Pestilências e curas da medicina quinhentista  / História, Ciências, Saúde – Manguinhos / 2005

Na capa desta edição de História, Ciências, Saúde — Manguinhos depara o leitor com a imagem de um homem, médico ou clérigo de um burgo medieval que se dirige a um prédio, em cujos degraus jaz uma criança enfaixada, e onde uma vela arde sobre um altar. É parte da ilustração de um manuscrito anônimo impresso em Portugal no começo do século XVI: curador e doente encontram-se aí não apenas à luz da chama que simboliza o poder espiritual da igreja católica, como à sombra do poder secular representado pelas armas reais e por um castelo, ao fundo. Manuscrito em latim ibérico tardio, este documento anônimo explicava como fazer curativos com bálsamo e como proceder com feridas internas. Outro fruto de releituras medievais de textos médicos gregos e romanos reintroduzidos na Europa por autores árabes é o Regimento proveitoso contra a pestenença, que teve versões em latim, francês, inglês e português. Os dois textos constituíam a biblioteca médica disponível em Portugal no começo do século XVI, por obra de impressores estrangeiros que davam início à produção de incunábulos naquela parte da Península Ibérica.

Maria Carlota Rosa, filóloga e lingüista; Ana Thereza Basílio Vieira, Henrique Cairus e Edwaldo Cafezeiro, professores de letras clássicas; a médica-historiadora Diana Maul de Carvalho, os historiadores Jorge Prata de Sousa e Ricardo da Costa, Mariângela Menezes, doutora em ciências biológicas e Dante Martins Teixeira, doutor em zoologia brindam os leitores de Manguinhos com um trabalho extraordinário com respeito a esses documentos: são apresentados em fac-símile e em português atual, reproduzindo-se o primeiro em português arcaico mas com caracteres tipográficos modernos. Complementam a incursão pela medicina quinhentista dois artigos que colocam em perspectiva histórica o Regimento proueytoso contra ha pestenença e o Modus curandi cum balsamo, assim como um erudito glossário, de grande valia como ferramenta para a leitura de outros textos da época.

Na seção Análise, em contraponto com os documentos impressos em Portugal à época das grandes navegações, a medicina luso-brasileira setecentista mostra-se na trajetória de uma cria exemplar dela, o médico José Pinto de Azeredo, que realizou estudos superiores em Edimburgo e Leiden, praticando, em seguida, em Angola, no Rio de Janeiro, sua cidade natal, e em Lisboa, onde faleceu em 1810. O trabalho é fruto da colaboração entre dois pesquisadores da Universidade de Aveiro, Manuel Serrano Pinto e Isabel Maria Malaquias; de João Rui Pita, da Universidade de Coimbra; e dois brasileiros — Marco Antonio G. Cecchini e Lycia Maria Moreira-Nordemann, do Instituto Tecnológico da Aeronáutica e do Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais, respectivamente. Em 1790, José Pinto de Azeredo publicou estudo inédito sobre a composição e a salubridade do ar do Rio de Janeiro. Além de analisá-lo, os autores do presente artigo apresentam versão fac-similar desse estudo, relevante tanto para a história da medicina e da química, como para a promissora vertente historiográfica que toma como seu objeto o meio ambiente.

Neste número da revista, a área “psi” é representada por três trabalhos. A antropóloga Cristina Sacristán, do Instituto Mora, analisa os esforços envidados por psiquiatras e outros atores, por volta dos anos 1930, para se contraporem à massificação que transformou La Castañeda, principal manicômio da cidade do México, num depósito de doentes incompatível com a racionalidade de um espaço terapêutico e com a legitimidade da psiquiatria como ciência. Por sua vez, Alexander Jabert, doutorando da Casa de Oswaldo Cruz, estuda as formas de administração da loucura durante nossa Primeira República, mas no Espírito Santo, território até hoje inexplorado pelos autores que vêm se dedicando ao estudo das articulações entre loucura, sociedade e medicina, com foco, principalmente, no eixo Rio de Janeiro-São Paulo.

Na seção Fontes, Ana Maria Galdini Raimundo Oda e Paulo Dalgalarrondo, da Universidade Estadual de Campinas, ajudam a dissolver este ‘Sudeste-centrismo’ ao apresentarem os resultados de pesquisa sobre a história de instituições para alienados criadas durante o Segundo Reinado, entre 1846 e 1889, em cinco províncias brasileiras: São Paulo, Rio Grande do Sul, Maranhão, Pernambuco e Pará.

Benjamim Gomes, da Universidade de Pernambuco, e Rita Barradas Barata, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, abordam, por ângulos diferentes, o atualíssimo problema das relações entre ética e medicina. Com base em textos escritos por Foucault, Gomes mostra como ele parte de uma concepção de poder sobre os outros em direção a uma concepção de poder que transcorre no espaço da antiga moral grega — o indivíduo em relação consigo mesmo — legando-nos, assim, com esta demarche a um só tempo histórica e filosófica, uma interpretação ético-humanística da medicina. Uma das faces do desencantamento com o mundo contemporâneo são os questionamentos sobre a ética das pesquisas em seres humanos. Rita Barradas Barata mostra que, em sua prática cotidiana, os profissionais e pesquisadores da saúde se vêem, constantemente, em situações que exigem discernimento de caráter ético, mas sem dispor de regras infalíveis para fazer frente a elas. Segundo a autora, só uma consciência crítica, reiterada cotidianamente, lhes possibilita desempenhar suas funções dentro de um marco ético.

A seção Análise encerra-se com bela análise de Luiza Garnelo e Sully Sampaio, da Universidade Federal do Amazonas, sobre as contradições da globalização na Amazônia. De um lado, redunda na instalação de base produtiva massificada, de outro, favorece a valorização das diferenças culturais e as alianças entre líderes indígenas, ambientalistas e outros atores trans-mundiais. As lideranças etnopolíticas se vêem às voltas com uma duplicidade: têm sua identidade diluída na condição genérica de ‘índio em luta’, e, ao mesmo tempo, reafirmam as diferenças étnicas frente à sociedade nacional e mundial. Mostram os autores que, a despeito destas contradições, o movimento indígena representa um avanço em relação a outros grupos subalternos amazônicos, que não possuem estratégias consistentes de negociação com os poderes mundiais.

Dois trabalhos compõem a seção Imagens. A historiadora Lina Rodrigues de Faria revela a atuação de Geraldo Paula-Souza à frente do Instituto de Higiene, que deu origem à atual Faculdade de Saúde Pública da USP, através de documentação fotográfica utilizada na gestão do sanitarista de São Paulo. Por seu turno, o cirurgião cardiovascular Paulo R. Prates examina a simbologia associada ao coração. Antes de ser descoberta a sua função de bombear o sangue, representava a vida, a coragem e a razão, associações que o autor atribui à semelhança formal do órgão com a folha de hera, que, na Antiguidade, simbolizava imortalidade e poder.

A seção Nota de Pesquisa é ocupada por dois estudiosos do meio ambiente. José Luiz de Andrade Franco e José Augusto Drummond analisam o pensamento de Armando Magalhães Corrêa, autor de O sertão carioca (1936), integrante de uma geração pioneira de conservacionistas brasileiros que defendeu a melhora das condições de vida no interior do país. Corrêa uniu argumentos políticos, científicos, estéticos e sociais para defender a preservação da natureza, identificando-a com a construção de uma nação forte e moderna.

As seções Livros & Redes e Teses fecham a edição afinadas, com resenhas de seis livros publicados recentemente e resumos de meia dúzia de dissertações de mestrado e teses de doutoramento recém-defendidas.

Desejamos boas festas a todos. Voltaremos a nos encontrar em 2006, e fazemos votos para que sejam devolvidas, então, as esperanças indignamente seqüestradas ao povo brasileiro ao longo deste ano.

Jaime L. Benchimol – Editor


BENCHIMOL, Jaime Larry. Carta do Editor. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.12, n.3, set./dez. 2005. Acessar publicação original [DR].

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