El Canon del Holocausto | Frederico Finchelstein

Um cânone corresponderia a uma verdade inabalável, uma regra que seria imposta, de forma que nenhuma outra interpretação sobre determinado assunto fosse possível.2 Por vezes, nos deparamos com este tipo de “verdade” no tempo presente, vindo a ser consolidada ao longo do tempo pela Historiografia, constituindo-se como uma palavra de respeito acerca do assunto. Durante anos, autores como Raul Hilberg, Saul Friedländer, Martin Broszat, ou Hannah Arendt, se dedicaram ao estudo do Shoah – nome dado pela Historiografia israelense, e seus adeptos, ao extermínio dos judeus europeus pelos nazistas – constituíram-se como verdadeiros cânones sobre o tema, opiniões que não poderiam ser contrariadas e formavam uma regra geral no que diz respeito à temática. Os estudos acerca do extermínio dos judeus europeus durante os anos da Segunda Guerra Mundial, principalmente nos anos que correspondem à Solução Final – 1942-1945 – durante muito tempo, ficaram adormecidos, ao passo que estudar o Shoah, um trauma ainda recente no passado europeu, era demasiado incômodo devido à carga de sensibilidade gerada ao se discutir o tema.

Durante anos, uma das principais fontes para o estudo sobre o massacre permaneceu adormecida, não encontrando quem fosse capaz de revelá-la. Essa fonte se chama testemunho. Grande parte da historiografia do holocausto se debruçou diante do testemunho como sua principal fonte para compreender o que ocorreu no Lager durante os anos do extermínio. É através dos retratos de sobreviventes dos campos de concentração, que podemos chegar mais próximos de compreender o mal colocado em prática pelo aparelho genocida nazista contra os judeus. O testemunho de sobreviventes do Lager é, sem dúvida, a fonte que nos permite compreender, de forma mais efetiva, o que os carrascos foram capazes de fazer contra indivíduos semelhantes a si, dentro dos campos de concentração. Ou utilizando uma expressão própria da psicanálise, mais propriamente da psicanalista Elizabeth Roudinesco, a parte obscura de nós mesmos (ROUDINESCO, 2008).

O testemunho como fonte para os estudos do Shoah, no entanto, não estiveram sempre disponíveis para o público em geral, nem sequer para os historiadores dedicados ao tema. Os primeiros anos do pós-guerra presenciaram um vácuo no testemunho dos sobreviventes do extermínio. De fato, o trauma ainda estava demasiado recente na vivência de cada um dos sobreviventes, e naqueles anos que sucederam 1945 e a libertação dos prisioneiros dos campos de concentração e extermínio pelo Exército Vermelho, o que restou de Auschwitz – parafraseando Giorgio Agamben – foi o silêncio. O primeiro grande nome que veio a quebrar tal silêncio, sem dúvida, foi Primo Levi, quando escreveu É isto um homem?, livro que foi publicado pela primeira vez, numa pequena edição que não foi tão difundida, no ano de 1947. Talvez somente após a publicação de uma edição do livro ampliada e revisada, em 1958, é que um número maior de pessoas veio a conhecer essa nova forma de se narrar o Shoah, que foi o testemunho.

A dificuldade em entender as causas, o modo como decorreu, e as consequências de um evento de tamanha magnitude na história humana, é evidente. O que a historiografia e os teóricos alemães do século XIX e XX chamam por Erklärung und Verständins, explicação e compreensão, respectivamente, são palavras de demasiada utilização para quem trata de trabalhar com a História do Shoah. Para a teoria da História, no que se refere à Shoah, a Verständins está bem mais além da Erklärung (BAUER, 2013, p.30-31), o que enfatiza a dificuldade por parte dos estudiosos acerca do tema, de compreender um evento singular e sem precedentes. Um elemento fundamental para compreendermos melhor como ocorreu e o que, com mais precisão, ocorreu neste massacre é sem dúvida o testemunho. Giorgio Agamben, em seu livro intitulado “O Que Resta de Auschwitz”, diz que quando a última vítima da Shoah der seu último suspiro de vida, a memória se perderá e a dificuldade para a compreensão deste processo aumentará consideravelmente. Não há a possibilidade de aprofundar-se nos estudos e nos conhecimentos acerca da Shoah sem estudar o testemunho da vítima sobrevivente ao processo. Nesse sentido, o testemunho dos sobreviventes dos campos de concentração e extermínio, é uma peça chave no que foi citado anteriormente como Erklärung, como fator fundamental para o esclarecimento, parar trazer à luz este acontecimento.

Frederico Finchelstein, em seu livro El Canon del Holocausto, vem a citar algumas obras, autores e perspectivas historiográficas que se constituíram como cânones sobre o assunto durante certo tempo. Raul Hilberg, o autor que teve a primeira obra de grande repercussão referente ao Shoah, é apontado por Finchelstein como o primeiro “cânone” do holocausto, e abre as discussões presentes no livro. O autor de The Destruction of the European Jews foi responsável por inaugurar os grandes debates acerca da historiografia do Shoah com sua publicação no ano de 1961. O testemunho, em toda sua importância como fonte para o estudo do genocídio como foi explicado anteriormente, nesta obra se encontra ausente, ainda devido à grande proximidade temporal que os sobreviventes possuíam com a permanência no Lager, consequentemente, o trauma gerado pelo universo concentracionário ainda era muito forte para permitir que o testemunho fosse expresso. Também para Hilberg, o testemunho se constitui como um material secundário no estudo sobre o genocídio, apenas para efeito de verificação, não sendo assim, um provedor de sentido para a argumentação FINCHELSTEIN, 2010, p.69). Nesse sentido, o livro de Raul Hilberg se constitui como “um livro sobre as pessoas que exterminaram os judeus” (FINCHELSTEIN, 2010, p.28).

Hilberg se encontra dentro da escola funcionalista de historiadores do Shoah, que vem a defender a ideia de que o extermínio não estaria ligado somente ao Führer, sendo obra de todo um aparelho de Estado correspondente às diversas esferas sociais e burocráticas. É através da burocracia que Hilberg procura explicar o processo genocida, dando demasiada ênfase a esta, que é mostrada como tendo um papel mais importante que Hitler, Himmler, Goebbels, ou qualquer outro criador individual das políticas nazistas. Um enfoque weberiano, que no que concerne à burocracia, é dado a Raul Hilberg por outro importante intelectual encarregado dos estudos do Shoah, Saul Friedländer, devido à demasiada importância atribuída à organização burocrática, apontada mesmo como “mortal” (FINCHELSTEIN, 2010, p.28).

Finchelstein nos mostra que, na visão de Hilberg, o alto comando militar nazista se sentia gratificado mais devido ao grande aparelho burocrático, bem como com a sua poderosa máquina genocida, do que pelas atrocidades cometidas contra os judeus europeus. “Os perpetradores sentem fascinação pelos atos maquinais e não pela combinação desses atos com mitos ideológicos, estéticos e certos pressupostos éticos mundanos” (FINCHELSTEIN, 2010, p.29). Essa tese certamente veio a dar suporte para a construção da Banalidade do Mal de Hannah Arendt, após a sua observação do julgamento de Eichmann em Jerusalém no ano de 1961 (ARENT, 1999), cinco anos após a mesma fazer uma crítica negativa ao livro de Hilberg, chegando a apontar o livro de Hilberg como um “simples informe” (FINCHELSTEIN, 2010, p.42). Entretanto, as divergências entre Arendt e Hilberg eram muitas, o que gerou várias discussões entre ambos ao longo dos anos, com este último afirmando que “Hannah Arendt não foi capaz de compreender o seu livro” e que “a noção de banalidade dissolve a complexidade da interpretação do evento” (FINCHELSTEIN, 2010, p.44).

Como citado anteriormente, The destruction of the European Jews não é uma obra relativa aos judeus, senão um livro referente aos perpetradores. Em decorrência disso, para Hilberg não houve resistência da parte dos judeus durante o extermínio; o levante do gueto de Varsóvia, a fuga de Sobibór, ou a rebelião do Sonderkommando de Treblinka, constituem casos pontuais de resistência, e se faz adepto da ideia de historiadores sionistas de que os judeus morreram como ovelhas indo para o matadouro. Hilberg vem a compreender a resistência em termos de ação, e não como, por exemplo, Israel Gutman ou Martin Gilbert compreende, afirmando que mesmo a passividade e a dignidade na hora da morte eram formas de resistência. Para Raul Hilberg, esse tipo de interpretação vem a diminuir moralmente os verdadeiros atos de resistência, aqueles e que houve confronto entre vítimas e perpetradores.

O processo do extermínio dos judeus na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente durante o espaço de tempo que vai de 1942 a 1945, período em que foi colocada em prática a Endlösung, a Solução Final para o problema judaico no velho continente, se constitui como um fenômeno sem precedentes na História. Observamos o que Enzo Traverso vem a chamar de radicalização progressiva, no seu livro “La Historia como campo de Batalla”(TRAVERSO, 2012). A violência exercida contra os judeus durante o Terceiro Reich, foi sendo elevada ao longo do tempo, começando por boicotes aos estabelecimentos pertencentes aos judeus na Alemanha, em abril de 1933, até culminar no extermínio físico, colocado em prática de forma sistemática após a Conferência de Wannsee em janeiro de 1942, onde ficaram definidos os termos da Solução Final para o povo judeu.

O fenômeno da radicalização progressiva presente no indivíduo durante o nazismo, pode ser bem observado no estudo de caso realizado por Christopher Browning no livro Ordinary Men: Police reserve battallion 101 and the Final Solution. Browning realiza o estudo de apenas um batalhão de policiais de reserva para traçar o perfil dos homens comuns, que durante o Terceiro Reich, estiveram empregados no processo de extermínio. No livro, podemos acompanhar a trajetória de alguns comandantes do batalhão, que chegam até mesmo a se acostumarem com o assassinato em massa, tornando aquilo parte da sua rotina, ou como os alemães Sönke Neitzel e Harald Welzer chamam, o assassinato se tornou parte do marco referencial do nazismo. Estes últimos dois autores descrevem no livro “Soldados: Sobre lutar, matar e morrer”, a trajetória de soldados da Wehrmacht – as forças armadas da Alemanha nazista – que estiveram envolvidos no extermínio dos judeus. No livro, também podemos observar como soldados fizeram do assassinato em massa contra judeus parte de sua rotina, transformando tal prática num ato corriqueiro. Soldados esses, que em certos casos nunca mataram um inimigo, ou nem sequer ainda tinham ido para o campo de batalha

Tal brutalização dos indivíduos, que poderia ser impensada para algumas pessoas, ganha um suporte por historiadores que criaram uma linha de pensamento bastante polêmica e controversa nos anos 1980, o Sonderweg alemão, ou o caminho especial que a nação alemã trilhou de alguns séculos atrás e que culminou com o Shoah. A teoria do Sonderweg baseia-se numa inversão de valores democráticos que foi vivenciada na Alemanha, desde os séculos XVIII e XIX, numa experiência que consistia em minar os valores da democracia liberal vivenciada em países como os Estados Unidos, França ou Inglaterra. O Sonderweg, nesse sentido, é uma teoria comparativa, que sempre está a comparar a Alemanha com outras nações do ocidente, que tinham como modelo de governo a democracia liberal. Tal teoria, tem como principal nome o historiador representante da nova história social da Universidade de Bielefeld, Jürgen Kocka (SILVA, 2015).

O debate sobre o Sonderweg ganha um tom de absurdo com a publicação do livro Os Carrascos Voluntários de Hitler, de Daniel Goldhagen, no ano de 1996. Goldhagen é alvo de inúmeras críticas no que se refere à historiografia do Shoah, e também é incluído nas discussões realizadas por Frederico Finchelstein. Aqui, nos é mostrado como Goldhagen enxerga o antissemitismo alemão como sendo originário da Idade Média, e, indo além de teóricos do Sonderweg que apontam a origem deste caminho especial alemão na Reforma Protestante, Goldhagen afirma que a perseguição dos judeus durante o medievo já era uma característica desse caminho que conduziria ao extermínio pelos nazistas.

Além de descartar a famosa Historikerstreit, o debate entre os historiadores funcionalistas e intencionalistas, Goldhagen aponta o Shoah como sendo o fim predeterminado de séculos em que o antissemitismo estava presente na sociedade alemã. A construção desse caminho único para Auschwitz, partindo do medievo, faz com que o extermínio dos judeus europeus se constitua como um “super pogrom” (TRAVERSO, 2012, p.105). Nesse sentido, a solução final já estaria predestinada desde, pelo menos, 100 anos, e se aceitarmos tal afirmação, também estaríamos afirmando que o povo judeu foi demasiado inocente para não perceber o seu destino. É claro que não podemos aceitar tal tese, e que Goldhagen encontra-se, neste ponto, equivocado. Está também equivocado quando afirma que todos os alemães concordavam com o extermínio físico dos judeus, e quando trata de forma restrita o conceito de homens comuns de Christopher Browning, aplicando-o somente para o povo alemão, sendo assim alemães comuns.

Mas, afinal, poderemos compreender o Shoah? Essa é uma das perguntas que encerram o livro, quando são colocadas em pauta algumas ideias de Jorge Luis Borges. Essa é uma problemática que talvez nunca saibamos resolver. Alguns filósofos, dentre eles Giorgio Agamben, afirmam que nunca poderemos compreender o universo concentracionário por que não estivermos no interior deste, e que o indivíduo que realmente conheceu todo este universo, já não está mais presente: ele morreu na câmara de gás. Em contrapartida, não podemos deixar de buscar compreender este processo. Os testemunhos e diários que estão disponíveis hoje, mesmo que, muitas vezes tenha sido escrito por um indivíduo que não morreu na câmara de gás, nos permite compreender – Verstehen – a parte obscura de nós mesmos.

Notas

1 Graduando do curso de Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco – UPE. Pesquisador do GEHSCAL – Grupo de Estudos Histórico Socioculturais da América Latina, pela linha de pesquisa História do Tempo Presente – HTP/UPE. Foi bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco, com o projeto de pesquisa Grécia no Tempo Presente: Crise financeira e ascensão da extrema direita, orientado pelo Prof. Dr. Karl Schurster (Universidade de Pernambuco). Contato: [email protected].

2 Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=c%E2non.  Acesso em: 29/09/15.

Referências

ROUDINESCO, Elizabeth. A Parte obscura de nós mesmos: Uma História dos perversos. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2008.

BAUER, Yehuda. Reflexiones sobre el Holocausto. Nativ Ediciones; Jerusalém, 2013. P. 30 – 31.

FINCHELSTEIN, Frederico. El Canon del Holocausto. Buenos Aires: Prometeo, 2010. P. 69.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do Mal. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.

TRAVERSO, Enzo. La Historia como Campo de Batalla. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2012.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; et al. Enciclopédia de Guerras e Revoluções: volume II 1919-1945. Rio de Janeiro: Ed. Campus Elsevier, 2015.

Lucas Borba – Graduando do curso de Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco – UPE. Pesquisador do GEHSCAL – Grupo de Estudos Histórico Socioculturais da América Latina, pela linha de pesquisa História do Tempo Presente – HTP/UPE. Foi bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco, com o projeto de pesquisa Grécia no Tempo Presente: Crise financeira e ascensão da extrema direita, orientado pelo Prof. Dr. Karl Schurster (Universidade de Pernambuco). Contato: [email protected]


FINCHELSTEIN, Frederico. El Canon del Holocausto. Buenos Aires: Prometeo, 2010. Resenha de: BORBA, Lucas. Verstehen und Erklärung: Como explicar e compreender o Holocausto. Aedos. Porto Alegre, v.8, n.18, p.254-259, ago., 2016.Acessar publicação original [DR]