Lupicínio e a dor-de-cotovelo / Rosa Dias

Lupicínio Rodrigues compôs marchinhas de carnaval, xotes, sambas-canções e até o hino do time de futebol Grêmio, mas seu nome costuma ser imediatamente associado ao romântico e melancólico gênero musical popularmente conhecido como dor de cotovelo. Termo que ele próprio teria criado em referência ao proverbial hábito boêmio de se embriagar durante longas conversas a respeito de desilusões amorosas com os cotovelos displicentemente apoiados no balcão ou na mesa de algum bar. É sobre seus clássicos do gênero que versa As paixões tristes: Lupicínio e a dor-de-cotovelo, escrito pela pesquisadora de cultura brasileira e professora de filosofia da UERJ Rosa Maria Dias. Obra cujo título remete ao disco por ele lançado em 1973 que contém algumas de suas músicas mais marcantes, como “Loucura”, “Castigo”, “Meu barraco”, “Judiaria”, “Caixa de ódio”, “Dona do bar”, entre outras.

Um dos objetivos centrais do livro é o de investigar o processo criativo através do qual Lupicínio Rodrigues transfigurou suas dolorosas decepções afetivas em belas canções. A autora leva em consideração a advertência presente na contracapa do LP de que “o disco não é para ser examinado, é necessário sentí-lo […] é preciso saber sentir com a garganta seca, mãos trêmulas, olhos úmidos, a sua, a nossa, a vossa, a universal dor de cotovelo”. Neste sentido, Dias ressalta que a linguagem teórica tende a afastar as paixões de seu núcleo de pensamento e assume o desafio de conduzir suas análises em sentido oposto ao do costumeiro ascetismo acadêmico ao desenvolver uma interpretação mais próxima de uma dramatização do discurso apaixonado do que de uma metalinguagem a respeito dele.

Para Rosa Dias, “Lupicínio esquadrinha em suas letras os desenlaces e os desencontros amorosos” e “nesse disco, como em todos os outros, ele aparece sempre com um único querer que sofre e para quem não existe salvação a não ser continuar amando”. A saudade provocada pela ausência da amada desperta no sujeito amoroso o ressentimento e a culpa que o convertem em um sujeito moral, movido simultaneamente pela necessidade de consolo e pelo desejo de vingança. Sentimentos que transformam o peito do apaixonado em “uma caixa de ódio com um coração que não quer perdoar” (versos da música “Caixa de ódio”).

Enquanto sujeito ressentido movido por uma ideia fixa, o protagonista das canções “recrimina a mulher amada pela separação, por suas dores e pelo seu desassossego” e, enquanto sujeito culpado, “incrimina-se por uma falta cometida contra o ser amado; acredita tê-lo ofendido e experimenta por isso um sentimento de remorso”. Em ambas situações é intensa a vitimização daquele que se sente injustiçado, assim como seu clamor pela punição do pretenso responsável por seu sofrimento. Como exemplo podemos nos recordar de um dos mais agressivos trechos de sua célebre composição “Vingança”:

Mas equanto houver força em meu peito

Eu não quero mais nada

Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar

Você há de rolar como as pedras

Que rolam na estrada

Sem ter nunca um cantinho de seu

Pra poder descansar

Apesar das viscerais letras aparentemente biográficas em primeira pessoa, a autora procura desvincular o artista de seus personagens ao defender que as paixões tristes presentes nas composições não bastam para identificar seu criador ao sujeito bilioso nelas descrito. Em contrapartida, apresenta a hipótese de que o fato de Lupicínio costumeiramente cantar as dores do sujeito moral ressentido e culpado não significa necessariamente que ele próprio possua tais sentimentos. Pois, à medida que são cantadas, as vivências estão subjugadas a uma potência criadora artística impessoal que reflete sentimentos gerais, universais, comuns a todos os seres humanos e não apenas referentes à subjetividade individual daquele que lhes conferiu forma de expressão: “Quando capturada pela arte, a dor amorosa não exerce uma ação nociva sobre o coração. O artista é capaz de assimilar o passado, assenhorar-se do caos de si mesmo e transfigurá-lo”.

Tamanha distância a pesquisadora considera haver entre o compositor e seus personagens que chega a caracterizar a experiência musical do inventor da dor de cotovelo como essencialmente alegre: “Postos em música, tecidos com alegria, os sentimentos do ressentimento passam com o tempo, são ‘chuvas de verão’ e não sentimentos mediante os quais Lupicínio nega o amor e, consequentemente, a vida”. Interpretação endossada por declarações do próprio compositor, como a que está presente em seu depoimento concedido ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro em 1968: “Eu faço música por brincadeira, para me divertir e divertir os amigos […] Tive mil problemas com mulheres, mas acho que foram problemas bons, entre outros motivos, porque me deram horas de felicidade e vários sambas.” As dificuldades afetivas pelas quais passou não paralisaram sua vida nem o levaram a desistir do amor, ao contrário, serviram de estímulo para outras tentativas de relacionamentos afetivos e de matéria-prima para novas canções.

A autora também destaca que “quando se trata de Lupicínio, torna-se impossível desvincular melodia, letra e canto” e dedica a parte final de seu livro a evidenciar sua relevância não apenas enquanto compositor, mas também como músico e cantor. Mostra que, apesar da aparente simplicidade, muitos de seus versos e melodias são resultantes de um apurado trabalho técnico para melhor transmitir os estados de alma do sujeito apaixonado de suas canções.

Lupicínio foi um dos primeiros a ousar cantar profissionalmente sem possuir a potência vocal que se exigia dos grandes cantores de sua época, razão pela qual costumeiramente ironizavam que ele dizia suas letras em vez de propriamente cantá-las. Talvez esse preconceito que o tenha feito humildemente escrever que seu tão conceituado disco de 1973 “pretende apenas ser um singelo roteiro musical visando facilitar os cantores e intérpretes de meu país, que se interessem pelas composições […] Não se trata de um disco de cantor. É um autor – entre tantos – vendendo seu ‘peixe’”. A esse respeito, Rosa Dias chama atenção para o importante fato de que Lupicínio foi um dos principais precursores do cantor “sem voz” que interpreta suas músicas de modo próximo ao da palavra falada, estilo que só viria a se consolidar no Brasil a partir da Bossa Nova. Além disso, como todos sabemos, muitas de suas composições se tornaram presença obrigatória no repertório de praticamente todos os intérpretes populares de canções brasileiras.

As paixões tristes: Lupicínio e a dor-de-cotovelo, relançado neste mês de julho de 2020 pela Coleção X da editora carioca Ape’Ku, foi inicialmente publicado em 1994[1] e teve nova edição em 2009[2]. Uma de suas leitoras foi a cantora e compositora Adriana Calcanhotto que batizou seu álbum lançado em 2011 de O micróbio do samba[3] inspirada pela referência biográfica apresentada por Rosa Dias de que Lupicínio costumava dizer com orgulho que desde pequeno trazia no sangue o micróbio do samba.[4] Isso porque já na infância os professores chamavam sua atenção por batucar durante as aulas, o que fez com que, aos 5 anos de idade, em 1919, fosse expulso do Colégio São Sebastião.

“Eu arriscaria dizer que As paixões tristes: Lupicínio e a dor-de-cotovelo é uma das primeiras experiências de uma filosofia popular brasileira realizadas em nossas universidades”, escreve Rafael Haddock-Lobo[5] em seu texto de Apresentação para a mais recente edição do livro. Sem dúvida alguma, essa cuidadosa, original e apaixonante pesquisa de Rosa Dias deve ser lida atentamente não apenas pelos que visam conhecer melhor o histórico disco de 1973, mas também é leitura obrigatória para todos os que desejam saber mais a respeito da singular visão de mundo de Lupicínio Rodrigues e do lugar de destaque que ele ocupa em nossa cultura.

Notas

1. DIAS, Rosa Maria. As paixões tristes: Lupicínio e a dor-de-cotovelo. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994.

2. DIAS, Rosa. Lupicínio e a dor de cotovelo. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.

3. Álbum de estúdio com sambas autorais de Adriana Calcanhotto. No ano seguinte também lançou o CD e o DVD Micróbio Vivo, registro audiovisual de um dos show da turnê de Micróbio do samba. Em 2015 Adriana Calcanhotto lançou o álbum e o DVD Loucura em que interpreta exclusivamente canções de Lupicínio Rodrigues.

4. Cf. http://www.blognotasmusicais.com.br/2011/10/roteiro-de-microbio-do-samba-inclui.html: “[…] a origem da contaminação de Calcanhotto pelo ritmo-síntese da identidade nacional foi a leitura de Lupicínio e a Dor de Cotovelo (Editora Língua Geral, 2009), livro em que a autora, Rosa Maria Dias, conta que o então garoto Lupicínio dizia com orgulho que estava com o micróbio do samba ao ser retaliado no colégio por batucar na sala de aula.”

Tiago Barros – Doutor em Filosofia pela UERJ e professor de Filosofia do IFRJ.


DIAS, Rosa. As paixões tristes: Lupicínio e a dor-de-cotovelo. Rio de Janeiro: Ape´Ku, 2020. Resenha de: BARROS, Tiago. Rosa Dias e as paixões tristes de Lupicínio Rodrigues. HH Magazine – Humanidades em Rede. 23 jul. 2020. Acessar publicação original [IF].

Páginas da arte, páginas da vida – DIAS (CN)

DIAS, Rosa. Páginas da arte, páginas da vida. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016. Resenha de: GONÇALVES, Alexander. Cadernos Nietzsche, v.38 n.1 São Paulo jan./abr. 2017

O tema da arte atravessa toda a produção bibliográfica de Rosa Dias. Desde o seu Nietzsche e a Música (Rio de Janeiro: Imago, 1994) até Nietzsche, vida como obra de arte (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011), a arte tem sido protagonista de uma reflexão que se move sempre no sentido de assumir o compromisso nietzschiano de superar os limites entre pensamento e vida, entre vida e arte. Em Páginas da vida, páginas da arte (Rio de Janeiro: Mauad X, 2016), este compromisso é uma vez mais afirmado e o resultado é uma obra cuja constituição teórica vem sempre acompanhada de um olhar sensível sobre a vida. Assim, os dez capítulos que compõem o livro apresentam a relação entre vida e arte de maneira programática e sob perspectivas teóricas diversas.

Já de início, em Homenagem ao professor Gerd Bornhein, o reconhecimento da autora ao intelectual gaúcho e seu importante legado para a filosofia e para a crítica da arte não está alheio ao sentimento de gratidão da aluna em relação ao mestre e educador, que pelos caminhos da vida diz ter encontrado a arte e que, pela via da arte, passou a pensar a vida.Em Uma filosofia do amor em Cartola, a crítica à atual situação de indiferença da cultura brasileira em relação aos seus “grandes homens”dá ensejo a considerações de notória inspiração nietzschiana acerca da obra de Angenor de Oliveira, o Cartola. Dentre elas, destaco aquela em que Rosa Dias sugere que a poesia e a música do compositor carioca emanam de um sentimento profundo de afirmação do amor, que também é, em última análise, afirmação da dor e do sofrimento, enfim, da própria vida em sua condição trágica. A relação entre arte e sociedade é o objeto dos dois capítulos seguintes, momento em que a autora investiga, com Platão e Aristóteles, o papel que a música desempenha na vida do homem grego.Em Música e tragédia no pensamento de Platão, a autora procura avaliar o intento platônico de provocar profundas transformações no ethos grego tomando como ponto de partida uma revolucionária normatização dos procedimentos musicais da cidade ideal. Já no que diz respeito às idéias musicais de Aristóteles, em A música no pensamento de Aristóteles a autora se ocupa de apresentar, além da função político-pedagógica que a música assume em Aristóteles – e que este herda do mestre ateniense uma nova função de natureza psicológica: a purificação. Assim, ao apontar para o lugar de preponderância que a música ocupa no pensamento e na vida dos helenos, seja no âmbito político-pedagógico da Paidéia platônica, seja no registro psicológico da catarse aristotélica, Rosa Dias põe a nu a indiferença hodierna no que tange a relação entre música e a vida assinalando o abismo interposto entre nós e os antigos. Em “O autor de si mesmo”: Machado de Assis, leitor de Schopenhauer, o ponto de partida da reflexão será a inspirada interpretação machadiana da “metafísica do amor” do filósofo de Danzig. Dias resgata de maneira muito precisa e interessante alguns pontos consoantes às visões de mundo dos dois autores para, a partir daí, demonstrar de que maneira o “grande drama da existência humana”, drama em que o amor é protagonista, é posto em cena no afã de explicitar o pessimismo constitutivo de ambos em relação à felicidade humana e à vida.“Ecos” da filosofia de schopenhaueriana “ressoam” também na obra do escritor francês Marcel Proust. Em Proust: um leitor de Schopenhauer, o esforço da autora consiste em demonstrar a influência do pensador alemão no modo como Proust compreende o processo de criação estética. A busca incansável do narrador proustiano pela matéria de sua literatura; os esforços empregados pelo escritor na tarefa de apreensão e fixação dos signos sensíveis de sua arte; tudo isso é analisado sob a perspectiva da “metafísica do belo” de Schopenhauer e avaliado segundo o modo como este filósofo pensa o processo de apreensão das essências das coisas e a sua reprodução na arte. Os quatro últimos capítulos, todos eles dedicados ao pensamento de Nietzsche, nos oferecem uma visão panorâmica do modo como o filósofo alemão tratou a relação entre a vida e a arte desde suas reflexões juvenis até a constituição de seu pensamento maduro, o que deixa evidente a familiaridade da autora com o tema e com o corpus nietzschiano.Assim, enquanto Metafísica do gênio nas extemporâneas de Nietzsche explora as teses que o jovem Nietzsche apresentou, sobretudo em sua Terceira Extemporânea, em torno da problemática da “estética do gênio”, Do Imaculado Conhecimento: “olhos ébrios de lua” procura investigar na obra madura, de maneira especial no Zaratustra, os desdobramentos desta alegoria contida no título no sentido de reconstituir a crítica que Nietzsche dirige ao conhecimento puro, teórico e abstrato.Na sequência, Arte e vida no pensamento de Nietzsche procura abordar de maneira direta a relação arte e vida. Como já é anunciado nas linhas iniciais, o escopo aqui consiste em explicitar a concepção de vida como obra de arte na obra de Nietzsche. Percebe-se aqui certa insuficiência analítica que talvez resulte da amplitude do corpus escolhido, o que resta à autora dar à questão um tratamento panorâmico tornando inviável qualquer análise mais exaustiva. O confronto entre Nietzsche e Bergson fecha o livro de Rosa Dias. Em A questão da criação em Nietzsche e Bergson, o objetivo consiste em avaliar este confronto a partir do conceito de “criação”, isto é, do modo com que cada um destes filósofos pensou a vida como ato criador e, talvez, como obra de arte.

Fruto de longa reflexão e trabalho duro, Páginas da vida, páginas da arte oferece ao leitor, numa linguagem leve e elegante, uma reflexão sensível e plena de estímulos acerca daquele que talvez seja, para Rosa Dias, o seu tema mais caro: a relação entre vida e arte.

Alexander Gonçalves – Professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Correio eletrônico: [email protected]

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