The Art of Conversion: Christian visual culture in the Kingdom of Kongo – FROMONT (RH-USP)

FROMONT, Cécile. The Art of Conversion. Christian visual culture in the Kingdom of Kongo. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2014. Resenha de: SOUZA, Marina de Mello. O cristianismo congo e as relações atlânticas. Revista de História (São Paulo) n.175 São Paulo July/Dec. 2016.

A presença do cristianismo no Congo é tema abordado desde os seus primeiros momentos, nos relatórios e cartas de missionários, nas crônicas reais e documentos administrativos portugueses, nas narrativas de viagens, todos eles produzidos por estrangeiros, mas também em cartas de autoridades conguesas. A partir do século XVI, foi tratado com interesse e algum nível de minúcia, o que resultou em um volume significativo de informações. O livro aqui apresentado recorre a fontes muito pouco exploradas pelo conjunto dos estudos sobre o Congo cristão ao se voltar para a cultura visual e material. A partir deste campo específico do conhecimento, Cécile Fromont analisa pinturas, gravuras e objetos feitos por europeus, e objetos e performances criados por congueses, articulando a análise estética e simbólica aos diferentes contextos históricos nos quais esses produtos culturais circularam.

The Art of Conversion traz uma contribuição de grande peso para os estudos sobre o reino do Congo, como foi chamado desde o primeiro momento de contato com os portugueses, nomenclatura que predomina quase absolutamente na documentação e nos estudos sobre aquela sociedade. O livro trata de produções visuais e materiais gestadas pelas condições de espaços – não físicos mas cognitivos -, nos quais se realizaram encontros culturais, e onde existiu um ambiente propício a uma mutua fertilização. Tais espaços, nos quais novas produções culturais e formas de organização política ligaram mundos diferentes e introduziram novidades nos sistemas que as criaram, são chamados de “espaços de convergência” pela autora, inspirada por análises de seus professores do Departamento de História da Arte e Arquitetura da Universidade de Harvard. Este é o conceito chave de sua análise e nele está contida a ideia de que os produtos culturais resultantes do confronto entre grupos de diferentes sociedades também criam laços entre eles. Os capítulos que compõem seu livro são aplicações dessa chave de interpretação a objetos diferentes, mas interligados na sequência temporal. Todos eles expressam a adoção de elementos rituais e simbólicos cristãos pelas elites dirigentes do Congo: o sangamento, o crucifixo congo, algumas edificações, vestimentas e insígnias de poder. Para fechar o livro analisa alguns objetos e situações nas quais os símbolos do cristianismo dialogaram com os primeiros tempos do colonialismo.

O livro de Cécile Fromont, editado pela Universidade da Carolina do Norte, é um exemplo de obra bem cuidada e de imediato se coloca ao lado do que há de melhor sobre o Congo cristão. O texto é muito bem escrito, com as notas agrupadas ao final dos parágrafos a que se referem, o que resulta em uma narrativa agradável e fluida, sem interrupções constantes, ao mesmo tempo que há indicação minuciosa das obras utilizadas, como pede a norma acadêmica. E neste sentido, impressiona a dimensão da pesquisa e a erudição, especialmente por se tratar do primeiro livro da autora. A bibliografia pertinente foi esquadrinhada com rigor e a pesquisa em arquivos localizou documentação inédita. As imagens dos produtos culturais analisados estão inseridas no corpo do texto no momento em que são tratados, e a grande maioria é reproduzida novamente em cor, em caderno especial, permitindo que o leitor acompanhe passo a passo as interpretações da autora. Portanto, trata-se de um estudo de qualidade excepcional, apresentado em uma edição também excepcional em termos de qualidade gráfica e diagramação.

Na introdução do livro a autora esclarece que analisará a cultura visual cristã conguesa em três momentos, de três séculos diferentes (XVII, XVIII e XIX), sendo que desde 1500 homens e mulheres da elite local misturaram criativamente formas visuais, ideias religiosas e conceitos políticos locais e estrangeiros, criando uma visão de mundo nova e em constante transformação, que ela chama de cristianismo congo (Kongo Christianity). Alinha-se, portanto, ao maior estudioso do cristianismo no Congo, John Thornton, que segundo o entendimento da autora, junto com Richard Gray e Jason Young, entende que os congueses adotaram o cristianismo em graus variáveis e o interpretaram de maneira própria. Essa perspectiva seria diferente da de outros estudiosos que, ao contrário dos religiosos que primeiro se debruçaram sobre as fontes com muita erudição mas sem um olhar crítico, problematizaram o assunto sob outros pontos de vista, como Anne Hilton, Wyatt MacGaffey e James Sweet, para os quais a cosmologia centro-africana apropriou-se do cristianismo sem alterar sua estrutura fundamental, ou a de estudiosos anteriores e com olhares mais eurocêntricos, como George Balandier e W. G. L. Randles, que entenderam ter havido um fracasso da cristianização no Congo. A diferença maior de Cécile Fromont com relação a todos os estudiosos que a antecederam é que enquanto as fontes textuais – escritas e orais – sempre foram a base das análises, sua pesquisa partiu de fontes visuais e da cultura material. Ao considerar objetos e performances, e partir da ideia de que essas manifestações culturais ofereceram um espaço no qual seus criadores botaram lado a lado ideias radicalmente diferentes, confrontando-as e tornando-as partes de um novo sistema de pensamento e expressão, mostra como a elite conguesa refundiu ideias heterogêneas, locais e estrangeiras, em novas partes inter-relacionadas, em uma visão de mundo que constituiu o cristianismo congo: um novo sistema de pensamento religioso, expressão artística e organização política. Esse processo foi iniciado com a chegada dos portugueses à região no final do século XV, e deve muito à ação de D. Afonso, que governou o Congo de 1506 a 1545. Desde os primeiros tempos, o Congo cristão serviu, por um lado, à afirmação do padroado português e à sustentação do comércio de escravizados com a região e, por outro, de suporte à autoridade dos chefes locais que controlavam o cristianismo e o comércio. A implantação de redes comerciais e a adoção do cristianismo levou o Congo a ocupar, nos séculos XVII e XVIII, um lugar de alguma relevância no mundo atlântico, tanto em termos comerciais como políticos: influenciou a política da Igreja Católica Romana quanto às missões ultramarinas e participou das disputas entre Portugal e os Países Baixos. Mas foi o comércio de escravizados – moeda internacional – que permitiu sua entrada no mundo moderno, fez com que estivesse presente nas Américas e, junto com a diplomacia, que marcasse sua presença na Europa.

Aqui abro um parêntesis para fazer alguns esclarecimentos relativos à terminologia empregada para a abordagem do tema em questão. O primeiro diz respeito à minha opção pessoal em não utilizar o termo reino para designar o Congo, a despeito do uso corrente da noção na historiografia e no livro que agora trato, ou grafar Kongo, também opção predominante entre os estudiosos. A não utilização do termo reino diz respeito à tentativa de buscar entender aquela sociedade a partir de suas estruturas sociais específicas, que mesmo assemelhando-se aos reinos europeus, deles se distinguia. A segunda opção está de acordo com as normas gramaticais da língua portuguesa, em cujo alfabeto não há a letra o K. Como a utilização desta grafia liga-se à necessidade de distinguir a antiga formação social dos estados contemporâneos, opto por utilizar conguês, ou mesmo congo, quando me refiro aos habitantes do antigo Congo, e não congolês, termo associado aos morados dos atuais Congos, pois, para complicar ainda mais, hoje existem dois países africanos que assim se identificam: a República Democrática do Congo e a República do Congo, sendo que nenhum deles corresponde integralmente ao antigo Congo, localizado em sua maior parte no norte da atual Angola. Outra explicação diz respeito ao uso do termo cristianismo. Como não há uma justificativa explícita a respeito de por que Cécile Fromont optou pelo termo cristianismo, assim como John Thornton, podemos fazer duas suposições: pode ter sido para incluir a ação de missionários não católicos que atuaram na região a partir do século XIX, ou para indicar que a religião ali estabelecida não estava completamente de acordo com a doutrina católica romana. Nos meus trabalhos, que se referem todos aos séculos XVI, XVII e XVIII, sempre usei o termo catolicismo, uma vez que até então apenas missionários da Igreja Católica Romana atuaram na região.

O marco inaugural da integração do Congo ao mundo atlântico e ao universo europeu da época foi a chamada conversão do mani Congo ao cristianismo. Esse momento foi fixado em cartas escritas por D. Afonso Mbemba Nzinga. Em uma delas, enviada em 1514 a D. Manuel I, então rei de Portugal, ele narra a vitória que obteve sobre seu irmão, com a ajuda de um pequeno número de seguidores e de São Tiago, que durante a batalha apareceu no céu junto com uma cruz. Esta carta conta um episódio ocorrido sete anos antes e provavelmente teve como base a narrativa de como D. Afonso Henriques venceu os mouros na batalha de Ourique em 1139, dando origem ao reino de Portugal. Aprendiz aplicado dos missionários portugueses que eram enviados ao Congo, com quem aprendeu a ler e escrever, D. Afonso provavelmente se inspirou naquele episódio para construir sua versão da história da criação de um reino cristão sob sua égide. Seu governo consolidou a presença do cristianismo no Congo e estabeleceu as bases da organização política que vigoraria pelos séculos subsequentes.

A análise feita por Cécile Fromont no primeiro capítulo de seu livro, de uma aquarela do capuchinho Bernardino d’Asti, de cerca de 1750 e que integra seu manuscrito destinado a guiar o trabalho dos missionários no Congo, relaciona uma tradição anterior à adoção do cristianismo com esse episódio que inaugurou nova fase da história daquela sociedade. Na aquarela, um missionário, sentado em frente a uma pequena igreja, dá sua bênção a um chefe, ajoelhado à sua frente e trajado com as insígnias locais de poder, tendo ao seu lado uma grande cruz e atrás de si um grupo de músicos e homens armados que dançam com suas espadas levantadas e escudos empunhados. A legenda feita pelo autor da imagem identifica a cena como um missionário dando sua bênção ao mani – título dado aos chefes – durante um sangamento. A existência de sangamentos no Congo é anterior à chegada dos portugueses e no Congo cristão serviriam a dois propósitos: eram exercícios marciais e demonstrações de força por ocasião de uma declaração formal de guerra, e eram realizados em celebrações festivas de investidura, em desfiles diplomáticos e celebrações nos dias de festa do calendário cristão. Conforme a autora, novas coreografias, insígnias de poder e armas presentes nas danças refletiam as mudanças trazidas com a inserção do Congo nas redes diplomáticas, comerciais e religiosas do Atlântico. No seu entender, os sangamentos teriam sido espaços de correlação, nos quais a elite conguesa reinventou a natureza do seu mando no novo contexto. Seu simbolismo material e visual ilustraria como por meio deles os governantes criaram um novo discurso com a fusão de tradições centro-africanas e cristãs. Neles estaria presente a narrativa da criação do reino cristão após a batalha na qual D. Afonso saiu vitorioso sobre seu irmão.

Instruído desde cedo nos mitos de fundação do Congo, segundo os quais Nimi a Lukeni, vindo do norte e da outra margem do rio, teria conquistado a população local e inaugurado um novo tempo, assim como conhecedor dos princípios da religião católica e da história de Portugal, D. Afonso teria criado espaços de correlação nos quais não só o sangamento ritualizaria a fundação do reino cristão na mesma chave da fundação feita por Nimi a Lukeni, como a cruz, analisada com vagar no capítulo seguinte, seria alçada a importante símbolo de poder. Presente na narrativa de sua ascensão à chefia do Congo, no lacre de suas cartas, no brasão para ele criado em Portugal, Cécile Fromont acredita que o signo da cruz, que na América serviu à conquista, no Congo serviu para a implantação de um sistema político que permitiu sua entrada no quadro das relações internacionais atlânticas, graças à habilidade de D. Afonso em fundar um novo tempo articulando ideias europeias e centro-africanas.

Enriquecendo sua análise do sangamento retratado por Bernardino d’Asti, a autora introduz mais um elemento central na construção dos mitos fundadores de poderes políticos fortes ao explorar a imagem do rei ferreiro, presente em grande parte das histórias de fundação de sociedades centro-africanas. Nesses mitos, poder político e militar estão imbricados. A aquarela analisada expressaria uma segunda fundação do Congo cristão, mais de dois séculos depois do governo de D. Afonso, na qual também estaria presente o mito do rei ferreiro, registrado nas histórias orais coletadas no século XVIII por missionários. Àquela época, o ferro não estaria mais apenas nos braceletes e correntes que compunham a parafernália ligada ao signos de poder, mas também nas espadas, feitas de ferro, material ligado ao poder do chefe, mas que seguiam o padrão das espadas portuguesas do século XVI. As espadas apareciam, assim como as cruzes, nos lacres, brasões, estandartes e tronos do mani Congo, sendo outro atributo da nobreza europeia que se tornou parte integrante das insígnias de poder conguesas. Seriam mais um espaço de correlação no qual concepções europeias de cavalaria, de poder político e militar, fundiram-se com concepções centro-africanas que legitimavam o poder. Segundo a autora, as espadas que os dançadores levantavam no sangamento desenhado pelo capuchinho no século XVIII, referiam-se à história de D. Afonso, à luta que travou contra o irmão para conquistar o poder, e também ao significado do ferro na mitologia centro-africana. Para fortalecer sua argumentação, lembra que todas as espadas, das representações pictóricas, das escavações arqueológicas, das coletas feitas em tempos mais recentes, seguem o modelo das armas portuguesas do período manuelino, ou seja, do momento da conversão de D. Afonso ao catolicismo e de seu governo, que era assim rememorado. Até o século XX, as espadas de status, como são conhecidas, ligariam a elite que as carregava ao mito legitimador do seu mando.

Estendendo ainda mais a amplitude de sua análise, evoca os desenhos de Carlos Julião que representam a festa de rei negro e relaciona os sangamentos e as congadas brasileiras. Em análise semelhante à feita por mim há mais de quinze anos, ao comparar os desenhos de Carlos Julião, feitos no final do século XVIII, à aquarela de Bernardino d’Asti, afirma que para além da transmissão de objetos e rituais a festa de rei negro brasileira, ao articular elementos africanos e europeus, mostra uma significativa continuidade epistemológica através do Atlântico. No Congo, a elite combinou estrategicamente elementos locais e estrangeiros em um discurso de poder por meio do qual lidaram com as mudanças trazidas pela sua entrada nas redes comerciais, religiosas e políticas do mundo atlântico. Também na América emblemas e símbolos europeus foram usados como símbolos de uma identidade coletiva e instrumentos de expressão social.

O segundo capítulo do livro trata do símbolo da cruz, tema que aparece em muitos trabalhos sobre as culturas centro-africanas e afro-americanas a partir da divulgação da explicação de Fu-Kiau Busenki-Lumanisa sobre o lugar que ocupa nos sistemas de pensamento bacongo, feita principalmente por Robert Farris Thompson e Wyatt MacGaffey. Uma outra aquarela de Bernardino d’Asti, na qual um rito fúnebre é feito ao pé de uma grande cruz, serve como ponto de partida de sua análise. A presença da cruz em uma variedade de objetos relacionados às tradições locais e ao cristianismo congo confirma a centralidade desse símbolo tanto no pensamento local quanto nos processos de construção de novas ideias e relações. Isto a torna especialmente rica para uma abordagem a partir da noção de espaços de correlação, sendo cruzes e crucifixos signos para os quais convergiam significados religiosos centro-africanos e católicos, no que Cécile Fromont chamou de diálogo de devoções, de discursos de poder e de cosmologias.

O signo da cruz esteve presente com destaque nos momentos inaugurais da introdução do cristianismo no Congo: no batismo de Nzinga Kuwu, pai de D. Afonso, na visão que este teve durante a disputa pelo poder, no brasão e estandartes enviados pelo monarca português, que assim guiava o mani Congo no caminho de sua inserção no rol de reis cristão da época. Com a disseminação do cristianismo entre a elite conguesa, crucifixos tornaram-se comuns, e altamente cobiçada a obtenção do hábito da Ordem de Cristo, que trazia uma cruz de malta das costas. Como mostra a autora, a cruz foi um agente de comunicação entre as diferentes culturas, foi um chão comum que permitiu o diálogo entre europeus e centro-africanos. Presente em inscrições funerárias, nos cultos de uma sociedade secreta composta pelos filhos da elite chamada kimpasi, na qual eram praticados ritos de iniciação por meio dos quais os adeptos morriam e ressuscitavam, para os centro-africanos a cruz remete à relação entre os vivos e os mortos, ao ciclo completo da existência, que inclui o mundo dos homens, e o dos espíritos e ancestrais. Símbolo maior da morte de Cristo, também para os cristãos a cruz liga-se à morte e à ressureição. Era, portanto, um espaço de correlação privilegiado, entre a África e a Europa, entre a vida e a morte.

A introdução de objetos religiosos católicos em grande quantidade desde o século XVI, forneceu padrões para o desenvolvimento de uma produção local de imagens religiosas, santos e principalmente crucifixos. Mas se os objetos europeus forneceram o paradigma para o crucifixo congo, este expressava ideias centro-africanas, nas figuras ancilares a ele adicionadas, nos desenhos geométricos gravados nas suas bordas. Conforme Cécile Fromont, como um espaço de correlação, a cruz expressava uma nova visão de mundo na qual encontravam-se e misturavam-se signos locais e estrangeiros. Para ela, as centenas de crucifixos existentes, de tamanhos variados, constituíram uma sintaxe visual e religiosa, um conjunto coerente de objetos com uma iconografia consistente criada a partir do crucifixo católico e da cruz congo.

Para a autora, a iconografia dos crucifixos congo não é inteiramente decifrável, mas parece claro ser a acumulação recurso central na sua composição. Ao crucifixo cristão tradicional foram frequentemente acrescidas figuras sentadas nos braços da cruz, e no seu eixo vertical, acima e embaixo da figura que representa o Cristo, aparecem nossas senhoras, anjos, pessoas ajoelhadas de mãos postas. Além das marcas estéticas próprias da região presentes na representação de Cristo, as bordas com incisões são por ela associadas a ritos fúnebres da elite, quando os corpos eram envolvidos em panos com padrões decorativos semelhantes. No seu entender, essas bordas delimitam o espaço reservado aos mortos: Cristo, Nossa Senhora e os anjos, enquanto as figuras sentadas nos braços da cruz conectariam os dois mundos, na medida que seus corpos estariam parte fora e parte dentro desse limite. A ideia de ultrapassar fronteiras e a inter-relação entre os dois ambientes estaria de acordo com o significado maior do crucifixo – sendo a cruz representação do ponto preciso no qual as esferas da vida e da morte se conectam -, e as figuras ancilares dariam forma às noções abstratas de permeabilidade entre este e o outro mundo. Ao término de sua complexa e instigante análise dos crucifixos e da cruz, Cécile Fromont reafirma sua posição quanto ao cristianismo ter tido um desenvolvimento próprio na África centro-ocidental, não sendo resultado de um proselitismo violento ou de uma resistência a influências de fora, e sim de um processo de inclusão e reinvenção em uma situação de encontros culturais.

Atraída pela originalidade dos crucifixos congos, também eu ensaiei uma interpretação do que Cécile Fromont chama de figuras ancilares, baseando-me em análise feita por Anne Hilton sobre o processo de introdução do catolicismo no Congo, no qual símbolos cristãos foram reinterpretados a partir da cosmogonia local. No meu entender essas figuras sentadas nos braços da cruz seriam representações de bisimbi, entidades ligadas ao mundo natural, que tinham um lugar na legitimação do poder dos chefes. À época entendi esses crucifixos como a expressão material da criação de novas formas de representar o poder com a incorporação do catolicismo ao pensamento local, o que, nos termos propostos por Fromont seria um espaço de convergência.

O terceiro capítulo de seu livro trata de tema que penso ser inédito nos estudos sobre o Congo: a análise da indumentária da elite. Mais uma vez, parte das aquarelas de Bernardino d’Asti. Volta à que retrata um sangamento, e introduz outras, como o casamento de um chefe e o encontro entre a comitiva de um missionário com a do mani Soyo, e analisa elementos da vestimenta ali retratados, que aparecerão em outras imagens, estas do século XVII, como o busto de D. Antonio Manuel ne Vunda existente na igreja Santa Maria Maggiore em Roma, e retratos de embaixadores enviados pelo mani Soyo a Mauricio de Nassau, no Recife, feitos por Albert Eckhout. Com base nessa iconografia descreve a roupa padrão de um homem da elite conguesa: uma canga de tecido amarrada na cintura, na qual também está amarrada uma faixa vermelha e da qual pode pender uma pele de animal, uma rede que veste o tronco – nkutu -, um tecido jogado sobre um dos ombros, uma capa usada pelos chefes, assim como o mpu – um gorro alto -, correntes com crucifixos e colares de contas. Os desenhos de Eckhout, localizados em uma biblioteca da Cracóvia, retratam com minúcia as vestimentas dos três embaixadores e dos dois jovens que os acompanharam na missão junto a Mauricio de Nassau, pintados também por Beckx, com as roupas holandesas que lhes foram ofertadas no Recife.

Os desejados produtos europeus, como tecidos xadrez de azul e branco que eram sinais de distinção, eram trocados por escravos, e o comércio de gente foi um fator importante para a instabilidade do Congo e para a competição entre os chefes. É nesse contexto que o Congo buscou estreitar relações com os Países Baixos e com Roma, tentando se fortalecer frente às investidas ibéricas contra o sul do seu território. Se no início do século XVII o mani Congo enviou D. Antonio Manuel ne Vunda em uma embaixada a Roma, por meio da qual buscava neutralizar a autoridade do padroado português, em meados do mesmo século o mani Soyo procurou o apoio dos holandeses contra a pressão que os portugueses exerciam a partir de Angola, assim como aliança em suas disputas com o mani Congo. Nada desse contexto escapa à análise de Cécile Fromont, que ao interpretar elementos da cultura material e visual do Congo, e também as representações europeias sobre ele, torna evidente que àquela época o reino africano cristão estava inserido no jogo político internacional.

Se sob o governo de D. Afonso, no início do século XVI, o cristianismo serviu à sustentação de seu poder, no século XVII, estavam ainda mais consolidadas as relações entre riqueza, prestígio, cristianismo e poder político, o que a autora demonstra articulando o contexto histórico com a análise das representações visuais, como as imagens de santos feitas no Congo, nas quais eles estão vestidos à moda da elite local. Da mesma forma, o lugar de destaque que o Congo ocupava na Europa devido ao comércio de escravizados e também por ser reconhecido como um reino cristão é percebido por meio da presença das insígnias de poder conguesas, como o mpu e a indumentária, em obras de arte europeias do início do século XVII. Para Cécile Fromont, as imagens da elite do Congo, mesmo que por poucas décadas, funcionou nos círculos missionários europeus como uma metáfora da expansão da Igreja católica na África e no mundo. Quanto ao Congo, o processo de incorporação de elementos visuais europeus às insígnias de poder conguesas iniciado com a introdução do cristianismo, continuava mesmo em momento de menor presença de missionários europeus em atividade na região, pois os mestres e catequistas por eles formados mantinham vivos os ensinamentos cristãos e seus bastões, insígnia tradicional de autoridade que adotava modelos lusitanos, sendo encimados por cruzes, bulbos, imagens de santos e mesmo moedas portuguesas.

No quarto capítulo, são analisadas as construções e a ocupação de espaços, e além das maneiras como a elite lidou com o cristianismo aborda como este esteve presente na vida da gente comum, que frequentava os cultos nas igrejas, que convivia com as cruzes monumentais espalhadas pelo território e assim se relacionava com as manifestações visuais das ideias míticas e religiosas que sustentavam a organização política do Congo. Para a autora, as cruzes presentes em todo o território celebravam e relembravam a vitória de Afonso sobre seus oponentes e a subsequente conversão do reino ao cristianismo. Nos primeiros tempos da era cristã, o levantamento de cruzes monumentais teria se tornado um gesto característico do mando e, além dos significados associados ao cristianismo, ligava-se também às crenças relativas à circulação entre a vida e a morte, às articulações entre o mundo visível e o invisível.

A relação com os mortos, tão importante para que a existência dos vivos transcorresse bem, acontecia também nos cemitérios, sobre os quais muitas vezes foram construídas igrejas, que se tornaram locais de culto aos ancestrais, especialmente da elite. Dessa forma, a redefinição de cemitérios, que cederam espaço para igrejas cristãs, é parte da reformulação operada pela elite no processo de imposição do cristianismo para a massa da população. Mais um espaço de correlação detectado por Cécile Fromont, essa reformulação trouxe os ancestrais para os limites espaciais da nova religião, e dotou o novo edifício com a sua presença venerável. Essa prática espalhou-se por todo o território e no século XVII era norma que a elite fosse enterrada nas igrejas ou próximo a elas. Mais uma vez recorrendo a fontes escritas e relacionando-as com as descrições de túmulos, a autora fornece grande quantidade de dados que fundamentam seu argumento relativo a como cemitérios e igrejas foram espaços de correlação que articularam poder político, cristianismo e devoção aos ancestrais.

Mas ao lado das novas práticas, ritos e crenças que constituíram o cristianismo congo, houve também a adoção de alguns de seus elementos sem a alteração das práticas tradicionais, como no caso dos kimpasi, que adotaram em seus ritos altares semelhantes aos das igrejas, sem se integrarem ao cristianismo congo. Além dessas situações nas quais as práticas não foram transformadas apesar da adoção de algum elemento estrangeiro, a autora entende que na periferia do discurso congo cristão promovido e adotado pela elite como uma narrativa que legitimava seu poder, algumas vezes emergiram outras correlações de formas visuais e pensamento centro-africanos, cristãos e congo cristão. O exemplo mais conhecido é o movimento antoniano, que desafiou a narrativa congo cristã dominante. Liderado por uma jovem oriunda da elite conguesa, iniciada em rituais não cristãos e também educada nas normas cristãs, foi um movimento que emergiu durante uma guerra civil na qual diferentes linhagens disputaram o poder. Utilizando a linguagem cristã, ela criou um discurso original, segundo o qual morria toda sexta-feira, quando tinha encontros com Santo Antônio e Deus, e renascia a seguir trazendo a mensagem do mundo do além. O combate à cruz, símbolo maior do catolicismo congo articulado ao poder político, era o carro chefe de sua pregação, assim como a unificação do Congo e o fim das guerras internas. Buscou apoio de diferentes pretendentes ao trono, mas as alianças que obteve foram rompidas diante da sua insistência para que as cruzes fossem destruídas. Kimpa Vita, a jovem líder do movimento antoniano, acabou queimada a mando dos capuchinhos. O antonianismo não rejeitou o cristianismo, mas propôs uma hermenêutica alternativa dos seus princípios. Com esse exemplo, a autora reafirma o seu papel central na vida religiosa, política e social do Congo entre os séculos XVI e XVIII, mas também a existência de formas do cristianismo congo que não foram aceitas pelos poderes instituídos, tanto locais quanto dos missionários católicos.

No quinto capítulo, Fromont mostra como, no contexto da partilha e ocupação colonial, o que no passado havia sido visto como um reino cosmopolita passou a ser considerado “o coração das trevas”, terra de povos primitivos e canibais. O aparato ideológico colonial trabalhou no sentido de destruir as estruturas remanescentes do Congo cristão e obscurecer sua memória. Entretanto, antigos símbolos e histórias legitimadores do poder continuaram a sustentar os chefes e, apesar dos tratados de vassalagem com Portugal, o Congo permaneceu independente até 1910. A presença no século XIX de grupos identificados como “gente da igreja”, constituídos por comunidades que viviam na periferia das cidades, especialmente de Mbanza Soyo e Mbanza Kongo, e clamavam descender dos “escravos da igreja”, que serviam os missionários, confirma a continuidade das práticas do cristianismo congo. Viajantes que percorreram a região naquele século encontraram igrejas em uso, com uma grande quantidade de objetos litúrgicos e imagens de santos, cuidadas pela gente da igreja, quando a presença de missionários era rara e esporádica. É interessante que muitos desses objetos e imagens eram de confecção brasileira, o que indica a estreita conexão entre as duas regiões, em momento no qual o comércio de escravizados ainda vigorava.

Nos séculos XIX e XX, com os avanços da colonização, espaços de correlação continuaram a ser criados. Exemplos deles são as presas de marfim esculpidas feitas em Loango, e os minkisi minkondi, figuras antropomorfas protetoras dos caçadores nas quais lâminas e pregos eram enterrados e sobre os quais não há notícia anterior ao final do século XVIII. De acordo com o mesmo processo identificado desde o momento inicial de introdução do cristianismo na região, a autora entende que as novas formas e imaginária, ao incorporar símbolos e materiais estrangeiros, ampliavam a visão de mundo das populações nativas e permitiam que atribuíssem sentidos e participassem do mundo colonial em formação. Nesse novo contexto, também o sangamento ainda era feito, mesmo que entendido pelos colonizadores como manifestação folclórica.

A força do universo visual, cultural e espiritual do Congo cristão viajou para a América e, além de estar presente nas congadas, apareceu na vestimenta de um negro trajado como a elite conguesa fotografado em 1865, no Rio de Janeiro, por Cristiano Junior. A fotografia mostra que escravizados que participaram dos espaços de correlação na África centro ocidental deram continuidade a este processo entre seus descendentes, extraindo daí força espiritual e política. Incluindo em sua análise a América, mesmo que tangencialmente, e a Europa, a autora mostra que “o cristianismo congo é mais do que uma ocorrência histórica singular restrita a uma parte definida do continente africano”, sendo um fenômeno cuja influência repercutiu através do Atlântico.

Chegamos ao fim da leitura com a certeza de que estamos diante de um livro que nasce clássico, no sentido de ser indispensável para os estudos acerca do antigo Congo, onde o cristianismo passou a ser parte integrante de sua organização política e de seu universo mental desde os primeiros contatos com os portugueses, no final do século XV. O livro de Cécile Fromont coloca-a entre os maiores especialistas do assunto, e todos que estudam o Congo cristão só podem agradecer a sua contribuição.

Marina de Mello e Souza – Professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. E-mail: [email protected].