Cultura e Política na América Latina / História Social / 2010

O campo da História, no Brasil, vem se beneficiando de um aumento significativo da produção bibliográfica a respeito da América Latina. O crescimento do interesse pela região à qual tradicionalmente o país “dava as costas” deve-se a uma multiplicidade de fatores, entre eles: maior facilidade de acesso a fontes, através da digitalização de acervos documentais; ampliação do mercado editorial, que hoje disponibiliza muito mais títulos estrangeiros; e desenvolvimento de uma política econômica, educacional e cultural cada vez mais voltada aos nossos vizinhos. Este movimento vem sendo ainda reforçado por uma série de iniciativas dos governos da região no sentido de promover a integração latino-americana. Para lembrar apenas alguns empreendimentos nesse domínio, podemos citar o Mercado Comum do Sul (Mercosul), desde 1991; a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), projeto de uma zona de livre comércio continental, estabelecido em 2004, e, mais recentemente, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), criada em 2010, com o intuito de fortalecer a integração continental, política, econômica, social e cultural da região.

No meio acadêmico, essas políticas de integração vêm se refletindo em um incremento na troca de experiências científicas, no fomento de pesquisas envolvendo países da região, na organização de eventos internacionais e na produção acadêmica de trabalhos versando sobre a América Latina. No Brasil, a área de História tem passado por uma ampliação notável, com a expansão dos cursos de pós-graduação por todo o país e a criação de novas áreas de estudo, como História da África ou História da Ásia. O campo de estudos latino-americanos vem ganhando destaque, consolidando-se, ao mesmo tempo, pelo acúmulo de uma produção de várias décadas e pelas novas publicações que ampliaram temas e perspectivas historiográficas.

Nesse sentido, o Dossiê Cultura e Política na América Latina expressa o vigor alcançado pela pesquisa em História da América Latina e oferece uma amostragem bastante interessante dos trabalhos que vem sendo desenvolvidos na atualidade. Revela, sobretudo, grande interesse pela história contemporânea, período que abarca o maior número de textos neste Dossiê. Vale também assinalar a variedade de proveniência dos pesquisadores: Acre, Rio Grande do Sul, São Paulo, Brasília e Chile.

Comecemos essa apresentação pelo artigo que trata o tema mais recuado no tempo. Deise Cristina Schel transporta-nos ao século XVI, analisando as cartas de Lope de Aguirre, um dos protagonistas da Jornada de Omagua e Dorado, realizada em 1560 e 1561 na região do Amazonas. Buscando fugir às interpretações tradicionais que descrevem o conquistador como um traidor, louco ou herege, Schel analisa três cartas redigidas pelo personagem dando sua versão sobre os conflitos surgidos durante a expedição da qual tomou parte. A autora identifica a ambigüidade de Aguirrre, nessa sua “escrita de si”, entre a admissão de sua rebeldia e a reafirmação de sua qualidade de bom servidor da Coroa.

Priscila Pereira, por sua vez, discute um tema clássico da historiografia latino-americana, o das independências, mas sob um novo prisma, pois afasta-se do “centro”, para concentrar seu estudo na província de Salta. Analisa a emergência de novos atores sociais na guerra que agitou a região, entre 1814 e 1821. O artigo discorre sobre as razões que levaram os gauchos e os paisanos saltenhos a entrar em um conflito armado que se prolongou por vários anos. A autora dedica-se, do mesmo modo, a compreender os possíveis significados que o conceito de gauchos, empregado por Martín Miguel de Güemes para nomear os membros das milícias campesinas sob sua liderança, adquiriu na província de Salta, no contexto das guerras de independência rio-platenses.

Ainda no terreno da política, mas num recorte cronológico muito mais próximo, Lucas Gebara Spinelli problematiza o zapatismo no México, refletindo sobre as contradições de sua atuação como movimento social, por um lado, e como organização de luta armada, por outro. Desvela, igualmente, o contexto de repressão militar e paramilitar, de cerco midiático e de criminalização da imagem do Exército Zapatista de Libertação Nacional por parte do Estado. Outro trabalho sobre conflitos sociais no México, já no cruzamento entre política e cultura, é o artigo de Caio Pedrosa da Silva, que analisa a historiografia a respeito da Rebelião Cristera, movimento armado deflagrado na década de 1920 contra a limitação do papel da Igreja católica, prevista pela Constituição de 1917. Nesse texto, há destaque para duas interpretações distintas do movimento: aquela de Jean Meyer, que privilegia a oposição entre o Estado e os camponeses católicos e aquela de David G. Ramirez, que publicou, em 1930, sob o pseudônimo de Gorge Gram a obra Héctor, na qual a dicotomia mais importante situa-se no campo dos católicos, entre aqueles que recorrem à luta armada e aqueles que preferiram buscar uma negociação com o Estado.

Articulando também história política e cultura, Germán Albuquerque discute como o conceito de Terceiro Mundo, criado pelo demógrafo Alfred Sauvy, em 1952, para designar os países coloniais ou recém-emancipados, generalizou-se, tornando-se uma expressão complexa, com vertentes econômicas, políticas, geopolíticas e culturais. Na vertente cultural, como aponta o autor, a matriz a partir da qual os intelectuais nutriram relações e debates foi a noção segundo a qual os homens de letras tinham um papel político importante a desempenhar nas sociedades terceiromundistas, como porta-vozes e consciência crítica dos excluídos. O artigo aborda as críticas que foram surgindo, no mesmo seio dessa intelectualidade, a um conceito considerado ambíguo e confuso, por agrupar dentro de uma mesma categoria países com realidades sociais e políticas extremamente distintas. Continuando no terreno do cruzamento entre os intelectuais latino-americanos e a esfera política, Felipe de Paulo Góis Vieira discorre sobre a obra Doze contos peregrinos, de Gabriel García Márquez, procurando compreender os discursos identitários presentes nos contos do escritor colombiano. O artigo estabelece uma relação entre o período histórico no qual García Márquez redigiu os contos, no final dos anos 1970, e a construção, em sua obra, de uma identidade latino-americana ancorada nas noções de exílio, ditadura, violência e solidão.

Silvia Sônia Simões também trabalha com os estreitos laços que unem cultura e política, ao evocar o movimento artístico que ficou conhecido como a Nova Canção Chilena. Em seu artigo explica que esse movimento caracterizou-se pelo engajamento político e pela denúncia social, mas também por uma nova leitura da música tradicional chilena, atualizando e renovando o folclore do Chile e dos países vizinhos, além de promover a fusão de gêneros eruditos e populares. Uma canção que empregava vários instrumentos musicais, recolhidos nas províncias mais distantes do país, num esforço em produzir uma arte profundamente chilena, latino-americana, que tocasse nos problemas sociais vividos pelo povo no campo e na cidade.

Encerrando o Dossiê, dois dos artigos discutem o tema da política externa brasileira em relação aos vizinhos latino-americanos durante a ditadura militar. Ananda Simões Fernandes mostra como o governo militar brasileiro procurou evitar supostas ameaças de esquerda oriundas da Bolívia, do Uruguai e do Chile, por intermédio de um apoio efetivo aos golpes militares de direita nesses países. Observa, ainda, que essa intervenção tinha por objetivo a consagração do Brasil como uma potência na região. Vicente Gil da Silva aborda o mesmo tema, mas sob um prisma um pouco distinto, pois parte da documentação do Departamento de Estado dos EUA e da embaixada estadunidense no Brasil. A ênfase, portanto, recai no alinhamento do Brasil com os Estados Unidos, materializado na contenção do comunismo e na promoção de golpes de Estado na região, por intermédio de uma atuação política calcada na vigilância e transmissão de informações, no intercâmbio entre os agentes de inteligência e na interferência direta na política dos países vizinhos.

Como se pode observar, vários dos textos aqui presentes parecem dialogar entre si, citando os mesmos eventos-chave – Revolução Cubana (1959), I Encontro da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) em Cuba (1967), guerra do Vietnã (1959-1975) – que marcaram toda uma geração de latino-americanos, bem como um conjunto de temáticas – terceiromundismo, antiimperialismo, identidade latino-americana, ditaduras militares – que estiveram no centro dos debates políticos e culturais da América Latina nas últimas décadas.

Por fim, demonstrando o vivo interesse que as problemáticas mais contemporâneas vêm despertando, completam esse número da Revista História Social um artigo e uma resenha. O artigo de Taís Sandrim Julião aproxima-se dos últimos dois textos do Dossiê aqui apresentados ao tratar da política externa brasileira durante a ditadura militar brasileira. Entretanto, diferentemente desses trabalhos, que enfocam o governo do general Garrastazu Medici, contempla o período logo posterior, o do governo do militar Ernesto Geisel, e centra-se preferencialmente na atuação do Brasil junto à ONU. Nesse trabalho, o foco situa-se no conceito de “Pragmatismo Ecumênico Responsável” como mote da política externa brasileira voltada aos interesses do projeto de desenvolvimento nacional. Segundo a autora, no governo Geisel o Brasil conduziu uma política externa de diversificação das parcerias, mostrando pragmatismo na atuação política e econômica e certa independência em relação aos antagonismos ideológicos que regiam a Guerra Fria.

A resenha que fecha o volume, de Felipe de Paula Góis Vieira, dá um toque de século XXI a esse Dossiê de Política e Cultura na América Latina, com um comentário sobre a obra do antropólogo Néstor García Canclini, Latino-americanos à procura de um lugar neste século. A escolha é bastante apropriada para finalizar as discussões levantadas por vários dos artigos, menos no sentido de dar coerência e organicidade a esse conjunto de pesquisas, do que para abrir para novas perspectivas, indagando o que significa a latino-americanidade dentro de uma conjuntura pós-moderna marcada pelas migrações maciças, pelas comunidades transnacionais, pela cultura globalizada e pela fragmentação. Não há respostas prontas. Há que seguir caminando e reinventando.

Mariana Joffily – Universidade Federal de Santa Catarina.

JOFFILY, Mariana. Apresentação. História Social. Campinas, n.18, 2010. Acessar publicação original [DR]

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