Direitos Humanos: História e Tempo Presente / Tempo e Argumento / 2019

Direitos Humanos: História e tempo presente [1]

Assinalando a recente celebração dos setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Revista Tempo & Argumento disponibiliza novo dossier onde se reúnem artigos que captam realidades históricas e da atualidade da Argentina e do Brasil, observadas pela perspetiva da problemática dos Direitos Humanos. Construídos com diferentes metodologias e ferramentas teóricas, estes artigos apontam para duas dinâmicas que possuem a sua própria historicidade: uma, a do alargamento da consciência coletiva acerca da importância da preservação daqueles direitos, verificada em comportamentos de distintos grupos sociais; outra, a do aprofundamento de uma atitude de vigilância sobre os factores que compromentem os Direitos Humanos, quer se manifestem potencialmente, quer se verifiquem em situações de facto.

Os episódios aqui tratados envolvem agentes históricos (figuras do judiciário, polícias, vítimas, ativistas) e ambientes (uns burocratizados, outros sociais, outros ainda virtuais) bastante diferenciados, onde, através de distintas posições profissionais-culturais e de práxis formais e informais, se aborda a reivindicação de direitos e a sua adjudicação. Em mais do que um artigo, o leitor é confrontado com o tratamento de questões como a memória, as reações emocionais e a criatividade na construção de soluções de problemas. No seu conjunto, os autores apontam para a demonstração de que cursos alternativos de acção existem e justificam como os mesmos alcançam legitimidade, lidando com interesses, com cristalizações no ambiente político ou com conflitos. Dois aspetos emergem destas várias composições que me parecem ser úteis a um desenvolvimento futuro da reflexão historiográfica no âmbito da problemática dos Direitos Humanos. Por um lado, a necessidade de se inquirir qual o lugar da negociação e da gestão dos interesses, constatadas nas formas de interação dos vários agentes, os quais sempre confrontam, em qualquer processo analisado, o investigador com uma multiplicidade de ideias, normas de comportamentos e motivações sobre a lei [2]. Por outro lado, a importância de explorar o que se pode chamar de incerteza institucional nos regimes analisados e de como essa condição afecta tanto recursos como capacidades, mobilizados em defesa de certas posições, acabando por determinar a distribuição do poder na política e na sociedade. Esta também pode ser uma via para compreender a complexidade do real e desconstruir a imagem simplificada e recorrente do sistema e da administração de justiça latino-americana como ineficaz, inconsequente e enfeudada a sectores políticos.

Uma forma possível de atender a estes aspectos é retomar para reflexão, como já alertou Samuel Moyn, o ponto de que os direitos humanos dependem de discursos e estruturas jurídicas (e do próprio direito internacional) e não de códigos morais e sentimentos, sob pena de não se estar a construir uma história dos Direitos Humanos, mas uma história do ativismo, da militância ou do humanitarismo. É importante que os estudos nesta temática concorram para clarificar qual(is) é(são) o(s) locus da autoridade legal, bem como quais são as leituras transportadas sobre a estrutura legal, isto é, quais são as visões legais produzidas nas construções que orientam a ação judicial, policial, militar ou nas lutas associadas à justiça transicional, ou ainda nas lutas pela conservação de modelos de justiça antitransicionais.

Este desafio afigura-se tão mais importante quanto o campo de pesquisa sobre os Direitos Humanos tem vindo a ser profusamente explorado nas várias comunidades científicas, um pouco por todo o globo, inclusive no mundo não ocidental, que lidam com normatividades e credibilidades diferenciadas desses direitos, consoante os contextos nacionais ou continentais onde estão inseridas. Na historiografia, influenciada pelos resultados de outras ciências sociais, regista-se que este campo de pesquisa conhece uma grande ebulição, numa tendência que já apresenta uma duração considerável, se atendermos a que na década de 1990 eram reduzidos os estudos sobre Direitos Humanos [3]. Ao longo dos últimos vinte anos, nos Estados Unidos da América mereceram amplo desenvolvimento aspectos como a metodologia dos estudos históricos de Direitos Humanos, a (re)invenção ou progressão dos direitos humanos na sequência do final da II Guerra Mundial e da terrífica experiência do Holocausto, da Guerra Fria e do pós-Guerra Fria. Na Europa, historicizaram-se as campanhas humanitárias associadas aos grandes conflitos bélicos ou às migrações em larga escala, discutiram-se diplomacias e políticas para os Direitos Humanos de vários Estados nacionais e de organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas, bem como as conexões entre as políticas de ambos, relacionando-as com o aprofundamento de conteúdos da vida democrática ou com os comportamentos de intelectuais e de forças políticas. Nesta linha, recentemente, surgiram pesquisas sobre o ínicio da propagação da cultura dos Direitos Humanos entre as oposições dos regimes ditatoriais e como tal serviu ao seu questionamento sobre a manutenção dos impérios coloniais, ou como, nos povos que aspiravam à autodeterminação e à independência, os dirigentes projetaram esses designíos além das comunidades locais e os fundaram num universalismo e na busca de direitos fundamentais reconhecidos na lei internacional.

A problemática dos Direitos Humanos tem vindo ainda a insinuar-se em produções historiográficas com objetos de estudo tradicionalmente orientados para outros problemas. Um exemplo encontra-se na própria história militar, que apesar de ocupada com estratégia e geopolítica, desenvolvimentos técnicos e científicos, lideranças militares e políticas, tem vindo a considerar a linguagem e a aplicação dos direitos humanos quando se debruça sobre tópicos como prisões e prisioneiros de guerra [4]. Também nos estudos sobre o comportamento das polícias ou dos chamados “movimentos sociais” se encontram variadíssimos contributos para o debate em torno dos direitos humanos, habitualmente percepcionados como ideia (s) que se ajusta aos imaginários dos atores, concorrendo para legitimar um tipo de moral e / ou para orientar as ações de grupos sociais. Na América Latina, têm dominado os estudos sobre as violações dos Direitos Humanos cometidas durante as ditaduras e os conflitos armados internos, ou mais recentemente sobre os processos judiciais contra os responsáveis pela perpetração dessas violações, designadamente sobre as interações de juízes, promotores e advogados.

A riqueza inesgotável deste campo de pesquisa é susceptível de gerar disputas sobre a forma de fazer uma história dos Direitos Humanos, merece, todavia, que se evitem armadilhas nesta “nova era da democracia”, para usar uma expressão do historiador e filósofo francês Marcel Gauchet, onde “se reivindicam direitos mais do que deveres, no quadro de egoísmos mais do que da universalidade, em que os direitos do homem servem hoje para tudo. Sobretudo, paradoxalmente, para negar os direitos do homem universal”, em favor de uma “concepção individualista e privatista de direitos singulares, que se presta a todos os desvios possíveis” [5].

Notas

1. Nesse texto optou-se por manter a grafia da língua nativa (Língua Portuguesa – Portugal).

2. Ezequiel A. González-Ocantos, Shifting Legal Visions. Judicial Change and Human Rights Trials in Latin America, Cambridge University Press, New YorK, 2016, pp. 27-30.

3. Samuel Moyn, “Substance, Scale, and Salience: The Recent Historiography of Human Rights” in Annual Review of Social Science, n.º 8, 2012, pp. 124-134.

4. Sybille Scheipers, Prisoners in War, Oxford: Oxford University Press, 2010; Arnold Kramer, Prisioners of War. A reference handbook, Westport: Praeger, 2008.

5. “Marcel Gauchet: “Que faire des Droits de L’Homme?”. Entretien réalisé par Valérie Toranian et Jacques de Saint Victor in Revue des Deux Mondes, 2018, pp. 17-18.

Referência

MAUCH, Christof. Slow Hope: Rethinking Ecologies of Crisis and Fear. RCC Perspectives: Transformations in Environment and Society, 2019, no. 1.

Paula Borges Santos – Instituto de História Contemporânea da NOVA FCSH

(Organizadora)


SANTOS, Paula Borges. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.27, 2019. Acessar publicação original [DR]

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