Cultura escolar, cultura política educacional e comemorações no Brasil / Revista do IHGSE / 2020

8 de julho de 1920. Há cem anos, o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe realizava a sua sessão solene em comemoração do centenário da Emancipação política de Sergipe, em um evento que reuniu número significativo de autoridades políticas, militares e religiosas, incluindo o presidente da República. Naquela ocasião, o sodalício reafirmava o seu lugar institucional, de defensor da memória, de celebração dos heróis, da história e das efemérides de Sergipe.

Mesmo vivenciando um contexto socioeconômico desfavorável, após uma guerra mundial e uma grande epidemia de gripe espanhola, a emancipação política foi amplamente festejada pelos sergipanos, tanto em instituições científicas, como o IHGSE, quanto nas instituições escolares, por meio dos pomposos desfiles cívicos. Muitos desses aspectos foram registrados no quinto volume da Revista do IHGSE, publicado em 1920. Infelizmente, a escrita sobre as efemérides, comemorações, festas cívicas e cotidiano escolar demoraram em se tornar objetos reconhecidos como legítimos para a história, sendo muitas vezes considerados objetos menores.

Felizmente, essa realidade historiográfica tem mudado consideravelmente. Desde a década de 80 do século XX a historiografia educacional brasileira vem passando por um importante processo de renovação, a partir das discussões pautadas na compreensão da cultura escolar, fato que possibilitou a inserção do cotidiano escolar como problema histórico, bem como a edificação do protagonismo de outros sujeitos da História da Educação. Assim, emergem as experiências de professores, alunos e inspetores como sujeitos da história. Do mesmo modo, as práticas educacionais passam a ser vislumbradas nas instituições escolares, com ênfase para o cotidiano escolar, mas também buscando outras narrativas possíveis, como os desfiles cívicos, as feiras e as exposições.

Com isso, foram amplificadas as possibilidades de leitura do cotidiano escolar, com a inserção das políticas educacionais e das culturas políticas educacionais pensadas e difundidas no espaço escolar. Pensando em tais dimensões da historiografia educacional contemporânea, no âmbito das celebrações do bicentenário da Emancipação Política de Sergipe, apresentamos a nova edição da prestigiada Revista do IHGSE. O dossiê reúne artigos que têm a cultura escolar, as culturas políticas educacionais e as comemorações como problema de investigação.

O dossiê é aberto com o empolgante artigo da Professora Beatriz Góis Dantas “Independência: celebrações, memórias e símbolos”. Trata-se de um texto que a partir das memórias de Serafim Santiago, descreve e analisa as celebrações de 24 de outubro em descompasso com 8 de julho, data do Decreto Real que declara a autonomia, e mostra a elaboração de símbolos no contexto de construção do imaginário social da identidade coletiva emergente. Além disso, a antropóloga sergipana discute como o hino sergipano e a representação do caboclo / índio formam uma unidade significativa com funções cívico-pedagógicas procurando atingir mentes e corações.

O segundo texto que compõe o dossiê é intitulado “Por trás daquele quadro tem vida!”, escrito pelas pesquisadoras Danielle Virginie e Josefa Eliana Souza. É um texto que busca atribuir sentido a parte da narrativa visual do painel Instrução, Cultura, Ciência e Arte, pintado por Jenner Augusto e entregue à Universidade Federal de Sergipe em 10 de junho de 1980. É uma interessante leitura que parte do cruzamento de olhares artísticos, e que tem como fonte principal a entrevista com a atriz Virginia Lucia da Fonseca.

O terceiro artigo, intitulado “A Pedagogia da Feira”, de Maria José Dantas, é um exercício de escrita da História da Educação que repensa o cotidiano escolar e enfatiza a feira cultural do Colégio Deputado Elísio Carmelo, evidenciando a existência de uma “Pedagogia da Feira” no processo de aprendizagem. A investigação se debruça sobre a escola, retratando o surgimento da atividade e apontando reflexões sobre a prática educativa.

Os três últimos artigos que compõem o dossiê apresentam as comemorações como problema de investigação. Com o texto “Dia de festa na Penitenciária Modelo de Aracaju”, Marcia Terezinha Oliveira Cruz investiga a participação dos estudantes da Faculdade de Direito de Sergipe (FDS) nas atividades comemorativas integrantes do “Dia do Encarcerado”, realizadas na Penitenciária de Aracaju entre os anos de 1950 e 1968. Era um evento organizado por meio da atuação da Sociedade Santo Ivo, entidade que congregava professores da FDS e os acadêmicos em Direito. Trata-se de um texto que busca desvendar o cotidiano de uma instituição de ensino superior em Sergipe.

Por meio do artigo “Memórias Escolares de uma Celebração Identitária”, Solyane Lima e Sérgio Guerra analisam a importância do Desfile de 25 de junho no cotidiano escolar na cidade de Cachoeira, no recôncavo da Bahia. Esta celebração é uma data importante não só para a localidade, mas para a Bahia, posto que, há alguns anos, a sede do governo é transferida para a cidade nesse dia. É um estudo que repensa o lugar das comemorações em uma das principais datas do calendário cívico baiano.

Por fim, no artigo “Uma das mais bellas páginas de vosso brilhante passado”, Magno Santos analisa as comemorações de inauguração do monumento a Inácio Joaquim Barbosa, fundador da cidade de Aracaju, nos idos de 1917. O foco da análise foi a mobilização de intelectuais que operacionalizaram diferentes atributos no intuito de forjar a biografia de Inácio Barbosa como herói da cidade e torná-lo apto para o culto cívico.

Por meio desta edição, o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, através de seu periódico, cumpre com a missão institucional de cultora da história sergipana e de ser o espaço privilegiado dos saberes históricos de homens e mulheres deste chão. Mesmo em um contexto permeado de incertezas acerca do porvir, em decorrência da lamentável proliferação da pandemia do coronavírus, devemos seguir o exemplo dos confrades de 1920 e celebrar a data magna dos sergipanos. Como bem expressa o hino estadual, “Alegrai-vos, sergipanos”. “Vamos festejar” e fazer boa leitura da nova edição da Revista do IHGSE.

Magno Francisco de Jesus Santos

Natal, maio de 2020


SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Apresentação. Revista do IHGSE. Aracaju, n.50, v.2, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Contextos de recepção e interpretação dos manuais escolares: caminhos teórico-metodológicos para a investigação sobre os manuais escolares na perspectiva da cultura escolar / Revista História da Educação / 2016

Durante as últimas três décadas disseminou-se, entre os historiadores da educação, um forte interesse pelo funcionamento interno da escola e pela história cotidiana das práticas escolares, a qual se convencionou chamar de cultura escolar. Das fontes históricas disponíveis para adentrarmos no universo das práticas e fazeres escolares, uma das mais profícuas tem sido o conjunto dos livros utilizados nas escolas. Desde a origem dos sistemas nacionais de educação, no começo do século 19, os manuais escolares têm ocupado um lugar privilegiado nas salas de aula de todos os países. Daí resulta a sua indiscutível relevância para a História da Educação.

Todavia, apesar de serem uma fonte valiosa, a pesquisa histórica sobre os manuais escolares tem estado reduzida ao campo dos emissores das mensagens, sobretudo no que se refere ao currículo prescrito pelas políticas e pela legislação escolar. Convictas da importância de tais análises para o campo da manualística e da história do currículo escolar acredita-se, todavia, que elas pouco têm contribuído para o avanço das investigações no campo da história da cultura escolar, haja vista que os manuais escolares, por si sós, dificilmente poderão proporcionar informações acerca da complexa história da prática nas salas de aula, das mediações e transformações realizadas pelos professores do conteúdo dos manuais escolares e de como as mensagens veiculadas nas salas de aula foram recebidas e decodificadas pelos estudantes.

Nessa perspectiva, nos últimos anos, alguns centros de investigação na área da manualística, em diferentes países, trilham novos caminhos teóricos e metodológicos em busca de vestígios ou evidências de como os receptores das mensagens, professores ou alunos, recebem, trabalham e decodificam as mensagens dos textos escolares. Dentre estes se destaca o Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes – em Madrid, na Espanha, que por meio de incursões pela história cultural, história do currículo, etnohistória, etnografia, cultura escolar, história de vida e das instituições escolares tem buscado acercar-se não apenas dos contextos de produção e de incorporação, mas dos contextos de recepção e de interpretação de sentido dos manuais escolares, ou seja, dos seus usos.

Nessa sua busca tem sido bastante profícuo o entrecruzamento do manual com fontes primárias complementares, provenientes dos contextos de recepção, tais como os diferentes tipos de cadernos escolares, exames, folhas de exercícios, diários de mestres e de alunos, informes de inspeção, atas de reuniões pedagógicas etc., as quais podem auxiliar o pesquisador a compreender como os professores e a escola em geral reagem diante do currículo a eles apresentado, permitindo uma maior aproximação do uso e do consumo que deles se fizeram e, consequentemente, da cultura escolar.

Neste sentido, busca-se apresentar investigações realizadas recentemente pelas pesquisadoras do Manes, da Espanha, e por pesquisadores brasileiros ligados a este Centro, os quais têm experimentado, de uma forma ou de outra, estes novos caminhos teórico-metodológicos no sentido de aproximar-se dos contextos de recepção e interpretação dos manuais escolares.

Abrindo o dossiê, Kira Mahamud e Ana Maria Badanelli, em Los contextos de transmisión y recepción de los manuales escolares: una vía de perfeccionamiento metodológico en manualística, apresentam os novos caminhos metodológicos ensaiados pelo Manes no que se refere ao que as autoras chamam de segunda fase de vida do manual escolar: os contextos de transmissão e de recepção. Nesse sentido, destacam a existência multicontextualizada do manual e os diferentes contextos de transmissão e de recepção: de um lado, professores e alunos e as fontes envolvidas em ambos: programas, diários, memórias, autobiografias e biografias de professores, e, de outro lado, cadernos e exames, para cuja análise mobilizam conceitos como os de inferência textual e contextual, intertextualidade e interdisciplinaridade.

Gladys Mary Ghizoni Teive, em Recepção de manuais escolares: um estudo a partir dos comunicados e das atas das reuniões pedagógicas do Grupo Escolar Gustavo Richard (1946-1952), privilegia duas fontes complementares ao estudo dos manuais escolares: os comunicados apresentados pelas professoras nas reuniões pedagógicas do Grupo Escolar Gustavo Richard entre 1946 e 1952 e as atas das mesmas. Estas três fontes entrelaçadas possibilitaram à autora perceber quais problemas eram enfrentados pelas mestras no seu dia a dia nas salas de aula, quais – dentre os manuais prescritos pelo Departamento de Educação de Santa Catarina – foram selecionados para ajudá-las a solucioná-los, como as mestras os utilizaram: se os textos foram extraídos literalmente ou se sofreram alterações por parte das professoras e, neste último caso, que tipo de mescla e ou fusão se operou entre a chamada cultura empírica das professoras e a cultura expressa nos manuais escolares lidos e, ainda, quais as suas representações a respeito das leituras realizadas.

O artigo assinado por Nicolas Martínez Valcárcel aborda o uso do livro didático pelos alunos, tanto nas aulas, quanto em casa, um âmbito raramente investigado na área dos manuais. As marcas presentes em cada manual, tal como os sublinhados, diagramas, símbolos, sínteses, permitiram ao pesquisador identificar as tarefas executadas pelos seus utilizadores, iniciadas em sala de aula e continuadas em casa. Por outro lado, o estudo simultâneo do livro com as anotações dos professores possibilitou compreender qual é o papel dos livros de texto na escola. Ademais, a avaliação das características positivas e negativas dos manuais e das anotações, associadas às preferências dos alunos por um ou outro, ofereceram, segundo as conclusões do autor, informações relevantes acerca do presente e do futuro de ambos os recursos a partir do conhecimento de um dos agentes: o alunado.

Em Manuais escolares para um ensino prático, Heloisa Helena Pimenta Rocha indaga sobre o lugar dos manuais escolares no ensino das noções de higiene nas escolas primárias paulistas, um ensino que, segundo as orientações e os programas aprovados nas primeiras décadas do século 20, deveria ser alicerçado na dimensão prática, no intueri, intuitus. Entrecruzando os manuais escolares voltados para o ensino de higiene e saúde com os programas de ensino e com fotografias que documentam aspectos das aulas de puericultura nos grupos escolares, Heloisa objetiva capturar, para além dos enunciados presentes nas obras, indícios das práticas escolares engendradas com o intuito de conformar os gestos de cuidado com o corpo e a saúde dos estudantes.

Finalmente, em Livro didático como indício da cultura escolar, Kazumi Munakata se debruça sobre as possibilidades de utilizar o livro didático como fonte para pesquisas sobre a cultura escolar. Para tal, discute as noções de livro didático, cultura escolar e cultura material e examina livros didáticos franceses, espanhóis, argentinos e brasileiros, destacando os elementos constitutivos da cultura escolar, como os conteúdos das disciplinas escolares, exercícios e atividades, avaliações, ideologias, valores morais e de civilidade, cotidiano escolar, sensibilidades estéticas, materiais escolares e organização das práticas de ensino.

Cabe destacar que este dossiê apresenta apenas uma pequena parcela do potencial de investigações em torno da segunda fase da vida dos manuais escolares: a da recepção e da interpretação de seus conteúdos por professores e alunos. Nosso intento é que esta coletânea de textos possa inspirar ao deciframento da caixa-preta da história da educação: a cultura escolar, a qual, supomos, guarda os padrões – patterns – essenciais que regulam a vida das instituições escolares.

Gladys Mary Ghizoni Teive – Professora na Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina. Pesquisadora associada do Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná com estágio sandwich e pós-doutorado no Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes / Uned. E-mail: [email protected]

Gabriela Ossenbach-Sauter – Doutora em Ciencias de la Educación e licenciada em História da América. Catedrática de Historia de la Educación e diretora do Centro de Investigación sobre Manuales Escolares – Manes – de la Universidad Nacional de Educación a Distancia, Madrid. Actualmente é presidente da Sociedad Española de Historia de la Educación. E-mail: [email protected]

TEIVE, Gladys Mary Ghizoni; OSSENBACH-SAUTER, Gabriela. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 20, n. 50, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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