Intrépidas entre Europa y Las Américas: Cultura/arte y política en equidade | Esmeralda Broullón Acuña

El libro editado y coordinado por la Dra. Esmeralda Broullón forma parte de un Proyecto de Investigación de la Red Internacional del CSIC sobre Cultura, arte y política: mujeres y naciones en el marco de conflictos políticos claves. Siglos XX y XXI. Asimismo ha sido desarrollado dentro del Grupo de Investigación denominado “Actores sociales, representaciones y prácticas políticas (ASOC)” de la Escuela de Estudios HispanoAmericanos (Instituto de Historia) de Sevilla. Se trata de un ingente trabajo de investigación que, en menos de 300 páginas, con un carácter interdisciplinar y universal, rescata del olvido a unas mujeres que, debido al androcentrismo imperante, han permanecido ocultas o en la sombra y ni siquiera en la letra chica (pequeña) de los manuales de Historia del Arte y de la Literatura. Pues siempre estudiamos a los “varones” de la generación del 27 u otras vanguardias, ninguneando a mujeres vanguardistas, intrépidas y rebeldes, por ejemplo el caso Concepción Méndez Cuesta, editora, escritora, nadadora, perseverante, intrépida y “viajera emancipada”, como ella escribía en una carta a Federico García Lorca, Concepción Méndez Cuesta, no tan conocida, al menos para mí, como su esposo el malagueño Manuel Altolaguirre. Por ello agradezco a la editora de este libro su excelente capítulo sobre el contexto socio-político y cultural en el que se movió esta polifacética mujer Leia Mais

Disputar la cultura: Arte y transformación social | Julieta Infantino

Julieta Infantino Imagem Scoopnest
Julieta Infantino | Imagem: Scoopnest

Esta reseña realiza un recorrido por el texto “Disputar la cultura: Arte y transformación social en la Ciudad de Buenos Aires” publicado en el año 2019. El mismo está editado por Julieta Infantino y cuenta con ocho capítulos con aportes de ella misma y de Josefina Cingolani, Camila Mercado, Mariana Moyano, Verónica Tallelis, Maia Berzel y Ana Echeverría. Estas autoras tienen distintas inscripciones académicas en universidades de la ciudad de Buenos Aires y en sus cercanías y también cuentan con trayectorias de investigación en distintos espacios artísticos.

Este libro presenta algunas de las preguntas que, según la editora, se vienen dando en el campo de las artes y la transformación social. En ese sentido, los interrogantes de quienes trabajan en esos ámbitos se encuentran reflexionando sobre las posibilidades, limitaciones, disputas, conflictos y entramados políticos del arte como herramienta de transformación social. Leia Mais

Impressos subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964 | Maria Luiza Tucci Carneiro

Maria Luiza Tucci Carneiro Imagem Mosaico na TV
Maria Luiza Tucci Carneiro | Imagem: Mosaico na TV

O livro “Impressos Subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964” foi escrito pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e lançado em 2020. A obra, que possui 212 páginas, possui as seguintes seções (todas escritas pela autora): Preâmbulo; introdução; capítulo 1 “Os impressos no mundo da sedição”; capítulo 2 “Na trilha do impresso político”; capítulo 3 “A arte de imprimir e protestar”; capítulo 4 “Artistas de protesto”; capítulo 5 “Panfletos Irreverentes”; Considerações Finais; Fontes; Bibliografia e Iconografia.

A autora fez toda a sua formação em história pela USP, tendo defendido a tese de título “O Anti-semitismo na Era Vargas: Fantasmas de uma geração (1930-1945)” e a tese livre docente “Cidadão do Mundo. O Brasil diante da questão dos judeus refugiados do nazi-fascismo (1933-1950)”. Carneiro atualmente é professora sênior da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Em sua carreira, têm realizado projetos e atividades junto de diferentes instituições, como a Associação Brasileira A Hebraica de São Paulo e o Arquivo do Estado de São Paulo. Sobre este arquivo, a historiadora já havia coordenado, junto de Boris Kossoy, um Projeto Integrado Arquivo/Universidade (PROIN) Leia Mais

Arte, ciencia y tecnología en la Argentina y América Latina: perspectivas situadas | Cuadernos de Historia del Arte | 2022

En las últimas décadas, en parte impulsadas por los movimientos decoloniales y otras propuestas de revisión crítica de la modernidad occidental llevadas a cabo por el posestructuralismo, los feminismos y los posthumanismos críticos, entre otros, las producciones estéticas latinoamericanas han ganado terreno en los circuitos internacionales de producción, exhibición e investigación en arte, no sólo renovando la antigua pregunta por la identidad latinoamericana, sino también movilizando nuevas tensiones y negociaciones en torno a la noción misma de lo contemporáneo.

La conformación de un circuito internacional del arte, se sabe, no es nueva. Tampoco es nueva la instrumentación de tales instancias de formación, producción, exposición y crítica de arte como zonas estratégicas de intervención política en un sentido amplio. Trabajos ya clásicos de Anna María Guasch,3 Andrea Giunta4 y Diana Wechsler,5 entre otrxs, han dado cuenta de que los canales trazados entre bienales, ferias, residencias y demás programas internacionales de arte contemporáneo constituyen espacios públicos en los que se instalan temas, se visibilizan problemas, se establecen formas privilegiadas de abordarlos y, asimismo, se moviliza no sólo un ostentoso mercado de obras asociado a los carriles de consagración de artistas sino que en ellos también se modulan las identidades y pertenencias locales y regionales de acuerdo a un arreglo de participación planetaria. Este escenario ha venido progresando desde las exposiciones industriales del siglo XIX, mediante el circuito de bienales inaugurado en Venecia en 1895 e incluyendo las ferias y residencias más recientes; así, ha resultado en la conformación de un mapa mundial de encuentros y eventos que, hacia los años ’80 y ’90, experimenta una reorganización que torsiona su condición inter-nacional hasta redefinirla como “global” y que abandona el signo de lo moderno/posmoderno hacia la conformación de un ámbito caracterizado por lo “contemporáneo”. Leia Mais

Modernidade em preto e branco: arte e imagem/raça e identidade no Brasil | Rafael Cardoso

De vez em quando, aparece um livro que desloca o debate em torno de um determinado assunto de tal forma que se torna impossível, ou, no mínimo, desaconselhável, entrar na discussão sem lidar com ele. Estes livros raramente apresentam argumentos inteiramente novos, mas conseguem captar e sintetizar de modo instigador uma crítica que circula há algum tempo. Como trechos de pavimentação sobre caminhos de terra, eles se estendem e solidificam trilhas previamente batidas. É o caso do novo estudo de Rafael Cardoso, Modernidade em preto e branco, que defende uma compreensão temporalmente expansiva do modernismo brasileiro que desafia o “mito de 1922” associado à Semana de Arte Moderna em São Paulo, descrita como uma cidade “ainda provinciana apesar de sua grande prosperidade” (p. 18). As inovações estéticas da geração anterior foram ofuscadas por este mito propagado por intelectuais paulistas durante a segunda metade do século XX. O centenário da Semana de 1922 ocasionou uma infinidade de eventos e publicações, em grande parte comemorativas, tornando a Modernidade em preto e branco uma intervenção bem-vinda. Bem escrito e enriquecido com uma impressionante coleção de ilustrações coloridas, está destinado a se tornar um clássico da historiografia da modernidade cultural brasileira. Leia Mais

Modernity in Black and White, art and image, race and identity in Brazil, 1890–1945 | Rafael Cardoso

Pensar modernidade nos grandes centros urbanos nas primeiras décadas do século XX é, principalmente quando se leva em consideração a perspectiva dos trabalhadores nacionais de origem afrodescendente, acompanhar o processo de reorganização do espaço urbano de forma a reproduzir os padrões europeus em detrimentos de influências culturais negras. As principais cidades do Brasil foram buscar inspiração, principalmente, nas referências francesas e mobilizaram os recursos possíveis para controlar as manifestações de origem africanas ou indígenas. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, em nome da modernidade, as populações empobrecidas foram empurradas para os locais mais distantes e sem estruturas, iniciando um processo histórico de marginalização nos principais centros urbanos.
Os pesquisadores do campo da História Social, a partir de diferentes olhares e fontes, observaram o entusiasmo de estadistas com a construção de grandes avenidas, o empenho de sanitaristas com o combate às epidemias que assolavam a população, além de práticas do cotidiano que possibilitaram a contenção de indivíduos não brancos em espaços que representariam o progresso da nação brasileira1. Entre os temas debatidos também destacaram o impacto dos imigrantes europeus nas dinâmicas sociais daquele período, que convergiam para a construção de um Brasil moderno embranquecido. A partir de ideias concebidas no pensamento raciológico europeu, parte da classe política e da intelectualidade brasileira passou a condicionar o lugar do país na modernidade à constituição de uma nação branca nos trópicos em um período de longo prazo. Leia Mais

Feminismo y arte latino-americano: historia de artistas que emanciparan el cuerpo | Andrea Giunta

Em 2018, a Pinacoteca de São Paulo recebeu a exposição “Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960 a 1985”. Com curadoria de Cecilia Fajardo-Hill e Andrea Giunta, reuniu centenas de obras de artistas latino-americanas atuantes desde os anos 1960, problematizando a exclusão dessas mulheres do rol de consagração artística, a concepção de uma arte latino-americana e a própria categoria de “arte feminista” e “arte de mulheres”. Antes de chegar ao Brasil, “Mulheres Radicais” passou pelo Hammer Museum e Brooklyn Museum, reforçando a importância de se pensar a atuação das artistas latino-americanas a partir de categorias de interpretação próprias à realidade do continente. A exposição é fruto do trabalho de pesquisa, docência e crítica das duas curadoras, cujas trajetórias de pesquisa são fundamentais para a crítica de arte feminista na América Latina.

No mesmo ano de Mulheres Radicais, Andrea Giunta lançou “Feminismo y arte latino-americano: historia de artistas que emanciparan el cuerpo”, obra na qual se aprofunda em reflexões lançadas na exposição, congregadas às problemáticas abordadas pela historiadora ao longo de sua trajetória, como vanguardas, internacionalismo, gênero e política. O livro em questão dedica-se a pensar as relações entre arte, gênero e militância desde os anos 1960 na América Latina. O argumento central de Giunta reside na ideia de que o feminismo artístico e seus campos de ação adjacentes constituíram a maior transformação na economia simbólica e política das representações da arte da segunda metade do século XX. Nesse contexto, o corpo foi dispositivo fundamental de crítica e expressão de subjetividades dissidentes em relação aos lugares socialmente normalizados para as mulheres. Leia Mais

Nazareno Confaloni: arte & modernidade como experiência religiosa | Jacqueline Vigário

É preciso aproximar o artista da realidade vivida pelo povo, caso contrário, o artista viverá desambientado e incompreendido.

Frei Nazareno Confaloni

As produções acadêmicas pela lente da História Cultural têm muitos exemplos interessantes de reflexões historiográficas a partir das imagens, e a obra Nazareno Confaloni. Arte & Modernidade como experiência religiosa é um dos mais recentes deles. Vencedora do prêmio Sandra Jatahy Pesavento do ano de 2018, trata-se da tese de doutorado de Jacqueline Siqueira Vigário, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás em 2017, que acaba de ser publicada pela Edições Verona e discute a modernidade em Goiás a partir da vida e da obra do frei dominicano e artista plástico italiano, Nazareno Confaloni.

Ao longo de seu texto, Vigário nos leva pelos meandros da construção da modernidade em Goiás ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970, a partir das bases, especialmente, da Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), na esteira da transferência da capital goiana da cidade de Goiás para Goiânia por Pedro Ludovico Teixeira na década de 1940, sob as bênçãos do Estado Novo. As reformulações culturais do regime de Vargas são a base para o IHGG, que legitima culturalmente o Estado de Goiás em relação ao resto do Brasil, constituindo-se, segundo a autora, em uma instituição legítima no exercício de promoção dos projetos políticos de modernização e construção do imaginário de modernidade para Goiás (VIGÁRIO, 2021, p. 278). Leia Mais

Atrapados por la Imagen. Arte y política en la cultura impresa argentina | Laura Malosetti Costa

Los siglos XIX y XX han presenciado, como nunca antes en nuestra historia, coyunturas y continuidades, cambios tecnológicos, científicos y políticos. Nuestro país no fue la excepción. Laura Malosetti Costa y Marcela Gené, a través de la compilación de numerosos artículos de divulgación científica sobre arte, comunicación, diseño y política, nos invitan a un diálogo histórico a través de la cultura visual impresa en Argentina.

En palabras de las autoras “hay una línea de reflexión en común que reúne a estos textos, articulando arte, tecnología y política en relación con los artefactos impresos. Qué lugares ocuparon las imágenes en la vida política a partir de su presencia en publicaciones partidarias tanto como humorísticas o de formato magazine, cómo operaron en las transformaciones sociales, de qué modos las manifestaciones artísticas se vieron transformadas, impulsadas y multiplicadas por las revistas para llegar a un público cada vez más amplio”. Leia Mais

Figuras da História | Jacques Ranciére

Resenhista

Hilário Correia Ramos – Universidade Federal de São Paulo. Mestrando em História pelo PPGH da Unifesp (Guarulhos).

Referências desta Resenha

RANCIÉRE, Jacques. Figuras da História. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 2018. Resenha de: RAMOS, Hilário Correia. Negacionismo, Arte e História. Escrita da História, v.7, n.14, p.251-255, jul./dez. 2020. Acesso apenas pelo link original [DR]

Explosão feminista: arte/cultura/política e universidade | Heloisa Buarque de Hollanda

Sou uma feminista da terceira onda. Minha militância foi feita na academia, a partir de um desejo enorme de mudar a universidade, de descolonizar a universidade, de usar, ainda que de forma marginal, o enorme capital que a universidade tem. Leia Mais

História da Arte e da Cultura | Unicamp | 2020

Historia da Arte e da Cultura

Revista de História da Arte e da Cultura (Campinas, 2020-) é uma publicação vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e uma iniciativa do Centro de História da Arte e Arqueologia (CHAA), desta universidade. Seu principal objetivo é promover um contínuo desenvolvimento da História da Arte e da Cultura no Brasil, relacionando-as com a produção internacional da área.

Revista de História da Arte e da Cultura é a continuação natural da Revista de História da Arte e Arqueologia (RHAA), que em seus 24 números, entre 1994 e 2015, tornou-se referência das revistas científicas brasileiras na área, além de ser a primeira a tratar as duas disciplinas de modo correlato. O objetivo da nova RHAC é continuar com excelência o trabalho, adequando-se às novas necessidades e determinações dos padrões internacionais das revistas acadêmicas.

Primeiro a Revista de História da Arte e Arqueologia e agora a Revista de História da Arte e da Cultura são partícipes do crescente interesse na disciplina, que no departamento de História da Universidade Estadual de Campinas cristaliza-se com a área de concentração em História da Arte e suas linhas de pesquisas. Este periódico afirma o compromisso com a área e sua divulgação em um cenário internacional. Sua publicação online garante uma irrestrita visualização a todos os interessados na disciplina.

A RHAC tem por objetivo a publicação e divulgação da produção acadêmica na área de História da Arte e da Cultura. Abrange textos voltados particularmente à reflexão sobre a visualidade, em suas conexões com o campo cultural. A publicação de trabalhos em português, inglês, francês, italiano e espanhol facilita o acesso a leitores brasileiros e estrangeiros. Publica inéditos de especialistas nacionais e estrangeiros nas seguintes modalidades: artigos, resenhas, entrevistas e transcrições de documentos. Propostas para dossiês podem ser encaminhadas para aprovação no conselho.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2675-9829

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Arte, História e Escrita | LaborHistórico | 2020

A proposta de organização de um dossiê sobre as diversas relações possíveis entre arte, história e escrita responde ao interesse da revista LaborHistórico, publicação semestral on-line dos Programas de Pós-graduação em Letras Vernáculas e Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, um periódico que tem como foco estudos desenvolvidos a partir de fontes escritas nos quais se destaque o labor do historiador diante de seu material de trabalho. Focada nas áreas de Filologia e Linguística Histórica, a revista busca cada vez mais a interdisciplinaridade, promovendo números relacionados com áreas diversas, como a paleografia, a história, a literatura, a história social da cultura escrita, dentre outras.

Assim, este dossiê, intitulado Arte, História e Escrita, reúne vinte artigos de pesquisadores filiados a instituições do Brasil, Espanha, Argentina, Itália, México, Chile e Estados Unidos, principalmente relacionados com a História da Arte, que refletem sobre o labor do historiador da arte diante de suas fontes de trabalho. O próprio conceito de fonte escrita, sua definição, suas diferentes tipologias e caraterísticas se constituem como elementos vertebradores da reflexão, assim como os diferentes modos possíveis de tratamento destas fontes na Historia da Arte e sua importância para a construção da disciplina. Leia Mais

Arte e conhecimento em Leonardo da Vinci | Alfredo Bosi || Leonardo da Vince | Walter Isaacson

A tarefa do historiador

Historiadores visam compreender eventos passados. Restos de colunas sugerem um templo que eles tentam imaginar utilizando elementos preservados. Entretanto, às vezes, nem restos existem. Em sua Institutio oratoria, Quintiliano discute Virgílio e Ovídio, comenta que Macer e Lucrécio valem a leitura e, então, menciona Varrão Atacino, Cornélio Severo, Saleio Basso, Gaio Rabírio, Albinovano Pedo, Marco Fúrio Bibáculo, Lúcio Ácio, Marco Pacúvio e outros poetas que admirava. Desses autores, hoje só existem obras de Virgílio, Ovídio e Lucrécio (GREENBLATT, 2011, p. 59). Historiadores não podem imaginar autores que sequer sobreviveram enquanto nomes. Então, ao escrever, eles tentam encaixar peças fragmentadas de um quebra-cabeças cujo amplo desenho conhecem vagamente, e desconhecem suas dimensões.

Existem inúmeras abordagens para estudar fragmentos de épocas passadas. No caso de documentos escritos, a História Conceitual talvez seja uma das abordagens mais importantes, pois conceitos estruturam questões de época e permitem relacionar momentos distintos. Matteo Palmieri, humanista e embaixador florentino, escreveu entre 1431 e 1438 o Libro della vita civile [Livro da vida civil], no qual fala a respeito da formação para viver dignamente em uma “ótima república”: Leia Mais

Utopia, Dystopia. A Paradigma Shift in Art e Architecture | Pedro Gadanho, João Laia e Susana Ventura

No segundo semestre de 2016, paralelamente à 4ª edição da Trienal de Arquitetura (1), inaugurou-se em Lisboa o MAAT, o museu de arte, arquitetura e tecnologia de Lisboa, causando polêmica ao introduzir a capital lusitana no pulsante circuito global de arquiteturas espetaculares.

Entretanto, não é a arquitetura do MAAT, projetado pela arquiteta inglesa Amanda Levete, que proponho apresentar nesta resenha, tampouco as obras de sua exposição inaugural: “Utopia/Dystopia, A paradigma Shift in Art e Architecture”O destaque aqui é a publicação do livro homônimo, lançado em março de 2017 (2), que por sua vez não é um mero catálogo da exposição, mas uma ambiciosa coletânea de ensaios inéditos, focados em refletir os impulsos utópicos e distópicos que dominam o homem desde o inicio da modernidade. Há um evidente tom de manifesto, fortalecido pela publicação em edição bilíngue. Livro e exposição trabalham como entidades complementares, ainda que autônomas, tornando-se o primeiro compêndio a explorar as diferentes abordagens de artistas contemporâneos, arquitetos e teóricos sobre as dualidades e tensões em torno do par utopia/distopia. Leia Mais

Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy – ATKINSON (C)

ATKINSON, Dennis. Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy. Cham, Switzerland: Springer/Palgrave Macmillan, 2018. Resenha de: BACKENDORF, Jonas Muriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy é o mais recente livro da série Education, Psychoanalysis, and Social Transformation, organizada pela Palgrave MacMillan. De acordo com a apresentação do livro, uma das finalidades principais da série é: “to play a vital role in rethinking the entire project of the related themes of politics, democratic struggles, and critical education within the global public sphere” (p. ii). Embora não trate diretamente das idiossincrasias do cenário brasileiro e sul-americano, o livro aborda com profundidade questões de fundamental relevância para a nossa realidade presente, em especial o caráter cada vez mais explícito com que as humanidades, as artes, e o pensamento desprendido como um todo vêm sendo atacadas pelo atual governo – por meio de argumentos que vão desde a ausência de “retorno para o contribuinte” até a “militância política”1 dessas áreas de estudo, argumentos que exemplificam com transparente precisão a relevância do ataque de Atkinson aos modelos pedagógicos instrumentais, bem como da defesa de uma educação crítica e desobediente.

O autor é professor emérito na Universidade Goldsmiths, de Londres, além de ocupar o cargo de docente visitante nas universidades do Porto, de Helsinki, Gothenburg e Barcelona. Um aspecto importante da sua biografia é a experiência que tem no ensino secundário, por ter trabalhado, na Inglaterra, de 1971 a 1988. O livro de que ora me ocupo é o sexto da bibliografia do autor, sendo os outros igualmente voltados para as questões educacionais: Art in education: identity and practice; social and critical practice in art education (coautoria de Paul Dash); Regulatory practices in education: a lacanian perspective (coautoria de Tony Brown e Janice England); Teaching through contemporary art: a report on innovative practices in the classroom (coautoria de Jeff Adams, Kelly Worwood, Paul Dash, Steve Herne e Tara Page) e Art, equality and learning: pedagogies against the state. O mais próximo, em conteúdo, do atual é justamente o último, em que o autor trata, já com profundidade, de algumas das questões centrais para o presente livro, a questão da desobediência e a da postura combativa frente aos modelos fechados da pedagogia instrumental. Leia Mais

Arte, Imagem, Política: Curadoria, Circuitos e Instituições | MODOS. Revista de História da Arte | 2018

As relações entre os termos Arte e Política são complexas e por vezes, paradoxais. Durante o longo processo histórico de constituição do campo artístico em sua forma moderna, posições divergentes têm defendido tanto a total autonomia entre arte e política, quanto a indissociabilidade de suas conexões. Entre um extremo e outro, seguimos com Jacques Rancière, quando argumenta que “arte e política tem a ver uma com a outra como formas de dissenso, operações de reconfiguração da experiência comum do sensível” (2012: 63). Nestes termos, entendemos que as relações entre arte e política passam pelos temas abordados pelos artistas em suas obras, assim como por suas opções formais, estéticas, por seus processos de trabalho e de exibição. Os projetos de curadoria e de exposição, por sua vez, podem ser considerados como tomadas de posições políticas, tanto em relação às questões específicas do mundo da arte, quanto aos limites sobre o que é aceito socialmente como arte em um momento dado ou às transgressões das fronteiras da moral ou do “bom-gosto”. A atuação de historiadores e críticos de arte também pode ser pensada nestes termos, se consideramos suas narrativas como construções de poder simbólico. Por fim, as relações de poder entre os agentes, as instituições – museus, academia – e a lógica contemporânea de funcionamento do mercado produzem e conectam diferentes circuitos, gerando impactos diversos nos papeis e no lugar ocupado pela arte na sociedade contemporânea. Leia Mais

Sublimação e unheimliche – PARENTE (Ph)

PARENTE, Alessandra. Sublimação e unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017. Resenha de: SILVEIRA, Léa. A mulher entre o ouro e a carne. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 2, p.-91-104, jul./dez., 2018.

Il crut que dans son corps elle avait um trésor.

La Fontaine

A questão das neuroses condensou-se para Freud, como sabemos, em torno de um problema específico de defesa psíquica que ele, a certa altura, nomeou Verdrängung (recalque) e que cedo o conduziu ao enfrentamento teórico do modo pelo qual tal defesa se relacionava à cultura: suas exigências, suas condições psíquicas, sua existência mesma. Por que motivos, afinal, um indivíduo vem a rejeitar aquilo que ele próprio deseja? Eis algo que Freud, por mais que tivesse se identificado com os valores burgueses da Viena finde-siècle, não tomou por dado. Nem sequer, a meu ver, por um dado de sua época. Pelo contrário, ele perseguiu tal problema a partir dos mais diversos ângulos e fez disso o pensamento de uma vida. É assim que, para mencionar apenas um exemplo, ao relatar o caso Dora, ele expressa seu pasmo muito exatamente diante de um não reconhecimento da sexualidade. E escreve, nesse sentido:

Toda pessoa que, numa ocasião para a excitação sexual, tem sobre-tudo ou exclusivamente sensações desprazerosas, eu não hesitaria em considerar histérica, seja ela capaz de produzir sintomas somáticos ou não. Explicar o mecanismo dessa inversão de afeto é uma das tarefas mais importantes – e, ao mesmo tempo, mais difíceis – da psicologia da neurose (FREUD, 1905[1901]/2016, p.201).

Decerto, com Dora e os “Kas”1 temos também o problema da cegueira (ou surdez) possível do analista, mobilizada já como problema clássico na história das ideias psicanalíticas relacionadas à transferência, uma vez que Freud teria falhado em perceber o endereçamento do desejo de Dora. Lacan (1952[1951]/1998) vê isso em uma peculiaridade do momento em que a moça parece rejeitar o Sr. K. Trata-se do momento em que Dora entende que o Sr. K. não tinha acesso ao gozo da Sra. K., ao gozo do corpo daquela mulher. Lacan explora, com isso, o vislumbre do final do relato do caso, que ocorre a Freud só-depois: quanto mais o tempo passava, mais Freud se convencia de que o erro técnico, a partir do qual Dora rompera bruscamente o tratamento, consistiu em não pontuar o investimento erótico homossexual da moça na Sra. K2. É certamente em função dessa cegueira que Freud atribui a Dora, na interpretação de seus sintomas, “correntes afetivas masculinas” (p. 245). Mas, em qualquer caso, isso não dissipa o fato de que a pergunta de Freud, aquela com a qual ele se espanta, é: não seria de se esperar que uma mulher, ao desejar, assumisse o seu desejo enquanto tal? Se isso não acontece, conclui, é preciso tomar o fato na condição de enigma, pois ele não pede menos do que isso.  Se a cultura representa um campo importante no sentido de fornecer motivações para a rejeição do desejo, uma reflexão sobre ela é, então, inescapável para Freud. Tal reflexão terá desdobramentos sem os quais dificilmente poderíamos ter alguma expectativa de fazer uma leitura de nosso próprio tempo. Ela não será, no entanto, de modo algum suficiente para se pensar o que é o recalque. Não é raro vermos o leitor que se restringe a O mal-estar na cultura desencaminhar-se nesse sentido. Mas o que eu gostaria de destacar, tendo em vista meu propósito nessa resenha, é o fato de que essa reflexão – necessária e, para Freud, insuficiente – é marcada, de uma maneira fundante, por uma ambiguidade. Para mim, quando se trata de dizer isso, há uma passagem que se destaca como nenhuma outra. Está em A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno, primeiro texto que Freud dedica diretamente ao problema do antagonismo entre cultura e indivíduo. Poder-se-ia defender que um dos movimentos importantes que têm lugar entre esse texto e o do Mal-estar… é aquele que corresponde a uma estruturalização de tal antagonismo. Lá, o adoecimento cobrado pela cultura é destacado sobretudo como algo que caracterizaria a Europa da transição do XIX para o XX; aqui, tornar-se-á correlato de todas as suas formas. De todo modo, é no texto de 1908 que lemos:

A experiência ensina que há, para a maioria das pessoas, um limite, além do qual sua constituição não pode acompanhar as exigências da civilização. Todas as que querem ser mais nobres do que sua constituição lhes permite sucumbem à neurose; elas estariam melhores se lhes fosse possível ser piores (FREUD, 1908/2015, p.373-4).

Isso se desenha assim para Freud especialmente porque a construção da cultura envolve um investimento de energia psíquica subtraído das perversões constitutivas do ser humano, sendo este um argumento que resultará na célebre formulação de que a neurose é o negativo da perversão.  Assim, apesar de por vezes Freud situar a arte como um caminho de reconciliação com os sacrifícios exigidos pela cultura3, qualquer estudo sobre o tema em sua teoria deve estar advertido de que sua reflexão sobre a estética não poderia deixar de reverberar essa ambiguidade. Se por um lado, o resultado do processo sublimatório consiste, diz Freud, em alcançar metas valorizadas socialmente, por outro lado o que ele mobiliza, como formação do inconsciente, é, de saída, potencialmente subversivo na medida em que aquilo que o caracteriza são as tendências de oposição à cultura. A sublimação corresponde a um destino pulsional que precisa trabalhar contra a pulsão; ou, dito de outro modo, corresponde a um trabalho da pulsão contra si mesma.

A ambiguidade que Freud enxerga, talvez a despeito de seu próprio desejo, na realização estética, na medida em que ela é também uma tensão constitutiva da cultura, é um problema que atravessa todo o livro Sublimação e Unheimliche, de Alessandra Parente. Assim, a autora escreve, na introdução, sobre o caráter paradoxal da sublimação: “[…] o conteúdo que emerge do inconsciente, servindo como matéria essencial para a criação, não pode mostrar sua natural face subversiva, a menos que seja amainada por ornamentos ou superfícies formais que reiteram o estado vigente das coisas” (PARENTE, 2017, p.38).  O livro toma para si a tarefa de explorar aspectos sociais e históricos presentes no período de elaboração da teoria freudiana, de modo que a autora pretende expor não apenas a maneira como Freud concebia a cultura, mas a maneira como concebia a forma assumida pela cultura na época em que viveu e que viu nascer a nova disciplina. Ela se compromete, então, com a investigação das implicações psíquicas, sociais e políticas de tais concepções. À luz dessa chave, a primeira parte do livro mostra o modo pelo qual o modelo político-cultural do Império Austro-Húngaro aparece no conceito de sublimação. A. Parente defende que aparece nesse conceito freudiano um patriarcalismo que não teria percebido seu próprio fim, fim este que teria sido gestado pela Reforma Protestante e pela Revolução Francesa. O término não elaborado dessa ordem patriarcal, cujo representante paradigmático teria sido Francisco José I, teria promovido como resultado o surgimento de um espírito melancólico.  No sentido psicanalítico, a melancolia, assim defende Freud, está relacionada a uma situação em que o Eu perde o objeto amado e não reconhece essa perda, introjetando o objeto e, consequentemente, deixando de fazer o trabalho de luto que se sucederia. Além disso, o não reconhecimento da perda seria disparado por uma culpa relacionada ao fato de o sujeito direcionar ao objeto um sentimento de ódio ou o desejo de matá-lo. Em virtude dessa ausência de reconhecimento, a hostilidade que se voltaria para o objeto inflete-se agora, na melancolia, para o próprio Eu que se regozija tanto com a manutenção do objeto quanto com sua própria punição. “A sombra do objeto caiu sobre o Eu” (FREUD, 1917/2011, p.61) foi a bela formulação que Freud encontrou, em Luto e melancolia, para esse estado de coisas. Do ponto de vista econômico (no sentido da metapsicologia), isso corresponde a uma inflação do Eu, já que lhe torna mais difícil realizar investimentos de libido em outros objetos. Essa hipertrofia do Eu, sustenta agora A. Parente, está relacionada com a sublimação.  A referência à melancolia permite à autora proceder a um diagnóstico da cultura da época, em favor do que ela convoca as análises que W. Benjamin fornece dos dramas do Barroco alemão. No Trauerspiel, o traço marcante seria a fragilidade dos soberanos, a exposição do abalo que incidira sobre o poder monárquico. Qual é a reação dos cidadãos do Império Austro-Húngaro diante desse abalo? Eles preferem, diz a autora, alhear-se das discussões políticas e investir em uma “cultura dos sentimentos” que supervaloriza as artes e a beleza. Tudo se passa aqui como se, quanto mais complexas e investidas fossem as percepções dos objetos internos, mais os indivíduos se afastassem do âmbito público. Neste lugar, estaria então localizada a função da sublimação: ela estaria a serviço de dar vazão ao mundo interno sem tocar a questão dos problemas públicos. Isso corresponde, por óbvio, a uma crítica do conceito freudiano de sublimação, pois, na medida em que consiste em um processo conduzido pelo Eu com o intuito de, simultaneamente, obter reconhecimento social e realizar de modo parcial desejos sexuais e agressivos do artista, ela submete conteúdos que seriam resistentes à civilização a uma adaptação, contribuindo, assim, para a manutenção do “estado vigente das coisas”.  Já com o Unheimliche4, o que se passa seria algo bem diferente porque sua expressão pelo artista trabalharia o conteúdo do trauma sem integrá-lo, afastando-se de valores que são reconhecidos pela sociedade de maneira não crítica e não problemática. O encaminhamento da reflexão estética na direção dessa noção teria, por esse motivo, desalojado Freud do lugar de um liberalismo conservador.  Para A. Parente, a condição cultural que tem lugar com a Primeira Grande Guerra reflete-se no encaminhamento do pensamento de Freud, que então sofreria uma alteração significativa. Após a Guerra ele retoma sua teoria do trauma, elabora o conceito de pulsão de morte e escreve Das Unheimliche. Por esse motivo, a autora declara que seu segundo objetivo no livro é mostrar a importância desse acontecimento para a reconfiguração da teoria freudiana da cultura, o que significaria que essa reconfiguração alcançaria também o conceito de sublimação que Freud mobilizava até então. Nesse período, ele teria reconhecido limites em tal conceito, tendo sido por isso que: 1- não publicou o artigo metapsicológico que teria escrito sobre a sublimação e 2- escreveu o texto O inquietante. Isso faria parte de um cenário em que a condição psíquica prevalecente deixa de ser a melancolia e passa a ser o pânico.

Como órfãos de uma cultura perdida”, escreve a autora, “os homens que vagavam melancolicamente pela vida finalmente são obrigados a olhar para o vazio deixado após a guerra e para sua condição de desamparo. Juntando migalhas, tecem narrativas desconexas, potentes e vigorosas. Ao contrário do verniz que encerava o processo sublimatório, é possível ver uma inconsistência e uma precariedade mais fiéis à seiva inconsciente (p. 40).

A tese central do livro precisa então ser assinalada ao redor disso: há uma inflexão relevante entre a sublimação e o Unheimliche na teorização que Freud dedica à arte. Eles seriam dois processos de simbolização distintos e o entendimento da transição entre ambos precisa ser referido à repercussão que a Primeira Grande Guerra teria tido no pensamento freudiano. Tal chave dará ensejo a diversas incursões por obras artísticas e, especialmente, a autora recupera essa tensão entre o destaque conferido ao ouro na pintura de G. Klimt e a exposição crua da carne na de E. Schiele. Suas obras podem ser vistas como signos de uma amplitude de contexto cultural que, segundo A. Parente, ecoa na argumentação que Freud tece entre esses dois períodos cuja separação teria sido marcada com a Grande Guerra. A passagem entre o mestre e o discípulo – isto é: entre Klimt e Schiele – sinaliza uma ruptura da nudez para com a extravagância dourada e permite perceber a queda do véu da ornamentação, conduzindo decisivamente a obra de arte à exploração do Unheimliche, o que corresponderia a uma potência mais ampla de deslocamento e disrupção relativamente à ordem social estabelecida.  Há muitos percursos possíveis para a leitura desse livro tão rico. Porém, em torno de sua tese central, A. Parente não entrega o ouro fácil. Ela exige bastante de sua leitora porque a costura da argumentação precisa ser feita constantemente. Nossos fios de coser são convidados a passear pelas duas partes constitutivas do livro, demarcadas entre si a partir dos dois momentos identificados na reflexão estética de Freud, e que acabam de ser assinalados aqui. Em torno do primeiro momento – ou seja, da primeira parte do livro –, temos sete capítulos que elaboram sucessivamente os seguintes recortes: o teatro na Viena finse-siècle, a relação entre modernidade e melancolia, o declínio da imagem do pai, o feminino na obra de Klimt, a abordagem romântica da sublimação, a relação entre Freud e Goethe, o estatuto da escrita freudiana. Já na segunda parte do livro, nos deparamos com cinco outros capítulos, sendo que o primeiro deles situa a obra de Freud diante de sua desilusão com a guerra, o segundo aborda a articulação entre o sentimento de pânico e a condição de desamparo, o terceiro investiga a figura do Unheimliche na obra de E. T. A. Hoffmann, o quarto fornece uma leitura da produção de E. Schiele e o último retorna ao Édipo mediante a referência a H. von Hofmannsthal.  Diante das etapas assim desenhadas, podemos levantar algumas questões. Por exemplo: como podemos identificar em Klimt o modelo sublimatório nos termos propostos (p. 179) e ao mesmo tempo reconhecer em sua obra um profundo questionamento do poder patriarcal (p. 180)? Isso não seria prova de que a sublimação pode trazer resultados que ultrapassam a expectativa da aceitação social? Quando se diz que a Guerra imprime também uma mudança no próprio estilo de Freud, que análise concreta seria possível fazer desse estilo? Como o esforço de referir a teoria psicanalítica à história de seu tempo, especialmente mediante o estudo das obras de arte selecionadas, permitiria avançar a sua compreensão e o modo pelo qual ela dispõe seus conceitos? Chegamos, ao final do livro, no contexto de uma discussão sobre a peça A torre, de Hofmannstahl, a um comentário de Totem e tabu que está longe de ser trivial. Mas, dali, olhamos para um certo abismo, desamparados em busca de “considerações finais” que estivessem a serviço de dizer que um certo itinerário se encerrava ali de um certo modo, ainda que abrisse atalhos para tantas outras coisas. É especialmente importante ficar atenta ao fato de que a argumentação do livro vai se voltar para o tema do feminino. Uma das pistas mais relevantes nesse sentido, além do destaque dedicado a Klimt e Schiele – e, consequentemente, a essa questão – é a epígrafe do capítulo 3, que traz um pequeno trecho de 1907 das Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena. Nele, lemos muito a  contragosto, para dizer o mínimo, que, “na opinião de Freud, a verdade é que a mulher nada ganha pelo estudo e que, no todo, a sorte delas não há de melhorar com isso. Acresce que as mulheres não podem alcançar a realização do homem na sublimação da sexualidade” (citado por PARENTE, 2017, p.141). Não se pode acusar Freud de ter sido incoerente com esse posicionamento nos textos que publicou durante sua vida. Pois conhecemos bem – nós, suas leitoras – o modo pelo qual ele se esforça por destituir as mulheres das condições ética e estética. Mas, por mais que seja difícil para nós hoje equacionar essas duas coisas, também devemos em larga medida a Freud a construção de um território em que o pensamento feminista se tornou possível. Dívida que começa, é claro, no que concerne à psicanálise, com a coragem das mulheres que ocuparam seu divã. A exemplo de Dora, com quem abri essa resenha, eram sobretudo mulheres que colocavam em cena, ainda que de modo deformado, seu desejo na clínica de Freud durante seu período inicial. Convém lembrar, a esse respeito, as seguintes palavras de J. Mitchell: só podemos entender o significado da obra de Freud

[…] se compreendermos primeiro que eram exatamente as formações psicológicas produzidas dentro das sociedades patriarcais que ele estava revelando e analisando. A oposição à história assimétrica sobre os sexos, proposta por Freud […], pode muito bem ser mais agradável no igualitarismo que ela assume e revela, mas não faz sentido algum para uma defesa mais profunda de que sob o patriarcado as mulheres são oprimidas – uma argumentação que só as análises de Freud podem nos ajudar a compreender (1974/1988, p.7).

Isso significa, dentre tantas coisas, que é ainda urgente rever, comentar, repensar Totem e tabu nessa sua direção fundamental de estabelecer uma equivalência entre cultura e masculinidade e da qual, a meu ver, Lacan não soube se desvencilhar o suficiente. A. Parente acena para essa tarefa ao encerrar seu livro, de modo que a peça de Hofmannstahl dá ensejo a localizar essa pergunta pelo legado do mito freudiano e a marcar, talvez, mais um ponto de tensão entre o território do Unheimliche e o do patriarcado, embora ainda pareça pouco vincular, como faz a autora, a posteridade de Totem e tabu apenas ao tema da insurgência.  A questão da mulher é um dos pontos mais pungentes em que a obra de Freud parece ser refém de seu contexto. Não é o caso de avançar aqui em sua exploração, mas ela força a esta pergunta de base, tão centralizada pelo livro de A. Parente: em que medida a obra reverbera seu contexto histórico, em que medida é independente dele?  No que diz respeito ao segundo dualismo pulsional, não podemos deixar de lembrar a argumentação que L. R. Monzani constrói em Freud: O movimento de um pensamento. Para ele, o conceito de pulsão de morte não pode ter sua inteligibilidade referida à Grande Guerra5, pois tratar-se-ia, com tal conceito, de um elemento presente na obra de Freud desde o início em virtude da própria caracterização da pulsão como alguma coisa que possui a tendência a eliminar a si mesma. Lemos, assim, que “[…] a ideia de uma tendência à inexcitabilidade total e absoluta era um dos ordenadores fundamentais da rede teórica elaborada por Freud, que atravessa toda a sua obra de um extremo ao outro […]” (MONZANI, 1989, p.228). Pensar a pulsão de morte como resposta a um acontecimento histórico seria, assim, para Monzani, perder de vista a lógica interna que guia o movimento do pensamento. No livro de A. Parente as cartas são, a meu ver, claramente apresentadas em um sentido oposto.    Aqui o historicismo é assumido em torno de um pressuposto metodológico articulado com a leitura de W. Benjamim, de cujas teses sobre a história ela destaca a ideia de que a “substância histórica” está presente na estruturação dos conceitos. Tal estratégia envolve, como qualquer estratégia, perdas e ganhos. Que se ganha, espero ter conseguido mostrar um pouco. É preciso acrescentar, todavia, que a autora sinaliza nesse sentido para a aposta de que o resgate da história dos conceitos possui a capacidade de indicar forças que teriam sido abafadas pelas circunstâncias em que foram construídos. Por outro lado, se se defende que conceitos são amplamente tributários do contexto vivido por aquele que os pensou e construiu, então corre-se o risco de não se poder empregá-los sob a pena da óbvia objeção de serem datados. Qual a medida de sua sobrevivência? Por que alguns teriam uma vida para além da situação em que nasceram enquanto outros não? Por que aceitamos, por exemplo, um conceito metapsicológico de inconsciente, enquanto rejeitamos as teses de Freud sobre a inferioridade da mulher? Não são todos – tal conceito e tais teses – situados no mesmo contexto histórico? Se levássemos o ponto até suas últimas consequências, não seria, aparentemente e afinal, nem despropositada nem ingênua a pergunta: que direito tem a psicanálise de ser psicanálise após Freud? Esse tipo de impasse não restou, é claro, desapercebido por A. Parente. A solução encontrada por ela parece ser formulada aproximadamente do seguinte modo: “Conceitos e noções representam ideias que atravessam os tempos, mas só ganham feições nas malhas concretas da história” (PARENTE, 2017, p.51). Mas, se é assim, a pergunta pelo estatuto do Unheimliche não permanece em aberto? Se a noção de inquietante tem na Primeira Grande Guerra sua condição de possibilidade, possuiria ela alguma força para “atravessar os tempos”? O problema poderia também ser organizado de uma maneira não menos necessária por ser aparentemente trivial: por que continuamos a reconhecer que têm lugar processos de sublimação, apesar de a melancolia ter sido atrelada ao período que antecedeu a Primeira Guerra? São questões que, a meu ver, podem, dentre tantas outras, ser construídas com o livro de A. Parente de modo a favorecer o debate e a continuidade da investigação.

Referências

FREUD, Sigmund. (1905[1901]) Análise fragmentária de uma histeria. In:____. Obras completas. Volume 6. (Trad. P. C. de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

FREUD, Sigmund. (1908) “A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno”. In: ____. Obras completas. Volume 8. (Trad. P. C. de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. (Trad.: M. Carone). São Paulo: Cosacnaify, 2011.

FREUD, Sigmund. (1927) O futuro de uma ilusão. (Trad.: R. Zwick) Porto Alegre: L&PM, 2012.

LACAN, Jacques. (1952[1951]) Intervenção sobre a transferência. In: ____. Escritos (Trad.: V. Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

MITCHELL, Juliet. (1974) Sobre Freud e a distinção entre os sexos. In: ____. Psicanálise da sexualidade feminina. (Trad.: L. O. C. Lemos). Rio de Janeiro: Campus, 1988.

MONZANI, L. R. Freud: O movimento de um pensamento. Campinas: Editora da Unicamp, 1989.

PARENTE, Alessandra. Sublimação e Unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017.

Notas

1 Dora estava envolvida em um enredo que implicava, além de seu próprio pai, duas pessoas casa-das entre si que Freud nomeia “Sra. K” e “Sr. K”.

2 “Quanto maior o tempo que me separa do fim desta análise, mais provável me parece que meu erro técnico consistiu na seguinte omissão: eu não percebi a tempo e não comuniquei à paciente que a mais forte das correntes inconscientes de sua vida psíquica era o impulso amoroso homosse-xual (ginecófilo) relativo à Sra. K” (FREUD op. cit., p.317).

3 Cf., por exemplo, Freud 1927/2012, p.51-2

4 O termo é por vezes traduzido por “inquietante”, outras por “estranho” e ainda por “sinistro” ou por “ominoso”.

5 Cf. nota 38, p.318

Léa Silveira – Professora de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, MG, Brasil.  E-mail: [email protected]

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Modo mata moda. Arte, cuerpo y (micro)política en los 80 | Daniela Lucena e Gisela Laboureau

Modo mata moda. Arte, cuerpo y (micro)política en los 80 compilado por las sociólogas Daniela Lucena y Gisela Laboureau, y publicado por la Editorial de la Universidad de La Plata (Edulp), es un libro que nos pone en contacto con una multitud que revive a través de los recuerdos de las y los entrevistadas/os, y que permite conectar las experiencias de respuesta y resistencia al terror de la dictadura que gobernó entre 1976 y 1983 en la Argentina, y al silencio y represión que continuaron con el retorno de la democracia. Personas, lugares, alegrías y modos (más que moda, como el mismo título sugiere) se reúnen en los recuerdos y en los olvidos de los entrevistados y protagonistas de una Buenos Aires en los 80, descubriendo escenarios nuevos como el under, mientras todo afuera quedaba silenciado en vestimentas homologadas al gris-azul -como evidencia Katja Alemann (p. 77) en la entrevista-, enjaulados en la moda de los dictámenes militares, de los cuerpos disciplinados en conductas y apariencias dictadas para los jóvenes. El hilo que sigue el libro es, de hecho, una articulación entre la exigencia de la memoria y de la amnesia, como dice Manuel Hermelo a las entrevistadoras. Es decir, la necesidad de no olvidar las atrocidades que habían pasado, pero también la necesidad de olvidar para seguir adelante: “memoria y amnesia aparecían […] evocando recuerdos dolorosos, pero era indispensable interrogar esos otros recuerdos que habían quedado en algún lugar” (p. 37), explican las autoras. Gentes, prácticas, públicos, lugares, las noches porteñas de los 80 viven, respiran y hablan en las páginas del libro para entregarnos una voz subterránea que nos relata de una alegría necesaria durante y después del silencio del terror, una alegría restituida junto a las juventudes interrumpidas; páginas que nos relatan de como los cuerpos de ausentes volvían a tornarse presentes en la ciudad, lado a lado, en su importancia, peso y modos corporales. Se puede tocar, ver y sentir a través de una pluralidad nueva a la cual la modernidad occidental ha sido poco acostumbrada. Todo ello sin olvidar las ausencias de los cuerpos desaparecidos. Leia Mais

Máquinas/dispositivos/ agenciamientos. Arte/afecto y representación | José Luis Barrios

Ante este libro del Dr. José Luis Barrios, resulta problemático acudir a la operación acostumbrada cuando uno hace las veces de reseñista. Aludo, pues, al bosquejo realizado, con más o menos fortuna, en el que uno intenta pergeñar un marco de referencia. Y resulta problemático porque en el libro que nos ocupa el contenido está poniendo en tela de juicio este angosto y manido continente: se apela a una transgresión anatemática de la noción de marco en uno de sus emplazamientos críticos. En concreto, aquel que pone a dialogar la obra de Melanie Smith con la de Kazimir Malevich (Cuadrado rojo, imposible rosa): transgresión que resulta revulsivamente estético-política. En este sentido, quiero que se entienda este, de raíz torpe, conato de acuñar un marco de referencia en la dirección rizomática que plantea el propio libro (esto es, contra sí misma): un marco que es contigüidad copular en lugar de claustro, abertura que –en virtud de la vocación que le es inherente–, desata de modo recursivo las potencias suturantes que, contrarias a su naturaleza desplegada, pudiere albergar hacia noveles flujos semánticos. Leia Mais

L’arte Espansa – PERNIOLA (AF)

PERNIOLA, Mario. L’arte Espansa. Turín: Giulio Einaudi Editore, 2015. Resenha de: VEGA, José Fernández. Artefilosofia, Ouro Preto, n.22, jul., 2017.

La completa mercantilización del mundo del arte y la consolidación de un nuevo panorama donde la especificidad de la categoría “obra de arte” parece haber perdido su antiguo prestigio y nitidez, constituyen los temas centrales de L’arte espansa. La expansi ón a la que hace referencia el título volvió difusa la noción de arte y la proyectó sobre cualquier espacio social. Ya no son claras sus diferencias respecto de la publicidad, la decoración o el diseño industrial. Por otra parte, los artistas se han conver tido en “marcas” y se posicionan en el mercado como figuras del espectáculo. Esta situación es el resultado de un largo proceso que, para Perniola, se inicia a partir de la emergencia del Pop Art. Los artistas se volvieron celebridades, la figura del críti co o del teórico se hundió en la insignificancia y un conjunto de mediadores culturales – galeristas, curadores, coleccionistas, subastadores-se convirtieron en los verdaderos jueces de la legitimidad dentro del mundo del arte.

Desde un plano estético, p areciera que la tesis hegeliana de la “muerte del arte” consigue captar bien las condiciones del presente. Al mismo tiempo, la inflación que sufre el perfil del artista individual impresiona como un hiperbólico triunfo de las concepciones del romanticismo de los siglos XVIII y XIX que privilegiaban la subjetividad creadora. Pero, de manera paradójica, en el nuevo panorama se borró también la diferencia entre artista y no artista, puesto que una de las consecuencias del Pop fue que cualquiera puede autodenom inarse artista sin que la legitimidad de esa pretensión pueda ser cuestionada. Para aspirar a esa categoría ya no es preciso exhibir una trayectoria, sostener una poética, poseer una habilidad artesanal, tener una formación y ni siquiera realizar una obra (el arte conceptual llegó al punto de impulsar un arte sin obra). El mundo del arte está siendo devorado por sus propias contradicciones internas, sostiene Perniola. En el primer capítulo de su libro dedica considerable espacio para contrastar dos episod ios que juzga cruciales para ejemplificar la crisis del arte contemporáneo. El primero fue un proyecto de la galería Saatchi de Londres, una de las más relevantes del mundo en su género, que incorporaba a su página web a cualquiera que dijera ser artista. La propuesta se restringió luego, puesto que para aparecer publicado se debía pasar por un proceso previo de selección. El segundo episodio tuvo lugar en la edición 2013 de la Bienal de Venecia convocada bajo el título: “El palacio enciclopédico”. Su cur ador, Massimiliano Gioni, seleccionó 158 “artículos” (ya no los denominaba “obras”), algunos de los cuales Perniola describe a lo largo de varias páginas. Se trataba de proyectos de todo tipo difícilmente asimilables a lo que convencionalmente se denominab a arte y pretendían ampliar el campo y ofrecer una selección a la vez arbitraria y comprensiva. La idea se inspiraba en el ambicioso plan de un poco conocido estadounidense quien diseñó un museo, nunca construido, donde pretendía exhibir todo el conocimien to humano. El catálogo de la muestra no incluía intervenciones críticas, sino textos de cualquier otro género (narraciones, testimonios, etc). Esta Bienal señaló un cambio de paradigma que, según Perniola, puede compararse con la irrupción del Pop habitual mente asociada a una exhibición de 1964 que tuvo lugar en la galería de Leo Castelli en Nueva York. Esta edición de la Bienal cierra entonces un período que abarcó medio siglo y abre un otro que el autor denomina fringe. En él predominan los contornos borr osos, lo periférico puede ubicarse en el centro en cualquier momento y donde no es preciso ser un artista, mostrar obra o cumplir con los requisitos de legitimación tradicionales.

Ese nuevo período, signado por el populismo cultural y en el que la obra no es una credencial suficiente, despliega a la vez estrategias teóricas de justificación y comerciales de promoción. El anti-arte de las vanguardias históricas se volvió completamente institucional e incapaz de preservar su potencial crítico. Ahora todo pued e ser arte, afirma Perniola en su segundo capítulo, basta con que alguien lo afirme así. Viejas nociones como la de originalidad o belleza han caído en desuso. Contra visiones como la de la socióloga francesa Nathalie Heinrich quien lanzó el concepto de “a rtificación” para indicar la sobrevaloración del arte y su expansión ilimitada (arte de los enfermos mentales, de los niños, de los animales, etc.), Perniola propone la categoría de “artistización” (artistizzazione). Nada es arte en sí mismo. Los esfuerzos filosóficos de la estética para definir el arte y captar su esencia ya no conducen a ningún resultado. Se vuelve preciso dirigir la mirada hacia un proceso cultural en rápido cambio, donde los artistas se designan a sí mismos, el mercado se volvió un acto r central y las obras exigen un acompañamiento hermenéutico sin el cual no pueden sostenerse. Este proceso generó una multiplicación inaudita de ferias, bienales, museos de arte contemporáneo, artistas y tendencias mientras abre la posibilidad para que cualquier creador marginal ocupe posiciones en el campo. El t ercer capítulo del libro gira en torno de las teorías del psiquiatra Hans Prinzhorn (1886-1933) sobre el arte de los autistas y los esquizofrénicos. Perniola conecta estas producciones con el Art Brut defendido por Jean Dubuffet (1901-1985) para quien sólo los marginados sociales y psíquicos podían hacer verdadero arte. En los años 1990 estas concepciones derivaron en distintas corrientes afines, como por ejemplo el Outsider Art. Para Perniola, sin embargo, resulta preciso establecer la diferencia entre el arte de un enfermo mental, encerrado en su propio padecimiento, y el que produce un artista. En el capítulo siguiente – casi una conclusión — se argumenta que con la irrupción de un escenario fringe la distinción entre incluidos y excluidos se desmoronó y carece de sentido. Otra de las curiosas secuelas de la nueva condición del arte alude a la conservación de las obras contemporáneas. Muchas de ellas no sobreviven porque están realizadas expresamente para perimir o fueron elaboradas con materiales barat os. La conservación se volvió documentación, más adecuada para mantener registro de las acciones, performances e intervenciones de todo tipo que caracterizan a un arte en el cual también se revitalizó la idea romántica del fragmento vis-à-vis la obra acaba da predominante en la tradición occidental. El siglo XX que llevó a un clímax las ideas de novedad y actualidad del arte puede dejar como herencia solo ruinas, en claro contraste con el arte de los siglos previos. El arte contemporáneo, señala el autor, se burla de sí mismo y a la vez se burla de los valores estéticos del pasado. Pero esta actitud no puede sostenerse en el tiempo. Su impacto se diluye; se trata de una operación quizá ya agotada por Marcel Duchamp hace ya cien años.

Como balance ambivalente, Perniola considera que el arte contemporáneo es para-político (no auténticamente político, y en esto también encuentra una herencia romántica) y está animado por una ampliación populista de sus fronteras a partir de la cual todo puede ser obra y cualquier a puede llamarse artista. La inversa también resulta válida: nada es arte y nadie un artista. El giro fringe se insinuó ya en las vanguardias históricas del siglo XX, pero tomó verdadero impulso en los años sesenta. La culminación de este proceso, para el autor, se hizo manifiesta en la Bienal de Venecia de 2013.

En un epílogo, el autor comenta la siguiente edición de esa Bienal, que tuvo lugar en 2015 bajo la dirección de Okwui Enwezor, estadounidense oriundo de Nigeria, donde se realizaron lecturas de El Capital de Karl Marx. Allí también proliferaron artistas profesionales, pero en un nuevo sentido: egresados de universidades (de carreras de arte o de otras, como la premiada Adrian Piper, filósofa y autora de diversas obras en la disciplina). Emerge, ento nces, un artista-profesor-intelectual, vale decir, un académico diferente del artista académico que conoció la tradición. Otra nota distintiva es que los artistas provienen de todo el mundo, pero terminan su perfeccionamiento y lanzan sus carreras internac ionales desde los centros representados por EE. UU. y el norte de Europa (Perniola lamenta que Italia ya no figure en la geografía del arte).

L’arte espansa es un ensayo que discute la deriva del arte contemporáneo y se muestra implacable a la hora de denu nciar sus imposturas y su caída en la sociedad del espectáculo y de la cultura comercial. Escrito por un especialista en estética, critica la banalización del mundo del arte y el declive en su seno de todo pensamiento crítico. Sus tesis, animadas por una i ndignación poco novedosa, se pueden discutir, pero indudablemente se encuentran bien argumentadas y fundamentadas en un aparato erudito actualizado. Una evidente virtud de esta obra consiste en la combinación de reflexiones teóricas con asociaciones ligad as a la actualidad del arte y a su historia; pero en ocasiones dicha virtud amenaza con volverse un defecto pues Perniola dedica largas páginas a exponer distintas poéticas o puntos de vista, no siempre indispensables para su argumento. Otro problema del l ibro es que pretende abarcar demasiados fenómenos y esto debilita sus objetivos centrales. En ocasiones deja la impresión de que, siempre manteniendo un discurso a la vez coherente, crítico e informado, el autor salta de un tema a otro sin agotar ninguno.

Perniola no se deja influir por el esnobismo ni hace concesiones intelectuales, aunque su enfoque general no es enteramente original puesto que desde hace años se publican trabajos que embisten contra lo que consideran una nueva superficialidad de la cultu ra visual, ya completamente integrada al giro financiero y a la publicidad centrada en sus agentes antes que en sus realizaciones. L’arte espansa se ubicaría en un terreno intermedio dentro del panorama de la reflexión estética: es crítico pero no está esc rito desde una perspectiva cultural radicalmente conservadora. No comparte el optimismo de muchos agentes del mundo del arte. Ofrece una mirada derivada de un íntimo conocimiento del panorama artístico de la actualidad nada hostil a la teoría sino arraigad a en ella.

José Fernández Vega-Professor na CONICET – UBA. E-mail: [email protected]

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Páginas da arte, páginas da vida – DIAS (CN)

DIAS, Rosa. Páginas da arte, páginas da vida. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016. Resenha de: GONÇALVES, Alexander. Cadernos Nietzsche, v.38 n.1 São Paulo jan./abr. 2017

O tema da arte atravessa toda a produção bibliográfica de Rosa Dias. Desde o seu Nietzsche e a Música (Rio de Janeiro: Imago, 1994) até Nietzsche, vida como obra de arte (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011), a arte tem sido protagonista de uma reflexão que se move sempre no sentido de assumir o compromisso nietzschiano de superar os limites entre pensamento e vida, entre vida e arte. Em Páginas da vida, páginas da arte (Rio de Janeiro: Mauad X, 2016), este compromisso é uma vez mais afirmado e o resultado é uma obra cuja constituição teórica vem sempre acompanhada de um olhar sensível sobre a vida. Assim, os dez capítulos que compõem o livro apresentam a relação entre vida e arte de maneira programática e sob perspectivas teóricas diversas.

Já de início, em Homenagem ao professor Gerd Bornhein, o reconhecimento da autora ao intelectual gaúcho e seu importante legado para a filosofia e para a crítica da arte não está alheio ao sentimento de gratidão da aluna em relação ao mestre e educador, que pelos caminhos da vida diz ter encontrado a arte e que, pela via da arte, passou a pensar a vida.Em Uma filosofia do amor em Cartola, a crítica à atual situação de indiferença da cultura brasileira em relação aos seus “grandes homens”dá ensejo a considerações de notória inspiração nietzschiana acerca da obra de Angenor de Oliveira, o Cartola. Dentre elas, destaco aquela em que Rosa Dias sugere que a poesia e a música do compositor carioca emanam de um sentimento profundo de afirmação do amor, que também é, em última análise, afirmação da dor e do sofrimento, enfim, da própria vida em sua condição trágica. A relação entre arte e sociedade é o objeto dos dois capítulos seguintes, momento em que a autora investiga, com Platão e Aristóteles, o papel que a música desempenha na vida do homem grego.Em Música e tragédia no pensamento de Platão, a autora procura avaliar o intento platônico de provocar profundas transformações no ethos grego tomando como ponto de partida uma revolucionária normatização dos procedimentos musicais da cidade ideal. Já no que diz respeito às idéias musicais de Aristóteles, em A música no pensamento de Aristóteles a autora se ocupa de apresentar, além da função político-pedagógica que a música assume em Aristóteles – e que este herda do mestre ateniense uma nova função de natureza psicológica: a purificação. Assim, ao apontar para o lugar de preponderância que a música ocupa no pensamento e na vida dos helenos, seja no âmbito político-pedagógico da Paidéia platônica, seja no registro psicológico da catarse aristotélica, Rosa Dias põe a nu a indiferença hodierna no que tange a relação entre música e a vida assinalando o abismo interposto entre nós e os antigos. Em “O autor de si mesmo”: Machado de Assis, leitor de Schopenhauer, o ponto de partida da reflexão será a inspirada interpretação machadiana da “metafísica do amor” do filósofo de Danzig. Dias resgata de maneira muito precisa e interessante alguns pontos consoantes às visões de mundo dos dois autores para, a partir daí, demonstrar de que maneira o “grande drama da existência humana”, drama em que o amor é protagonista, é posto em cena no afã de explicitar o pessimismo constitutivo de ambos em relação à felicidade humana e à vida.“Ecos” da filosofia de schopenhaueriana “ressoam” também na obra do escritor francês Marcel Proust. Em Proust: um leitor de Schopenhauer, o esforço da autora consiste em demonstrar a influência do pensador alemão no modo como Proust compreende o processo de criação estética. A busca incansável do narrador proustiano pela matéria de sua literatura; os esforços empregados pelo escritor na tarefa de apreensão e fixação dos signos sensíveis de sua arte; tudo isso é analisado sob a perspectiva da “metafísica do belo” de Schopenhauer e avaliado segundo o modo como este filósofo pensa o processo de apreensão das essências das coisas e a sua reprodução na arte. Os quatro últimos capítulos, todos eles dedicados ao pensamento de Nietzsche, nos oferecem uma visão panorâmica do modo como o filósofo alemão tratou a relação entre a vida e a arte desde suas reflexões juvenis até a constituição de seu pensamento maduro, o que deixa evidente a familiaridade da autora com o tema e com o corpus nietzschiano.Assim, enquanto Metafísica do gênio nas extemporâneas de Nietzsche explora as teses que o jovem Nietzsche apresentou, sobretudo em sua Terceira Extemporânea, em torno da problemática da “estética do gênio”, Do Imaculado Conhecimento: “olhos ébrios de lua” procura investigar na obra madura, de maneira especial no Zaratustra, os desdobramentos desta alegoria contida no título no sentido de reconstituir a crítica que Nietzsche dirige ao conhecimento puro, teórico e abstrato.Na sequência, Arte e vida no pensamento de Nietzsche procura abordar de maneira direta a relação arte e vida. Como já é anunciado nas linhas iniciais, o escopo aqui consiste em explicitar a concepção de vida como obra de arte na obra de Nietzsche. Percebe-se aqui certa insuficiência analítica que talvez resulte da amplitude do corpus escolhido, o que resta à autora dar à questão um tratamento panorâmico tornando inviável qualquer análise mais exaustiva. O confronto entre Nietzsche e Bergson fecha o livro de Rosa Dias. Em A questão da criação em Nietzsche e Bergson, o objetivo consiste em avaliar este confronto a partir do conceito de “criação”, isto é, do modo com que cada um destes filósofos pensou a vida como ato criador e, talvez, como obra de arte.

Fruto de longa reflexão e trabalho duro, Páginas da vida, páginas da arte oferece ao leitor, numa linguagem leve e elegante, uma reflexão sensível e plena de estímulos acerca daquele que talvez seja, para Rosa Dias, o seu tema mais caro: a relação entre vida e arte.

Alexander Gonçalves – Professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Correio eletrônico: [email protected]

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A vista particular | Ricardo Lísias

Centro Livre de Expressão Intervenção na Praça da Sé SP 1979 e1594138843669

Centro de Livre Expressão (CLE), intervenção na Praça da Sé, em São Paulo, intitulada Páginas Escolhidas, um dos pré-eventos que anunciavam o Evento de Fim de Década, 1979.

A arte como intervenção é uma questão antiga, embora siga atual e relevante. E a literatura desempenha um papel muito especial nesse debate. Se o paradigma da ficção realista vem fazendo água há tanto tempo, é porque modernamente não caberia mais, à literatura, reproduzir com fidelidade o mundo. Ninguém hoje defende o romance como grande mural da sociedade burguesa, como se lhe coubesse, exclusivamente, desvendar o drama do sujeito num mundo individualizado. De forma diversa, o escritor moderno instaura, em pleno gozo do caráter artificial de sua produção, um outro mundo, encravando-o no que cotidianamente chamamos de realidade. Resta lembrar que o “modernamente”, aqui, refere-se a um projeto mais que centenário de literatura moderna. Ou talvez se trate de uma potência ainda mais antiga, que aponta para os primeiros tempos do que orgulhosamente chamamos de era moderna. Mesmo evitando a mitologia dos momentos fundacionais, é difícil escapar da ideia de que Cervantes terá sido um dos primeiros autores a brincar livremente com as traves do próprio artifício literário, vendo nelas uma espécie de prisão fantástica, invenção que ameaça tomar o sujeito para transformá-lo em outra coisa. Ninguém escapa do mundo ficcional moderno: nem os personagens, nem o escritor, que se torna, ele mesmo, personagem.

O trabalho minucioso diante dos limites da ficção não é novo para Ricardo Lísias. Mas está claro, ao menos para o autor, que o rótulo da “autoficção” é insuficiente para compreender sua prosa. Para além do debate sobre a autobiografia, o que está em questão, no caso de Lísias, não é a contaminação do texto pela “realidade” vivida pelo autor, mas sim a possibilidade de se inventar um mundo completamente diferente do nosso, embora, ao mesmo tempo, incrivelmente próximo e passível de reconhecimento. É como se identificássemos cada milímetro do que é narrado, enquanto somos levados, sub-repticiamente, a um universo de absurdos que nos faz pensar que o que vemos através das lentes da ficção não é real. Ou será real? Leia Mais

Arte e técnica em Heidegger – BORGES DUARTE (C-FA)

BORGES DUARTE, Irene. Arte e técnica em Heidegger. Lisboa: Documenta, 2014. Resenha de: PASQUALIN, Chiara, Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v .21, n.1, Jan./Jun., 2016.

O livro de Borges-Duarte propõe uma investigação límpida e rica sobre as questões entrelaçadas de arte e técnica, consideradas como fios condutores da reflexão heideggeriana posterior à Ontologia Fundamental. A contribuição original da autora não se endereça apenas aos especialistas de Heidegger, mas se apresenta também como uma imprescindível introdução ao pensamento do filósofo, pelo menos no que diz respeito ao período que vai desde inícios dos anos 1930 até o final dos anos 1960. Excluindo o primeiro capítulo, que oferece uma visão geral e introdutiva dos conteúdos apresentados, o volume reúne sete ensaios, concebidos originariamente como trabalhos autônomos, mas coesos em seus objetivos. Enfeitam o volume tanto a tradução inédita de alguns textos menos conhecidos de Heidegger, quanto a inserção de reproduções das obras de arte mais significativas a que Heidegger se refere nos seus escritos. Entramos, dessa maneira, não somente no processo genético da elaboração de algumas ideias centrais do filósofo, mas, especialmente, no seu “imaginário” íntimo, que é assim desvelado ao leitor.

O segundo capítulo se dedica à análise da entrevista concedida por Heidegger à revista alemã Der Spiegel em 1966, publicada postumamente. A autora lê esse breve texto não tanto como documento biográfico, mas como uma via de acesso preferencial aos densos assuntos do pensamento heideggeriano. Baseando-se no comentário da famosa afirmação heideggeriana “já só um deus nos pode ainda salvar”, a análise se concentra sobretudo na questão de qual salvação é ainda possível na época do atual domínio da técnica. Segundo a leitura proposta, o deus mencionado por Heidegger não deve ser confundido com qualquer representação histórico-religiosa de deus, mas circunscreve a dimensão do divino que sempre escapa ao controle e à manipulação do homem, não obstante o envolva na profundidade da sua essência. De acordo com a autora, não é, contudo, o próprio deus quem salva o homem. Uma tal perspectiva só iria reiterar a imagem tradicional de um deus todo-poderoso, invocado, como ex machina, para restaurar a ordem no caos produzido pelos homens. Pelo contrário, o que salva é o cultivo da recordação de deus, a saudade de nosso vínculo com algo que transcende o âmbito ôntico e o horizonte do manipulável. Nessa perspectiva, tornase claro o convite de Heidegger, sugerido pela entrevista, a colocar em prática um “outro pensar”, depois do fim da filosofia, que seja capaz de despertar o homem para aquela dimensão ulterior que permanece escondida no febril planejamento técnico.

O terceiro capítulo aborda a reflexão heideggeriana sobre a arte e pretende mostrar a sua importância para uma plena compreensão do ser humano. A esse respeito, a autora propõe uma reformulação do conceito de “ser-aí”, tradução corrente do termo alemão Dasein, que nos ajuda explicar o papel da arte na realização existencial: o Da-sein é o “aí-do-ser”, ou seja, o lugar em que o ser se manifesta e ilumina. A arte constitui uma modalidade exemplar por meio da qual o Dasein realiza esse seu posicionamento essencial, na medida em que, criando a obra, funda um espaço, um “aí”, para o descobrir-se do ser. Ao cumprir essa função, a arte tem, de acordo com a autora, uma vantagem sobre o pensamento. Se o pensar só raramente seria capaz de ser mais do que uma preparação da possibilidade do encontro homem-ser, na arte, diversamente, essa reunião se daria de maneira direta e imediata. Partindo dessas coordenadas gerais, o terceiro capítulo segue a evolução da longa reflexão heideggeriana sobre a arte, esclarecendo, em particular, o contexto especulativo – a exploração da verdade e do seu acontecer histórico-epocal – que leva Heidegger a focalizar a arte no começo dos anos 1930. A autora se afasta da tese de Pöggeler, segundo a qual a abordagem heideggeriana da arte seria uma simples fuga romântica depois da desilusão política (cf. Pöggeler, 1972), reivindicando, pelo contrário, a íntima ligação dessa abordagem com o percurso especulativo do filósofo e, sobretudo, a função privilegiada que ela vem a assumir servindo a Heidegger de premissa indispensável para a reflexão posterior sobre a técnica. Adotando uma perspectiva diacrônica, a autora defende que as conferências sobre a origem da obra de arte dos anos 1930 (Heidegger, 2002, pp.5-94) já contêm as linhas essenciais da concepção heideggeriana sobre a arte, a qual não seria depois posta em questão, mas só retocada parcialmente nos anos 1950 e 1960 para ser integrada à reflexão sobre a essência do mundo técnico e sobre a Quadrindade ( Geviert ). Para oferecer um exemplo e uma demonstração dessa tese, a autora passa a traduzir e analisar um breve texto heideggeriano do ano de 1955 sobre o quadro de Rafael, a Madonna Sixtina. Esse escrito não somente conteria todos os elementos-chave definidos na reflexão dos anos 1930, mas também acrescentaria tanto uma meditação mais consciente sobre o destino da obra de arte na época contemporânea, quanto a referência ao conceito de Quadrindade, implícito na ideia de um encontro entre o celestial e o terreno na imagem artística. O quarto capítulo se abre com a afirmação de que a consideração heideggeriana da arte está centrada, desde o começo até o final, na crença básica de que a obra representa o ponto de intersecção entre, por um lado, homem e ser e, por outro, entre humano e divino. Em cada fase da sua história, a arte continuaria a executar essa tarefa, oferecendo-se como manifestação do invisível, como espaço de epifania do sagrado. O que muda é, na visão da autora, a maneira como o homem, em diferentes épocas, experiencia o sagrado: se, no mundo grego, o homem parecia dócil e temeroso frente à poderosa manifestação divina, na época contemporânea ele tem apenas um contato frágil com o sagrado através das experiências da morte e da ausência. A autora estuda como exemplos desses dois extremos do processo histórico da arte, por um lado, a figura imponente do templo grego, referência favorita de Heidegger nos anos 1930; e, por outro, a arte minimalista de Klee, à qual o filósofo se aproxima, sobretudo na década de 1960, vendo, na obra do artista, um testemunho da arte pós-metafísica.

No quinto capítulo, a análise se dirige a duas traduções/interpretações que Heidegger conduz a respeito do primeiro estásimo da Antígona de Sófocles: em 1935, no contexto do curso Introdução à Metafísica e, em 1943, para preparar uma edição privada como presente de aniversário a sua esposa. Esse trabalho de assimilação do texto grego, de intensidade análoga àquele dedicado por Hölderlin à mesma fonte nos anos de 1799 e de 1802-1803, é considerado pela autora como um laboratório fundamental para a gênese da concepção heideggeriana da técnica. No comentário interpretativo do estásimo, desenvolvido no curso Introdução à Metafísica, começa a anunciar-se o interesse de Heidegger pela questão da técnica, a qual se tornará tema central a partir dos anos 1950. Com base no texto de Sófocles, Heidegger elabora uma ontologia da essência do humano como ser duplamente inquietante ( unheimlich ): num sentido positivo, ele é unheimlich em virtude do seu poder criador e violento que força o ser a manifestar-se no ente; por outro lado, o ser humano se revela terrível também num sentido negativo, podendo perverter a sua energia criativa num exercício de controle e de programação rígida que oprime a livre doação do ser. O sexto capítulo examina o particular estilo de pensar posto em prática nos Beiträge zur Philosophie de Heidegger. O problema que surgiu na elaboração dessa obra, e que deve ter sido um motivo para a decisão heideggeriana de não a publicar imediatamente, foi o de individuar uma linguagem adequada para captar e manifestar o Ereignis. A autora traduz esse conceito fundamental dos Beiträge como “acontecimento propício ”, destacando, assim, tanto o aspecto de apropriação recíproca (sublinhado na ressonância da raiz latina prope ), quanto a componente cairológica do instante propício em que acontecem simultaneamente o lance do ser ( Zuwurf ) e o projeto humano ( Entwurf ). Como o ser é em si indizível, o pensar que lhe pode dar voz é nomeado por Heidegger de “sigética” (com referência ao verbo grego sigân, “calar”) e é caracterizado, por um lado, como um acolher cauteloso e reservado, não impositivo; e, por outro, como um dizer não assertivo, mas questionador, aberto e itinerante. Esse estilo de pensamento, que deixa para trás os sistemas da metafísica, é enraizado no afeto fundamental ( Grundstimmung ) da reserva ( Verhaltenheit ), entendida como proximidade discreta e receptiva ao acontecimento do ser. O reconhecimento desse enraizamento do pensar na dimensão afetiva é bem detectado pela autora e a leva à justa intuição de identificar o medium da inter-relação entre ser e homem na disposição ( Stimmung ), na “porosidade afectiva” (p.151). Desse acolhimento afetivo do lance do ser surge um pensar que se configura como obra de arte arquitetônica ou musical, na medida em que ele oferece ao ser um espaço internamente construído e articulado (na sequência harmônica das chamadas “fugas”) para a sua manifestação.

No sétimo capítulo, expõe-se a concepção heideggeriana da técnica, com base no escrito Die Frage nach der Technik, publicado em 1954. Pensar a técnica representa a tarefa fundamental do “outro pensar”, pela qual Heidegger pretende ultrapassar a metafísica. Querendo imprimir à sua reflexão uma marca estritamente ontológica, Heidegger distancia-se tanto de uma abordagem ética, que implicaria uma tomada de posição a favor ou contra a técnica, quanto da concepção vulgar desse fenómeno enquanto instrumento funcional às finalidades humanas. A forma de relacionamento técnico em que o homem moderno está preso, ou seja, o desfrutamento calculador da natureza para fins de autoconservação, pode ser compreendida plenamente somente a partir do reconhecimento da essência da técnica, que consiste no chamado Ge-stell.

Segundo a autora, esse termo conceitual não é “infeliz”, mas é muito adequado, pois permite explicar três traços fundamentais da técnica. Em primeiro lugar, o prefixo ge revela que essa palavra define um conjunto de comportamentos sociais e humanos e que, aliás, é o resultado de um processo genético. Em segundo lugar, o verbo stellen evidencia o ato do pôr, que é ambivalente, pois indica tanto o “deixarser” da techne grega, isto é, o libertar a natureza para a sua luminosa manifestação no ente produzido, quanto a tendência a im -por, típica da racionalidade moderna.

Finalmente, Ge-stell traz à mente a Gestalt, a figura, sendo que a técnica é a forma, o esquema prévio aplicado à realidade para torná-la correspondente à exigência de uma vontade dominadora e interessada na conservação e no progresso do bemestar humano. A tradução mais apropriada para exprimir essa tripla determinação presente no termo Ge-stell é, de acordo com a autora, a de “com-posição”. Partindo dessa precisa análise lexical, a autora descreve a essência da técnica moderna como uma “estrutura estruturante”, pois ela é, ao mesmo tempo, tanto a configuração moderna da relação homem-ser e quanto aquilo que determina de antemão cada comportamento humano. Ao expor o raciocínio heideggeriano, a autora sublinha, enfim, a duplicidade, a natureza de Jano, da técnica moderna, a qual não representa somente o perigo extremo, enquanto esquecimento do ser, mas contém em si também a chance de salvação. Essa última repousa no vínculo originário homem-ser, que ainda é perceptível, embora fracamente, em nosso mundo técnico. A experiência repentina desse vínculo pode levar o homem a recuperar o sentido primitivo da técnica que estava em vigor no mungo grego, e a exercer um saber criativo, que não é mais um fazer opressivo, mas um pôr-se-em-obra da verdade.  No último capítulo do livro, a autora volta à questão da técnica e esclarece a sua íntima conexão com a da arte. Com a publicação do texto Die Frage nach der Technik, a meditação heideggeriana sobre a arte, iniciada nos anos 1930, chegaria ao seu pleno desdobramento. Nesse texto, seria trazido à luz e explicitado um elemento que, nas conferências dos anos 1930, ainda permanecia implícito: o da união profunda entre arte e técnica em virtude da sua comum proveniência, a techne grega. No seu sentido autêntico, arte e técnica são modos da techne, isto é, do pôr-se-em-obra da verdade do ser. Contudo, esse “pôr”, no mundo grego, correspondia, de maneira dócil e cheia de assombro, ao desencobrir-se do ser. Assim, foi apenas a partir da modernidade que se perdeu a capacidade de se surpreender, e que se afirmou a necessidade de certeza e segurança – a qual transformou o saber produtivo originário num ávido projeto calculador. A única salvação que se delineia para a nossa época é aquela que consiste na realização do “passo atrás”, isto é, na recuperação do perdido sentido antigo da técnica como saber produtivo, respeitoso da dinâmica de manifestação-retraimento do ser. Nisso resume-se, substancialmente, a mensagem da conferência de Atenas de 1967, intitulada A proveniência da Arte e a determinação do Pensar, cuja abordagem representa a conclusão do livro e o ápice da longa interrogação heideggeriana sobre a essência da arte. Depois dessa breve exposição das teses principais defendidas no texto, gostaríamos de apontar algumas questões que são aludidas pela autora, sem, contudo, ser objeto de uma tematização detalhada, e que estimulam possíveis caminhos para um aprofundamento futuro.

Para uma plena compreensão da reflexão heideggeriana sobre a arte, parecenos imprescindível levar em conta os Beiträge zur Philosophie, nos quais a arte é definida, ao lado de outros modos, como uma das vias de abrigo ( Bergung ) da verdade no ente. Dentre esses outros modos, é mencionada a fabricação de utensílios (cf. Heidegger, 2015, §32, p.73) 1, isto é, a técnica artesanal. Então, no conceito de Bergung, Heidegger pensa, já nos anos 1930, a essência comum da arte e da técnica, ambas as quais são, no seu sentido autêntico e primordial, produções capazes de incorporar a verdade do ser no ente produzido. Além disso, com os Beiträge, cujo projeto já está fixado no seu núcleo central em 1932, surge o primeiro contexto de investigação sobre a essência da técnica moderna, que aqui é designada como maquinação ( Machenschaft ). A esse respeito, não se pode esquecer que, dentre os sintomas da época da maquinação, é mencionado o generalizado mal-entendido acerca da essência da arte, a qual – observa Heidegger – está sujeita hoje ao consumo cultural e é reduzida a mero estimulador de vivências subjetivas ( Erlebnisse ) (cf.

idem, § 56, p.116; § 44, p.92). Essa referência aos Beiträge permite afirmar que, desde a sua primeira concepção, a reflexão heideggeriana sobre a arte está ligada à meditação sobre a técnica: o que Heidegger argumentará nos anos 1950 e 1960 é apenas um desenvolvimento mais amplo do que está contido de forma substancial nos Beiträge. Já nos anos da elaboração (desde 1932) e, depois, da redação dos Beiträge (1936-1938), Heidegger, portanto, não somente concebia a arte como uma maneira de abrigar a verdade ao lado da produção técnica de utensílios (no sentido da techne grega), como também estava perfeitamente ciente do risco ao qual a arte está submetida na época da maquinação. Mas isso não é tudo. Muitos anos antes da conferência de Atenas, Heidegger formulara de maneira explícita, embora ainda de forma interrogativa, a ideia de “uma outra origem da arte” (idem, § 277, p.489), isto é, a possibilidade de que ela volte a ser novamente um meio para a fundação da verdade. A confirmação dessa possibilidade parece vir das anotações heideggerianas sobre a arte de Klee. De fato, o artista personifica, aos olhos de Heidegger, a figura exemplar do “vindouro” (um dos poucos raros Zukünftige de que Heidegger fala nos Beiträge ). Enquanto vindouro, Klee está imerso no afeto fundamental da reserva e na experiência autêntica da morte e, por isso, está receptivo para o dar-se do ser e o acenar do “deus derradeiro ” ( letzter Gott ). Em última análise, vê-se que a própria obra dos Beiträge, e a filigrana conceitual aqui delineada, lançam luz sobre toda a sua produção posterior. É essa obra que representa a “chave hermenêutica” para compreender tanto a filosofia da arte heideggeriana quanto a reflexão sobre a técnica 2, mas, sobretudo – ao que nos parece – para entender a conexão entre elas.

Com a menção dos conceitos heideggerianos de afeto fundamental e de deus derradeiro, levantam-se duas outras questões que podem integrar, de maneira frutífera, o já rico conjunto de problemáticas abordadas pela autora: 1. para compreender a arte é necessário meditar de maneira essencial sobre a essência da Stimmung, do afeto ou da tonalidade; 2. a arte é possibilidade de abertura àquela que poderíamos chamar de “transcendência teológica”. Nesse contexto, pode-se oferecer só algumas sugestões nas duas direções mencionadas. No que diz respeito ao primeiro ponto, a possibilidade de “ uma outra origem da arte” parece-nos depender tanto da experiência real da Grundstimmung pelo artista e pelos espectadores, quanto de uma compreensão filosófica transformada, não-metafísica, da afetividade.

Se o sentir é reduzido a mero Erlebnis, isto é, a emoção superficial, autocentrada e pobre de verdade, a arte é destinada a sucumbir (cf. Heidegger, 2002, pp.85-6).

De fato, como emerge claramente do curso sobre os hinos de Hölderlin dos anos de 1934-1935 (cf. idem, 2004), a obra pode surgir somente de um afeto fundamental e da experiência de verdade que ele oferece. Isso significa que o saber produtivo autêntico, tanto aquele artístico quanto aquele técnico, está sempre fundado na Grundstimmung, pois a afetividade é o medium do encontro entre homem e ser (como já mencionado justamente, mas só brevemente, pela autora). Voltando ao segundo ponto, a arte possibilita a chamada “transcendência teológica”, isto é, a relação do homem com o divino, que transparece na ideia heideggeriana do deus derradeiro. O motivo dessa revelação concedida pela arte está implícito no fato de que a obra é o que funda a verdade do ser. Sabe-se, de fato, que já nos Beiträge Heidegger distingue o seu conceito de ser daquele de deus, e que ele considera o acontecimento do ser como o horizonte em que o deus se pode ainda manifestar (cf.idem, 2015, § 123, pp.236-238 e § 126, pp.239-240). Portanto, se a obra funda o ser, ela desenrola, assim, o horizonte em que o homem poderia, talvez, encontrar deus.

O desenvolvimento das duas questões delineadas precisaria, enfim, de um esclarecimento genuíno da Geworfenheit típica da obra de arte. A sua Geworfenheit não exprime somente o fato de que a obra está situada no âmbito mundano e está exposta ao consumo e à decadência. A Geworfenheit da arte sugere o que Platão, de maneira poética, exprimia na ideia da manía erótico-criativa enquanto dom de deus. Analogamente, a arte é, segundo Heidegger, sempre o fruto de uma dádiva que provém do ser. Além disso, o que se pode extrapolar da reflexão inteira do “segundo” Heidegger é a ideia de que esse lance do ser consiste na kháris, isto é, na dinâmica de uma Stimmung originária, sobre-humana e sobre-linguística, que é amor que possibilita, Mögen que ermöglicht (cf. Heidegger, 2005, p.12) 3. Seguindo essa linha de leitura, aqui só esboçada, a arte resulta ser, em última análise, a resposta hermenêutica possibilitada pelo acontecimento “pático” ou afetivo daquela doação originária.

Notas

1 Veja-se também: Heidegger, 2015, § 242, p.378; § 243, p.379

2 Veja-se: Herrmann Von, 1997, pp.75-86 e também Herrmann von, 1994.

3 Ver também: Heidegger, 2006, p.180.

Referências:

Heidegger, M.( 2002 ). “ A origem da obra de arte”. In: Caminhos de Floresta. BorgesDuarte, I. (ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

___________. (2004).Hinos de Hölderlin.Tradução de Lumir Nahodil.Lisboa: Instituto Piaget.

___________.(2005).Carta sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias São Paulo: Centauro.

___________.(2006).“…poeticamente o homem habita…”. In: Ensaios e conferências.Tradução de Emmanuel Carneiro Leã o, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. 3ª ed. Petrópolis: Vozes.

___________. ( 2015).Contribuições à filosofia (Do Acontecimento Apropriador) Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita.

Herrmann von, F.-W. ( 1994).Wege ins Ereignis. Zu Heideggers »Beiträgen zur Philosophie«. Frankfurt a.M.: Klostermann.

___________. (1997). „Die „Beiträge zur Philosophie“ als hermeneutischer Schlüssel zum Spä twerk Heideggers”. I n : H appel, M. ( Org.) Heidegger neu gelesen. Würzburg : Königshausen und Neumann, pp.75-86.

Pöggeler, O. (1972).Philosophie und Politik bei Heidegger. Friburg/München: Alber

Chiara Pasqualin – Universidade de São Paulo. [email protected]

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Rádio, arte e política – COSTA (REi)

COSTA, Mauro Sá Rego. Rádio, arte e política. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012. Resenha de: CORDEIRO, Salete de Fátima Noro. Revista Entreideias, Salvador, v. 4, n. 2, 162-171 jul./dez. 2015.

Mauro Costa reúne, nessa obra, vários de seus artigos, cuidadosamente selecionados para levar o leitor à reflexão sobre a importância e dinâmicas do rádio, ao longo do tempo até o contexto contemporâneo. No primeiro artigo, “Rádio Arte e Política”, o mesmo que dá título à obra, logo marca o tom da sua escrita, colocando o rádio, desde sua origem, como um meio universal que atinge grandes contingentes da população e, portanto, um instrumento cultural, artístico e político que pode chegar a qualquer cidadão, instruído ou não. Apresenta o rádio com seu caráter plural, sendo usado, tanto numa perspectiva autoritária, – a exemplo da rádio nazista e fascista na Alemanha e Itália respectivamente –, como libertária, a exemplo da radiodifusão nos EUA no início do século XX e das rádios livres na França e Itália em meados da década de 1970. O rádio ganha notável reconhecimento da população, uma vez que a comunicação passa a acontecer ultrapassando as barreiras geográficas, o que significa dizer que as pessoas começaram a se comunicar a longas distâncias sem a interferência do Estado ou de empresas. Em estilo contraventor ou reacionário, expande-se, principalmente quando começa a se difundir e servir de meio de comunicação livre nos EUA (comunicação entre rádios amadores).
Nesse caso, o Estado intervém através do “Ato do Rádio” legislação que obriga os rádios amadores a tirar licença e só permite a comunicação por ondas curtas, sob a alegação do Congresso americano de “interferências maliciosas”. Mera coincidência em relação aos atos de criminalização das rádios comunitárias nos dias atuais, tanto nos Estados Unidos como em diversas partes do mundo.

Essa restrição definia uma faixa do espectro muito limitada para uso, sob pena de multa para quem infringisse as regras, o que levou a um movimento pela liberdade de comunicação, produção e arte.

A luta pela liberdade de expressão através das rádios caminhou junto com sua clandestinidade, dando origem a criação de um repertório cada vez mais variado, entre eles, a emissão de propaganda, música e narrativas orais. Muitas rádios, ainda hoje, continuam clandestinidade, ou seja, sem licenças, pela grande burocratização das instituições reguladoras e pelos interesses políticos dos proprietários de rádios comerciais, que dificultam sua regulamentação.

Na França e na Itália, até os anos 1970, todas as rádios eram estatais. Somente após esse período é que as rádios comerciais começaram a surgir. Mauro Costa cita o exemplo da rádio “Alice,” uma rádio livre que surge em Bolonha, na Itália (1976-1977), como um projeto estético-político, sendo considerada contraventora para a época e tendo como um dos seus fundadores o ativista Franco Berardi (Bifo). Torna-se a primeira rádio livre de Bolonha, onde a contrainformação passa a ser o principal instrumento no desmascaramento do discurso do poder. O mesmo grupo que organiza a rádio “Alice”, organiza também a revista Altraverso, um grupo que, em meio aos movimentos políticos da época, buscava fazer uma outra política, ou pelo menos, constituir maneiras diferentes de fazê-la, através dos meios de comunicação, promovendo a circulação de informação e comunicação. Política e informação caminhavam juntas no pensamento desse grupo, onde, “informações falsas produzem eventos verdadeiros” (p.65).

Do ponto de vista teórico, Mauro Costa, apresenta os sentidos e significados, ou melhor, não sentidos e não significados, que envolvem a perspectiva de fazer uma rádio contraventora, que transmite contrainformação, que interage com ouvintes e que transmite silêncio. Embasado em Burroughs e Deleuze, toma a palavra como vírus e, dessa maneira, a palavra se espalharia e dominaria as narrativas e discursos, exercendo papel condicionante e de controle. Segundo ele, nós, seres humanos, já não comunicamos por nós mesmo, pelas nossas percepções, pelo real, mas pelo que a palavra fez da linguagem, “pedaços de linguagem” que vão se articulando e esparramando. Já não é o ser humano que fala, mas a palavra, o vírus. O que cria uma distância entre as palavras e a experiência. A mídia instituída fala por cada um de nós e nos retira a potência da linguagem, da comunicação. Segundo ele, o que vale é a experiência direta, adâmica, a que está antes da palavra, no silêncio. O vazio precede a palavra. Sentido e não sentido fazem parte de um mesmo agenciamento. Vazio é espaço de privilégio, onde os artistas estão no ato da criação, no momento da poiésis, onde esquecem os códigos, ultrapassam os limites da linguagem instituída e criam o inédito, o singular e o novo.

Esse lugar potente, que rompe com o instituído dando abertura para o nonsense, para a criação, é o que almejava a rádio “Alice” em termos de potência política, “ético-estética”. O silêncio do rádio é quebrar, abrir, fechar, cortar, interromper a linguagem feita da palavra vírus, escapar do controle, interromper a comunicação, linguagem que fala por todos. Abrir espaço para a construção de novas linguagens, possibilitando outras maneiras de comunicar, de pensar, de criar, de estabelecer relações outras, com valores pertencentes a cada um e aos seus coletivos.

A rádio “Alice” é uma rádio subversiva. “O problema real é o de criar novas condições culturais, cotidianas, vivenciais, relacionais, psíquicas para que um processo de auto-organização da sociedade possa se livrar das correntes do comando capitalista…”(67).

Ela está relacionada a uma política emergente, instituinte, micropolítica que não está relacionada a nada até então instituído, nem aos movimentos de direita nem de esquerda, nem ao capital, nem ao movimento trabalhador. O modelo político estético criado pela rádio “Alice”, potencializa a criação de zonas de auto-organização, onde cada coletivo passa a pensar e a descobrir sua expressão.

Ela remete diretamente, através da sua ousadia da sua performance e de seus repórteres, à invenção de linguagens e expressões, à uma outra arquitetura de rádio.
A “rádio Alice” é descrita como uma experiência paradigmática de comunicação, caracterizada sob uma abordagem teórica de lógica de sentido fundamentada em Deleuze e Guattari. Os meios políticos dessa rádio estão basicamente na forma, e não necessariamente no conteúdo, valorizando uma política de contrainformação, que se dá através de um rádio teatralizado. Foi uma experiência marcada pelo nonsense, cheia de paradoxos, fluxos, intensidades do ato de comunicar. Os meios radioelétricos deram o suporte para uma nova perspectiva de tempo que foi instaurado, uma comunicação instantânea, que valorizava um tempo contínuo através dos meios, a exemplo do uso do próprio telefone, que estabelecia uma comunicação em rede através da publicização da ligação ao vivo.

Pela primeira vez, aqueles que mobilizavam os movimentos político- artísticos e estéticos estavam utilizando uma mídia eletrônica e criando uma rede através das pessoas que circulavam pela cidade, pelos eventos e pelas manifestações. A comunicação podia acontecer através do rádio e do telefone que eram utilizados para criar interação com público ouvinte. Ela acontecia em tempo real, antes mesmo do surgimento da web, cobrindo uma diversidade muito grande de eventos e com uma proposta de produção de conteúdos e uma linguagem cheia de ineditismos.

Mauro Costa ainda menciona a publicação de um livro de Bifo, onde aparece, explicitamente, a intencionalidade da criação de uma política do movimento, com caráter não linear, mas múltiplo, convergindo para as mídias e para o rádio. Os escritos de Bifo são importantes pois falam das rádios livres da época (Itália e França) sob uma perspectiva de ruptura, muitas vozes no ar, mostrando que a cultura minoritária estava florescendo através do rádio.

Depois do fechamento da rádio “Alice” (1977), Bifo refugia-se na França e continua sua mobilização e militância através da escrita, ampliando a discussão do rádio até o surgimento do movimento da cibercultura, onde faz uma análise da internet como uma nova protagonista do sistema e das relações de poder, como em sua obra Mutazione e Cyberpunk (1994).

As rádios livres criavam essa dinâmica, trazendo o inusitado para a programação, compartilhamento com o público, potencializando um ambiente propício para a efervescência cultural.

No entanto, a sua legalização, imposta pelo governo italiano, causou o seu esfacelamento e sua completa derrocada. No momento em que o governo submete a existência das rádios livres a um estatuto, a sua institucionalização acaba com sua essência e sua liberdade.

Exigir conteúdos, audiência e qualidade retirava das emissoras sua liberdade criativa, a autonomia de produzir o que quisesse, sem a preocupação com expansão ou audiência. Esse é o panorama geral das rádios livres e da sua regulamentação também no Brasil.

Aqui, para pensar o funcionamento e legalização das rádios comunitárias, foi instaurada a Comissão de Comunicação, Tecnologia e Informática do Congresso Nacional que leva à aprovação da Lei nº 9.612, em 1998. Cabe ressaltar que a maioria da bancada parlamentar estava direta ou indiretamente ligada a empresas de rádio e televisão, o que deixa sua marca indelével na legislação.

As barreiras criadas pela legislação geram morosidade nos processos, fazendo com que muitas rádios permaneçam na clandestinidade, mesmo realizando um trabalho intenso e relevante em suas comunidades. Nas palavras de Mauro Costa, são “verdadeiros centros culturais populares” (p. 91), deles participando pessoas de todas as idades e gêneros, mas principalmente jovens. São as rádios que chegam e suprem o vazio deixado pelas políticas públicas de cultura, esporte, lazer, trabalho, entre outras, principalmente no que está relacionado às demandas da juventude.

Essa comunicação que nasce à margem da lei, produz uma outra realidade e emerge daí a presença, envolvimento e participação marcante dos jovens. O Ministério da Cultura, sensível a essa realidade e à necessidade de estimular a produção cultural envolvendo as tecnologias que estavam chegando naquele momento, cria os Pontos e os Pontões de Cultura e projetos para o desenvolvimento da cultura em comunidades populares.

Foi dentro desse contexto que aconteceu um evento denominado Radiofórum, no ano de 2008 em Londrina- PR, onde intelectuais de diversas áreas se reuniram pensando numa rádio que mexesse, sacudisse, fizesse um rebuliço com o instituído modo de pensar e de fazer rádio no Brasil. No momento em que as tecnologias digitais disponíveis propiciaram a transição para a incorporação das tecnologias da informação e comunicação e a criação das rádios web, o desejo desse grupo foi de construir uma rádio que ultrapassasse o modelo de transmitir informação (tempo, clima e trânsito), que realmente fosse um elemento provocador no sentido de quebrar esse cotidiano e principalmente, fazer pensar.

A partir do surgimento da internet, são criadas as rádios web, muitas delas impensáveis do ponto de vista político. A internet surge como espaço alternativo tanto para quem quer ouvir e acessar, como para quem quer produzir e disponibilizar conteúdos.

Tanto as rádios web como os sites de músicas, acabam sendo um local privilegiado de produção cultural dos jovens, pois eles são os primeiros a chegar e se engajar quando dos projetos de rádios comunitárias, por exemplo. Isso mostra, por um lado, um vácuo nas políticas públicas que não contemplam a população jovem em suas necessidades, principalmente em relação à cultura. Os jovens no Brasil fazem parte de uma massa de excluídos, de desempregados e de um grupo que faz aumentar os índices de violência.

As rádios livres e comunitárias estão diretamente ligadas a modos de resistência e, atreladas à tecnologia digital, vêm oferecer formas de produção de arte e cultura, e consequentemente, a produção de um trabalho imaterial.

No livro, Mauro Costa baseia-se em Toni Negri e Michael Hardt (xxx) para falar dessas formas de produção, trazendo para o centro do debate, as maneiras de cooperação ou colaboração que lhes são inerentes. A inteligência coletiva que é produzida através das redes não dispensa a necessidade de corpos e mentes. Muito pelo contrário, é formada por eles, trabalhando de maneira conjunta, tudo graças a essas tecnologias digitais que permitem o trabalho em rede, sem os constrangimentos espaço-temporais. É nas fendas, nas brechas, que essa parcela de excluídos do trabalho formal encontram táticas de sobrevivência diante do que as tecnologias digitais propiciam e da construção dessa inteligência coletiva, encontram maneiras de desenvolver outras atividades produtivas.

“Várias atividades produtivas vêm se articulando desta maneira, principalmente nos setores da juventude, estes que estão em situação de crise na relação como trabalho juridicamente regular” (p. 91). Para exemplificar essas formas de trabalho imaterial propostas ou criadas pela juventude, o autor registra três experiências: as rádios comunitárias, o hip-hop e a produção de artes plásticas por coletivos independentes.

A primeira experiência descrita pelo autor são as rádios comunitárias, e traz como exemplo a rádio web Musicadiscreta, que produz programas sobre música, acontecimentos e personagens de vários estilos musicais até passeios etnomusicais; a Rádio Pacífica- NY-EUA, uma rádio comunitária nos Estado Unidos que, bem diferente da legislação daqui, permite que rádios comunitárias operem em rede, tudo com financiamento dos ouvintes. Cita ainda o site Sussurro, uma biblioteca musical de acesso livre criada pelo professor da UFRJ Rodolfo Caesar, que disponibiliza músicas e documentos, artigos, programas de rádio, uma variedade de conteúdos e gêneros musicais. Como, por exemplo, a Boomshot- SP, criada por um fã do hip-hop, que frequenta os espaços desse ritmo e faz das pessoas aí presentes seus entrevistados. Seus programas realizados ao vivo ficam disponíveis para download no site. Na onda do hip-hop, e seguindo a proposta de compartilhar conteúdos livres, o autor cita Bocada Forte, Rap Nacional e Só Pedrada Musical, que também possuem a característica de serem espaços alternativos, não seguindo padrões instituídos ao modelo da indústria fonográfica, onde os artistas trocam, compartilham e disponibilizam suas músicas, seus mixtapes. Suas músicas circulam pelas redes globais, onde muitas vezes ficam conhecidos, ganham prestígio na comunidade e são chamadas para fazer seu trabalho, instaurando-se assim, circuitos paralelos de construção de cultura.

A segunda experiência é o contexto de produção e circulação do hip-hop, que apresenta-se como contracultura, já que sua existência não está vinculada ao apoio de nenhuma organização institucional. Todo o processo de construção da música acontece através de uma auto-organização do coletivo, que promovem encontros, eventos, oficinas, onde uns vão passando/compartilham as técnicas e saberes para/com os outros.

A terceira experiência citada por Mauro Costa refere-se ao Coletivo Imaginário Periférico. Trata-se de um grupo de artistas plásticos, que desenvolve seu trabalho dentro de uma linguagem contemporânea de arte. Também não está atrelado a nenhum órgão ou entidade instituído no campo da cultura ou da arte, como por exemplo, escolas ou museus, mas é um grupo que se auto organiza através de eventos de arte e ateliês coletivos. É a partir desses espaços, mais alternativos, que as trocas e as aprendizagens acontecem.

Seguindo essa lógica de produção e compartilhamento, inúmeros sites são criados na web, dando oportunidade de acesso a uma grande variedade de produções sonoras, gêneros radiofônicos, programas de radioarte e radiodrama, documentários sonoros, paisagens e poesia sonoras, além da possibilidade de abertura de canais para discutir essas produções artísticas, teóricas e culturais.

Dentro dessa perspectiva plural de produzir rádio, o autor discute acerca do pensamento sobre a escuta, o som e a arte do rádio, um campo teórico pouco explorado ou inexistente. A Utilização do rádio, limitado muitas vezes ao campo da música, como em “arte dos ruídos” de Luigi Russolo e “a libertação dos sons” de Edgar Varèse, se por um lado buscava renovar a arte musical, restringia a liberdade de escuta do que seriam os elementos fundamentais para as experiências sensoriais, da busca do ruído como som em si. Segundo Mauro Costa “a não separação de uma arte do rádio ou da escuta, da arte da música, impediu, até recentemente, o desenvolvimento de critérios de leitura (de audição) próprios dela” (p. 22). Isso quer dizer que toda a codificação ou busca de pureza nos ruídos só prejudicou o desenvolvimento de outras maneiras de perceber, tratar, produzir sons e desenvolver uma teoria da escuta.

Ele traz exemplos de compositores que vão buscar suas experiências sensoriais nos estúdios de rádio, nas experiências acústicas que esse meio proporciona, resgatando inspiração e técnicas para desenvolverem suas composições, como o caso de Pierre Schaeffer que desenvolve a sua “música concreta”, proporcionando o desenvolvimento do pensamento sobre a escuta livre, ou de François Bayle, que a partir dessa senda, inicia os trabalhos que levam ao estudo da percepção auditiva ligada à cognição. Por fim, cita o compositor e teórico da educação Murray Schafer, que cria o conceito de “paisagem sonora” contemplando aspectos estéticos e ecológicos que envolvem os ambientes sonoros. A ecologia acústica, estudo desenvolvido por esse intelectual, propõe uma educação da escuta, uma atenção consciente do ambiente sonoro em que habitamos, através da educação que atingiria um grande contingente, que envolveria, pelo menos, três aspectos: desenvolver uma melhor percepção sonora desses cidadãos e dos espaços que habitam; tomar consciência de que cada um de nós somos coautores da produção sonora que nos cerca; e da percepção da produção de poluição sonora (esse programa teria ambição de abranger a educação e a saúde pública). Por outro lado, a educação da escuta do ambiente a nossa volta, encaminharia novos desafios de percepção sonora, abrindo para outras “linguagens musicais pós-tonais”, “ritmos não regulares” e desenvolvimento cognitivo. O interesse por essa área do conhecimento levou o autor a aprofundar os estudos, levando em consideração a criação de novas narrativas e principalmente de uma experiência estética, dando origem, então, a vários eventos e projetos, como o Laboratório de Rádio da UERJ/ Baixada, na Faculdade de Educação.

O livro ainda contém uma entrevista com Murray Schafer, onde aborda a origem do projeto “paisagens sonoras das cidades”, um projeto mundial que saiu de uma proposta de ensino no Departamento de Comunicação da Universidade Simon Frazer, no Canadá, e toma com espaço de trabalho a própria cidade.

O projeto estuda não apenas os sons musicais, mas qualquer tipo de som, ruído que faça parte do cotidiano, ou o que ele chama de “paisagem sonora”. Essa é entendida como algo dinâmico, móvel e, portanto, merece ser estudada, já que esses sons cotidianos estão mudando e afetando o comportamento dos cidadãos. O primeiro desses estudos foi feito em Vancouver/Canadá, e os restantes em outras cidades do mundo, evidenciando a diferença sonora presente em cada uma delas.
O rádio passa a ser entendido como um meio onde essas experiências podem ser compartilhadas e estimuladas. Isso tudo, segundo Mauro Costa, pode levar a um aprofundamento da experiência sonora ao ponto de falar em um “rádio fenomenológico”, que seria um tipo de rádio com uma programação com menor interferência possível ou sem interferência de quem o faz (colocar o microfone em um espaço e não interferir, apenas transmitir para outros espaços), o que levaria à criação de singularidades acústicas/ sonoras expressando a paisagem de cada lugar a partir dos sons que são específicos e característicos de cada região ou localidade.
O texto de Mauro Costa ainda ressalta o brilhantismo e ineditismo nas composições e instalações musicais de John Cage e relaciona seu pensamento ao de Deleuze e Guattari em muitos aspectos, entre eles a concepção de uma lógica pervasiva, que vai equiparar som e silêncio, quebrar a noção de espaço e de tempo da modernidade (tempo presente, passado e futuro) e dar espaço para o acaso, onde qualquer coisa pode acontecer durante a elaboração da obra, não havendo predominância de qualquer interpretação ou qualquer gosto do artista. Estabelece um paradoxo entre silêncio e som, caracterizado pelo tempo de duração, onde “nenhum som teme o silêncio que o extingue. E nenhum silêncio existe que não esteja pregnante de som.” (p. 51) O conteúdo de sua construção musical reúne sons musicais e ruídos registrados a partir dos meios eletrônicos, uma música inédita “sem propósito, aleatória, intempestiva, rompendo a barreira entre arte e vida, a música e os sons da vida, das ruas, do cotidiano-aprender a ouvir o mundo” (p. 40).

A perspectiva de Cage trata da desconstrução do compositor/autor diante dos equipamentos de áudio, especialmente o rádio, ou seja, é retirada a centralidade do artista no processo de criação. Entre as várias obras sonoras, criadas por Cage, fica marcante a diversidade na introdução, apresentação ou utilização do rádio. Ele acreditava que a música do futuro seria produzida a partir de instrumentos elétricos, sendo o rádio um dos principais instrumentos de trabalho do artista. Cage é considerado o inventor da radioarte, antes mesmo de ser criado esse conceito.

É discutido na obra de Mauro Costa, o rádio com grande potencial educacional, mas que enfrenta dificuldade de se desprender dos modelos padronizados e comerciais de fazer a programação.

Muitas vezes os programas têm um conteúdo revolucionário, mas seus formatos reproduzem padrões, não apresentam outras estéticas possíveis, outras vozes que destoem de um modelo predeterminado, ampliando as experiências possíveis nesse campo.

A leitura dessa obra é interessante para todos aqueles que estão buscando experiências outras de produzir conteúdos sonoros e comunicação; para aqueles preocupados com a construção de uma educação de resistência, colaboração e, ao mesmo tempo, de sensibilidade da escuta.

Salete de Fátima Noro Cordeiro – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

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Ciência e arte: a trajetória de Lilly Ebstein Lowenstein entre Berlim e São Paulo (1910-1960) – CYTRYNOWICZ M; CYTRYNOWICZ R (HCS-M)

CYTRYNOWICZ, Monica Musatti; CYTRYNOWICZ, Roney. Ciência e arte: a trajetória de Lilly Ebstein Lowenstein entre Berlim e São Paulo (1910-1960). São Paulo: Narrativa UM, 2013. 238p. Resenha de: LACERDA, Aline Lopes de. Arte e técnica a serviço do conhecimento: as ilustrações científicas. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.22, n.3, July/Sept. 2015.

Art and technique at the service of knowledge: the scientific illustrations

Para uma abordagem reflexiva sobre os usos e funções de ilustrações nas atividades científicas, podem ser adotadas diversas perspectivas de análise. A mesma pluralidade de enfoques está presente nos estudos sobre o desenvolvimento do papel da representação figurativa como dispositivo didático na trajetória da ciência como campo de conhecimento.

É possível, por exemplo, investigar essa rica relação na perspectiva da avaliação do papel das imagens na produção e divulgação do conhecimento. Imagens tanto produzidas manualmente quanto provenientes dos principais dispositivos técnicos de representação visual disponíveis, principalmente a partir do século XIX. Em um passo adiante, é possível estudar a própria constituição de uma forma mediadora de alcance do conhecimento da ciência na sua dimensão propriamente visual, que se tornará permanente e irremediavelmente associada ao trabalho científico. Assim, as interconexões entre a escrita científica e as ilustrações que a acompanham são debatidas por linhas de estudos que discutem as dimensões artísticas, pedagógicas, de popularização e difusão do conhecimento científico conjugadas no exercício de ilustrar por meio de imagens. As funções das ilustrações parecem ser tema que gravita em torno dessas discussões (Fabris, Kern, 2006).

É possível também abordar as conexões entre ciência e arte numa perspectiva de desenvolvimento institucional do ofício do desenhista ou ilustrador científico. No caso do Brasil, o foco incidiria sobre a institucionalização da ciência no país, principalmente na última metade do século XIX e, sobretudo, durante o século XX, quando são formados e consolidados institucionalmente centros importantes de produção científica em várias áreas. Nesse processo, as práticas científicas são também desenvolvidas de forma a dotar os trabalhos do rigor e da excelência pretendidos. Certos ofícios são requeridos como peças fundamentais ao desenvolvimento dos próprios trabalhos científicos nos seus cenários principais – laboratórios e trabalhos em campo – e, fundamentalmente, para compor o discurso científico a ser registrado, traduzido figurativamente, utilizado como prova, divulgado, ensinado e, finalmente, arquivado. Todas essas funções estão embutidas na valorização, nos espaços edificados para o trabalho científico, na existência de setores de desenho, fotografia, cartografia e de profissionais habilitados para exercer a função de “tradutores” entre linguagens distintas.

E é igualmente possível refletir sobre o tema das ilustrações científicas a partir da reconstituição analítica de uma trajetória individual, cujo ator foi peça importante em sua área de atuação, com projeção e reconhecimento entre os pares e que tenha desenvolvido um trabalho constante, alinhado às questões maiores – institucionais, profissionais, estéticas, técnicas – que constituem o contexto do modo de exercer o ofício no seu tempo.

O livro Ciência e artea trajetória de Lilly Ebstein Lowenstein entre Berlim e São Paulo (1910-1960), de Monica Musatti Cytrynowicz e Roney Cytrynowicz, parte desta última forma de abordagem, mas articula elementos analíticos das três possíveis abordagens apresentadas acima. Tendo como mola propulsora o desejo da neta de Lilly Ebstein Lowenstein – e guardiã de sua memória – de reconstruir a trajetória da avó, o livro serve de veículo para o acionamento da lembrança no âmbito familiar e a transformação dessa lembrança em memória compartilhada por meio de pesquisa e análise dos registros que dão suporte empírico à narrativa analítica presente na obra.

No caso de Lilly, a essas dimensões das relações entre imagem e conhecimento científico que seu trabalho oferece como fonte vêm se somar aspectos singulares de sua trajetória. Imigrante alemã que chega ao Brasil em 1925, formou-se, ainda em Berlim, em escola para moças que oferecia estudo técnico e científico no campo do desenho, da fotografia e das técnicas operacionais envolvendo essas áreas. Ao mesmo tempo mulher, imigrante e portando as credenciais necessárias para atuar profissionalmente no campo da ilustração científica, se insere como profissional em instituições científicas renomadas no Brasil e conquista uma carreira reconhecida num espaço profissional predominantemente masculino. Nas palavras dos autores na introdução do livro,

a trajetória de Lilly Ebstein Lowenstein pode ser narrada sob várias perspectivas que se integram e se entrelaçam. A primeira delas é a de uma vida que sintetiza o percurso das mulheres nas primeiras décadas do século 20, período de consolidação da emancipação e do acesso ao estudo e às profissões técnicas em países como a Alemanha, onde Lilly realizou a sua formação … A trajetória de Lilly é também a de uma mulher profissional, entre a ciência e a arte, que se lançou à imigração no Novo Mundo e conquistou um lugar de reconhecimento social, profissional e intelectual … É também uma trajetória no mundo da ciência e da pesquisa científica (p.11).

Fartamente ilustrado, como era de esperar, o livro não se atém apenas à exploração dos desenhos e ilustrações produzidos por Lilly – todos de técnica e estética impecáveis – e articula bem diversos tipos de fontes provenientes de ampla pesquisa documental. Todos os registros transformados, por sua vez, em imagens que integram uma boa narrativa visual que, em paralelo ao texto escrito, contribui para dar forma ao todo, ao objetivo do livro, o de oferecer múltiplos caminhos de observação dessa trajetória permeada pela interpenetração de aspectos tão singulares.

Partindo de dois documentos pessoais da desenhista – sua certidão de nascimento e seu boletim escolar – a pesquisa documental articula registros provenientes de diversos locais que Lilly percorreu, num movimento de construção narrativa biográfica multifacetada do ponto de vista da exploração das fontes, o que é um ponto alto do livro.

O leitor acompanha os primeiros estudos de sua formação técnica, ainda na década de 1910, numa escola em Berlim que investe na formação sistematizada dos “fotomicrógrafos”. No capítulo dedicado à formação de Lilly na Escola Lette-Verein ficam evidentes as conexões do olhar instrumental valorizado pelo domínio dos novos dispositivos técnicos de captação de imagens – e a fotografia é o centro desse universo no período – com a área da medicina. Não bastava o domínio técnico de obtenção da imagem, era esperado também o entendimento mais profundo, pelo operador, do objeto a ser representado. Um pré-requisito na formação técnica era o conhecimento nas áreas biomédica e botânica para que o ilustrador científico entendesse o objeto que estivesse retratando. Em consequência, durante a sua formação na Alemanha, a desenhista é obrigada a conhecer anatomia, por exemplo, o que a torna representante de uma formação técnica com forte embasamento científico, aspecto que se reflete em seu trabalho. O livro explora bem o preparo e a formação pelas quais Lilly passou para ter destreza no ofício de fotomicrografia. As técnicas para a elaboração dos registros visuais variavam, passando por colorização manual de fotos, por produção de desenhos a partir de fotos etc. Era necessário, ainda, ter um domínio técnico sobre o uso de lentes, de revelação, bem como de formatos e suportes fotográficos.

Sua vinda para o Brasil e seu ingresso na Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo em 1926 – onde em pouco tempo se projeta como a principal desenhista e fotomicrógrafa – ocorrem num contexto de transformação do próprio campo científico, consubstanciado no incremento de pesquisas básicas, de atividades em laboratório, preconizados por uma medicina experimental. Esse contexto de desenvolvimento dos trabalhos científicos em outras bases metodológicas confere valor ao desenho científico como atividade integrante da estrutura operacional das instituições de ciência. Segundo os autores do livro, na Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo o desenho científico ganha novo status pelas publicações, nas quais servia a diversas cadeiras da faculdade, como anatomia descritiva e topográfica, anatomia patológica (parasitologia, microbiologia, embriologia, histologia, técnica cirúrgica, clínica cirúrgica etc.). Havia igualmente demanda por ilustrações nas teses defendidas.

Alguns detalhes ajudam a entender o processo de profissionalização de Lilly. O uso de créditos nos trabalhos é um deles. No período, era comum a ausência de créditos nas ilustrações. Em muitos casos, os próprios professores ou cientistas ilustravam seus trabalhos. Para os autores do livro, a presença de créditos nos trabalhos de Lilly, mesmo considerando a existência de trabalhos seus sem assinatura, é um indício de reconhecimento do desenho científico como atividade autônoma, conferindo a esse trabalho estatuto científico e profissional.

O trabalho se vale de pesquisa bastante minuciosa e ao mesmo tempo abrangente em termos de escolha de fontes e uso das informações obtidas. Por exemplo, os autores recorrem ao levantamento, no Diário Oficial da União, dos proventos recebidos nos cargos ocupados por Lilly no período – no caso, desenhista micrógrafo – para, numa análise comparativa com outros cargos na mesma instituição, inclusive de direção, aferir a importância da atividade pela remuneração a ela conferida (que era alta à época!).

Em relação às funções mais gerais atribuídas às ilustrações científicas, o livro levanta aspectos interessantes. Um deles é a centralidade que a imagem técnica assume como veículo dos registros, por se apresentar como um discurso visual mais objetivado, nos trabalhos científicos em todas as áreas. A fotografia, nesse sentido, considerada a reprodução exata e fidedigna do modelo, abre caminhos de descrição, de registro e de arquivamento bastante úteis ao método científico (Fabris, 2002, p.33). Mas e o papel do desenho nesse processo? Muito antes do advento das imagens técnicas, ele era o principal meio de representação. Se, por um lado, a representação claramente mediada pela mão humana se vê objeto de críticas na comparação com as novas formas de representação objetivas, por outro, nas ilustrações científicas, é ainda o desenho que desempenha determinados papéis didáticos e de divulgação de difícil transferência às fotografias, como o livro demonstra.

É interessante observar que a busca do “realismo instrumental” (Fabris, 2002, p.39), que impulsiona o uso das imagens fotográficas nos trabalhos científicos, não se impõe como conduta absoluta, uma vez em que nem sempre o “efeito de real” fazia face à performance requerida da representação visual nos inúmeros trabalhos desenvolvidos. Em algumas funções, as linhas dos desenhos foram facilmente substituídas por essas imagens mais realistas obtidas por contrastes de luz. Esse é o caso das imagens microscópicas que inauguraram a possibilidade de acesso ao que era imperceptível à visão humana ao mesmo tempo em que propiciavam o registro para o trabalho descritivo e analítico a partir dos elementos constitutivos do objeto retratado tornados realidade visualmente observável. Segundo Frizot (1998, p.276-277), “o progresso científico alcançado dependia não apenas do acesso ao invisível como também da transcrição do que foi feito visível opticamente – em termos de forma, diferença de material, limitações de substância – e sobre a explicação dessas diferenças”. Ao reter as qualidades do original, o registro fotográfico permitia a sua revisão e reinterpretação, funções caras ao métier científico.

Já o desenho, segundo Correia (2011), mantém algumas vantagens sobre as fotografias, principalmente nas funções didáticas – explicativas, de síntese ou de guia –, a partir da imagem de um objeto ou fenômeno cujo conhecimento se pretende transmitir. O objetivo da ilustração científica, notadamente do desenho, seria representar tipificando o objeto ou fenômeno, o “elucidativo/representativo” do objeto em causa, com vistas a facilitar o seu reconhecimento (Correia, 2011, p.228). Essa performance específica atingida pela ilustração manual fica evidente nas palavras do Dr. Mario Marco Napoli, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP e ali estudante entre 1941 e 1946, citado em depoimento no livro, “o desenho tem a vantagem de documentar com pormenores que interessam e era bem mais real do que a fotografia, que não atingia esse resultado. … O que vale na medicina é a documentação. Por mais que a gente descreva, nunca é como o desenho, que fala, demonstra” (p.105).

Especificidades à parte, desenhos e fotografias se uniam na busca pela construção do discurso científico num processo que também alimentava a articulação discursiva desses dispositivos como arquivos da ciência. No caso em questão, as ilustrações, segundo os autores do livro, seriam, portanto, “parte importante do projeto de consolidação do ensino na Faculdade de Medicina, já que as imagens sistematizavam as práticas e permitiam a sua reprodução com exata precisão, seja para a identificação de uma doença, seu diagnóstico, seja seu tratamento, sejam as cirurgias, o que era ensinado em aulas práticas nas quais os alunos observavam e participavam e, principalmente, nas pesquisas” (p.74).

Acompanhando a linha cronológica do livro, em 1934 a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo passa a fazer parte da Universidade de São Paulo, e, nesse processo, Lilly torna-se então funcionária da universidade. Nessa mesma época naturaliza-se brasileira. Em 1944 passa a colaborar profissionalmente para o Hospital das Clínicas, associado à Faculdade de Medicina. Torna-se chefe do Departamento de Desenho e Fotografia e ministra cursos preparatórios de assistentes de documentação científica em desenho e fotografia, num movimento de formação de mão de obra para o ofício. Envolve-se na atividade de ilustração de anatomia com o Dr. Alfonso Bovero, responsável pela cátedra de Anatomia na Faculdade de Medicina, passando a produzir trabalhos de ilustração para as pesquisas de Bovero, bem como de muitos de seus discípulos, utilizando o desenho e a fotomicrografia.

A partir da década de 1930, Lilly passa a colaborar com o Instituto Biológico de São Paulo, fundado em 1927 com vistas ao combate à broca do café. Tendo como primeiro diretor Arthur Neiva, o instituto passa a ter Lilly como ilustradora atuante para a sua seção de anatomia patológica, vinculada à Divisão Animal do instituto. Essa fase foi marcada sobretudo pela parceria que Lilly estabelece com o médico e pesquisador José Reis, atuante nos estudos da ornitopatologia. A função das ilustrações produzidas nesse trabalho era integrar folhetos impressos para distribuição a produtores rurais, com o objetivo de ilustrar procedimentos no trato com o controle de doenças na criação de animais. Nesse veículo científico encontravam-se conjugados os aspectos de “divulgação” de conhecimento acumulado nas pesquisas médicas do instituto; de “veículo pedagógico”, posto que os folhetos visavam informar o melhor procedimento e ensinar a sua reprodução no trato com os animais (desde a forma de criação dos animais, passando pela identificação dos sintomas das doenças, até a conduta a ser seguida no tratamento); e de “veículo de popularização” do conhecimento científico, uma vez que eram construídos esquemas, tanto de detecção de doenças quanto de formas de seu tratamento. Os desenhos cumpriam a função de descrever visualmente os métodos a seguir observando um público heterogêneo de criadores de animais, complementando a descrição textual com detalhes descritivos só possíveis de ser apreendidos por meio da narrativa visual. Interessante pensar na presença de um ideal de receptor para as ilustrações, orientando o desenhista na construção da representação visual a ser veiculada nos diferentes tipos de publicações, seja ela para públicos especializados, seja para públicos mais amplos. Sobre essa questão, a da consciência de um tipo de público a que se destina a publicação na própria idealização e produção do registro visual pelo artista, é interessante citarmos o trabalho de Oliveira e Conduru (2004. p.336-338), no qual afirmam que o uso cognitivo da imagem é sempre ligado à ideia de um leitor, de um perfil de consumidor da informação visualmente registrada. Todo um aparato sintático é articulado no sentido de produzir um discurso visual com objetivo claro: a representação deve manter com o referente uma relação de verossimilhança e, ao mesmo tempo, abordá-lo do ponto de vista de quem quer explicar mostrando. As formas figurativas podem ser variadas, mas a sua função nos trabalhos científicos é sempre caracterizar o objeto, restringindo as possibilidades de interpretações subjetivas num discurso que se pretende objetivado.

Lilly se aposenta em 1955, completando 29 anos de atividade na Universidade de São Paulo. Seu último e grande trabalho é o livro de anatomia topográfica de Odorico Machado de Souza, anatomista e professor da Faculdade de Medicina, intitulado Anatomia topográficaParte Especial. Membro Superior, de 1956. Os originais que serviram a essa publicação hoje estão reunidos em um álbum e, segundo os autores, se “constitui [n]o mais completo conjunto de desenhos originais de Medicina realizados por Lilly (p.155). Ainda segundo os autores, trata-se de um trabalho clássico de desenho de anatomia que se insere na tradição histórica de desenhos desse tipo produzidos desde 1543 pelo famoso anatomista Andreas Vesalius.

O livro dedica o último capítulo à discussão sobre o uso da fotomicrografia nos trabalhos científicos, técnica fotográfica de obtenção de imagens ampliadas que permite o registro das imagens captadas pelo microscópio. Seu uso nos trabalhos científicos significou a possibilidade de observação de detalhes de estruturas invisíveis à observação visual humana, tais como células e micróbios. Assim, um inventário visual de tecidos, culturas, peças anatômicas e outros elementos do trabalho científico era produzido graças à presença da fotografia nas etapas do trabalho científico, forjando uma nova fonte de demonstração de aspectos morfológicos desses elementos biológicos. Os autores do livro observam que a fotomicrografia torna-se peça central no estudo da bacteriologia, principalmente com os trabalhos de Robert Koch. Como já apontado, um aspecto marcante introduzido pelo uso sistemático de registros visuais com capacidade de reprodução e que vai ter impacto na própria dinâmica do trabalho científico é a incorporação da técnica fotográfica como instrumento tanto de registro dos processos de visualização demandados pelas próprias pesquisas quanto de documentação das etapas das atividades de trabalho, visando ao arquivamento e função de prova dos conhecimentos gerados pelos estudos, além da função propriamente ilustrativa e descritiva das imagens.

Por todos esses aspectos, e pelo prazer visual que o livro proporciona, é leitura recomendada aos que se interessam pelo desenvolvimento da atividade científica no Brasil, bem como aos que apreciam análises sobre as funções das representações visuais para campos profissionais específicos – numa linha de investigação histórica sobre os usos sociais de dispositivos de registro visual como a fotografia e o desenho, por exemplo.

Referências

CORREIA, Fernando. A ilustração científica: “santuário” onde a arte e a ciência comungam. Visualidades, v.9, n.2, p. 221-239. 2011. [ Links ]

FABRIS, Annateresa. Atestados de presença: a fotografia como instrumento científico. Locus, v.8, n.1, p. 29-40. 2002. [ Links ]

FABRIS, Annateresa; KERN, Maria Lúcia Bastos (Org.). Imagem e conhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2006. [ Links ]

FRIZOT, Michel (Ed.). A new history of photography. Köln: Könemann Verlagsgesellschaft. 1998. [ Links ]

OLIVEIRA, Ricardo Lourenço de; CONDURU, Roberto. Nas frestas entre a ciência e a arte: uma série de ilustrações de barbeiros do Instituto Oswaldo Cruz. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.11, n.2, p. 335-84. 2004. [ Links ]

Aline Lopes de Lacerda – Chefe do Serviço de Arquivo Histórico, Departamento de Arquivo e Documentação/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. [email protected]

 

Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20 – FIGUEIREDO (AN)

FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20. Belém: IAP, 2012. 148p. Resenha de: SILVEIRA, Flávio Leonel A. da. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 401-406, jul. 2014.

Acredito que o ofício da leitura é sempre uma dádiva compar­tilhada com o autor que torna público o seu trabalho. Ao oferecer aos leitores os seus devaneios acerca de determinado tema (sobre o qual se debruçou ao longo de um período de sua vida), por certo, o artífice desvela parte da aventura intelectual que envolve a imersão meditativa e o investimento em pesquisas, leituras e diálogos com fontes diversas, possibilitando a outrem que mergulhe no universo ético-estético da obra que traz em suas mãos sobre a qual também, seguindo a inspiração bachelardiana, se lança em devaneios fecundos.

Todavia, a leitura é igualmente troca, por tratar-se de um diálogo silencioso, de um cruzamento de horizontes hermenêuticos que tensiona/aproxima os anseios do autor aos do leitor, num processo criativo capaz de instaurar certo jogo interpretativo que impulsiona a construção do saber para além das intenções primeiras de quem escreve, passando a compor um repertório compartilhado pelo qual a leitura do Outro avança em direção às sutilezas do tema abordado. A obra, se pensarmos com Deleuze (1991), desdobra-se em devires possíveis na leitura, porque os devaneios imaginativos do leitor, ao encontrarem os do autor, se não o alcançam totamente, cercam-no, perscrutam-no e abrem-se à reflexão, seguindo caminhos insuspeitados e próprios.

-O autor, portanto, diante de sua “vontade de saber” (FOUCAULT, 1982), complementaria o anseio de conhecer alheio e, assim, supriria temporariamente a falta que, paradoxalmente, nos preenche sobre dado tema e desde aí nos instiga a querer compre­ender melhor o tema debatido. Ele nos lança às descobertas e às reflexões, mediante a consciência do que seria, de alguma forma, a dimensão saudável de nossa ignorância, a “vontade de saber” sobre as questões que aborda em seu texto. O encontro de ambos, uma espécie de leitmotiv de ideias articuladas e abertas, insiste em nos conduzir ao encontro das tensões e convergências presentes em diversas leituras e temas, quiçá entre regiões que o texto expõe como panorama possível.

É nesse sentido que o livro de Aldrin Moura de Figueiredo intitulado Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20 – excerto de sua tese de doutorado em História, laureada com o prêmio IAP de Literatura em 2011 –, é o exemplo de uma obra que, ao explorar a diversidade cultural brasileira a partir da experiência intelectual modernista dos anos 20 do século passado no norte do país, força-nos a pensar as possibilidades de expressões regionais acerca de um modo de ser moderno, refle­tindo o ethos de uma determinada sociedade.

Aldrin Figueiredo oferece ao leitor um livro saboroso, de leitura fluida e interessante. A sua proposta de produzir um texto de caráter acadêmico – mas diria que de maneira ensaística – cuja preocupação é a de contribuir para a “ruptura com a história linear” (p. 16) revela uma obra com 148 páginas de instigante leitura, principalmente para aqueles que desejam conhecer melhor o universo literário e histórico amazônico, com as suas vicissitudes políticas e extensões estéticas, que o historiador aborda com maestria.

Nesse sentido, ao deslocar a perspectiva de pensar o Moder­nismo através do sudeste do país e, mesmo, colocando-nos na situação de termos que relativizar certas noções de unidade nacional mediante um caminho que nos conduz à “polissemia dos regiona­lismos” (p. 12), Aldrin Figueiredo permite que pensemos a plura­lidade cultural brasileira de maneira atenta às peculiaridades regio­nais, sem com isso cair em bairrismos quanto à análise que propõe. Se “o modernismo amazônico” significou mais uma forma de expressão dos modernismos brasileiros que tomaram assento em diferentes porções do país, desde os seus conteúdos estéticos e políticos, é porque as imagens que moveram os intelectuais à época, em sua dialética criativa, ao emergirem de uma espécie de fundo comum de arquétipos e de símbolos nacionais que também fervilhavam noutros cantos do país, assumiram na Amazônia fei‑ções próprias, mestiçando o regional ao nacional, sem com isso perder de vista a amplitude do fenômeno, porque ele estava inse­rido no que representava a globalização cultural como decorrência do fausto da borracha, com a sua “bela época”, mas, também, com suas mazelas socioeconômicas e políticas.

Ao voltar-se para as idiossincrasias do “movimento” ocor­rido no norte do Brasil e, mais especificamente, no Pará, o autor demonstra a existência dos outros modernismos que ocorreram no cenário intelectual brasileiro. Portanto, para além do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, havia cenários de efervescência estética que produziram formas sociais, leituras do contexto nacional e do mundo pela óptica regional. Sendo assim, a importância do livro está em evidenciar a presença de pensamentos inquietos e disso­nantes com os paradigmas intelectuais e estéticos da época, que se espraiavam pelas várias porções do território nacional. A Amazônia não foi exceção.

O espaço amazônico enquanto receptáculo de imagens mítico-fantásticas e de encantarias diversas; de saberes, fazeres e dizeres distintos; de mesclas complexas de Belle Époque, com seus teatros suntuosos e óperas europeias, com florestas e rios selváticos e exube­rantes – quando figuras caboclas evocariam o imaginário em torno da rede de dormir, de bois-bumbás e de comidas com temperos singulares – carreava uma simbólica de imagens ressignificadas pelo modernismo paulista. Ora, na visão da intelectualidade local, a Amazônia – e, neste caso, o Pará – estava situada para além desse reservatório imagético de “coisas” exóticas, pois ela mesma nutria uma produção que trazia consigo a potência revolucionária desde uma estética que buscava romper com os cânones presentes no seu vasto território, onde Belém e Manaus figuravam como ambiências para as “letras amazônicas”, a partir dos jovens pensadores que deambulavam pelas suas ruas, galerias e cafés atentos às diversas dimensões do que representariam as formas de ser amazônida.

Longe de existir uma unidade de grupo, havia pessoas interes­sadas em debater acerca do lugar da Amazônia na história brasileira, sem com isso legitimar os símbolos veiculados por uma “comunidade imaginária” (ANDERSON, 1993), que evocavam imagens icônicas da Amazônia, manauara ou belenense, centradas em algumas datas, iconografias e episódios. Não se tratava, dessa forma, de reificar imagens autoritárias de certa história da Amazônia nem de servir de mero manancial de imaginários para modernismos outros. Era preciso desconfiar de tais boas intenções históricas e estéticas, mas, acima de tudo, era preciso rir de si e dos outros desde o seu lugar, que provocativamente denomino de “descentrado”.

A leitura do livro lança boas pistas para pensarmos as tensões entre o que chamarei aqui, por falta de oposição mais caricata, de centro e de periferia, bem como acerca das formas engenhosas que se buscou para revertê-las, quiçá suprimi-las. Talvez a consciência de que a dita periferia é também um centro de evocação das diferenças estimulasse a reação de alguns intelectuais aos manifestos que surgiam à época, longe dos labirintos amazônicos de florestas e de rios com as suas boiunas hediondas. Era preciso produzir os manifestos, sim, mas estando situados na paisagem-matriz (BERQUE, 1998).

O que parece ficar claro é que a Amazônia, na visão dos lite­ratos locais, não poderia ser percebida como simples elaboradora de imagens para outras porções do país e, desta forma, alguns deles se insurgiram contra tal figuração. Ela, pelo contrário, mostrava-se autônoma, no sentido de ser produtora de um pensamento prenhe de riquezas e, por isso, capaz de engendrar transformações sensí­veis, considerando-se o seu lugar no cenário nacional. Ao mesmo tempo, mantinha-se integrada ao pensamento nacional desde o seu afã de diferença, pois tinha uma voz, uma agência que os intelec­tuais tomavam para si como representantes deste devir estético amazônico no contexto nacional.

Portanto, os modernistas do Norte desdenhavam do parnasia­nismo enfadonho, dos europeísmos miméticos de forma ambígua, e não faziam por menos em relação aos paulistas, pois se por um lado dialogavam com parcela deste pensamento, não deixavam de devorá-lo, exatamente pela insurgência em relação ao centro e pela consciência de não serem apenas fornecedores de imagens, buscando subvertê-las desde o seu lugar. É possível que naquele momento os intelectuais amazônidas, à sua maneira, descentrassem o centro, a fim de reverterem à periferia, revelando os “aspectos diversos do modernismo literário” (p. 11).

Os ímpetos revolucionários dos Novos Paraenses diante de seu projeto de nação, em que a Amazônia teria um lugar central, indi­cavam a força e a dinâmica tensional que o regionalismo assumia naquela década, especialmente em torno das revistas A Semana (1918) e Belém Nova (1923), loci de emanação da rebeldia dos jovens literatos nortistas. Se Bruno de Menezes era a figura de proa nas plagas para­enses, no contexto amazônico acreano essa figura parece ter sido Abguar Bastos, não menos rebelde e crítico às formas canônicas de pensar e, mesmo, ao modernismo dos paulistas. De qualquer forma, a Amazônia seria, também, lugar de deambulação criativa de duas figuras interessantíssimas, que à sua forma dialogaram com o universo sensível e intelectual da região: Raul Bopp e Mário de Andrade. Sua contribuição ao modernismo excedeu os limites da “Pauliceia” e, para o primeiro, dos Pampas, mas esta já é outra história.

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: Reflexiones sobre el origen y difusión del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BERQUE, Augustin. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemá­tica para uma geografia cultural. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Org.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. p. 84-91.

CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

DAOU, Ana M. A belle époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 1991.

DURAND, Gilbert. Science de l’Homme et Tradition. Paris: Berg International, 1979.

FIGUEIREDO, Aldrin M. de. Eternos modernos: uma história social da arte e da literatura na Amazônia, 1908-1929. 2001. 316 p. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: I. A vontade de saber. Rio de Janei­ro: Graal, 1982.

GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens: Um estudo da vida religiosa de Ita, Baixo Amazonas. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1976.

MAFFESOLI, Michel. O poder dos espaços de celebração. Revista Tempo Brasi­leiro, Rio de Janeiro, n. 116, p. 59-70, jan./mar. 1994.

SARGES, Maria de N. Belém: Riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu, 2002.

Flávio Leonel A. da Silveira Professor Adjunto do Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo – Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutor em Antropologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFPA. E-mail: [email protected].

Fervor das vanguardas: arte e literatura na América Latina | Jorge Schwartz

Pienso en dónde guardaré los quioscos,

los faroles, los transeúntes, que se

me entran por las pupilas.

Oliverio Girondo

O livro Fervor das vanguardas: arte e literatura na América Latina (Companhia das Letras, 2013, 312 páginas) explora de maneira interdisciplinar aspectos emblemáticos da produção plástica e literária da América Latina, inseridos no contexto das transformações incitadas pelo modernismo, na primeira metade do século XX.

Com a circunspecção de quem se dedica ao estudo das vanguardas numa trajetória acadêmica longa, Jorge Schwartz – doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (1979), docente de literatura hispano-americana na mesma universidade e diretor do Museu Lasar Segall, em São Paulo – pesquisou, nos últimos anos, os diálogos entre os países americanos e os centros internacionais, as contradições e reformulações que incitaram a construção de novos projetos em literatura e artes plásticas no cenário conturbado do modernismo latino-americano. Leia Mais

Um século de conhecimento: arte, filosofia, ciência e tecnologia do século XX – SIMON (FU)

SIMON, S. (Org.). Um século de conhecimento: arte, filosofia, ciência e tecnologia do século XX. Brasília: Editora UnB, 2001. Resenha de: NEDEL, José. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.2, 199-208, mai./ago., 2012.

A obra e o século XX

O organizador da obra, Samuel Simon, professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília, faz a apresentação, falando do seu objetivo, de sua abrangência, além de traçar uma síntese dos acontecimentos mais relevantes do século relacionados ao tema.

Objetivo

O principal objetivo da obra, em 31 capítulos, em 1.282 páginas de 24 x 17 cm, é a análise completa, escrita em língua portuguesa, das teorias científicas nas várias áreas do conhecimento do séc. XX e dos desdobramentos daí advindos. A cada autor foi solicitada a análise crítica e prospectiva de uma área de conhecimento, compreendendo: situá-la historicamente, referir seu desenvolvimento na passagem do séc. XIX para o séc. XX, quando fosse o caso, oferecer uma análise propriamente dita, e apresentar as tendências possíveis da respectiva área para o séc. XXI.

Abrangência

O livro resultou sendo uma versão crítica do que tem sido feito no séc. XX, fora alguns domínios do conhecimento, não contemplados, por não ter sido possível contar com os respectivos especialistas (p. 18).

As informações abrangem ciências humanas, da natureza e exatas; saúde e nutricionismo; tecnologias e artes. Estão contempladas as seguintes especialidades, umas mais desenvolvidas que outras: Administração, Agronomia, Antropologia, Arqueologia, Arquitetura, Biologia, Botânica, Ciência cognitiva, Ciência da informação, Cinema, Computação, Comunicação, Cosmologia, Ecologia comportamental, Educação física e esporte, Engenharia aeroespacial, Engenharia de minas, Estatística, Filosofia, Física, Geografia, História, Matemática, Museologia, Música, Nutrição, Paleontologia, Química, Relações internacionais, Sociologia e Teoria literária.

Panorâmica do séc. XX

A descrição geral do séc. XX pode ser composta pelo que consta da Apresentação (p. 7-19) e do Prefácio de Roberto A. Salmeron (p. 21-26). Uma advertência oportuna é a de que o conhecimento teórico e aplicado, que obteve grande desenvolvimento no séc. XX, não se iniciou nele, nem mesmo no séc. XVII, com a revolução científica. Com efeito, as atuais definições da teoria científica são herdeiras de uma tradição de 2,5 mil anos de conhecimento ocidental e oriental. Ao lado do desenvolvimento científico e tecnológico, ocorreu também o das artes e da filosofia.

Desenvolvimento

Em síntese, o conhecimento científico no séc. XX ensejou o aparecimento de novas áreas, aprofundando duas tendências iniciadas no séc. XVII: a crescente especialização do conhecimento e o estabelecimento de interconexões entre áreas até então bastante distintas (p. 7). A história das ideias ensina que a aproximação entre fenômenos antes sem conexão, integrando um mesmo conjunto explicativo, é uma tendência definitiva. Segundo Roberto A. Salmeron, as novas interconexões das várias ciências, ao lado da matematização crescente em vários domínios científicos e da abstração, são, talvez, os traços mais característicos das ciências no séc. XX (p. 14).

Interconexões

Como exemplos, vale notar as interconexões nos seguintes tópicos: O uso da matemática constitui-se a base da física moderna (Galilleu Galilei e Newton). A física, até então, fundamentalmente qualitativa, apropria-se da matemática e a desenvolve, como se vê do cálculo diferencial e integral nos estudos de Newton e Leibniz. A química também tem fortes vínculos com a física e a matemática. A biologia mantém conexões com a química e a matemática, importante desde os trabalhos de Mendel. A sociologia, a antropologia e a área das relações internacionais são tributárias da história que, de maneira recíproca, examina novos fatos à luz dessas ciências e de outros domínios das ciências humanas. A museologia mantém estreitas relações com a arqueologia (p. 8). O uso cada vez mais relevante da computação compete com a matemática em muitos casos. Herdeira disso é a inteligência artificial, conduzindo a novos domínios, como o da vida artificial (p. 15).

Abstração

Para Salmeron, “a característica mais importante do séc. XX […] é a passagem para a abstração, nas ciências e nas artes” (p. 23 e 26). É assim que Louis de Broglie, em 1924, apresentou tese de doutorado na qual mostrou que a cada partícula se pode associar uma onda. Foi a origem da mecânica ondulatória, posteriormente chamada mecânica quântica, que tem fundamentos abstratos, isto é, sem relação com nossa experiência diária. E ela é fundamental para a interpretação da física moderna, em particular dos fenômenos atômicos. Uma teoria abstrata tem inúmeras aplicações, das quais nem nos damos conta: máquina fotográfica digital, ressonância magnética, scanner, transistor, etc. Mais de 30% da indústria moderna de vanguarda são baseados em fenômenos quânticos. Outro exemplo de abstração: a psicanálise que trata da mente humana sem medicamentos, sem intervenção física no corpo (p. 24).

Também na arte houve mudança radical, com a introdução da abstração no modo de pensar. A primeira obra nesse sentido foi o quadro de Picasso Les Mademoiselles d’Avignon, de 1907: cinco mulheres nuas, com desenho simplificado, rostos de três delas representados por máscaras africanas, o fundo com cores vivas sem gradação e contrastes violentos. O quadro, que suscitou escândalo e forte rejeição na época, abriu nova perspectiva para a pintura: a produção de obras que não representam objetos reais. Isso logo foi seguido por outros artistas, como o inglês Thomas Moore, que desenvolveu a abstração na escultura, e Arnhold Schönberg, que o fez na música, com seu dodecafonismo, vindo ele a tornar-se o precursor do que se convencionou chamar música moderna.

Avanços

Os avanços nas ciências e no domínio da natureza ao longo do séc. XX são notáveis. O desenvolvimento tecnológico tem sido extremamente acelerado. O homem conseguiu sobrevoar os oceanos em poucas horas, ir à Lua, desenvolver computadores de altíssima velocidade e pequeno porte, manipular o código genético, aumentar a expectativa de vida, propor conceitos altamente abstratos, como de sinergia (administração), estruturalismo antropológico (antropologia), axialidades (arquitetura), totipotência (botânica), sistemas especialistas (ciência da informação), espiral do silêncio (comunicação), frases protocolares (filosofia), cadeia trófica (paleontologia), etc. Pôde ainda olhar para os confins do universo e obter evidência empírica sobre a existência de um objeto extragaláctico, chegando à cifra de 100 bilhões de galáxias em contínua expansão (p. 8-9).

As artes também conheceram mudanças importantes: o cinema, produto genuíno do séc. XX, tornou-se uma poderosa indústria. Além de oferecer entretenimento, tornouse espaço para a reflexão sobre o homem, sua diversidade cultural, seus valores (p. 9).

Qualidade de vida

O resultado de pesquisas das ciências fundamentais e do aprimoramento da técnica ajudou a minorar o sofrimento de milhões de pessoas. Desde o início do séc. XX, o aumento da oferta de alimentos foi maior que o crescimento da população. Houve enorme progresso social: o homem vivia melhor no fim do que no começo do século, apesar das injustiças e desigualdades existentes em muitos lugares. Trabalha com muito mais conforto e produz muito mais, goza de saúde melhor, vive 30 anos mais e tem mais lazer do que no começo do século (p. 22).

Pela metade do século, iniciando a descoberta dos antibióticos, a medicina deu um salto: muitas doenças passaram a ser curadas, e a procura de medicamentos para tratar ou prevenir doenças tornou-se rotina. Com os avanços da genética e a descoberta da biologia molecular, a biologia se transformou: passamos a ter nova visão da herança da vida e dos fenômenos vitais. Inúmeras aplicações da física tornaram-se inseparáveis de nossa vida cotidiana, tais como telégrafo, telefone, rádio, televisão, computador, novos materiais, aparelhos domésticos e de aplicação na medicina, no transporte, etc. (p. 22).

Limitações

Contudo, são de notar também limitações do conhecimento científico. Muitas questões não estão resolvidas até hoje. Há implicações éticas da ciência aplicada, v. g., da engenharia genética. O conhecimento produzido e acumulado ao longo de milênios tem pouca influência sobre os governantes no tocante à sua adequada utilização em prol de uma vida mais digna (como as questões ecológicas). Esse conhecimento também não tem conseguido reverter o uso indevido, muitas vezes com a ajuda de cientistas, de alguns de seus resultados (p. 10-11).

Algumas observações pontuais

Os autores deste livro monumental, no âmbito da respectiva especialidade, procuram dar conta do que aconteceu no séc. XX, tão rico em desenvolvimento e novidades científicas e tecnológicas. Uma súmula de cada um dos capítulos não caberia nesta simples nota bibliográfica. Por isso apenas alguns tópicos são selecionados e trazidos à consideração dos leitores, não mais do que para despertar o interesse pela leitura exaustiva da obra.

Roque de Barros Laraia (“Da ciência biológica à social: a trajetória da antropologia no século XX”, p.95-117) chama a atenção para o postulado da unidade biológica da espécie humana, já afirmada por Confúcio, 400 anos antes de Cristo, nestes termos: “A natureza dos homens é a mesma; são os seus hábitos que os mantêm separados” (p. 103). Segundo Laraia, aliás, “a antropologia reafirmou o princípio da igualdade da mente humana” (p. 116). A reafirmação dessa verdade reconhecida pela antropologia científica abala, com toda a pertinência, o próprio fundamento de concepções ou teses a favor da desigualdade qualitativa entre raças humanas, que ao longo da história têm ensejado discriminações e exclusões, hoje universalmente condenadas, mesmo que na prática por vezes apenas em vias de superação.

Waldenor Barbosa da Cruz (“Herança e evolução: aventuras da biologia no século XX”, p.195-288). Merece destaque esta observação do autor: “Nenhuma tecnologia científica tem consequências mais profundas sobre o homem do que a derivada da biologia: a biotecnologia. Isto porque afeta não somente nosso estilo de vida, mas também nossos valores éticos e morais e até mesmo põe em questão a evolução de nossa espécie. Por essa razão, os avanços da biologia, particularmente da biotecnologia, são tão amplamente discutidos em todos os meios de comunicação social […]” (p. 279).

O autor pondera que, nesse contexto, surge a bioética. A biologia molecular possibilitou o mapeamento físico do genoma humano e a criação de técnicas para sua manipulação. Isso possibilita ações com objetivos médicos (prevenção, diagnóstico, tratamento de doenças), práticas de exclusão social de indivíduos com genes não desejáveis e construção de indivíduos perfeitos (em suma, processos de cura e eugenia). A mesma tecnologia aplicada a genomas vegetais leva aos alimentos transgênicos, que também envolvem discussões éticas. O patenteamento de genes humanos é inaceitável. Aliás, a UNESCO já o deixou claro na Declaração universal sobre o genoma humano e direitos humanos, 1997 (p. 281). E o autor conclui: “Não é preciso ter bola de cristal para prever que a bioética será cada vez mais importante nas próximas décadas” (p. 282).

Bem apropriadas são as ponderações do autor. É que as questões de bioética são por via de regra polêmicas. Volta e meia retornam à pauta das discussões em âmbito nacional, como já tem acontecido com o aborto, inclusive de feto anencefálico, o uso de embriões humanos na pesquisa, alimentos transgênicos e outras questões que envolvem a vida e a dignidade humana. Nesses casos, a pura ciência biológica, não tendo o alcance necessário para a solução, deve mesmo ser socorrida pela ética em sua vertente aplicada, no caso a bioética.

Aluizio Arcela (“Computação: uma ciência exata com aspirações humanas e sociais”, p.503-557), em meio à explicitação de sua “ciência exata” da computação, faz um juízo crítico da psicanálise, nestes termos: “A psicanálise […] mostra-se vítima de seus próprios ensinamentos ao demonstrar dificuldades de sair da sua infância científica e, assim, ainda não traz uma luz suficiente, algo que explique formalmente, como convém à computação, o que são os complexos, os medos, os desejos e tudo o mais que se manifesta nesse domínio chamado inconsciente, se possível na mesma medida que a lógica o faz para o raciocínio” (p. 554).

Em verdade, exigir da análise da mente humana o rigor da lógica ou da computação, no mínimo, não é devido nem razoável. É que a psyché é misteriosa, apenas acessível de forma indireta, por introspecção, e nunca de modo cabal. Aliás, cada saber tem o rigor e a exatidão que seu objeto permite ou requer, como Aristóteles já ensinou in illo tempore. Se o teorema da incompletude de Kurt Gödel, segundo o qual todos os sistemas matemáticos suficientemente fortes são incompletos, porque neles há teoremas que não podem ser demonstrados nem negados (proposições indecidíveis), tem aplicação na própria computação na versão segundo a qual “nem todos os enunciados verdadeiros da aritmética podem ser demonstrados por computador” (p. 515), não deve causar espécie que na análise dos complexos, medos e desejos da alma humana não haja clareza insofismável como a que é possível na lógica e na computação. Há outros modelos de ciência, particularmente na área das ciências humanas.

Luiz Martins (“Teorias da comunicação no século XX”, p.559-604) faz judiciosas observações acerca do mundo atual e da qualidade da comunicação despejada sobre todos diariamente. Segundo ele, a humanidade foi vitoriosa no campo tecnológico e do ponto de vista das possibilidades de uma interconexão global. Porém, a sociedade moderna está marcada por exclusões e alargamento dos abismos sociais. O mundo sistêmico venceu o mundo da vida, dito em categorias habermasianas (p. 564-565). Há livre trânsito de capital financeiro e mercadorias, mas barreiras à circulação de pessoas, sobretudo em busca de trabalho e asilo. O mundo globalizado se caracteriza por exclusões: fechamento de fronteiras e apartheids sociais (p. 588). “Tal como ironicamente aconteceu no período das circunavegações, novamente o mundo se completa enquanto esfera, mas fragmenta-se em matéria de humanismo. A ‘aldeia global’ totaliza-se para explodir em estilhaços, sucumbindo às categorias dominantes do poder e do dinheiro, diabolicamente fragmentadoras” (p. 589). Pelo visto, a influência do discurso de Habermas sobre o autor é palpável, aliás, expressamente admitido.

O autor pondera que, em relação aos MCM, não raro vence o mau gosto, o grotesco. Na radiodifusão educativa há muito input e pouco output. O papel dos MCM, especialmente da TV, tem estado mais para a deseducação das massas do que para a elevação do nível educacional e cultural das populações, a julgar de obras recentes publicadas pela UNESCO. As crianças são mais vítimas do que beneficiárias dos meios de comunicação: os conteúdos educativos perdem para as programações repletas de violência e degradação dos valores morais e humanos. Os meninos são fascinados por heróis agressivos, como o Exterminador do futuro (p. 573-574).

Obviamente, o alerta do autor deve ser levado em conta. A qualidade das apresentações artísticas e de diversão é ruim, quando não péssima, na maioria dos canais da TV brasileira. O exemplo atual mais chocante disso é o programa Big Brother Brasil que anualmente é encenado e continua no ar, apesar das muitas críticas, por razões de faturamento da empresa de comunicação que o promove, desprezados os bons costumes, os valores educativos e a qualidade artística do espetáculo digno de um zoológico humano.

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro (“A abordagem evolutiva no estudo do comportamento animal e humano”, p.631-659) defende em sua abordagem evolutiva que não há dicotomia verdadeira entre o genético e o cultural; que a cultura também é vista como manifestação genética dos animais, evoluída dentro das populações e moldada por seleção natural. Segundo ele, somos seres culturais porque fomos moldados pela seleção natural para sermos assim. Por sinal, atualmente se acredita que há genes até mesmo para a religiosidade. O principal argumento em favor dessa ideia é que, apesar da enorme diversidade étnica e cultural entre os homens, até hoje não se descobriu povo ou civilização totalmente ateu sobre o nosso planeta (p. 651). Assim, “para desvendarmos as virtudes e maldades da natureza humana, precisaremos conhecer um pouco mais sobre os genes” (p. 655).

Com certeza, uma antropologia de feição mais clássica não teria dificuldade em relativizar esse entendimento biologista do autor. O ser humano é um composto psicofísico que ultrapassa seu patrimônio genético. Nessa condição, realiza atos orgânicos em que o corpo (no caso, a parte biológica) e a psique são concausas; e outros atos, os da inteligência e da vontade, em que o corpo entra apenas como condição, não como causa. Nesse nível situa-se o mundo da cultura criado pelo ser humano ao longo de sua rica aventura sobre o planeta. Na cultura, nela incluída a religião, os genes intervêm, não como causas (que produzem o resultado), ou como determinantes, mas como condições (necessárias para que a causa – a alma, a mente, o espírito – possa produzir o resultado). Entre genético e cultural há, sim, uma distinção radical. Mas distinção não quer dizer separação, pois ambas as partes funcionam sinergicamente no ser humano hígido. A valer a tese do autor, de que a cultura, inclusive a religiosidade, é genética, caberia indagar: por que dela não ocorre nenhum indício entre os chimpanzés, cujo patrimônio genético, segundo pesquisas recentes, é idêntico ao dos humanos em noventa e nove por cento? Não chegaram lá ainda? Ou porque, encerrados na mera perspectiva biológica, não têm acesso ao mundo simbólico? Essa, porém, não é uma questão científica, de antropologia física, mas de antropologia filosófica. A luz da biologia é insuficiente, de curto alcance, para resolvê-la.

Aldo Antônio de Azevedo e Alexandre Luiz Gonçalves de Rezende (“As dimensões humanas da educação física e do esporte na cultura”, p.661-710) fazem um grave alerta sobre Educação Física nas escolas brasileiras. Segundo eles, com as mudanças na concepção educacional, a ginástica foi perdendo espaço no contexto escolar para o esporte, passando a consolidar-se nas academias, ao lado da musculação, como prática orientada para a modelagem estética do corpo. No Brasil, a esportivização da Educação Física resultou na perda de sua identidade pedagógica e no questionamento de seu papel dentro da escola. O professor passou a ser técnico esportivo interessado em treinar seleções, relegados a segundo plano os alunos apontados como desprovidos de aptidões naturais para o esporte (p. 700).

Se a denúncia é verdadeira, deve ser levada em conta pelos educadores e instituições de ensino, a fim de que não se perca uma prática indispensável à educação integral, consagrada ao longo da história da educação no Ocidente, e não se induza a discriminação dos educandos havidos como menos prendados para o esporte.

Nelson Gonçalves Gomes (“Os progressos da filosofia no século XX”, p.795-871) escreve um valioso ensaio de síntese das reflexões filosóficas no séc. XX. Passa pelas principais correntes, como o idealismo, o positivismo, a fenomenologia, a filosofia analítica, até a pós-analítica para a qual as lógicas intensionais abriram horizontes (p. 867). Observa que na filosofia não há progresso consensual (p. 861), mas progressos controversiais, isto é, formação de correntes, em processo contínuo, com diferentes posições diante dos grandes problemas. As concepções exercem influência umas sobre as outras e evoluem, por exemplo, o neotomismo analítico (p. 861-862).

Da filosofia analítica o autor aponta os resultados mais interessantes: o papel privilegiado conferido à linguagem, como instrumento de pensamento; o emprego de métodos formais no tratamento das questões filosóficas; o uso da lógica como recurso auxiliar (p. 864). Afirma: “A filosofia analítica, tal como existiu na primeira metade do século XX, esgotou-se. ‘Filosofia analítica’ tornou-se uma espécie de guarda-chuva que abriga toda uma família de filosofias, que têm em comum o cuidado no uso da linguagem e a exigência do emprego de argumentos” (p. 867). Informa que, a partir daí, alguns falam em “filosofia pós-analítica”, que retoma grande parte da tradição, mas não de forma conservadora, uma vez que discute grande variedade de problemas novos. O retorno dos temas clássicos se faz muitas vezes com emprego de linguagens sofisticadas e argumentação rigorosa, frequentemente formulada com o auxílio de lógicas intensionais. Esclarece que essas lógicas, desenvolvidas na segunda metade do séc. XX, são sistemas nos quais se trabalha com frases regidas por expressões como necessariamente, possivelmente, obrigatoriamente, surgindo assim a lógica modal, a deôntica, a epistêmica e outras, para as quais são construídos sistemas peculiares de semântica, as semânticas dos mundos possíveis (p. 867).

Pelo visto, o autor traz a análise até os dias atuais e transita por tudo com objetividade e desenvoltura. No mais, oferece preciosas dicas para extensão e aprofundamento dos temas por parte dos interessados.

José David M. Vianna (“A física e o século XX”, p.873- 916) apresenta um longo estudo sobre os avanços da física no último século e faz uma observação sobre cuja pertinência a história futura da ciência dirá, a saber.

No início do séc. XX, pelo menos o primeiro quarto de século, a física foi marcada por desdobramentos de resultados e propostas da segunda metade do séc. XIX: a sintetização das leis do eletromagnetismo (Clerk Maxwell); a descoberta dos raios catódicos (Johann W. Hittorf e William Crookes); do efeito fotoelétrico (Hertz e Philipp von Lenard); dos raios X (Wilhelm K. von Roentgen); da radioatividade (Henri Becquerel); a confirmação da existência de ondas eletromagnéticas (Heinrich Rudolf Hertz); o desenvolvimento da teoria clássica do elétron (Hendrick A. Lorentz), etc. (p. 873-874). Isso leva a pensar sobre quanto das ideias surgidas nos últimos 25 anos do séc. XX poderão influenciar as descobertas do séc. XXI. Nessa situação encontram-se estes tópicos: a informação quântica, as cordas e supercordas (strings e superstrings), os materiais nanoestruturados, o confinamento e os novos materiais, o caos, os quarks, os campos de calibre (gauge), a unificação da interação forte com a fraca e a eletromagnética, e a superunificação das quatro interações básicas, etc. Tudo pode entrar como itens de uma pauta de projetos cujo desenrolar continuará a fazer da física uma ciência de interesse cada vez maior (p. 912). E ela tem de assinalar novos progressos, porque desafios múltiplos lhe estão postos. Um deles é não menos do que este, como afirma o autor: “Um dos desafios para este século que se inicia é encontrar um modelo para a estrutura fundamental da matéria” (p. 898).

Haverá de encontrá-lo? Se acontecer, com certeza, não será pouco.

Ignez Costa Barbosa Ferreira (“A visão geográfica do espaço do homem”, p.817-944) traça um estudo preciso do desenvolvimento da geografia, das origens até as perspectivas atuais. Enquadra-se no novo paradigma de base ecológica, surgido em decorrência da pressão dos problemas ambientais, preocupado com a atuação antrópica sobre a natureza, em que o próprio homem seja visto como elemento do ecossistema (p. 935). A autora pensa que “a preservação do hábitat do homem na superfície da Terra é a grande questão da sociedade” (p. 918). Por isso, “desenvolvimento e preservação do ambiente torna-se uma das grandes questões atuais e um dos maiores desafios para a produção do espaço geográfico pela sociedade” (p. 940). Sobre o papel da geografia entende que sua principal contribuição está em “apontar saídas, a partir do território, no sentido de se construir um espaço socialmente mais justo e ambientalmente sustentável” (p. 941). Pelo visto, a postura da autora é coerente com o paradigma da sustentabilidade do nosso planeta, hoje elemento precípuo de agendas internacionais.

Estevão de Rezende Martins (“A renovação contemporânea da historiografia”, p.945-985) conclui seu estudo pelo caráter científico de sua disciplina, nestes termos: “A história do século XX tornou-se, indiscutivelmente, ciência histórica. Seus procedimentos metódicos, suas práticas de pesquisa e seus resultados satisfazem aos critérios da confiabilidade, verossimilhança e controlabilidade. Seu produto – a historiografia – submete-se ao crivo intersubjetivo da comunidade profissional” (p. 979).

É de notar, porém, que a submissão ao crivo intersubjetivo não é marca exclusiva da ciência, mas de todo produto cultural. A rigor, não representa critério de cientificidade, nem que conduza ao consenso, pois nem este não é indicativo infalível de verdade. Com efeito, o consenso pode estar alicerçado em falsas evidências capazes de ensejar juízos e afirmações equivocadas. Disso a história universal registra exemplos abundantes.

Conrado Silva (“O século mais instigante de toda a história da música”, p.1049-1067) faz uma observação que suscita preocupação, nestes termos: “É um fato singular do século: pela primeira vez em toda a história da música, não existe um cânone que sirva de base para definir as características do estilo. O próprio conceito de cânone hoje já não tem mais função. A divergência de critérios é o que importa” (p. 1052). Nesse contexto, compreende-se quiçá melhor o próprio Schoenberg com sua música atonal (sistema dodecafônico).

O autor continua sua observação, quase uma lamentação: “Ainda na primeira geração pós-internet, a realidade mostra uma nivelação por baixo da criação musical. A difusão de programas de criação e de sequenciação de som permitiu a entrada no meio musical de uma quantidade enorme de aprendizes de feiticeiros interessados em mostrar suas experiências, em geral objetos sonoros banais, de pouco interesse musical, resultado de pouca reflexão nos princípios básicos de confecção da estrutura musical” (p. 1064).

Essa situação, profundamente lamentável, não representa sequer novidade para um consumidor leigo de música, porque a indigência cultural, literária e musical muitas vezes salta aos olhos de qualquer pessoa minimamente informada. Infelizmente, esse experimentalismo permeado de pobreza, banalidade e mau gosto denunciado pelo autor não é exclusivo da música, mas atinge também outras áreas, como a das artes plásticas e da literatura, especialmente na poesia. Qualquer garatuja ou instalação por mais abstrusa que seja vai para bienal… Uma simples prosinha empilhada, em geral hermética ou sem sentido, sai premiada em concurso de poemas. A exemplo do abandono dos princípios da estrutura musical, também foram descartadas para o cadoz das antiqualhas as regras clássicas da composição poética. Cada um agora faz a sua regra, o que transforma a suposta arte em pura facilidade, impulso emocional, sem racionalidade. Entretanto, a verdadeira arte, como toda virtude, é da ordem do difícil, segundo a lição indescartável de autores como Platão, Aristóteles, T. de Aquino e outros. Salústio a recolheu dos gregos e a transmitiu a César: Ad virtutem una ardua via est (Epistolae ad Caesarem 1, 7) – O caminho da virtude é um só, e este é árduo. É urgente um retorno aos clássicos.

Marcus Faro de Castro (“De Westphalia a Seattle: A teoria das relações internacionais em transição”, p.1153-1222) examina com amplitude o complexo das relações internacionais em sua gênese e transformação. Passa pelo realismo de Edward Carr e Hans Morgenthau, o neorrealismo de Kenneth Waltz, a teoria da interdependência de Robert Keohane e Joseph Nye, e chega ao construtivismo dos tempos mais recentes, perspectiva constituída de apropriação e adaptação de contribuições oriundas sobretudo da teoria social europeia, que surgiu em meados de 1980 e teve seu florescimento nos anos 1990. Nessa perspectiva, os fatos do mundo, inclusive a política, o uso do poder, a violência exercida pelo Estado, são socialmente construídos, em parte com base em elementos subjetivos (significados linguísticos, valores, crenças religiosas, aspirações, normas morais, preconceitos, valores culturais, sentimentos), que formam estruturas motivacionais da ação. Esses elementos ideacionais podem ser criticados ou expostos à interpretação e possível reelaboração por meio de práticas sociais participativas (p. 1205-1206).

O autor visualiza, para a Teoria das Relações Internacionais, como perspectiva profícua no futuro previsível, tanto como atitude do trabalho intelectual quanto como prática política, a abertura ao pluralismo de valores (p. 1211), o que será consentâneo com a preservação da liberdade. Obviamente, essa perspectiva é coerente com a tendência majoritária hoje de progressivo apreço dos direitos humanos pelos povos e a sua efetiva aplicação na prática das nações.

Vilma Figueiredo (“Do fato social à multiplicidade social”, p.1223-1253) faz observações que ressumam a humildade que deveria ser o apanágio do todo cientista. Lembra esta palavra de Max Weber: “Nenhuma ciência […] será capaz de, definitivamente, ensinar aos homens a melhor maneira de viverem, ou às sociedades, de se organizarem, e tampouco de dizer à humanidade qual será o seu futuro: sempre existirão as esferas ou dimensões da sociedade nas quais a ação social não-racional prevalece e a ciência pode expressar-se, apenas, em termos de probabilidades” (p. 1230). Em outras palavras, a ciência é limitada, quer na extensão, quer no aprofundamento das questões de seu objeto. “O século ensinou que a teoria sociológica não deve pretender ser abrangente no sentido de não deixar lugar para o desconhecido, para o indefinido. Isso não é desejável nem necessário. A ciência apenas é possível porque se pode afirmar algo sem que se saiba tudo. A ciência é inexaurível” (p. 1245).

Ninguém jamais saberá tudo, nenhuma ciência humana exaurirá o cognoscível. Por isso, a correta organização das sociedades há de ser sempre criação humana, em condições históricas concretas, observadas algumas verdades incontestes que a história, inclusive a recente, nos ensinou: que é falaciosa a busca exclusiva da igualdade social em detrimento da liberdade. A prova dessa falácia, já a deu o rotundo fracasso da marcante experiência histórica que mudou a face do mundo contemporâneo, ou seja, a implantação do comunismo na Rússia e a criação da União Soviética (p. 1232).

Em suma, a experiência soviética permitiu confirmar hipóteses derivadas de Durkheim e Weber sobre a natureza do vínculo social e da dominação política: que o vigor das sociedades se origina da relação equilibrada entre igualdade, disciplina e regulação de um lado, e liberdade, inovação e criação de outro. “O excesso de disciplina leva à rotinização e ao marasmo; a liberdade sem controle opõe-se à formação do consenso e dá origem à anomia social” (p. 1232). Em verdade, a eterna questão política é encontrar o equilíbrio entre liberdade e disciplina: o grau ótimo de liberdade que não só não prejudique, mas ainda assegure a estabilidade e a segurança desejadas no convívio social.

Henryk Siewierski (“Correntes e perspectivas da teoria da literatura no século XX”, p.1255-1281), na questão da intertextualidade, termo que Julia Kristeva propôs em substituição à intersubjetividade, rejeita a crítica desconstrucionista, ou pós-estruturalista, dos que negam a autonomia do texto. Esses autores questionam o caráter objetivo da estrutura de uma obra literária (p. 1272), dizendo que qualquer texto é inconcebível isolado de outros textos, por ser privado de autonomia ou significado fixo (independência da intenção do autor e do contexto histórico), de objetividade (estabilidade estrutural e independência da interpretação) e unidade (unicidade e integralidade) (p. 1269). Para os desconstrucionistas, “não há texto em si”, sendo impossível seu “fechamento” (p. 1270).

Para o autor, esse radicalismo leva ao ceticismo extremo segundo o qual “toda leitura é desleitura” (misreading), porque todo texto dependeria de interpretação, e essa seria imprevisível (p. 1270). Aponta, ao final, para a moderação, nos termos do aviso de Gadamer, no posfácio de Wahrheit und Methode: “Seria mau hermeneuta aquele que imaginasse que a ele pertence a última palavra”. Com certeza, a moderação, tão exaltada por Aristóteles e a tradição ocidental, vale como caminho seguro, mormente em matérias distantes da evidência cartesiana das ideias claras e distintas.

Considerações finais

Os destaques feitos até aqui não pretendem mais do que despertar a curiosidade para toda a obra, inclusive para os capítulos não mencionados, por motivo de espaço. Trata-se de uma obra que merece não apenas ser lida, como também estudada, pelo alto valor de seu conteúdo quase enciclopédico. As lacunas mencionadas pelo organizador com certeza serão preenchidas em alguma reedição. Talvez até, na questão das relações internacionais, ou na da filosofia, uma referência à importante contribuição recente de John Rawls, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor e outros. Como o trabalho está, porém, já comprova à saciedade, relativamente à oportunidade de sua publicação, o que a coautora Vilma Figueiredo afirma da ciência, em si inexaurível, em relação à qual “se pode afirmar algo sem que se saiba tudo” (p. 1245). O dito já é mais do que suficiente para atrair não só o leitor comum, a exemplo deste da nota bibliográfica, mas também o estudioso de cada área, inclusive o especialista.

José Nedel – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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O poder da arte | Simon Schama

No ano de 2006, a rede televisa BBC de Londres produziu uma série de documentários sobre arte com a coordenação do professor de História da Arte da Universidade de Columbia em Nova York: Simon Schama. Envolvendo dramatizações e uma proposta de atingir o grande público, a série trazia momentos e obras de oito artistas modernos e contemporâneos: Caravaggio; Bernini; Rembrandt; David; Turner; Van Gogh; Picasso e Rothko.

O livro O poder da Arte, ora resenhado, surge como fruto direto do sucesso destes documentários. O próprio autor esclarece que no texto foi possível aprofundar e apresentar questionamentos que não cabiam no documentário, pois a linguagem televisa segue seus próprios cânones, que diferem da escrita, a começar pelo tempo que um programa ocupa numa grade de televisão, o que faz com que seja sempre necessário estabelecer cortes e omitir passagens no tema a ser documentado. O livro toma da sua versão televisiva, o ritmo e a cadência de personagens que aparecem nos oito programas. Alguns acréscimos são realizados nas análises, como a discussão sobre a Cabeça de Medusa, tela montada em madeira de autoria de Caravaggio datada de 1598-1599, que ilustra a capa da edição brasileira. Leia Mais

Arte e beleza na estética medieval | Umberto Eco

A Idade Média foi um momento de constante tensão entre opostos, de contradições entre as escrituras sagradas e suas interpretações, entre a teoria e a prática da instituição e dos fiéis. Por certo, o ordenamento do mundo levava a certo controle das contradições. A escolástica chegou a propor um método para o entendimento do mundo, ocultando suas contradições. Mas, as contradições não eram totalmente ocultadas, nem tão pouco controladas; porque ao pensar o tudo e o nada, o belo e o feio, o céu e o inferno, o homem e a mulher, a estética medieval, em especial, a exposta nas Catedrais não deixava de indicar as contradições, visto que o belo além de ser compreendido como algo dinâmico, também não deixava de ser múltiplo, diverso, fugaz, assim como suas formas de representação já o eram. Assim sendo, como devemos entender a arte medieval? De que maneira a beleza foi representada? Qual sua função na sociedade? Esses foram alguns dos questionamentos que Umberto Eco2 se propôs, ao pensar a arte e a beleza na estética medieval.

Publicado nos anos de 1960, e revisto na década de 1980, o livro só recentemente traduzido para o português (por Mario Sabino3 e publicado pela Editora Record em 2010), pretendia fornecer um painel do período, na forma de um manual acadêmico, detalhando a sensibilidade na estética medieval, como foi pensada a proporção, a luz, o símbolo e a alegoria, a forma e a substância, as teorias da arte, o lugar do artista na sociedade, e as relações, aproximações e distanciamentos entre a Escolástica e o Renascimento dos séculos XV e XVI. Para isso, toma como base a “história das teorias estéticas, elaboradas pela cultura da Idade Média latina” (2010, p. 9), e de que maneira foram sistematizadas por autores como Tomás de Aquino. Leia Mais

Deleuze, a arte e a filosofia – MACHADO

MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2009. Resenha de: AMARANTE, Ana Helena. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.3, p.351-352, set./dez., 2010.

O livro de Roberto Machado aborda, a partir de distintas dimensões da obra deleuziana, aquilo que, conforme o autor, é a grande singularidade deste pensamento – a diferença em detrimento da identidade.

Ele mostra como este é o fio que conduz esta filosofia, perseguindo em seu estudo a heterogeneidade própria deste pensamento em seus encontros com a arte, com a ciência, com a própria filosofia. Em seu livro, Machado persegue essa heterogeneidade, pois acredita que explicitá-la é evocar a própria questão que Deleuze não cessa de fazer acerca do “que é pensar”, retirando a filosofia do seu habitual papel de reflexão sobre outros domínios, sejam eles a história da filosofia, a literatura, o cinema, a ciência; para pensar com eles e não mais sobre eles.

Deleuze crê na filosofia como aliança e não como um pensamento reflexivo, o que Machado explora no desenvolvimento de seu trabalho, mostrando a maneira como estas alianças vão sendo constituídas, os encontros de Deleuze com outras filosofias e o modo como elas vão sendo utilizadas, seus conceitos modificados ao receberem outros elementos, outros contextos. Em relação à arte não é diferente, e a prioridade está nas ressonâncias entre cada domínio e não em uma suposta prioridade de um sobre o outro.

Mas Machado observa que, embora Deleuze conceda à exterioridade da filosofia uma importância evidente, o seu exercício é filosófico, já que o pensamento, quando exposto às forças que o fazem pensar, cria conceitos, e esta é, conforme o próprio Deleuze, a especificidade filosófica. A arte e a ciência não precisam da filosofia para o exercício do pensamento; fazem-no a partir de suas especificidades, criando sensações e funções, respectivamente. Mas a criação de conceitos é a prioridade filosófica, o que Machado destaca na obra deleuziana, afirmando que as questões dessa filosofia vêm prioritariamente da tradição filosófica e se colocaram a partir da filosofia e chegando mesmo a afirmar que Deleuze “é um historiador da filosofia que ousou pensar filosoficamente” (Machado, 2009, p.19).

Mas, simultaneamente, Machado quer mostrar o quanto o título de “historiador da filosofia” não cabe a Deleuze, já que sua obra jamais consiste em buscar uma identidade na leitura que faz dos filósofos, mas afirmar sua diferença. Esta operação Machado examina detalhadamente nas leituras deleuzianas de Foucault e Nietzsche, ressaltando as torções, os deslocamentos ou interferências que essa leitura instaura, destacando o processo de colagem de Deleuze.

Esse processo, já trabalhado em Deleuze e a filosofia, obra de Machado de 1990, agora é ampliado, já que inclui a filosofia de Deleuze ao encontro da arte e literatura (Machado, 2009, cf. capítulos 6, 7 e 8). É o próprio Deleuze que nomeia dessa maneira o procedimento de, sobre a história da filosofia, produzir as torções necessárias para que os conceitos respondam a outros problemas; para tanto é necessário que recebam outros elementos, sendo remanejados para outros contextos.

O autor estabelece uma analogia com as técnicas da colagem na pintura, onde a obra é o encontro com materiais distintos numa mesma tela, e refere-se também ao movimento dadaísta.

Machado quer tornar evidente essa operação de colagem na obra de Deleuze, objetivo que parece mesmo conduzi-lo na leitura dessa filosofia, pois privilegia as íntimas relações entre a colagem deleuziana e a instauração da diferença em detrimento da identidade. Isto porque esse encontro de “materiais diversos numa mesma tela” não faz referência a nenhuma identidade ou totalidade, mas busca justamente as diferenças entre os elementos, as diferenças de diferenças, sem nenhuma sujeição a uma suposta identidade.

Daí a geografia do pensamento e não uma história, característica que Machado desenvolve desde a introdução do seu livro. Deleuze quer a constituição de espaços onde seja possível colocar distintos pensadores em ressonância, sem nenhuma obediência a uma história progressiva e linear do pensamento. Nesse espaço o privilégio é dado ao pensamento sem imagem, isto é, o pensamento que não sabe de antemão o que pensa, sem pressupostos, o “espaço da diferença”.

Machado, ao tornar evidente a singularidade da filosofia de Deleuze, persegue o que em cada encontro, com pensadores da filosofia ou não, faz vibrar essa singularidade. Isto é, ele quer apanhar o próprio exercício deleuziano ao encontro de seus intercessores, observando também como esses encontros constituem a construção da filosofia de Deleuze.

Nesses encontros, Machado ressalta a importância de Nietzsche como inspiração fundamental na construção de uma filosofia da diferença, e parece-nos igualmente ser o momento em que Machado apresenta as suas leituras de um modo mais ousado, arriscando-se a uma colagem própria com os conceitos de vontade de potência e eterno retorno, diferença e repetição.

Poderíamos dizer que, ao mesmo tempo em que Machado percebe a inspiração nietzscheana de Deleuze, é também contagiado por ela, já que procura, em certa medida, a vontade que anima a filosofia deleuziana. E esta certamente é a singularidade de seu estudo.

Referências

MACHADO, R. 1990. Deleuze e a Filosofia. Rio de Janeiro, Graal, 242 p.

Ana Helena Amarante – Centro Universitário Metodista IPA. Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Deleuze, a arte e a filosofia – MACHADO (AF)

MACHADO, Roberto. Deleuze,  a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: PACHECO, Fernando Tôrres. Artefilosofia, Ouro Preto, n.8, abr., 2010.

Lançado no segundo semestre de 2009, Deleuze, a arte e a filosofia consiste em uma revisão ampliada do livro Deleuze e a filosofia (Graal, 1990). No mais recente, Roberto Machado procura explicitar os ca- minhos percorridos pelo filósofo Gilles Deleuze no seu esforço para afirmar o pensamento da diferença contra o pensamento representativo. Para tanto, fez-se necessário demonstrar como essa afirmação perpassa por agenciamentos com interlocutores tanto da própria filosofia quanto de outras maneiras de pensar, como as artes. Deleuze, ao travar acordos e distanciamentos com esses interlocutores, revolve seus conceitos e/ou sensações buscando elevar as suas relações em prol do exercício construtivista característico de seu pensamento. A via proposta pelo autor centra-se principalmente sobre as leituras das obras da década de 60 – em especial Diferença e Repetição – partindo para Foucault e terminando sua análise nos livros e escritos sobre literatura, pintura e cinema. Roberto Machado investiga como o tema da diferença é suscitado tomando como ponto de partida o texto “Platão e o simulacro”, em que Deleuze discorre sobre o método de divisão platônico. Tal texto pretende demonstrar como Platão privilegia a representação em detrimento da diferença ao adotar um método de divisão na sua teoria das idéias, em que há uma eliminação sistemática das cópias que não possuem os seus respectivos correspondentes no mundo ide- al. Dessa maneira, Platão elimina da perspectiva filosófica o simulacro, prevalecendo somente as cópias que mantêm correlação intrínseca com a idéia originária. Contra essa perspectiva excludente das diferenças e contra o ponto de vista ascensional platônico, Deleuze alia- se à perspectiva nietzscheana, esta que se posiciona de maneira cética ao pensamento identitário e universalista. Deleuze revisita o filósofo alemão e adota as noções de eterno retorno e vontade de potência como orientações do pensamento que, em relação, são capazes de afirmar a diferença sem subordiná-la à identidade. O ponto determinante do livro está na leitura deleuziana de Kant, em que podemos perceber que a relação do filósofo francês com o criador da filosofia crítica não se configura por tanta animosidade como é comum ser dito. Dentre as inovações conceituais kantianas, Deleuze aponta como fator positivo a inserção da forma do tempo no cogito, gerando uma cisão no sujeito, o je transcendental e o moi empírico. Deleuze é instigado pela caracterização temporal atribuída por Kant em sua filosofia, a qual possibilita a forma diferencial cingida do sujeito, ainda que este mesmo sujeito seja reconciliado posteriormente pela identidade sintética e pela moralidade da razão prática. Em contrapartida, o filósofo francês vai questionar o acordo das faculdades kantianas inserindo a idéia de “gênese” no senso comum. Para Deleuze, Kant não abre mão da noção do comum acordo entre as faculdades, que configuraria um dos postulados da filosofia da representação. Ao contrário, Kant multiplicaria tal noção. Dessa maneira, o filósofo francês demonstrará que existe um “acordo discordante” entre as faculdades encontradas na Crítica do Juízo, em que “no caso do sublime, o desacordo entre imaginação e a razão é o princípio genético do acordo das faculdades”. Ao contrário da idéia da filosofia da representação em que as faculdades convergem para a recognição do objeto, Deleuze propõe três faculdades (sensibilidade, memória e pensamento) autônomas: a cada uma delas um objeto próprio é apresentado, “só apreende o que a concerne exclusivamente, diferencialmente”.

A intensidade é aquilo que força a ser sentido, é a razão suficiente do fenômeno, dá o limite daquilo que é sentido. O objeto da memória (memória transcendental) é a forma pura do tempo, a coisa esquecida, o ser em si do passado que força a lembrança. Já o pensamento opera sobre um impensável que força o pensamento a pensar. Assim, Deleuze aponta que a relação entre as faculdades é do tipo de uma violência discordante que força o pensamento e que as idéias são uma multiplicidade. O capítulo sobre Foucault é apresentado pelo autor como referência a uma continuidade temática de Deleuze em relação aos escritos da década de 60, o que o faz afirmar não haver uma ruptura a partir do “Anti-Édipo”. Nesse capítulo, ao demonstrar o procedi- mento deleuziano de repetir o pensamento de outrem com o intuito de criar torções, o autor adota também a perspectiva de colagem, contrapondo a própria leitura à de Deleuze e demonstrando o funcionamento de conceitos como poder e saber segundo a perspectiva de cada um. Na parte do livro reservada ao pensamento deleuziano em conexão com interlocutores não-filosóficos, Roberto Machado demonstrará como o filósofo francês capta potências de conceitos oriundos de sensações literárias, pictóricas e cinematográficas. Com Proust, Deleuze irá demonstrar o papel da boa interpretação como forma de alcançar a essência: perfeita unidade entre signo e sentido. Continuando entre os literatos, o filósofo demonstrará a importância da linguagem e do estilo e apontará para o papel da sintaxe como constructo da diferença. Para Deleuze, a sintaxe estabelece o que ele chamará de uma “língua estrangeira” dentro da própria língua, o desvario da língua materna. Alguns autores como Melville conseguem, através do uso sintático da linguagem, proporcionar uma desterritorialização da língua, produzindo um devir-outro da língua que fuja dos padrões gramaticais, do establishment canonizado. Esse procedimento de criação de uma nova linguagem procura estabelecer uma conexão com o de-fora “(…) que consiste em visões e audições capazes de revelar o que há de vida nas coisas ao capturar as forças e a intensidade”. Com Francis Bacon, Deleuze demonstrará como o pintor, ao adotar procedimentos de desfiguração e isolamento da Figura, se caracteriza como sendo o artista a expressar as forças, a prevalência das forças sobre as formas.

Para introduzir “Imagem-movimento” (cinema clássico), Machado demonstra a distinção feita por Deleuze entre movimento reproduzido e movimento apresentado para localizar a leitura de Bergson sobre o cinema e, ao invés de situá-lo como algoz da sétima arte, insere sua filosofia mais ainda no audiovisual. “Imagem-tempo” (cinema moderno) caracteriza-se para Roberto Machado como o livro de cinema em que Deleuze pôde estabelecer a sua filosofia da diferença. Com o advento do neo-realismo, o filósofo francês enxerga a tomada do pensamento pelo cinema: ele sai do cinema de ação e passa a ser um cinema visionário, “um exercício transcendental da faculdade de sentir que suspende o reconhecimento sensório-motor da coisa, ou a percepção de clichês, como é a percepção comum, proporcionando um conhecimento e uma ação revolucionários” (p.273).

Deleuze, a arte e a filosofia reforça a hipótese do autor de que a filosofia de Deleuze é uma filosofia sistemática, mas uma sistematização que se dá por articulações e agenciamentos de multiplicidades conceituais. Como bem lembrou Machado ao comparar a filosofia deleuziana ao “Samba de uma nota só” de Tom Jobim: “outras notas vão entrar, mas a base é uma só.”

Fernando Tôrres Pacheco-Mestrando em Estética e Filosofia da Arte/ IFAC/ UFOP.

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Berlim: um diário de idéias – DURÃO (AF)

DURÃO, F. Rio-Durham (NC). Berlim: um diário de idéias. Campinas: Publicações IEL/ UNICAMP (Coleção Work in progress), 2009. Resenha de: JÚNIOR, Douglas Garcia Alves. Experiências do pensamento diante da face das coisas. Artefilosofia, Ouro Preto, n.7, out., 2009.

Fábio Durão apresenta um empreendimento incomum em nossos dias: um “diário de idéias”, composto de 85 fragmentos. Projeto ousado já na forma, que remete a Nietzsche e Adorno, filósofos que fizeram da forma de exposição em aforismos um elemento central de suas obras. Ousado, além disso, na amplitude e dificuldade dos temas tratados, que vão da dialética aos Estudos Culturais, da diferença entre as formas brasileira e norte-americana de sociabilidade ao capitalismo, da hermenêutica literária ao silêncio na música, da questão do lugar histórico das idéias à utopia do conhecimento. Reconhece-se, tanto na forma, como nos temas, o diálogo com Adorno, o que o torna ainda mais ousado: pretende- ria o autor reescrever as Minima Moralia em chave contemporânea e brasileira? No que se segue, reúno algumas indicações a respeito do teor das experiências de pensamento que Durão propõe. Trata-se de um breve comentário de quatro núcleos temáticos do livro de Durão, os quais, a meu ver, representam melhor o teor do seu trabalho como um todo. São eles: a reificação na prática acadêmica contemporânea; as dificuldades na lida hermenêutica com a alteridade da arte; as relações humanas como esfera de resistência à dominação capitalista; a utopia de uma teoria alegre. A reificação da academia Durão fala do contexto americano, alemão e brasileiro, mas é neste primeiro que ele mais se detém, tomando a sério o anúncio de Max Weber: “permitam-me que os conduza aos Estados Unidos da América, pois que lá se pode observar certo número de realidades em sua feição original e mais contundente” 1. O núcleo das suas anotações a respeito, retiradas de sua experiência pessoal naquele país, refere-se, em primeiro lugar, ao produtivismo e à competitividade, de feições abertamente capitalistas, que se observam em tudo o que é relaciona- do à universidade. Por outro lado, e intimamente relacionado a este primeiro aspecto, ele nota a contradição entre uma busca obstinada pela heterogeneidade, multiplicidade e pelo novo, por parte da crítica literária, da “Teoria” e dos Estudos Culturais, e o encerramento desses discursos em uma concepção anistórica e abstrata do “outro”, que termina por perdê-lo.

As várias faces do primeiro aspecto, Durão as encontra na prática americana das citações 2, na designação de “star” aplicada aos professores que detém um “grande nome” capaz de atrair muitas matrículas 3, n a especialização de cada departamento de universidade em um determinado tipo de “mercadorias culturais” 4, na polivalência de intelectuais que acompanham as demandas cambiantes de um trabalho flexibilizado 5, na transformação da prática intelectual em uma “máquina hermenêutica”, a recobrir de sentido (e perder) o movimento contraditório da realidade social capitalista 6. Quanto ao segundo aspecto apontado, a compulsão abstrata pelo “outro”, Durão a entende a partir de sua posição histórica e social, e da divisão social do trabalho. Cito: Muito se fala nos Estados Unidos do outro. Em inúmeras publicações, congressos, cursos etc encontra-se esse desejo pela diferença, por aquilo que não se repete, que anuncia o novo. A busca pelo diferente pode assumir as mais diversas formas: o entusiasmo pelos novos media, o deslumbre pelas possibilidades de sexualidades alternativas, a fixação pelo indefinível do corpo, a promessa de riqueza na mistura de culturas de imigrantes num mundo globalizado, a disseminação infinita do sentido no infinito da linguagem… Todas essas versões de alteridade têm seu contrário na realidade repetitiva da rotina do trabalho, na homogeneização dos hábitos por todo o globo, na Mcdonaldização do mundo. 7 Essa denúncia seria unilateral se não viesse acompanhada de um reconhecimento do que há de crítico nessa busca do “outro”. A “nebulosa da Teoria” porta consigo um teor de verdade: a indicação de que a aspiração ao novo não pode ser realizada nos quadros de um todo social que reprime a irrupção do heterogêneo sob a máscara da hiper-produção de sentido e do consumo de bens culturais. Escreve Durão: “entregar-se completamente à teoria da diferença, de fato, leva à auto-satisfação da classe média, mas ignorá-la por completo, reprimi-la, só faz com que ela volte, como uma vingança, para assombrar o discurso revolucionário dono da verdade” 8.

Durão sugere que a recuperação do momento de verdade da hermenêutica americana do “outro” passa por uma operação reflexiva, pelo dever de pensar as formas de produção de sentido sob o capitalismo contemporâneo, ao mesmo tempo em que se põe a pensar os problemas de uma leitura respeitosa e, ao mesmo tempo, desafiante, viva, das obras de arte. Torna-se impositivo resistir ao fluxo homogeneizador dos discursos da diferença, e abrir um “tempo lógico” para a teoria em sentido forte, isto é, para a contemplação da conexão inteligível imanente que se apreende das próprias coisas. Talvez a problemática da hermenêutica da obra de arte sob o capitalismo seja o locus privilegiado para pensar estas questões.

A (difícil) alteridade da arte

A incômoda experiência de fazer parte da massa de turistas diante da Mona Lisa, no Louvre, é senha para Durão pensar a questão da posição do receptor diante da obra de arte, do que esta tem de único e irredutível. Trata-se, naquele caso, de uma experiência em que está ausente o silêncio, em que não há tempo para que se desdobre um outro tipo de experiência, negativa (face ao excesso de sentido proposto): a de abrir-se à obra para que ela “perguntasse algo àquele que [a] via” 9. A renúncia à intenção subjetiva, assim, torna-se mediação incontornável para o contato com a alteridade. A leitura do mundo, das coisas, exige uma disciplina do sujeito. Não sua dissolução completa, em prol de um “objetivismo” ingênuo, mas participação no movimento constitutivo da obra. Ela exige, na verdade um trabalho do sujeito, no sentido de reconstituir as mediações históricas impressas na estrutura e no tecido da obra, e, além disso, de uma atenção ao que escapa a esse movimento, à sua não-identidade material irredutível. Durão torna clara a sua posição a esse respeito, ao comentar a prática acadêmica do close reading: Para a lírica, busca-se ambigüidades e padrões imagísticos recorrentes, assim como recursos sonoros organicamente li- gados ao sentido; para a prosa, investiga-se a profundeza e a verossimilhança psicológica dos personagens, a estruturação e o desenvolvimento do enredo. Subjacente a essa forma de ensino da literatura reside uma bela idéia de imediatidade e comunicabilidade da experiência humana (daí a identificação com personagens desempenhar um papel tão importante) seu aspecto negativo, no entanto, apresenta-se no apagamento da diferença, da estranheza que artefatos do passado geram quando parecem se fechar para nossas perguntas a eles 10. Como romper a reificação dos instrumentos hermenêuticos, dos métodos de análise estética? Como restituir ao objeto o que é do objeto, a sua alteridade mais secreta? Durão amplia o foco dessas questões a partir da consideração do oposto da obra de arte, do “lixo” da indústria cultural. Este, surpreendentemente, adquire um estatuto revelador para o crítico cultural interessado na não-identidade da arte. Por dois motivos. Em primeiro lugar, segundo Durão, é possível mostrar que o “puro ruim não existe”, que mesmo o mais reificado produto da indústria cultual contém, latente, um momento de utopia, anuncia uma promessa de satis- fação e liberdade 11 (ainda que não as sustente de modo radical). Além disso, mais fundamentalmente, trata-se de ter consciência de que, se o “lixo” da indústria cultural impõe uma cunha hermenêutica a seus receptores, impedindo-os de desenvolver uma leitura diferenciada do mundo, em franca contraposição, trata-se, para a crítica, de apontar estes entraves, para restituir o potencial obstruído de leitura do mundo 12. Enfim, é possível pensar a prática crítica e a leitura forte da obra de arte como um tipo de amizade, de uma relação em que atividade e passividade se complementam, para articular um campo de forças em que as tensões possam se exprimir, ao mesmo tempo em que a dominação e a violência, desse modo, possam ser substituídas pela coexistência vivificadora e autônoma. Talvez seja por isso que Durão enxergue nas relações interpessoais um potencial utópico não-desprezível.

A fragilidade e a resistência das relações humanas

Um dos mais interessantes fragmentos de Durão é o de número 41, sobre o universo social da praia de Copacabana. Enquanto a opção mais fácil para o intelectual crítico brasileiro seria a de apontar para o engodo da intimidade entre os socialmente desiguais, na esteira da crítica (justificada, diga-se) de Sérgio Buarque de Holanda à “cordialidade” brasileira, ele toma um outro rumo. Sem negar a injustiça impressa na realidade, ele chama a atenção para o teor de verdade da sociabilidade afetiva e próxima do carioca. O “esforço de se ligar a um outro” e o “ser amigável como ponte” portam algo de verdadeiro, na medida em que manifestam, de algum modo, um confronto com a realidade social que faz dos indivíduos “mônadas sociais irreconciliáveis”. O criminoso, que também circula por lá, lembra Durão, é aquele que nega essa proximidade, que expõe sua insuficiência 13.

Esse limite da proximidade carioca é posto em questão, nova- mente, por outra via, a do comentário da relação amorosa. Se o vocábulo “relação” chama para si a atenção para o aspecto desregulamenta- do e espontâneo do amor, é preciso apontar, lembra Durão, para aquilo que a “relação” exclui: a abertura para o mundo além das subjetividades envolvidas 14. O conteúdo utópico das relações interpessoais tem seu funda- mento na simples conversa, relação em que os interlocutores não se engajam primariamente em um objetivo instrumental, a qual Durão confere dignidade, ao comentar o texto de Jakobson, “Lingüística e Poética”. Ele ressalta o elemento de contato da linguagem, a “função fática”, e afirma que a conversa “define um tipo de troca onde o tópico ou o tema é flutuante, onde aquilo que me liga ao meu interlocutor é, simples e unicamente, o prazer de tê-lo à minha frente” 15. A dignidade do individual, do ôntico, em sua finitude e alteridade, é estabelecida, assim, na faculdade da linguagem, capaz de estabelecer e manter pontes com o outro, concreto e único. Não se deve esquecer, além disso, o elemento de prazer envolvido no exercício dessa faculdade. Esse elemento de prazer tem a ver com a experiência do reconhecimento da semelhança do “outro” – indivíduo, obra de arte, animal, coisa – com o sujeito. Essa dimensão mimética da experiência, desse modo, se faz notar como elemento fundamental tanto da ética quanto da estética. Durão, nesse sentido, em ressonância com Lévinas, chama a atenção para o elemento utópico da experiência da face, do rosto. Cito: Nossa capacidade de identificar caras, um ímpeto não-intencional e não-consciente, é talvez a prova maior da possibilidade concreta da utopia. O rosto faz humano (…) Desde Auschwitz, seu inimigo maior é o número. A felicidade reside no contrário, no aprendizado da leitura da face. O que é o amor senão a multiplicação dos rostos do ser amado? Quem ama está sempre vendo novas faces no outro, faces que no fundo quebram as amarras do indivíduo: de quem contempla, que se perde no rosto amado, e de quem é contemplado, cada vez com uma outra cara 16. Essa “possibilidade concreta da utopia” é o que cabe desdobrar como conceito a uma teoria atenta tanto ao particular individual e material quanto ao universal, à dinâmica social que lhe dá a lei e o insere numa ordem. A experiência do pensamento como alegria utópica

A referência a uma “teoria da alegria” 17, que me autorizo a interpretar como uma teoria alegre, faz eco aos dois autores que mencionei no início, Nietzsche e Adorno. Se, para o primeiro, a noção de uma “gaia ciência” 18 recebia o sentido de uma crítica da construção de mundos inteligíveis e da separação filosófica tradicional entre corpo e espírito (que desvalorizava o primeiro para melhor assegurar a dominação do último), em Adorno, a teoria, sobretudo a teoria moral, é tida como uma “triste ciência” 19, na medida em que “não há vida correta na falsa” 20, e que tanto pensamento quanto ação se vêm enredados na perpetuação da dominação social da natureza externa e interna. No entanto, para o autor da dialética negativa, resta ao pensamento a tarefa de determinar as condições de efetivação de uma “humanidade como utopia” 21.

Em Adorno, a “vida correta”, a arte autêntica e o pensamento forte se medem pela sua negatividade com relação ao estado de coisas existente, de super-exploração do trabalho e degradação da natureza, no capitalismo tardio. Durão recolhe a lição de Adorno, e sua escolha pelo fragmento é sinal disso: a “teoria da alegria” que persegue deve surgir do contato com os objetos, com a configuração de cultura e da sociabilidade no atual estádio histórico. O fragmento permite certa “lógica de sedimentação”, pois “os fragmentos devem dar boas vindas à insistência daquilo que, apesar de si próprios, se faz repetir” 22. O fragmento, recusando a lógica do sistema dedutivo, de premissa e conclusão, dá lugar à experiência do confronto do pensamento com o pensado, permitindo desenhar a figura de uma “utopia do saber”, afim à noção adorniana de “constelação”, que Durão descreve da seguinte maneira: Um bom conceito se deixa isolar apenas relutantemente, sob a pena de se oferecer como vítima. Aquilo que quer ter de único, de singular, aconteceria da sedimentação de seus contextos de ocorrência, que necessariamente deixam restos, parte de seu sentido para a qual permanecemos na maioria das vezes cegos 23.

Esse elemento fugidio do conceito, Durão o aborda por meio do que se poderia chamar de primazia da idéia em relação ao sujeito, à qual alude diversas vezes, ao dizer que “as idéias nos pensam” 24, que “as idéias nos possuem 25 ”, que, ao “caçador de idéias” intelectual, vale lembrar que “uma idéia não gostaria de ser caçada; ao invés, disso, preferia ser paparicada, cortejada, até mesmo às vezes esquecida para ser depois revisitada” 26. Mais adiante, ele aponta para a fragilidade do pensamento, ao se dar conta de que “é necessário acolhermos os pensamentos, pegá-los no colo e sermos doces com eles, ao invés de tentarmos ser mais fortes que eles” 27. Todas essas formulações sugerem a noção de uma necessidade de uma contínua auto-reflexão do pensamento a respeito de seus próprios pressupostos – mais uma afinidade com Nietzsche e Adorno, que denunciaram o caráter arbitrário e violento do sistema, mais afeito ao aumento da dominação sobre as coisas do que a uma relação verdadeira com sua não-identidade. Esse acolhimento da diferença do pensado em relação ao pensamento, Durão várias vezes o relaciona à idéia da necessidade de um corte no fluxo discursivo geral, num momento de silêncio da teoria. Uma fórmula resume essa concepção: “em silêncio, dar tempo para as coisas falarem” 28. Não se trata, porém, da busca do místico, que motivou um Wittgenstein, por exemplo. Trata-se de um difícil trabalho do sujeito, de encontrar e valorizar na experiência os “brancos” do discurso e da sobrecarga de sentido. Momentos tais como os sonhos diurnos, as conversas e os devaneios 29 – cujo potencial utópico foi valorizado por Ernst Bloch. Nesses blocos de experiência em que “para além de qualquer intenção individual ou consciência subjetiva” se expressa o anseio pelo inteiramente outro, o sujeito deve tentar encontrar a pulsão que ancore o pensamento, para além de todo sentido socialmente instaurado de felicidade, justiça e liberdade. Espero ter podido indicar, ao cabo, que há uma unidade que atravessa todos esses núcleos temáticos, e que tem a ver com algo extremamente difícil que o autor logra realizar, a meu ver: a articulação de uma tipologia contemporânea das dificuldades de se aceder a uma relação dialética (vale dizer, reflexiva e, ao mesmo tempo, interna, colada aos fenômenos) com o universo hiper-regulamentado da vida contemporânea, nos seus aspectos culturais, cognitivos e sociais. Ao fazer isso, penso que ele contribui para desfazer o equívoco, por um lado, de ver na teoria crítica da sociedade um mero exercício de pessimismo cultural, e, por outro, o engano daquelas “coleiras mentais” que, mais afeitas à administração da produção acadêmica do que à coisa mesma, ao exercício do pensamento, insistem em diferenciar entre autores e temas “sérios” daqueles pretensamente “não-filosóficos”. A estes, e a todos nós, o livro de Fábio Durão faz pensar e dá alento.

Notas

1 WEBER, Max. A ciência como vocação. In: Ciência e política: duas vocações. Trad. de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 43.

2 DURÃO, Fábio. Rio-Durham (NC)-Berlim: um diário de idéias. Campinas: Publicações IEL/UNICAMP (Coleção Work in progress), 2009, p. 16.

3 Idem, p. 32.

4 Idem, p; 34.

5 Idem, p. 46s.

6 Idem, p. 58s.

7 Durão, op. cit., p. 58.

8 Idem, p. 70.

9 Durão, op. cit., p. 27.

10 Idem, p. 45.

11 Durão, op. cit, p. 65.

12 Idem, p. 56.

13 Idem, p. 39s.

14 Durão, op. cit., p. 31s.

15 Idem, p. 69.

16 Idem, p. 34.

17 Durão, op. cit, p. 76.

18 NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cf. especialmente o aforismo 1, p. 52s, sobre a valorização do ôntico, e o aforismo 324, p. 215, que fala da vida como experiência de alegria e conhecimento.

19 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada. Trad. de Luiz Bicca e revisão de Guido de Almeida. São Paulo: Ática, 1992, p. 7.

20 Idem, p. 33.

21 Idem, p.67.

22 Durão, op. cit., p. 33.

23 Idem, p. 42.

24 Idem, p. 44, 74.

25 Idem, p. 76.

26 Idem, p. 47.

27 Idem, p. 54.

28 Idem, p. 65

29 Idem, p. 62

Douglas Garcia Alves Júnior-Professor do Departamento de Filosofia da UFOP.

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Arte e Filosofia no Idealismo Alemão – WERLE; GALÉ (C-FA)

Marco Aurélio Werle; Pedro Fernandes Galé (Orgs). Arte e Filosofia no Idealismo Alemão. São Paulo: Barcarolla, 2009. Resenha de: VIDEIRA, Mario. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.15 Jun./Dez., 2009.

“A arte […] consegue para a intuição justamente aquilo que a mais alta filosofia consegue através da especulação”1

Numa carta de 06 de janeiro de 1795, Schelling escreve a Hegel: “A filosofia ainda não chegou ao final. Kant deu os resultados: faltam ainda as premissas”. E conclui: “Nós precisamos seguir adiante com a filosofia!”.

Um dos principais problemas herdados pelos filósofos póskantianos foi o da passagem entre filosofia teórica e filosofia prática. A exigência do incondicionado, indicada por Kant no § 76 da Crítica do Juízo foi profundamente sentida pelos pensadores pós-kantianos, para os quais o problema do Absoluto se resolveria, de certa forma, no âmbito da arte.

Desde o chamado “O mais antigo programa de sistema do Idealismo Alemão” já se indicava que a unificação entre teoria e prática deveria ser efetuada através da beleza:

Por último, a Idéia que unifica tudo, a Idéia da beleza, tomada a palavra em seu sentido superior, platônico. Pois estou convicto de que o ato supremo da Razão, aquele em que ela engloba todas as Idéias, é um ato estético, e que verdade e bondade só estão irmanadas na beleza. O filósofo tem de possuir tanta força estética quanto o poeta. Os homens sem senso estético [ästhetischen Sinn] são nossos filósofos da letra. A filosofia do espírito é uma filosofia estética […]

A poesia adquire com isso uma dignidade superior, torna-se outra vez no fim o que era no começo – mestra da humanidade ; pois não há mais filosofia, não há mais história, a arte poética sobreviverá a todas as outras ciências e artes.2

A união entre necessidade e liberdade, a passagem entre filosofia teórica e prática será consumada por meio da arte. Para alguns autores, a arte fornece de maneira imediata – isto é, através de uma intuição estética – aquilo que, no âmbito da teoria só pode ser concebido como uma “aproximação infinita”. No “Sistema do Idealismo Transcendental” (1800) de Schelling, o belo será considerado como sendo o infinito exposto finitamente [ das Unenedliche endlich dargestellt ]. Para ele, a intuição estética nada mais é do que a intuição intelectual que se tornou objetiva: “aquilo que para o filósofo já se divide no primeiro ato de consciência, e que é, de outra forma, inacessível a qualquer intuição, resplandece através do milagre da arte, a partir de seus produtos”3 Daí a tese, defendida por Schelling, de que a arte seria o único e verdadeiro órganon e, ao mesmo tempo, o documento da filosofia.

A partir dessas considerações pode-se perguntar: como foi possível que a arte alcançasse essa autonomia e dignidade? De que maneira a arte representa, a partir desse momento, um campo privilegiado para a afirmação do absoluto? Estas são algumas das questões investigadas na coletânea de ensaios intitulada “Arte e filosofia no Idealismo Alemão” que acaba de ser publicada pela Editora Barcarolla. Esse livro é resultado do colóquio internacional “Estética no Idealismo Alemão”, promovido pelo Departamento de Filosofia da USP em outubro de 2007, e reúne nove textos de importantes pesquisadores brasileiros e estrangeiros.

Como os organizadores ressaltam logo na introdução ao volume, o livro não pretende ser uma apresentação sistemática de todos os temas do Idealismo Alemão. Ao invés disso, procura-se tratar a estética desse período “como uma questão aberta, sobretudo como um desafio ao pensamento e que comporta diferentes enfoques” (p. 11). Com efeito, a variedade de enfoques e temáticas dos ensaios dão uma mostra da complexidade das relações entre arte e filosofia no Idealismo, que é certamente um dos períodos mais ricos da filosofia alemã. Os ensaios concentram-se principalmente no exame das filosofias de Kant, Schelling e Hegel. No campo da literatura, o autor-chave é Goethe.

A temática do gênio, central para a reflexão filosófica do período, é examinada num ensaio do professor Ubirajara Rancan de Azevedo. Trata-se de um estudo bastante específico, que por meio do confronto com outros textos de Kant (como alguns fragmentos das Preleções sobre Antropologia ), busca examinar a definição kantiana do gênio como “inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá regra à arte”, tal como exposta no § 46 da Crítica do Juízo. A temática da experiência estética em Kant e Schiller é examinada num ensaio de Christian Hamm, que procura mostrar em que pontos a concepção schilleriana difere da kantiana e como “a instauração da nova perspectiva estética implica alterações absolutamente essenciais em quase todos os componentes da constelação original kantiana”, como por exemplo, na função sistemática do juízo (p. 72). Além disso, Hamm mostra de que maneira a interpretação (moral) da atividade estética do sujeito permite a Schiller o desenvolvimento de sua proposta de uma educação estética do homem.

A relação entre monismo e filosofia da arte em Schelling é estudada num excelente artigo de Christian Klotz, que examina a teoria da forma de representação simbólica exposta particularmente na parte geral das preleções sobre Filosofia da Arte (1804/05).

Klotz defende a tese de que essa teoria seria uma transformação da concepção kantiana de idéia estética, motivada pelo ponto de vista monista de Schelling (p. 107). Além disso, Klotz procura mostrar de que maneira as transformações da estética kantiana levadas a cabo por Schelling, de certa forma, podem ser consideradas como uma antecipação de elementos da estética de Hegel.

O artigo de Eduardo Brandão procura traçar alguns paralelos entre as filosofias de Schelling e de Schopenhauer, a partir da noção de “ideia”. Segundo Brandão (p. 15), o Mundo como Vontade e Representação de Schopenhauer “repõe no interior da metafísica da Vontade o problema clássico que se arma em torno da noção de ideia e que é enfrentado por Schelling”.

A filosofia de Hegel é trabalhada nos ensaios de Javier Dominguez Hernández, de Klaus Viehweg e de Marco Aurélio Werle. O professor Klaus Viehweg examina a superação da orientalidade e do classicismo pela arte moderna, bem como o tema do “fim da arte” na Estética de Hegel. Um ponto interessante para o qual Viehweg chama a atenção do leitor é a atualidade da filosofia de Hegel. Segundo ele (p. 159), Hegel “fixou linhas fundamentais, forneceu alicerces sobre os quais uma filosofia da ar te atual pode ser construída”. O tema do caráter pretérito da arte em Hegel é examinado também no artigo de Javier Hernández. Segundo ele, a definição da arte levada a cabo por Hegel é feita a partir de sua tarefa na formação do espírito e cultura humanos. Dessa forma, a função histórica da arte na cultura moderna não seria t anto de conteúdo, ou seja, “não se trata de uma formação substancial ( substantielle Bildung ), mas sim de uma formação formal ( formelle Bildung )” (p. 84). Tal como Viehweg, também Hernández critica uma interpretação classicista da estética de Hegel, que impede que se perceba “a atualidade de suas exposições” (p. 90). O artigo de Marco Aurélio Werle explora o tema da subjetividade artística em Goethe e Hegel. Partindo de uma análise do final da primeira parte dos Cursos de Estética (mais especificamente, do subcapítulo sobre o artista ), Werle defende que Hegel dialoga com Goethe e o toma como referência central em sua argumentação, de modo que Goethe seria, de certa forma, o protótipo da subjetividade para Hegel. Segundo Werle, “Goethe se apresenta, para Hegel, como um exemplo acabado da única possibilidade que resta para a arte na época moderna: seguir a via da interioridade subjetiva e reflexiva, priorizar os desdobramentos autônomos do sujeito em suas manifestações” (p.188).

Se Werle examina principalmente exemplos da produção lírica de Goethe nesse confronto com a estética de Hegel, o professor Vinícius de Figueiredo analisa o romance Os sofrimentos do jovem Werther, procurando assinalar um ponto de contato entre essa obra e a primeira Crítica de Kant. Segundo ele, “tanto Goethe quanto Kant edificam um modelo de crítica da positividade, que se legitima pelas prerrogativas literárias e especulativas atribuídas à indeterminação – seja do narrador, como no caso do Werther, seja da atividade reflexiva, como no caso da Terceira Seção da Analítica Transcendental da Crítica da Razão Pura ” (p. 39).

Também o artigo escrito por Franklin de Matos está voltado para uma análise do Werther. Mas aqui, o foco está mais no exame da forma literária adotada por Goethe, a saber: o romance epistolar, tão em voga no século XVIII. Matos compara as soluções adotadas por Goethe com aquelas adotadas por autores como Montesquieu, Rousseau e Laclos, e mostra de que maneira a forma d o romance epistolar seria a fórmula romanesca que mais se aproxima do drama pois, excetuando-se os prefácios, advertências ou notas de um editor fictício, são os próprios personagens que toma m a palavra.Por meio de uma análise exemplar, concisa e elegante, Franklin de Matos aponta a “notável destreza” de Goethe ao lidar com “as faces lírica e narrativa do gênero epistolar” (p. 147).

Através deste breve resumo da temática trabalhada em cada um dos capítulos, pode-se notar que os mesmos constituem uma contribuição valiosa para a compreensão de aspectos relevantes desse período decisivo da filosofia alemã. Embora o nível de detalhamento de alguns dos ensaios possa torná-los potencialmente mais úteis para os especialistas na área, parece-nos que o livro como um todo também pode ser de grande interesse para um público mais amplo, especialmente no que diz respeito ao exame das conexões entre a filosofia e a literatura.

Notas

1 SCHLEGEL, A. W. Die Kunstlehre. Hg. E. Lohner. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1963, p. 72.

  1. SCHELLING, F.W.J. Obras escolhidas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1984, pp. 42-3.

3.SCHELLING, F. W. J. Ausgewälhte Schriften I. Frankfurt-am-Main.: Suhrkamp, 2003, p. 693.

Referências

SCHELLING, F.W.J. Obras escolhidas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

_____.Ausgewälhte Schriften I. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 2003.

SCHLEGEL, A. W.Die Kunstlehre. Hg. E. Lohner. Stuttgart: W.

Kohlhammer, 1963, p. 72.

Mario Videira Doutor em Filosofia (FFLCH-USP)

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Leis da Liberdade – KANGUSSU (AF)

KANGUSSU, Imaculada. Leis da Liberdade. São Paulo: Ed.Loyola. Resenha de: FIGUEIREDO, Virginia. Sobre Marcuse, 40 anos depois de 68. Artefilosofia, Ouro Preto, n.6, maio, 2009.

“A subjetividade dos indivíduos, a sua própria consciência e inconsciência, tendem a ser dissolvidas na consciência de classe. Assim é minimizado um importante pré-requisito da revolução, nomeadamente, o fato de que a necessidade de mudança radical se deve basear na subjetividade dos próprios indivíduos, na sua inteligência e nas suas paixões, nos seus impulsos e nos seus objetivos. A teoria marxista sucumbiu à própria reificação que expôs e com- bateu na sociedade como um todo.” Essa passagem que extraio do livro Leis da Liberdade é uma citação de outro livro, A Dimensão Estética, de Herbert Marcuse. Ela exprime, com alguma clareza, a atitude desse filósofo que podemos considerar como membro da Escola de Frankfurt, mas também como um crítico da ortodoxia marxista, talvez pela influência que Martin Heidegger, seu orienta- dor em Freiburg, deixou marcada em seu pensamento. Neste ano de 2008, lembrando a importante participação e liderança de Marcuse no movimento estudantil de 1968, principalmente na Universidade da Califórnia, em San Diego, onde o filósofo era, na época, professor, nada mais justo que comemoremos os 40 anos de Maio 68, com a publicação do livro de Imaculada Kangussu, que é resultado de uma tese sobre Marcuse, defendida com muito brilho na UFMG em 2001. A autora, que há tempos milita no difícil questionamento, hoje e sempre, das relações entre arte e política, quer chamar nossa atenção para o sentido de subversão política que a dimensão estética pode conter. Nas suas palavras, a dimensão estética aparece como uma “trincheira para a potência de negação”, na qual se exercitam as leis da liberdade, que são a marca distintiva da natureza humana. Também são de se ressaltar, no livro As Leis da Liberdade, a s incursões psicanalíticas, sobretudo em conceitos freudianos, como os de pulsão e princípio de prazer, a partir dos quais nos é revela- do o sentido material e natural da razão marcuseana, bem como o progressivo recalque a que a mesma foi e continua sendo submetida pela ordem perversa do sistema capitalista.

Renovando o espírito de contestação e rebeldia, com o qual toda arte digna desse nome está comprometida, o livro pretende alcançar a definição de uma “Nova sensibilidade” (é assim que um dos capítulos se intitula) descondicionada. Se, junto com Freud, Marcuse reconhece o valor metapsicológico das estruturas pulsionais, diferentemente dele, o filósofo atribuiu a elas certa plasticidade e, portanto, certa capacidade de efetuar mudanças da organização social. Tomando, talvez como pressuposto, certa constatação de fracasso do que estava implícito nas propostas das estéticas vanguardistas – o que poderia ser resumido na estratégia de dissolução da subjetividade, como se esta última fosse o foco privilegiado da ação individualizadora do capital – a proposta de retomada da obra marcusiana parece querer indicar a necessidade da constituição de uma “nova subjetividade” positiva (e não mais dissolvida e negativa, o que, talvez tenha, segundo esse diagnóstico, favorecido o avanço voraz da economia pródiga de recalques do capital) ou estética, forte o suficiente para o confronto e a resistência frente à ordenação do nosso status quo.”

Virginia Figueiredo-UFMG/CNPq.

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Shakespeare, o gênio original – SÜSSEKIND (C-FA)

SÜSSEKIND, Pedro. Shakespeare, o gênio original. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008). Resenha de: CHAVES, Ernani. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.13 Jan./Jun., 2009

O título deste livro, à primeira vista, é enganador. De imediato, podemos simplesmente pensar que seu assunto é Shakespeare. Apenas o leitor mais afeito às questões de filosofia da arte prestará atenção ao que segue no título: não se trata apenas de mais um estudo sobre o grande dramaturgo inglês (o maior em língua inglesa, diz-se; o maior dentre todos em todos os tempos, também se costuma dizer), mas de um estudo a partir de uma certa perspectiva, a da questão do gênio, e, mais ainda, a partir de uma concepção bem precisa de gênio, a do gênio “original”. Ora desfeito o engano, as coisas ficam bem interessantes, uma vez que é necessário perguntar, obviamente, o quem vem a ser um “gênio original”.

Responder a essa pergunta significa situar filosófica e historicamente a questão do gênio, conceito que Pedro Süssekind reconstrói, conduzindo-nos com isso para o interior de uma discussão fascinante, muito bem localizada no tempo e no espaço: trata-se, acima de tudo, de uma questão alemã, capítulo fundamental da história da reflexão filosófica sobre as artes nos séculos XVIII e XIX; trata-se, de fato, da grande contestação, iniciada por Lessing, do modelo erigido pelos franceses, em especial por Corneille e Racine, e que dizia respeito às regras que deveriam presidir a atividade de qualquer dramaturgo que quisesse ser reconhecido por sua excelência.

Do ponto de vista do classicismo francês, apesar de uma ou outra modificação, Aristóteles teria dado à posteridade, em sua Poética, o maior de todos os presentes: os elementos a partir dos quais se poderiam construir as regras a serem obedecidas tendo em vista a perfeição. Nesta perspectiva, “gênio” e “engenho” se complementam, ou seja, o gênio se caracteriza pelo total e absoluto domínio de uma técnica específica, que segue obedientemente as normas estabelecidas para distinguir a boa da má tragédia e, por conseguinte, o que é belo e elevado por oposição ao que é feio e decaído. Dessa maneira, o classicismo francês dá continuidade a uma interpretação iniciada ainda na Renascença, período histórico em que a Poética é redescoberta. Assim sendo, as teorias normativas da arte “associavam o talento a uma técnica apurada, a uma perícia de execução, à realização de uma obra sem erros, equilibrada e arduamente alcançada” (pp. 7-8).

O movimento pré-romântico alemão, também conhecido por Sturm und Drang e antecedido por Diderot e Lessing, marca uma ruptura em relação a esse quadro, já na segunda metade do século XVIII, ao defender a liberdade, a espontaneidade na criação e, com isso, também a possibilidade de transgressão das regras, visando os efeitos causados pelas obras de arte. O poeta, liberto da escravidão às regras e normas, será valorizado agora por sua “originalidade”; o talento, desse modo, tornar-se-á superior à técnica e o efeito alcançado pelas obras, às regras. Questão que ganhará, no campo da filosofia, sucessivas elaborações, cujo marco inicial é, sem dúvida, a “3ª. Crítica”, de Kant.

É no interior desse debate que a obra de Shakespeare desempenha o papel principal, pois o bardo inglês será tomado como modelo alternativo às tragédias francesas. Pedro Süssekind, com elegância e precisão, descortina ao leitor seu impacto sobre os eruditos alemães, a fervorosa admiração, poderíamos mesmo dizer, que passam a nutrir por Shakespeare e que um francês, Diderot, já expressara com todas as linhas no verbete “Gênio” da Enciclopédia, onde Shakespeare é considerado um “verdadeiro deus dramático” (p. 67). Em Shakespeare, dizia Herder, a originalidade da criação artística atingirá seu ponto mais alto, pois nele “o novo, o primacial, o de todo diverso mostra a força inata de sua vocação” (p.68).

Tal admiração, entretanto, permite também a crítica e o distancia mento (como é o caso em alguns textos de Schiller, por exemplo, e também de Goethe), mas sem abalar radicalmente essa espécie de veneração. Considerar Shakespeare como o Sófocles moderno, igualar “Hamlet” ao “Édipo Rei” consistiu, sem dúvida, no ponto culminante desse processo, do qual nem mesmo Nietzsche escapou. Lembro apenas, en passant, o aforismo 240 de Aurora.

O livro de Pedro Süssekind é de um rigor exemplar. Rigor no trato com as fontes, na mobilização dos intérpretes e comentado res, na indicação ao leitor brasileiro de textos que passariam facilmente despercebidos. É o caso, por exemplo, do artigo de Walter Benjamin sobre Goethe (escrito entre 1926 e 1928), na verdade um verbete que deveria ser publicado numa Enciclopédia russa e que foi recusado. Rigor exemplar porque se trata de um livro muito bem escrito, fluente, na contracorrente da idéia de que um texto filosófico é necessariamente hermético e esotérico, escrito para iniciados. Ele pode, assim, atingir um público diversificado e não apenas um público acadêmico. Mas ambos, o público mais amplo e aquele especializado e exigente, certamente ganharão muito com a leitura desse livro.

Ernani Chaves Departamento de Filosofia. Universidade Federal do Pará.

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La Sanctuaire secret des Bisons – BÉGOUËN et al (DP)

BÉGOUËN, Robert; FRITZ, Carole; TOSELLO, Gilles; CLOTTES, Jean; PASTOORS, Andreas; FAIST, François. (With the collaboration of François Bourges, Philippe Fosse, Sébastien Lacombe and Mathieu Langlais). La Sanctuaire secret des Bisons. Il y a 14 000 ans, dans la caverne du Tuc d’Audoubert. Paris: Somogy éditions d’art, 2009. 415p. Resenha de: BUDJA, Mihael; PETRU, Budja. Documenta Praehistorica, v.36, 2009.

Tuc d’Audoubert – with Les Trois Frères and Enlène – is part of the cave system of the River Volp, and best known for its bison sculpted in clay. The monograph ‘La Sanctuaire secret des Bisons’ is the result of intense scientific research between 1992 and 2004 on the cave and its Pleistocene art. The important part of the research was the re-examination of the archaeological material from earlier excavations.

The book begins with the exciting story of the discovery of Tuc d’Audoubert in 1912 and the subsequent research of the cave’s chambers and galleries, which are decorated with numerous paintings and engravings.

The geographical position of the cave, the genesis of the cave system and landscape are then described, and environmental facts, and the cultural characteristics of the Magdalenians in the Pyrenees region are presented. The reasons for the excellent preservation of the cave art are also emphasised. The methods of research and various techniques for documenting parietal art are presented and some terminological problems explained. The main part of the book is dedicated to the cave art of Tuc d’Audoubert.

The reader encounters various motifs and representations in a voyage through the cave chambers and galleries from the entrance to its deepest recesses, where the journey ends with the most spectacular find – sculptures of bison. The Magdalenians did not visit the cave only to create images – they also lived in it for short periods, and left artefacts and animal bones in some parts. Among the more enigmatic finds are objects pushed into fissures in the cave walls. Similar objects have been found in other caves and might be interpreted as offerings of some kind, which connected people with the cave and underground world. There are numerous impressions of human feet in the cave. It is interesting that there are adult and children’s impressions deep inside the cave, so at least one child accompanied adults to the Gallery of the Clay Bison. In the final chapters, the authors explain the chronology of the art in Tuc d’Audoubert. They discuss the figurative and non-figurative themes of the art, the art techniques, the distribution of the images and the relation between the mundane and symbolic or “sacred” spaces of the cave. The cave and its art are set in the context of the Magdalenian cultural region of the Pyrenees and the wider south-western European region.

The book ends with an attractive epilogue, in which imagination takes wings in a story about the life and creativity of the Magdalenian people who visited Tuc d’Audoubert. “La Sanctuaire secret des Bisons” is an extensive work, which systematically presents a Palaeolithic cave art site. The numerous illustrations contribute to the general attractiveness of the book.

Mihael Budja and Simona Petru

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[IF]

História. A arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história – Durval M. Albuquerque Jr.

Era de profissão encantador de palavras.

Manoel de Barros[1]

Durval Muniz de Albuquerque Júnior é de profissão historiador, o que não o impede de ser também um ‘encantador’ de palavras. História. A arte de inventar o passado, seu último livro, é uma coletânea de artigos sobre teoria da história articulados a partir de uma temática central: as diferentes formas de se pensar e de se escrever a história. Tarefa em geral árdua, ela é aqui tratada de modo rigoroso mas, ao mesmo tempo, sem a severidade de quem apenas quer dar lições. Como Michelet, Durval Muniz em vez de simplesmente redigir, escreve.[2] Escrita audaciosa, provocativa, criativa e elegante, não diria, contudo, que ele escreva com uma “linguagem de em dia-de-semana”, como suplica um ‘famigerado’ personagem de Guimarães Rosa.[3] Mas que ele nos conduz para o terreno ‘nebuloso’ e ‘temerário’ da arte literária, disso, não tenho dúvida. Cuidado, historiadores! Durval Muniz, tal como Foucault, é um desses ‘sujeitos’ perturbadores da boa ordem científica, desses que se colocam entre o sono dogmático e a vigília epistemológica ‘só’ para provocar a polêmica.

Prefaciada por um historiador da história, Manoel Salgado Guimarães, que ressalta o papel da obra no conjunto da produção historiográfica brasileira recente e o percurso intelectual do autor, o livro divide-se em três partes: na primeira é discutida a relação entre história e literatura; após, uma seção inteira dedicada à obra de Michel Foucault; e, por fim, uma reunião de artigos variados. Esses textos, quase todos curtos — o que não subtrai sua capacidade argumentativa —, são antecedidos por uma introdução na qual Durval Muniz procura problematizar e inserir no contexto contemporâneo a noção-chave do título — ‘invenção’: “A História possui objetos e sujeitos porque os fabrica, inventa-os, assim como o rio inventa o seu curso e suas margens ao passar. Mas estes objetos e sujeitos também inventam a história, da mesma forma que as margens constituem parte inseparável do rio, que o inventa”, explica-nos ele com auxílio de uma analogia baseada em conto das Primeiras estórias.[4]

Ainda nessa parte introdutória, o autor debruça-se sobre outros aspectos relacionados à questão, entre os quais a divisão artificial entre a perspectiva cultural e a social. Eu gostaria de chamar atenção, entretanto, para uma outra dimensão que pode passar desapercebida em uma primeira ou rápida leitura: a da ‘evidência’ da história; ‘evidência’, palavra mais próxima da retórica e da filosofia que da história. Para Durval Muniz a idéia de que “os fatos se impõem ao historiador como evidência” é uma falácia, na medida em que ele dissimula o trabalho de construção não apenas do documento histórico mas também da própria escrita da história (p.32, 35). O autor inscreve-se assim em um momento reflexivo que a própria disciplina vem atravessando na última década, como bem demonstra um livro recente de François Hartog, cujo objetivo também é o de questionar a suposta evidência da história.[5]

Os artigos que compõem a primeira parte podem ser lidos como uma tentativa de fraturar a clássica oposição entre literatura e história. O autor busca dissolver a certeza manifesta do ‘evidente’ desencontro entre literatos e historiadores: “meu objetivo não será separar a História da Literatura, não será encontrar seus limites e suas fronteiras, mas articulá-las, pensar uma com a outra” (p.44). De Clarice Lispector, passando pela hilária dupla Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, pelo sisudo Kafka, chegando ao desconcertante poeta Manoel de Barros, Durval Muniz atinge plenamente seu propósito: ele os articula e os pensa, e de forma extremamente inovadora. Não imaginemos, entretanto, que estejamos diante de um “culto ao texto”, isto é, que nada existiria fora dele, que a realidade textual seria a promotora incontestável de toda a revelação e verdade sobre as coisas pretéritas.[6] Um estudo sobre os diferentes modos de os historiadores servirem-se da linguagem não significa, necessariamente, a queda em perspectivas negadoras da possibilidade do conhecimento.[7]’Inventar’ e ‘imaginar’ são verbos que fazem parte das metodologias silenciosas, ou silenciadas, da historiografia: “a interpretação em História é a imaginação de uma intriga, de um enredo para os fragmentos de passado que se têm na mão”, todavia, ressalva importante, “isto não significa esquecermos nosso compromisso com a produção metódica de um saber, com o estabelecimento de uma pragmática institucional, que ofereça regras para a produção deste conhecimento, pois não devemos abrir mão também da dimensão científica que o nosso ofício possa ter” (p.63-64). O autor chega mesmo a falar nos limites impostos pelo “nosso arquivo” (o pronome possessivo preserva a primeira parte, enquanto o arquivo preserva a segunda; p.64). Trata-se de uma resposta prévia à provável objeção de um pós-modernismo-relativista do qual devemos manter as crianças afastadas? Talvez. O certo é que Durval Muniz sabe ser doutor quando quer. Mesmo optando em situar sua produção em um discurso sobre a pós-modernidade (sinceramente não sei qual razão o leva para esse debate, ainda um embate de grandes narrativas, que visam mais desqualificar o outro do que contribuir para um entendimento sociocultural do mundo em que vivemos), o autor deixa claro que não rompeu com os princípios da ‘operação historiográfica’ de um autor que lhe é caro, Michel de Certeau.[8]

Consagrada aos trabalhos de Foucault, a parte seguinte do livro é composta de seis capítulos. No primeiro desses estudos, o autor nos apresenta um estudo comparativo entre o Menocchio de Ginzburg e o Rivière de Foucault. Através de uma consistente crítica ao historiador italiano, Durval Muniz demonstra como seu personagem “termina se explicando pelo contexto mesmo em toda sua singularidade”, enquanto no dossiê organizado por Foucault acerca de Rivière a preocupação não é a de explicar suas palavras e os atos, “mas como estas palavras e estes atos foram silenciados” (p.105). O capítulo seguinte tem por objetivo analisar a obra de Foucault, de certa forma, à luz do próprio Foucault, quer dizer, como suas pesquisas relacionam-se com sua existência, com seus costumes, de onde o autor extrai a idéia nietzschiana de que o pensamento do francês deve ser mais do que discutido, usado. A reflexão seguinte relaciona-se à noção de experiência em Foucault confrontada àquela de Edward Thompson. Para Durval Muniz, enquanto o filósofo evita essencializar as experiências históricas ao negar-lhes um caráter tão-somente fundante, o historiador inglês as limita, em última instância, a serem efeitos fundacionais das classes sociais. Os dois estudos que se seguem procuram analisar, sempre a partir de Foucault, a questão do objeto em história, e a importância do ‘jogo’ na história (o exemplo explorado pelo autor não podia ser mais apropriado: o futebol) e sua correlata desconsideração pela historiografia como resultado de uma luta de poder.[9] Por fim, uma homenagem a Foucault, um homem que “morreu de rir”, dele (da doença que o vitimou, por exemplo) e dos outros, sobretudo dos poderes instituídos (p.193).

Destacaria, nos ensaios esparsos, a crítica de Durval Muniz à história oral. A conversão do oral em escrito, que anula significativamente a manifestação gestual e as emoções do ato de fala, a possível interferência do roteiro e, finalmente, a presença mesma do historiador-entrevistador como personagem da entrevista, são algumas da questões levantadas pelo autor, que não chega a investir em respostas mais aprofundadas. Sua relativa desconfiança (pois não há uma desconsideração pelos avanços realizados por inúmeros pesquisadores nesse campo) em relação às possibilidades da história oral, segundo ele “indefinida entre uma técnica, um método, uma postura teórica”, leva-o a se perguntar: “terá ela conseguido converter a derrota histórica das oralidades para a escritura?”. Não lhe parece: “até porque ela seria um agente infiltrado, que continua em busca dos segredos dos que falam para escrevê-los, tornando-os documentos, inscrevendo-os como monumentos” (p.234). Acredito que mais do que simplesmente provocar os historiadores da história oral, Durval Muniz busque no debate produtivo com esses profissionais respostas às suas inquietações, pois para ele, o que temos no final é “a reafirmação do poder dos que escrevem, dos que dominam a escrita sobre os que falam, os que apenas verbalizam seus conhecimentos, suas experiências. A história é mais um artefato que reafirma a dominação dos que escrevem sobre os que falam” (p.233). Convenhamos, não é todo sujeito com o dom da escrita que reconhece isso…

Finalmente, tentando não deixar passar em branco aquele que, em minha opinião, é o texto mais sensível e poético de Durval Muniz neste livro, sua homenagem a um grande amigo,[10] eu me permito uma ‘invenção’ (como os discursos de Tucídides!), ainda que parcial:

Paris, maio de 1961: “Para falar da loucura seria preciso ter o talento de um poeta”, conclui Michel Foucault depois de deslumbrar o júri e a platéia com a brilhante apresentação de seu trabalho. “Mas o senhor o tem”, responde Georges Canguilhem. Campinas, abril de 1994: “Para falar da invenção do Nordeste brasileiro seria preciso ter o talento de um poeta”, assim Durval Muniz de Albuquerque Júnior poderia ter concluído a exposição inicial de sua tese, e Alcir Lenharo, seu orientador, poderia ter respondido: “Mas o senhor o tem”. E quem poderia afirmar o contrário?[11]

Notas

1. BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Record, 2007. p.17.         [ Links ]

2. BARTHES, Roland. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984. p.244-245.         [ Links ]

3. ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: J. Oympio Ed., 1981. p.11.         [ Links ]

4. ALBUQUERQUE Jr., 2007, p.29; ROSA, Guimarães. “A terceira margem do rio”, em ROSA, 1981, p.27-32.         [ Links ]

5. HARTOG, François. Évidence de l’histoire. Ce que voient les historiens. Paris: Éd. de l’EHESS, 2005.         [ Links ]

6. FAYE, Jean Pierre. Théorie du récit, 1972, p.130,         [ Links ]citado em HARTOG, François. Le miroir d’Hérodote. Essai sur la représentation de l’autre. Paris: Gallimard, 1991. p.321.         [ Links ]

7 É o caso do trabalho de R. Koselleck, assim definido por Hayden White: a “história da historiografia, na visão de Koselleck, é a história da evolução da linguagem dos historiadores”. WHITE, H. Foreword. In: KOSELLECK, R. The practice of conceptual history. Stanford: Stanford University Press, 2002. p.XIII.         [ Links ]

8. CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.63-120.         [ Links ]

9. “Chega de ensaios racionalistas que, como diria Nietzsche, mal escondem o seu rancor e sua demagogia”. CERTEAU, 1975, p.178.

10. “Íntimas histórias: a amizade como método de trabalho historiográfico”, ibidem, p.211-217.

11. ERIBON, Didier. Michel Foucault. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.117;         [ Links ]ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999. p.9.         [ Links ]

Temístocles Cezar – Pesquisador do CNPq – Depto. de História — Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Av. Bento Gonçalves, 9500 – CP 91501-970. 91509-900 Porto Alegre – RS – Brasil. E-mail: [email protected]


ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História. A arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007. 256p. Resenha de: CEZAR, Temístocles. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55  jan./jun. 2008. Acessar publicação original [IF].

From Bomba to Hip-Hop. Puerto Rican Culture and Latino Identity | Juan Flores

During the first part of the 1990s, a considerable number of publications on the “Hispanic” or “Latino” experience emerged, but Juan Flores’ book, From Bomba to hip-hop is one of the few scholarly studies to reveal the complexities of Latino identity. In addition, it is a homage that constitutes one of the few pioneer pieces of research on Puerto Rican culture and artistic expression. The title of this book, From Bomba to Hip-Hop, is one that catches the reader’s attention and is more than a phonetic and musical juxtaposition of words. I will try to define this phrase, adopting the author’s definition: “A celebration of the continuity of Puerto Rican Culture” (p. I). Juan Flores’ study lucidly traces the evolving distinctiveness of Puerto Rican culture in both New York and Puerto Rico and the title attempts to combine these locations. Thus, “bomba” refers to the folkloric origins of Puerto Rican popular dance and music, which is the ancestor of the “hip-hop” music that emerged in 1970s and 1980s in the marginalised areas of New York, becoming a prominent feature of Puerto Rican youth culture in New York.

The book is structured in ten rather brief chapters, with a short introduction and a concluding Postscript. The introduction, though brief and anecdotal, is based on Flores’ observations of an event entitled “From Bomba to Hip-Hop” at his Hunter College alma mater.

It addresses many of the issues that the subsequent chapters of the book will deal with and invites us to read more. Although the book does not have a clear connecting thread, each of the chapters is written clearly and leads in to the next, allowing the reader to enjoy a progressive understanding of the main theme of the book.

At the very beginning of the book the reader is introduced to the notion of “popular culture” in a clear manner, Flores defining the concept “popular” as that belonging to the majority of people (i.e. poor and low middle classes, the common people). Flores distinguishes the different meanings that “popular” has acquired over time, convincingly showing how the term has evolved from its earlier definition as the survival of traditions or folklores, to its current definition of “mass culture”.

The most interesting aspect of this scholarly researched book is the account it gives of how Puerto Rican identity has developed in New York, providing an exhaustive description of its national roots, cultural space, musical and literary expressions. Flores continues to argue consistently the shaping of Puerto Rican identity is not defined by geographical, linguistic or behaviour models, but by a close kinship with its origins, the people and the culture that define the genuine self, rather than being defined by its condition in the Diaspora. An important characteristic of this study is the emphasis placed on the Puerto Rican’s experience of being “in between” two cultures, leading in Flores’ opinion to “the possibility of an intricate politics of freedom and resistance” (p. 55). Like Díaz Quiñones in La memoria rota, which analyses the construction and breaking of Puerto Rican nation, Flores emphasises the continuity of the Puerto Rican cultural development in the Diaspora. He gives the eloquent example of the emergence of Spanglish in Puerto Rican culture, as a symbiosis between language and place, between identity and memory. The main idea proposed here is that the apparently fragmented image of Puerto Rican culture is actually connected by a constant process of re-construction, where unity and diversity maintain a robust Puerto Rican identity that is bond by its historical memory.

The book reveals how the cohabitation of diverse ethnic minorities in the Diaspora leads to the emergence of hip-hop, via the interaction between Puerto Ricans and Black youngsters within the shared context of New York, creating a common space for a fusion of African American and Latino musical expression. However the author describes how “this fusion” has obscured Puerto Rican cultural and musical heritage. He supports this hypothesis by referring to the neglect of Puerto Rico’s native Spanish language and to how Latin styles have been subsumed by the American label. Flores expands this issue by highlighting how bands and singers of Cuban, Panamanian, and Ecuadorian origins in the USA have gained fame and popularity as Spanish-language reggae-rap in the Caribbean and Latin America. Whereas New York Puerto Ricans with their hip-hop backgrounds have become dispersed and have lost their Puerto Rican identity. Flores stresses how the prevailing racial hierarchy with which Puerto Ricans find themselves confronted in the American Diaspora can explain the invisibility of this Hispanic community.

The book includes a number of case studies to illustrate its main points, as well as a valuable selection of contemporary Puerto Rican and other Latino rap songs. These lyrics illustrate the innovation and heritage of minorities such as Puerto Ricans, despite their apparent invisibility in New York. In his analysis of the complexities of Latino life, Flores shows that although Latino Studies is a growing area in further education institution in the USA, this has involved a complex and arduous process of development. In other words, the struggle of Latino people to adapt to in the colonial context of North America has been paralleled by the academic struggle encountered in establishing Latino Studies as an independent discipline. In an admirably challenging manner, Flores proposes that Latino Studies should be integrated urgently into academia as a social movement and in the name of human rights. He adds that this also will address the need to awaken awareness of historical memory among Puerto Ricans and other Latino immigrants.

This book undoubtedly represents a comprehensive study of contemporary Puerto Rican culture and is a valuable contribution to the field. Although several studies have already been carried out, these are restricted to mainstream issues in Latino culture. Flores’ book emphasises the complex particularities of Puerto Rican cultural experience and is an insightful exploration of the complexity and contradictions of contemporary Puerto Rican and Latino culture, informed by a contemporary cultural theory. From Bomba to hiphop is a well-researched and valuable work that uncovers many enigmas of “Latinos” in New York and invites us to re-evaluate the issue of Puerto Rican culture and identity in the United States. It undoubtedly provides the groundwork for important studies on ethnic minorities yet to come.

Brígida M. Pastor University of Glasgow.


FLORES, Juan. From Bomba to Hip-Hop. Puerto Rican Culture and Latino Identity. NewYork: Columbia University Press, 2000, 265p. Resenha de: PASTOR, Brígida M. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.6, n.11, jul./dez., 2005. Acessar publicação original. [IF].

El arte palestino de tallar el nácar. Una aproximación a su estúdio desde el Caribe colombiano – YIDI et al (M-RDHAC)

YIDI, Enrique; DAVD, Karen; LIZCANO, Martha. El arte palestino de tallar el nácar. Una aproximación a su estúdio desde el Caribe colombiano. Barranquilla: Panamericana formas e Impresos, 2004. 128p. Resenha de: HAYDAR, Jorge Mizuno. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.1, jun./dic., 2004.

Jorge Mizuno Haydar – Jefe y professor del Departamento de Idiomas de la Universidad del Norte, en Barranquilla, Colombia.

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Pictorial narrative in ancient greek art – STANSBURY-O’DONNELL (AN)

STANSBURY-O’DONNELL, Mark D. Pictorial narrative in ancient greek art. Londres: Universidade de Cambridge, 1999. Resenha de: NÓLIBOS, Paulina Terra. Anos 90, Porto Alegre, v.10, n.17, p.3-7-310, 2003.

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Ciência e arte: Euclides da Cunha e as ciências naturais | José Carlos Barreto de Santana

Monumentos textuais costumam dificultar a entrada em cena de novos olhares críticos, pois a repetição do já dito, que sobre eles recai, geralmente obstrui a visão dessas obras e impede a passagem da luz que vivifica a permanência dos textos na tradição cultural em que eles se inserem. Às vezes, somente um olhar de fora, alheio ao consagrado espaço crítico do texto, pode ser capaz de desobstruir os pontos de vista e colocar de novo em circulação a potência das obras. Este é o caso de Ciência e arte: Euclides da Cunha e as ciências naturais, de José Carlos Barreto de Santana, o qual, debruçando-se sobre a obra e o percurso intelectual de Euclides da Cunha, e em especial sobre Os sertões, enfoca o conjunto por um viés alheio àquele construído durante décadas por críticos literários, historiadores sociais, antropólogos e sociólogos.

Barreto de Santana é geólogo por formação. Seu olhar, definido pelas ciências naturais, busca iluminar o texto de Euclides a partir da presença do discurso científico, do trabalho de campo e das redes de pesquisadores das ciências naturais no percurso intelectual e nos textos do autor de Os sertões. Como historiador da ciência, Santana alinha-se a uma vertente historiográfica que privilegia a inserção da prática científica no âmbito da cultura, e se recusa a ver as ciências como um saber isolado das relações históricas e políticas. Esse duplo estatuto – de geólogo e historiador cultural das ciências naturais – habilita o autor a caminhar por sendas críticas antes pouco exploradas em relação às obras de Euclides da Cunha. Assim fazendo, Santana enriquece os dois vetores que se cruzam em seu trabalho: por um lado, o autor submete à reflexão da história das ciências um texto não estritamente científico, tal como Os sertões, num procedimento heterodoxo que só amplia os horizontes da historiografia das ciências no Brasil; por outro, a crítica literária, a história e a sociologia que se debruçam sobre o cronista de Canudos dispõem, a partir de agora, de largo arsenal de novos argumentos sobre o texto, advindos da pena de um geólogo. Leia Mais

Art, histoire et enseignement – BAQUÈS (CC)

BAQUÈS, Marie-Christine. Art, histoire et enseignement. Paris: Hachette et Centre national de documentation pédagogique (CNDP), «Enjeux du Système éducatif », 2001. 160 p. Resenha de: HEIMBERG, Charles. Le cartable de Clio – Revue romande et tessinoise sur les didactiques de l’histoire, Lausanne, n.2, p.281, 2002.

Un tableau, s’il est beau et célèbre, s’il est beau ou célèbre, peut sans doute constituer un élément déclencheur très efficace pour une séquence pédagogique d’histoire, même si l’enseignant aura quelques scrupules à l’analyser dans cette perspective sans posséder de solides connaissances en matière d’histoire de l’art. Mieux encore, il peut même être le vecteur de l’étude d’une époque ou d’une société à partir de son potentiel spécifique d’expression. En outre, l’Ecole publique a entre autres pour fonction de sensibiliser les élèves à l’appréciation des arts visuels, leur faisant construire un certain sens du beau. Dès lors, l’écart entre ce qui est vu et ce qui est perçu (nous voyons beaucoup plus de choses dans une œuvre que nous en percevons réellement), la relation avec les dimensions morale, politique ou sociale de l’œuvre, tout cela ne devrait-il pas être abordé en situation scolaire? Le premier intérêt d’Art, histoire et enseignement, le livre de Marie-Christine Baquès est de clarifier la problématique qui est relative à la place de l’œuvre d’art dans l’enseignement de l’histoire. Pour elle, en effet, l’œuvre d’art « suscite trois types d’interrogations – ce que l’artiste a voulu faire, les conditions de la création et de sa réception (mécènes, rôle de l’Etat, public, diffusion), sa ou ses fonctions – et offre trois entrées – l’œuvre, l’artiste, le contexte. Leur mise en relation est opératoire lorsque l’œuvre d’art devient objet d’enseignement» (page 19). Par ailleurs, l’objet artistique est « devenu terrain de l’historien qui tantôt y cherche une approche de l’imaginaire d’un groupe, tantôt y lit les relations complexes où l’œuvre d’art a pris forme » (page 23).

Travaillant sur les trois fonctions principales – esthétique, documentaire et mémorielle – de l’étude de l’œuvre d’art, l’histoire enseignée l’inscrit ainsi dans sa réalité sociale. En même temps, ce passage par des sources artistiques permet une ouverture vers des aspects souvent marginaux et ignorés des sociétés étudiées, et participe ainsi du renouvellement de l’histoire scolaire. Enfin, il faudrait éviter trois écueils: l’utilisation d’une œuvre comme simple illustration d’un fait, sans la moindre interrogation sur sa nature artistique ; l’analyse de l’œuvre sans aucune référence à l’esthétique et à sa dimension affective ; enfin, une approche patrimoniale qui confinerait l’œuvre à une fonction de point de repères.

Cet ouvrage, d’une écriture claire et accessible, propose encore quelques ébauches de séquences pédagogiques autour d’autant de tableaux. Il est un peu le reflet d’une situation dominante qui privilégie la seule peinture parmi les arts visuels à enseigner en relation avec l’histoire. Ce qui le mène ainsi à ignorer d’autres formes artistiques comme la sculpture ou la photographie. On pourrait aussi souhaiter le prolonger par des séquences pédagogiques centrées sur des comparaisons qui donneraient à voir la diversité et l’évolution possibles de l’expression artistique. Cela dit, il constitue un apport très stimulant et une belle incitation à associer utilement, dans un esprit d’ouverture, l’œuvre picturale et l’étude de l’histoire.

Charles Heimberg Institut de Formation des Maîtres (IFMES), Genève.

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Mith into Art: Poet and Painter in Classical Geece – SCHAPIRO (RHAA)

SCHAPIRO, Harvey Alan. Mith into Art: Poet and Painter in Classical Geece. Sn.: Routledge, 1994. 196p. Resenha de SARIAN, Haiganuch. Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n.2, p.355-357, 1995/1996.

Haiganuch Sarian – Universidade de São Paulo, Brasil.

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História da Arte e Arqueologia | Unicamp | 1994-2015

hISTORIA DA ARTE E ARQUEOLOGIA1

A Revista de História da Arte e Arqueologia  (1994 – 2015) é uma publicação do Centro de História da Arte e Arqueologia, da Universidade Estadual da Campinas.

Publicada desde 1994, seu principal objetivo é promover um maior desenvolvimento da História da Arte e Arqueologia no Brasil, relacionando-as com a produção internacional da área. A RHAA é uma das mais importantes revistas científicas brasileiras que trata essas duas disciplinas correlatas, e é indexada internacionalmente.

RHAA tem por objetivo a publicação de trabalhos de especialistas brasileiros e estrangeiros sobre qualquer assunto de História da Arte e Arqueologia, e ainda alcançar um público amplo e interessado.

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Musa Libertaria – arte, literatura y vida cultural del anarquismo español (1880-1913) – LITVAK (VH)

LITVAK, Lily. Musa Libertaria – arte, literatura y vida cultural del anarquismo español (1880-1913). Barcelona, Antoni Bosch Editor, 1981. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.5, n.9, p. 185-187, jun., 1989.

“No se presenta un plan prefabricado, sino ideas

audaces y heterodoxas, porque exigían que cada

hombre fuese único e uno dentre muchos” (p. 402)

Musa Libertaria cumpre, segundo a concepção benjaminiana, a função da obra do historiador, despertando no passado as “centelhas da esperança”. A autora reflete sobre o papal da arte como forma de luta. Alguns artistas consagraram-se e imortalizaram-se como Tolstoi, Picasso, Pissaro. Muitos, entretanto, permaneceram na obscuridade.

Lily Litvak dedica seu livro ao estudo desses artistas ocultos, destacando os anarquistas espanh6is. Chamando a atenção para a escassez de obras sobre a vida cultural e literária dos anarquistas, afirma que estes valorizavam a obra de arte como parte inseparável da propaganda, atribuindo-lhe um papel revolucionário. As criações artísticas de tendência libertaria se inspiravam nas vozes silenciadas e nas vidas dos despossuídos.

0 anonimato em que permaneceram tais obras e a derrota sofrida pelos anarquistas espanhóis não justificariam que o tema permanecesse esquecido. Como afirma a pr6pria autora, existem “tristes êxitos e her6icas derrotas”. Quanto a questão da eficácia ou não da atuação anarquista como arma contra a dominação, sempre se costuma lembrar seus fracassos. Porém, sua efetividade encontrava-se em sua própria existência, “enquanto testemunho da rebeldia humana contra a opressão e a injustiça” (p. 399).

Nota-se a forte influência de W, Benjamin sobre o propósito da obra em questionar o domínio dos vitoriosos e estabelecer uma relação de empatia com os que foram vencidos e derrotados.

0 estudo das manifestações artísticas libertarias não se faz de maneira simplesmente descritiva, mas esquadrinhando-se, com perspicácia, inúmeros pontos básicos e problemas fundamentais presentes no ideário anarquista.

0 levantamento dos temas a serem abordados no decorrer da obra é feito a partir da análise das imagens ficcionais construídas na literatura, nas gravuras, desenhos e pinturas de inspiração libertária. Assim, é através de poemas, romances e canções que se reconstrói, por exemplo, a concepção de natureza comum entre os libertários: a natureza harmoniosa, fonte de exemplos para a regeneração da sociedade humana, equilíbrio ao qual retornaria o homem na sociedade anárquica. São reproduzidas gravuras de jornais anarquistas, dentre alas uma que exemplifica a vida anarquista através da imagem de uma família trabalhando no campo: esta presente a noção de continuidade do labor na vida do homem, da beleza moral do trabalho e da premiação do esforço humano pela natureza, vista como uma mãe serena e fecunda (p. 27 e 28).

As figuras do padre, do capitalista, do miserável, do revolucionário, etc., eram apresentadas pelos anarquistas de forma estereotipada, tornando fácil a identificação. A autora destaca o expressionismo presente nestas caricaturas e a forma como as mensagens são’ comunicadas intensa e vibrantemente. 0 inimigo é simbolizado através de objetos (crucifixos, espadas, coroas, etc.), como animais ferozes (cobras, serpentes, monstros) ou através da ênfase a aspectos burlescos (burgueses gordos, avaros amarelados com um riso falso nos lábios, etc.). Os miseráveis são representados como possuidores de grande beleza moral e dignidade. A imagem do operário militante revela coragem, luta, rosto nobre, fronte larga. Na linguagem, como na construção das personagens, nada é sutil, tudo é manifesto, claro e simples. A emotividade transparece no use frequente de expressões extravagantes, de palavras de sonoridade significativa, repetições, exclamações e interrogações.

Este excessivo maniqueísmo levava a uma estética dominada por contrastes absolutos. 0 realismo anarquista era exagerado e desmedido, buscando demonstrar a todo o custo uma verdade inquestionável, cujo conhecimento levaria ao caminho da anarquia.

Analisando a linguagem e a construção de imagens ficcionais pelo realismo anarquista, Lily Litvak faz uma instigante reflexão sobre temas importantes do ideário anarquista e a extensão do conhecimento científico; o pacifismo; a valorização do potencial revolucionário dos miseráveis, criminosos, mulheres e camponeses; a preocupação com a criação de uma estética revolucionaria; a representação do caráter digno do trabalho (desvirtuado pela sociedade capitalista); o fervor religioso presente na crença no caráter regenerador da doutrina anarquista; visões da utopia, dentre outros.

Além da literatura e da pintura, a autora também examina outras atividades culturais. A imprensa é uma delas. 0 papel alternativo da imprensa anarquista era valorizado pois divulgava idéias, fatos e eventos silenciados pela imprensa burguesa. Os libertários buscavam organizar um sistema eficiente de distribuição. Os jornais lidavam com dois tipos de mensagens, as escritas e as tipográficas. As disposições tipográficas, na busca de impacto, traziam cores agressivas e simbólicas. Gravuras complementavam o texto, buscando despertar emoções. A imprensa libertaria intencionava ser um canal de comunicação alternativo que criticasse, desmascarasse e negasse a linguagem e os canais institucionalizados pela burguesia, contribuindo para a pratica de uma cultura revolucionaria.

0 teatro libertário é analisado em seu caráter popular (à medida em que era facilmente compreensível pela massa, por retratar com simplicidade seu pr6prio cotidiano) e realista medida em que procurava mostrar verdades absolutas que transcendiam a própria realidade “palpável”). A educação e a cultura também eram muito estimuladas. Várias revistas foram criadas, procurava-se facilitar o acesso a livros, jornais, etc.

A partir da avaliação de todas estas atividades, conclui-se que existia uma verdadeira pratica cultural levada a frente pelos anarquistas. Estes, opondo-se cultura burguesa, pretendiam forjar outros códigos linguísticos e novos veículos de comunicação (p. 283).

A concepção corrente entre os anarquistas espanhóis sobre a arte também objeto de reflexão da autora: a arte como forma de luta, como meio de despertar as consciências e o espírito de rebeldia. Relacionado a vida cotidiana, o ato criador era mais valorizado que o produto final, pois as obras artísticas eram vistas como uma forma de ação direta. Desmitificava-se as obras artísticas consagradas, assim como os museus, exposic6es, etc.

Lily Litvak realiza um estudo esclarecedor do anarquismo espanhol, utilizando livros, poemas, canções e gravuras. Investigando as especificidades desse movimento, consegue trazer ao leitor uma maior compreensão das ideias, esperanças e desejos libertários.

Regina Horta Duarte

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