo de ideias que, por exemplo, organizou sua própria (e maior) mesa no último Congresso Mundial sobre Fraternalismo, Maçonaria e História, em Paris.1 Mesa esta que avivou o debate sobre a pluralidade da maçonaria em suas práticas e seus pensamentos reafirmando que não deve haver maçonaria no singular para quem pesquisa este fenômeno.
Os editores da coleção, Ricardo Martínez Esquivel, Yvan Ponzuelo Andrés e Rogelio Aragón – respectivamente diretor, editor e contribuidor regular da REHMLAC -, segundo suas falas nos congressos de Paris (maio de 2017) e Havana2 (julho de 2017), querem demonstrar o caráter plural do fenômeno maçônico, ou seja, das maçonarias. Por meio dessa multiplicidade querem também dar visibilidade à miríade de pesquisas e pesquisadores que a Ordem3 abarca.
O primeiro volume tem o abrangente título Migraciones, desta maneira busca evidenciar os usos, as recepções e as apropriações não somente do fenômeno estruturante que é a maçonaria, como os impactos produzidos pelo que poderíamos chamar de “ideário maçônico”, que se confunde – mesmo por ser produtor e produto – com a própria modernidade.
Na primeira parte do livro, tal como na tradição universitária, temos a fala do decano. O professor dr. José Ferrer Benimeli, com mais de 40 anos de pesquisas em torno do tema, revisa as fontes e a historiografia produzida entre Espanha e México no oitocentos. Assim, demonstra os usos feitos da história da maçonaria, tanto nas vertentes laudatórias quanto nas detratórias. Desta maneira põe em xeque meias-verdades e mitos perpetuados por historiadores profissionais e amadores, com as intenções mais diversas. Apresentando erudição não somente da história da maçonaria como da história do mundo ibérico, Benimeli demonstra a relevência dos estudos maçônicos e suas ligações não somente aos temas mais variados da historiografia tradicional, mas também sua utilidade para problematizar questões propostas e por vezes tidas por resolvidas. Porém, o desfile erudito de autores, fatos, fontes e datas se apresenta pouco convidativo para o “abre-alas” de uma antologia. No afã de clarificar uma discussão nebulosa, Benimeli demonstra de maneira crua que para desvendar o hermetismo da história da maçonaria é necessário adentrar dois outros: o da historiografia e o da diplomática.
O capítulo seguinte segue uma metodologia semelhante, a divisão da argumentação em três tempos, e fica a cargo de um dos mais renomados professores da Universidade de La Habana (Cuba), Eduardo Torres-Cuevas. O historiador nos leva pela fragmentada história da maçonaria cubana por meio de suas divisões e influências. Ao ler o segundo capítulo, o leitor percebe que há um certo padrão fragmentário nas maçonarias latinoamericanas e que tais cisões acontecem por dois motivos principais: as variadas influências recebidas (Espanha, França, Inglaterra e Estados Unidos) e o papel central que as organizações maçônicas ou criadas nos moldes da maçonaria irão execer nas nascentes repúblicas. Tal atuação se deve ao fato de que as lojas maçônicas se apresentam como os primeiros corpos de auto-organização político-partidária nos séculos XVIII e XIX na América Latina.
Torres-Cuevas coloca em suspenso questões sobre as origens da maçonaria na ilha. Seguindo também a tradição mais clássica, tal como Benimeli, prende suas conclusões a provas documentais. Porém, insinua bastante livremente sobre possibilidades, chegando inclusive a apontar uma possível presença de “maçons operativos” (pedreiros que teriam sido a origem da maçonaria moderna, dita “especulativa”) na construção da Catedral de Havana. Das primeiras lojas fundadas no final do século XVIII por maçons fugidos da Revolução Haitiana, passando pela profusão de lojas e Grandes Orientes por quase 30 anos até o período final do século XIX, no qual se estabelecem as potências maçônicas que formariam o panorama da Ordem em Cuba no século XX, o autor oferece uma história bem costurada com pausas para análises bastante sintéticas, auxiliando o entendimento de uma história com muitas nuances e recheada de jargões.
O capítulo de Éric Saunier, professor da Universidade do Havre (França) demonstra, por meio de uma escrita fluida e precisa, como a história da maçonaria compõe um mosaico com a história política. Por meio de uma problemática que muito bem poderia se resumir a questiúnculas relativas a lojas maçônicas periféricas e suas relações com a sua obedicência central, Saunier apresenta de que modo se deram costuras políticas que permitiram lojas maçônicas antilhanas e lojas maçônicas francesas em cidades portuárias a continuarem fiéis às políticas poligenistas, impedindo a iniciação de negros em suas lojas, contrariando assim a política liberal parisiense do Grande Oriente da França. O capítulo de Saunier reflete a teoria que mesmo dentro de uma mesma obediência maçônica há variados entendimentos sobre sua práxis, cessando, uma vez mais, o entendimento ingênuo da maçonaria como homogênea e unívoca.
Ricardo Martinez Esquivel assina o capítulo que trata da origem da maçonaria centro-americana, nascida em seu país, Costa Rica. O autor discorre com desenvoltura sobre o tema, sobre o qual pesquisa há quase dez anos, principalmente quando foca na análise das redes de sociabilidade que a fraternidade teceu naquele país e nos seus vizinhos, ano após ano. O ponto forte do artigo se apresenta na relação que Esquivel estabelece entre os dados de suas pesquisas prévias com panoramas mais gerais da história da chamada América Latina. Mesmo o leitor neófito no tema poderá entender o peso que a francomaçonaria teve a partir da segunda metade do século XIX e os motivos para as rusgas entre a Igreja Católica e seus membros. Pretendendo apresentar um panorama muito completo, o artigo de Esquivel tende, a partir da metade do texto, para uma narrativa mais tradicional da história política, o que contrasta fortemente com a primeira parte, mais analítica e arrojada.
Na sequência, os primeiros anos da maçonaria mexicana são passados em revista pela experiente historiadora Maria Eugênia Vazques Samenedi. Com consistente trajetória acadêmica no campo da história da maçonaria, a autora revisa as obras que (por antiguidade ou merecimento) são tidas como indispensáveis para contar a história da Fraternidade em território mexicano. Mesclando análise, crítica e novas fontes, a historiadora desmonta mitos maçônicos mexicanos, como a “lenda” de que a primeira loja maçônica no México dataria de 1806 e que se localizaria na Calle de las Ratas. Além deste, desmonta o argumento, bastante comum, entre os historiadores mais tradicionais, de que a fundação das lojas maçônicas teria um caráter eminentemente político. Somente por esses dois feitos, o capítulo já se torna indispensável para qualquer pesquisador do tema na América Latina. Porém, mais do que isso, a historiadora aclara, de maneira sutil, nas últimas páginas, algumas questões de teoria e metodologia que tendem a ser negligenciadas em temas que não fazem parte do mainstream historiográfico, como a diferenciação entre a análise da história de uma instituição e a análise das narrativas que se fazem sobre ela.
Dévrig Mollès, historiador e diretor científico do Arquivo da Grande Loja da Argentina, traz um olhar desde aquele país sobre a chegada do feminismo na América Latina. Com esse tema demonstra o papel central que a maçonaria teve ao servir como base, dada sua capilaridade, aos movimentos vanguardistas do começo do século (feminismo, anticlericalismo, livre-pensamento) que configuraram o moderno sistema-mundo. Tal fenômeno teria ocorrido dado que as redes maçônicas formaram uma “plataforma de transferências culturais e um espaço de lutas culturais”. A escrita de Mollès flui de maneira singular, sua clareza conceitual e suas escolhas bibliográficas, enxutas e certeiras, fazem de seu capítulo um ótimo panorama sobre os movimentos de emancipação feminina na América Latina, suas relações com os movimentos socialistas e com a maçonaria.
O historiador chileno Felipe Santiago del Solar nos oferece um breve panorama dos primeiros anos da maçonaria no Chile. Para tal, faz uma análise das primeiras obras que dão conta das atividades maçônicas no país andino. Este recorrido, del Solar não o faz apenas por uma questão de crítica historiográfica, mas porque a grande maioria da documentação maçônica chilena se perdeu após um terremoto no começo do século XX. Apesar de bastante conciso, o capítulo é o relato de uma trajetória maçônica bastante tardia e singular se comparada aos outros países latinos.
O fechamento do livro fica nas mãos de Guillermo de los Reyes-Heredia, professor da Universidade de Houston (Estados Unidos), que escreve sobre um tema que pode não parecer “demasiado maçônico”, à primeira vista. A sociedade civil, seus elementos e constructos são analisados de maneira bastante didática pelo autor, que busca entender de que maneira as organizações voluntárias têm o poder de promover, criar e contribuir para a democracia (e se, de fato, contribuem). Analisando a maçonaria nesse espectro teórico mais amplo o autor clarifica uma das discussões mais recorrentes – porém pouco aprofundadas – no campo da história da maçonaria na contemporaneidade: aquela relativa à esfera pública. O debate, trazido atualmente por Habermas, é tema obrigatório em todo trabalho sobre a Franco-Maçonaria, e este capítulo é um bom guia para aqueles que desejam abordar o tema com maior propriedade. Além do cabedal teórico, em sua maioria oriundo da Ciência Política, apresentado pelo autor, somos também brindados com uma pequena análise da mitologia maçônica em sua expressão estadunidense, e de como a exacerbação, ou mero exagero, do papel da maçonaria na história política dos países se expressa em um aumento de importância real da Ordem.
A crítica a este volume é a mesma que se pode fazer a qualquer compilação de ensaios sobre a maçonaria, isto é, os autores estão separados por um tema comum. Explico: como a maçonaria foi, e continua sendo, um tema marginal na academia, há uma considerável defasagem teórica, muitas vezes causada pela necessidade dos autores acadêmicos de se comunicar com o seu público, mormente leigo, no que concerne às questões historiográficas. Outro traço dessa separação é a variedade de termos para definir as questões maçônicas que por vezes tais pesquisadores cunham e aplicam unilateralmente. Variedade esta causada pela falta de conhecimento dos termos usados pelos próprios maçons ou, quando há o conhecimento destes, devido a uma necessidade de se diferenciar dos “maçons historiadores”. A história da maçonaria tem sido produzida por maçons frequentemente sem formação acadêmica na área das humanidades, o que torna fundamental a crítica à produção “domingueira”. Seja qualquer um dos motivos, a falta de uniformidade conceitual pode inquietar quem conhece os termos maçônicos e confundir quem deseja conhecer.
De qualquer maneira, o primeiro volume desta coleção mostra que os estudos acerca da maçonaria evoluem para um debate mais público e qualificado. Longe de ser uma seita ou uma religião, ou ainda uma conspiração para dominar o mundo, conforme as crendices à direita e à esquerda, a maçonaria é um capítulo incontornável da história moderna e contemporânea. Como todos os mitos da modernidade, urge desativá-la na sua mística e analisá-la em sua historicidade. Para quem deseja dar os primeiros passos ou incrementar os que já foram dados, Migraciones será uma grata surpresa.
Referências
ESQUIVEL, Ricardo Martínez ; ANDRÉS, Yvan Ponzuelo ; ARAGÓN, Rogelio (Org.). 300 años: Masonerías y Masones (1717-2017). Tomo I: Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. 194p. [ Links ]
1 Painel: “Imperialism, Colonialism and Multiple Freemasonries”. World Conference on Fraternalism, Free Masonry and History. 2017, Paris.
2 V Simposio Internacional de la Masonería Latinoamericana y Caribeña. 2017, La Habana.
3São termos intercambiáveis: Maçonaria, Franco–Maçonaria, a Ordem, a Fraternidade, entre outros.
Como citar: ESQUIVEL, Ricardo Martínez ; ANDRÉS, Yvan Ponzuelo ; ARAGÓN, Rogelio (Org.). 300 años: masonerías y masones (1717-2017). Tomo I: Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. 194p. Resenha de CAMARGO, Felipe Corte Real de. Migrações sob o esquadro e o compasso: 300 anos de histórias da maçonaria. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 38, p. 268-272, mai./ago. 2018. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.
Felipe Corte Real de Camargo – Doutorando pela Universidade de Bristol, Inglaterra. E-mail: fc15629@bristol.ac.uk.
Palavras como balas: Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939) – OLIVEIRA (Topoi)
OLIVEIRA, Ângela Meirelle. Palavras como balas. Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939). São Paulo: Alameda, 2015. Resenha de: BEIRED, José Bendicho. Para compreender o antifascismo na América Latina. Topoi v.19 n.37 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2018.
Durante a Primeira Guerra Mundial, poucos imaginavam que estava em gestação um novo movimento político radical de direita capaz de alterar profundamente a política internacional. Ao tomar o poder na Itália, o fascismo foi a primeira experiência de extrema-direita a mostrar que era possível não só derrotar o status quo liberal mas também barrar a ascensão das forças de esquerda. Em seguida, outros movimentos de direita se alastraram pelo continente europeu, quer tomando o poder quer organizando-se em novos partidos. Para o filósofo alemão Oswald Spengler, vivia-se uma fase histórica em que se divisava a própria decadência do Ocidente. As reações foram tardias, pois apenas nos anos 1930 a direita radical deixou de ser combatida isoladamente pelas forças políticas de cada país e passou a ser objeto de luta de um movimento antifascista internacional que galvanizou um conjunto de forças formado por intelectuais, organizações e órgãos de imprensa.
O livro de Ângela Meirelles Oliveira constitui uma inovadora contribuição para a compreensão do papel da América Latina na cruzada internacional de combate ao fascismo. Com base em minuciosa pesquisa documental realizada em diversos países, o estudo oferece novos elementos a respeito dos movimentos antifascistas do Brasil, da Argentina e do Uruguai por meio de um recorte que privilegia o papel dos intelectuais e a atuação da imprensa. O título da obra, extraído de um verso emblemático – Palabras como balas hay que usar contra vosotros, enemigos! – da poetisa argentina Nydia Lamarque, por si só ilustra o espírito do engajamento que tomava os intelectuais empenhados na causa antifascista.
A metodologia empregada constitui um dos pontos altos da obra. Articulando o método comparativo e a perspectiva transnacional, a autora estabelece recortes criativos, reconstrói conexões e apresenta conclusões que permitem explicar as peculiaridades do antifascismo no Cone Sul e as suas relações com o movimento antifascista europeu. Um aspecto fundamental da abordagem reside no tratamento dos intelectuais como mediadores do processo de circulação de ideias entre os países do Cone Sul e entre estes e a Europa, em especial a França. Sob a vigilância metódica das autoridades policiais, os intelectuais sustentaram a luta antifascista por meio da fundação de entidades, criação de órgãos de imprensa, elaboração de artigos, troca de correspondência, promoção de campanhas e exposições de arte.
Uma tese basilar perpassa o livro pondo em xeque interpretações consagradas na historiografia: a despeito da relevância das organizações europeias e da URSS para o antifascismo latino-americano, este teria se desenvolvido com relativa autonomia em função dos contextos nacionais. Não obstante, a autora reconhece que as organizações criadas na Europa tiveram papel central no engajamento mundial dos intelectuais na luta contra o fascismo. Fundadas por militantes e simpatizantes de esquerda, as organizações europeias gravitaram, não sem tensão, em torno da Comintern e, consequentemente, dos interesses soviéticos em relação à política internacional, a exemplo do Comitê de Vigilância de Intelectuais Antifascistas e da Associação de Escritores e Artistas Revolucionários. Um papel de destaque coube ao Comitê Mundial contra a Guerra e o Fascismo por sua influência na Europa e na América, contando com a participação dos mais renomados intelectuais de então – Máximo Gorki, Bertrand Russell, Albert Einstein, John Dos Passos e André Gide entre muitos outros – sob a direção dos franceses Romain Rolland e Henri Barbusse.
A primeira parte do livro é dedicada ao exame das organizações, intelectuais e órgãos de imprensa antifascistas do Cone Sul. No Brasil, as primeiras a serem fundadas foram os Comitês Antiguerreiros de São Paulo e do Distrito Federal, de filiação comunista; e a Frente Única Antifascista, criada na sede do Partido Socialista Brasileiro, com a participação da Liga Comunista Internacionalista, de perfil trotskista. As tensões entre fileiras fascistas e antifascistas não eram pequenas. Em 1934, ambas confrontaram-se fisicamente quando as agrupações antifascistas se concentraram na Praça da Sé, centro de São Paulo, para protestar contra um comício organizado pela Ação Integralista Brasileira, deixando um saldo de seis mortos e dezenas de feridos dos dois lados.
Vinculado à Frente Única Antifascista foi criado o Clube dos Artistas Modernos, que promoveu a famosa conferência de David Alfaro Siqueiros a respeito da técnica muralista em São Paulo, por ocasião da sua passagem pelo Brasil ao retornar do Rio da Prata para o México. Outras experiências, o Clube de Cultura Moderna e o Centro de Defesa da Cultura Popular, associados à Aliança Nacional Libertadora, visavam ambos ao estabelecimento de contato entre os intelectuais e o grande público para a difusão das artes, da ciência e da literatura. Em busca de espaços alternativos para a promoção das artes, em 1935 o CDCP organizou a I Exposição de Arte Social no Brasil, com a participação de Portinari, Di Cavalcanti, Noêmia Mourão, Oswaldo Goeldi, Ismael Nery e Alberto Guignard. Tais entidades exemplificavam o esforço da geração modernista em conferir à arte um sentido ao mesmo tempo vanguardista, popular e comprometido com as questões políticas. Paralelamente, a imprensa foi outro veiculo fundamental de resistência política e cultural antifascista, cuja atividade esteve concentrada em órgãos tais como Revista Acadêmica, Diretrizes e Cultura, Mensário Democrático, além de jornais como Marcha e o diário A Manhã.
Uma das hipóteses da autora é que o funcionamento das entidades antifascistas dependeu das condições políticas de cada país do Cone Sul. No caso do Brasil, a dinâmica política da Era Vargas foi mais tolerante com as atividades da extrema direita, a exemplo do Integralismo, do que com as correntes de esquerda, objeto de sistemática vigilância, perseguição e prisões. A repressão subsequente ao levante de 1935 e ao golpe do Estado Novo apenas aumentou ainda mais as dificuldades do antifascismo, com o desmantelamento do PCB, prisões, fugas e exílio de militantes e intelectuais. A Argentina e o Uruguai foram os destinos mais procurados pelos exilados brasileiros, que transformaram Buenos Aires e Montevidéu nos seus principais centros de atuação no exterior, a exemplo de Carlos Lacerda na sua fase comunista.
A comparação permite constatar que a Argentina abrigou o movimento antifascista mais significativo da América Latina, traduzindo-se em uma maior quantidade de organizações, pessoas e órgãos de imprensa envolvidos do que em outros países da região. Em 1930 o general José Uriburu desferiu um golpe de Estado que derrubou o governo da União Cívica Radical presidido por Hipólito Yrigoyen e implementou uma ditadura filofascista apoiada pelo exército e por milícias uniformizadas, tais como a Legião Cívica Argentina. Carente de suficiente base política, o poder foi passado aos conservadores, que restauraram o antigo sistema de eleições fraudadas, primeiramente sob a presidência de outro militar, o general Agustín P. Justo, e depois o civil Roberto Ortiz, buscando-se manter uma posição de neutralidade diante da contenda entre o fascismo e o antifascismo. Apesar das perseguições contra militantes de esquerda, havia de qualquer modo mais condições que no Brasil para a atividade política, a organização de movimentos e o funcionamento da imprensa antifascista. Um papel relevante, embora fora do âmbito da pesquisa do livro, foi desempenhado pelas coletividades de estrangeiros, notadamente a italiana e a espanhola, cujas atividades antifascistas foram estudadas no Brasil por João Fábio Bertonha e Ismara Izepe de Souza, e na Argentina, por Mónica Quijada e Andrés Bisso.
A segunda parte do livro dedica-se à circulação internacional das ideias e dos intelectuais antifascistas. A autora confere especial atenção à Agrupação de Intelectuais, Artistas, Jornalistas e Escritores por considerá-la a mais importante associação em prol do antifascismo. Criada primeiramente em Buenos Aires, e em seguida em Montevidéu, tinha como objetivo declarado “lutar pela defesa da cultura”, em outras palavras, combater o obscurantismo embutido não apenas no fascismo internacional, mas também no autoritarismo e na corrupção política praticados pelos governos conservadores. A entidade argentina chegou a contar com 2 mil associados e diversas filiais no interior do país, tendo à frente figuras como Anibal Ponce, Sergio Bagú, Manuel Ugarge, Liborio Justo, Héctor Agosti e Arturo Frondizi, então jovem membro da União Cívica Radical e futuro presidente da nação. O boletim da entidade – Unidad por la defensa de la cultura – somou-se a várias outras publicações regulares que, embora não dedicadas exclusivamente ao antifascismo, o tomaram como causa própria, tais como Claridad, Hechos e Ideas, Sur e La Internacional.
Dois interessantes aspectos sobressaem. Em primeiro lugar, a diversidade ideológica das publicações mencionadas – respectivamente socialista, radical, liberal e comunista -, assim como das organizações antifascistas. A autora contesta enfaticamente a tese do caráter essencialmente comunista do antifascismo dos países estudados, assim como do papel determinante da Comintern na sua organização. No lugar disso, identifica a existência de uma matriz liberal no antifascismo argentino e, no caso do Uruguai, aponta uma forte politização, sem vinculação partidária. Em suma, a documentação sugere que o vigor do movimento antifascista nos três países estudados dependeu justamente da heterogeneidade das suas fileiras e da amplitude do arco progressista que reunia liberais, anarquistas, radicais, comunistas, trotskistas e socialistas.
Outro aspecto a destacar é o papel das redes de sociabilidade antifascista que se estabeleceram por meio da imprensa vinculando as publicações da Argentina, do Uruguai e do Brasil entre si e estas com as da França, epicentro internacional do movimento antifascista e sede de revistas como Clarté, Commune, Vigilance e Front Mondial. O intercâmbio ocorria pela reprodução de artigos e a notificação do recebimento de revistas de outros países, a exemplo de Commune, órgão da Associação de Escritores e Artistas Revolucionários, sediada em Paris, que recebia praticamente todas as revistas antifascistas sul-americanas. No Cone Sul, as revistas da Argentina e do Uruguai trocavam uma considerável quantia de matérias com as congêneres da França, o mesmo não ocorrendo com as revistas do Brasil, que apenas mantinham contato esporádico com as publicações estrangeiras. Quanto ao intercâmbio intelectual entre os países latino-americanos, apenas existiu de modo rarefeito. Parece ter ficado mais no plano das intenções que da sua efetivação material, apesar dos apelos da portenha Claridad e da baiana Seiva em favor do seu incremento.
O Uruguai merece um lugar especial em razão da relevância das atividades antifascistas em seu território. Em 1933, abrigou o Congresso Antiguerreiro Latino-americano de Montevidéu, que, vinculado ao seu homólogo europeu e à corrente comunista, congregou centenas de delegações sindicais, camponesas, estudantis, de artistas e intelectuais. Não deixa de ser notável a marca deixada por uma ilustre brasileira. Pelo prestígio pessoal e proximidade em relação ao PCB, Tarsila do Amaral foi uma das poucas intelectuais convidadas a proferir uma conferência, e, destoando do tom geral do evento, discorreu a respeito das “Mulheres e a guerra”. Encetando uma contundente crítica ao papel destinado às mulheres pelos governos capitalistas e imperialistas, terminou sob aplausos e conclamou-as à luta antiguerreira. A análise do congresso aponta, ainda, para as divisões intestinas da esquerda e os diferentes conceitos de frente política, evidenciados nas críticas aos trostskistas, na expulsão dos anarquistas e na condenação de figuras como Augusto César Sandino e Haya de la Torre.
Às vésperas da Segunda Guerra, Montevidéu acolheu outro importante evento, o Congresso Internacional das Democracias. Composto por delegações de intelectuais dos países americanos, foi patrocinado por um conjunto de partidos políticos uruguaios. Apesar da exclusão do Partido Comunista Uruguaio, a reunião contou com uma ampla participação de delegados de todas as correntes políticas das Américas comprometidas com o antifascismo, incluindo o comunismo. Estiveram presentes personalidades como Pablo Neruda e Juan Marinello, que se reuniram em dezenas de comissões para discutir assuntos políticos, econômicos, sociais e culturais. Também participou uma delegação brasileira não oficial composta por representantes da Universidade Nacional do Rio de Janeiro e das Mulheres Intelectuais do Brasil, além de brasileiros exilados perseguidos pelo Estado Novo, cujo governo buscou impedir sem sucesso a realização. Para a autora, o evento refletia a desilusão com a Europa e representou a inflexão do antifascismo latino-americano em vista do seu alinhamento às diretrizes da política externa norte-americana que enfatizava a boa vizinhança e a união das forças contrárias ao fascismo. O título do discurso do uruguaio Emilio Oribe era emblemático dessa guinada: “Por que a América imita os europeus? Cultura autóctone e universal.”
A autora dedica especial atenção à Guerra Civil Espanhola, conflito de enorme repercussão na América Latina e divisor de posições da opinião pública, que se mobilizou tanto a favor do governo republicano quanto dos rebeldes nacionalistas. Na Argentina e no Uruguai a solidariedade aos republicanos foi especialmente intensa em razão da elevada taxa de imigrantes espanhóis em relação ao conjunto da população. Por sua vez, tais imigrantes estavam organizados em uma vasta rede de entidades associativas e jornais comunitários que impulsionaram iniciativas em favor da República Espanhola. As remessas de alimentos, remédios, dinheiro e roupas constituíram as ações prioritárias da solidariedade aos republicanos, além da acolhida dos exilados e a pressão política pela não intervenção da Itália e da Alemanha no conflito espanhol.
São examinadas as atividades da Agrupação de Intelectuais, Artistas, Jornalistas e Escritores, cuja seção argentina criou a Comissão Argentina de Ajuda aos Intelectuais Espanhóis. As ações de solidariedade dessa comissão tiveram como ponto alto os protestos e as homenagens decorrentes do fuzilamento de Gabriel Garcia Lorca, ato covarde que foi transformado em símbolo da luta da cultura contra a barbárie fascista. Os intelectuais latino-americanos viam a si mesmos como legítimos partícipes das fileiras republicanas deste lado do Atlântico. A uruguaia Clotilde Luisi, perguntando-se quem formava essa retaguarda, esse verdadeiro exército, guardião da alma espiritual do povo, respondia: os homens de ciência, professores, artistas plásticos, atores, escritores e poetas.
Em contraste, para a autora, a solidariedade dos brasileiros aos republicanos espanhóis não contou com a formação de entidades dedicadas especialmente a tal finalidade. Contando com a permanente repressão do governo Vargas, a solidariedade republicana apenas pode tomar corpo por meio de matérias divulgadas na imprensa antifascista e assim mesmo com restrições em vista da censura. Segundo o escritor Álvaro Moreyra, a morte de Garcia Lorca foi noticiada pelos jornais brasileiros com seis meses de atraso em outubro de 1937. De qualquer forma, a Revista Acadêmica foi a publicação brasileira mais empenhada no apoio aos republicanos. Após a vitória dos nacionalistas, expressou a dor da derrota e a consciência dos limites do papel do intelectual por meio de um artigo de Emil Fahrat: “Nossa dor é maior do que a tua, Espanha, porque fomos vencidos sem termos entrado na luta. Perdão Espanha pelo que não fizemos por ti.”
Apesar de atestar o vigor do antifascismo dos países do Cone Sul, o livro se encerra com a melancólica constatação do fracasso do movimento. Por um lado, os intelectuais desmobilizaram-se em razão do Pacto Germano-Soviético e da sua subordinação à Política da Boa Vizinhança. Além disso, eles se mostraram incapazes de enfrentar as medidas autoritárias dos governos brasileiro, argentino e uruguaio. Talvez seja um quadro por demais pessimista que poderia ser repensado se relacionado ao processo mais amplo de construção da democracia na América Latina. Sabe-se que a formação de uma cultura democrática, pluralista e defensora de direitos humanos básicos nos países latino-americanos é um fato inegável da sua história contemporânea. Porém, sob inúmeros percalços, não se manifestou de forma linear e nem da noite para o dia, constituindo antes um processo ainda inconcluso.
O exame do movimento antifascista sugere que ele contribuiu decisivamente para desenvolver uma cultura democrática que serviu de suporte para combater o autoritarismo em suas várias modalidades depois da Segunda Guerra Mundial. Por sua vez, a cultura política frentista, por vezes tão mal compreendida, pode ter justamente no antifascismo uma das suas raízes mais fecundas na América Latina.
Referências
OLIVEIRA, Ângela Meirelles. Palavras como balas. Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939). São Paulo: Alameda, 2015. [ Links ]
2Como citar: OLIVEIRA, Ângela Meirelles. Palavras como balas. Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939). São Paulo: Alameda, 2015. Resenha de BEIRED, José Luis Bendicho. Para compreender o antifascismo na América Latina. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 37, p. 226-231, jan./abr. 2018. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.
José Luis Bendicho Beired – Professor da Universidade Estadual Paulista. E-mail: jbbeired@assis.unesp.br.
Resistência: memória da ocupação nazista: memória da ocupação nazista na França e na Itália – ROLLEMBERG (Topoi)
ROLLEMBERG, D. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: GHERMAN, Michel. “Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália.” Uma perspectiva comparativa acerca do uso da memória. Topoi v.19 n.37 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2018.
Em seu livro Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália, publicado pela editora Alameda em 2016, a historiadora Denise Rollemberg propõe uma reflexão relativamente rara em trabalhos produzidos no Brasil: a análise dos lugares de memória da resistência ao nazismo em países que tiveram distintas experiências em relação à ocupação na Segunda Guerra Mundial, França e Itália.
Sua obra se divide em uma apresentação e em mais duas partes. Na apresentação, capítulo “Resistência: o desafio conceitual”, a autora faz um cuidadoso debate acerca das formas de resistência, de sua historiografia e de seus usos políticos. A Parte I, que trata de “Memória e resistência na França” se divide em dois capítulos.
No capítulo 2, “Museus e memoriais franceses”, é feita a análise de monumentos e museus da resistência francesa, discutindo referências teóricas de história e de memória e suas distintas adaptações nos vários casos dos “lugares de Memória” (p. 92) no país. No capítulo 3, “Em algumas horas vou morrer… As cartas de despedida dos resistentes”, a autora analisa cartas de despedida deixadas por resistentes que seriam, às vezes algumas horas depois de escrevê-las, fuzilados. Interessante notar aqui a tentativa de desconstrução de percepções prévias, por vezes consolidadas na memória da resistência, sobre os “mártires” assassinados pela repressão nazista.
Finalmente, na parte II: “Memória e resistência na Itália”, composta por mais dois capítulos, a autora faz uma reflexão sobre o uso da memória no país. O capítulo 4, “Museus e memoriais italianos” é aberto por um interessante debate sobre a própria construção da história italiana, no que diz respeito à memória da resistência. A partir dessa percepção, a resistência aberta ao nazifascismo, de fato estabelecida a partir da invasão estrangeira ao país (em 1943), teria sido iniciada, segundo a narrativa italiana do pós-guerra, já com a subida de Mussolini ao poder. Aqui, exposições e memoriais analisados parecem tentar estabelecer uma história contínua de resistência ao fascismo a partir da década de 1920. No livro, a autora aponta estratégias usadas na construção da memória sobre a resistência na Itália ao utilizar referências da unificação italiana (risorgimento, em fins do século XIX), como forma de estabelecer uma narrativa nacional contra a invasão alemã e o fascismo (p. 236).
Por fim, no capítulo 5, “Os sete fratelli”, o livro trata dos memoriais em homenagem a sete irmãos, militantes contra o fascismo, fuzilados em 1943. Aqui a autora analisa como os irmãos, simpatizantes do comunismo e moradores do interior da Itália, são alçados, no pós-guerra, à condição de símbolo nacional de resistência ao fascismo no país. Ao refletir sobre memoriais e museus em homenagem aos “sete fratelli”, a historiadora estabelece uma reflexão sobre a construção de uma memória sacralizada (p. 235) que transforma o caso específico de resistência e fuzilamento em referência simbólica da luta contra o nazifascismo na Itália.
O livro Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália constitui um trabalho importante por estar baseado em duas propostas de análise distintas e complementares. A primeira delas pretende estabelecer um estudo acerca da ocupação nazista em alguns países da Europa ocidental (França, Itália e Alemanha). Nesse contexto, a ideia de “uma resistência europeia” é desafiada. Para isso, a autora tenta historicizar a noção de resistência, ao propor questões determinadas pelas especificidades da política de ocupação em cada país.
A segunda proposta de análise está relacionada com a construção de uma memória da resistência. Aqui, Rollemberg analisa as narrativas sobre a resistência nos países citados. Essa revisitação da história é feita a partir da reflexão sobre os “usos da memória” na França, na Itália e na Alemanha, apresentando importante contribuição para debates acerca da ideia de memória sobre a resistência ao nazismo (p. 40).
O desafio de estudar museus e monumentos em países que tiveram experiências tão diferentes em suas respectivas relações com a expansão do nazismo na Europa demanda extrema habilidade na análise documental (de museus e memoriais), bem como uma perspectiva metodológica que garanta pertinência aos objetos escolhidos. Acredito que o livro de Denise Rollemberg tem muito sucesso em suas escolhas.
Esse sucesso está relacionado à cuidadosa análise que a autora faz do próprio conceito de resistência. Ao propor uma espécie de “dialética da resistência” (p. 20), Rollemberg afirma que o sentido de resistência deve estar menos vinculado, como propunha uma historiografia mais tradicional, com análises reificadas e absolutizadas da resistência propriamente dita. Aqui, a autora busca uma análise mais aprofundada a partir perspectivas mais críticas da própria resistência. Os diversos regimes escolhidos são analisados em conjunto com as respectivas formas de resistências ao nazismo. Nesse contexto, a historiadora propõe uma dinâmica comparativa entre dois (ou três) países com experiências bastante distintas na guerra: França e Itália (e Alemanha). Apesar de regimes diversos e das diversas formas de resistir, é proposto no livro que as referências de comparação podem ser não apenas possíveis, mas devem ser uma importante referência de pesquisa (p. 19).
Em sua pesquisa a historiadora propõe que seja estabelecida uma relação entre “forma da ocupação” e “forma da resistência”. Assim, o livro relaciona os diversos regimes de ocupação nazista às várias formas de resistência. Segundo a autora, onde as expressões do totalitarismo e da ocupação fossem mais pungentes e completas, mais flexíveis e menos específicas seriam as possibilidades de resistência. Nos casos em que o totalitarismo e a ocupação tivessem menos sucesso, as formas da resistência apareceriam de maneira menos ampla e mais objetiva.
Nesse sentido, países onde estruturas do regime fossem efetivamente hegemônicas, como é o caso da Alemanha, as formas de resistência deveriam ser vistas com lentes que dessem a elas maior expressão. Em países como a França (principalmente no norte do país), as análises sobre resistência deveriam ser feitas com mais exigência e fôlego, afinal, haveria, a princípio, maior espaço social e político para formas mais específicas e objetivas de resistência ao regime ocupante (p. 20).
Ao se debruçar sobre o caso francês, a autora faz um estudo de casos sobre “a história da memória” da resistência à ocupação. Se após a libertação a França produziu uma memória de “todos os resistentes”, essa memória se desloca para outro lugar depois das primeiras três décadas depois da ocupação nazista. Aqui, o livro aponta como referência o lançamento do documentário Le Chagrin et La Pitié, como forma de localizar e justificar a mudança da memória francesa no que diz respeito à resistência de todos. A perspectiva do documentário desafiava a memória oficial francesa, justamente por inverter esses sinais. A tese central do filme era de que, na França, todos foram, de uma maneira ou de outra, colaboracionistas (p. 21).
Nesse contexto, o “mito da resistência”, utilizado por governos do pós-guerra, seria substituído pelo “mito da colaboração”. Em um movimento de “contramemória”, os franceses revisitam as experiências do nazismo com, por assim dizer, sinais trocados. A autora defende que as transformações no tratamento da memória da resistência tenham sido um subproduto das manifestações de maio de 1968. Desse modo, a derrubada de heróis (típica da rebelião dos estudantes) chegava à experiência da resistência na guerra. Importante notar, como bem apontado no livro, que a produção dessa contramemória ocorre em um momento em que a geração dos “resistentes”, ou “colaboradores”, ainda estava ativa na França (p. 26).
Nessa dinâmica de memória e contramemória, a autora nota que outro debate começa a consolidar-se historiograficamente justamente após a publicação de uma importante obra que será referência. Vichy, France escrita pelo britânico Robert Paxton, propunha uma análise mais complexa do fenômeno da resistência. Nesse contexto, se buscava fugir das lógicas absolutas fosse da “nação de resistentes”, fosse da “nação de colaboradores”. De fato, o modelo paxtoniano apresenta uma nova abordagem sobre a história da resistência francesa, ou, segundo Rollemberg “entre os dois modelos de memória, ou entre as duas memórias, a historiografia buscou seu caminho próprio” (p. 23).
A partir desse momento, o livro debate modelos “pós-paxtotianos” da historiografia francesa que vão estabelecer critérios mais claros no que diz respeito às formas de resistência e as formas de colaboração. Afastando-se da noção do “homem providencial” (p. 27) e da naturalização da resistência (ou da colaboração) a historiografia francesa estabelece fronteiras e critérios para discutir formas de resistência na história do país.
A partir de então, a autora propõe que, para além de perspectivas “sacralizadas” das vítimas (p. 9), o “giro historiográfico” francês passa também a lidar com referências mais complexas de resistência. Saindo do debate baseado em figuras heroicizadas (no caso de resistentes) ou vilanizadas (no caso de colaboracionistas), a autora propõe análises a partir das “zonas cinzentas” de atuação (usando o conceito que Laborie pega emprestado de Primo Levi) (p. 9). A disputa entre a vítima sacralizada e a produção historiográfica mais crítica ainda está, entretanto, presente nos monumentos e nos debates sobre a memória francesa, como a autora bem demonstra no decorrer do livro (a abertura da obra com o exemplo do memorial de Jean Moullin ilustra muitíssimo bem esse debate) (p. 9).
Na parte sobre a resistência italiana, a autora trabalha a partir da perspectiva comparativa e estabelece características distintas em relação à resistência francesa. A resistência italiana se inicia com a ocupação nazista no país, justamente após a derrota do fascismo. Ou seja, há uma clara definição temporal e política sobre o início da resistência. Em comparação com a oposição contra o fascismo, a relação com os ocupantes nazistas aliados do fascismo era de combate (p. 44).
Esse período se estabelece quando estruturas de poder nazistas (como a Gestapo e a perseguição aos judeus) (p. 45) começam a se apresentar na Itália. Nesse momento, os opositores históricos ao fascismo italiano iniciam a resistência aos nazifascistas. Assim, a resistência italiana teria surgido, conforme propõe a autora, em 1943, junto à ocupação estrangeira.
Como bem coloca a historiadora, o combate e o apoio dos resistentes italianos é mais militar do que político (em comparação com a resistência francesa), apesar dos vários grupos envolvidos no combate aos nazistas (comunistas, democratas cristãos, socialistas, anarquistas etc.) e de suas perspectivas distintas de combate e de vitória sobre nazifascismo (tese das três guerras, p. 47).
Nesse sentido, inclusive haveria dois ocupantes no mesmo momento, os aliados (percebidos como parceiros na luta contra o nazifascismo) e os nazistas (em sua aliança com os fascistas), que teriam se transformado em inimigos e alvo da resistência italiana na guerra.
Nessa realidade, apresentada como referência comparativa ao que ocorria na França, a Itália vai produzir uma rede de memoriais, museus e monumentos muito específicos, como a autora apresenta na última parte do livro.
O último caso comparativo da obra de Denise Rollemberg é o caso da Alemanha, que por algum motivo não aparece no título e nem é alvo de análise quando a autora fala dos monumentos à resistência, na última parte da obra. Bastante diferente dos dois casos discutidos anteriormente, o caso da resistência na Alemanha é único.
Em primeiro lugar por não se tratar de uma resistência a invasão de potência estrangeira. A “resistência” alemã se estabelece no enfrentamento (ou na oposição) a um movimento social e político do próprio país. O segundo ponto importante está relacionado com o caráter do regime. Ao contrário do que ocorria na Itália e na França, a base social, as possibilidades de delação e o diminuto espaço para resistências criavam um tipo muito específico de oposição ao regime. Conforme proposto pela autora, no caso da Alemanha, o estabelecimento de um regime de alto grau de controle demanda que as análises de possíveis resistências sejam mais flexíveis e amplas. É isso que a autora faz.
A resistência alemã ao regime nazista fez com que ao fim da guerra se estabelecesse uma percepção de “grande élan moral e com um engajamento político intenso” (p. 50) que procurava se opor à “tese da culpabilidade coletiva”. Nesse sentido, se pretendia estabelecer uma espécie de lastro político para que “da outra Alemanha” pudesse surgir uma “nova Alemanha” (p. 51).
A ideia de que seria inviável, dado às expressões totalitárias do regime, que houvesse resistências internas na Alemanha foi largamente aceita, conforme mostra a autora, pelos historiadores do pós-guerra. A ideia de impossibilidade fazia com que se buscassem novas formas de compreensão da resistência alemã no contexto do regime nazista.
Essa perspectiva foi desafiada por Martin Boszat já na década de 1970. Para o historiador, a noção de “resistenze” (reações espontâneas, quase naturais) poderiam descrever as formas de “resistência” na Alemanha. Assim, a simples negação de uma saudação nazista, ou a não participação em desfiles do regime, seriam, em última instância, maneiras de resistir ao regime totalitário. Dessa forma, posicionamentos quase que exclusivamente individuais e “funcionalistas” (em oposição à natureza intencionalista da resistência francesa e italiana, p. 53), seriam as referências possíveis em uma Alemanha dominada pelo nazismo.
Na década de 1980, Ian Kershaw vai desafiar as perspectivas propostas por Boszat. Segundo ele, referências individuais e pontuais de “resistenze” poderiam apagar “zonas cinzentas ideológicas” (p. 54) que foram estabelecidas pelo próprio regime. Aqui, Kershaw chamaria a situação de dissidência, mas não utilizaria o conceito de resistência, sob o risco, segundo ele, de produzir-se heroicização de atitudes individuais. A autora faz, então, um levantamento de tentativas de resistência a partir de movimentos políticos coletivos que, apesar de poucos e dispersos, aconteceram na Alemanha nazista.
Esse debate sobre “culpabilidade coletiva”, “outra Alemanha” e sobre formas individuais e coletivas de resistência vai criar outro modo de produção de memoriais e museus que, infelizmente não são tratados no livro, centrado nos casos da Itália e da França.
A publicação no Brasil de um livro sobre a memória da resistência em países ocupados pelos nazistas na Europa é de fundamental contribuição em nosso país, no qual o debate sobre memória e resistência à ditadura parece encontrar novos desafios políticos e historiográficos.
Referências
ROLLEMBERG, D Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. [ Links ]
2Como citar: ROLLEMBERG, D Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de GHERMAN, Michel. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. Uma perspectiva comparativa acerca do uso da memória. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 37, p. 232-236, jan./abr. 2018. Disponível em: <http://www.revistatopoi.org>.
Michel Gherman – Pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: michelgherman@gmail.com.
Les invasions barbares: une généalogie de l’histoire de l’art – MICHAUD (Topoi)
MICHAUD, Éric. Les invasions barbares: une généalogie de l’histoire de l’art. Paris: Gallimard, 2015. 320p.p. Resenha de: DOSSIN, Francielly Rocha. O imaginário europeu sob o fantasma da filiação: sobre a racialização da arte e sua história. Topoi v.18 n.36 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2017.
“Nos pères les Germains”, Montesquieu.
Éric Michaud é historiador da arte e diretor de estudos na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris (École des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS). Suas pesquisas giram em torno dos projetos artísticos que visaram a construção do novo homem, especialmente nos séculos XIX e XX. Há alguns anos tem se dedicado a compreender a distinção que a história da arte europeia, a partir do século XIX, fez entre norte e sul. Michaud pesquisa a criação dessa divisão, fundamentada por concepções nacionalistas e racializadas, a partir da leitura de autores como Wölfflin, Schlegel, Riegl, Courajod e Viollet-le-Duc.
Pouco conhecido no Brasil, Michaud ainda não obteve uma tradução de fôlego no país. A publicação mais próxima que dispomos é a argentina La estetica nazi – un art de la eternidade (Buenos Aires: Adriana Hidago, 2009, 397p.),1 seu livro anterior.2 Nessa obra o historiador francês empenhou-se no estudo do projeto estético nacional-socialista alemão, sendo exemplo cabal do uso da arte como prova da autoproclamada superioridade ariana. Michaud mostra como os usos da arte podem estar em posição contrária à “reconciliação” entre povos e como se dá o vínculo inseparável entre projetos políticos e estéticos. Como revela o subtítulo original, “Uma arte da eternidade”, a arte nazista propunha uma negação do tempo e da história. A inspiração para essa negação vem do cânone atemporal atrelado à noção de raça na história da arte. Essa problemática, que também circunda o último livro lançado, é tratada com a mesma erudição de seus textos anteriores. As invasões bárbaras: uma genealogia da história da arte3 é uma publicação da coleção Nrf Essais da editora francesa Gallimard. Resultado de uma pesquisa conduzida em 2010 no Institute for Advanced Study (Universidade de Princeton) e financiada pela fundação franco-estadunidense Florence Gould Foundation Fund. Na obra, Éric Michaud demonstra como concepções raciais foram fundantes da história da arte como disciplina.
Para o autor, “a história da arte começou com as invasões bárbaras”4 (p. 11), uma afirmação forte, mas que não significa que a história da arte tenha começado nos séculos IV e V com as invasões ao Império Romano, tampouco que a arte não possuísse história antes delas, mas sim que a disciplina só se fez possível quando, entre os séculos XVIII e XIX, as invasões começaram a ser entendidas e narradas como o “(…) evento decisivo pelo qual o Ocidente se engajou na modernidade, ou seja, tomou consciência de sua própria historicidade” (p. 11). A noção de que os bárbaros foram aqueles que destruíram a Europa clássica se inverte a partir do romantismo, momento em que passam a ser entendidos como aqueles que construíram o continente. Há nesse momento uma grande mudança na representação sobre o passado, criando-se uma grande oposição entre nórdicos (enérgicos e masculinos) e latinos (decadentes e femininos).
“Sobre um fantasma da filiação” é o título da introdução na qual o autor nos apresenta as linhas gerais de sua obra, mostrando como a partir de 1800 os “bárbaros” começam a ser entendidos como “um povo” vigoroso, forte e criativo, que trouxe renovação e rejuvenescimento de todas as ordens através da “injeção” do novo sangue, das raças nórdicas, no “corpo” dos povos do Império decadente. O “gênio5 nórdico” passa então a ser valorizado em detrimento da “latinidade”.
A história da arte, que surge com um viés antirromano e anticlassicismo, é uma criação romântica, contemporânea à criação dos Estados-Nações e ao desenvolvimento do nacionalimo na Europa. Sua genealogia nos remete a uma determinada organização histórica e política inerente ao regime de visualidade racializado. As relações entre história da arte e o modelo arqueológico e antropológico também ajudam a compreender como se deram as preocupações com as origens étnicas e raciais, pois tinham objetivos semelhantes: determinar o pertencimento de origem de um objeto. A maior parte dos departamentos de história da arte nas universidades europeias é de “história da arte e arqueologia”, um exemplo dessa relação estreita entre ambas as disciplinas. Tanto a arqueologia quanto a história da arte tinham por tarefa associar “(…) seus objetos a grupos raciais se baseando em alguns signos visíveis” (p. 23). Essa procura por uma filiação, muitas vezes fantástica, levou a compreensão da estética como algo ligado ao sangue e à raça e serviu para que a “Europa projetasse no passado, seu projeto político nacional e racial” (p. 16). Assim, entendemos como “(…) a história da arte se inscreveu na grande narrativa da guerra das raças” (p. 16).
No primeiro capítulo, intitulado “Do ‘gosto das nações’ ao ‘estilo de raça’”, Michaud revela o caráter fantasmático, imaginário e confuso de noções basilares da disciplina, a exemplo das ideias de gosto e estilo que facilmente se confundiam com construções raciais. O “estilo” foi uma forma de visualizar, teorizar e hierarquizar diferenças. Daí teriam surgido divisões como “arte latino-mediterrânea” e “arte nórdico-germânica”.
Já no segundo capítulo, intitulado “Automiméses e autorretrato dos deuses”, Michaud mostra como se construiu determinada “leitura” da antiguidade (a mesma que posteriormente o projeto nazista portará, mas desta vez como uma caricatura). Um dos historiadores mais presente neste momento é Johann Joachim Winckelmann, considerado por muitos como o pai da história da arte (e da arqueologia científica). Winckelmann empreendeu uma busca pela pureza da arte antiga grega, ideal que para Michaud está intrinsecamente ligado à noção de pureza racial e à idealização da beleza humana, a exemplo da invenção do perfil grego. A análise dos textos de Winckelmann revela também o desenvolvimento de uma narrativa a-histórica e cristã. Nas palavras de Éric Michaud: “(…) foi, portanto, um modelo cristão que estruturou essa narrativa: o ideal era a encarnação do Espírito na história – mas na história da Grécia antiga” (p. 88), a arte grega espelhava, para Winckelmann, deuses autorretratados.
No terceiro capítulo, “As invasões bárbaras ou a racialização da história da arte”, o autor aprofunda sua tese central na qual identifica na reinterpretação das invasões bárbaras o ponto decisivo da racialização da história da arte. Aqui vemos como o processo de “desbarbarização” dos povos outrora bárbaros e considerados sem arte e sem cultura possibilitou a inversão romântica e produziu o modelo histórico e cultural que agenciou a narrativa da disciplina história da arte. Ao longo da leitura somos introduzidos a conceitos como o de “tempo de incubação” (temps d’incubation), essenciais para compreender a visão evolucionista da arte. Segundo Michaud:
Ela [a noção de tempo de incubação] se comunicava com os conceitos de despertar,6 de reminiscência, e especialmente de sobrevivência que ele [Louis Courajod] lidava com talento para lançar constantemente pontes entre os planos biológico e cultural a fim de estabelecer uma natureza hereditária da transmissão das formas no espaço e no tempo. (p. 133)
Com a reabilitação dos povos bárbaros, surge outro grande inimigo das artes: o judeu. Se uma das tarefas da história da arte era mostrar como a arte representava um povo em suas qualidades e tradições, o judeu, sem um território constante, ficava fora dessa narrativa. A visão comum era de que os judeus, egoístas, eram incapazes artisticamente de se verem como um povo, uma nação. Eram iconoclastas e, portanto, insensíveis à beleza plástica. O judeu passa aos poucos a ser não só aquele que não tem arte, mas também o destruidor da cultura. Isso se dá principalmente depois da emancipação judaica.7 Esta tese está presente no quarto capítulo, “Um novo bárbaro: o judeu sem arte”.
No último capítulo, “O sangue dos bárbaros: estilo e hereditariedade”, encontramos outros conceitos e problemas que dão suporte à tese do autor. A história da arte como evolução é observada na oposição da tatilidade antiga do sul à opticalidade moderna do norte e também nas disputas acerca das origens do gótico. São vários os diálogos entre a visão evolucionista e racializada da história da arte e o pensamento de autores como Conde de Gobineau,8 por exemplo.
Outro conceito que nos é apresentado é o de Kunstwollen (vontade da arte), desenvolvido por Aloïs Riegl. Para Michaud, o conceito de vontade da arte está imbuído de um essencialismo psicológico nacional e racial. Caso semelhante é o conceito de Rassencharakter (Caráter racial), que Wölfflin creditava ser o responsável pelo estilo de um povo. No entanto, Michaud não foi o primeiro a observar as estreitas relações entre história da arte e teorias raciais. Meyer Shapiro já havia afirmado em 1936:
As teorias raciais do fascismo apelam constantemente às tradições artísticas (…). Onde, senão nos restos artísticos do passado, um nacionalista encontra as provas tangíveis de seu caráter racial imutável? Sua própria experiência se limita a uma ou duas gerações; somente os monumentos artísticos de seu país lhe asseguram que seus ancestrais eram como ele, e que seu próprio caráter é um legado permanente enraizado no seu sangue e no seu solo. Já faz um bom século que o estudo da história da arte tem sido usado para essas conclusões. (Apud Michaud, 2015, p. 211)
É verdade que os historiadores da arte mais lidos, como Aby Warbug, não são diretamente citados, entretanto, Michaud problematiza a metodologia de Giovanni Morelli (sob o pseudônimo de Ivan Lermolieff), revisitado por Carlo Ginzburg, para desenvolver seu “paradigma indiciário”, bastante utilizado por historiadores que tratam de arte, imagens, iconografia. Para Michaud, o método morelliano é outro exemplo de procura por indícios raciais e que faz parte de uma relação estabelecida anteriormente entre a “morfologia dos povos e as formas artísticas que produzem” (p. 64).
Nessa obra o conceito de raça tem uma conotação diversa da que ganha dianteira com o racismo científico. Por isso, sentimos falta de maiores contornos para o termo. No entanto, o autor está ciente dessas nuances e nos mostra que os termos raça, povo, nação, etnia foram utilizados de forma totalmente intercambiável por muitos dos autores que cita.
Para finalizar, cabe uma crítica relativa ao epílogo, intitulado “A etnização da arte contemporânea”. Nessas quatorze páginas, o autor defende que a crença de que uma arte representa um povo ou uma raça perdura não só nas classificações e divisões museológicas por nações e origens, mas também no que ele chama de “etnicização da arte”, que seria um fenômeno presente desde os anos 1950. Para ele, a universalidade abstrata, um dos princípios do mundo romano, continua a ser acusada de oprimir as singularidades dos diferentes povos; universalidade esta atualizada por meio da globalização. Tal queixa, para o autor, vem de uma visão romântica contra o que seria o poder normativo do classicismo. Michaud observa que o mercado de arte contemporânea tem sobrevalorizado as origens étnicas das obras de arte e dos artistas. Um dos casos lembrados pelo autor é a arte dos inuítes e como ela teria sido organizada pelo mercado de forma a valorizá-la, encerrando-a na constituição de um ideal de “pureza” de suas origens étnicas.
É possível observar um paralelo com a tese apresentada anteriormente, afinal, com a valorização de artistas fora do eixo Europa-Estados Unidos, não estaríamos assistindo a uma nova “reabilitação dos povos bárbaros”? Pode-se observar, por exemplo, como artistas africanos e afrodescendentes nas Américas e na Europa têm emergido em importantes espaços expositivos. Não seria esse outro momento de “desbarbarização” dos povos outrora considerados sem arte e sem cultura? Lembramos especialmente o caso da África por ter sido o continente que por muito tempo foi considerado o exato oposto da Europa. E por isso, sem leis, sem cultura, sem história e sem arte.9
Se, por um lado, podemos afirmar com o autor que uma compreensão racial baliza a compreensão da arte na contemporaneidade, por outro, Michaud parece nivelar a produção contemporânea como sendo um produto do interesse “étnico”. Nos últimos anos vêm ocorrendo uma maior participação de artistas oriundos de países chamados “periféricos” ao mundo da arte. É verdade que parte desses artistas conquista espaço através de rótulos relativos à origem, como, por exemplo, “arte latino-americana”, “arte do mundo árabe” ou “arte africana”. Por outro lado, vários desses artistas procuram colocar essas noções em xeque. Os próprios artistas lutam para se livrar dessa etiqueta que acaba por enclausurá-los na função de porta-vozes de uma nação ou de um determinado povo. Muitos artistas questionam e criticam esse olhar balizado a partir do interesse pelo “exótico” ou por uma “diferença construída”. A poética desses artistas acaba centrando-se no intuito de desconstrução da visualidade racializada que embalou e embala o ocidente. Eles assim o fazem, tal como o faz Michaud, demonstrando como tais critérios fazem parte do atual momento histórico marcado pelas estruturas e práticas racializadas.
É significativo que a obra se encerre abordando a arte contemporânea, afinal, as perguntas que fazemos ao passado são fruto das preocupações que temos com o presente. Em suma e ao final da leitura, a obra provoca os historiadores da arte a se colocarem uma questão capital: como pensar a historicidade da arte e sua narrativa fora do âmbito genealógico das filiações?
As invasões bárbaras apresenta uma grande contribuição à historiografia da arte, não apenas porque traz, com erudição, uma pesquisa excelentemente realizada, mas porque dialoga com as mais agudas preocupações da contemporaneidade. Se hoje sobra à História o exercício da autocrítica e da reflexão sobre sua própria escrita, faltava à História da Arte a coragem de se colocar algumas questões difíceis e incontornáveis impostas por nosso presente. Neste livro, Michaud realiza uma reflexão preciosa sobre a história, a ética e a estética da história da arte e as representações e sentimentos fundantes desta disciplina. Para quem se interessa por temas ligados não só à História da Arte, mas às questões ligadas à visualidade, em especial ao regime de visualidade racializado, esta obra é leitura imprescindível, e por isso espero que não tardemos a ver uma tradução em português.
1Un art de l’éternité. L’image et le temps du national-socialisme. Paris: Gallimard, 1996, 392p. (A obra contou também como uma tradução em língua inglesa: The Cult of Art in Nazy Germany. Trad. Janet Lloyd. Stanford: Stanford University Press, 2004, 276p.).
2Michaud é autor de outros livros que ainda não foram traduzidos para a língua estrangeira. Cf. <http://cehta.ehess.fr/index.php?/membres/membres-associes/163-eric-michaud>.
3Algumas questões centrais das quais o autor se ocupou no livro já tinham sido apresentadas em um artigo que publicou previamente na revista estadunidense October (n. 139, p. 59-76, inverno de 2012) sob o título “Barbarian Invasions and the Racialization of the Art History”.
4Todas as citações dos originais em língua estrangeira foram traduzidas por mim.
5A palavra gênio é utilizada aqui não no sentido de extraordinário talento, potência intelectual e/ou conhecimento, mas no sentido, mais comum em francês (génie), de características e qualidades próprias e distintivas de algo e/ou alguém.
6Réveil pode ser traduzida como “despertar”, referindo-se a um processo de renascimento.
7Refiro-me aqui ao processo, que se deu entre o século XVIII até o século XX, de libertação dos judeus na Europa, expresso principalmente pela abolição de leis discriminatórias e pela conquista de direitos civis.
8Bastante conhecido no Brasil e pelos estudiosos das relações raciais, pois, como diplomata, serviu no Brasil e seus escritos representam um resumo claro do racismo do século XIX.
9Lembro aqui o já bastante citado excerto da introdução de Fundamento geográfico da história Universal de Hegel: “A principal característica dos negros é que sua consciência não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com sua própria vontade, e onde ele teria uma ideia geral de sua essência. (…) O negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos de sentimento, para realmente compreendê-lo. Neles, nada evoca a ideia de caráter humano. (…) Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos — ou, para ser mais exato, inexistente. (…) Com isso, deixamos a África. Não vamos abordá-la posteriormente, pois ela não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para mostrar. (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da história. Brasília: Ed. UnB, 1995, p. 84-88).
10Como citar – MICHAUD. Éric. Les invasions barbares: Une généalogie de l’histoire de l’art. Paris: Gallimard, 2015. p. 320. Resenha de DOSSIN, Francielly Rocha. O imaginário europeu sob o fantasma da filiação: Sobre a racialização da arte e sua história. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 18, n. 36, p. 690-695, set./dez. 2017. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.
Francielly Rocha Dossin – Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: frandossin@gmail.com.
Crítica da razão negra – MBEMBE (Topoi)
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. 1. ed., Lisboa: Antígona, 2014. Tradução de Marta Lança. Resenha de: ROBYN, Ingrid. Capitalismo, esquizofrenia e raça. O negro e o pensamento negro na modernidade ocidental. Topoi v.18 n.36 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2017.
Crítica da razão negra, de Achille Mbembe (original em francês pela editora La Découverte, 2013), é um desses livros que nasceu já clássico: clássico não no sentido de antigo, ou imune à passagem do tempo, mas no sentido borgeano de ter sido escolhido por uma comunidade de leitores como leitura obrigatória. E o livro é, de fato, leitura obrigatória não apenas para aqueles que se interessam pela questão do “negro”,1 mas para todos aqueles que, de alguma forma, se interessam pela relação entre raça e modernidade, ou posto de outra maneira: raça, Estado e mercado. Porque o que o autor denomina devir-negro do mundo é, concretamente, uma teoria explicativa das relações entre o pensamento racial no mundo ocidental e a emergência da modernidade em sua relação intrínseca com o desenvolvimento do Estado moderno e do capitalismo, sobretudo da chamada acumulação primitiva do capital (que, diga-se de passagem, tanto Mbembe como a teórica italiana Silvia Federici não veem como uma etapa superada do desenvolvimento do capitalismo, e sim como algo ainda em curso). Situando-se entre a filosofia, a história e a crítica, Crítica da razão negra é, ao mesmo tempo, uma abrangente e provocadora reflexão sobre os conceitos de “raça”, “negro” e “África” no ocidente, e um panorama histórico das relações raciais no mundo ocidental entre os séculos XV e XXI. Ao mesmo tempo que analisa os processos históricos dos quais derivam estes conceitos, Mbembe também nos oferece um recorrido do que eu chamaria “pensamento negro” – a sua “razão negra” -, dialogando criticamente com uma série de filósofos, teóricos e escritores negros que se debruçaram sobre a sua condição e refletiram sobre as possibilidades de emancipação do negro no mundo ocidental; uma tradição cujo ponto alto o autor localiza entre as décadas de vinte e setenta do século XX, mas de cuja ideias ele se apropria para pensar o século XXI.
Apesar de que percorre um longo caminho histórico, a maior parte do livro se concentra em dois momentos históricos especialmente paradigmáticos da história das relações entre Europa e África, assim como a construção dos conceitos de “negro” e “raça”: o pensamento ilustrado do século XVIII francês e o colonialismo europeu sobre o continente africano no século XIX. Se bem faz remontar o termo “negro” ao século XVI, e conceda especial atenção à maneira como esta categoria opera nas Américas francesa e inglesa, é durante o iluminismo e o neocolonialismo europeus que Mbembe localiza o ponto nodal da construção do negro como sujeito racializado no Ocidente e, como tal, contraponto à humanidade encarnada pelo “branco”:
o Negro e a raça têm significado, para os imaginários das sociedades europeias, a mesma coisa. (…) a sua aparição no saber e no discurso modernos sobre o homem (e, por consequência, sobre o humanismo e a Humanidade) foi, se não simultâneo, pelos menos paralelo; e, desde o início do século XVIII, constitui, no conjunto, o subsolo (inconfessado e muitas vezes negado), ou melhor, o núcleo complexo a partir do qual o projeto moderno de conhecimento – mas também de governação – se difundiu. (p. 10)
Antes de entrar a fundo no conteúdo do texto, no entanto, proponho uma pergunta: por que a tradução portuguesa do livro saiu três anos antes da sua tradução ao inglês, quando o mercado de editoras acadêmicas nos Estados Unidos – para ficar apenas com os Estados Unidos – é reconhecidamente mais ativo e mais lucrativo que o mercado editorial português tomado em seu conjunto?
A pergunta permite um sem-fim de hipóteses. Uma hipótese seria a de que foram os portugueses os primeiros europeus a ocupar as costas africanas e estabelecer o tráfico de escravos daquele continente, para o resto do mundo. A teoria, no entanto, é preguiçosa: sabemos do papel de companhias inglesas no tráfico de escravos de origem africana e, mais importante, do papel preponderante das colônias da América do Norte no que diz respeito à construção da categoria “negro”. Além disso, tal hipótese apelaria ao nacionalismo português, algo do que o livro de Mbembe se afasta de forma notável.
Outra hipótese seria o interesse que o livro poderia suscitar em outros países de língua portuguesa, sobretudo as ex-colônias portuguesas na África e o Brasil. Mais condizente, esta hipótese não explica o outro lado da história: o fato de que o livro tenha demorado tanto em publicar-se em língua inglesa, quanto Mbembe na verdade confere certo protagonismo à Inglaterra e aos Estados Unidos tanto no que diz respeito ao tráfico negreiro e à escravidão como à construção das fabulações responsáveis pelo surgimento da figura do negro, e que em última instância determinariam os rumos da ideologia racial na modernidade.
Uma possível resposta encontra-se, talvez, na tese central que Mbembe desenvolve ao longo deste livro, e que encontra particular resistência no mundo anglo-saxão: a ideia de que o liberalismo – tanto econômico, como político – não é incompatível com a escravidão e o racismo; ao contrário, é o liberalismo que cria o negro e a noção de “raça”, indissociável desta figura. Para Mbembe, ao mesmo tempo que o Estado moderno surge com e para o mercado global – é a máquina de guerra do Estado moderno que permite a empresa colonial, isto é, a escravidão em massa, o sistema de plantação e a acumulação primitiva de capital -, o liberalismo é a ideologia que justifica esta operação. Obviamente, Mbembe diferencia os processos históricos e ideologias específicos que distinguem o colonialismo dos séculos XV-XVIII, daqueles que irão caracterizar o século XIX e boa parte do século XX. No entanto, o autor não observa uma real ruptura entre esses dois tipos de colonialismos – e capitalismos – no que diz respeito à questão do negro. Ao contrário, é o surgimento da noção de humanidade, no esteio do iluminismo e o liberalismo, o que garante a definitiva separação desta entre “brancos” – sinônimo de “homem”, neste contexto – e “negros” – vistos como uma outredade absoluta, como espécie de semi-homens cuja diferença radical frente ao “homem branco” justificaria a empresa colonizadora. Nos termos de Walter Migonolo, seria no século XVIII que se processa a separação dos homens entre humanitas e anthropos.
É esta a tese que o autor desenvolve nos três primeiros capítulos do livro, “A questão da raça”, “O poço da alucinação” e “Diferença e autodeterminação”. Seu ponto de partida, o questionamento das categorias “negro” e “África”, e com elas, da noção de “raça”. Para Mbembe, o negro é uma ficção, um conjunto de fabulações elaboradas no esteio do capitalismo mercantil e do estabelecimento do sistema de plantação. A criação da categoria “negro”, à qual logo se vincularia a noção de “raça”, teria por finalidade estabelecer uma diferença radical, entendida como insuperável, entre a humanidade europeia e esse outro, o negro, sobre o qual se projetam todo tipo de medos e ansiedades. Esse outro, prossegue Mbembe, não seria homem no sentido pleno da palavra, mas sim objeto: pré-humano, vivendo em estado primitivo, incapaz de autogovernar-se, o negro seria então reduzido à condição de escravo – mercadoria e trabalho – e a empresa colonial justificada como obra “civilizatória” e inclusive “humanitária”; algo que, segundo o autor, continuaria informando o neoliberalismo do século XXI e os processos de globalização.
Junto com as categorias “negro” e “raça”, surge a “África”, terra desconhecida e que não se quer conhecer, sobre as quais se projetariam também uma série de fabulações. A partir de então, negro e África passariam a ser diretamente associados: o colonialismo e o desenvolvimento do capitalismo dariam lugar, ao mesmo tempo, a uma territorialização da raça e racialização do espaço. Essa associação sine qua non entre negro e África é algo que os próprios sujeitos negros abraçariam em seus primeiros intentos de emancipação, reclamando sua “africanidade essencial” como parte de sua identidade, e canibalizando assim o discurso europeu.
Outro aspecto fundamental destes capítulos são as íntimas relações que se estabelecem entre o Estado moderno, o mercado e o racismo. Para Mbembe, o Estado moderno surge como instrumento do mercado e produto da razão mercantilista, a partir dos quais não apenas se estabelece uma partilha do mundo, mas uma partilha na qual a raça ocupa um papel central. Se o principal objetivo da lei e da burocracia é a coerção e controle dos corpos, e o medo é o principal instrumento do Estado – como já afirmara Michel Foucault -, é sobre o negro que irá se projetar este medo, e portanto sobre seu corpo que se exercerá o controle do Estado. Além do mais, o surgimento do direito moderno, na Europa, implicou entender tudo o que está além dela – homens incluídos – como ao mesmo tempo além e aquém da lei. Para Mbembe, o Estado moderno e o liberalismo surgem, então, como instrumentos biopolíticos por excelência que irão permitir e justificar a escravização do negro – entendido como ameaça, como conjunto de fabulações e de disparates que por sua vez disparam afetos -, o estabelecimento do sistema de plantação e, com isto, de um mercado global:
No ensaio La Naissance de la biopolitique, Foucault defende que, na origem, o liberalismo “implica intrinsecamente uma relação de produção/destruição [com] a liberdade”. Esquece-se de explicar que, historicamente, a escravatura dos Negros representa o ponto culminante desta destruição da liberdade. Segundo Foucault, o paradoxo do liberalismo é que “é necessário, por um lado, produzir a liberdade, mas esse próprio gesto implica que, do outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc.” A produção da liberdade tem portanto um custo cujo princípio de cálculo é, acrescenta Foucault, a segurança e a protecção. Por outras palavras, a economia do poder característica do liberalismo e da democracia do mesmo tipo assenta no jogo cerrado da liberdade, da segurança e da protecção contra a omnipresença da ameaça, do risco e do perigo. (…) O escravo negro representa este perigo. (p. 143)
É neste sentido que o liberalismo e inclusive o discurso sobre direitos humanos solidificam o racismo. O liberalismo econômico tem por base o comércio de escravos, responsável pelo desenvolvimento do capitalismo e pelo que hoje chamamos globalização. Neste contexto, o negro ocupa o papel de mercadoria e de matéria energética: ele é, ao mesmo tempo, homem-mineral (não homem, natureza), homem-metal (escravo, instrumento de extração) e homem-moeda (produtor de mercadorias e mercadoria em si mesmo). Por sua vez, o liberalismo político e o discurso sobre os direitos humanos, herdeiro do iluminismo, utilizam a escravidão como metáfora da condição humana em seu conjunto, ao mesmo tempo que apagam a existência do racismo sob a bandeira da igualdade e da fraternidade: trata-se de um discurso universalizante que, por isso mesmo, é incapaz de dar conta da diferença histórica sobre a qual se fundam as categorias “negro” e “raça”. Ao contrário, sugere Mbembe, trata-se de reafirmá-las ante a suposta impossibilidade de conciliação entre a “raça branca”, portadora de humanidade e cidadania plenas, e a “raça negra”:
O direito é, portanto, neste caso, uma maneira de fundar juridicamente uma certa ideia de Humanidade enquanto estiver dividida entre uma raça de conquistadores e uma raça de servos. Só a raça de conquistadores é legítima para ter qualidade humana. A qualidade do ser humano não pode ser dada como conjunto a todos e, ainda que o fosse, não aboliria as diferenças.2 (p. 111)
O século XIX concluiria o trabalho de exclusão a partir do qual a África e o negro se vêm separados da “história da civilização”: sem lei e nem razão, a África e o negro deveriam ser paulatinamente “introduzidos” ao processo civilizatório sob a égide europeia. A noção de “decadência do ocidente”, bastante popular nas primeiras décadas do século XX, e o exotismo com o qual se recobre o continente africano – visto pela vanguarda europeia e também caribenha como portador de uma vitalidade perdida no velho continente -, não fazem senão reafirmar esses discursos, ainda quando se buscava reivindicar o termo “negro” como categoria de autodeterminação, e não mera projeção alheia.
Paralelamente à descrição dos processos históricos que discute, Mbembe vai deslindando o pensamento negro, a sua “crítica da razão negra”, à que irá se dedicar de maneira mais direta a partir do capítulo três. Durante os séculos XV-XVIII, o negro expressa uma espécie de cisão a partir do qual habita a si mesmo como um outro, expressando mesmo um desejo de ser outro – como já o havia sugerido Franz Fanon. Neste primeiro momento, o negro abraçaria os discursos e fabulações que o constroem como tal e lhe retiram a sua humanidade, ao mesmo tempo que está obrigado a reconhecer sua condição humana. Mesmo com o fim do tráfico de escravos e os movimentos de emancipação do século XIX, afirma Mbembe, o pensamento negro reproduziria as três respostas elaboradas pelo Ocidente no que diz respeito ao “problema africano”: a noção de que África representaria uma humanidade sem história, aquém da razão e da lei; a noção de que a diferença radical do negro é algo a emendar-se, para o qual se faria necessário administrar, ainda que de forma indireta, tanto os escravos libertos e seus descendentes como o continente africano como um todo; a ideia de que o negro deve assimilar-se ao projeto civilizatório europeu para tornar-se um ser humano e um cidadão.
Se nesse primeiro momento o negro experimentaria um processo de desapropriação e de degradação, num segundo momento, o pensamento negro se caracterizaria pela vitimização. Para Mbembe, o pensamento negro do século XIX e inícios do século XX teria sido incapaz de escapar do universalismo e humanismo liberal-ilustrados, abraçando a noção de reabilitação como forma de afirmar a sua humanidade. Neste contexto, o pensamento negro não nega, mas sim incorpora a noção de raça, fazendo dela fundamento para sua ideia de nação:
A reafirmação de uma identidade humana negada por outro participa, neste sentido, do discurso da refutação e da reabilitação. Mas se o discurso da reabilitação procura confirmar a co-pertença negra à Humanidade, não recusa, no entanto – exceto em raros casos -, a ficção de um sujeito de raça ou da raça em geral. Na realidade, abraça esta ficção. Isto é tão válido para a negritude como para as variantes do pan-africanismo. (p. 158)
Além disso, e como vítima, o negro passaria a ver a sua própria história como série de fatalidades causadas por um inimigo externo, planteando a necessidade de superar o seu passado e inclusive esquecê-lo, para poder gerar uma possibilidade de futuro.
É este, em grande medida, o tema do capítulo quatro deste livro, “O pequeno segredo”, dedicado à questão da memória e ao que o autor denomina “modos de inserção da colônia no texto negro”. Como origem da cisão fundamental a partir da qual emerge o negro, locus de uma perda originária, a colônia será contraditoriamente algo comemorado e relegado ao esquecimento. A colônia, afirma Mbeme, se apresenta para o negro ao mesmo tempo como violência e como espécie de espelho no qual se reconhece a si mesmo. Neste sentido, a memória da colônia se apresentará como ponto fulcral da literatura negra, e com ela, o problema do olhar: é o olhar do colonizador que cria o negro, um olhar que não vê mais além de um corpo sobre o qual projeta todo tipo de ansiedade sexual, e que se alimenta da sua própria ignorância:
África propriamente dita – à qual acrescentaria o Negro – só existe a partir do texto que a constrói como ficção do outro. (…) Por outras palavras, África só existe a partir de uma biblioteca colonial por todo o lado imiscuída e insinuada, até no discurso que pretende refutá-la, a ponto de, em matéria de identidade, tradição ou autenticidade, ser impossível, ou pelo menos difícil, distinguir o original da sua cópia e, até, do seu simulacro. (p. 166)
Outro aspecto que Mbembe associa à colônia é seu papel como produtora de desejos e alucinações. A colônia, afirma ele, faz circular no continente africano toda uma série de mercadorias e bens simbólicos que excitam o desejo dos colonizados, que passam quase imediatamente a ser considerados signos de prestígio, status, classe etc. Nesse sentido, a colônia é, também, objeto de desejo. Sua memória, então, apresenta-se à literatura africana como algo que ultrapassa os limites daquilo que a linguagem pode expressar, mas também como inelidível.
O quinto capítulo de Crítica da razão negra, “Réquiem para o escravo”, está dedicado quase exclusivamente à literatura negra. Neste capítulo, Mbembe se debruça sobre certos motivos correntes na literatura contemporânea, e que remetem à duplicidade de que nela se recobre a figura do negro: reverso da humanidade, mas incapaz de ignorar sua condição humana, o negro se identifica com seu duplo, a sua sombra, convertendo-se em espécie de fantasma, alienado do próprio corpo. Na realidade – e aqui Mbembe se afasta notavelmente do marxismo clássico -, dissociar-se do próprio corpo, metamorfosear-se, seria condição fundamental para a emancipação do negro, uma vez que a operação básica do capitalismo racial consiste precisamente em converter o negro em corpo para o trabalho, isto é, em objeto.
O último capítulo do livro, “Clínica do sujeito”, nos oferece um recorrido do pensamento negro no século XX, analisando criticamente diferentes propostas de emancipação que marcaram o período: especificamente, as de Marcus Garvey, Aimé Césaire, Franz Fanon e Nelson Mandela. Após comentar em detalhe cada um desses pensadores, Mbembe propõe dividir o pensamento negro contemporâneo em dois períodos: um primeiro no qual o desejo de autodeterminação passaria pela afirmação da diferença e celebração da negritude, do qual o exemplo máximo seria Aimé Césaire; e um outro, o do século XXI, no qual se abraçaria o significante negro não como forma de autoafirmação ou autocompadecimento, mas sim para melhor livrar-se dele. Para Mbembe, o atual mundo globalizado requereria uma crítica radical da raça, tanto política como ética, a partir da qual seria possível passar de uma afirmação da diferença para uma afirmação da comunidade humana. Valendo-se, sobretudo, de Fanon, e estendendo a questão do negro ao que o autor chama “novos condenados da terra”, Mbembe afirma que qualquer projeto efetivamente emancipador, nos dias de hoje, requer que o negro abandone o papel de vítima, por um lado, e que os colonizadores assumam a sua responsabilidade, de outro. Trata-se, segundo ele, de insistir na lógica da justiça; algo que se observa em movimentos negros contemporâneos como Black Lives Matter:3
Enquanto persistir a ideia segundo a qual só se deve justiça aos seus e que existem raças e povos desiguais, e enquanto se continuar a fazer crer que a escravatura e o colonialismo foram grandes feitos da “civilização”, a temática da reparação continuará a ser mobilizada pelas vítimas históricas da expansão e brutalidade europeia no mundo. Neste contexto, é necessária uma dupla abordagem. Por um lado, é preciso abandonar o estatuto de vítima. Por outro, é preciso romper com a “boa consciência” e a negação da responsabilidade. Será nesta dupla condição que é possível articular uma política e uma ética novas, baseadas na exigência de justiça. (p. 297)
Seria impossível dar conta aqui de toda a riqueza intelectual e gama de ideias que desenvolve Achille Mbembe nesse livro. Para finalizar, ressaltaria a contribuição teórica que oferece o autor, que compartilha com Fanon a qualidade de não poupar a sensibilidade do leitor. Claramente inspirado nas obras de teóricos como Gilles Deleuze e Michel Foucault, Crítica da razão negra responde a esses teóricos apontando a centralidade do negro e da noção de raça para o desenvolvimento da modernidade. Ao mesmo tempo, Mbembe incorpora em sua escritura as contribuições de toda uma série de teóricos negros – africanos, caribenhos e norte-americanos -, e até mesmo de teóricos latino-americanos como Walter Mignolo. Trata-se portanto de um arcabouço teórico que apenas em aparência deriva direta ou exclusivamente da tradição francesa. Ao demonstrar a relação inelidível entre o pensamento sobre raça no Ocidente, a constituição do Estado moderno e o mercado, Mbembe desloca o centro de preocupações da crítica de esquerda europeia da história do capital e dos chamados direitos humanos para a questão da raça. Ao mesmo tempo, o autor denuncia também as contradições do pensamento libertário e nacionalista negros, ressaltando suas dívidas para com a “razão branca” e insuficiências no que diz respeito a qualquer perspectiva de futuro. Por fim, apesar de enfocar-se na questão do negro em sua relação com a África e o colonialismo europeu – o negro como homem de origem ou descendência africana – as teses desenvolvidas em Crítica da razão negra, como indica o próprio autor, referem-se antes ao que ele denomina um devir-negro do mundo; expressão que introduz a possibilidade de pensar outros sujeitos racializados – muçulmanos, por exemplo – como os “novos negros” do mundo contemporâneo, e que reforça a ideia de que a categoria negro não passa de uma ficção útil. Não humano ou sub-humano, e ainda, ameaça ao mundo dos “brancos” – o que equivale a dizer, à “humanidade” mesma – o negro é portanto passível de ser explorado, isolado do resto da “humanidade” e, inclusive, exterminado. Neste sentido, Crítica da razão negra oferece não apenas chaves fundamentais para pensar-se a experiência do outro na modernidade, mas também a sua emancipação; aspecto fundamental para o desenvolvimento da humanidade mesma.
1“Nègre” no original, “black” na tradução ao inglês. Como veremos adiante, Mbembe analisa a categoria “negro” como uma construção histórica de longa duração que não se refere apenas aos sujeitos africanos e afrodescendentes, mas ao contrário se constrói como sinônimo de uma outredade absoluta; trata-se, portanto, de uma “ficção útil” que ultrapassa a questão da cor da pele, a origem ou a localização geográfica do sujeito negro.
2Mbembe se refere aqui ao direito moderno, e que continua informando tanto o funcionamento do Estado como o discurso sobre direitos humanos. Fundado numa noção universalizante de humanidade, o discurso sobre direitos humanos, de acordo com Mbembe, teria como resultado a obliteração da cisão fundamental que se estabelece a partir da própria criação da categoria “homem”.
3Refiro-me ao principal slogan do movimento BLM, “No justice, no peace!” (Sem justiça não há paz!), mas também ao fato de que o movimento rejeita a “boa consciência branca”, que via de regra se limita a converter o negro em vítima e portanto reproduz a lógica paternalista a partir da qual operam as relações raciais.
4Como citar – Mbembe, Achille . Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014. Tradução de Marta Lança. 1. ed. Resenha de ROBYN, Ingrid. Capitalismo, esquizofrenia e raça. O negro e o pensamento negro na modernidade ocidental. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 18, n. 36, p. 696-703, set./dez. 2017. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.
Ingrid Robyn – Professora do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas/Instituto de Estudos Étnicos. Universidade de Nebraska-Lincoln. E-mail: irobyn2@unl.edu.
Empire in Waves: a Political History of Surfing – LADERMAN (Topoi)
LADERMAN, Scott. Empire in Waves: a Political History of Surfing. Berkeley: University of California Press, 2014. Resenha de: FORTES, Rafael. Surfe, política e relações internacionais. Topoi v.18 n.35 Rio de Janeiro July/Dec. 2017.
A obra do professor da Universidade de Minnesota, Duluth (Estados Unidos) constrói uma história política do surfe entre o fim do século XIX e o presente. Para tanto, explora um universo amplo e variado de fontes, pesquisadas, sobretudo, nos Estados Unidos. A descrição e a análise das fontes são entremeadas por uma boa contextualização realizada a partir de diálogo com a bibliografia, ao que se soma a perspicácia dos comentários e das problematizações apresentadas. O livro tem trechos saborosos de ler, seja pelo conteúdo das fontes ou pela análise acurada e, às vezes, mordaz.
No plano historiográfico, afirmações como a de que o prazer, intimamente associado ao ato de surfar, é também político, podem soar óbvias para aqueles familiarizados com os movimentos feministas do século XX, mas significam um avanço na história política do esporte e na história do surfe. No primeiro caso, Laderman acrescenta uma nova perspectiva a uma vertente quase sempre preocupada com políticas estatais, ou com o uso do esporte como ferramenta de mobilização e luta por movimentos sociais (de independência, de trabalhadores, identitários etc.).