Hippone Aix-en-Provence – DELESTRE (RHAA)

DELESTRE, Xavier (Ed.). Hippone Aix-en-Provence. [Sn]: Édisud, 2005. 471p. Resenha de: OLIVEIRA, Julio Cesar Magalhães de. Revista de História da Arte e Arqueologia, n.7, p.113-116, jan./jun., 2007.

Fruto de um trabalho coletivo de historiadores, arqueólogos e conservadores, esse livro é o primeiro resultado da recente cooperação científica e cultural franco-argelina para o estudo e a valorização do sítio arqueológico de Hipona (a antiga Hippo Regius, atual Annaba, na Argélia). Hipona é conhecida, sobretudo, por ter sido a cidade em que Santo Agostinho exerceu seu ministério como bispo, de 395 até sua morte em 430 d.C. Mas o sítio é também importante por se tratar de uma das principais cidades portuárias do Magreb antigo.

Fundada provavelmente pelos fenícios, Hipona tornou-se, desde o século II a.C., residência ocasional dos reis númidas, donde o epíteto de Regius associado ao seu nome púnico. Anexada à província romana da África Nova no final da República, a cidade foi promovida ao status de municipium já sob Augusto e de colônia romana honorária antes do final do século I d.C. Essa rápida promoção política refletia em grande medida a enorme importância econômica que a cidade conservaria durante todo o período romano como um dos principais portos exportadores das produções africanas.

Sede de um destacamento militar encarregado da guarda do litoral, residência de funcionários imperiais e de um dos legados do governador da província da Proconsular até o século V, Hipona tornar-se-ia, nos primeiros anos da conquista da África pelos Vândalos, a capital do novo reino até a tomada de Cartago em 439, conservando mesmo depois uma enorme importância estratégica para os conquistadores. A história de Hipona a partir da reconquista bizantina, em 533, é pouco conhecida, mas é certo que a cidade continuou sendo habitada por uma população, sem dúvida, reduzida. Após sua conquista pelos árabes, a cidade sobreviveu em seu sítio antigo pelo menos até o século XI, quando começou a ser abandonada em beneficio da aglomeração vizinha de Nova Bûna, que se tornaria a moderna Annaba.

A redescoberta do sítio antigo ocorreria apenas no século XIX, já sob a dominação francesa da Argélia, com as descobertas ocasionais de mosaicos e inscrições romanas. As primeiras escavações realmente importantes começaram em 1895, com o desenterramento das luxuosas casas do litoral. A maior parte dos trabalhos de escavação, porém, seria levada a cabo de 1947 a 1963 sob a direção de Erwan Marec, um oficial aposentado da marinha francesa. Os trabalhos arqueológicos desse período tiveram o mérito de trazer à luz os principais monumentos da cidade antiga e de salvaguardar o sítio em face do avanço progressivo do distrito industrial de Annaba. No entanto, o objetivo dos primeiros escavadores de expor a rede viária da cidade antiga e de desenterrar os monumentos públicos, as casas da elite e os edifícios cristãos contemporâneos de Santo Agostinho implicou necessariamente na perda de informações preciosas, uma vez que a estratigrafia foi completamente ignorada e os níveis mais tardios, simplesmente destruídos. Além disso, a tentativa de interpretar os vestígios materiais à luz dos princípios da arquitetura clássica definidos por Vitrúvio ou das informações contidas na documentação agostiniana sobre os edifícios cristãos levou freqüentemente a restaurações abusivas e a reconstituições equivocadas dos monumentos.

As primeiras sondagens estratigráficas em Hipona foram conduzidas apenas em 1963-1964 por Jean-Paul Morel, o que permitiu, sobretudo, uma datação segura do muro litorâneo (construído, sem dúvida, no século I a.C.) e das residências vizinhas.

A partir dos primeiros anos da independência da Argélia, porém, nenhuma pesquisa arqueológica realmente importante foi desenvolvida em Hipona. Na última década do século XX, a própria conservação do sítio viu-se prejudicada pelos anos de continuada guerra civil no país: abandonados, os monumentos de Hipona foram tomados pela água e pela vegetação.

Daí a importância da recente campanha de estudos arqueológicos patrocinada por autoridades francesas e argelinas e conduzida, de 2002 a 2005, pela equipe de Xavier Delestre, da Direção Regional dos Assuntos Culturais da Região da Provença, Alpes e Côte d’Azur.

Na expectativa de um trabalho mais aprofundado de escavações e prospecções arqueológicas, o presente projeto tem o grande mérito de promover uma releitura cuidadosa de muitos monumentos de Hipona e de lançar as bases para uma conservação perene de seus vestígios arqueológicos, hoje ameaçados.

O livro expõe os resultados preliminares desses estudos, mas é também muito mais que isso. Ao apresentar uma suma do conhecimento atualmente disponível sobre o sítio, ele se constitui numa obra de referência indispensável e no ponto de partida obrigatório para todo estudo futuro sobre Hipona. O livro está organizado em cinco partes, precedidas de uma introdução geral por Xavier Delestre e Marcel Tavé. A primeira parte apresenta um “Quadro histórico”, que resume a história da cidade a partir, sobretudo, das fontes textuais. Claude Lepelley discute a história social e política de Hipona nos períodos númida e romano.

Serge Lancel apresenta brevemente a carreira de Santo Agostinho em Hipona e trata dos mosteiros e igrejas da cidade, mencionados pelo bispo em seus textos, bem como das paróquias rurais de sua diocese. Sabah Ferdi estabelece uma relação interessante (embora deslocada em relação ao tema dos demais capítulos desta parte) entre um texto de Agostinho e um mosaico encontrado em uma das casas de Hipona. Jean-Pierre Laporte retoma em seguida a evolução geral da cidade, discutindo sua história política nos períodos vândalo e bizantino.

Saïd Dahmani trata das referências a Hipona nas fontes árabes e discute as condições de sua ocupação até o século XI. Abderrahman Khelifa conclui esta parte com uma discussão sobre a história política de Annaba durante a Idade Média.

A segunda parte, constituída de um único capítulo, redigido por Xavier Delestre, trata da história das pesquisas arqueológicas sobre o sítio de Hipona, do século XIX aos dias atuais. Na terceira parte, são reunidos capítulos sobre “Os monumentos públicos e a arquitetura privada”. Philippe Leveau discute o urbanismo de Hipona no contexto mais amplo da evolução geral das cidades africanas até o final do período romano. Frank Suméra faz uma excelente discussão sobre o esquema urbanístico de Hipona, a partir do levantamento topográfico efetuado pela recente campanha.

Xavier Delestre apresenta os materiais e as técnicas de construção empregados na cidade. Frank Suméra, novamente, expõe os resultados dos estudos recentes sobre o fórum, ao passo que Jean-Marc Mignon apresenta uma discussão mais específica sobre a colunata dessa praça. Bruno Bizot, David Lavergne e Jean-Marc Mignon discutem a planta e o estado atual do teatro. Xavier Delestre trata das características gerais do mercado, e Jean-Marc Mignon tece observações mais detalhadas sobre o pórtico desse edifício.

Nos dois capítulos seguintes, Xavier Delestre descreve o plano dos dois grandes edifícios termais revelados pelas escavações e discute brevemente o abastecimento hidráulico da cidade antiga, bem como os riscos representados pelas constantes infiltrações e inundações à conservação atual dos vestígios arqueológicos. David Lavergne apresenta uma discussão detalhada da evolução (entre os séculos III e V d.C.) de uma das luxuosas casas do litoral de Hipona, acompanhada de novas plantas elaboradas a partir das recentes observações.

Esse estudo é completado pela discussão de Michèle Blanchard-Lémée sobre os mosaicos das diversas fases de ocupação dessa propriedade. Xavier Delestre conclui esta parte com uma discussão sobre a conservação preventiva dos mosaicos de Hipona no próprio sítio.

A quarta parte reúne capítulos bastante diversos sobre “A arte e a vida quotidiana” em Hipona. François Baratte, tratando da escultura antiga, constata a raridade das obras descobertas durante as escavações, resultado da reutilização do mármore e dos metais durante a longa história da cidade após o período romano.

Xavier Delestre traça um quadro bastante impressionista da “vida quotidiana” em Hipona, onde os raros vestígios materiais do quotidiano da própria cidade servem mais de exemplos do que de base à discussão.

David Lavergne, numa brevíssima contribuição, apresenta um inventário dos marcos miliários presentes no museu de Hipona. Finalmente, Michel Bonifay tece considerações interessantes sobre a minúscula coleção de cerâmicas do museu, notando, mesmo nessa amostra reduzida, um padrão muito semelhante ao que é revelado pelas escavações em Cartago.

A quinta e última parte, intitulada “Os homens, os deuses, a morte”, trata da epigrafia, das sepulturas, dos vestígios materiais da vida religiosa e dos edifícios do culto cristão. Jean Gascou discute a importância da epigrafia do período imperial para a compreensão de diversos aspectos da história, da organização e das funções administrativa e econômica da cidade durante o Império Romano. Jean-Pierre Laporte trata da epigrafia da época vândala e bizantina e de suas particularidades gráficas. Bruno Bizot apresenta uma releitura minuciosa da basílica cristã e de seu entorno, fruto da pesquisa recente. David Lavergne trata dos cultos representados em Hipona em inscrições, placas votivas e outros ex-votos. Por fim, Xavier Delestre trata do “mundo dos mortos”, inventariando os epitáfios e os tipos de sepultura identificados no sítio de Hipona. Uma breve conclusão do editor encerra o volume, que inclui ainda, em apêndice, um catálogo do acervo arqueológico do museu.

Por se tratar de uma obra de síntese, o livro naturalmente não apresenta interpretações inéditas, exceto nos capítulos que resumem os resultados da recente campanha, e, mesmo neste caso, a natureza da intervenção e o estado atual de conservação do sítio não permitiram mais que uma releitura relativamente modesta dos vestígios materiais. Apesar disso, algumas conclusões novas devem ser mencionadas. No estudo dos cerca de 7 hectares do tecido urbano de Hipona já escavados, Frank Suméra constata certa especialização das insulae, ou, pelo menos, uma diferenciação social das habitações entre os diferentes bairros da cidade, com uma maior concentração das habitações populares nas partes mais antigas, na proximidade do fórum, e das luxuosas casas da elite nos bairros mais distantes, próximos ao mar. O estudo do pavimento do fórum permite também observar alguns elementos de cronologia relativa que revelam uma construção complexa da esplanada, em diversas etapas, ao passo que a ausência de estruturas destinadas ao comércio e ao artesanato e o isolamento da praça em relação ao seu entorno implicam uma especialização estrita do fórum na época imperial em sua função cultual e política. Ao mesmo tempo, a pesquisa levada a cabo na basílica cristã e em seu entorno, apresentada por Bruno Bizot, permitiu a identificação de três grandes conjuntos topográficos originais (senão propriedades particulares) nessa insula, amputados pela construção da igreja. A planta publicada por Marec pôde também ser questionada, limitando-se os supostos anexos da basílica ao batistério e a um edifício vizinho.

Esse trabalho minucioso de releitura limitou-se, porém, nesta campanha, ao fórum, à basílica cristã, ao teatro e a algumas casas de elite, o que apenas retoma as prioridades dos primeiros escavadores. Não há no livro nenhuma contribuição, nem mesmo superficial, para uma melhor compreensão das casas mais modestas, dos locais profissionais ou da vida econômica de Hipona. É verdade que as condições de escavação impedem atualmente um estudo aprofundado dessas questões, mas os vestígios materiais conservados não são completamente silenciosos a esse respeito. Xavier Delestre cita, por exemplo, à p. 169, uma “possível oficina de molhos de peixe (garum)” na proximidade do mercado, mas esse estabelecimento não é sequer situado num mapa. Da mesma forma, a provável tinturaria identificada por Marec na vizinhança da basílica não foi objeto de nenhuma discussão particular e nem mesmo de uma nova planta. Esperemos que as campanhas futuras possam responder a esse desafio.

O livro é abundantemente ilustrado com belas fotos do sítio de Hipona. Fotos aéreas e reproduções de mapas, plantas e notas dos primeiros escavadores facilitam também a compreensão do texto, tornando acessível uma documentação de outro modo dispersa.

Enfim, os novos mapas e plantas elaborados durante a campanha constituem um instrumento de trabalho inestimável para todo estudo futuro sobre o sítio. Obra de referência indispensável sobre Hipona, esse livro será certamente do interesse de todos os estudiosos da África do Norte na Antigüidade e, de um modo mais geral, de todo interessado na história urbana do mundo antigo.

Julio Cesar Magalhães de Oliveira – Doutor em História Antiga pela Universidade de Paris X Nanterre. Pesquisador associado ao Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp).

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