Transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro / Tempo / 2008

Tempo 24 traz ao público acadêmico um conjunto de artigos, reunidos aqui em razão de duas preocupações principais. Em primeiro lugar, a extraordinária oportunidade de apresentar um conjunto de estudos dedicados à análise de alguns dos aspectos mais relevantes, recentemente contemplados pela historiografia especializada sobre a temática da transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Tema que tem recebido grande atenção por parte dos historiadores por ocasião dos duzentos anos de tal acontecimento. Evento que marcou de modo singular a história do Brasil e que, enfim, tem recebido a merecida atenção dos pesquisadores. Em segundo lugar, o objetivo de se considerar tal tema de estudos do ponto de vista de uma abordagem que priorize a utilização de certos recursos analíticos: trajetórias e formas de sociabilidade. Tal estratégia destaca a relevância dessas ferramentas de análise no desenvolvimento do debate historiográfico, que recentemente – graças às novas contribuições advindas da micro-história, em particular da antropologia de Fredrick Barth – passou a instaurar um amplo campo de possibilidades de estudo em torno desses instrumentos de reflexão.

Nesse sentido, é de destaque a forma como Barth desenvolveu uma metodologia capaz de analisar a experiência do indivíduo enquanto um processo. Em sua reflexão, cultura é sempre entendida como sendo distributiva por ser fruto da interação de valores diferenciados, gerando processos generativos, resultantes de acontecimentos interdependentes. Processos esses que acabam como por constituir um padrão de interação social em que os indivíduos buscam defender seus interesses no que diz respeito às diferentes posições que ocupam, uns em relação aos outros. Por isso, a incerteza é algo inevitável e sempre presente no jogo social, assim como é uma constante a permanente capacidade de escolhas de cada um dos indivíduos relacionados. Como conseqüência, o caráter altamente dinâmico, no qual incerteza é um dado inerente a qualquer padrão de ação social. Padrões que acabam por constituir costumes e comportamentos, tornando-se referência da ação social. O indivíduo só se torna perceptível por meio de sua relação com outros indivíduos. Daí as redes sociais, a correspondência entre o ator social e a sociedade como um todo.

Os artigos aqui reunidos procuram – cada um a seu modo – descortinar novas facetas da história do período joanino, utilizando algumas dessas propostas analíticas. Abrindo o dossiê, tem-se o artigo de Kirsten Schultz, intitulado Perfeita civilização: a transferência da corte, a escravidão e o desejo de metropolizar uma capital colonial. Rio de Janeiro, 1808-1821. Nesse artigo, a autora analisa de forma bastante dinâmica o processo ambivalente de transformação da cidade do Rio de Janeiro em nova corte régia do Império português. Ao “metropolizar” a cidade, os oficiais régios buscaram limitar a presença da escravidão naquele espaço, procurando redefinir as fronteiras físicas e sociais até então existentes em face da incontornável presença e circulação dos escravos africanos e afro-descendentes – contingente que somava cerca de quase metade do total da população da cidade. Esforços que, entretanto, esbarraram na efetiva necessidade de ampliação do uso do trabalho escravo e o profundo apego desses mesmos oficiais régios a certos ideais de manutenção das hierarquias sociais e da ordem social na cidade. Sociabilidades e trajetórias surgem aqui como elementos privilegiados para se analisar o quadro mais amplo de transformações então observadas no Rio de Janeiro.

O artigo de Andréa Slemian, intitulado Entre a corte e a revolução: a atuação de um “negociante” na América sede do Império português, examina a trajetória de Manuel Luís da Veiga, um comerciante de Portugal que acabou por se dedicar à instalação de uma fábrica de cordas em Pernambuco, no período logo após a chegada da família real à cidade do Rio de Janeiro. Tal empreendimento vinculava-se à expectativa de que um amplo campo de novas possibilidades socioeconômicas no Império português surgia então. O estudo analisa o campo das sociabilidades políticas no interior do qual Veiga se encontrava posicionado. Ao fazer isso, a autora destaca de modo particular dimensões indissociáveis da prática social da personagem – os aspectos relativos ao velho e ao novo modo de ser e agir naquela sociedade. Sua trajetória traduz vários elementos que cristalizam um mundo em profunda mudança em termos de seus paradigmas mais fundamentais. Mundo esse impossível de ser sintetizado por meio da simples identificação dos modos mais precisos de como se ia estabelecendo uma distinção entre as velhas e as novas formas de comportamento sociopolítico verificadas no alvorecer do século XIX.

O terceiro artigo a integrar o dossiê intitula-se A metamorfose de um militar em nobre: trajetória, estratégia e ascensão social no Rio de Janeiro joanino e é de autoria de Adriana Barreto de Souza. Nesse texto, a autora estuda a trajetória de um jovem oficial português, José Joaquim de Lima da Silva, para desse modo reconstituir – através de sua experiência institucional – as estratégias utilizadas por esse indivíduo na gestão de sua prática social como militar do Império português. O Exército setecentista se apresentava como uma instituição formada por diferenciados padrões de trajetórias militares, construídas por diferentes meios e recursos. Essa pluralidade de formas em ser militar resultava em parte do monopólio exercido pela Coroa na distribuição de patentes, então percebidas como um de vários bens simbólicos conferidos pelo rei em remuneração a serviços prestados por seus súditos. A hierarquia do Exército tornava-se, desse modo, permeável à hierarquia social vigente à época.

A seguir, tem-se o artigo de Márcia Abreu, intitulado Livros ao mar – Circulação de obras de Belas Letras entre Lisboa e Rio de Janeiro ao tempo da transferência da corte para o Brasil. Nesse estudo, a autora dedica-se a examinar o ritmo de circulação entre Lisboa e o Brasil de um determinado conjunto de obras de Belas Artes. O ano de 1808 se revela um claro divisor de águas no que tange ao extraordinário avanço dessa circulação. Não apenas isso, mas destaca-se também o fato de que a cidade do Rio de Janeiro passava a progressivamente se constituir numa área produtora de obras lidas em Portugal, traduzindo assim uma nítida inversão no padrão daquela circulação observado até então.

Maria do Socorro Ferraz Barbosa apresenta o artigo intitulado Liberais constitucionalistas entre dois centros de poder: Rio de Janeiro e Lisboa, quinto artigo a integrar o presente dossiê da Tempo. Nesse estudo, a autora analisa os conflitos verificados entre o absolutismo e o constitucionalismo, tanto em Portugal, quanto no Brasil. A província de Pernambuco é tomada como caso privilegiado para se observarem as diferentes facetas do movimento constitucionalista, haja vista o constitucionalismo defendido por D. Pedro, príncipe regente no Rio de Janeiro, e o constitucionalismo dos vintistas de Portugal. Os sobreviventes revolucionários de 1817 acabaram por retornar ao poder, de diferentes maneiras, articulando uma perspectiva política constitucionalista, porém monárquica.

Os artigos aqui reunidos representam uma importante oportunidade para se realizar um balanço das novas possibilidades de análise apresentadas pelas pesquisas mais recentes sobre a temática da transferência da corte portuguesa para a cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de estudos que demonstram com vigor e sagacidade o caráter essencialmente ambivalente, por vezes contraditório, das inúmeras transformações introduzidas por tamanha inovação: a fuga de um monarca europeu para a sua colônia nos trópicos americanos. Processo esse multifacetado, cuja riqueza de aspectos e questões se torna mais claramente perceptível através do estudo de trajetórias e formas de sociabilidade que se fizeram presentes em tal conjuntura.

Maria de Fátima Silva Gouvêa – Professora Associada ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]


GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Apresentação. Tempo. Niterói, v.12, n.24, 2008. Acessar publicação original [DR]

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