Storia sociale della bicicleta | Stefano Pivato

Stefano Pivato Imagem RedazioneCittaUrbino
Stefano Pivato | Imagem: RedazioneCittaUrbino

Embora eu ainda fosse muito pequeno para estar sentado no selim da bicicleta, eu era forçado a passar uma perna por cima do cano para poder alcançar o pedal […] Então é assim que o ciclista encontra o mundo: do alto! Corre, corre a uma velocidade insana sem encostar o chão com os pés, ser um ciclista é qualquer coisa que significa quase: sou o dono do mundo (PIVATO, 2019. p.197. Tradução nossa).

Stefano Pivato encerra sua proposta de reflexão acerca da trajetória da bicicleta ao longo dos últimos 150 anos com esse pequeno trecho de Thomas Bernhard. A citação do escritor austríaco faz uma ótima síntese das transformações e rupturas que o novo meio trouxe ao mundo, fosse pelo novo ponto de vista “do alto”, pela alteração da percepção que a “velocidade insana” propunha, ou ainda as diferentes rupturas da ordem que, no imaginário vigente, nos encaminham para um suposto ideal de liberdade que a bicicleta parece carregar. Leia Mais

Os bispos e a ditadura militar brasileira (1971-1980): a visão da espionagem | Paulo César Gomes

Paulo Cesar Gomes Imagem Jornal Opcao 2
Paulo César Gomes | Imagem: Jornal Opção

Com a expansão dos Programas de Pós-Graduação em História no Brasil, especialmente a partir da década de 1990, dezenas de novos objetos, abordagens, temáticas e problemas passaram a ser privilegiados. Segundo o historiador Carlos Fico (2004, p. 21), nesse período, a produção histórica brasileira deu uma verdadeira “guinada”: a predominância de estudos que recaía sobre o período colonial deslocou-se para a fase republicana.

Nessa dinamização dos cursos de pós-graduação, um objeto que deu uma considerável alavancada foi o estudo da ditadura militar brasileira. A partir dos anos 1990, inúmeros trabalhos foram realizados sobre esse tema enfocando diversos prismas, olhares, agentes, recortes e espaços. Entre os inúmeros assuntos abordados dentro da grande temática ditadura militar, que vão de planos econômicos a organizações clandestinas, destaca-se o estudo sobre a Igreja Católica. Engana-se quem pensa que as pesquisas sobre esse assunto se esgotaram ou que não é mais possível originalidade e avanço sobre ele. Em relação à Igreja Católica, embora hoje sejam bastante conhecidos, notadamente, dois aspectos, o papel dos grupos católicos conservadores nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” durante o pré-golpe de 1964 e a atuação da ala “progressista” na oposição à ditadura e em defesa dos direitos humanos entre os anos 1970-80, importa dizer que ainda há muito a ser descoberto, analisado, (re) discutido e revelado. A obra de Paulo César Gomes, Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira é uma prova disso. Leia Mais

The disappearance of rituals: a topology of the presente | Byung-Chul Han

O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente é um ensaio publicado em 2019, originalmente em língua alemã, foi traduzido em inglês e em português em 2020, esta última pela editora Herder. Trata-se de uma obra curta, como ocorre com as outras produções do filósofo e teórico cultural sul-coreano Byung-Chul Han, que é professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Artes de Berlim. O livro possui pouco mais de cem páginas divididos em dez capítulos que discutem temas como a produtividade, a autenticidade, os rituais, “o fim da história”, o império dos signos, os dados (dataísmo), entre outros assuntos que estão concatenados pela escrita direta e simples, inclusive, aos outros ritos da vida moderna, como a pornografia.

O autor toma como ponto de partida as reflexões sobre a vida moderna e a tecnologia, aliando-as ao seu pensamento filosófico e, em certa medida, recorrendo aos referentes históricos para embasar noções teórico-críticas quanto ao mundo contemporâneo, como por exemplo as tecnologias digitais e os seus impactos na sociedade. Nessa perspectiva, caso venhamos a pensar nas proposições de Agamben (2013) quanto ao contemporâneo – o qual também é referenciado por Han neste e em outros ensaios –, é possível dizer que Han é um contemporâneo de seu tempo. Isto significa que ele enxerga as obscuridades do momento em que vive ao estabelecer uma relação de dissociação e anacronismo, de desconforto com o tempo a que “pertence” e percebendo os confrontos e problemáticas de seu entorno. Leia Mais

Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva | Silvia Federici

A obra Calibã e a Bruxa inventaria os aspectos mais relevantes do projeto de pesquisa iniciado em meados dos anos de 1970 por Silvia Federici. Trata-se de um empreendimento teórico, interessado nas mudanças ocorridas na vida das mulheres a partir do processo de transição do feudalismo para o capitalismo.

Silvia Federici nasceu na cidade de Parma em 1942, vivendo na Itália até migrar para os Estados Unidos em 1967 onde estudou filosofia na Universidade de Buffalo. Ativista feminista e professora, participou em 1972 da fundação do Coletivo Feminista Internacional, grupo responsável pela campanha mundial em defesa do salário para o trabalho doméstico. Na década de 1980 trabalhou por vários anos como professora na Universidade de Port Harcourt na Nigéria. Tornou-se docente em Filosofia Política e Estudos Internacionais no New College da Universidade de Hofstra de Nova York, na qual foi consagrada como professora emérita. Leia Mais

Instrução pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete da ciência, da infância e da escola | Carlota Boto

Com análise acurada e aprofundada pesquisa, Carlota Boto ofereceu ao público leitor um estudo atento acerca de temas fundamentais para a História da Educação, como as concepções de ciência, infância e escola. O livro Instrução pública e projeto civilizador é resultado da tese de livre-docência da autora, defendida em 2011, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, e publicada em 2017, pela Editora Unesp.

A pesquisadora é reconhecida pelas discussões e trabalhos que desenvolve no campo da História da Educação no Brasil. Pedagoga e historiadora, mestre em Educação e doutora em História Social, Carlota Boto é atualmente Professora Titular da Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Entre seus diversos livros, capítulos e artigos publicados em periódicos, merece destaque A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa, publicado pela Editora Unesp, em 1996.

Em Instrução pública e projeto civilizador, a autora desenvolveu uma análise sobre alguns dos pensadores do século XVIII que se preocupavam com questões muito proeminentes à sua época, relativas, sobretudo, às ideias de aprimoramento da vida em sociedade e de construção de um novo modelo sociopolítico. O objetivo principal do estudo foi identificar esses sujeitos como intelectuais e homens de saber que atuaram na esfera pública propondo ideias e discutindo questões complexas, no interesse último de lançar as bases para a nova sociedade que se forjava naquele período (BOTO, 2017). Uma das discussões que atraíram a atenção desses intelectuais com mais vigor, como demonstrado no livro, dizia respeito à instrução pública e seu papel civilizador na sociedade moderna.

Do objetivo traçado na pesquisa que deu origem ao livro emergiu uma categoria conceitual que teve importância fundamental no desenvolvimento de toda a análise: a noção de intelectual. Em vista da relevância do conceito, Carlota Boto dedicou um preâmbulo especialmente para discuti-lo. A partir de um esforço teórico, a autora buscou arregimentar diversas conceituações acerca da figura do intelectual na história, mobilizando autores que se ocuparam desse tema, desde o século XVIII até os dias atuais. Assim, as concepções construídas a partir das reflexões de Julian Benda, Max Weber, Norberto Bobbio, Antonio Gramsci, Jean-Paul Sartre e Edward Said, com seus encontros e desencontros, foram articuladas visando definir o que a historiadora chamou de “modo de ser iluminista” (BOTO, 2017, p. 23). Este modo de ser, no que se diz respeito aos homens de letras cujas obras foram analisadas no livro, se caracterizava por uma atitude ativa perante a esfera pública. Os escritores no Iluminismo se constituíam, para a autora, como intérpretes e analistas de seu próprio tempo (BOTO, 2017).

A partir dessa base teórica, a pesquisadora transcorreu pelos vários textos e autores ilustrados que formaram a matéria prima do seu estudo. Todos os letrados analisados foram compreendidos como representantes do “modo de ser iluminista”, empenhados na construção de alternativas para os problemas políticos e sociais.

Instrução pública e projeto civilizador é composto por três grandes capítulos, subdivididos em vários tópicos, nos quais a autora, com escrita fluída e narrativa coesa, analisou a produção de pensadores iluministas, articulando-a ao contexto político e cultural do século XVIII. De forma sutil e indireta, cada um dos capítulos revela, num nível mais profundo, um estudo sobre as três categorias que formam o subtítulo do livro: ciência, infância e escola.

Na primeira parte, intitulada Iluminismo em territórios pombalinos: a formação de funcionários como alicerce da nação, Carlota Boto tomou como objeto de pesquisa a produção de três autores portugueses que, segundo ela, construíram suas reflexões tendo como base as experiências filosóficas iluministas: D. Luís da Cunha (1662-1749), António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1782) e Luís António Verney (1713-1792). O objetivo principal da autora foi apontar para a intrínseca relação entre as ideias pedagógicas e científicas desses intelectuais e o projeto de reforma do Estado português, empreendido por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, Secretário de Estado dos Negócios do Reino de Portugal, a partir de 1759.

O argumento central do capítulo é a afirmação de que ação estatal dirigida pelo Marquês de Pombal, especialmente no que tange à educação e à ciência, foi referenciada nas reflexões teóricas dos autores iluministas em foco no estudo. Assim, para a autora, analisar a obra desse grupo de letrados corresponde a investigar parte das diretrizes e orientações centrais da pedagogia encampada e difundida pelo Estado português sob a direção de Pombal.

Para a realização da análise, foram mobilizados dois grupos de fontes. O primeiro é composto por livros e tratados dos três homens de letras estudados pela pesquisadora. Já o segundo conjunto abarca documentos relativos às reformas pombalinas na Universidade de Coimbra, como o Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra (1771) e os Estatutos da Universidade de Coimbra (1772). O último, conforme a autora, pode ser considerado “o principal arcabouço da modernidade portuguesa do século XVIII em matéria de educação” (BOTO, 2017, p. 150).

A primeira parte do estudo apresenta, assim, uma discussão ampla a respeito de temas variados. A análise se deteve sobre o pensamento de cada um dos autores em foco, de maneira atenta e específica. Além disso, a historiadora se debruçou sobre a organização da escola pública traçada pelo Marquês de Pombal, bem como sobre a reformulação dos cursos e da estrutura da Universidade de Coimbra. Contudo, merece destaque o fato de que toda a narrativa esteve marcada por uma assertiva comum e sempre presente. Tratase da afirmação de que o pensamento dos iluministas portugueses e as reformas pombalinas favoreceram a elevação do alicerce central que conduziu o movimento de modernização em Portugal durante o século XVIII, qual seja, a ciência moderna pautada pela secularização, pela racionalização e pela ampliação do papel do Estado nos campos acadêmicos.

Na segunda parte do livro, a pesquisadora dedicou-se ao estudo da obra de outro importante personagem do Iluminismo, Jean-Jacques Rousseau. Intitulado Política e pedagogia na arquitetura ilustrada de Rousseau, o segundo capítulo teve por objetivo analisar os escritos do filósofo buscando identificar a correlação entre seu pensamento político e suas ideias pedagógicas. Segundo o argumento central, Rousseau representa a síntese da sensibilidade social que marcou o período da Ilustração na Europa. Para a autora, sua doutrina política e pedagógica passou a representar um marco fundamental na organização do mundo político e social engendrado pelo Iluminismo, tendo grande influência nas práticas educativas. Nesse sentido, o intelectual francês seria um “autor primordial para se compreender a moderna acepção de criança” (BOTO, 2017, p. 182).

Para a efetivação dessa análise, Carlota Boto se propôs a realizar uma revisão bibliográfica dos escritos do teórico, dando ênfase a sua literatura pedagógica. Paralelamente, a pesquisadora buscou refletir sobre aspectos biográficos do autor do Emílio, apontando para um entrelaçamento entre sua vida e obra. Assim, foram colocados em foco, diversos textos publicados por Rousseau, em diferentes momentos de sua vida, dentre os quais o Discurso sobre as ciências e as artes (1749), o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755), as Considerações sobre o governo da Polônia e sua projetada reforma (1772) e – a principal delas – o Emílio (1762).

Na investigação, foram retomados alguns dos temas principais do pensamento rousseauniano, já amplamente discutidos pela historiografia, como o do “estado de natureza” e o da crítica ao processo civilizador. Entretanto, a análise empreendida foi além das discussões consideradas clássicas e se baseou em um mote principal: a ideia de infância. O grande acerto do argumento que orienta a narrativa reside na identificação da ligação estreita entre a compreensão política e as ideias pedagógicas de Rousseau. A partir dessa perspectiva, a autora alcançou uma discussão mais profunda sobre a importância da educação para o modelo de sociedade proposto na literatura iluminista.

Uma das assertivas principais, nesse sentido, aponta para a existência de uma crítica ao modelo pedagógico vigente no século XVIII, isto é, o modelo jesuítico. Segundo a autora, no julgamento que Rousseau empreende a respeito do processo civilizador, a afetação dos costumes é compreendida como a responsável pelo afastamento do ser humano da perfectibilidade do estado de natureza. A crítica se dirige, conforme esse argumento, também à educação praticada nos colégios da época, marcados pelo ensino da polidez. O modelo pedagógico dos colégios era apontado pelo intelectual francês como voltado para o cultivo de falsos valores e, assim, responsável pela corrupção do ser humano e da sociedade civil (BOTO, 2017).

Ao analisar a escrita do Emílio, Carlota Boto defendeu que, mais do que um tratado de pedagogia, o livro é voltado para a compreensão da infância como uma das fases principais da vida humana. Segundo a historiadora, naquela obra, a reflexão sobre a idade pueril estava relacionada à possibilidade de entendimento do homem no estado de natureza, uma vez que a criança guardaria os resquícios do que foi o homem natural. Em seu tratado, Rousseau construiu uma análise que põe em destaque a infância como um estágio específico da vida, cuja marca principal é a possibilidade do aprendizado. Esse período da existência humana foi assim alçado à categoria de objeto de investigação para a compreensão da sociedade. A partir dessa operação, o autor do Emílio alcançou novidades importantes para o seu tempo e que seriam definidoras das práticas educativas posteriores, entre as quais se sublinha a definição mais precisa das diferentes fases da vida. Nas palavras da autora, “Rousseau, esticou a infância; ao nomeá-la, ele a prolongou” (BOTO, 2017, p. 261). E essa foi sua contribuição mais original.

O terceiro capítulo de Instrução pública e projeto civilizador, complementando os dois anteriores, é dedicado ao último item que compõe o subtítulo do livro: a escola. Para discutir o tema, a autora se ocupou em investigar a obra de um protagonista da Revolução Francesa, o Marquês de Condorcet. Nessa parte, foi desenvolvida uma análise em conjunto das concepções pedagógicas e da filosofia da história concebida pelo personagem. Novamente, as fontes utilizadas foram as obras do próprio autor, sendo as principais o Esboço para um quadro histórico dos progressos do espírito humano (1795) e as Cinco memórias sobre instrução pública (1791).

De antemão, a historiadora empreendeu uma reflexão acerca das concepções de história e de modernidade presentes no pensamento de Condorcet. O interesse principal foi analisar a doutrina e evidenciar a filosofia da história construída no Esboço, destacando a característica etapista e teleológica do desenvolvimento histórico que marcam a obra. Como herdeiro direto do Iluminismo, o intelectual construiu uma narrativa sobre a caminhada dos homens na história em direção ao aperfeiçoamento e ao progresso. Baseando-se na noção de perfectibilidade humana, tradição do pensamento ilustrado, Condorcet apontou para a capacidade do ser humano de aperfeiçoar a si e ao seu meio através de etapas sucessivas (BOTO, 2017).

Posteriormente, a autora analisou também as ideias pedagógicas do teórico, buscando enfatizar suas reflexões acerca da instrução pública enquanto política de Estado. Segundo o argumento central, a instrução apareceu no pensamento do intelectual francês como materialização de sua filosofia da história. O modelo de escola formulado por Condorcet se organizava por etapas sucessivas, marcadas por um caráter progressivo, e se baseava na crença no aperfeiçoamento humano. Isto é, a escola concebida por Condorcet se orientava pela marcha da humanidade na direção do progresso e do auto aperfeiçoamento. A cada série superada na escolarização, tal qual concebia o autor, o aluno subiria um degrau a mais na escala de aperfeiçoamento pessoal em direção a razão. Desse modo, como aponta a historiadora, havia uma vinculação inseparável entre a filosofia da história do Marquês de Condorcet e seu projeto de fundação da escola moderna. Esta última deveria estar voltada principalmente para o processo de aperfeiçoamento humano que, por sua vez, levaria à construção de uma sociedade melhor pela difusão da razão.

Assim, perpassando temas fundamentais do período da ilustração, Carlota Boto construiu, em Instrução Pública e Projeto Civilizador, uma análise ampla sobre o pensamento pedagógico de letrados iluministas. Além disso, a autora conseguiu inscrever as reflexões destes sujeitos no contexto político e social de fins do século XVIII, no qual a formulação de um novo modelo de sociedade figurava como a principal demanda intelectual.

É necessário ressaltar que, ao longo de todo o estudo, é possível acompanhar o desenvolvimento de um argumento central que demonstra a importância que a educação passou a ter no movimento intelectual iluminista. Esta importância, pelo que se apreende do livro, é ressaltada sobretudo como recurso político. Se o Iluminismo, na Europa, forjou as bases para o rompimento de uma ordem política arcaica e impulsionou a criação de um novo modelo social, Carlota Boto conseguiu demonstrar que a educação representou uma categoria basilar na construção desse projeto.

Ciência, infância e escola, portanto, se articulam no argumento da historiadora como concepções fundamentais para a compreensão não só do pensamento pedagógico engendrado na filosofia iluminista, mas também do projeto político encampado pelos homens de letras naqueles tempos. Tratava-se de um projeto civilizador cuja ferramenta principal a ser utilizada seria a educação.

Referência

BOTO, Carlota. Instrução pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete da ciência, da infância e da escola. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2017.

Danilo Araújo Moreira – Mestrando em História – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Ouro Preto. Bolsista CAPES.

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Memórias de Gustav Hermann Strobel. Relatos de um pioneiro da imigração alemã no Brasil | Sergio O. Nadalin

A imigração alemã no Brasil é significativa, principalmente nos três estados do sul do país. O livro “Memórias de Gustav Hermann Strobel” narra a história da família Strobel, que saiu de Glauchau, na Saxônia (região da atual Alemanha), e chegou ao Brasil, juntamente com outros imigrantes germânicos, em 20 de novembro de 1854. Os imigrantes foram levados para a colônia Dona Francisca, atual Joinville, à época província de Santa Catarina. Devido à precariedade da colônia, o pai de Gustav, Christian August Strobel, migrou para São José dos Pinhais, nos arredores da capital da recém-criada província do Paraná.

A história escrita por Gustav Hermann Strobel é uma importante fonte para quem estuda a inserção social dos imigrantes alemães na sociedade paranaense e brasileira de modo geral. O texto, originalmente escrito em língua alemã, recebeu uma primeira tradução em 1987 e foi publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. A tradução para a língua portuguesa foi realizada a partir de manuscritos reproduzidos ao longo do tempo, já que os descendentes de Gustav faziam cópias do texto para que este não fosse perdido.

Em razão de algumas disparidades nos manuscritos é que o professor Sergio Odilon Nadalin (UFPR), pesquisador do CNPq, e Egon Frederico Michells Ribeiro, descendente de Gustav, se empenharam em uma nova tradução para tentar resolver algumas dessas questões (três cópias dele chegaram ao século XXI). O texto original, muito provavelmente, foi escrito entre 1909 e 1928, não sendo possível datar de forma exata e, ao que tudo indica, não foi escrito de uma única vez (NADALIN, 2015, p.13).

A nova tradução é acompanhada de um posfácio em que a professora Cacilda da Silva Machado (UFRJ) e o professor Sergio Odilon Nadalin (UFPR) fazem uma análise da obra. Nessas considerações, os dois pesquisadores ressaltam como as lembranças individuais de Gustav Hermann Strobel são depositárias das memórias herdadas e/ou compartilhadas pelos pais (NADALIN, 2015, p.195). Muitos dos episódios narrados pelo imigrante alemão fazem referência a um período em que este era uma criança, como, por exemplo, a saída de Glauchau e a viagem de navio para o Brasil, quando Gustav contava apenas cerca de 5 anos de idade.

No posfácio os autores também tecem importantes considerações acerca das imagens do imigrante germânico e do nacional a partir das reminiscências de Gustav. Importante destacar que o texto original foi redigido de forma retrospectiva, ou seja, os fatos descritos dizem respeito a situações ocorridas várias décadas antes. Supondo que o manuscrito tenha sido concluído em 1928, e visto que a família desembarcou na colônia Dona Francisca em 1854, as memórias do autor cobrem mais de 70 anos. Portanto, Sergio Odilon Nadalin e Cacilda da Silva Machado destacam como o discurso de Gustav Hermann Strobel está ancorado na sua vivência em sociedade e na memória coletiva, seja para reforçar ou para negar pontos de vista (NADALIN, 2015, p.215).

As Memórias, propriamente ditas, estão divididas em dezoito capítulos, tendo um capítulo complementar que inexistia na edição em língua portuguesa publicada em 1987. O memorialista descreve não apenas fatos vivenciados por ele, mas também narra acontecimentos transmitidos principalmente por seus pais, Christian e Christiana (reforçando o que foi dito acima sobre o discurso social presente nas linhas grafadas). Assim, podemos entender como, grosso modo, os sete ou mesmo oito capítulos iniciais relatam fatos ocorridos na época em que Gustav tinha menos de 10 anos de idade.

A exposição dos motivos para a família deixar a Saxônia, as expectativas e a decepção ao desembarcarem em Dona Francisca, bem como a mortalidade a bordo do navio que cruzou o Atlântico trazendo a família e demais pessoas da Europa para o Brasil são lembranças que ajudam a compreender o processo (e)imigratório transatlântico. Os eventos narrados por Gustav, portanto, não se resumem ao processo vivido apenas pela família Strobel. Era difícil a decisão de deixar a Europa para embarcar numa aventura em direção à América, pois a possibilidade de regresso era mínima. Será, então, que os imigrantes estavam conscientes da quase nulidade da chance de regressar à Glauchau, ou qualquer outra região da atual Alemanha, caso o encontrado no Brasil não correspondesse às expectativas?

De acordo com o capítulo 4 das “Memórias de Gustav Hermann Strobel”, a maioria dos germânicos que chegaram no mesmo navio, não só estavam decepcionados com o cenário que encontraram em Dona Francisca como foram tomados de espanto

À medida que avançávamos rio acima, o silêncio tomava conta dos viajantes […] A decepção era visível nos rostos de cada um, pois a vegetação fechada que víamos nas margens era um tanto assustadora (NADALIN, 2015, p.40).

Concomitantemente à desolação, veio a revolta; os conterrâneos de Christian August Strobel se sentiram enganados. Porém, o regresso à Europa era algo deveras irreal para imigrantes que chegaram à América gastando as poucas economias que possuíam: “Todos estavam dispostos a retornar à Europa. Fácil dizer, mas difícil realizar” (NADALIN, 2015, p.42).

O contraste entre a expectativa do momento da partida com a realidade no desembarque obrigou o patriarca da família a migrar. Christian Strobel saiu a pé de Joinville em direção a São José dos Pinhais à procura de emprego; após um período de tempo providenciou para que a esposa e os filhos fossem ao seu encontro. Posteriormente a família ainda migrou para Campo Largo da Roseira e, depois, para Curitiba. Essas constantes mudanças demonstram como a vida do imigrante no Brasil não está marcada pela imobilidade espacial e muito menos à fixação definitiva em uma gleba de terra. Mas é necessário lembrar que o pai de Gustav era carpinteiro, portanto possuía um ofício que lhe permitia buscar trabalho em centros urbanos e não depender exclusivamente dos produtos da terra.

As Memórias desses pioneiros da imigração alemã ajudam a pensar as dificuldades dos imigrantes (não apenas de origem germânica), bem como também permitem analisar as táticas de sobrevivência em um novo espaço social. Enquanto Christian trabalhava longe de casa exercendo seu ofício de carpinteiro, sua esposa Christiana, junto com filhos menores, cultivavam alimentos no quintal, tanto para a subsistência como para gerar algum excedente que pudesse ser vendido ou trocado. Como o pai de Gustav passou a ser (re)conhecido entre a “comunidade” germânica, não raro a casa servia de hospedagem a alguns migrantes, de origem alemã principalmente.

A questão étnica está presente em todo o texto de modo implícito, mas em alguns pontos ela fica explícita. No capítulo 11 Gustav fala de uma corporação de escavadores, homens que abriam valetas para delimitar as propriedades, onde todos tinham origem germânica. O autor das Memórias sempre está relacionando a vida da família e o trabalho desta com o fluxo de novos alemães que chegavam e partiam (o capítulo 12 é exemplar a respeito disso). Claro que sempre sem desconsiderar os contatos culturais cada vez mais estreitos com os brasileiros e demais grupos imigrantes de outras origens.

Entre muitos episódios interessantes, um caso contado no capítulo 13 diz respeito à questão religiosa dos imigrantes. Gustav lembra que em determinada ocasião um imigrante, amigo da sua família, saiu dos arredores de Curitiba em direção à Joinville para conseguir um padre alemão que ouvisse sua Confissão. Embora houvesse padres latinos na região, o homem não conseguia ficar em paz se não confessasse com sacerdote da mesma origem que ele e na sua língua materna. A viagem não era simples, pois estradas entre a capital do Paraná e Santa Catarina eram praticamente inexistentes na segunda metade do século XIX, e o meio de transporte era basicamente o lombo de uma montaria (que poucos possuíam) ou as solas dos sapatos.

As memórias da família Strobel serviram também de fonte para que Sergio Odilon Nadalin (2007), a partir dos prenomes escolhidos para os membros da família, ao longo dos séculos XIX e XX no Brasil, pudesse analisar a identidade teuto-brasileira em Curitiba. A forma de nomear as pessoas pode trazer consigo elementos de distinção étnica:

ao optar por um nome de batismo, os pais de uma criança são ou estão influenciados por uma determinada herança, ou seja, os nomes são emprestados de um estoque cultural, e a maneira de grafá-los refere-se à língua falada e escrita (NADALIN, 2007, p.17).

Portanto, o fator língua é fundamental para o estudo da identidade teuto-brasileira em Curitiba. Por isso o esforço do imigrante alemão que viajou dezenas de quilômetros em busca de um confessor, conforme explicitado anteriormente, é compreensível na construção étnica no Brasil. Da mesma forma que as escolhas de nomes não são aleatórias, conforme ressaltado (NADALIN, 2007).

A endogamia também é um fator importante no estudo da identidade construída pelos imigrantes de origem germânica no Brasil. No período de 1870 a 1939 na Comunidade Evangélica Luterana da capital paranaense, chegava a 87% os casamentos em que os dois noivos eram de origem alemã (NADALIN, 2012, p.56). Mas, não podemos concluir que os imigrantes de origem alemã vivessem isolados, inclusive a etnicidade se constrói e é mais visível no contato com o diferente, conforme apontado por Fredrik Barth (2011). A percepção da marca étnica, seja pelos nomes de batismo ou pela endogamia nas uniões matrimoniais, só é possível de análise na comparação com quem não faz parte da comunidade teuto-brasileira.

Essa distinção étnica em face do “outro” pode ser vislumbrada no capítulo 13. Nele há menção à alegria que os carpinteiros da família Strobel sentiam por terem um ferreiro da mesma origem, com quem conseguiam seus instrumentos de trabalho: “Estávamos felizes por termos agora um ferreiro alemão que confeccionava boas ferramentas para nós” (NADALIN, 2015, p.115. Grifo original). A questão étnica fica explícita nessa informação, pois a qualidade de tais apetrechos estava diretamente ligada à origem de quem os fabricava/fornecia. Ainda no capítulo 13, Gustav narra a admiração dos brasileiros com as técnicas alemãs de construção.

Nos capítulos finais a narrativa de Gustav versa, entre outros aspectos, a respeito das construções executadas pelo pai, e por ele também, na capital paranaense, demonstrando as mudanças na urbe e a contribuição alemã nessas transformações. Também há no capítulo 16 menção à ineficiência brasileira e às hostilidades entre alemães e franceses devido à guerra franco-prussiana. Essas duas questões são descritas em razão dos problemas na gestão do Hospital da Misericórdia. Devido aos desmandos dos brasileiros no hospital, freiras enfermeiras da França foram chamadas para gerir a instituição. Apesar de pontuar as animosidades que as freiras tinham em relação aos pacientes de origem alemã, Gustav não deixa de ressaltar que elas em pouco tempo restauraram a ordem no hospital (NADALIN, 2015, p.163).

Mas essas questões não diminuem a riqueza do texto escrito por Gustav Hermann Strobel. São justamente esses posicionamentos do autor que permitem uma análise dos contatos culturais e da construção de uma identidade teuto-brasileira. As “Memórias de Gustav Hermann Strobel”, escritas pelo filho varão mais velho da família, Gustav, demonstram como a identidade e a cultura alemã no Paraná se formou e se transformou ao longo do século XIX e início do século XX, à medida que os contatos culturais aumentaram, às vezes de forma amistosa e às vezes de modo conflituoso.

As reminiscências de Gustav Hermann Strobel permitem que as análises tomem diversos caminhos: possibilita a conjugação de memórias individuais e coletivas; propicia a análise do passado e sua relação com o presente; dá ênfase na construção e transformação da sociedade paranaense; ressalta como as identidades se constroem no contato com o outro.

Portanto, a nova tradução coordenada pelo professor Sergio Odilon Nadalin não é esforço vão. As reminiscências de Gustav Strobel, relançadas em livro pelo Instituto Memória, cumpre o desejo do autor de perpetuar a história da família Strobel na memória das futuras gerações (ele mesmo havia incumbido seus descendentes de redigir cópias do manuscrito). Além disso, a nova edição amplia o acesso a uma fonte histórica que tem servido para problematizar aspectos da teuto-brasilidade.

Referências

BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUIGNAT, Philippe; STREIFFFENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. 2ª ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.

NADALIN, Sergio Odilon (Org). Memórias de Gustav Hermann Strobel. Relatos de um pioneiro da imigração alemã no Brasil. 2. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2015.

______. A constituição das identidades nacionais nos territórios de imigração: os imigrantes germânicos e seus descendentes em Curitiba (Brasil) na virada do século XX. Revista Del CESLA, Varsóvia, n.15, p.55-79, 2012. Disponível em:. ______. João, Hans, Johann, Johannes: dialética dos nomes de batismo numa comunidade imigrante. História Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.1, p.14-27, jan./abr. 2007. Disponível em:

Lourenço Resende da Costa –  Doutorando em História pela UFPR, Mestre em História pela UNICENTRO, professor de História pela SEEDPR. Bolsista CAPES.


NADALIN, Sergio Odilon (Org). Memórias de Gustav Hermann Strobel. Relatos de um pioneiro da imigração alemã no Brasil. 2. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2015. Resenha de: COSTA, Lourenço Resende da. As memórias de um imigrante alemão no Brasil: a História da família. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.603-608, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Viva la Revolución: a era das utopias na América Latina | Eric Hobsbawm

Introdução

Falecido em 2012, é (im)possível imaginar qual seria a reação de Eric Hobsbawm à situação atual da América Latina. O historiador “britânico” (nascido egípcio, de pai britânico e mãe austríaca, educado na Áustria, Alemanha e depois Inglaterra) deixou esse mundo quando o nosso continente tinha vários governos ditos ou considerados de esquerda [2]: Kirchner na Argentina, Chavez na Venezuela, Mujica no Uruguai, Morales na Bolívia, Correa no Equador, Rousseff no Brasil e – apesar de ser uma ilha caribenha –, Castro (Raul) em Cuba.

De lá pra cá se viu a volta do neoliberalismo na Argentina de Macri; uma ditadura traidora pelos sandinistas na Nicarágua; um conservadorismo que encontrou seu testa-de-ferro em Bolsonaro, presidente recém-eleito no Brasil; um socialismo em situação de reconsolidação, com a eleição de Miguel Díaz-Canel em Cuba, dando fim ao governo “direto” dos Castro (apesar de Raul ainda estar vivo); outros socialismos que precisam se reinventar pela parte de Morales na Bolívia, Tabaré Vázquez no Uruguai e Nicolás Maduro na Venezuela; e um presidente trabalhista recém-eleito no México, Andrés Manuel López Obrador.

Apesar de ser uma área de estudo pouco explorada (a América latina), Hobsbawm escreveu resenhas e ensaios sobre o continente por um período que abarca quarenta anos. Tal massa de trabalho acabou se transformando em livro póstumo, com um total de 31 artigos. Se fosse vivo até hoje, crê-se que esse recorte de 2012-2018 provavelmente chamaria a atenção do historiador para novos escritos. Como isso não é possível, essa resenha procura trazer a hipótese que a leitura da obra já ajuda a compreender não apenas uma parte da história latinoamericana do século XX, mas fornece igualmente alguns insights de entendimento, e até mesmo fôlego para refletir novas maneiras de encarar tanto o estudo de nosso país e continente, em uma dialética eterna de história “local” e “total” acadêmica, como social para atuação no dia-a-dia em sociedade.

Portanto, fazer resenha de um livro que é uma colcha de retalhos – além de póstumo – é desafiador e fadado a um fracasso parcial. Por conta da falta de uma “tese central” no livro, perder-se-ia muito tempo explorando as várias temáticas estudadas por Hobsbawm. Esse texto, deste modo, vai focar em dois pontos: a relevância da leitura do livro e os limites que ele traz.

A obra

Editado em 2016, sob o título Viva la Revolución: On Latin America, o livro foi traduzido para o Brasil em 2017 com um título mais chamativo e “propagandístico”: Viva la revolución: a era das utopias na América Latina. Apesar da manutenção da abertura original, o subtítulo já merece dois avisos (deixar-se-á o segundo para ser a conclusão): o primeiro é que a obra não pode ser considerada “uma das Eras” da coleção de Hobsbawm; e imagina-se que esse subtítulo fora utilizado se baseando (os editores) no conhecimento do Historiador no Brasil pela sua “tetralogia” [3]. Todavia, pode-se dizer que os artigos inseridos nessa coletânea ajudaram a encorpar alguns argumentos – e capítulos – de duas “Eras”, apesar do livro da América Latina se inserir no corpo cronológico da Era dos Extremos. Mas, para um leitor atento, Hobsbawm não escreveu “apenas” as “Eras”. Seu interesse sobre a América Latina apareceu em sua primeira obra Rebeldes Primitivos (1959), como depois em Bandidos (1969), e voltou com Pessoas Extraordinárias (1998).

No caso de Era dos Extremos, não foram gratuitos, por exemplo, os usos de expressões como “Suíça da América Latina” para o Uruguai (HOBSBAWM, 1995, p.115) e “candidato a campeão mundial de desigualdade econômica” para o Brasil (HOBSBAWM, 1995, p.397), que podem ser vistas em Viva la Revolución. Nessa mesma esteira de raciocínio, dois artigos são “copia-e-cola” mais ou menos costurados das “Eras”: O capítulo “A Revolução Mexicana” saiu de trechos da Era dos Impérios, enquanto o “A Revolução Cubana e suas consequências” adveio da Era dos Extremos. A “reciclagem” de textos não é apenas das “Eras”. Outro, também, é uma costura de trechos de Bandidos, enquanto dois estão presentes em Rebeldes Primitivos, dois em Pessoas Extraordinárias e um de Tempos Interessantes. Em suma, de 31 artigos, 8 são provenientes de outras obras, ou seja, 23 artigos são completamente inéditos no Brasil.

Isso não retira o mérito do livro. Ao contrário, demonstra tanto uma espécie de desmistificação em torno de um caráter eurocêntrico que pode pairar em torno de Hobsbawm — por sua preferência pela França e Inglaterra, presente na Era das Revoluções, bem como a Europa e Estados Unidos na Era do Capital e Era dos Impérios, e Estados Unidos e União Soviética na Era dos Extremos. O que se tem com a leitura de Viva la Revolución é a característica de uma história global que se interliga a todo o momento a partir de uma perspectiva “total”. Apesar de, em termos “escritos”, no papel, a América Latina figurar como coadjuvante ou sem muito espaço em vários livros e coletâneas, Hobsbawm sabia da importância do estudo do continente americano para uma melhor compreensão da história do mundo, principalmente no século XX. Não é à toa que, em vários artigos, o historiador “britânico” chama a atenção ao caráter displicente dos europeus em relação aos assuntos latino-americanos.

E que assuntos eram esses?

Vale dizer de início que, diferente das outras “Eras”, Hobsbawm não escreveu visando criar em um futuro uma obra com gavetas. O pesquisador não separou de maneira deliberada os temas da Política, Economia, Língua, Classes Sociais, Arte, Religião, Ciências etc. Portanto, tem-se o primeiro “limite” do livro de Hobsbawm: a circunscrição de temas. Esses variam, especialmente, nas temáticas dos camponeses, revolução política, industrialização e reforma agrária. Ou seja: a ideia de “progresso” (economia feudal versus industrial), de luta de classes (camponeses, bandidos, guerrilheiros socialistas e comunistas versus oligarcas, hacienderos, coronéis, latifundiários e ditadores estatais) e a disputa entre ideologia Capitalista e Socialista (influências do imperialismo norte-americano versus vários socialismos – cubano, leninista-stalinista e maoísta) perpassará todo o livro. Qualquer semelhança com as temáticas centrais das outras quatro “Eras” não é mera coincidência.

Esses temas invocam também a perspectiva historiográfica e ideológica de Hobsbawm. O capítulo 8, “Elementos feudais no desenvolvimento da América Latina”, é o que deixa mais latente suas reminiscências teóricas que transitavam entre o marxismo dito “estruturalista” e eurocêntrico, provenientes de leituras de obras como A Ideologia Alemã e Manifesto do Partido Comunista, além de a nova oxigenação metodológica, principalmente a partir das leituras dos Grundrisse e do filósofo italiano Antonio Gramsci (HOBSBAWM, 2011, 12-15). Mesmo não levando ao pé da letra o uso do conceito “feudal” e “feudalismo”, Hobsbawm não deixou de perceber o estilo de vida agrária na América Latina, e utilizou os termos muito mais como uma denúncia de “anacronismo” social e econômico de países que queriam se mostrar modernos e em vias de industrialização. Sua crítica era no sentido que, enquanto existissem relações de poder massacrantes entre os donos de terras e haciendas, e camponeses pobres e índios na América, era quase impossível levar a sério as tentativas de políticas burguesas que as classes citadinas e políticas queriam promover.

Porém, não há nos capítulos dos livros nenhuma tentativa de leitura estrutural vulgar em relação às sociedades. Vale dizer: se a América Latina não era “feudal” propriamente dita, também não o era “moderna”, com suas classes burguesas e proletárias bem “divididas” ou organizadas como na Europa desde finais do século XVIII. O próprio termo “classe” é quase inexistente no livro. Hobsbawm preferiu ainda diluir as camadas dominantes em políticos, hacienderos, oligarcas, empresários, grandes comerciantes; e as subalternizadas em camponeses, bandidos, operários de minas, mendigos, vagabundos, guerrilheiros etc. O historiador demonstrou finesse em analisar com cuidado as relações entre os diferentes grupos sociais nos momentos de traçar alianças ou explodir revoltas. Mesmo depois de várias décadas de apreciações, Hobsbawm continuaria receoso em dividir facilmente os estratos sociais americanos, optando por um exame mais inteligente no capítulo 30, Nacionalismo e nacionalidade na América Latina, publicado originalmente em 1995.

Cabe agora apresentar algumas “críticas”. Uma em especial é a falta de dois estudos que provavelmente Hobsbawm deve ter escrito, mas que não figuram na seleção da obra: arte e religião. Pensa-se que, apesar de referências a literatura de Gabriel Garcia Marquez e a Bossa Nova brasileira, é triste não ter uma análise, seja ensaística ou mais detalhada, em relação à arte latino-americana. A Bossa Nova tem um capítulo só dela, mas de apenas quatro páginas. Sua existência pode se dar pelo especial interesse que Hobsbawm tinha no “jazz brasileiro”, uma vez que sua paixão pelo Jazz norte-americano rendeu um livro, e lá também fez referência à Bossa Nova (HOBSBAWM, 2016). No quesito “Arte” (cinema, pintura, literatura, música, teatro etc.), sabe-se que o autor não era nenhum leigo. Seu livro (também póstumo) Tempos Fraturados dá mostra do fôlego e do tamanho de conhecimento e análise crítica que o historiador tinha e que a todo o momento era exposto em resenhas, artigos e conferências (HOBSBAWM, 2013). Nessa mesma linha de raciocínio, apesar da existência de algumas pontuações sobre a Igreja Católica, o leitor sente falta de colocações sobre os diferentes papéis dessa instituição, fosse por meios reacionários, ou por meios revolucionários. O máximo que aparece são alguns comentários mais ácidos à Igreja, chamando-a de Medieval (levando em consideração o que foi escrito acima sobre o caráter “feudal” da América Latina), e mais resguardados aos progressistas da Teologia da Libertação.

O tema da reforma agrária deve ser lido com cuidado. Em muitos momentos Hobsbawm se mostra esperançoso com os rumos que tomavam as revoltas camponesas na América Latina. Ao mesmo tempo, via com intensa desconfiança a maneira como a Reforma Agrária era administrada pelo Estado, principalmente aquele que se encontrava “longe” da população que ele julgava entender e atender. Allende no Chile e os Militares no Peru sofrem um misto de esperança e críticas severas de Hobsbawm. Julga-se que o “cuidado” da leitura sobre esse tema no livro Viva la revolución deve ser salientada por conta do tratamento que o historiador vai dar ao mesmo assunto nas suas quatro “Eras”.

Deixando de lado as três primeiras, mais caras aos finais do século XVIII e todo o século XIX, cabe chamar atenção à Era dos Extremos, em que Hobsbawm analisou a reforma agrária da Rússia e China. Em ambos os casos o historiador soltou críticas vorazes à maneira como os planos de agricultura e reforma agrária foram levados a cabo pelas duas potências comunistas. Fazer uma análise comparativa seria interessante para estudos futuros de quem se interessa pela temática.

Outro ponto em especial são as temporalidades e recortes geográficos dos escritos. Saber diferenciar “espaço e conjuntura” é essencial para não se perder em análises generalizantes sobre o livro. Pode-se dizer que o historiador escrevia de maneira mais profícua de acordo com os abalos socioeconômicos e políticos que apareciam vez ou outra no continente americano. O grosso dos artigos se concentra na temporalidade de 1959 (com a edição de Rebeldes Primitivos) e vai até 1977, mas com especial vantagem entre 1963-1973. Na década de 80, Hobsbawm escreveu um em 1986 e os trechos sobre a revolução mexicana em Era dos Impérios, de 1987. Depois, só voltou a dar atenção pós-Era dos Extremos, com um artigo em 1995 e outro em autobiografia de 2002 [4]. Soma-se a tudo isso a heterogeneidade de veículos e motivações para escrever algo sobre a América Latina. Os textos são de artigos de jornais, conferências acadêmicas, artigos de revistas científicas, capítulos de livros organizados por terceiros e capítulos de livros autorais já mencionados, e ainda as famosas resenhas críticas que o autor fazia para a New York Review of Books.

Além dos motivos de queda de escritos nos anos 80 e 90, ressalta-se a falta de interesse do historiador com outras localidades do continente. Pouco foi dito sobre o Uruguai, Paraguai, Argentina, Equador, Bolívia, Venezuela e até mesmo Brasil (tirando o tema dos camponeses bandidos-justiceiros de Lampião e sua passagem por Recife em 1963). Em contrapartida, Chile, Colômbia e Peru recebem especial atenção. Cuba e México aparecem menos, mas com força, provavelmente por conta de suas revoluções. Entretanto, a temática da revolução cubana (sua influência prática e ideológica sobre vários estratos sociais no restante do continente) dilui-se em todo o livro. Pode-se até mesmo arriscar a dizer que a revolução Cubana é uma das chaves principais para começar a estudar a América Latina continental da segunda metade do século XX, uma vez que ela ajudou a atrair as influências Soviética e Maoísta, bem como dos Estados Unidos.

Conclusão

Pode-se dividir a conclusão em duas partes. Apesar do termo “conclusão” estar errado, imagina-se que dois pontos dos escritos devam ser salientados.

O primeiro é o paralelo entre uma ideia de Hobsbawm e a do historiador brasileiro Caio Prado Jr. O segundo, ao falar do Brasil na época de colônia, colocou que “devemos abordar a análise da administração colonial com o espírito preparado para toda sorte de incongruências” (PRADO JR., 2011, p.320). Com uma visão da América Latina, Eric Hobsbawm (2017, p.56) chegou a um insight mais amplo:

No entanto, quando se começa a pesquisar sobre a América Latina, descobre-se imediatamente um obstáculo ainda maior do que a simples ignorância. Pelos nossos padrões – não apenas britânicos, mas, se quiserem, norte-americanos ou mesmo russos – e nos termos em que em geral analisamos os fenômenos políticos, a região simplesmente não faz sentido.

O segundo ponto é o retorno do que se falou no início desse texto em relação ao uso do termo “utopia”. Apesar do apreço de Hobsbawm em relação a Cuba pós-revolucionária, ao Chile de Allende, aos movimentos camponeses no Peru e na Colômbia, passando pelo banditismo social em México e Brasil, a leitura completa da obra demonstra que não havia, nem no historiador, e muito menos de maneira bem trabalhada naquelas sociedades estudadas, o que seria uma “utopia”. De fato, todos esses assuntos acima mencionados invocam a luta de classes, os descontentamentos políticos e socioeconômicos, os conflitos culturais e as inúmeras tentativas de mudanças (da guerrilha aos governos reformistas de esquerda e até mesmo militares, como o caso do Peru) que visassem uma sociedade melhor, mais igualitária e justa. No entanto, a escolha do subtítulo pela editora brasileira deixa o caráter ambíguo: 1) as utopias socialistas já se foram e agora temos que nos contentar com a vitória do neoliberalismo e do capitalismo encabeçado pela meritocracia do cada-um-por-si-e-ninguémpor-todos, alimentado pela concepção de livre-mercado a partir de um Estado Mínimo subalterno a interesses de empresas e governos estrangeiros? 2) será que estamos passando por uma nova fase que deve entender – a partir do estudo frio e racional – a “era das utopias” para não mais idealizar um passado que no papel e na teoria é revigorante, mas que na atual situação não se encaixa mais de maneira acrítica e que deve, portanto, ser reformulado para outros caminhos de ação?[5]

Eric Hobsbawm não era afeito a profecias e cuidava de fazer suas análises de maneira bem fundamentada para evitar escorregões e comentários mais apaixonados (HOBSBAWM, 2000). Ao fechar o livro, o leitor não terá respostas ou “linhas de ação” para traçar planos de mudança ou “revoluções”. Entretanto, estudar o “fracasso” de várias tentativas servirá como aprendizado tanto da história como da própria filosofia política (BERMAN, 2008, p.172-191; THOMPSON, 1987, p.13; BENJAMIN, 2016, p.9-20). Por outro lado, o impacto de sempre aprofundar o estudo da história do continente americano também surtirá efeito. Entretanto, o pesquisador “britânico”, fazendo jus à sua formação, deixou latente seu método de análise dialética onde as histórias da América Latina se conectam entre si e com o os outros continentes, nunca se sobrepondo (evitando, assim o provincianismo apaixonado), nem se subalternizando (impedindo a chamada “síndrome de vira lata”), mas sempre se retroalimentando – sem a ingenuidade de pôr na balança todo o mundo em pé de igualdade nos aspectos do poder. Seus artigos servem, portanto, para um mergulho mais aprofundado na nossa necessidade de não procurar um “homem latino-americano”, mas um latino-americano livre dos colonialismos, das explorações, e das desigualdades sociais. A ideia é antiga, presente igualmente no discurso do poeta chileno Pablo Neruda (2010, p.505) na entrega de seu Prêmio Nobel de Literatura, em 1971:

Nuestras estrellas primordiales son la lucha y la esperanza. Pero no hay lucha ni esperanza solitarias. En todo hombre se juntan las épocas remotas, la inercia, los errores, las pasiones, las urgências de nuestro tempo, la velocidade de la historia. Pero, qué sería de mí si yo, por ejemplo, hubiera contribuido em cualquiera forma al pasado feudal del gran continente americano? Cómo podría yo levantar la frente, iluminada por el honor que Suecia me ha outorgado, si no me sintiera orgulloso de haber tomado una mínima parte en la transformación actual de mi país? Hay que mirar el mapa de América, enfrentarse a la grandiosa diversidad, a la generosidad cósmica del espacio que nos rodea, para entender que muchos escritores se niegan a compartir el pasado de opróbio y de saqueo que oscuros dioses destinaron a los pueblos americanos.

Notas

2 Ou progressistas para os intelectuais frustrados, mas esperançosos; ou pequeno-burgueses para os críticos de esquerda; ou, ainda, populistas de esquerda para os críticos da direita; ou, ditaduras comunistas para a extrema direita que ainda revive a “guerra fria”.

3 Seriam elas: a era das revoluções; a era do capital; a era dos impérios; a era dos extremos.

4 A cronologia ficaria da seguinte maneira: 1959, 60, 62, 63(4), 65, 67, 68, 69(4), 70(2), 71(3), 73(3), 74, 76, 77, 86, 87, 94, 95, 2002. E um inédito, sem data.

5 Crítica parecida também já era esboçada por Edward Thompson (1978, p.207-208) contra o “stalinismo” na América Latina e na Índia.

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: ______. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

BERMAN, Marshall. Aventuras no marxismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

______. Tempos Fraturados. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

______. História social do Jazz. São Paulo: Paz e Terra, 2016.

______. Viva la revolución: a era das utopias na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

HOBSBAWM, Eric; POLITO, Antonio. O novo século. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

NERUDA, Pablo. Discurso de Estocolmo. In: ______. Antología General. Lima: Real Academia Española. Asociación de Academias de La Lengua Española, 2010.

THOMPSON. Edward. A miséria da teoria, ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

Alex Rolim Machado – Doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).


HOBSBAWM, Eric. Viva la Revolución: a era das utopias na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: MACHADO, Alex Rolim. Os filhos das Revoluções: a América Latina na Era dos Extremos. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.609-616, dez., 2019.Acessar publicação original [DR]

A Ditadura na Tela: O Cinema Documentário e as Memórias do Regime Militar Brasileiro | Gabriel Amato, Natália Batista e Carolina Dellamore

RC Destaque post 2 11

Durante o século XIX, a constituição do ofício de Clio como uma disciplina universitária produziu a necessidade de profissionalizá-lo. A afirmação da História enquanto uma prática científica foi possível por conta de alguns pressupostos, tais como a separação radical entre sujeito e objeto, a primazia dos registros escritos em detrimento das fontes orais e o afastamento das questões do presente. Por conseguinte, os historiadores rejeitaram os acontecimentos recentes, que ainda contavam com partícipes vivos, sob o argumento de que seria preciso manter a escrita da história guiada pelos ditames da objetividade e da imparcialidade, o que implicava no tratamento do passado na condição de alteridade e no estabelecimento da dicotomia entre memória e história.

No entanto, esse descrédito atribuído à memória começou a mudar a partir do final da Segunda Guerra, quando várias obras produzidas a partir de relatos das testemunhas da violência política obtiveram uma enorme atenção por parte da esfera pública. Nesse sentido, a visibilidade conferida à uma dessas manifestações memorialísticas em particular, o testemunho, iniciada a partir da revelação e dos julgamentos dos crimes nazistas, foi impulsionada por conta de eventos que ocorreram quase que simultaneamente: as transições democráticas no Cone Sul e o surgimento das teses negacionistas do Holocausto na Europa.

Por conseguinte, os historiadores não passaram incólumes a esse fenômeno conhecido como boom da memória, que suscitou a “guinada subjetiva”, descrita por Sarlo (2007) como sendo uma mudança epistemológica que ocorreu no interior das ciências humanas: no lugar das estruturas econômicas e sociais, houve a revalorização do ponto de vista subjetivo. Deste modo, a emergência dos relatos amparados em experiências referentes a situações limite, que constituem um “passado vivo” (traz muitas inquietações e desafios para além do momento em que ocorreram) foi crucial para o desenvolvimento do campo da História do Tempo Presente [2].

É justamente nesse contexto de fortes críticas a alguns dos fundamentos da história dita “positivista” ou “tradicional”, que se iniciou uma percepção incisiva de que o cinema detém um potencial enorme para a investigação historiográfica. Desde o seu nascimento, no final do século XIX, a sétima arte consiste em uma testemunha da história e sempre registrou os fatos no “calor do momento”, sendo imprescindível para a compreensão do tempo presente [3]. Dessa maneira, conforme aponta Michèle Lagny (2012) se por um lado o cinema sempre se referiu à história, seja por meio da captura instantânea do que ocorreu, ou seja, pela recriação e romantização do passado em filmes ficcionais; por outro, a história só começou a se interessar tardiamente pelas produções audiovisuais. Essa historiadora francesa também indica que a emergência do estudo do tempo presente e a inclusão das fontes memorialísticas audiovisuais aconteceram simultaneamente no interior do fazer historiográfico. Por conseguinte, pode-se afirmar o seguinte:

[…] a apreensão audiovisual é considerada indiscutivelmente como testemunho porque ela ‘mostra’ o que se passa no momento em que a história acontece. Assim, o cinema revela de imediato um interesse pela história do tempo presente […] É justamente quando, nos anos 60-70, começa a ser formulada a noção de história do tempo presente que certos historiadores acabam, após um período de desprezo pelo audiovisual, percebendo que podem […] servir-se dele para interrogar a forma com que o momento presente é apresentado ou pela qual determinados atores querem que ele seja percebido (LAGNY, 2012, p.24-25)

Nesse sentido, a coletânea A Ditadura na Tela: O Cinema Documentário e as Memórias do Regime Militar Brasileiro, publicada pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG e organizada por três jovens pesquisadores, Carolina Dellamore, Natália Batista e Gabriel Amato, contribui substancialmente para os debates em torno dos vínculos que as memórias do nosso último período ditatorial mantém com a linguagem historiográfica e cinematográfica na sua vertente documental.

O livro contém 12 artigos divididos em duas partes (“As batalhas da memória no cinema documentário sobre a ditadura” e “O fazer e o guardar no campo do cinema documentário sobre a ditadura”) além de um prefácio assinado pela professora Miriam Hermeto, do departamento de História da supracitada instituição, e uma espécie de introdução denominada “A Ditadura na Tela: Questões Conceituais”, escrita pelos organizadores. Nessa seção, somos informados que a publicação é fruto de uma iniciativa anterior: o projeto de extensão “A Ditadura na Tela”, parceria entre o Núcleo de História Oral (NHO) dessa universidade, primeiro com o Centro de Referência da Moda e depois no Museu da Imagem e do Som (MIS), por meio do MIS Santa Tereza, ambos localizados na capital mineira. Tal projeto, que começou em 2014 e findou após três anos, ao longo das suas edições, promoveu a exibição de filmes documentais que tratam do regime autoritário iniciado em 1964 e encontros entre o público, cineastas e pesquisadores.

Um mérito desse projeto de extensão, que se traduziu na análise das películas dos artigos que compõem a coletânea, consiste na pluralidade de assuntos tratados em diferentes formatos cinematográficos. Ou seja, em relação à temática, foram escolhidas produções que vão desde o imaginário mais comumente atribuído ao período ditatorial que se refere, muitas vezes, aos jovens, geralmente homens de classe média ou alta, que aderiram ao movimento estudantil e à luta armada até as especificidades de grupos como as mulheres, as populações negras e os LGBT’s, que geralmente não são incluídos na escrita da história ou na memória social sobre a ditadura militar brasileira.

Ademais, os filmes eleitos também demonstraram igualmente uma variedade de formatos, sendo possível identificar filmes com características típicas dos chamados documentários ditos tradicionais, que se caracterizam por uma pretensão de objetividade, pela utilização de uma voz em off que procura tecer comentários distantes dos problemas suscitados pela realidade e pela presença de imagens apenas como ilustração para o que está sendo dito, mas também notamos que foram selecionados documentários com outros tipos de formato, nos quais o entrecruzamento entre as vivências do/a diretor/a e das personagens entrevistadas se torna um elemento central e as próprias fronteiras com o cinema ficcional são diluídas.

Assim, os organizadores afirmam que esses pressupostos permitem concluir que os filmes escolhidos, tanto para fazer parte do projeto de extensão quanto os analisados nos capítulos do livro em questão, se preocupam em valorizar não só a memória da esquerda armada, mas também aquela de outros personagens, isto é, a memória de “gays e lésbicas perseguidos pelo regime e a censura, artistas mais próximos da contracultura, sujeitos invisibilizados pela questão racial, entre outros” (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.18). Em suma, através de um formato cinematográfico específico (caracterizado pela voz em off, de entrevistas e de imagens de arquivo) os documentários não apenas reproduzem memórias amplamente exploradas, mas evidenciam a pluralidade dos relatos dos vários grupos afetados pelos mecanismos repressivos. Além disso, também se inserem na luta desses grupos por visibilidade, reconhecimento de seus direitos na atualidade.

Não obstante à essa atenção a novos aspectos e testemunhas, a coletânea contém artigos que tratam de filmes que versam sobre objetos que, na historiografia e na memória coletiva sobre a ditadura, já são consagrados, a exemplo do movimento estudantil. No capítulo “A UNE Somos Nós: A Construção de Uma Memória Social Nostálgica da Resistência à Ditadura no Documentário Memória do Movimento Estudantil”, de Silvio Tendler (2007), Gabriel Amato realiza uma crítica ao filme citado no título. É uma produção idealizada por conta das comemorações dos 70 anos da própria União Nacional dos Estudantes, que é retratada como a unificadora dos embates dos jovens contra o autoritarismo nos anos 1960, apesar da multiplicidade de tendências no movimento estudantil da época. Deste modo, os estudantes seriam símbolos da defesa à democracia e representam o espírito da sociedade que resistiu bravamente aos abusos e desmandos. Entretanto, Amato faz menção aos trabalhos de Daniel Aarão Reis, que ressalta que as relações entre Estado e sociedade foram muito complexas e que não podem se resumir na polarização opressão e resistência. Assim, trata-se de um filme fortemente imbuído de uma memória oficial/institucional.

Nesse sentido, é importante enfatizar quatro capítulos da obra resenhada aqui que discorrem acerca de documentários que evidenciam as vivências de mulheres sob o jugo do regime ditatorial. São eles: “Repare Bem (2012) e as Estratégias de Construção da Memória em Diálogo com o Estado brasileiro: o caso da Comissão da Anistia”, escrito por Juliana Ventura de Souza Fernandes, “Censura, Homossexualidades e Resistências na Narrativa Cinematográfica de Cassandra Rios: a Sarfo de Perdizes (2013)”, assinado por Ana Marília Menezes Carneiro, “Uma Resposta de Vida à Ditadura Militar Brasileira: Memórias Femininas no Filme Que Bom Te Ver Viva (1989)” de Débora Raiza Carolina Rocha Silva e, por fim, “O Ato de Lembrar a Militância sob a Ótica Feminina: O Caso do Documentário Subversivas (2013)”, de Isabel Cristina Leite.

Se, por um lado, esses textos possuem a mesma matéria-prima, por outro lado, eles exploram aspectos distintos referentes a essa mesma temática. O primeiro se debruça sobre o filme Repare Bem, lançado em 2012 e dirigido pela portuguesa Maria de Medeiros, cuja trama focaliza as dores vividas por Denize Chrispim e Eduarda Leite, respectivamente viúva e filha do guerrilheiro Eduardo Collen Leite, assassinado em 1970 e conhecido pela alcunha de Bacuri. Somos apresentados, então, a duas gerações de mulheres atingidas pela perda de um ente querido vitimado pela violência política. Outro ponto a ser sublinhado é o fato de essa produção ser resultado do projeto “Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil”, desenvolvido pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça. Como se pode perceber, é um projeto que exemplifica a chamada “estatização da memória”, que consiste na apropriação por parte do Estado do quê e de como se deve lembrar, o que implica em um discurso oficial que, embora reconheça as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos durante a ditadura e a necessidade de se fomentar iniciativas que tocam nesse assunto sensível, possui demasiadas limitações devido à Lei da Anistia e da suavização, justificação e até mesmo negação das práticas repressivas apresentadas por membros das Forças Armadas, representantes deste mesmo Estado.

Já o segundo texto, escrito por Ana Marília Menezes Carneiro, trata do filme Cassandra Rios: a Safo de Perdizes de 2013, dirigido por Hanna Korich. É uma produção sobre a vida de Cassandra Rios (1932-2002), uma escritora que, desde o final dos anos 1940 até o início dos anos 2000, publicou diversos romances que possuíam como pano de fundo as relações homoafetivas, especialmente entre mulheres. Os livros da escritora obtiveram bastante sucesso no mercado editorial, não obstante o conservadorismo de cunho moral observável tanto em setores à esquerda quanto à direita na sociedade brasileira. Em consequência desses tabus, a liberdade de expressão de Cassandra era constantemente tolhida antes mesmo do golpe de 1964. Entretanto, com a censura prévia de instalada no começo dos anos 1970, houve a sistematização do cerceamento às publicações que se contrapunham à preservação dos bons costumes. A própria escritora chegou a ser submetida a interrogatórios, ameaças e até agressões físicas. Em suma, a obra de Cassandra Rios nos ajuda a complexificar o entendimento acerca da diversidade das práticas censórias e também conferiu “visibilidade à homossexualidade – notadamente a feminina – em contraponto não somente ao conservadorismo proveniente dos órgãos de censura e repressão, mas também presente na militância da esquerda” (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.75).

A autora do próximo artigo dessa série, Débora Raiza Carolina Rocha Silva, já o inicia com indagações sobre a possibilidade de se afirmar a existência de uma memória feminina no que tange à resistência à ditadura e, se sim, porque essa memória foi escamoteada e porque ela deve receber visibilidade. A partir desses questionamentos, Débora analisa Que Bom Te Ver Viva, documentário que recolhe depoimentos de oito mulheres que narram o seu engajamento contra a ditadura e como elas lidam com os traumas causados pelo encarceramento e pelas múltiplas torturas, mas também por atitudes machistas e por silenciamentos acerca da atuação de mulheres dentro das organizações de esquerda. Lançado em 1989, este foi um dos filmes pioneiros a retratar o combate ao autoritarismo por parte do cinema durante a redemocratização.

A atriz Irene Ravache, que muitas vezes se dirige diretamente ao telespectador por meio de um monólogo, interpreta um álter ego da diretora, Lúcia Murat, que assim como as suas entrevistadas, também foi uma presa política. O filme em questão ainda apresenta outro aspecto que merece ser acentuado: a sua instigante linguagem cinematográfica que apresenta a forma de um docudrama: uma mescla entre elementos ficcionais, como a presença de uma atriz profissional, e elementos típicos de filmes documentais, como o uso de entrevistas com testemunhas de carne e osso e de imagens de arquivo. Por conseguinte, Que Bom Te Ver Viva não é um representante de uma narrativa tradicional e se aproxima dos documentários performáticos que, de acordo com Nichols (2016), são caracterizados justamente pela predominância das subjetividades e do engajamento do/da cineasta e dos seus entrevistados nos processos históricos.

Por fim, o último texto da coletânea, que busca esmiuçar documentários cuja tônica é a participação de mulheres na luta contra a ditadura, analisa Subversivas: Retratos Femininos de Luta Contra a Ditadura, produzido e dirigido por Fernanda Vidigal e Janaína Patrocínio. O audiovisual aborda a inserção feminina nos movimentos de resistência em Belo Horizonte. Embora esse artigo se refira à atuação de um determinado grupo em uma cidade específica, a autora do artigo, Isabel Cristina Leite, tece reflexões mais amplas, acentuando as relações entre a emergência de se narrar o trauma sofrido pelos sobreviventes e o desejo, expresso no grito de “nunca mais”, de que a exceção e a violência política não retornem: “narrar um trauma tornou-se um desafio e estava relacionado com a necessidade de […] não repetição do passado traumático” (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.206).

Uma singularidade deste filme reside no fato de que uma das suas diretoras, Fernanda Vidigal, é filha de João Furtado e Thereza Aurélia (que inclusive é uma das entrevistadas), dois militantes que fizeram parte do grupo Ação Popular, ligado à juventude católica que foi uma das várias organizações de oposição ao regime militar. Sendo assim, tomados em conjunto, os filmes Subversivas, Que Bom Te Ver Viva, Cassandra Rios: a Safo de Perdizes e Repare bem possuem o mérito de se antecipar à historiografia e sobre a memória hegemônica sobre o período, uma vez que tornam públicas as especificidades de gênero da repressão e da resistência.

Outros dois artigos presentes na coletânea que no nosso entendimento são passíveis de destaque são “As Batalhas da Memória da Ditadura em Simonal – Ninguém Sabe O Duro Que Dei” (2009) e “Esquecidos, Celebrados, Geniais: Reconfigurações do Campo Historiográfico a Partir do Documentário Dzi Croquettes” (2009). O primeiro deles discute Ninguém Sabe O Duro Que Dei, de 2009. Esse documentário, produzido a partir da vida Wilson Simonal, que conviveu com a imensa popularidade, mas também com as acusações de que as suas canções seriam “apolíticas” e até mesmo que ele seria um informante do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). No entanto, o autor do capítulo, Bruno Vinícius de Morais argumenta que controvérsias sobre a colaboração ou não do cantor a um dos principais órgãos repressivos à parte, Simonal foi um dos artistas mais engajados na defesa do orgulho negro e do enfrentamento ao racismo, temáticas que atualmente são fundamentais, mas que, naquele período, eram bastante secundárias. Ou seja, a partir da tese sustentada pelo autor, podemos afirmar que assim como as questões de gênero, as pautas relacionadas à igualdade racial também foram escamoteadas e que, portanto, precisam ganhar cada vez mais espaço no cinema e na história.

Já o segundo, escrito por Natália Batista, investiga as possibilidades de análise contidas no documentário Dzi Croquettes, que levou para as telonas a trajetória do grupo de teatro homônimo, que construía espetáculos nos quais o binarismo entre elementos considerados como tipicamente masculinos e femininos era quebrado constantemente, o que levou a uma experimentação que explorava a desconstrução dos padrões dicotômicos de gênero e de sexualidade. Por conseguinte, percebe-se que contrariamente a outras agremiações teatrais do período, que realizava peças com um teor político tradicional, os integrantes do Dzi Croquettes, que embora não fossem alheios a esses debates corriqueiros na esquerda nos anos 1960 e 1970, militavam muito mais por uma revolução nos costumes e pela ruptura com os valores conservadores que desconheciam fronteiras ideológicas.

Se a primeira parte é escrita por historiadoras e historiadores, na segunda, encontramos dois textos de profissionais que lidam diretamente com produções audiovisuais. A cineasta Anita Leandro assina o artigo “Testemunho Filmado e Montagem Direta dos Documentários” que discorre acerca de Retratos de Identificação, de 2014, dirigido por ela e cuja trama é desenvolvida a partir de um conjunto de 60 fotos que mostram quatro presos políticos. Esses materiais provenientes de arquivos dos órgãos de repressão referem-se, sobretudo, ao tipo de imagem que nomeia o filme: fotografias em preto e branco, realizadas no momento da prisão, que registram o prisioneiro, de frente e de perfil, segurando um número de cadastro inserido em uma cartolina pendurada junto ao pescoço. O relato de Anita sobre o seu próprio filme é bastante instigante porque ele nos informa qual foi o método escolhido por ela. Em contraposição à montagem convencional (perceptível tanto em documentários quanto em obras de história oral) que utiliza entrevistas dirigidas àqueles que contam as suas vivências e que geralmente ficam ausentes da edição (no caso do cinema) e da escrita (no caso da historiografia), a diretora subverte esse processo, já que ao invés de recolher depoimentos cujos resultados dependem de perguntas feitas previamente, ela faz com que haja contato com o documento (nesse caso, as fotografias) e assim, a interpretação daquele passado se torne um diálogo entre as testemunhas e os rastros do passado, isto é:

[…] a associação dos arquivos à fala durante as filmagens oferece, tanto ao historiador quanto ao cineasta, a ocasião de observar os efeitos de um encontro entre a testemunha e as marcas do passado […] Esse compartilhamento […] favorece o diálogo entre o passado e presente, sem o qual não há elaboração possível de uma memória […] Contemporâneos um do outro […] testemunhas e documentos se complementam mutuamente (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.222).

Por fim, há ainda o texto “BH Em Movimento: Memórias da Ditadura Militar na Capital de Minas Gerais Presentes no Acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS)”, de Marcella Furtado, que possui como tópico uma breve descrição de um dos lugares onde aconteceu o já citado projeto de extensão, o Museu da Imagem e do Som (MIS) de Belo Horizonte, que possui cerca de 50 mil itens, sendo o maior acervo audiovisual de Minas Gerais. Por conta do tamanho do arquivo, o MIS é muito procurado por pesquisadores, já que lá há o registro fílmico de vários episódios relacionados à ditadura naquela cidade: o movimento pela anistia, greves estudantis, protestos, militares em comemorações e eventos oficiais, dentre outros.

Por fim, esse livro (que possui ainda capítulos que versam sobre documentários com outros assuntos: as relações do futebol com as ditaduras no Brasil e nos outros países do Cone Sul, o movimento operário no ABC Paulista e a Tropicália) por mais que abordem filmes documentais bastante distintos entre si, partem de uma mesma premissa: os/as partícipes do regime ditatorial são múltiplos, e consequentemente, a historiografia deve incorporar essa diversidade de memórias.

Os autores e as autoras dessa coletânea tecem críticas incisivas à noção de que memória e história são antagônicas e ao conceito de memória coletiva que fazem parte do trabalho de Halbwachs (2006): um elemento de tons oficiais no qual todos se identificam e em contraposição a esse conceito, eles evidenciam as memórias subterrâneas, descritas por Pollack (1989) como sendo aquelas pertencentes aos grupos minoritários e silenciados. Então, pode-se afirmar que o livro, através da análise de obras do cinema documentário, sublinha que não é apenas preciso, mas urgente, conferir notoriedade às memórias subterrâneas não só em relação ao aparato repressor, mas também na própria esquerda revolucionária das décadas de 1960 e 1970, cujas perspectivas de ação política não contemplavam devidamente a luta contra a misoginia, o patriarcado, a LGBTfobia e o racismo. Dessa forma, o livro contribui significativamente para pensarmos as relações profícuas que o cinema documental e a historiografia mantêm com as muitas memórias em torno do período ditatorial de 1964 a 1985 que, infelizmente, ainda é um passado doloroso e traumático e que, portanto, coloca muitos desafios para o tempo presente.

Notas

2 De acordo com Seligmann-Silva (2000), depois de Auschwitz, houve a percepção nítida de que a história não deve ser tomada como radicalmente oposta à memória e que o ofício de Clio deve questionar com afinco não só os pressupostos de cunho positivista típicos do século XIX, mas igualmente as noções de temporalidade linear e progressista advindas do Iluminismo. Portanto, diante dessa notável acolhida das manifestações memorialísticas, especialmente àquelas que possuem como pano de fundo experiências dos vitimados durante essas situaçõeslimite, houve a percepção de que seria preciso desenvolver um novo campo historiográfico. Então, em 1978, surgiu na França o Instituto de História do Tempo Presente (IHTP) Conforme aponta Dosse (2012), um dos fundadores do Instituto, François Bédarida, afirmava que a existência deste campo se devia justamente a dois fatores: as fortes críticas às noções positivistas de objetividade e de “verdade” históricas e as mudanças epistemológicas dentro do interior do fazer historiográfico, provocadas pela ascensão da memória. Nesse sentido, conforme apontam Franco e Levín (2007) muitos historiadores afirmam que esse é um campo historiográfico marcado pelos seguintes aspectos: a presença daqueles que vivenciaram um determinado passado e que podem oferecer os seus relatos para o historiador; uma memória social bastante intensa sobre esse passado e a proximidade e até mesmo a coincidência entre o tempo de vida e de atuação do historiador e o tempo alvo da pesquisa.

3 Uma definição sucinta, mas instigante do que seria essa temporalidade é a seguinte: o presente corresponderia a “aquele conjunto de experiências que não se tornaram ainda uma alteridade para nós” (LÜBBE, 2003, p.402 apud MATA; PEREIRA, 2012, p.15). O presente, de acordo com essa acepção, pode ser entendido como sendo a temporalidade na qual as fronteiras entre o passado e o tempo corrente são estreitas. Então, o pretérito não é considerado como “um outro”, uma vez que as suas questões frequentemente irrompem e desafiam as pretensas estabilidade e distância do hoje em relação às insistentes cobranças realizadas pelo ontem.

Referências

AMATO, Gabriel; BATISTA, Natália; DELLAMORE, Carolina. A Ditadura na Tela: O Cinema Documentário e as Memórias do Regime Militar Brasileiro. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018.

DOSSE, François. História do Tempo Presente e Historiografia. In: Tempo e Argumento, Florianópolis, v.4, nº 1, jan/jun. 2012, p.5-22. Disponível em: . Acesso em 24 mar. 2019.

FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia. El Pasado Cercano En Clave Historiográfica. In: ______ (orgs). Historia


Reciente: Perspectivas y Desafíos Para Un Campo En Construcción. Buenos Aires, Editorial Paidós, 2007, p.31-65.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

LAGNY, Michèle. Imagens Audiovisuais e História do Tempo Presente. In: Tempo e Argumento, Florianópolis, v.4, nº 1, jan/jun. 2012, p.23-44. Disponível em: . Acesso em 16 set. 2019.

MATA, Sérgio da; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Transformações da Experiência do Tempo e Pluralização do Presente. In: ______; MOLLO, Helena Miranda; ______; VARELLA, Flávia (orgs). Tempo Presente & Usos do Passado. Rio de Janeiro: FGV, 2012, p.9-30.

NICHOLS, Bill. Introdução Ao Documentário. Trad. de Mônica Sandy Martins. 6ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2016

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.3, jun. 1989, p.3-15. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2019

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da Memória e Guinada Subjetiva. Trad. de Rosa Freire D’aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A História Como Trauma. In: ______; NESTROVSKI, Arthur. Catástrofe e Representação: Ensaios. São Paulo: Escuta, 2000, p.73-98

Samuel Torres Bueno – Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação em História na Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected]


AMATO, Gabriel; BATISTA, Natália; DELLAMORE, Carolina. A Ditadura na Tela: O Cinema Documentário e as Memórias do Regime Militar Brasileiro. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018. Resenha de: BUENO, Samuel Torres. Memória, História do Tempo Presente e Cinema: Representações da Ditadura Militar no Gênero Documental. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.617-626, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna | Jacques Rancière

No início dos anos 1970, Hayden White causara grande agitação entre os historiadores ao demonstrar o recurso destes aos procedimentos e elementos poéticos na construção da narrativa e da interpretação histórica (WHITE, 1992). Trinta anos depois, François Hartog evidenciava, a partir de seus regimes de historicidade, não somente outra faceta da historiografia oitocentista, como também, de modo mais geral, da relação da sociedade ocidental com o tempo histórico. De acordo com Hartog (2013), o regime historicista moderno, marcado por uma concepção de tempo futurista, não se limitava às narrativas historiográficas – ia além, perpassando diversas formas de relação social com a temporalidade, inclusive a literatura.

Contemporâneo de White e Hartog, Jacques Rancière, filósofo francês, foi gradativamente afastando-se do marxismo althusseriano [2] – que marcou o início de seu trabalho – até se aproximar, sobretudo nos anos 1990, das discussões em torno da relação entre estética e política, e mesmo entre a ficção e a historiografia. No âmago dessas reflexões, Rancière (2005) identificou a existência, no Ocidente, de três regimes na produção das artes: um regime ético, cuja base é a filosofia platônica; um regime representativo, orientado pela poética aristotélica; e, finalmente, um terceiro regime, o estético, que é propriamente moderno, e cuja origem encontra-se no questionamento e na subversão da poética representativa. Esses regimes implicam não somente concepções e relações poéticas, mas igualmente políticas, uma vez que o filósofo identifica certa indissociabilidade entre essas esferas. Desse modo, esses regimes são fundamentais na compreensão, tanto da composição poética quanto dos seus desdobramentos críticos em sua recepção. As implicações de sua reflexão, no entanto, não se limitam à ficção e à política, permitindo recolocar em questão a relação entre estas e a história, compreendendo sua articulação, especialmente, no momento da constituição da disciplina ou ciência histórica no século XIX.

Em O fio perdido, um conjunto de ensaios sobre a ficção moderna, Rancière percorre, ao longo de três capítulos, diversos nomes consagrados do romance, da poesia e do drama com o intuito de identificar mecanismos e indícios específicos que demarcam em cada obra e em cada segmento a decadência do regime representativo, centrado no modelo orgânico e na lógica da ação, e a emergência do regime estético que caracteriza propriamente essas ficções como modernas.

O primeiro capítulo da obra, O fio perdido do romance, é aberto por um texto sobre Gustave Flaubert, O barômetro da Sra. Aubain. Nele, Rancière tenta dar conta da novidade contida na obra flaubertiana, identificando-a, primeiramente, a partir das críticas tecidas ao romancista. Logo no início do prólogo do livro, o filósofo recorre à sentença de Barbey d’Aurevilly sobre a Educação sentimental: “não há livro ali dentro; não há essa coisa, essa criação, essa obra de arte de um livro, organizado e desenvolvido, que vai em direção a um desfecho” (1869 apud RANCIÈRE, 2017, p.7). A crítica é sintomática, ela evidencia a cisão que o filósofo identifica na obra do romancista. Conforme afirmava Michel de Certeau (1998, p.91-106; p. 266-268), a crítica pertence ao terreno das táticas, consiste em um instrumento de controle, no caso, não somente das leituras, mas também das práticas de escrita literária. Ela demarca, segundo a própria reflexão rancieriana, uma concepção de ficção literária vigente. Nesse caso, trata-se do regime representativo, presente na poética aristotélica, que define a ficção, positivamente, como uma “intriga de saber” que implica na construção poética o estabelecimento de uma ordem temporal (começo, meio e fim), de uma ordem causal regida pela verossimilhança, pela necessidade, pela subordinação dos detalhes e das partes ao conjunto da obra e também por certa proporcionalidade e correspondência entre a descrição, o pensamento e a ação.

Desse modo, para o crítico de Flaubert, sua obra transgredia esses princípios, logo ela era carente de elementos necessários para qualificá-la enquanto ficção. No entanto, para Rancière, não se trata de uma carência, mas sim do efeito da emergência de um novo “paradigma estético”, que não deixa de ser um “novo paradigma da vida”. Nesse sentido, o excesso descritivo presente no romancista – encarnado na presença do barômetro da sra. Aubain, em Um coração simples –, demarcaria não a deficiência de um elemento destoante e desnecessário, muito menos um efeito de real pelo qual Roland Barthes e a crítica estruturalista estipulavam o lugar da descrição inútil e demarcavam a tentativa burguesa de petrificação e naturalização da ordem social, mas um aspecto próprio ao regime estético.

Essa descrição inútil é, para Rancière, primeiramente a recusa à progressão do relato, e consequentemente uma recusa à ação, à submissão das partes – inclusive do detalhe – ao todo, ou seja, ao desfecho, que marca a poética representativa e seu modelo orgânico. A multiplicidade desses detalhes que antecedem ao ato, à ação, também são sintomas da ampliação e da complexificação das relações causais.

No entanto, segundo o autor, a poética aristotélica não é somente uma estrutura de racionalidade, mas “uma categoria organizadora de uma divisão hierárquica do sensível” (RANCIÈRE, 2017, p.21). Em outras palavras, a ordem representativa, na qual a ficção constrói-se como um corpo no qual os membros se submetem a um centro e as ações se ordenam pela necessidade ou pela verossimilhança, é também a metáfora de uma concepção do ordenamento social, segundo a qual os homens dividem-se hierarquicamente entre ativos e passivos. Nessa ordem, os aristocratas são ativos, pois podem conceber grandes fins ou outros fins e buscar sua realização, enquanto os demais – a grande maioria, o povo – são considerados passivos, não por sua inação, mas porque sua ação não pode conceber outro fim senão a mera reprodução da vida cotidiana (RANCIÈRE, 2017. p. 21). Essa distinção limitava, portanto, o acesso dos passivos à ficção, da qual não eram dignos devido às suas supostas capacidades sensíveis inferiores. É como contraponto a essa “política representativa” que o filósofo propõe sua leitura da obra flaubertiana. Desse modo, não somente o barômetro da sra. Aubain, mas principalmente Emma Bovary, são anunciadores de uma democracia ficcional própria ao regime estético. A presença do barômetro produz um “efeito de igualdade” entre os elementos da ficção, ele não está a serviço do real, nem da ação e muito menos do todo, enquanto Emma marca a igualdade sensível de todos: “a descoberta de uma capacidade inédita dos homens e das mulheres do povo de obter formas de experiência que lhes eram, até então, recusadas” (RANCIÈRE, 2017, p.19). Essa afirmação da capacidade sensível dos anônimos proporciona, de acordo com Rancière, um poder de desidentificação em relação à velha ordem representativa que articulava posições sociais, identidades e capacidades sensíveis. No entanto, esse poder dos anônimos é deles afastado para forjar o “poder impessoal da escrita” (RANCIÈRE, 2017, p.33). Dessa forma, segundo o autor, Flaubert incorpora em sua escrita o poder da “igualdade sensível dos anônimos” e dos “estados sensíveis coexistentes”, mas acaba por submetê-los à “velha lógica da ação” (RANCIÈRE, 2017, p.37).

No texto seguinte, A mentira de Marlow, dedicado à obra de Joseph Conrad, Rancière observa a radicalização desse novo regime da ficção. Se a obra flaubertiana evidenciava a debilidade dos encadeamentos causais orientados pelo necessário e pelo verossímil, próprios a uma concepção orgânica de totalidade (ta katholou), mas também subordinava a ordem das sucessões (kath’hekaston) e das coexistências ao curso de uma intriga ainda causal, os romances de Conrad recusam totalmente qualquer controle que tente se impor à verdade da ficção – que é também a verdade da vida –, ou seja, à ausência de qualquer ordem ou qualquer sentido.

Consequentemente, na obra de Conrad, a ordem que orienta a composição das ficções advém do kath’hekaston, não tomado como mera sucessão de fatos da vida cotidiana, mas como uma ordem das coexistências que não pode ser reduzida a qualquer ordenamento. Uma temporalidade das coexistências substitui, portanto, os encadeamentos possíveis. Mas não somente isso, para Rancière, o ceticismo do romancista inglês conduz a uma indistinção entre a ficção e o real, de modo que este real passa a englobar tudo, inclusive a ficção e o sonho. Dessa concepção ampliada do real decorre a destruição da verossimilhança, e toda a lógica da ação tradicional torna-se o indício de uma mentira. Mentira não somente sobre a ficção, mas principalmente sobre a própria vida.

Por conseguinte, de acordo com o filósofo francês, a narrativa de Conrad compõe-se, contrariamente à escrita de Flaubert, de modo a ampliar os círculos das coexistências, revelando-as e evidenciando a tirania mentirosa das intrigas bem construídas. Portanto, a ficção não deve mostrar a progressão rumo a um desfecho, mas tão somente esse “meio sensível” que é a própria vida, cuja única temporalidade é o presente, um presente que engloba tanto resquícios do passado quanto antecipações do futuro. Ela torna-se, desse modo, palco “de um encontro aleatório e inevitável entre um ser de desejo e de quimera, e uma realidade cuja síntese escapa a qualquer cálculo das causas e dos efeitos” (RANCIÈRE, 2017, p.54).

Contudo, Rancière indica que essa temporalidade das coexistências que recusa qualquer sentido, controle ou finalidade encontra certos limites impostos pela ficção. Um deles é o “fim”. Desse modo, se a mentira dos inícios é contornada por Conrad ao iniciar suas ficções com algum equívoco ou acaso desdobrando-o, a necessidade do ponto final, sempre mentiroso, não faz o romancista recuar em sua convicção. Pelo contrário, para o filósofo, os fins das ficções do capitão Conrad sempre reafirmam sua concepção mesmo quando mentirosos. Esses artifícios para encerrar o livro são basicamente dois: o recurso a um deus ex machina ou à mentira necessária (como no caso de O coração das trevas) que deixam transparecer, no entanto, a verdade da ficção.

O último texto do primeiro capítulo do livro aqui resenhado, A morte de Prue Ramsay, analisa a obra de Virginia Woolf. A romancista partiria, segundo a leitura rancieriana, dos mesmos pressupostos de Conrad. Dessa forma, a imagem que lhe traduz a verdade da vida e, conseguintemente da própria ficção, é a da “chuva sempre cambiante de acontecimentos sensíveis” e impessoais (RANCIÈRE, 2017, p.39). A verossimilhança e a necessidade não podem, portanto, regular a ficção, pois tanto a vida quanto a ficção pertencem à ordem do kath’hekaston (entendido como coexistência). Consequentemente, a intriga torna-se, para Woolf, uma tirania, que pode ser: paterna, em sua forma clássica; ou materna, em sua forma contemporânea, aquela que “ordena a grande rede das coexistências” e reduz a “chuva anárquica dos átomos às pequenas coisas e aos pequenos milagres da vida cotidiana” (RANCIÈRE, 2017, p.60).

Entretanto, o autor observa que a forma desta “chuva anárquica de átomos” é incompatível com a forma narrativa da ficção que precisa de uma mínima organização de ações. Nesse caso, a saída encontrada nos romances de Woolf consiste na prática de instaurar no próprio romance a “tensão entre várias maneiras de inscrever a chuva de átomos” (RANCIÈRE, 2017, p.64). Nessa prática, o filósofo distingue dois procedimentos complementares: por um lado, a multiplicação, pela qual se ampliam as redes das coexistências que conservam sua autonomia escapando a tirania de uma intriga que busca apropriar-se dessa multiplicidade; por outro lado, opera-se uma divisão, pela qual se separa a multiplicidade que evidencia o amor e a vida universais dos “prazeres conhecidos e das virtudes familiares” (RANCIÈRE, 2017, p.69) que compõem a tirania materna da intriga, mas também do equívoco dos que confundem toda multiplicidade da vida impessoal com mensagem individual, apropriando-se dela e submetendo-a a qualquer pessoalidade. Septimus Warren Smith, personagem de Mrs. Dalloway, vítima dessa segunda indistinção que se torna loucura, é também, aos olhos do filósofo, uma figura essencial da nova ficção, pois seu sacrifício resolve a “relação entre a verdade da chuva de átomos e a lógica mentirosa das intrigas” (RANCIÈRE, 2017, p.72), e impede igualmente que “o halo luminoso da vida universal” seja confundido com as “aspirações pessoais dos filhos do povo semieducados” (RANCIÈRE, 2017, p.74).

O segundo capítulo do livro, A República dos poetas, é composto por dois textos. O primeiro deles, O trabalho da aranha, é dedicado à obra de John Keats. Keats encarna, aos olhos de Rancière, uma das novidades do regime estético, pois ele é antes de tudo, como Emma e Septimus, um “filho do povo” que, no entanto, recusa a posição e a identidade que, de acordo com a ordem clássica, o nascimento lhe impunha. Contudo, a política de sua poesia, conforme assinala o filósofo, não se encontra na articulação do poema com as agitações sociais, os posicionamentos políticos, ou em seu sentido, mas em uma “identidade dos contrários” (RANCIÈRE, 2017, p.81).

Essa identidade dos contrários não os relaciona como “antípodas”, mas como “equivalentes”. Ela subverte a lógica da ação tradicional ao equiparar a atividade com a passividade, mais precisamente, ao fazer perceber na ação o seu contrário, a passividade, e nesta última um caráter ativo, liberto, no entanto, da necessidade dos fins ou da função utilitária que caracteriza a ação na ordem clássica. Essa subversão é observada por Rancière na “negative capability” forjada por Keats, a qual consiste em uma “‘capacidade de não’: não buscar uma razão […], não concluir, não decidir, não impor” (RANCIÈRE, 2017, p.85). Tal recusa à determinação é uma marca da própria estética e sua disponibilidade a todos destrói a “diferença sensível entre duas humanidades”, aquelas que orientavam o regime representativo e a “distribuição dos corpos em comunidade” (RANCIÈRE, 2017, p.86).

Na leitura rancieriana, essa identidade é produzida pelo estabelecimento de três formas de comunidade: a primeira é aquela estabelecida “entre os elementos tecidos pelos poemas: as palavras e a presenças que elas suscitam”; a segunda comunidade se constitui “entre os poemas e outros poemas: os que o poeta escreve e os que ele não escreveu”; a terceira forma de comunidade é “aquela que o modo de comunicação sensível próprio do poema projeta como possível comunicação entre os humanos”. A política do poema consiste, portanto, na “configuração de um sensorium específico que mantém juntas essas três comunidades” (RANCIÈRE, 2017, p.81-82).

Desse modo, a imagem que define, em grande medida, a interpretação que Rancière faz de Keats é da teia de aranha, pois ela pressupõe uma igualdade horizontal, a qual desconhecia qualquer superioridade, e que se opunha, a seu tempo, à igualdade vertical ou cristã, proclamada por Willian Wordsworth, que a reconhecia como concessão ou presença divina comum, o que evidenciaria, segundo Rancière, uma superioridade do poeta que a proclama. A igualdade da teia liberta, dessa forma, as sensações de qualquer identificação pessoal e faz da obra poética uma disponibilidade acessível a cada um, pela igualdade sensível, para integrar suas teias.

O outro texto desse segundo capítulo, O gosto infinito pela República, é dedicado a Baudelaire. A expressão que dá título ao ensaio, tomada do próprio poeta que a utiliza para caracterizar a obra de Pierre Dupont, serve igualmente a Rancière para caracterizar uma categoria estética ou uma política estética presente na obra baudelairiana, que marca a participação de todos na Vida Universal, esta compreendida como um poder que perpassa e iguala a todos.

Entretanto, para compreender esse “republicanismo estético” é preciso, afirma o filósofo, distanciar-se da “interpretação benjaminiana”, demasiadamente centrada no “dado antropológico constitutivo da modernidade: o da perda da experiência, produzida pela reificação mercantil e pelo encontro da cidade grande e da multidão” (RANCIÈRE, 2017, p.103). Desse modo, essa interpretação que percebia nos escritos do poeta a substituição do modelo orgânico por um modelo inorgânico é incapaz de perceber a novidade contida em sua obra ou, mais precisamente, o “tecido estético” dentro do qual esse republicanismo ganha sentido.

Para apresentar esse “paradigma poético” da época, Rancière analisa os temas do heroísmo e da beleza modernos. O que ambos evidenciam e que permeia toda a época romântica é a falência da ação, da ação como modo de pensamento e racionalidade que normatiza os “comportamentos sociais legítimos” e a “composição das ficções” (RANCIÈRE, 2017, p.108). Essa falência é, para o filósofo, fruto do excesso, da ampliação e complexificação do mundo e do conhecimento, pois a ação demandaria “um mundo finito”, “um saber circunscrito”, “causalidades calculáveis” e “atores selecionados” (RANCIÈRE, 2017, p.108). A leitura rancieriana de Baudelaire é, consequentemente, tributária de Balzac, pois seria dele que o poeta teria tomado não somente a característica da beleza moderna, ou seja, o “flutuante”, a fugacidade, mas, sobretudo, a percepção do divórcio entre o saber e a ação. Em outras palavras, desde Balzac o mundo social perdera-se gradativamente em “infinitas ramificações”, e o tema perdera-se, igualmente, em uma “rede infinita de sensações” (RANCIÈRE, 2017, p.111-112), tornando o tecido sensível incompatível com a ação clássica. Essa ampliação também produziria um efeito de desidentificação, positivado pelo filósofo. A multidão, portanto, não igualaria a todos, mas, pelo contrário, o olhar sobre ela abrir-se-ia para a sua multiplicidade.

No último capítulo de O fio perdido, O teatro dos pensamentos, Rancière analisa a relação entre “o pensamento, a palavra e a ação no teatro moderno” (RANCIÈRE, 2017, p.123) ou, mais precisamente, no chamado teatro popular. Sua análise parte do diagnóstico, dado por Barthes, de “aburguesamento” do Théâtre National Populaire (TNP), de Jean Villar, sobretudo pela atuação de Gérard Philippe, seu maior astro nos anos 1950, para retomar a longa história do teatro moderno.

O primeiro protótipo do teatro popular é encontrado por Rancière no princípio do “palco aberto”, formulado por Victor Hugo. Este consistiria não somente na destruição das convenções ligadas aos gêneros, mas na “mistura de tudo” como na vida, “um igualitarismo radical” (RANCIÈRE, 2017, p.126). Esse palco aberto ao povo celebrava, no entanto, algo maior que ele. Celebrava, segundo tal leitura, a vida universal que ultrapassa todas as individualidades, constituindo uma dramaturgia da coexistência.

Porém, a reflexão de Hugo detém-se aí. O teatro representa, contudo, não apenas uma metáfora do ordenamento social, mas é também uma metáfora do pensamento, afirma o filósofo. Nesse sentido, duas imagens governaram historicamente a relação entre pensamento e teatro: uma negativa ou platônica opõe um ao outro, fazendo do teatro o reino da imagem, da mentira do poeta e do ator, da ilusão e da passividade, do excesso e da paixão, o contrário do pensamento; e há uma imagem positiva, a aristotélica, que faz do teatro uma “intriga de saber”, um “modelo de racionalidade”, ou do “pensamento em ato”, no qual “o espaço visível da representação é dado como o lugar de efetuação de um esquema” e a palavra adere e expressa o pensamento, controlado por uma vontade, anunciando o ato (RANCIÈRE, 2017, p.128-29). A subversão da segunda imagem dessa relação é encontrada por Rancière nos trabalhos de George Büchner. Em sua obra o modelo orgânico é substituído por um modelo vivo, resultado de uma nova concepção do meio da ficção, não mais entendido como intervalo entre um início e um fim, mas como uma rede infinita que ultrapassa qualquer forma de unidade, seja a do organismo seja a da ação.

O pensamento torna-se desse modo, sinônimo do excesso, afirma o filósofo. Suas operações infinitas excedem o corpo, a palavra, o gesto e o ato, e a sua origem e fim imprecisos impedem que qualquer vontade possa controlá-lo. Isso não significa que ele não age, mas que o modelo de sua ação verdadeira, aquele que desconhece suas origens e fins, opõe-se à forma da ação racional controlada do modelo aristotélico, e a sua nova forma será, pelo contrário, a do sonho ou do sonambulismo. Essa nova imagem do pensamento faz da imagem aristotélica do teatro como “intriga de saber” uma mentira, um equívoco sobre a natureza, a forma e a origem do pensamento, bem como sobre o modo como ele ganha corpo e age.

Como consequência dessa nova concepção do pensamento no palco, Rancière observa o surgimento de uma “arte da direção” que compreende duas modalidades: a primeira, presente nas reflexões de Maurice Maeterlinck, faz da direção a “arte da disposição das palavras no espaço” (RANCIÈRE, 2017, p.142), atribuindo à palavra não uma função de anunciar o pensamento ou o ato, mas de evidenciar o meio sensível, o “fora-do-espaço”, que é o lugar desse pensamento tomado como excesso. Ela demarca, dessa forma, a distância entre o verdadeiro pensamento e as pretensões da intriga clássica. Asegunda modalidade é proveniente, entre outros trabalhos, das atuações de Jean-Gaspard Deburau no Théâtre dês Funambules, e “consiste em bordar na trama ficcional das causas e efeitos um cenário de pura atuação”, uma atuação que consiste não na representação, mas na pura ação dos corpos (RANCIÈRE, 2017, p.144-45).

O teatro moderno que culmina no TNP é, portanto, marcado por essa disjunção entre o pensamento, caracterizado pelo excesso, a palavra, cuja função é evidenciar a distância que marca o meio seio sensível do palco, e o ato, tomado como pura atuação dos corpos. Para Rancière, essa longa história é ignorada no juízo de Barthes, que toma por base a oposição brechtiana entre um teatro da identificação e um teatro do distanciamento, pela qual Brecht buscava restabelecer o vínculo entre o prazer estético e o saber necessário para a ação revolucionária. Essa oposição omite essa história, pois, como concepção “revolucionária”, ela busca restabelecer a velha lógica da ação em crise desde o século XVIII. Desse modo, a “questão pela qual a política está ligada ao teatro não é saber como sair do sonho para agir na vida real; é a de decidir o que é o sonho e o que é a vida real” (RANCIÈRE, 2017, p.149).

Embora O fio perdido de Rancière consista em um livro dedicado à ficção, sua leitura inquietante não se limita aos interesses do crítico literário ou do ficcionista, indo além desses limites. Ao reconhecer, como White, que a constituição da História, e mesmo, das Ciências Sociais, enquanto saberes e disciplinas modernas ou ciências é tributária do modelo da poética tradicional, centrado na lógica da ação e da intriga causal, e que a própria poética representativa é igualmente uma concepção de comunidade ou de um ordenamento social, Rancière fornece novos elementos para a compreensão de aspectos que permeiam a constituição do campo de trabalho e das práticas dos historiadores. Desse modo, cabe também questionar, a partir desses indícios da falência da ação e desses deslocamentos nas práticas da escrita ficcional, suas possíveis consequências no campo da historiografia e das ciências da sociedade.

É intrigante, igualmente, refletirmos acerca dos contrastes entre, de um lado, essa emergência de um regime estético na ficção desde o final do século XVIII, identificada nesse conjunto de ensaios de Rancière, cuja marca fundamental consiste em uma crescente abertura, pluralização ou multiplicação heterogênea do social, da noção de acontecimento e de pensamento, e do próprio vínculo entre pensamento, palavra e ação. Por outro lado, no que tange à historiografia, mas também à ampla parcela do pensamento filosófico, sociológico e antropológico, observamos, nesse mesmo período, um crescente processo de unificação, homogeneização e hierarquização da temporalidade histórica e do conjunto dos recursos conceituais de análise histórica, sociológica e antropológica. Portanto, trata-se de uma leitura fundamental, pois implica um conjunto de problemas cruciais às ciências humanas tanto em sua origem quanto na contemporaneidade.

Nota

2 Rancière participou inclusive do primeiro volume da obra Ler O capital, coordenada por Louis Althusser (1979).

Referências

ALTHUSSER, Louis; RANCIÈRE, Jacques; MACHEREY, Pierre. Ler O Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 1v.

CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 91-106

. ______. Ler uma operação de caça. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 259-276.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

______. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

______. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (Org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-49.

WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica no século XIX. São Paulo: Editora da USP, 1992.

Cássio Guilherme Barbieri – Mestrando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humana da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim. Graduado em História pela UFFS – Campus Chapecó. É membro do Laboratório Escrita, Memória e Arte (LEMA) e do Grupo de Estudos Teoria da História, ambos vinculados ao Curso de História da UFFS. E-mail: [email protected]


RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017. Resenha de: BARBIERI, Cássio Guilherme. Estética, política e historiografia: indícios da emergência do regime estético na ficção moderna. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.627-636, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides | Martinho T. M. Soares

Em sua tese de doutoramento na Universidade de Coimbra, Portugal, Martinho Soares aborda uma lacuna relevante na história da teoria contemporânea da historiografia: o papel do paradigma historiográfico de Tucídides nas reflexões do filósofo Paul Ricoeur; o primeiro uma referência clássica que resiste pertinente e atual há milênios, o segundo talvez quem melhor sintetizou a polêmica sobre a relação entre histórica e ficção ao longo do séc. XX. O objetivo é em si problemático: Soares está ciente que Ricoeur cita Tucídides apenas em notas, não dedica nem uma página para análise específica de sua obra, e não apresenta indícios de conhece-la a fundo, para além de alguns de seus comentaristas modernos mais ilustres (SOARES, 2014, p.23). No entanto, Tucídides é um marco inaugural, exercendo inegável influência em intelectuais com quem Ricoeur dialoga, principalmente historiadores e teóricos modernos que o viam como paradigma de historiografia antiga. Se o filósofo moderno foi a pedra angular nos intensos debates do séc. XX sobre história e ficção, os estudos sobre a fortuna crítica da obra História da Guerra do Peloponeso extrapolam o próprio ambiente acadêmico, como demonstram os constantes apelos às lições tucideanas em situações geopolíticas contemporâneas2. Para cumprir tal tarefa Soares divide seu livro em duas partes: a primeira, mais longa, dedica-se exclusivamente à Ricoeur; a segunda aborda Tucídides, mas seguindo uma estrutura organizacional estabelecida com base na leitura da obra ricoeuriana.

A primeira parte é a própria sistematização da contribuição do filósofo francês que, nas palavras de Soares (2014, p.18), serviu de “pretexto para uma compilação, inédita em Portugal, de teorias (e pensadores), ora complementares ora antagônicos, sobre história e ficção”. Em quatro capítulos, Soares refaz o longo percurso da contribuição ricoeuriana: começa em Histoire et Vérité (1964) no capítulo I, passando pelos três volumes de Temps et Récit (1983- 1985) nos capítulo II e III, e finalmente se concatena em La mémoire, l’histoire, l’oubli (2000) no último capítulo desta primeira parte do livro de Soares.

No capítulo I são abordadas as primeiras reflexões de Ricoeur sobre objetividade e subjetividade na interpretação histórica, que desembocam no capítulo II sobre a dialética entre explicação e compreensão histórica. Este segundo capítulo refaz o percurso duplo de Ricoeur que perpassa, de um lado, o eclipse da narrativa histórica, o qual envolve tanto a historiografia francesa dos Annales quanto o modelo nomológico de língua inglesa; e de outro lado, as teses narrativistas que, oriundas da filosofia analítica e da crítica literária, focam no papel da narrativa na historiografia, cujos nomes mais conhecidos são Hayden White e Paul Veyne.

A concepção narrativista, que pode ser simplificada na máxima “narrar já é explicar”, torna opaca a fronteira entre história e ficção, o que certamente serve de gatilho para a maior parte das reflexões de Paul Ricoeur. Contra ambas tendências – rejeitar a narrativa histórica em prol de seu caráter científico ou ofuscar seu caráter veritativo por conta da sua dimensão narrativa – Ricoeur interpôs sua dialética sobre o papel da compreensão narrativa à explicação histórica, restaurando a função da ficção na configuração narrativa histórica. O saber histórico procede da compreensão narrativa, resguardando seu caráter investigativo alicerçado na interpretação dos traços do passado, prática na qual a intenção do historiador não deixa de ter sua marca subjetiva, sem negar seu caráter epistêmico (SOARES, 2014, p.53, 76). Assim, Soares revisita as teses de Ricoeur de forma a sedimentar os instrumentos de análise com o qual abordará a obra tucideana.

Se a história precisa de narrativa para ser compreendida, a última não deixa de definirse pela sua relação com o tempo. O capítulo III de Soares concentra-se no itinerário de Ricoeur sobre o tempo desde a dimensão fenomenológica (tempo vivido) até histórica (tempo histórico e narrado). Soares sintetiza ideias já conhecidas de Ricoeur sobre a distentio animi de Agostinho de Hipona, a teoria das três mimeses e as abordagens da ficção do século XX sobre as aporias do tempo vivido, de forma a desembocar no axioma de que o tempo se torna humano na medida em que é articulado de modo narrativo. Deste longo percurso, Soares retém a narrativa enquanto tríplice mimese da prefiguração ética, configuração narrativa e refiguração receptiva (ou leitura). Tal tríplice noção de narrativa organiza a leitura que Soares faz da História da Guerra do Peloponeso na segunda parte da obra. Na fase final da vida intelectual de Ricoeur, o prestígio da narrativa havia se restabelecido na historiografia francesa, devido a fatores que vão do ressurgimento da história política, e perpassa a micro-história e principalmente a predominância do conceito de representação histórica. Daí que Soares concentre-se no capítulo IV sobre os conceitos de representação e representância, especialmente se a narrativa histórica e seu encadeamento do tempo resolve (ou não) as aporias da representação mnemônica enquanto presença do ausente. A questão envolve debates éticos intensos sobre a possibilidade de representação do holocausto judeu e o risco do fortalecimento do negacionismo histórico, com as teses narrativistas que ofuscam a fronteira entre histórica e ficção. Até aqui, pode-se parabenizar a leitura industriosa que Soares faz de Paul Ricoeur, mas não sem notar o longo percurso percorrido até finalmente concatenar tais reflexões com o texto tucideano.

A segunda parte volta-se para Tucídides em dois capítulos. O primeiro se preocupa com a noção de história e verdade na obra, revisitando discussões já consagradas sobre a noção de “ktema es aei” (tesouro para sempre) e sobre o procedimento de composição dos discursos na História da Guerra do Peloponeso. O segundo capítulo se desdobra na aplicação dos três estádios ricoeurianos da operação historiográfica na obra: a fase documental (prefiguração compreendida como testemunhos, indícios e prova documental), a fase narrativa, (explicaçãocompreensão e configuração narrativa), e a fase da refiguração ou leitura, que concentra-se nas estratégias retórico-persuasivos e seus efeitos de “fazer ver” (SOARES, 2014, p.405-406). Em contraste com Heródoto, Tucídides é lacônico e reticente ao expor suas fontes e procedimentos de investigação, logo Soares admite e enfatiza as dificuldades em abordar a metodologia histórica da obra, bem como sua inadequação para os parâmetros modernos (2014, p.502-504, 545-549). A leitura de Soares, portanto, desenvolve-se melhor quando aborda as estratégias persuasivas do autor ateniense, de forma a encontrar nelas ecos das teses de Ricoeur.

O estudo é industrioso e pertinente, mas desmembrar a análise em duas partes acaba por ser simultaneamente uma qualidade e um defeito da pesquisa. Sua exposição sobre Ricoeur revela excelência e domínio das discussões, por outro lado, alonga-se demasiadamente divorciada do seu segundo objeto de pesquisa. Isto significa que não teremos notícias de Tucídides pelas 360 páginas e 4 capítulos que compõem a primeira parte da obra. Da segunda parte, somente o segundo capítulo propõe interpelação direta entre Ricoeur e Tucídides, ou seja, de um volume de 600 páginas o leitor pode esperar tal confronto apenas na última centena, e ainda assim de forma tímida, ao que se segue uma conclusão extremamente sucinta.

No entanto, as sendas abertas pela pesquisa de Soares são profícuas, por exemplo, na abordagem do método de composição de discursos de Tucídides (I. 22.1-2) à luz das teses ricoeurianas. Desde Heródoto a dramatização (no sentido de “representação da ação”) de discursos e debates oratórios são conectores de acontecimentos que conferem sentido a estes tanto progressivamente (antecipam fatos ainda não narrados) como regressivamente (julgam e explicam fatos já narrados), assim o historiador revela ao leitor as disposições dos agentes históricos frente a uma ação inacabada, bem como expectativas frustradas ou não pelos acontecimentos desenrolados (SOARES, 2014, p.454-455). Ainda que construção subjetiva, os discursos ligam-se à interpretação dos acontecimentos, na medida em que funcionam como narração-explicação do sucesso ou insucesso das ações (SOARES, 2014, p.479). Tucídides na sua escrita não procura a descrição asséptica de acontecimentos, mas enreda-os narrativamente. Tal procedimento revela ressonância evidente com a tríplice mimese ricoeriana, na medida em que exige do historiador uma prefiguração ética na avaliação e seleção das fontes e traços do passado, bem como uma configuração narrativa na forma de ação (discurso e acontecimento), e por fim, subscreve a intenção deste em elementos persuasivos que visam alcançar a refiguração do leitor capaz de reconhecer o que foi ali prefigurado e configurado.

Soares desdobra-se com competência na apresentação destas questões, no entanto, lidar simultaneamente com a tradição milenar da hermenêutica tucideana e a profundidade das discussões de Ricoeur é, de fato, muito trabalhoso, e a pertinência destas fontes acaba por ofuscar a marca autoral de Soares. O diálogo entre duas referências fundamentais para a historiografia, no qual consiste a originalidade da obra, acaba ficando frágil na separação rígida das duas partes do livro.

Soares ressalta especialmente o papel da narrativa como uma forma da história “cativar o público”, “se dar a ler” (2014, p.30), em suma, “uma forma estilizada de apresentar a verdade”, sendo esta a “tese maior” que pretende expor (2014, p.483), e defende enfaticamente a fronteira entre história e ficção, e talvez por isso privilegia a função ornamental e persuasiva da narrativa. Afirmar isto parece subestimar o papel da narrativa na configuração do tempo histórico: as reflexões de Ricoeur e a metodologia de Tucídides apontam que a ficcionalização dos fatos está para além da persuasão e do elemento imagético (ou cor local) da história: ela é a forma privilegiada de expressar o pensamento e a compreensão do historiador sobre as ações humanas no tempo, resolvendo poeticamente o embaraço da distentio animi agostiniana e a própria noção aristotélica de história enquanto narrativa episódica, sem vínculo com o provável e o necessário. Sua discussão do confronto entre a Poética aristotélica com a obra de Tucídides (2014: p.552-565) faz excelente balanço bibliográfico da questão, mas não responde se Tucídides almejava configurar um tempo histórico nos moldes ricoeurianos a partir das suas generalizações, ou se ele de fato tentava se aproximar do cronista imaginado por Aristóteles que narra indiscriminadamente o que “Alcibíades fez ou sofreu”. Soares opta por descrever Tucídides como parte poeta e parte historiador (2014, p.561-565), e por fazer eco às teses que Aristóteles não reconhecia nele um historiador, mas sim um pensador político (2014, p.552- 558).

Esta indefinição, no entanto, tem implicações. Por exemplo, Soares afirma, com base em A. W. Gomme (1954), que os contrastes dramáticos de Tucídides residem nos próprios acontecimentos que “se sucedem no tempo, sem nada de relevante entre eles” (SOARES, 2014, p.492), o que faz parecer que o historiador apenas revela os acontecimentos sem precisar configurá-los narrativamente. Isto deixa em segundo plano a configuração narrativa que Ricoeur extrai da Poética de Aristóteles (“um por causa do outro” ao invés de “um depois do outro”) e faz parecer que Tucídides seguia uma sucessão natural dos eventos, e nãos os compôs e enredou numa síntese do heterogêneo. Tucídides poderia ter apresentado outros eventos menores entre a sucessão, poderia ter-se dado às digressões tipicamente herodoteanas, mas é na disposição das ações que reside o efeito dramático alcançado, que não se pode atribuir aos próprios acontecimentos sem subestimar o papel da configuração narrativa, que Soares claramente não ignora de todo, mas ao longo do texto dá mais ênfase ao seu papel ornamental e persuasivo, especialmente na sua discussão sobre o “fazer ver” o passado, sua exposição sobre os conceitos de enargeia e ekphrasis (2014, p.582-595).

Em conclusão, Soares faz justíssima representação das teses ricoeurianas e das principais discussões em torno da obra de Tucídides, mas na hora de enredá-las em conjunto na sua própria configuração narrativa, oferece ao leitor uma interpretação que, por vezes, subestima a complexidade da configuração narrativa histórica enquanto síntese do heterogêneo e ordenador do tempo humano e histórico, ao menos no que diz respeito na sua interpelação das teses ricoerianas com o texto tucideano. Esta característica não apaga o brilho das conquistas de Soares, pois o leitor da sua obra pode esperar excelente abordagem da contribuição de Ricoeur sobre história e ficção, bem como uma expedição competente aos debates em torno da obra tucideana, cuja sombra projetou-se desde as teorias positivistas e metódicas da história do séc. XIX até as teses narrativistas que agitaram o debate historiográfico no séc. XX.

Nota

2. Para um estudo de dois casos relevantes nos quais o paradigma tucidideano foi invocado em contextos geopolíticos contemporâneos ver PIRES, Francisco Murari. “O General Marshall em Princeton, Tucídides na Guerra Fria”. História da Historiografia n. 2, 2009, pp. 101-115.

Referências

GOMME, A. W. The Greek atitude to poetry and history. Berkeley: University of California Press: 1954

RICOEUR, Paul. Histoire et Vérité. Paris: Seuil, 1964 (2003).

______. Temps et Récit – Tome I. Paris: Seuil, 1983 (2005).

______. Temps et Récit – Tome II. Paris: Seuil, 1984 (2005).

______. Temps et Récit – Tome III. Paris: Seuil, 1985 (2005).

______. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris, Seuil, 2009.

SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Fundação Eng. António de Almeida: Porto, 2014, 638 pp.

Denis Renan Correa – Professor Adjunto II na área de História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e estudante de doutoramento da Universidade de Coimbra.


SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2014. Resenha de: CORREA, Denis Renan. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides por Martinho Soares. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.388-393, ago., 2019.Acessar publicação original [DR]

Leandro Gomes de Barros: vida e obra | Arievaldo Vianna

No dia 19 de setembro de 2018 a literatura de cordel foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). [2] Trata-se, sem dúvida, de um importante reconhecimento do poder público dessa manifestação literária e cultural e motivo de orgulho para poetas cordelistas e amantes dessa literatura. O ano de 2018 também representa o centenário de morte daquele que é considerado o “pai da literatura de cordel” nordestina brasileira e principal influência dos poetas cordelistas: Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Esses acontecimentos nos estimulam a fazer uma reflexão sobre a história e a trajetória da literatura de cordel no Brasil. Uma obra que trouxe contribuições importantes para essa discussão é: Leandro Gomes de Barros: vida e obra, de Arievaldo Vianna, lançada em 2014, que buscou realizar uma biografia de Leandro, o fundador desta literatura.

Arievaldo Vianna Lima é poeta cordelista, radialista, ilustrador e publicitário. Nasceu em Quixeramobim, no Ceará, em 1967, sendo alfabetizado por sua avó com o auxílio da literatura de cordel. Publicou mais de 70 folhetos de cordel[3] e livros. Arievaldo é também um militante pela utilização da literatura de cordel em sala de aula por meio do projeto Acorda Cordel na sala de aula, publicando em 2006 um livro homônimo [4], com diversas sugestões para os professores (LIMA, 2006, pp. 83-84). Arievaldo faz parte da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, ocupando a cadeira número 40, cujo patrono é João Melquíades Ferreira [5]. Arievaldo participa de vários eventos pelo Brasil, como feiras do livro e divulga suas atividades de poeta no blog Acorda Cordel. [6]

Leandro Gomes de Barros: vida e obra é resultado de uma pesquisa de vários anos, iniciada pela aproximação de Arievaldo, com folhetos de Leandro, ainda em sua infância, como Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, Juvenal e o Dragão, Cachorro dos mortos e Cancão de fogo. Assim, a obra é uma homenagem ao poeta que o ajudou em sua alfabetização e que continua sendo a sua principal inspiração na composição de folhetos. O livro conta com 13 capítulos, mais dois apêndices [7], e com textos de apresentação de Marco Haurélio [8] e Gilmar de Carvalho [9]

, além de ilustrações de Jô Oliveira [10].

O fato de Arievaldo não ser historiador de formação pode fazer com que alguns acadêmicos com visões mais fechadas para estudos de fora do ambiente acadêmico “torçam o nariz” e não deem o valor devido à obra. Ao contrário dessas visões hierárquicas em nosso entendimento, a aproximação de Arievaldo com a literatura de cordel traz uma sensibilidade maior ao seu trabalho de investigação, explorando nuances que os acadêmicos que apenas se ligam ao cordel por meio da pesquisa não conseguiriam identificar. Sendo poeta cordelista e militante pela causa da poesia popular, Arievaldo demonstra ser um pesquisador do cordel comprometido com o levantamento bibliográfico e análise de fontes com rigor. Dessa forma, o trabalho de Arievaldo Vianna pode ser visto como uma biografia histórica.

Segundo Mary del Priore, “a moda da biografia histórica é recente”, já que até a metade do século XX, sem ser de todo abandonada, “ela era vista como um gênero velhusco, convencional e ultrapassado por uma geração devotada a abordagens quantitativas e economicistas.” (PRIORE, 2009, p.7). Marc Ferro debitava esse desinteresse pela biografia a dois fatores: a valorização do papel das massas e a diminuição do papel dos ‘herois’ inspirada no determinismo ou no funcionalismo, das análises marxistas e estruturalistas que marcaram a produção europeia dos anos 1960(PRIORE, 2009, p.7).

Na primeira metade do século XX, vários escritores se tornaram grandes biógrafos, como Guy de Portalés, Michel de Leiris, André Maurois, Lytton Strachey, dentre outros. Mary del Priore aponta que o gênero é um “convite à viagem artificial no passado, fortemente ligada aos fatos, a maior parte das biografias era acrítica e lançava suas raízes no terreno das paixões coletivas.” (PRIORE, 2009, p.8). Um dos pioneiros em colocar as bases de uma biografia histórica renovada foi Lucien Febvre, que ao fazer as biografias de Lutero e Rabelais, “deu vida a personagens tributários de uma utensilagem mental que os ultrapassava e os permitia se situar numa dada época e sociedade.” (PRIORE, 2009, p.9). A rejeição da biografia histórica só teve fim nos anos 1970 e 1980, conforme Priore:

O fenecimento das análises marxistas e deterministas, que engessaram por décadas a produção historiográfica, permitiu dar espaço aos atores e suas contingências novamente. Foi uma verdadeira mudança de paradigmas. A explicação histórica cessava de se interessar pelas estruturas, para centrar suas análises sobre os indivíduos, suas paixões, constrangimentos e representações que pesavam sobre suas condutas. O indivíduo e suas ações situavam-se em sua relação com o ambiente social ou psicológico, sua educação, experiência profissional etc. O historiador deveria focar naquilo que os condicionava a fim de fazer reviver um mundo perdido e longínquo. Esta história “vista de baixo” dava as costas à história dos grandes homens, motores das decisões, analisadas de acordo com suas consequências e resultados, como a que se fazia no século XIX. (PRIORE, 2009, p.9).

Dessa maneira, embora não dialogue diretamente com obras do campo da biografia histórica, Arievaldo Vianna acaba por realizar um estudo biográfico com foco em Leandro Gomes de Barros sem perder de vista o contexto histórico em que o poeta viveu, além das pistas deixadas pelo próprio poeta em seus folhetos de cordel, que também trazem marcas de sua vida e que foram exaustivamente analisados por Vianna.

Em Leandro Gomes de Barros: vida e obra, o autor defende o pioneirismo de Leandro Gomes de Barros na produção de folhetos de cordel, concordando com Francisco das Chagas Batista, que já indicava isso em sua obra Cantadores e poetas populares, de 1929. Embora já existissem alguns folhetos publicados antes de Leandro, Vianna ressalta que “foi coisa esparsa, sem um programa editorial consistente” (VIANNA, 2014, p.22), diferente do que foi feito por Leandro, que produziu de forma sistemática. Vianna também aponta a originalidade do poeta paraibano na forma poética do cordel:

Leandro não se limitou a reaproveitar os temas correntes, oriundos do romanceiro medieval e dos ABCs manuscritos compostos em quadra, que já circulavam aos montes pelo Nordeste narrando a gesta do boi e do cangaceiro. Ele foi mais longe. Criou um tipo de poesia cem por cento brasileira, versejou em diversas modalidades (sextilha, setilha e martelo), utilizando a redondilha maior (sete sílabas) e o decassílabo. (VIANNA, 2014, p.20).

Utilizando fontes como certidões de nascimento, casamento, de óbito, registros de batismo, além do depoimento de Cristina da Nóbrega, sobrinha-neta de Leandro Gomes de Barros, Arievaldo conseguiu trazer à tona algumas pistas da vida de Leandro. Embora nascido em Pombal, na Paraíba, Leandro passou boa parte de sua infância e adolescência na Vila do Teixeira, também na Paraíba, sendo criado pelo seu tio materno, o Padre Vicente Xavier de Farias, pois se tornou órfão muito jovem. Esse momento foi crucial para sua formação de poeta, pois, em primeiro lugar, a Vila do Teixeira foi o berço dos grandes cantadores do passado, como Francisco Romano Caluête e o famoso glosador Agostinho Nunes da Costa. Vianna ressalta que esses poetas antigos “tinham o costume de escrever cadernos com as melhores glosas de sua produção poética.” (VIANNA, 2014, p.29). Além disso, já circulavam nessa época cópias manuscritas de poemas em quadras, como Obra de Ricarte (que deu origem ao Soldado Jogador), Rabicho da Geralda e Cantiga do Vilela (que deu origem ao folheto História do Valente Vilela) (VIANNA, 2014, p.29).

Em segundo lugar, a Vila do Teixeira foi uma terra de “grandes valentões, com destaque para os Guabirabas, família de celerados cuja bravura Leandro imortalizaria em versos, muitos anos depois.” (VIANNA, 2014, p.29). Os conflitos políticos e a presença dos cangaceiros na região estavam marcados na memória dos moradores, sendo a infância de Leandro “povoada por mirabolantes histórias de lutas, muitas delas narradas em quadras pelos cantadores do Teixeira.” (VIANNA, 2014, p.36).

Em terceiro lugar, a vida na Vila do Teixeira foi importante pela educação que Leandro recebeu do Padre Vicente Xavier de Farias [11]. Leandro teve acesso a diversas leituras, como as Escrituras Sagradas e a História de Carlos Magno e os Doze Pares de França. Além disso, várias irreverências de Leandro na juventude e seus conflitos com o Padre Vicente, que o levaram a fugir de casa, inspiraram, segundo Vianna, personagens de folhetos como Cancão de Fogo. (VIANNA, 2014, pp. 41-44).

Mudando-se para Pernambuco [12], onde passou a viver unicamente da venda de folhetos de cordel, Leandro se casou com dona Venustiniana Eulália de Sousa e teve quatro filhos: Rachel, Esaú, Julieta e Herodias. Arievaldo também identifica algumas influências do convívio familiar nos folhetos de Leandro, a exemplo da convivência com a sogra. Segundo Vianna, “uma análise da obra de Leandro demonstra a sua constante ojeriza pela figura da sogra, o que leva a crer que o poeta mantinha uma relação tumultuada com a mãe de sua esposa.” (VIANNA, 2014, pp. 47-48).

Analisando os próprios folhetos de Leandro, que trazem pistas biográficas sobre o poeta, e relatos de contemporâneos, como Eustórgio Vanderley e Câmara Cascudo; Arievaldo também identifica algumas informações importantes: Leandro era “um homem cosmopolita, pois se mudara ainda adolescente para as imediações do Recife, uma das mais prósperas capitais do Brasil”; “lia regularmente, além dos livros úteis à sua pesquisa, jornais e revistas”, “andava constantemente de trem, hospedava-se em hotéis quando viajava e andava regularmente calçado de sapatos ou botinas” (VIANNA, 2014, p.62); “tinha um espírito aventureiro, gostava de viajar sertão afora, ora em lombo de burros e cavalos, ora nos trens da Great Western, percorrendo os estados de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Rio Grande do Norte.” (VIANNA, 2014, p.65).

O pioneirismo do poeta paraibano também se deu na questão da comercialização e distribuição dos folhetos de cordel. Vianna afirma que “nada se compara ao tino comercial, ao estro prolífico e a persistência de Leandro Gomes de Barros”, que fez com que “fossem criados pontos de venda em vários Estados brasileiros, fazendo com que sua produção se espalhasse por todo o país, sobretudo nos estados do Norte-Nordeste.” (VIANNA, 2014, p.72). Além da venda direta, Leandro também utilizava os serviços do correio para venda, o que era divulgado na própria contracapa dos folhetos.

O capítulo mais polêmico é o décimo, intitulado “Leandro x Athayde”, no qual Vianna discute a apropriação que João Martins de Athayde fez das obras de Leandro. Após a morte de Leandro, em 1918 [13], Athayde adquiriu os direitos autorais sobre a obra do poeta paraibano em um negócio realizado e registrado em cartório com a viúva de Leandro. Quando Athayde passou a publicar os folhetos de Leandro, ele retirou o nome do poeta da autoria, colocando o seu próprio como editor-proprietário e, depois, como autor dos folhetos. Soma-se a isso, o fato de Athayde em alguns folhetos alterar o acróstico na última estrofe, de forma a apagar as pistas da autoria de Leandro.

Arievaldo Vianna ataca Athayde de várias formas. Primeiramente, aponta que o seu biografado tinha mais qualidade poética, afirmando que Athayde “não tinha a mesma verve criativa de Leandro”, “não tinha o senso crítico, a sátira mordaz e afiada do velho poeta de Pombal nem sua habilidade para extrair romances inéditos da própria cachola” (VIANNA, 2014, pp. 88-89). Em segundo lugar, afirma que a apropriação e a adulteração da obra de Leandro não foi algo inocente, pelo contrário, “foi um ato pensado, medido e bem calculado”, Athayde “jamais agiu dessa maneira por ingenuidade, desinformação ou desejo de preservar a sua ‘propriedade literária’”, pois, para isso, bastava colocar seu nome como Editor-Proprietário, mantendo o nome do autor e respeitando os acrósticos no final do poema (VIANNA, 2014, pp. 99-100).

Vianna também questiona alguns pesquisadores “simpatizantes do poeta João Martins de Athayde”, que tentam atribuir a ele a autoria de alguns folhetos “comprovadamente escritos e editados por Leandro, baseados em informações nebulosas, que nas mãos de um leitor mais atento e informado são facilmente dissipadas.” (VIANNA, 2014, p.93). Vianna critica autores como Umberto Peregrino, Átila de Almeida, Liêdo Maranhão de Sousa, Waldemar Valente e Mário Souto Maior. A título de exemplo, iremos apontar o comentário que ele faz a Umberto Peregrino na obra Literatura de cordel em discussão, de 1984. Peregrino, baseado em Átila de Almeida, aponta que o folheto Meia-Noite no Cabaré é de autoria de Athayde, que teria se inspirado na obra A noite na taverna, de Álvares de Azevedo. Leandro não teria sido o autor da obra porque, conforme Almeida, “jamais se daria a leituras como a de Camões ou de Álvares de Azevedo.” (VIANNA, 2014, pp. 93-95). Para rebater essa afirmação, Vianna indica que Leandro era leitor assíduo de vários livros que eram fonte de inspiração para seus folhetos, citando estofes do folheto História da Donzela Teodora, além de apontar vários outros que eram inspirados em livros: Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, inspirado no livro Carlos Magno e os Doze Pares de França; Juvenal e o Dragão, que vem do conto “Os três cães” de Figueiredo Pimentel; A vida de Pedro Cem, que é inspirado num livro de origem lusitana; Os Martyrios de Christo, inspirado em O Mártyr de Gólgotha, do romancista espanhol Enrique Pérez Escrich; A filha do pescador, inspirado num conto das Mil e uma noites. (VIANNA, 2014, p.94). Além disso Leandro certamente frequentava a livraria de seu genro, Pedro Batista, que possuía clássicos da Literatura portuguesa e brasileira. A defesa que Arievaldo Vianna faz de seu biografado na autoria de folhetos atribuídos a Athayde é tanta que, curiosamente, ele critica até mesmo o seu irmão, o seu poeta Klévisson Viana, que teima em atribuir o romance História de Roberto do Diabo à Athayde (VIANNA, 2014, p.96).

Essa “campanha” para restituir a Leandro Gomes de Barros a autoria de folhetos identificados como sendo de Athayde também foi feita por Aderaldo Luciano em seu livro Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro, de 2012 [14]. Contudo, ao contrário de Vianna, que identifica autores “simpatizantes” de Athayde, Luciano aponta que a insistência de atribuir folhetos de Leandro a Athayde são resultados de “pesquisadores e estudiosos que não têm vivência e se recusam a conhecer as nuanças, os detalhes, do cordel” (LUCIANO, 2012, p.75), da “falta de averiguação das informações recebidas por alguns pesquisadores” e, “muitas vezes, a preguiça de pesquisar de certos estudiosos” (LUCIANO, 2012, p.77).

Por fim, Arievaldo Vianna analisa uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, intitulada “Leandro, o poeta”, publicada no Jornal do Brasil em 1976; na qual Drummond elogia o poeta cordelista afirmando que ele deveria ter recebido o título de Príncipe dos Poetas Brasileiros, ao invés de Olavo Bilac. Este artigo, “tem sido utilizado exaustivamente pelos admiradores de Leandro como uma prova incontestável de seu talento, afinal de contas, trata-se do reconhecimento de um medalhão das nossas letras.” (VIANNA, 2014, p.113). Contudo, Vianna questiona alguns termos que Drummond utiliza para se referir a Leandro, pois este “não era totalmente ‘inculto’ e ‘iletrado’.” (VIANNA, 2014, p.117). Drummond também se equivoca, segundo Vianna, quando considera a obra de Leandro “pobre de ritmos, isenta de lavores musicais, sem apoio livresco”, pois Leandro tinha sim “métrica, ritmo, conhecimento de gramática e apoio livresco.” (VIANNA, 2014, p.120).

Logicamente, Leandro Gomes de Barros: vida e obra ainda deixa algumas lacunas acerca da vida do “pai da literatura de cordel”. A impressão que dá ao leitor é que o livro termina rápido demais comparado a outras biografias. Contudo, há de se mencionar a dificuldade no acesso às fontes. Em certo trecho, Vianna menciona que “se já era difícil” para pesquisadores como Sebastião Nunes Batista e Ruth Terra, que conviveram com descendentes diretos de Leandro, “mais difícil ainda é para o pesquisador de hoje, com poucos recursos financeiros e nenhum incentivo à sua pesquisa (VIANNA, 2014, p.27). Assim, é importante relembrarmos de Jacques Le Goff, que observa que é a documentação que dita a ambição e os limites de investigação do historiador na escrita de uma biografia histórica (LE GOFF, 1999, p.22). Diferente do romancista, por exemplo, que não raras vezes vai além do que diz as fontes e abusa da criação e da imaginação. Já o historiador deve “saber respeitar aqui as falhas, as lacunas que a documentação deixa” (LE GOFF, 1999, p.21). Assim, Arievaldo Vianna age como um verdadeiro historiador.

Ao pensar teoricamente a biografia histórica, Le Goff questiona a oposição entre o indivíduo e a sociedade. Esse é um “falso problema”, pois “o indivíduo não existe a não ser numa rede de relações sociais diversificadas”, sendo necessário o conhecimento da sociedade “para ver nela se constituir e nela viver uma personagem individual.” (LE GOFF, 1999, p.26). No caso de Leandro Gomes de Barros: vida e obra, Arievaldo Vianna consegue pensar a produção cordelística de Leandro articulada com o contexto histórico em que viveu e perscrutar a teia de relações sociais e culturais que possibilitaram o sucesso do poeta paraibano na divulgação de seus folhetos no Norte e Nordeste do Brasil no início do século XX. Em nosso entendimento, é uma obra fundamental para quem quer conhecer e se aprofundar na história da literatura de cordel no Brasil; e importante de ser retomada neste momento de festejos pelo reconhecimento do cordel como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro.

Notas

1. Doutorando em História Social da Amazônia pela UFPA. Professor da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC) de Belém-PA, e da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC).

2. Ver “Literatura de cordel recebe título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro”. Portal G1 PE. 19 set. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2018/09/19/literatura-de-cordelrecebe-titulo-de-patrimonio-cultural-imaterial-brasileiro.ghtml. Acesso em: 20 set. 2018.

3. Dentre os folhetos, podemos citar , A mulher fofoqueira e o marido prevenido, A raposa e o Cancão, As proezas de Broca da Silveira, Atrás do pobre anda um bicho, Brasil – 500 anos de resistência popular, Encontro com a consciência, Encontro de FHC com Pedro Álvares Cabral, Galope para Patativa e Castro Alves, História da Rainha Ester, Luiz Gonzaga o rei do baião, O príncipe Natan e o cavalo mandingueiro.

4. Segundo Arievaldo Vianna Lima, “o Projeto Acorda Cordel na Sala de Aula propõe a revitalização do gênero e sua utilização como ferramenta paradidática na alfabetização de crianças, jovens e adultos e também nas classes do Ensino Fundamental e Ensino Médio, a partir do lançamento de uma caixa de folhetos, contendo 12 obras de diferentes autores, para ser trabalhada nas escolas acompanhadas deste livro.” (LIMA, 2006, p.14).

5. A Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) foi fundada no dia 7 de setembro de 1988, e tem como presidente o poeta Gonçalo Ferreira da Silva. Sua sede é no Rio de Janeiro, e possui 40 cadeiras que são ocupadas pelos “imortais”, que são poetas cordelistas ou pesquisadores do cordel. Ver Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Disponível em: http://www.ablc.com.br/  Acesso em: 20 set. 2018.

6. Ver o blog Acorda cordel. Disponível em: http://acordacordel.blogspot.com/  Acesso em: 20 set. 2018.

7. Os apêndices são: “Fatos importantes da vida de Leandro por ordem cronológica” e “Entrevista de Arievaldo Viana ao jornal Diário de Pernambuco, nos 90 anos de morte de Leandro.”

8. Marco Haurélio é poeta popular, editor e folclorista. Em cordel, tem vários títulos editados, dentre os quais: Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo; História da Moura Torta e Os Três Conselhos Sagrados (Luzeiro). Possui um blog intitulado Cordel Atemporal. Disponível em: http://marcohaurelio.blogspot.com/  Acesso em: 21 set. 2018.

9. Gilmar de Carvalho é Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC São Paulo. Autor de diversas publicações, dentre as quais destaca-se Patativa do Assaré − Uma biografia, já em terceira edição, Lyra Popular: o cordel do Juazeiro, em segunda edição, e A xilogravura de Juazeiro do Norte.

10. Jô Oliveira foi aluno da Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Durante seis meses estudou desenho animado no Stúdió Pannónia, e depois frequentou a Academia Húngara de Artes Aplicadas (Magyar Iparmüvészeti Föiskola, hoje conhecida como Universidade Moholy-Nagy de Arte e Design), onde concluiu o curso de Artes Gráficas. Os seus primeiros trabalhos, livros e quadrinhos, foram impressos nos anos 70 na Itália. Publicou também livros na França e Alemanha, e seus quadrinhos tiveram edições na Espanha, Itália, Grécia, Sérvia, Dinamarca, Argentina e Brasil. Jô participou em exposições de ilustração em várias partes do mundo. Desenhista de selos postais, criou mais de 50 peças filatélicas para os Correios. Ver o site O Brasil de Jô Oliveira. Disponível em: Acesso em: https://www.obrasildejooliveira.com.br/  Acesso em: 21 set. 2018.

11. O Padre Vicente Xavier de Farias também foi um líder político influente chegando a eleger-se deputado ainda no tempo da Monarquia. Por conta disso granjeou a antipatia de alguns adversários que lhe dirigiam pesadas críticas através dos jornais da capital da Paraíba do Norte. (VIANNA, 2014, p.37).

12. Em Pernambuco, Leandro Gomes de Barros residiu em Vitória de Santo Antão, Jaboatão e em Recife.

13. Em relação à morte de Leandro, Arievaldo Vianna cita a certidão de óbito do poeta, que fora encontrado pela sua sobrinha-neta Cristina da Nóbrega nos cartórios do bairro de São José, no Recife. A morte do poeta se deu às 21:30 do dia 04 de março de 1918, tendo como causa mortis aneurisma. As informações da certidão de óbito foram prestadas por seu filho, Esaú Eloy de Barros Lima, que tinha então 17 anos. (VIANNA, 2014, p.109).

14. Para uma resenha da obra de Aderaldo Luciano, ver MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Questionamentos à historiografia do cordel brasileiro. História da historiografia. Ouro preto, n.13, dez. 2013, p.220-225.

Referências

LE GOFF, Jacques. São Luís. Rio de Janeiro: Record, 1999. LIMA, Arievaldo Viana (org.). Acorda cordel na sala de aula. Fortaleza: Tupynanquim /Queima-Bucha, 2006.

LUCIANO, Aderaldo. Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro. Rio de Janeiro; São Paulo: Edições Adaga; Luzeiro, 2012.

PRIORE, Mary del. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Topoi. v. 10, n.19, jul.-dez. 2009, p.7-16.

VIANNA, Arievaldo. Leandro Gomes de Barros: vida e obra. Fortaleza: Edições Fundação Sintaf/ Mossoró-RN: Queima-Bucha, 2014.

Geraldo Magella de Menezes Neto – Doutorando em História Social da Amazônia pela UFPA. Professor da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC) de Belém-PA, e da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC).


VIANNA, Arievaldo. Leandro Gomes de Barros: vida e obra. Fortaleza: Edições Fundação Sintaf. Mossoró-RN: Queima-Bucha, 2014. Resenha de: MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Uma biografia de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), o “pai da literatura de cordel”. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.389-399, ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l´Occident medieval | Damien Boquet e Piroska Nagy

Quando Gaia Ciência foi publicada pela primeira vez em 1881, Friedrich Nietzsche afirmou:

Quem quiser estudar de agora em diante as questões morais terá diante de sí um imenso trabalho. Existe toda uma série de paixões que devem ser levadas em consideração, observadas separadamente e através das épocas e dos povos nos grandes ou pequenos indivíduos, temos que lançar luz em sua forma de raciocinar, valorizar e esclarecer as coisas. Até hoje nada do que da cor a existência tem todavia sua história, pois quando foi feita uma história do amor, da ganância, da consciência, da piedade, da crueldade? (NIETZSCHE, 1981, p.25)

A citação de Nietzsche é mais que uma simples análise do campo científico ocidental. É um chamado a pensadores, filósofos e cientistas das mais diversas áreas do conhecimento para formular histórias, perguntas e questionamentos acerca dos modos de sentir dentro das questões humanas.

De certo modo, as palavras do filósofo alemão ficaram adormecidas ao longo das décadas. Isso não significou, no entanto, que as emoções não tivessem sido problematizadas nas páginas de livros de historiadores, sociólogos e antropólogos. Podemos destacar dentro desse cenário, títulos como Outono da Idade Média de Johan Huizinga (1919), Sexo e repressão na sociedade selvagem, de Bronislaw Malinowski (1927) e O processo civilizador de Norbert Elias (1939). Estas obras, no entanto, não tinham por pretensão estabelecer um campo autônomo do conhecimento que tratasse as emoções como uma propriedade e que trouxesse à luz os fenômenos culturais mais profundos, que a linguagem e os múltiplos filtros dos códigos sociais não conseguiram conter. Diferentemente do livro aqui resenhado, as emoções ainda eram pouco destacadas ou ocupavam um lugar secundário frente a outras dimensões da vida social. Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l´Occident medieval é um exercício de pesquisa histórica que tem nas emoções e suas expressões, exatamente os protagonistas do processo, de tal forma que enxergamos e compreendemos a dinâmica dos processos sociais a luz das emoções retratadas.

É na década de 1990, com o advento da neurociência, por exemplo, que as emoções são “convidadas” a ocupar um lugar de destaque nas páginas da historiografia, ao lado de conceitos como luta de classes, mentalidades, cultura etc. No campo historiográfico é impossível deixar de citar a produção dos historiadores estadunidenses, Barbara Rosenwein e William Reddy que exploram a relação entre emoção e cognição, desenvolvendo uma teoria de expressões emocionais e buscando codificar as emoções e suas manifestações. Para Rosenwein (1998), por exemplo, que cunhou o termo comunidades emocionais para estabelecer a íntima relação entre a vida social e a dimensão emocional, o historiador das emoções não deve apenas atentar para a emoção em si, mas para o produto social (discurso). Isso implica na ideia de emoção como uma ancora entre signo e o mundo, encontrando as emoções nos gestos e palavras.

Desse modo, é a partir destes marcos fundacionais que é possível situar o livro Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l’occident medieval dos medievalistas Piroska Nagy, professora da Universidade de Quebec e pesquisadora vinculada ao Centro de Excelência para a História das Emoções entre 2014-1017 e que também escreveu Le don des larmes na Moyen Âge. Un instrument spirituel in aqueleuse d’institution, Ve-XIIIe siècle (2000) e Damien Boquet, mestre de conferência da Universidade de Aix-Marseille e ex- membro do Institut Universitaire de France e coordena juntamente com Nagy o programa “EMMA” (Emoções na Idade Média).

A obra lança um olhar que se ancora dentro do desafio de apresentar e explicar o papel, as representações e especialmente a evolução das emoções, que são entendidas como processos e manifestações dentro de um dispositivo cultural. As emoções não são consideradas como inerentemente irracionais, como se não seguissem padrões racionais. Elas são demonstrativos significativos que justificam e legitimam publicamente os atos praticados. Os historiadores não negam os aspectos biológicos da dimensão emocional, mas reforçam os sentidos sociais da emoção, reforçando as mesmas como zonas de interação e conflito entre o individuo e a sociedade. Mais especificamente na obra em questão, o que chama a atenção é que a emoção é compreendida por meio de aspectos culturais e é expressa em termos de sensibilidades e afetos no interior da sociedade medieval entre os V e XV século.

A obra esta dividida em nove capítulos, com cerca de quatro a cinco subtítulos e cobrem aproximadamente os 10 séculos tidos como tradicionais da História dita Medieval. O livro está organizado tanto cronologicamente – no qual acompanhamos século a século – quanto tematicamente – pelo qual as emoções são agrupadas em temas.

Nas palavras dos autores, “este livro propõe uma história cultural da afetividade do Ocidente medieval” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17. Tradução nossa)2. A emoção surge em imagens e textos da cultura medieval e “reside no coração da antropologia da Idade Média Ocidental” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17. Tradução nossa) [3]. Somos convidados, nas páginas do livro, a conhecer uma história que associa processos cognitivos (imaginação, memória, etc.) e se articula com aspectos psicológicos e de uma história social.

Interessar-se pela história das emoções não significa promover uma história do indivíduo, a microscópica, uma história segmentada; pelo contrário, é uma história antropológica, no auge do homem, de todo o ser humano e de singularidades compartilhadas (BOQUET e NAGY, 2015, p.17. Tradução nossa) [4].

Uma boa parte da concepção medieval das emoções e da vida afetiva no Ocidente foi elaborada entre o século III e VI como os autores demonstram no capítulo La christianisation des affects. Os afetos são cristianizados e adquirem novas e originais concepções. Existe com o cristianismo, uma integração da alma humana, entre passio e ratio. A emoção faz parte, agora, da dimensão racional. Para os antigos, a emoção diz respeito à irracionalidade da natureza humana. Platão e Aristóteles, por exemplo, afirmavam que a emoção é um valor ontológico da natureza humana e está ligada a alma irracional. Os Estoicos assim como Santo Agostinho, veem na emoção um movimento da alma que provoca mudança corporal.

A Bíblia é um exemplo. Ela está saturada de emoções. O Antigo Testamento mostra um Deus zangado e misericordioso com seu povo e que oferece (Novo Testamento) um filho dotado de emoções virtuosas: amor, paixão e sofrimento. Deus enviou seu Cristo que sofre por amor para salvar a humanidade. Deste modo, a Bíblia não é apenas um depósito de emoções humanas, mas também de emoções que são de Deus. Desde então, a humanidade é dominada pela vida emocional e busca direciona-las ou afasta-las de Deus, na medida em que participam do sistema de vícios e virtudes que fazem parte da base da educação monástica, que compõe uma elite da sociedade cristã ideal. Converter as emoções em direção a Deus significa orientar-se para a salvação, adotando um comportamento que une uma disposição interior que está em consonância ao movimento espiritual (La cité du désir: le laboratoire monastique, capítulo II). O principal laboratório e matriz gestacional das emoções no Ocidente é o mosteiro. Os monges seguem uma orientação vertical da afetividade, controlando seus afetos e o contato com Deus substitui a solidão e instaura a amizade como um valor que produz boas emoções.

Entre os séculos V e X os textos normativos e morais escritos por monges e clérigos mapearam um processo de conversão de emoções, que foi primeiro dirigido ao mundo dos claustros, voltado para o mundo dos ambientes monásticos e posteriormente passando a ser dirigido para a sociedade laica (Des émotions pour une société chrétienne: Francie, v-x siècle, capítulo III). Um novo projeto de sociedade toma forma na base do laço social cristão por excelência, o amor da caridade e da amizade genuína, formulada no tempo de Carlos Magno e novamente na época daquilo que a historiografia convencionou chamar de Reforma Gregoriana.

No capítulo IV, L`apogée de l´affecct monastique, os autores centram suas análises no contexto da renovatio cristã para analisar o conjunto de processos que influencia a cultura emocional das sociedades do século XI. A reforma do monaquismo alimenta a possibilidade de contato direto com Deus através da expressão sincera de certas emoções.

Em estreita relação, e às vezes em conflito com a valorização religiosa do desejo e a ofensiva clerical para espiritualizar o amor conjugal e enquadrar a vida interior, uma literatura da corte em língua vernácula torna visível uma cultura complexa e refinada dos afetos, expressão dos valores e tensões que atravessam círculos aristocráticos e burgueses, como atesta o capítulo V, Éthique et esthétique des émotions aristocratiques à l´âge féodal. A partir do final do século XI, nos círculos de mosteiros e escolas urbanas, a ascensão de um espírito naturalista leva à integração de emoções na natureza humana, (La nature émotive de l´homme, capítulo VI).

Esses diferentes discursos traduzem e difundem um fenômeno de valorização crescente das emoções no final da Idade Média, cujos usos religiosos e sociais parecem mais do que nunca ricos e diversificados (Politiques des émotions princières, capítulo VII). Nós vemos isso na teoria política e nas práticas do governo principesco, que dão orgulho às emoções. As emoções, contrariando a máxima de muitos cientistas sociais que as vincula como uma dimensão irracional e universal da natureza humana apoiam-se, como vemos nesse capítulo, as estratégias de governabilidade e integram as artes de governar. O jovem príncipe deve aprender muito cedo a dominar um código de emoções – que diz respeito à expressão de raiva e tristeza – que lhe é ensinado nos Espelhos de Príncipe.

Em outro nível, a extraordinária promoção da Encarnação e da Paixão de Cristo, na Idade Média, aumenta ainda mais a eficácia emocional religiosa, ligando-a indefinidamente à sua dimensão incorporada: esses são os fundamentos do misticismo afetivo dos séculos XIII XIV, que mantém relações ambíguas com a instituição eclesiástica (La conquête mystique de l´émotion, capítulo VIII). Como atestam os autores, Francisco de Assis “inaugura por meio de seus valores e de seus atos uma nova comunicação com o sagrado, um novo paradigma religioso” (BOQUET e NAGY, 2015, pp. 268-269. Tradução nossa) [5]. O santo de Assis é no relato hagiográfico centro de uma emoção encarnada, permitindo uma nova forma de manifestar a presença divina na Terra. A emoção encarnada é constituída pela tensão entre o corpo e sua expressão emocional. Se antes a paixão era sinônimo de algo vicioso, a virada do ano 1000 a torna um auto sacrifício para seguir Deus, de forma a espiritualizar o carnal e material, tendo o afeto o veiculo de incorporação.

As emoções também têm seus ritos no campo religioso: rezar juntos, procissão, assistir a sermões, ir a peregrinações ou cruzadas, se esforçar para expiar suas faltas ou as de todos os cristãos, etc. Essas expressões, que nos parecem excessivas, não são histéricas e descontroladas. Pelo contrário, eles se expressam em rituais que visam canalizá-los. Os santos místicos foram, sem dúvida, os que impulsionaram as mais profundas explosões de emoções, ligadas a uma nova devoção à humanidade de Cristo. Eles têm visões e espasmos, choram, jejuam ou buscam se satisfazer com Deus de uma maneira bulímica, entram em êxtase, experimentam levitações, vivem uma fusão amorosa com Deus.

A característica mais marcante desse grupo místico, sem duvidas é o fato de existiram um numero considerável de mulheres, tais como freiras, leigas e membras das Terceiras Ordens Mendicantes que experimentaram fenômenos indistintamente espirituais, tanto afetivos quanto corpóreos; os efeitos textuais que fluem através das fontes, portanto, são responsáveis pela ampla circulação de modelos de várias origens. O caminho tomado por essas mulheres, às próprias modalidades de seu caminho permitem explicar não apenas o sucesso, mas também a eficácia religiosa e social da devoção emocional e incorporada. A imaginação, uma função cognitiva a meio caminho entre a inteligência racional e os sentidos corporais – em primeiro lugar, a visão – desempenha um papel muito importante na devoção emocional. Atuando diante de imagens tão onipresentes em igrejas do final da Idade Média, a imaginação atua como um trampolim poderoso na prática da piedade meditativa que recorre à afetividade, às metáforas corporais ou ao próprio uso do corpo. “As emoções engendram experiências corporais, de incorporação, de identificação ou de união dos corpos de Cristo e da Virgem ou de um santo” (BOQUET e NAGY, 2015, pp. 275. Tradução nossa) [6].

E finalmente, as fontes mais numerosas e diversificadas dos últimos séculos da Idade Média possibilitam abrir uma janela para as emoções das populações anônimas, principalmente nas cidades, ressaltando não só a diversidade das culturas emocionais, em especial as apostas do uso da cultura emocional no relacionamento social (L´émotions commune, capítulo IX).

Qual é a imagem criada da Idade Média Ocidental paginas do livro? É um período histórico marcado por uma hipersensibilidade, como atestou Huizinga? Um momento de transição marcado pelo controle das pulsões emocionais como observou Elias? A resposta dos autores é mais simples: os homens e mulheres que viveram entre os séculos V e XV construíram um modelo cristão de afetividade, que penetrou nas mais diversas camadas sociais interagiu com diferentes grupos sociais, dando origem a uma sociedade que não se situa entre dois momentos históricos diferentes, mas que reforça a própria vitalidade e força de suas particularidades.

Em um balanço geral, a obra apresenta um ponto positivo que merece ser destacado: a articulação entre a expressão emocional e os contextos sociais evidenciam os vínculos existentes entre a dimensão cognitiva e o mundo que cerca os homens. No entanto, em minha opinião, o livro possui um ponto fraco: a organização cronológica confere a obra uma visão fragmentada do todo. Existe pouca relação entre os temas dos capítulos. O conteúdo de um não comunicasse com os demais, dando a impressão e que os mesmos funcionam de forma independente. Outro ponto negativo que merece ser destacado é o fato de que para cada século analisado, existe uma expressão emocional correspondente, de forma que elas parecem hegemônicas no cenário social. Essa abordagem dos autores permite tecer algumas indagações: a sensibilidade expressa num período é hegemônica? Existem emoções “eclipsadas” no tecido social? As emoções atuam como normalizadoras da vida social, impedindo a manifestação conflitante ou não de outras emoções?

“A história das emoções nos leva a nos conscientizar da infinita maleabilidade cultural dessa estranha questão afetiva da qual somos feitos” (BOQUET e NAGY, 2015, p.347. Tradução nossa)[7]. O estudo atento das emoções medievais ajuda a compreender a constante fabricação social e a construção de identidades, fundindo o vinculo de suas expressões com Deus. As emoções agem na história em vários níveis: por sua dimensão cognitiva ou moral, por sua relação com o corpo que as impulsiona; as emoções criam linhas de força e de solidariedade. A emoção, a sensação, o pensamento e os atos manifestados criam vínculos entre os grupos e os indivíduos; a emoção modifica e participa tanto na formação quanto nas mudanças históricas.

A análise atenta das emoções como um modo de comunicação social descortina possibilidades até então pouco consideradas pelos historiadores e funciona como uma chave explicativa para as dinâmicas das relações sociais. Desse modo, o presente livro é um convite a todos aqueles – leigos ou especialistas – que se interessam sobre o tema e o resultado de um exercício criterioso e minucioso de erudição histórica.

Notas

1. Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

2. Tradução nossa: “Ce livre propose une histoire culturelle de l’ affectivité de l´Occident médiéval.” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17)

3. Tradução nossa: au coeur de l´antropologique du Moyen Âge” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17).

4. Tradução nossa: “S` intéresser à l´histoire des émotions ne veut donc pas dire promouvoir une histoire de l´individu, du microscopique, une hisire segmenté, au contraire, c´est une histoire anthropologique, à hauteur d´homme, de l´être humain entier et des singularités partagées.” (BOQUET e NAGY, 2015, p.17).

5. Tradução nossa: “François inaugure par se valeurs et ses actions um nouveau modedu communication du sacré, um nouveau paradigme religieux”(BOQUET e NAGY, 2015, pp. 268-269).

6. Tradução nossa: “Ces émotions engendrent à leur tour des expériences corporeççes, sinon des expériences d´incorporation, d´identification ou d´union au corps du Christ, de la Vierge ou d´um saint” (BOQUET e NAGY, 2015, pp. 275).

7. Tradução nossa: “L´histoire des émotions nous conduit à prendre conscience de l´infinie malléabilité culturelle de cette étrange matière affective dont nous sommes faits.” (BOQUET e NAGY, 2015, p.347).

Referências

MALINOWSKI, Bronilaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Petrópolis: Editora Vozes, 1973.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Hemus, 1981.

REDDY, William M. Sentimentalism and Its Erasure: The Role of Emotions in the Era of the French Revolution. In: The Journal of Modern History, 72, march 2000.

ROSENWEIN, B. H (Ed). Anger’s past: the social uses of an emotion in the Middle Ages. Ithaca: Cornell University Press, 1998.

Douglas de Freitas Almeida Martins – Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).


BOQUET, Damien; NAGY, Piroska. Sensible Moyen Âge: une histoire des émotions dans l´Occident medieval. Paris: Éd. Le Seuil, 2015. Resenha de: MARTINS, Douglas de Freitas Almeida. Por uma antropologia do afeto: emoções, afetos e Idade Média. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.400-407, ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV | Thiago H. Alvarado

Sustentar uma aparência foi, durante alguns séculos no Ocidente, um meio de pertencer a determinado estado social e fazer valer algumas regras que lhes eram próprias. Dessa maneira, as normas de conduta que circularam na Castela dos séculos XIV e XV expunham as preocupações de homens e mulheres cristãos que desejavam, por meio da razão natural, manter a ordem no reino. Entretanto, ainda que os letrados castelhanos tenham concedido maior espaço em seus escritos para aplicar correções nos trajes e nos desvios das mulheres, as mudanças na forma das vestimentas e de que maneira as práticas dos súditos e fiéis mudavam conjuntamente não deixaram de fazer parte de suas prédicas, conselhos ou leis. À vista disso, debruçar-se sobre essas transformações e sobre os modos com os quais os homens daquela época descreveram seus contemporâneos torna-se fundamental para a compreensão da composição social, ou seja, o lugar e o direito que cada estado dispunha dentro dessa sociedade.

Os homens de saber da Castela dos séculos XIV e XV procuraram narrar a postura que os súditos do reino deveriam manter dentro e fora de suas casas. De modo geral, malgrado a preocupação que tinham as famílias de assegurar seus estados e proteger seus bens, o regramento sobre os panos, toucas e sapatos difundiam saberes sobre os pecados em que poderiam cair todos aqueles que se vestissem ou se afeitassem de modo errado. Dessa maneira, se durante os séculos XVI e XVII os legisladores se apoiariam sobre a ideia de que as vestes expunham primeiramente o direito ou o ofício – como propôs, em alguma medida, Norbert Elias em A sociedade de corte 2 ao observar os comportamentos e a mentalidade que ordenavam a sociedade do Antigo Regime e ao considerar as roupas como parte dessa estrutura –, até o século XV as vestimentas e a aparência deveriam, acima de tudo, demonstrar a verdade e a honestidade que a alma carregava. Assim, lançando mão de tratos canônicos, cadernos de cortes, ordenamentos, leis e outros documentos de cunho normativo e moralizante, um passo em direção a essas reflexões é o que dá Thiago Henrique Alvarado em seu livro lançado em 2017, Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV.[ 3]

Alinhando-se a trabalhos recentes da historiografia que abordam costumes e regras na península Ibérica, Thiago Alvarado busca, entre outros objetivos, mostrar como uma ordem estamental pôde ser afirmada a partir do regramento e cuidado com o vestir-se. Ainda que muitos estudos atuais versem principalmente sobre as diferenciações sociais e a intenção da coroa e da Igreja em manter o equilíbrio entre os estados, [4 ]Alvarado concede igual importância para as descrições das condutas morais e dos conselhos para uma vida virtuosa. Como ilustrativo dessa ideia, o autor lança mão, entre outros documentos, do Tratado provechoso que demmuestra como en el vestir e calçar comunmente se cometen muchos pecados, [5]escrito pelo frei da Ordem de São Jerônimo, Hernando de Talavera, durante o século XV. Mais que observar a maneira como Talavera definia e normatizava os estados e seus lugares sociais, o autor aponta que os prelados e os regedores daquela época deveriam ordenar os trajes dos súditos para que os povos fossem justos, virtuosos e bons.[6]

Descritas como necessárias “para a salvação dos homens” ou como um “meio de salvaguardar os corpos” das intempéries e da natureza, as vestes que os homens e mulheres carregavam e com as quais cobriam suas vergonhas ganham, aos olhos dos reis e clérigos, dimensões teológicas. Preocupado com tais narrativas, que em determinados momentos divergem uma das outras, Alvarado se pauta pelos escritos que reconheceram os panos como proteção indispensável para todos aqueles que necessitavam cobrir suas fragilidades. Se por um lado o destaque à vestimenta é feito quando os castelhanos tratavam do momento da “queda do homem”, quando ele se descobre nu e tem vergonha de suas partes; por outro, também é dado o destaque para a função que assumia quando expunha no homem a “formosura e pureza da alma”.[7] Dessa forma, as vestes assumem, na voz de Talavera, um caráter transitório, pois, a graça da qual o homem se despiu ao desobedecer a Deus no paraíso seria retomada no Juízo Final, quando, em um ato de reconciliação com Ele, o homem seria revestido pela graça divina uma vez mais. O vestir-se e o cobrir-se ganham, mais que um significado literal, um sentido metafórico. Durante a vida, enquanto os homens transitavam do pecado original ao Juízo Final, o corpo deveria ser coberto pela castidade, penitência e mortificação da carne.

De outra maneira, Alvarado salienta principalmente duas ideias de vestimenta não necessariamente distintas: aquela que cobre o corpo, esconde as vergonhas e protege os homens das ações naturais; e outra que recobre a alma, garante a pureza e a limpeza do espírito. É fundamental, sob o olhar de Thiago Alvarado, que ambas as características das vestes fossem prescritas e assimiladas corretamente por cada estado, pois, tanto as regras morais, quanto as recomendações de proteção eram difundidas entre as mulheres de baixa linhagem, as damas e a rainha. Dando voz a letrados que tiveram grande importância no período – entre outros Afonso de Madrigal e Frei Martin de Córdoba – o autor parte de regras gerais à vestimenta e das funções que essa tinha no cotidiano de cada súdito do reino e acaba por clarificar o papel que as vestes assumiam na vida de mulheres de diferentes estados.

É por meio da mulher e de seu papel na família que o autor observa as condições financeiras e hierárquicas dos grupos dos séculos XIV e XV. Lançando mão de um período em que o reino castelhano passava por uma crise financeira e lidava com os mouros e os judeus, Alvarado mostra que a importância das mulheres é percebida quando os documentos prescrevem diversas regras para que, quando fossem se adornar e se vestir, os fizessem correta e virtuosamente. Enquanto o homem era descrito como vinculado a um ofício, as mulheres carregavam as marcas do estado e de seu vínculo familiar, ou seja, por meio delas, Thiago Alvarado pôde dar a conhecer a condição dos estados nos reinos e as organizações jurídicas sobre eles. Em relação aos outros povos que se instalaram no reino, partindo das leis dos reis Afonso X e Afonso XI, o autor procura debater a importância das cristãs se diferenciarem das hereges e das fiéis de outros credos e priorizarem transparecer, acima de tudo, a honestidade e a lealdade ao reino e à Igreja.

O estudo de Thiago Henrique Alvarado ganha mais destaque pelo mapeamento que se propõe a fazer. As funções que as vestes assumem nos séculos XIV e XV e a maneira das mulheres castelhanas se cobrirem e se adornarem são expostos ao leitor por meio de uma série de documentos legados por tratadistas, cronistas, prelados, teólogos e outros moralistas. Podese observar que para compreender a situação no reino e a produção de leis a todos os estados, Alvarado elenca, entre outras obras, Las Siete Partidas de Afonso X,[8] e o livro dos ordenamentos das cortes de Castela e Leão, Cortes de los antigos reinos de Castela y León.[9] Para observar os padrões morais cristãos que eram cobrados a todos os estados, o autor lança mão da obra de Ludolfo de Sajonia, Vita cristi…;[10] de Jacopo de Varazze, Legenda áurea; [11] além dos tratados e escritos de Afonso Madrigal, Martín Pérez, Clemente Sanchez de Vercial, Hernando de Talavera, e dos concílios de Valladolid e Toledo. Ainda que muitos desses documentos não abordassem unicamente um assunto, mas buscassem compilar os saberes necessários para que os homens e mulheres vivessem sob as regras divinas e reais, o autor ainda destaca alguns que tratavam propriamente das vestes e dos estados, são eles: Virtuosas e claras mugeres,[12] de Alvaro de Luna; La reina Doña Isabel la Católica…¸[13] da rainha Isabel; Carro de las donas,[14] de Francesc Eiximenis; entre outras obras que traziam regramentos sobre a castidade e a pureza das mulheres.

É, portanto, por meio desses escritos e de outros da época que Thiago Henrique Alvarado procura descrever certas práticas do período em questão que foram expostas nas prescrições de autoridades eclesiásticas e laicas. Tendo como objetivo principal mapear os hábitos e costumes e descrever as práticas associadas aos trajes, o autor perpassa por três questões fundamentais. No primeiro capítulo, trata das queixas que as autoridades faziam a respeito da vestimenta e como transgredir as regras sobre a roupagem afetava a organização dos estados presentes no reino. No segundo, Alvarado procura debater sobre os valores morais que permeavam as normativas. Também aqui é de interesse do autor entender de que modo as leis foram criadas, com a finalidade de ordenar o cotidiano de mulheres e homens castelhanos.

Por fim, o terceiro capítulo debruça-se sobre as características “tidas por naturais” de cada vestimenta. Na visão do autor é fundamental entender, juntamente com as regras e os valores morais, como as mulheres foram aconselhadas em práticas virtuosas e alertadas sobre as pecaminosas ao vestirem-se e afeitarem-se. Por meio desse mapeamento e dos debates levantados por Alvarado, o trabalho monta um panorama de alguns principais costumes presentes no reino de Castela nos séculos XIV e XV.

Ao final do trabalho, conclui-se que as mulheres deveriam afastar-se da imagem de Eva, primeira pecadora e que instigou ao pecado também o homem, e aproximar-se do exemplo de Maria, virgem, comedida e fiel a Deus. As vestes seriam, então, uma importante ferramenta para observar se as mulheres seguiam os conselhos e se tornavam a imagem de pureza e castidade, ou se fugiam das regras e vestiam-se de forma desvirtuosa e com excessos de enfeites e chamativos. A fim de mostrar tanto as peculiaridades das vestes das mulheres, como a maneira com que a sociedade castelhana foi ordenada e descrita, Thiago Alvarado questiona: havia lugar para formosura e afeites nos hábitos das mulheres? De que modo as autoridades daquele período buscaram ordenar os costumes por meio das mulheres e suas vestimentas? Vale ressaltar que tanto nas palavras de Alvarado, como pelo suporte historiográfico que apresenta, a ordenação dos costumes não era uma forma de imposição de classes ou uma maneira de controle, ao contrário, observar as regras que circularam e ordenaram o cotidiano das mulheres e homens nos séculos XIV e XV é tido por Alvarado como uma forma de compreender os valores que aqueles mesmos homens descreveram como indispensáveis para a época.

Notas

1. Mestre em História (2018) pelo Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca. Atualmente, doutorando em História vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca.

2. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

3. ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017.

4. ALVAREZ-OSSORIO ALVARIÑO, Antonio. Rango y apariencia. El decoro y la quiebra de la distinción en Castilla (SS. XVI-XVIII). Revista de historia moderna, n.17 (1998-1999); pp. 263-278, 1999. p. 264-265

5. TALAVERA, Hernando de. Tratado provechoso que demuestra como en el vestir e calçar comunmente se cometen muchos pecados. In: CASTRO, Teresa de. El tratado sobre el vestir, calzar y comer del arzobispo Hernando de Talavera, Espacio, Tiempo, Forma, Serie III, Historia Medieval, n.14, 2001.

6. ALVARADO, Thiago Henrique. op. cit., p.17-18

7. ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017, p.80.

8. LAS Siete Partidas del Rey Don Alfonso el Sabio…. Madrid: Imprenta Real, 1807, 3 tomos.

9. CORTES de los antiguos Reinos de León y de Castilla. Madrid: Imprenta y Estereotipia de Rivadeneyra, 1863

10. LUDOLFO DE SAJONIA. Vita cristi cartuxano romãçado por fray Ambrosio. Alcalá de Henares: Lançalao Polono, 1502-1503, 4 vols.

11. DE VARAZZE, Jacopo. Legenda áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

12. LUNA, Álvaro de. Virtuosas e claras mugeres (1446). Edición, introducción y notas de Lola Pons Rodríguez. Segovia: Fundación Instituto Castellano y Leonés de la Lengua, 2008

13. LA Reina Doña Isabel la Católica. Á su confesor, don fray Hernando de Talavera. In: EPISTOLARIO Español. Tomo 2. Madrid: M. Rivadeneyra, 1870

14. EIXIMENIS, Francesc. Carro de las Donas. Valladolid, 1542. Estudio y edición de Carmen Clausell Nácher. Madrid: Fundación Universitaria Española/ Universidad Pontificia de Salamanca, 2007, 2. vols.

Referências

ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017.

ALVAREZ-OSSORIO ALVARIÑO, Antonio. Rango y apariencia. El decoro y la quiebra de la distinción en Castilla (SS. XVI-XVIII). Revista de historia moderna, n.17 (1998-1999), pp. 263-278, 1999.

CORTES de los antiguos Reinos de León y de Castilla. Madrid: Imprenta y Estereotipia de Rivadeneyra, 1863

DE VARAZZE, Jacopo. Legenda áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

EIXIMENIS, Francesc. Carro de las Donas. Valladolid, 1542. Estudio y edición de Carmen Clausell Nácher. Madrid: Fundación Universitaria Española/ Universidad Pontificia de Salamanca, 2007, 2. vols.

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LAS Siete Partidas del Rey Don Alfonso el Sabio…. Madrid: Imprenta Real, 1807, 3 tomos.

LUDOLFO DE SAJONIA. Vita cristi cartuxano romãçado por fray Ambrosio. Alcalá de Henares: Lançalao Polono, 1502-1503, 4 vols.

LUNA, Álvaro de. Virtuosas e claras mugeres (1446). Edición, introducción y notas de Lola Pons Rodríguez. Segovia: Fundación Instituto Castellano y Leonés de la Lengua, 2008.

TALAVERA, Hernando de. Tratado provechoso que demuestra como en el vestir e calçar comunmente se cometen muchos pecados. In: CASTRO, Teresa de. El tratado sobre el vestir, calzar y comer del arzobispo Hernando de Talavera, Espacio, Tiempo, Forma, Serie III, Historia Medieval, n.14, 2001.

Rodolfo Nogueira da Cruz – Mestre em História (2018) pelo Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca. Atualmente, doutorando em História vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca.


ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017. Resenha de: CRUZ, Rodolfo Nogueira da. Lei e costume na Castela dos séculos XIV e XV: Vestidas e afeitas para serem virtuosas. Aedos. Porto Alegre, v.10, n.23, p.374-379, dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil | João Feres Júnior

João Feres Júnior (IESP/UERJ) e Marcelo Jasmin (PUC-RJ) são dois pesquisadores brasileiros que, no início da década de 2000, abordaram, em algumas obras organizadas por eles, os preceitos elaborados pela história conceitual alemã, na qual o historiador alemão Reinhart Koselleck é um dos maiores expoentes. Algumas destas publicações foram: História dos conceitos: debates e perspectivas, de 2006, e História dos Conceitos: diálogos transatlânticos, de 2007 (apud ROIZ, 2014).

Neste sentido, Feres Júnior dá continuidade às propostas teórico-metodológicas de Reinhart Koselleck na obra intitulada Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil (2014). O trabalho em questão é uma continuidade ou, como o próprio João Feres Júnior afirma, a segunda fase e/ou uma edição revisada e ampliada da obra organizada por ele, em 2009, ambos com o mesmo título e derivados das pesquisas dos historiadores brasileiros participantes do Proyecto Iberoamericano de Historia Conceptual – Iberconceptos2. A ideia que mobilizou a criação deste grupo de pesquisa foi elaborada pelo organizador das referidas obras, juntamente com Javier Fernández Sebastián e Vicente Oieni, em 2004. No entanto, a publicação de 2009 possuía menos capítulos – que, assim como a obra por nós resenhada, tiveram o caráter de verbetes de dicionário, o que demonstra a originalidade deste trabalho (apud FERES JÚNIOR, 2014).

Contudo, Feres Júnior – que atua sem a participação de Marcelo Gantus Jasmin tanto na organização da obra de 2009 quanto na de 2014 – e os demais participantes brasileiros do Proyecto Iberconceptos, optaram por utilizar não somente as sugestões teóricas de Koselleck, mas compatibilizá-las com as ideias propostas pela Escola de Cambridge, representada por Quentin Skinner e John Greville Agard Pocock (apud FERES JUNIOR, 2014). Ao justificar a complementaridade entre estas duas correntes teórico-metodológicas, João Feres Júnior afirma que Melvin Richter, por meio do seu trabalho intitulado The History of Political and Social Concepts: A Critical Introduction (1995), defende a ideia de que os historiadores mais simpáticos aos preceitos elaborados pela Escola de Cambridge passassem a considerar, também, as ideias propostas pela história conceitual alemã (RICHTER, 1995 apud FERES JUNIOR, 2014, p.15). Além disso, o cientista político finlandês Kari Palonen também recomendou o mesmo caminho proposto por Richter e que foi adotado pelo Proyecto Iberconceptos (PALONEN, 2003 apud FERES JUNIOR, 2014, p.15).

Ainda neste sentido, sobre as escolhas teórico–metodológicas de Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil (2014), acreditamos ser pertinente acrescentar que a defesa da complementaridade entre estas duas correntes pode ser corroborada pela seguinte afirmação de Koselleck, que denuncia a tendência que seria própria da história das ideias, em relação às expressões históricas, de conceber estas últimas “[…] como constantes, articuladas em figuras históricas diferentes, mas elas mesmas fundamentalmente imutáveis” (KOSELLECK, 1985a, p.80 apud JASMIN, 2005, p.31).

Em consonância com estas concepções teóricas, Feres Júnior argumenta, no capítulo onde realiza uma leitura de caráter transversal acerca do conceito de “civilização”, com base em outros trabalhos sobre este termo (2014, p.423-454), que a utilização daquelas duas correntes teóricas, de forma conjunta, evitaria a “[…] cilada de ter de optar pelo aspecto descritivo ou normativo dos conceitos. Os elementos descritivos e normativos são tomados como partes da semântica do conceito e, portanto, como objetos a serem estudados” (FERES JÚNIOR, 2014, p.427). Além disso, segundo o organizador da obra, também não é necessário que haja uma escolha pelo total desprendimento entre as questões objetivas e as subjetivas, característica e/ou tendência mais ligadas à linha cartesiana de pensamento, pois

[…] a inspiração fenomenológica embutida na história conceitual foca a experiência e a construção da linguagem através de um processo social de atribuição de significado intersubjetivo, que nunca é totalizante ou propriamente objetivo, pois se encontra fracionado como a própria sociedade (FERES JÚNIOR, 2014, p.427).

Neste sentido, na ótica de Feres Júnior, pelo fato de a História conceitual não se alicerçar em uma dita “perfeição” teórica e/ou não defender a utilização de um único conceito tido como “inquebrantável” na busca pela compreensão de determinado assunto – modelo que seria mais próprio das ciências naturais, e que parte das ciências humanas seguem, como, por exemplo, a Ciência Política, e algumas vertentes das Ciências Sociais -, a escolha pelas indicações de Koselleck e Skinner se mostram mais favoráveis, pois se dispõem a “[…] resgatar a linguagem em seus múltiplos usos e significados” (FERES JÚNIOR, 2014, p.427).

Dessa forma, tentando seguir estes postulados, a obra derivada da primeira fase (2009) contou com análises transversais sobre todos os conceitos abordados até àquele momento, embasadas nos verbetes resultantes das discussões sobre os próprios conceitos e compôs uma publicação em língua espanhola, intitulada Diccionario político y social iberoamericano: conceptos políticos en la era de las independências, 1750-1850 (apud FERES JÚNIOR, 2014). Além disso, a primeira fase (2009) foi derivada do artigo Algumas notas sobre História Conceptual e sua aplicação ao espaço Atlântico Ibero-Americano (2008, p.5-16 apud ROIZ, 2014, p.280), de autoria de Javier Fernández Sebastián e que compôs o dossiê intitulado História Conceptual no Mundo Luso-Brasileiro, 1750-1850, também apresentado por Sebastián e que compõe o número 55 da revista Ler História (apud ROIZ, 2014). Este número, de acordo com Diogo da Silva Roiz, teve, no Brasil, acesso limitado e enfatizou as relações existentes entre o mundo ibero-americano na época das independências (ROIZ, 2014).

Além disso, contou com ensaios que, assim como ainda nos informa Roiz, tratavam de vários conceitos como América-Americanos (João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá), Cidadão-Vizinho (Beatriz Catão Cruz Santos e Bernardo Ferreira), Constituição (Lúcia Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves), Federalismo (de Ivo Coser), História (João Paulo Pimenta e Valdei Lopes de Araújo), Liberal-Liberalismo (Nuno Gonçalo Monteiro), Nação (Sérgio Campos Matos), Opinião pública (Ana Cristina Araújo), Povo (Fátima Sá e Melo Ferreira) e República-Republicanos (Rui Ramos) (apud ROIZ, 2014).

No entanto, na obra de 2009 que foi publicada no Brasil e que focou na operacionalização de todos estes conceitos no caso específico brasileiro daquele recorte temporal – ou seja, não colocou a atenção em Portugal, como havia sido feito no trabalho de 2008 – alguns conceitos foram trabalhados por outros autores e a disposição dos capítulos ficou da seguinte forma: América/Americanos (João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá); Cidadão (Beatriz Cruz Santos e Bernardo Ferreira); Constituição (Lúcia Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves); Federal/Federalismo (Ivo Coser); História (João Paulo Pimenta e Valdei Lopes de Araujo); Liberal/Liberalismo (Christian Edward Cyril Lynch); Nação (Marco A. Pamplona); Opinião Pública (Lúcia Bastos Pereira das Neves); Povo/Povos (Luisa Rauter Pereira); e República/Republicanos (Heloisa Maria Murgel Starling e Christian Edward Cyril Lynch) (apud ROIZ, 2014).

Dessa forma, João Feres Júnior, ainda no prefácio da obra sobre a qual estamos direcionando nossa atenção por meio deste trabalho, nos inteira que a intenção ao elaborar o Léxico da segunda fase (2014) foi a mesma da que motivou a publicação do livro de 2009, mas com uma novidade: trouxe a abordagem de outros dez conceitos além dos que estão presentes na obra resultante da primeira fase. Os dez novos capítulos tratam sobre: Soberania (Luiza Rauter Pereira), Independência (Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves), Partido/Facção (Ivo Coser), Democracia (Christian Edward Cyril Lynch), Pátria (Marco Antonio Pamplona), Estado (Ivo Coser), Liberdade (Christian Edward Cyril Lynch), Ordem (Cláudio Antonio Santos Monteiro), Civilização (João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá) e Revolução (Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves) (FERES JÚNIOR, 2014).

Dessa forma, aos dez trabalhos referentes à publicação resultante da primeira fase do Iberconceptos (2009) se somaram mais 10 novos capítulos, totalizando uma produção de 20 conceitos trabalhados neste Léxico publicado em 2014. Neste sentido, ao tratarmos aqui de modo breve sobre cada verbete que compõe a nova obra, iniciamos pelo trabalho de João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá que, ao abordarem a noção de América/Americanos (2014, p.25-39), identificam seis diferenciações deste conceito e afirmam que o mesmo parece começar a obter características políticas:

[…] com o advento das independências dos Estados Unidos da América e das colônias espanholas, e o conseqüente uso desses exemplos por parte dos atores coloniais descontentes com o Império português. A associação da América com o valor da liberdade tornou-se comum a partir da primeira década do século 19, ao mesmo tempo que a depreciação das experiências políticas das novas repúblicas da América espanhola rapidamente se converteu em tropo retórico daqueles que não desejavam o governo republicano no Brasil, ou seja, da parte dominante do espectro político brasileiro por toda a primeira metade do século 19 e além (NORONHA DE SÁ; FERES JÚNIOR, 2014, p.36).

O capítulo sobre Civilização (NORONHA DE SÁ; FERES JÚNIOR, 2014, p.209- 231) também é escrito por aqueles dois autores, que indicam um processo de “nacionalização” do referido termo – na expressão de Pim den Boer trabalhada por eles -, protagonizado pela geração romântica brasileira. No que tange ao conceito de Cidadão, Beatriz Catão Cruz Santos e Bernardo Ferreira afirmam que existia uma relação entre a preservação da ordem escravocrata e a manutenção das hierarquias de caráter tradicional, o que contribuía para o vínculo entre liberdade, cidadania e propriedade que classificava as pessoas entre “cidadãos ativos”, “cidadãos passivos” e os “não cidadãos” (SANTOS; FERREIRA, 2014, p.54-55).

Por sua vez, Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves estabelecem a relação entre a noção de Constituição com questões religiosas ou, nas palavras dos próprios autores, uma “[…] dificuldade demonstrada por portugueses e brasileiros em lidar com a democracia, esse ‘poder dos homens tomando o lugar das ordens definida por Deus ou desejada por Deus” (NEVES; NEVES, 2014 p. 72). Além deste capítulo, estes autores também atuam juntos em outros trabalhos componentes deste livro, que são os casos dos trabalhos sobre Independência (NEVES; NEVES, 2014, p.233-252) e sobre a ideia de Revolução (NEVES; NEVES, 2014, p.379-399). Em relação à Independência, estes autores afirmam que o referido termo, “[…] confundia-se com a honra e o orgulho do Brasil” (NEVES; NEVES, 2014, p.248) e não teria mudado tanto a não ser na década de 1860, período em que houve uma maior aproximação com a ideia de “soberania”. Por sua vez, em relação às questões sobre as possibilidades de ruptura total que envolvem o conceito de Revolução, Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Neves concluem que, no período analisado, “[…] somente poucos, sem conseguir-se desprender tampouco de uma perspectiva reformista, pareciam dotados de condições para superar essa visão litúrgica do mundo e reconhecer o potencial dos homens para interferir na vida pública em seu próprio proveito” (NEVES; NEVES, 2014, p.394).

Sobre as modificações que envolveram as concepções acerca da própria disciplina histórica propriamente dita – no verbete intitulado História -, João Paulo G. Pimenta e Valdei Lopes de Araújo abordam, dentro do recorte temporal estabelecido (1750-1850) e de seu processo de mudança, o desprendimento dos preceitos religiosos na escrita da história, perpassando pelo estágio onde se percebeu uma ligação entre o letramento e a narrativa histórica, até a fase em que “[…] a história deixava de ser apenas a sucessão de acontecimentos isolados, tornando-se fator de desenvolvimento dessa identidade” (PIMENTA; ARAÚJO, 2014, p.116).

No capítulo Liberal/Liberalismo, Christian Edward Cyril Lynch nos traz a informação de que “no Brasil, o verdadeiro liberal era o conservador, que exigia, pela centralização, o robustecimento da autoridade do Estado, agente civilizador capaz de se impor à aristocracia rural, acessar a população subjugada no campo e fazer valer os direitos civis” (LYNCH, 2014, p.132). Neste sentido, podemos considerar, também, o verbete Ordem, de autoria de Claudio Antonio Santos Monteiro indicando que “[…] com os perigos representados pelo mundo da desordem (homens pobres e livres e escravos), ordem no Brasil imperial implica a total inviabilidade da expansão da liberdade […]” (MONTEIRO, 2014, p.354).

Alguns autores escreveram mais de um capítulo, assim como já colocamos em relação ao texto de Beatriz Santos e Bernardo Ferreira. Esse também é o caso de Lúcia M. Pereira das Neves em seu trabalho sobre o conceito de Opinião Pública, no qual trata sobre a permanência da “[…] perspectiva da opinião como uma, próxima às concepções de cultura política do absolutismo” (NEVES, 2014, p.166), do trabalho de Luisa Rauter Pereira que, além do capítulo sobre Soberania – assim como já pontuamos – também trata sobre a noção de Povo/Povos (PEREIRA, 2014, p.173-189), abordando a relação entre este conceito e a soberania política, liberdade, igualdade e a natureza geográfica do país, não tão ligados assim à esfera política e de Christian Edward Cyril Lynch, que, assim como no trabalho sobre o conceito de Libera/Liberalismo, também se debruçou em outros como sobre a ideia de República/Republicanos – o qual escreveu em parceria com Heloisa Maria Murgel Starling (STARLING; LYNCH, 2014, p.191-207) -, Democracia (LYNCH, 2014, p.253-274) e Liberdade (LYNCH, 2014, p.323-339) – nos quais atuou sozinho –, capítulos estes que nos possibilita perceber uma ligação entre estes conceitos, os quais estavam relacionados às características da monarquia de então.

Outros autores também participam da obra com mais de um trabalho, tais como, Ivo Coser e Marco A. Pamplona. Aquele, ao analisar os sentidos das ideias de Federal/Federalismo (COSER, 2014, p.79-101), Estado (COSER, 2014, p.301-322) e Partido/Facção (COSER, 2014, p.359-377), por meio dos textos de Paulino José Soares de Souza (o Visconde do Uruguai), Alves Branco, Tavares Bastos, entre outras personalidades, chama a atenção para a complexidade entre o estabelecimento da fragmentação do poder estatal, a continuidade do personalismo e a transformação da facção em partido – com um programa racional definido. Por sua vez, Pamplona analisa o conceito de Nação (PAMPLONA, 2014, p.137-153) que, ao dialogar tanto com o trabalho de Beatriz Catão Cruz Santos e Bernardo Ferreira (Cidadão), quanto com o de Luisa Rauter Pereira sobre Soberania (PEREIRA, 2014, p.401-421), aborda a discussão sobre quem seria considerado cidadão dentro daquela formação político-social no Brasil, defendendo que a “adoção do princípio da ‘soberania do povo’ iniciou uma transformação mais profunda da moldura normativa existente até o momento para a legitimação do poder político” (PAMPLONA, 2014, p.148). Pamplona também trata sobre o conceito de Pátria (p. 275-300), que, segundo o autor, sofreu um processo de singularização, “[…] sendo utilizado cada vez mais na sua identificação com a nação, à medida que esta aprofundava sua sinonímia com o Estado Imperial” (PAMPLONA, 2014, p.297).

Além de conter os verbetes com os conceitos trabalhados por todos os pesquisadores brasileiros neste Léxico, de 2014, a obra também conta com mais um capítulo escrito por João Feres Júnior, mais ao final do livro. Trata-se do posfácio intitulado De olho nas pesquisas futuras: as camadas teóricas da história dos conceitos (FERES JÚNIOR, 2014, p.455-477), no qual trata um pouco mais sobre a possibilidade de complementaridade entre os pressupostos teóricos da Escola de Cambridge e as noções propostas pela Begriffsgeschichte e realiza uma análise crítica sobre a utilização ou não de algumas ideias de Koselleck – como, por exemplo, as noções de “temporalização”, “ideologização”, “politização” e “democratização” dos conceitos – nas pesquisas que tem a história dos conceitos como o principal norte teórico-metodológico (FERES JÚNIOR, 2014).

Dessa forma, ao tratarmos sobre os principais aspectos da obra organizada por Feres Júnior, não temos dúvida de que o recorte enfatizado – que diz respeito à segunda metade do século XVIII e as cinco primeiras décadas do século XIX – contribuiu muito para a riqueza dos resultados obtidos não somente por Feres Júnior, como também por todos os autores envolvidos neste trabalho, pelo fato de ser um período de profundas transformações da sociedade brasileira vinculadas à política do país. Além disso, assim como Diogo Roiz (2014) bem observou sobre a utilização do norte teórico-metodológico escolhido – complementaridade entre o contextualismo linguístico, de Skinner e Pocock, e a história dos conceitos alemã, de Koselleck – na obra da primeira fase (2009) – é totalmente pertinente, pois proporciona discussões frutíferas e inovadoras ao analisar as fontes selecionadas com foco nos conceitos estudados dentro do período trabalhado, o que permite conciliar análises históricas, políticas, linguísticas e sociais. Todos estes fatores colaboram para uma leitura fluida e compõem uma obra que contribui consideravelmente para a historiografia acerca dos temas e período trabalhados, além de despertar novas reflexões sobre as questões abordadas.

Notas

2. Assim como o próprio organizador do Léxico nos informa, O Iberconceptos consiste em um projeto iniciado por meio de uma reunião entre João Feres Júnior, Javier Fernández Sebastián e Vicente Oieni (que não atuou no projeto posteriormente) durante a VII Conferência Internacional de História dos Conceitos, realizada em 2004. Desde o início, o objetivo desta iniciativa era o “[…] de se fazer uma história conceitual dos países de fala espanhola e portuguesa na Europa e na América […]” (FERES JÚNIOR, 2014, p.9), e Sebastián foi o responsável pela angariação de financiamento para a realização deste projeto em seu país natal, a Espanha. João Feres Júnior ficou a cargo da coordenação do Iberconcpetos no Brasil. Sob a coordenação de João Feres Júnior aqui, no Brasil, atuam vários pesquisadores de diversas instituições tais como Beatriz Catão Cruz Santos (UFRRJ), Bernardo Ferreira (UERJ/IUPERJ), Christian Edward Cyril Lynch (IESP-UERJ/FCRB), Cláudio Antonio Santos Monteiro (Université Robert Schuman, de Strasbourg, França), Guilherme Pereira das Neves (UFF), Heloisa Maria Murgel Starling (UFMG), Ivo Coser (UFRJ), João Paulo G. Pimenta (USP), Lúcia M. Bastos Pereira das Neves (UERJ), Luisa Rauter Pereira (IUPERJ/UFF), Marco A. Pamplona (PUC-Rio), Maria Elisa Noronha de Sá (PUC-Rio) e Valdei Lopes de Araújo (UFOP). Além dos pesquisadores brasileiros anteriormente citados, o Projeto Iberconceptos também é composto por equipes de pesquisadores de outros vários países: Argentina, Colômbia, Chile, Espanha, México, Peru, Portugal, Uruguai, Venezuela e países do Caribe e da América Central (FERES JÚNIOR, 2014).

Referências

FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte, MG: EDUFMG, 2014.

ROIZ, Diogo da Silva. A história dos conceitos no Brasil: problemas, abordagens e discussões. Caicó, vol. 15, no 34, p.279-285, jan. / jun. 2014.

JASMIN, Marcelo Gantus. História dos conceitos e teoria política e social. Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS). vol. 20, no 57, p.27-38 (fevereiro, 2005).

Elvis de Almeida Diana1 –  Mestre em História pela UNESP. E-mail: [email protected]


FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: EdUFMG/Humanitas, 2014. Resenha de: DIANA, Elvis de Almeida. Aedos. Porto Alegre, v.9, n.20, p.587-594, ago., 2017.Acessar publicação original [DR]

K.: relato de uma busca | Bernardo Kucinsk

A obra K. configura-se como trabalho histórico e memorialístico na medida em que expõe, denuncia e recupera o relato de dor e sofrimento2 do pai de Ana Rosa Kucinski Silva, desaparecida política brasileira. Durante o regime militar no Brasil (1964-1985), a agonia do pai e dos sobreviventes, vítimas da ditadura, intensificou-se com o silenciamento instaurado na sociedade, pelos detentores do poder, em relação ao paradeiro dos desaparecidos políticos. Nota-se que em 1974, ano em que ocorreu o desaparecimento de Ana Rosa e de seu marido, Wilson Silva, o regime ainda sentia os reflexos da concentração de poder nas mãos dos militares, fruto da instalação do Ato Institucional nº 5 (AI-5, de 13 de dezembro de 1968), que enrijeceu o sistema autoritário e levou vários dissidentes à morte.

Durante a ditadura, cidadãos que se opunham ao regime, como Ana Rosa Kucinski Silva e Wilson Silva, foram violentados, massacrados (expressão que carrega o sentido de humilhação)[3] e “desapareceram”. Para Bernardo Kucinski, trataram-se de crimes contra a humanidade, uma vez que, independentemente da posição política de esquerda comungada pelo casal – eram integrantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), que combateu o regime militar no Brasil –, os crimes contra a vida não se justificam, situação que se agrava ao avaliar a atrocidade dos acontecimentos e a existência, desde 1948, em âmbito internacional, da Declaração Universal dos Direitos Humanos [4].

As pistas e os vestígios [5] referentes ao casal e demais perseguidos políticos que compunham a organização clandestina de resistência ao regime foram destruídos pelos militares e por outros agentes, que endureceram o rigor do regime autoritário. Dessa forma, o jornalista Bernardo Kucinski, filho de Majer Kucinski e irmão de Ana Rosa Kucinski, utilizando-se da narrativa ficcional [6], oferece-nos a oportunidade de reconstruirmos o passado que se esconde pelas vias silenciosas das ações dos detentores do poder, que impuseram sua vontade através do apagamento dos rastros, de violências, atentados e humilhações contra a vida humana.

Além de militante política, Ana Rosa ocupou o cargo de professora doutora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), onde cumpriu com suas funções de forma assídua até o dia 23 de abril de 1974, quando, segundo suas colegas de trabalho, ela não retornou à universidade. Wilson Silva, seu marido, era físico e trabalhava em uma empresa. Já seu pai, o senhor Majer Kucinski, foi resistente judeu na Polônia e se dedicou integralmente, no Brasil, ao iídiche [7].

Amparado neste enredo, o jornalista Bernardo Kucinski amarrou os fios que estabelecem a intriga por meio da vivência familiar e ocupou, dessa maneira, o papel de testemunha [8], mesmo vivendo grande parte da sua vida no exterior. O autor alerta: “Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu” (p. 8), ou seja, a reunião das informações esfaceladas, seja através do registro sobre o caso de desaparecidos políticos encontrado nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), seja através do depoimento da escritora Maria Victoria Benevides – que rememora a aflição de Majer Kucinski na Comissão de Justiça e Paz, quando este estreitou laços de amizade com Dom Paulo Evaristo Arns –, ajuda-nos a situar este relato nos debates acerca da história, do trauma e da memória.

A tensão entre testemunho, denúncia, literatura, trauma e memória converge, no trabalho historiográfico, no labor com a realidade e a ficção. Na constituição da narrativa de Bernardo Kucinski, ao invés de se oporem, existe integração entre o par realidade e ficção [9], que se evidencia como um dos pontos centrais explorado no livro por meio dos sentimentos de agonia e dor alimentados por Majer na busca por sua filha. Indubitável que o livro, ao retratar o sofrimento angustiante de Majer Kucinski no resgate memorialístico de sua filha Ana Rosa (vinculada à história do regime militar no Brasil), vem assinalar um marco problematizador nos debates historiográficos referentes à ditadura brasileira, uma vez que revela uma atenção por parte de Bernardo em investigar as incertezas, o medo, a indignação, as mentiras e outras facetas decorrentes de regimes autoritários pela América Latina.

O desespero de Majer Kucinski diante do sumiço de sua filha, ao mesmo tempo que recupera sua singular trajetória de vida como militante político na Polônia, no pré-Holocausto – período em que foi reconhecido como prestigioso escritor do iídiche, com destaque para a literatura –, revela os meandros da política autoritária brasileira. Este sistema, regido especificamente pelo autoritarismo, guarda sua especificidade nacional diante de regimes totalitário-autoritários ocorridos na Itália e na Alemanha, na medida em que os militares, a mando dos detentores do poder no Brasil, desapareciam com as figuras oponentes ao regime sem deixar vestígios, tornando-as, portanto, desaparecidos políticos.

Além da incerteza do que realmente aconteceu com o casal, a experiência de dor visualizada no pai de Ana Rosa permite o paralelismo com os sentimentos de Primo Levi, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, na Segunda Guerra Mundial (1939- 1945) [10]. Se a preocupação sobre o paradeiro de Ana Rosa e Wilson Silva é central para o autor, o sofrimento do pai, dos irmãos, o vazio, a humilhação e “a supressão dos sentidos ordinários comuns da vida” (p. 186), escancarado pelas vias do silêncio e perpetrado em suas veias pelos detentores do poder, desabrocha nos sentimentos da nossa indignação e ira diante da ditadura militar no Brasil.

É, portanto, diante o retrato de sentimentos como a culpa, a impunidade, o trauma, alimentados pela família Kucinski devido o desaparecimento de Ana Rosa que, não podemos perder de vista o quanto a obra de Bernardo Kucinski se constitui como se Bernardo assumisse a voz do seu pai na narrativa de desaparecimento de Ana Rosa. Interessante que, neste aspecto, as contribuições de Sigmund Freud (1856-1939) vêm ao encontro da problemática deste livro. Porque, por meio da A Interpretação dos Sonhos (FREUD, 2001) apreende-se que o autor ao retratar acerca da “psicologia dos processos oníricos” e da “função dos sonhos – sonhos de angústia” descreve que “no inconsciente, nada pode ser encerrado, nada é passado ou está esquecido”. O que Freud quer explorar com essa passagem é que no estudo das histórias humanas “a via inconsciente de pensamentos que conduz à descarga no ataque histérico volta imediatamente a tornar-se transitável quando se acumula excitação suficiente”. E continua Freud, “uma humilhação experimentada trinta anos antes atua exatamente como uma nova humilhação ao longo desses trinta anos, assim que obtém acesso às fontes inconscientes de afeto” [11]. Nesse sentido, Bernardo Kucinski se constitui personagem paciente deste retrato apresentado por Freud. E, Kucinski, ao trazer suas inquietações a público por meio deste livro nos conduz automaticamente ao desdobramento de Freud, supracitado.

Por outro lado, foi possível notar ainda que a estrutura de K. é bastante sugestiva no que tange à maneira como vamos ler a obra, pois, diante de uma leitura rápida, é difícil encontrar uma linearidade que conduza a história de forma objetiva. O leitor desavisado só conseguirá configurar o enredo após a leitura do posfácio de Renato Lessa. Nesse sentido, percebe-se que Lessa se volta às problemáticas e considerações a respeito dos estudos sobre as vítimas do regime militar no Brasil, apresentadas também por Maria Victoria Benevides na orelha do livro, em que a autora analisa os usos da ficção e da literatura no escopo do discurso do autor.

Bernardo Kucinski traz informações sobre a chegada da sua família ao Brasil e enriquece o retrato sobre a vida de Majer e Ana Rosa Kucinski Silva. Além de usar a letra K, sugerindo correlação com a trajetória de vida do escritor Franz Kafka (1883-1924) – escritor tcheco, que sofreu por ser judeu; escreveu para revistas literárias e mantinha grande simpatia pelo socialismo e sionismo –, Bernardo evidencia a perseguição política que Majer Kucinski sofreu na Polônia, sendo obrigado a fugir para o Brasil em 1935. Por escrever em iídiche, passou a ser reconhecido pelos judeus do bairro de Bom Retiro, em São Paulo. Além disso, escreveu em jornais de São Paulo, Buenos Aires e Nova Iorque. Logo, angariou um sócio com grande capital para abrir uma loja de tecidos.

Como alguém que carrega um trauma do que viveu [12], Majer não contou aos filhos a dor que sofreu no passado para não influenciar a formação psíquica e ética deles. Majer Kucinski tinha 30 anos quando foi arrastado pelas ruas de Wloclawek, uma pequena cidade polonesa, onde se deu o primeiro massacre organizado da população judaica pelas tropas alemãs na invasão da Polônia. Neste episódio, em que sua irmã mais nova morreu sua outra irmã, mais velha, Guita – militante de esquerda que ajudou a fundar o Linke Poalei Tzion (Partido dos Trabalhadores de Sion de Esquerda) –, foi presa e veio a falecer de frio. Já a mãe de Ana Rosa Kucinski, Ester, perdeu toda sua família. Ester veio para o Brasil um ano depois da chegada do marido. Ela desenvolveu câncer no seio direito na mesma época em que engravidou de Ana Rosa, que nasceu em 1942. A mãe de Ana Rosa veio a falecer, e Majer casou-se com sua segunda mulher. Porém, reclamava desta devido à vida pacata que levava, uma vez que sempre foi um homem ativo na sociedade.

Bernardo retrata a agonia de Majer diante das pistas incertas e seu cansaço ao seguir as indicações de informantes – dentre eles, o decorador de vitrines (Caio), o dono da padaria (o português Amadeu) e o farmacêutico (reconhecido como excelente informante dos judeus em São Paulo, que indicou a Majer um rabino em São Paulo e um dirigente da comunidade no Rio de Janeiro que mantinham contatos com os generais). Em busca de respostas, Majer viajou para Nova York ao escritório American Jewish Committee – ambiente que o recebera no passado para lhe conceder o prêmio pelo poema “Haguibor”, publicado na revista Tzukunft (revista literária iídiche publicada em Nova York). Foi a Londres, na Anistia Internacional, e antes esteve em Genebra, onde apelou à Cruz Vermelha. Bernardo Kucinski retrata o desgosto de Majer com a Comissão de Direitos Humanos, que rejeitou sua petição. Por fim, todas as buscas foram em vão. Ademais, muitas pessoas que Majer procurou não lhe ajudaram por medo do sistema, que perseguia pessoas e desaparecia com os opositores ao regime sem deixar rastros.

A insistência de Majer na busca por Ana Rosa levou-o a descobrir a vida clandestina da filha tanto em relação à política como em relação a sua própria família, já que, procurando protegê-los, Ana Rosa omitiu diversos fatos de sua vida, como o casamento com Wilson Silva. Sua luta política foi cultivada no anonimato e, com o casamento, Ana Rosa aproximouse ainda mais do marido, que mantinha maior vínculo com as ideologias incentivadas pelos grupos de esquerda no Brasil.

O desespero de Majer intensificou-se ao tomar conhecimento de outras famílias que procuravam por seus desaparecidos. Muitos queriam apenas enterrar seus mortos, uma vez que o tempo dera provas de que já não havia mais esperanças. Dessa maneira, o que se pode notar é que Majer estava ante uma especificidade do Estado autoritário brasileiro, que conseguia escamotear, acabar com as pistas, vestígios, rastros que levassem aos autores dos crimes encomendados.

A forma com que os militares desapareciam com os corpos no Brasil é comparada por Bernardo ao que fizeram os nazistas com seus prisioneiros: antes de serem reduzidos a cinzas, era dado baixa do número que cada um tinha tatuado no braço num livro. Depois, eram enterrados em vala comum. Dessa forma, era possível saber que os judeus e as vítimas de outra ordem se encontravam enterrados em determinado local. Já no Brasil, como Bernardo afirma, o luto referente às vítimas da ditadura continua em aberto devido à ausência e ao sumiço dos cadáveres. Neste encalço e na suposição de que este assunto ainda deva atormentar os sonhos de Bernardo Kucinski vale atentarmo-nos ao que Freud nos assegura “a interpretação dos sonhos é a via real para o conhecimento das atividades inconscientes da mente” [13]. Ou seja, por meio das dúvidas e “certezas” que cercearam os sonhos e a mente de Majer, estes, agora, passaram a atormentar os sonhos e mente de Bernardo. Nesse sentido, o ato do sepultamento tanto para Bernardo quanto às famílias vítimas de narrativas de mesma natureza simboliza o fim do trabalho de dor e luto pelo desaparecido político.

Outra análise motivada por Bernardo Kucinski é: diante dos acontecimentos com sua irmã e seu pai, como ficam os torturadores em relação às manifestações de sobreviventes e presos políticos, como o “dossiê das torturas” e o “relatório prometido à Anistia Internacional”, citados no livro? Se, para ele, a punição aos mentores dos crimes está longe de se tornar realidade, em contrapartida, ela ainda persiste em relação às vítimas. Este assunto remete aos debates e catalogações dos historiadores e se vincula aos estudos sobre os crimes cometidos contra a humanidade [14], em que se configuram atrocidades inimagináveis quanto à vida humana.

Se, por um lado, o livro de Bernardo denuncia a realidade cruel sofrida por seu pai, por outro, tece pontos estratégicos ao retratar como funcionou o sistema político no Brasil, que desapareceu com as pessoas sem deixar vestígios, humilhando-as e levando-as à morte. Nos capítulos “A Cadela” e “A Abertura”, os diálogos sugeridos por Bernardo entre os mandantes do governo e os sujeitos nomeados pelo autor como Lima, Mineirinho, Fogaça e Fleury revelam a tortura psicológica que as vítimas sofreram ante a instauração do silêncio e das informações falsas concedidas por estes mesmos sujeitos acerca dos desaparecidos políticos. O governo, através de um aparelho de Estado repressor que tudo sabia e que constantemente estreitava contatos de fidelidade com pessoas dentro e fora do país para enrijecer o sistema, tentou a todo custo despistar, cansar, manipular e mentir aos familiares sobre o paradeiro de seus desaparecidos. Dessa maneira, Bernardo realizou um trabalho notável ao explorar as vias enigmáticas em que se instaurou o sistema autoritário brasileiro, que conseguiu levar Majer à exaustão, uma vez que seus movimentos foram monitorados por agentes do governo, desviando-o de seu objetivo: encontrar a filha, ainda que morta.

Um dos pontos auges do livro encontra-se no capítulo “A Terapia”. Neste, Bernardo, utilizando-se do relato da personagem Jesuína Gonzaga, expõe os bastidores de uma casa em Petrópolis [15], no Rio de Janeiro, onde um dos chefes de comando do regime militar, o suposto Sérgio Paranhos Fleury, vinha de São Paulo para comandar e realizar torturas psicológicas, físicas e massacrar, de fato, os opositores ao regime. Fleury era reconhecido pela terapeuta do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e pelos demais como “o Fleury do esquadrão da morte”. Segundo Jesuína, nesta casa havia uma espécie de garagem ou depósito que ela só pôde conhecer quando esteve sozinha no local. As atrocidades reveladas por testemunhas oculares [16] como Jesuína, mesmo que de forma fragmentada, colocam em evidência os horrores a que as vítimas diretas do regime foram sujeitadas. Jesuína, por exemplo, por não suportar conviver com aquela realidade, procurou o INSS para realizar um tratamento psicológico, além de fazer uso de pílulas para dormir. Neste capítulo, Bernardo escancarou a realidade do local onde ocorria a carnificina e o esquartejamento dos corpos que, posteriormente, eram levados em sacos de lonas bem amarrados para lugares até hoje desconhecidos.

Bernardo, ao relatar o encontro de Majer com o arcebispo de São Paulo, solidário às famílias que buscavam por seus desaparecidos políticos, revelou a incapacidade do pai em relatar coerentemente o acontecido. Ainda que Majer Kucinski fosse contrário ao catolicismo no passado, naquele momento tentou preencher o vazio com notícias que talvez o arcebispo poderia lhe conceder sobre a filha e o genro. É indubitável que a supressão de provas tornou a busca de Majer ainda mais dolorida, pois, diferente da Polônia – onde a família do preso era notificada, podia visitá-lo, e os presos tinham direito à defesa –, no Brasil os corpos simplesmente desapareciam.

O livro K., através de sua narrativa ficcional, procura compreender o papel de sobreviventes ante acontecimentos estarrecedores, como foi o caso da invasão na Polônia, em que Majer perdeu suas duas irmãs, e sua primeira mulher, toda a família. Conforme retratado anteriormente, Majer não relembrou esses episódios aos filhos para evitar causar-lhes mal no período em que estavam construindo suas vidas, além disso a lembrança provocava-lhe malestar. Por meio de estudos acerca do trauma nota-se que o sobrevivente procura viver o presente tentando se recuperar do trauma do passado. Dessa forma, o passado vivia adormecido na vida de Majer Kucinski até o momento em que sua vida no Brasil fê-lo vítima das atrocidades do regime militar. Nesse sentido, é importante observar que o livro de Bernardo apresenta problemáticas quanto ao estudo de passados traumáticos [17], por exemplo, em relação ao sobrevivente que, além de carregar o mal do passado, sente-se culpado e tornase vítima de um sistema que imputa a ele a responsabilidade psicológica de não ter oferecido o amor necessário à filha, como retrata Bernardo na obra ao afirmar que os sobreviventes sempre vasculham o passado “em busca daquele momento em que poderiam ter evitado a tragédia e por algum motivo falharam” (p. 168). Ou seja, a culpa alimentada através da dúvida e das incertezas impostas pelo sistema permanece dentro de cada sobrevivente como um drama pessoal e familiar, que foge da ordem coletiva. Dessa forma, a dor psicológica e a culpa instalam-se.

Bernardo deixa explícito o poder de imposição do sistema ao final da obra, no “Post Scriptum” de 31 de dezembro de 2010, quando toma como referência um telefonema que recebeu em que uma voz originária de Florianópolis-SC relatou que, numa viagem ao Canadá, uma pessoa de nome Ana Rosa Kucinski Silva se apresentou a ela. Bernardo não retomou contato com a pessoa do telefonema porque acredita que o sistema repressivo continua articulado. Ou seja, segundo Bernardo, essa ação é fruto de uma reação referente a um vídeo gravado por uma atriz brasileira convidada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para personificar o desaparecimento de Ana Rosa. Nesse sentido, a obra K. contribui de forma categórica à problemática em que se circunscrevem as vítimas diretas e os sobreviventes do regime militar no Brasil, conduzindo esse problema aos debates acerca da história, do trauma e da memória e contribuindo decisivamente com estudos de passados traumáticos.

Bernardo estimula-nos ao imaginário individual e de ordem coletiva que funciona como via de regra na constituição dos fatos. Assim como o luto continua em aberto, uma vez que não foi possível oferecer às vítimas uma lápide devido à ausência dos corpos, esta mesma ausência causa transtornos aos familiares dos desaparecidos políticos, que ainda buscam por certezas e justiça para seus entes, baseados nos debates constantes acerca da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em desacordo com os crimes de qualquer natureza cometidos contra a humanidade. No encalço dessas problematizações cabe ainda salientarmos a importância dos debates no Brasil acerca da temática “Justiça de Transição”. Este é um assunto que tem ganhado espaço nos debates acadêmicos devido aos “conceitos de legados autoritários, justiça transicional e política do passado como são hoje aplicados e analisa também as formas de justiça transicional que estavam presentes durante os processos de democratização na Europa do Sul” [18].

Por fim, o livro resenhado atribui aos pesquisadores e intelectuais de um modo geral a tarefa de investigar pistas, rastros e vestígios em busca de respostas sobre esse passado traumático que sucumbiu com a vida de pessoas como a de Majer Kucinski – pelos tormentos da culpa, do trauma e da morte causados pelo cansaço e exaustão ao procurar sua filha – e de Ana Rosa Kucinski Silva, que até agora continua sem um túmulo, sem uma lápide que a insira num tempo que contabilize seu nascimento e morte, pois, conforme os judeus, “Sem corpo não há rito, não há nada”.

Notas

2. É importante deixar claro que o livro de Bernardo Kucinski se situa no âmbito das discussões teóricas da egiptóloga Aleida Assmann, a qual, por meio do livro Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural (ASSMANN, 2011), nos oferece a oportunidade de analisar que o resgate da memória traumática, referente a acontecimentos do nosso passado recente, nos remete a posicionarmos contra as catástrofes, atrocidades dos eventos traumáticos. Um dos exemplos chave que podemos apontar nesta abordagem, o Holocausto.

3. Conferir o texto do historiador Edgar Salvadori de Decca A humilhação: ação ou sentimento? (MARSON; NAXARA, 2005). Nesse texto, Decca contribui sobre o que é humilhação. Segundo o autor, diante de várias características que a palavra carrega, a humilhação é o processo em que a “vítima é forçada à passividade, sem ação e sem socorro” (p. 108).

4. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 dez 1948. Disponível em . Acesso em: 30 out. 2015.

5. Vale lembrar que, para o historiador Carlo Ginzburg as pistas e vestígios do passado são fundamentais ao historiador no processo investigativo de determinado acontecimento histórico. Dessa maneira, através deste pressuposto, reconhecido como “paradigma indiciário” é que, também, podemos ler as lacunas e os silêncios que muito nos contribuem sobre aquele objeto de estudo e o tempo em que ele está imerso. Conferir: Sinais: Raízes de um paradigma indiciário (GINZBURG, 1989, pp. 143-179).

6. Nesse sentido, Hayden White expõe a problemática de que o historiador em seu processo de escrita, onde a leitura das fontes se apresenta como norteadora, deve se utilizar da sutileza e da herança cultural literária que ele carrega, oferecendo, portanto, um sentido específico ao que objetiva narrar. Dessa forma, para White essa ação é uma “operação literária e criadora de ficção”. Consultar: O texto histórico como artefato literário (WHITE, 1994, p.104).

7. “O iídiche é falado pelos judeus da Europa Oriental e teve seu apogeu no início do século XX, quando se consolidou sua literatura; sofreu rápido declínio devido ao Holocausto e à adoção do hebraico pelos fundadores do Estado de Israel” (p. 13).

8. É importante considerar neste contexto que para Paul Ricouer o testemunho se configura como elemento muito importante para que o historiador possa resgatar o passado. Conferir: O testemunho (RICOUER, 2007, p.170).

9. O historiador italiano Carlo Ginzburg argumenta que a relação entre narrações ficcionais e narrações históricas “devia ser enfrentada da maneira mais concreta possível”. Ou seja, nota-se que tanto para Hayden White quanto para Carlo Ginzburg as duas formas de narrativas são fundamentais em nossa operação historiográfica. Conferir o livro O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício (GINZBURG, 2007, p.12).

10. Consultar: É isto um homem? (LEVI, 2000).

11. Cabe salientarmos que para melhor apreensão acerca deste assunto é preciso consultar a obra: A interpretação dos Sonhos (FREUD, 2001, p.554).

12. É interessante notar que os estudos do historiador Dominick LaCapra sobre trauma são bastante sugestivos justamente ao enfoque que ele dá aos traumas de pessoas que testemunharam eventos históricos estarrecedores. Observa-se que as vítimas sentem-se como sua linguagem ficara comprometida devido aos efeitos psicológicos. Pois as testemunhas oculares de eventos limites carregam imagens do ocorrido e que vem a lhe causar tormentos constantes diante das cenas que lhes vem à memória. Conferir: Writing History, Writing Trauma (LACAPRA, 2001).

13. Consultar a obra: A interpretação dos Sonhos (FREUD, 2001, p.581).

14. O historiador Francês Pierre Nora à frente da Associação Liberdade para a História na França tem chamado a atenção acerca da liberdade dos historiadores em representar os crimes cometidos contra a humanidade. Pois essa assertiva vai à contramão de políticas públicas que muitas vezes procuram através de leis e ações políticas salvaguardar o retrato desses acontecimentos à luz de interesses políticos ou de natureza particular. Conferir o livro: Liberté pour l’histoire (NORA, 2008).

15. Vale lembrar que a esta altura do livro, Bernardo Kucinski, ao referir-se à uma casa em Petrópolis ele faz alusão à existência da Casa da Morte em Petrópolis no Rio de Janeiro para onde foram levados os presos políticos e lá, massacrados.

16. A abordagem da historiadora argentina Maria Ines Mudrovcic acerca de testemunhas oculares se faz bastante pertinente nesta resenha no que concerne à abordagem referente à dor psicológica causada no indivíduo que testemunhara a um evento limite. Segundo Mudrovcic, testemunha ocular é todo indivíduo que vê o que acontece diante os seus olhos, portanto, no caso de Jesuína, ela testemunhara os horrores à sua frente. Logo, essas experiências desencadearam com o tempo, trauma. Conferir: El debate em torno a la representación de acontecimientos límites del pasado reciente: alcances del testimonio como fuente (MUDROVCIC, 2007, pp. 127-150).

17. Os estudos do literato Márcio Seligmann-Silva vem a calhar com questões acerca de passado traumáticos assim como os trabalhos da historiadora Maria Ines Mudrovcic. As expressões eventos limites, trauma, literatura, ficção, história e memória são bastante recorrentes nas obras de Seligmann-Silva, dentre elas, consultar: A História como Trauma (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.78).

18. Consultar: O Passado que não Passa: A sombra das Ditaduras na Europa do Sul e na América Latina (COSTA; MARTINHO, 2012, p.5).

Referências

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Trad. de Paulo Soethe. Campinas: Editora da UNICAMP, 2011.

MARSON, Izabel; NAXARA, Márcia (org.). Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU, 2005.

COSTA, António Pinto; MARTINHO, Francisco Carlos Palomantes. O Passado que não Passa: A sombra das Ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

DECCA, Edgar Salvadori de. A humilhação: ação ou sentimento? In: MARSON, Izabel; NAXARA, Márcia (Org.). Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU, 2005.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos. Trad. De Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Trad. de Frederico Carotti. 2ª ed. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

_________________. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Trad. de Rosa Freire d’ Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LACAPRA, Dominick. Writing History, Writing Trauma. Baltimore: The Johns Hopkins Universty Press, 2001. LEVI, Primo. É isto um homem? Trad. de Luigi Del Re. 3ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006.

MUDROVCIC, María Inés (editora). Pasados em conflicto: Representación, mito y memoria. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2009.

MUDROVCIC, María Inés. El debate em torno a la representación de acontecimientos límites del pasado reciente: alcances del testimonio como fuente. Diánoia. México, v.52, n 59, pp. 127-150, 2007.

NORA, Pierre; CHANDERNAGOR, Françoise. Liberté pour l’histoire. Paris: CNRS Éditions, 2008.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. de Alain François. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. (orgs.). Catástrofes e representação. São Paulo: Escuta, 2000.

WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994

Varlei da Silva1 – Mestrando em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]


KUCINSKI, Bernardo. K.: relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de: SILVA, Varlei da. As lacunas e os silêncios de uma busca que não terminou. Aedos. Porto Alegre, v.9, n.20, p.595-605, ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

A Polônia e seus emigrados na América Latina (até 1939) | Jerzy Mazurek

Dos milhões de imigrantes poloneses que se espalharam ao redor do planeta, mais de cem mil chegaram ao Brasil entre 1869 e 1939, ocupando majoritariamente colônias rurais nos estados do sul do país. Esse grupo, apesar de menor em comparação com as imigrações italiana, portuguesa, alemã ou espanhola, faz parte do processo mais amplo da imigração europeia massiva para a América Latina entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Um fenômeno de grandes proporções, como afirma Devoto, “la migración de masas fue uno de lós fenómenos más característicos del mundo euroatlántico entre los siglos XIX y XX” (2007, p.531), e que moldou a configuração dos países latino-americanos em diferentes aspectos, incluindo o Brasil, no qual esteve presente em diversas regiões, sendo de maneira mais forte em termos populacionais nas regiões sul e sudeste brasileira.

Como parte deste processo mais amplo, a e/imigração polonesa para a América Latina, de modo geral e para o Brasil, de maneira específica, tem sido um tema com múltiplas possibilidades de análise, mas que dentro dos estudos migratórios ainda demanda pesquisas empíricas rigorosas que apontem novos dados sobre a presença deste grupo étnico em terras americanas. Vários fatores explicam o fato de as produções acadêmicas sobre este grupo migrante ainda serem restritas (WEBER, WENCZENOVICZ, 2012) e estarem em um estágio inicial, especialmente no caso da literatura em português no Brasil. Por várias décadas, cientistas sociais poloneses em seu país vêm se debruçando sobre a temática da emigração polonesa, mas muitas vezes, em razão da escrita em polonês, seus trabalhos ficavam circunscritos à realidade local. Um exemplo de novos trabalhos que trazem avanços e contribuições para esta temática, e que permitem o acesso ao leitor brasileiro, é o livro A Polônia e seus emigrados na América Latina (até 1939) de Jerzy Mazurek.

Mazurek é nascido na Polônia e estudou história e biblioteconomia na Universidade de Varsóvia, onde completou seus estudos com uma pós-graduação em museografia, história da arte e em administração. Atualmente é Vice-Diretor do Muzeum Historii Polskiego Ruchu Ludowego (Museu Histórico do Movimento do Povo Polonês), em Varsóvia (desde 1998), e também professor na área de História do Brasil no Instytut Studiów Iberyjskich i Iberoamerykańskich Uniwersytetu Warszawskiego (Instituto de Estudos Ibéricos e Iberoamericanos, da Universidade de Varsóvia).

O professor é autor de vasta bibliografia sobre os poloneses no Brasil e América Latina como Kraj a emigracja: ruch ludowy wobec wychodźstwa chłopskiego do krajów Ameryki Łacińskiej (do 1939 roku) (O país e a emigração: o movimento popular contra a emigração dos camponeses para os países da América Latina (até 1939)) de 2006; Piórem i czynem Kazimierz Warchałowski (1872-1943) – pionier osadnictwa polskiego w Brazylii i Peru (Penas e ação Kazimierz Warchałowski (1872-1943) – um pioneiro da colonização polonesa no Brasil e no Peru) de 2013; e a participação no livro bilíngue Polacy pod Krzyżem Południa (Os Poloneses sob o Cruzeiro Do Sul) de 2009. Além de ser redator de outras obras com temas semelhantes através da edição da Biblioteka Iberyjska (Biblioteca Ibérica), vinculada ao supramencionado instituto do qual o professor Mazurek faz parte.

O volumoso livro (458 páginas) traduzido por Mariano Kawka e publicado pela editora Espaço Acadêmico (Goiás), é uma versão modificada e ampliada do mencionado livro “O país e a emigração: o movimento popular contra a emigração dos camponeses para os países da América Latina (até 1939)”, sendo o modelo daquelas obras que se tornam referência obrigatória para os pesquisadores que querem iniciar estudos sobre um tema específico como a presença dos imigrantes poloneses na América Latina. O texto é escrito com base numa ampla fonte documental que varia de documentos oficiais do Brasil, Argentina e Polônia; impressos de ficção, relatos de viagem, memórias, romances, produção científica; documentos pessoais; pesquisa em fontes paroquiais; análise de periódicos de diferentes países, artigos científicos e de divulgação, além de ampla bibliografia contemplando a produção da Polônia, Brasil e Argentina. Estes aspectos fazem com que a obra de Mazurek seja também um inventário para novas fontes sobre a história dos poloneses na América Latina e permite o cruzamento de dados e informações sobre personagens, opiniões, ações, entre outros assuntos relacionados com a imigração polonesa.

Voltado para um público mais amplo, o texto tem fluidez na leitura, acompanhado de muitas informações, com detalhamento e exploração das fontes a fim de descrever com minúcias aquilo que se propõe. O livro todo é marcado por uma exposição detalhada, a partir das fontes, da relação dos intelectuais e Estado poloneses e o processo emigratório.

O autor analisa uma diversidade de documentos (oficiais, da imprensa, romances, relatórios, crônicas, realtos de viagens, etc.) contextualizando sua postura a partir de seus produtores, seu posicionamento político e diante do fenômeno imigratório. Configurando os escritos a partir de diferentes ideologias sobre a questão nacional polonesa, a economia e as relações com os países vizinhos, minorias e países ocupantes. Além disso, leva em conta as visões sobre o Brasil e a América Latina em geral, ponderando estereótipos e análises feitas por intelectuais que estiveram nas áreas de colonização.

O foco principal é analisar como os partidos e movimentos populares, maneira pela qual Mazurek chama às agremiações partidárias ligadas aos camponeses e ao âmbito rural na Polônia durante e depois da ocupação estrangeira2, se posicionaram em relação à emigração polonesa para a América Latina. Segundo o autor, “no presente trabalho, propusemo-nos apresentar a posição do movimento popular organizado, isto é, dos partidos, facções e organizações, diante da ação colonizadora camponesa na América Latina” (2016, p.13), pensando também como os líderes populares atuaram com relação a essa coletividade emigrada, dando importância à voz dos indivíduos, suas opiniões e ações num contexto de relevância da mobilidade do campo europeu para o ultramar. Mazurek escreve a partir do país de saída dos indivíduos, considerando a emigração e a trajetória dos emigrados em outros continentes como parte fundamental da história da própria Polônia.

Uma das novidades da obra é pensar nas categorias de emigração colonizadora e emigração econômica para o caso polonês. A primeira, centrada na criação de colônias (rurais), onde o camponês recebia terras para o cultivo próprio, era o motor da emigração polonesa para a América Latina. Torna-se uma política de Estado, principalmente após a recuperação da independência e o início da utilização da emigração com fins coloniais. A segunda caracteriza o movimento para a América do Norte, podendo ser muitas vezes uma emigração individual e sazonal, focada em trabalhos urbanos ou então para períodos de colheitas no interior da Alemanha ou na produção de café em São Paulo.

Assim sendo, o livro apesar do foco centrado na relação dos partidos populares e a emigração, em virtude da multiplicidade de fontes, extensa bibliografia e temas abarcados, contribui para outros aspectos associados com a presença polonesa na América Latina. Abrange novos dados estatísticos relacionados com a saída dos emigrantes; lideranças importantes que participaram de forma ativa na promoção ou refração da emigração de camponeses; a atuação dos estados ocupantes atinentes às tentativas autonomistas polonesas no século XIX e o próprio processo emigratório; analisa também a ação da II República Polonesa frente ao problema emigratório após a independência do país, durante o período entre guerras, um tema ainda muito pouco estudado na historiografia.

O trabalho se permite ampliar o recorte temporal desde finais do século XIX até meados do XX, perpassando diferentes realidades e contextos, os quais moldaram o mapa e as mentalidades europeias. Ademais, a periodicidade pretende dar conta não apenas do processo de emigração, mas também do estabelecimento da comunidade polonesa na diáspora: seu trabalho, instituições, religiosidade, entre outros aspectos.

É importante notar que todo o livro é dividido no período anterior e posterior à Independência Polonesa em 1918, marco importante por trazer mudanças significativas na atuação de intelectuais e políticos em terras polonesas, bem como em razão das mudanças econômicas durante e após a dominação estrangeira. Leva, portanto, em consideração a pressão exercida pelas nações ocupantes (Império Russo, Alemão e Áustro-Húngaro) desde 1795-1918 sobre o campesinato polonês nas diferentes regiões, cada qual tratada com singularidade em virtude das diferentes políticas agrárias, étnicas e sociais perpetradas por aquelas nações. O segundo período, o entre guerras (1918-1939) ou da II República Polonesa, é notadamente importante, uma vez que, do ponto de vista da emigração, é o menos estudado e sobre o qual o autor aponta novos dados emigratórios: com a presença das chamadas “minorias étnicas” (ucranianos, lituanos e judeus) da Polônia Renascida entre os imigrantes (sendo inclusive o maior grupo emigrante no período), bem como a diminuição do número total daqueles que deixavam o país, seja em virtude de uma melhoria das condições na nação de partida e políticas de impedimento de saída de emigrantes, seja em função da restrição nos países de imigração (como as políticas varguistas no Brasil a partir de 1930) em função da crise mundial.

Com base nestes pressupostos, passamos propriamente a análise das diferentes partes da obra composta de quatro capítulos. O autor no primeiro capítulo discorre sobra a colonização polonesa entre 1869-1939. O objetivo geral é explicar as causas da emigração, os caminhos percorridos, os espaços de estabelecimentos e a história da colonização camponesa dos emigrantes poloneses na América Latina. Evidencia o papel das organizações sociais, educativas, culturais, religiosas, bem como a questão rural; tendo como países de destino principais o Brasil e Argentina, sobre os quais recolheu a maioria dos dados e análises. Nessa parte, o autor contempla as diferentes ondas imigratórias, isto é, as chamadas febres, sobre as quais aponta variados números estatísticos dando um panorama da quantidade do afluxo deste grupo emigratório para o Brasil.

Mazurek recorre à importância do aspecto econômico como causa propulsora da emigração dos camponeses. A tese da passagem de sistemas semi-feudais para o capitalismo e consequentemente do superpovoamento dos campos, da minifundização agrária e, assim, da disputa pela terra na Polônia, a qual relegava miséria e problemas sociais para o camponês polonês, são razões pelas quais o autor sugere o desenvolvimento do fenômeno massivo emigratório.

Após esse exame contextual, Mazurek no segundo capítulo ocupa-se mais centradamente das opiniões dos intelectuais poloneses durante o período de domínio estrangeiro e as políticas emigratórias polonesas no entre guerras. Demonstra as mudanças de concepção referentes a emigração, flutuando de movimentos restritivos por parte de periódicos de Varsóvia (então sob ocupação russa), até grupos preocupados com a organização e o apoio aos emigrantes, como a Sociedade Comercial e Geográfica de Lwów (na Galícia austríaca). Consultando fontes escritas em livros, romances e jornais, permite identificar grupos pró e contra as saídas dos camponeses, com argumentos que variavam desde a necessidade de despressurização do campo, os problemas dos países de imigração e a penúria pela qual passavam os emigrantes, até a eminente perda de elementos que contribuiriam com a nação polonesa, seja econômico seja cultural e socialmente. Portanto, demonstra como havia momentos de inflexão no raciocínio dos intelectuais poloneses, ora preocupados com a situação econômica do país, ora com a situação política e a luta pela independência ou a manutenção dela.

No terceiro capítulo, analisando o período anterior a independência, Mazurek descreve as diferenças entre a Galícia (região ocupada pela Áustria-Hungria), o Reino (região ocupada pela Rússia) e a zona de ocupação prussiana. A primeira com uma garantia de maior liberdade para os poloneses permitia uma atuação ampla de movimentos camponeses e partidos, através de um autogoverno3 e de intelectuais, os quais participavam de eleições, das decisões e emitiam opiniões sobre a saída camponesa em direção a América (tanto do Norte como a Latina). Assim, era destacada no âmbito rural da Galícia a emergência de uma legislação polonesa própria, que problematizava o fenômeno emigratório. Além da ação direta de grupos com objetivos de guiar ou impedir os camponeses de emigrarem como a mencionada Sociedade Comercial e Geográfica. Apesar dessa liberdade de ação, a região era a mais pobre das três partilhas polonesas, onde os processos de desagregação no campo estavam mais avançados e relegavam piores condições de vida aos camponeses, o que em geral conduzia à mobilidade rumo ao Novo Mundo.

No Reino a emigração era ilegal e havia um controle por parte do Império Russo para impedir a evasão dos camponeses poloneses. Através da imprensa, fruto dos movimentos populares poloneses da região, eram emitidas a maior parte das opiniões acerca do movimento emigratório, que apesar da proibição, acontecia em larga escala, especialmente no final do século XIX. A questão da luta pela independência era contribuinte para a repressão estatal russa, uma vez que ao longo do século XIX emergiram movimentos independentistas na região e conflagraram-se conflitos com as autoridades russas.

As organizações populares polonesas, ainda que com menor espaço para ação, existiam e propagavam suas ideias pelos periódicos. Nesse contexto, a emergência de um sentimento de desnacionalização, percebia os emigrantes como uma “perda” para a “nação” e uma característica de esvaziamento da luta pela recuperação da condição independente. Apesar da identificação dos problemas rurais por parte da intelectualidade, em geral, havia uma intenção de impedir a saída dos camponeses poloneses ou então a perspectiva de “mal necessário”, um escape em função da pobreza no campo e da repressão russa.

Na Prússia (depois Alemanha) a questão era diferente das duas anteriores. Existia um projeto estatal de germanização e de enfrentamento da “questão polonesa” como um “perigo” para o Estado, de modo que a repressão e o controle eram muito maiores. Nesse ínterim, a limitação de publicações e do uso da língua polonesa eram mais evidentes e existia o impedimento da conformação de organizações especificamente polonesas, mesmo no campo. Também, a emigração ultramarina era minorada em função de uma migração interna dentro dos diferentes estados alemães para trabalhos sazonais. Ainda assim, o tema da emigração importava mais ainda para a intelectualidade polonesa local, uma vez que como existia uma política alemã da desnacionalização, havia um estímulo por parte do estado germânico para a saída de camponeses poloneses que vendiam suas terras a alemães, garantindo a ocupação do território. Este fato era visto como uma forma de acelerar o processo de germanização da região, e portanto, as produções sobre o fenômeno por parte da intelectualidade polonesa são de movimentos contrários a emigração de camponeses poloneses a fim de evitar o aceleramento da germanização e impedir uma possível retomada do Estado Nacional.

Ao verificar as múltiplas opiniões e discussões promovidas nas regiões partilhadas polonesas, Mazurek explora o fato de a emigração para a América Latina, devido aos números que atingia, ser vista como um “problema” a ser resolvido, devendo ser impedida ou organizada. O fato é que se torna uma questão a ser pensada, refletida, teorizada e resolvida pela intelectualidade polonesa nas regiões ocupadas, buscando-se avaliações e proposições para lidar com o fenômeno existente, que se tornava cada vez mais massivo e vai ser interrompido apenas com a Primeira Guerra Mundial em 1914.

Por último, no capítulo quatro, o autor se concentra no período da Polônia renascida, após o fim da Primeira Guerra e no momento de uma retomada – ainda que numericamente inferior que as décadas anteriores – no fenômeno emigratório até 1939, quando outra guerra termina novamente com a independência polonesa. Com o retorno da existência da nação no mapa europeu, o autor passa a concentrar-se no jogo político-partidário polonês, nas questões legislativas e executivas, os debates levados a cabo pela intelectualidade na Polônia, bem como continua analisando os periódicos pertencentes especificamente aos partidos populares.

Mazurek também destaca a presença de políticas de colonização com ideias imperialistas coordenadas por sociedades particulares com apoio estatal, as quais visavam também a colonização de outras regiões, para além do Brasil e Argentina, como Peru e Bolívia. Um exemplo eram as atividades da Liga Morska i Kolonialna4.

Entre 1918 e 1939, a tensão no campo e os motivos emigratórios continuavam basicamente os mesmos, desenvolvidos por diversas crises econômicas. Neste momento, a questão da reforma agrária passa a ser central para a maioria dos partidos populares e camponeses, sendo a emigração vista como uma consequência da não consecução da remetida reforma. Múltiplos debates legislativos são levados em consideração, ademais da análise dos programas dos diferentes partidos, suas ideologias e o modo como a emigração era descrita por seus membros a partir de temáticas centrais (impedimento, organização, reforma agrária, colonização), que circulavam nos jornais partidários.

O fato é que, com as restrições impostas pelos países de imigração e consequentemente a diminuição do fluxo de poloneses para a América Latina, o assunto também ganha menos destaque na imprensa partidária. A aproximação da guerra e múltiplos conflitos entre diferentes etnias dentro do território polonês, conduzem ao pensamento de utilização do fenômeno emigratório para a “expulsão” das minorias étnicas do território polonês e a criação de colônias ultramarinas ligadas ao estado, com ideias imperialistas afirmados e, dessa forma, a constituição de instituições com o fito de estabelecer colônias polonesas para o florescimento do país, usando, quiçá, às já existentes comunidades do Brasil e Argentina fruto da diáspora das décadas anteriores.

Em suma, para Mazurek,

o capitalismo era o catalisador de lentas transformações sociais, a mais importante das quais era a libertação da mão de obra agrícola do sistema da servidão. Isso, no entanto, provocou o surgimento de uma enorme população sem terra. Essa massa não podia ser absorvida pelo vagaroso desenvolvimento das cidades e da indústria. A fome de terra dos camponeses e a pouca capacidade do mercado para absorver a mão de obra em excesso tornaram-se as causas da emigração da população rural em busca de melhores condições de vida. A inicialmente lenta emigração aos países da Europa Ocidental e à América do Norte transformou-se num movimento colonizador maciço especialmente no Brasil […] muitas vezes definidos como “febre brasileira” (MAZUREK, 2016, p.405).

O livro traz uma boa descrição dos aspectos concernentes a imigração polonesa e sua vinculação com os movimentos populares ligados ao campo. Em virtude da sua apropriação mais ampla, apresenta um trabalho empírico notável usando fontes de múltiplos países e diferentes idiomas. Um esforço de problematização e análise de diferentes realidades num espectro temporal e espacial ampliado, os quais permitem a constituição de uma obra de referência importante para qualquer estudioso do tema, sendo um significativo elemento para a configuração da historiografia sobre os poloneses no Brasil, escrita em português para leitores nativos neste idioma.

Apesar dos números menores que outros grupos migrantes, os poloneses no Brasil se adaptaram ao país de acolhida e participaram da sua vida social, constituindo um grupo étnico, que longe de ser homogêneo, em muitos aspectos preservou suas especificidades ao mesmo tempo em que se assimilou. Pesquisar a história da imigração polonesa é pesquisar a História do Brasil, em que o fenômeno imigratório massivo trouxe alterações à sociedade brasileira e ajudou na sua conformação.

A historiografia sobre os poloneses na América Latina e destacadamente no Brasil vem aos poucos se desenvolvendo. Um maior relacionamento entre pesquisadores dos dois lados do Atlântico e produções que permitam o acesso linguístico aos estudiosos são meios de avançar na construção do conhecimento sobre as migrações, a fim de renovar estes estudos e propor novos problemas e temas de pesquisa a este assunto que apesar de ser muito trabalhado, como objeto gerador de pesquisas, está longe de esgotar-se.

Notas

1 Doutorando em História na Universidade Federal do Paraná. Contato: [email protected]. Resenha recebida em 10 de novembro de 2016.

2 A Polônia sofreu três partilhas no século XVIII entre Áustria (depois Áutro-Hungria), Rússia e Prússia (depois Alemanha): a primeira em 1772, depois 1793 e finalmente 1795 que acaba definitivamente com a independência daquela nação, a qual retornaria apenas após a Primeira Guerra Mundial.

3 Na Galícia, aos poloneses era permitido escolher dirigentes igualmente poloneses em diversos níveis de atuação política, incluindo representantes para o Parlamento em Viena.

4 A Liga Marítima e Colonial era uma das mais importantes organizações que procurava áreas de colonização para os emigrantes poloneses. A Liga almejava através da colonização dominar territórios na América do Sul e África. Os planos de colonização não ultrapassaram o estágio de planos e desmoronaram-se nos fins dos anos trinta.

Referências

DEVOTO, Fernando J. La inmigración de ultramar. In: TORRADO, Susana (comp). Población y bienestar en la Argentina del primero al segundo Centenario. Buenos Aires: Edhasa, 2007.

MAZUREK, Jerzy. A Polônia e seus emigrados na América Latina (até 1939). Goiânia: Espaço Acadêmico, 2016.

WEBER, Regina. & WENCZENOVICZ, Thaís J. Historiografia da imigração polonesa: avaliação em perspectiva dos estudos sobre o Rio Grande do Sul. História UNISINOS, vol. 16, p.159-170, 2012.

Rhuan Targino Zaleski Trindade1 –  Doutorando em História na Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]


MAZUREK, Jerzy. A Polônia e seus emigrados na América Latina (até 1939). Goiânia: Espaço Acadêmico, 2016. Resenha de: TRINDADE, Rhuan Targino Zaleski. Polska emigracja: revisitando e ampliando o tema da presença polonesa na América Latina. Aedos. Porto Alegre, v.9, n.18, p.297-305, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

A memória coletiva | Maurice Halbwachs

Maurice Halbwachs nasceu na França em 1877 e foi morto em 1945 em um campo de concentração nazista na Alemanha. Consagrou-se como um importante sociólogo da escola durkheimiana. Antes de se interessar pela sociologia, estudou filosofia na École Normale Supérieure em Paris com Henry Bergson tendo sido influenciado por ele. Halbwachs é também responsável pela inauguração do campo de estudos sobre a memória na área das ciências sociais, pois até então, as áreas que se ocupavam dos estudos da memória, eram a psicologia e a filosofia.

Halbwachs criou a categoria de “memória coletiva”, por intermédio da qual postula que o fenômeno de recordação e localização das lembranças não pode ser efetivamente analisado se não for levado em consideração os contextos sociais que atuam como base para o trabalho de reconstrução da memória. É, portanto, mediante a categoria de “memória coletiva” de Halbwachs que a memória deixa de ter apenas a dimensão individual, tendo em vista que as memórias de um sujeito nunca são apenas suas ao passo que nenhuma lembrança pode coexistir isolada de um grupo social.

Essa categoria de análise trouxe contribuições valiosas para os trabalhos na área da sociologia, psicologia, história, entre outras, influenciando a produção de importantes trabalhos. Aqui no Brasil, por exemplo, podemos citar Memória e sociedade: lembranças de Velhos de Ecléa Bosi, cuja primeira publicação data de 1979 e que constitui uma referência para estudos da memória.

A obra aqui analisada A memória coletiva, é composta por quatro capítulos e foi publicada pela primeira vez em 1950, cinco anos após a morte do autor, em Buchenwald no campo de concentração nazista na Alemanha. Para tanto, a memória na concepção de Halbwachs é um processo de reconstrução, devendo ser analisada levando-se em consideração dois aspectos: o primeiro refere-se ao fato de que não se trata de uma repetição linear dos acontecimentos e vivências no contexto de interesses atuais; por outro lado, se diferencia dos acontecimentos e vivências que podem ser evocados e localizados em um determinado tempo e espaço envoltos num conjunto de relações sociais.

Para este, a lembrança necessita de uma comunidade afetiva, cuja construção se dá mediante o convívio social que os indivíduos estabelecem com outras pessoas ou grupos sociais, a lembrança individual é então baseada nas lembranças dos grupos nos quais esses indivíduos estiveram inseridos. Desse modo, a constituição da memória de um indivíduo resulta da combinação das memórias dos diferentes grupos dos quais está inserido e consequentemente é influenciado por eles, como por exemplo, a família, a escola, igreja, grupo de amigos ou no ambiente de trabalho. Nessa ótica, o indivíduo participa de dois tipos de memória, a individual e a coletiva.

Segundo Halbwachs o indivíduo que lembra está inserido na sociedade na qual sempre possui um ou mais grupo de referência, a memória é então sempre construída em grupo, sendo que “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva”, como se pode ver, o trabalho do sujeito no processo de rememoração não é descartado, visto que as “lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós” (HALBWACHS, 2013, p.30). Dessa maneira, a lembrança é resultado de um processo coletivo, estando inserida em um contexto social específico. As lembranças permanecem coletivas e são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente o sujeito se encontre envolvido. Isso acontece na medida em que o indivíduo está sempre inserido em um grupo social.

Ainda que apenas um indivíduo tenha a percepção de ter vivenciado certos eventos e contemplado objetos, acontecimentos e etc., nos quais apenas ele viu/presenciou, mesmo assim as lembranças acerca desses continuam sendo coletivas, podendo ainda ser evocadas por outros que não necessariamente vivenciaram e/ou presenciaram tais acontecimentos, visto que para “confirmar ou recordar uma lembrança, não são necessários testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma material e sensível” (HALBWACHS, 2013, p.31). Em outra passagem o sociólogo assinala a contribuição da memória coletiva no processo de rememoração:

Uma ou mais pessoas juntando suas lembranças conseguem descrever com muita exatidão fatos ou objetos que vimos ao mesmo tempo em que elas, e conseguem até reconstituir toda a sequência de nossos atos e nossas palavras em circunstâncias definidas, sem que nos lembremos de nada de tudo isso (HALBWACHS, 2013, p.31).

No entanto, é preciso assinalar que para recordar um evento passado, não é necessário apenas que ele seja evocado por outros para que o sujeito lembre-se dele. É preciso que o indivíduo traga consigo algum “resquício” da rememoração para que os conjuntos de testemunhos exteriores se constituam em lembranças. No processo de rememoração, é importante que a memória individual esteja em consonância com a memória de outros membros do grupo social. Para o autor, somente se pode falar em memória coletiva se evocarmos um evento que também fez parte da vida do grupo no qual fazemos parte. No processo de rememoração é necessário que os dados sejam comuns entre os membros do grupo.

Segundo Halbwachs para se recordar, é necessário que o nosso pensamento não deixe de concordar, em certo ponto, com os pensamentos dos outros membros do grupo. Desse modo, esquecer determinado período/fato/evento de nossa vida é perder também o contato com aqueles que compunham nosso grupo social. Para Maurice:

Não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstituição funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo (HALBWACHS, 2013, p.39).

O autor assinala que é necessário que as lembranças sejam reconstruídas e reconhecidas pelos membros do grupo. A partir do momento que deixa de existir esse compartilhamento, os membros desse grupo social podem-se fazer os seguintes questionamentos:

Que importa que os outros estejam ainda dominados por um sentimento que outrora experimentei com eles e que já não tenho? Não posso mais despertá-lo em mim porque há muito tempo não há mais nada em comum entre mim e meus antigos companheiros. Não é culpa da minha memória nem da memória deles. Desapareceu uma memória coletiva mais ampla, que ao mesmo tempo compreendia a minha e a deles (HALBWACHS, 2013, p.39 – 40).

Halbwachs identifica que ao lado da memória coletiva, há também a chamada memória individual. Esta por sua vez, pode ser entendida como um ponto de vista sobre a memória coletiva, ponto de vista este, que pode sofrer alterações de acordo com o lugar que ocupamos em determinado grupo, assim como também está condicionado às relações que mantemos com outros ambientes. A assimilação das lembranças pode variar de membro para membro, visto que a quantidade de lembranças que são transportadas pela memória coletiva com maior ou menor intensidade, é realizada a partir do ponto de vista de cada sujeito.

A memória individual não está de todo isolada, ao passo que toma como referência sinais externos ao sujeito, isto é, a memória coletiva. Para o sociólogo, o funcionamento da memória individual não é “possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente” (HALBWACHS, 2013, p.72). Para tanto, é importante assinalar que as lembranças que se destacam em primeiro plano da memória de um grupo social, são aquelas que foram vivenciadas por uma maior quantidade de integrantes desse grupo. Existe então, uma estreita relação entre memória coletiva e memória individual. Para Halbwachs:

para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser constituída sobre uma base comum. (HALBWACHS, 2013, p.39)

Os suportes em que a memória individual está assentada, dizem respeito as percepções produzidas pela memória do grupo, assim como pela memória histórica. A convivência em um grupo atua como base para formação de uma memória individual e que, portanto, carregará “marcas” da memória coletiva do grupo social no qual está inserido. O sociólogo apresenta a distinção de duas categorias de memórias, uma que denomina interna (autobiográfica) e outra social (histórica), sendo que a primeira recebe reflexos da segunda, visto que a memória individual faz parte da história geral, uma vez que a segunda é bem mais extensa que a primeira. Todavia, ela só representa para nós o passado de uma maneira um tanto resumida, por outro lado a memória de nossa vida nos apresenta um panorama mais longo e contínuo.

Outro ponto importante na obra de Maurice Halbwachs, é que segundo o mesmo, nossa memória se apega mais ao fato vivido do que aquele que entramos em contato através dos livros, por exemplo. Nesse sentido, a história não é tida como um elemento importante para o processo de preservação da memória. É lícito afirmar que por história, Halbwachs entende não uma sucessão cronológica de acontecimentos, “mas tudo o que faz com que um período se distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas em geral nos apresentam apenas um quadro muito esquemático e incompleto” (HALBWACHS, 2013, p.79). No entanto, é mediante a memória histórica que um fato exterior à nossa vida deixa sua impressão em determinado momento e a partir dessa impressão é que é possível recordar esse momento.

O indivíduo isolado de um grupo social não seria capaz de construir qualquer tipo de experiência, assim como também não é possível que mantenha qualquer tipo de registro sobre o passado. Todo o contexto no qual o sujeito está envolto, contribui de alguma maneira para reconstruir os vestígios e impressões de um determinado momento. Nessa perspectiva, a lembrança é pensada como “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções feitas em épocas anteriores”, da qual “a imagem de outrora já saiu bastante alterada” (HALBWACHS, 2013, p.91).

As lembranças, sobretudo, são representações que se baseiam mesmo que em partes, em testemunhos e deduções, reconstrução, especialmente nos seguintes aspectos: de um lado porque não é mera repetição dos fatos/eventos/vivências que se estabeleceram no passado, mas acima de tudo, por ser responsável pelo resgaste desses acontecimentos, que se dão a partir de interesses e preocupações atuais, por outro lado, se diferencia da série de acontecimentos que podem ser facilmente localizados em um determinado tempo, definidos mediante um conjunto de relações sociais. Nesse processo, os grupos sociais, possuem um papel essencial para atualização e complementação das lembranças individuais mediante o confronto de testemunhos entre seus membros.

Halbwachs diverge de Bergson ao postular que a memória não permanece intacta em uma “galeria subterrânea”, mas sim na sociedade, desta sai todas as indicações necessárias para reconstruir partes do passado que, por sua vez se apresenta de maneira incompleta e que o indivíduo acredita que tenha saído inteiramente de sua memória.

A memória coletiva atrela as imagens de fatos passados a crenças e necessidades do presente. Nesta, o passado passa permanentemente por um processo de reconstrução, vivificação e consequentemente também de ressignificação. Possui como “característica” transformar fatos do passado em imagens e narrativas sem rupturas, isto é, tende sempre para uma relação de continuidade entre o passado e o presente, busca reestabelecer a unidade de todos os aspectos, que com o passar dos tempos representou dentro do grupo, a ruptura. Se caracteriza também pela corrente contínua de pensamento, uma continuidade que não se atém no campo da artificialidade, pois não guarda nada do passado, senão o que está vivo, ou que se encontra na memória do grupo que a contém.

Diante disso, Maurice lança então duas categorias, a memória coletiva e a histórica, cujas definições são divergentes. Ao passo que memória histórica na concepção do sociólogo, se constitui em uma categoria infundada, visto que associa termos que se apresentam significados opostos. Para ele, a história é a reunião dos fatos que ocupam “maior” lugar na memória da sociedade. Entretanto, os acontecimentos/eventos narrados passam por um processo de seleção, são “selecionados, classificados segundo necessidades ou regras que não se impunham aos círculos dos homens que por muito tempo foram repositório vivo” (HALBWACHS, 2013, p.100). A história nesse sentido inicia no instante em que termina a tradição, isto é, no momento em que ocorre o apagamento da memória social.

A memória histórica visa produzir imagens unitárias do processo histórico, diferentemente da memória coletiva, a memória histórica busca “respostas” para o presente, no passado. Uma das marcas da história é a descontinuidade, pois cada fato encontra-se “separado do que o precede ou o segue por um intervalo, em que se pode até acreditar que nada aconteceu” (HALBWACHS, 2013, p.109), este, segundo o sociólogo é um dos principais fatores que diferencia a memória coletiva da memória histórica.

Para tanto, a memória coletiva se distingue da história em pelo menos dois aspectos. O primeiro leva em consideração o fato de que a memória se constitui em uma corrente de pensamento contínuo, não ultrapassando os limites do grupo, ao passo que na história se tem a impressão de que tudo passa por um processo de renovação. O segundo ponto de diferenciação para Halbwachs é que existem muitas memórias coletivas, ao ponto que se “pode dizer que só existe uma história” (HALBWACHS, 2013, p.105).

Outra questão que Halbwachs levanta em sua obra, diz respeito a relação entre memória e espaço. Para ele, a partir do momento em que um grupo social se encontra inserido em um espaço, passa então a moldá-lo a sua imagem, isto é, a suas concepções, valores, ao passo que também se adapta a materialidade do lugar que resiste a sua “influência”. Para o autor “cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentido que só é inteligível para os membros do grupo, por que todas as partes do espaço que ele ocupou correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da vida em sua sociedade” (HALBWACHS, 2013, p.160).

A memória coletiva é compreendida/defendida por Halbwachs como processo de reconstrução do passado vivido e experimentado por um determinado grupo social. Desse modo, a obra deste sociólogo, oferece contribuições pertinentes para o trabalho com a memória, visto que sua categoria de memória coletiva permite compreender que o processo de rememoração não depende apenas do que o indivíduo lembra, mas que suas memórias são de certo modo, partes da memória do grupo a qual pertence. No entanto, o sociólogo não descarta a memória individual, que pode ser pensada como “memória ressignificada”, ou seja, a interferência da subjetividade do indivíduo no processo de rememoração. Não desconsiderando, então a atuação do sujeito.

Giuslane Francisca da Silva – Mestranda em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]


HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2013. Resenha de: SILVA, Giuslane Francisca da. Aedos. Porto Alegre, v.8, n.18, p.247-253, ago., 2016.Acessar publicação original [DR]

El Canon del Holocausto | Frederico Finchelstein

Um cânone corresponderia a uma verdade inabalável, uma regra que seria imposta, de forma que nenhuma outra interpretação sobre determinado assunto fosse possível.2 Por vezes, nos deparamos com este tipo de “verdade” no tempo presente, vindo a ser consolidada ao longo do tempo pela Historiografia, constituindo-se como uma palavra de respeito acerca do assunto. Durante anos, autores como Raul Hilberg, Saul Friedländer, Martin Broszat, ou Hannah Arendt, se dedicaram ao estudo do Shoah – nome dado pela Historiografia israelense, e seus adeptos, ao extermínio dos judeus europeus pelos nazistas – constituíram-se como verdadeiros cânones sobre o tema, opiniões que não poderiam ser contrariadas e formavam uma regra geral no que diz respeito à temática. Os estudos acerca do extermínio dos judeus europeus durante os anos da Segunda Guerra Mundial, principalmente nos anos que correspondem à Solução Final – 1942-1945 – durante muito tempo, ficaram adormecidos, ao passo que estudar o Shoah, um trauma ainda recente no passado europeu, era demasiado incômodo devido à carga de sensibilidade gerada ao se discutir o tema.

Durante anos, uma das principais fontes para o estudo sobre o massacre permaneceu adormecida, não encontrando quem fosse capaz de revelá-la. Essa fonte se chama testemunho. Grande parte da historiografia do holocausto se debruçou diante do testemunho como sua principal fonte para compreender o que ocorreu no Lager durante os anos do extermínio. É através dos retratos de sobreviventes dos campos de concentração, que podemos chegar mais próximos de compreender o mal colocado em prática pelo aparelho genocida nazista contra os judeus. O testemunho de sobreviventes do Lager é, sem dúvida, a fonte que nos permite compreender, de forma mais efetiva, o que os carrascos foram capazes de fazer contra indivíduos semelhantes a si, dentro dos campos de concentração. Ou utilizando uma expressão própria da psicanálise, mais propriamente da psicanalista Elizabeth Roudinesco, a parte obscura de nós mesmos (ROUDINESCO, 2008).

O testemunho como fonte para os estudos do Shoah, no entanto, não estiveram sempre disponíveis para o público em geral, nem sequer para os historiadores dedicados ao tema. Os primeiros anos do pós-guerra presenciaram um vácuo no testemunho dos sobreviventes do extermínio. De fato, o trauma ainda estava demasiado recente na vivência de cada um dos sobreviventes, e naqueles anos que sucederam 1945 e a libertação dos prisioneiros dos campos de concentração e extermínio pelo Exército Vermelho, o que restou de Auschwitz – parafraseando Giorgio Agamben – foi o silêncio. O primeiro grande nome que veio a quebrar tal silêncio, sem dúvida, foi Primo Levi, quando escreveu É isto um homem?, livro que foi publicado pela primeira vez, numa pequena edição que não foi tão difundida, no ano de 1947. Talvez somente após a publicação de uma edição do livro ampliada e revisada, em 1958, é que um número maior de pessoas veio a conhecer essa nova forma de se narrar o Shoah, que foi o testemunho.

A dificuldade em entender as causas, o modo como decorreu, e as consequências de um evento de tamanha magnitude na história humana, é evidente. O que a historiografia e os teóricos alemães do século XIX e XX chamam por Erklärung und Verständins, explicação e compreensão, respectivamente, são palavras de demasiada utilização para quem trata de trabalhar com a História do Shoah. Para a teoria da História, no que se refere à Shoah, a Verständins está bem mais além da Erklärung (BAUER, 2013, p.30-31), o que enfatiza a dificuldade por parte dos estudiosos acerca do tema, de compreender um evento singular e sem precedentes. Um elemento fundamental para compreendermos melhor como ocorreu e o que, com mais precisão, ocorreu neste massacre é sem dúvida o testemunho. Giorgio Agamben, em seu livro intitulado “O Que Resta de Auschwitz”, diz que quando a última vítima da Shoah der seu último suspiro de vida, a memória se perderá e a dificuldade para a compreensão deste processo aumentará consideravelmente. Não há a possibilidade de aprofundar-se nos estudos e nos conhecimentos acerca da Shoah sem estudar o testemunho da vítima sobrevivente ao processo. Nesse sentido, o testemunho dos sobreviventes dos campos de concentração e extermínio, é uma peça chave no que foi citado anteriormente como Erklärung, como fator fundamental para o esclarecimento, parar trazer à luz este acontecimento.

Frederico Finchelstein, em seu livro El Canon del Holocausto, vem a citar algumas obras, autores e perspectivas historiográficas que se constituíram como cânones sobre o assunto durante certo tempo. Raul Hilberg, o autor que teve a primeira obra de grande repercussão referente ao Shoah, é apontado por Finchelstein como o primeiro “cânone” do holocausto, e abre as discussões presentes no livro. O autor de The Destruction of the European Jews foi responsável por inaugurar os grandes debates acerca da historiografia do Shoah com sua publicação no ano de 1961. O testemunho, em toda sua importância como fonte para o estudo do genocídio como foi explicado anteriormente, nesta obra se encontra ausente, ainda devido à grande proximidade temporal que os sobreviventes possuíam com a permanência no Lager, consequentemente, o trauma gerado pelo universo concentracionário ainda era muito forte para permitir que o testemunho fosse expresso. Também para Hilberg, o testemunho se constitui como um material secundário no estudo sobre o genocídio, apenas para efeito de verificação, não sendo assim, um provedor de sentido para a argumentação FINCHELSTEIN, 2010, p.69). Nesse sentido, o livro de Raul Hilberg se constitui como “um livro sobre as pessoas que exterminaram os judeus” (FINCHELSTEIN, 2010, p.28).

Hilberg se encontra dentro da escola funcionalista de historiadores do Shoah, que vem a defender a ideia de que o extermínio não estaria ligado somente ao Führer, sendo obra de todo um aparelho de Estado correspondente às diversas esferas sociais e burocráticas. É através da burocracia que Hilberg procura explicar o processo genocida, dando demasiada ênfase a esta, que é mostrada como tendo um papel mais importante que Hitler, Himmler, Goebbels, ou qualquer outro criador individual das políticas nazistas. Um enfoque weberiano, que no que concerne à burocracia, é dado a Raul Hilberg por outro importante intelectual encarregado dos estudos do Shoah, Saul Friedländer, devido à demasiada importância atribuída à organização burocrática, apontada mesmo como “mortal” (FINCHELSTEIN, 2010, p.28).

Finchelstein nos mostra que, na visão de Hilberg, o alto comando militar nazista se sentia gratificado mais devido ao grande aparelho burocrático, bem como com a sua poderosa máquina genocida, do que pelas atrocidades cometidas contra os judeus europeus. “Os perpetradores sentem fascinação pelos atos maquinais e não pela combinação desses atos com mitos ideológicos, estéticos e certos pressupostos éticos mundanos” (FINCHELSTEIN, 2010, p.29). Essa tese certamente veio a dar suporte para a construção da Banalidade do Mal de Hannah Arendt, após a sua observação do julgamento de Eichmann em Jerusalém no ano de 1961 (ARENT, 1999), cinco anos após a mesma fazer uma crítica negativa ao livro de Hilberg, chegando a apontar o livro de Hilberg como um “simples informe” (FINCHELSTEIN, 2010, p.42). Entretanto, as divergências entre Arendt e Hilberg eram muitas, o que gerou várias discussões entre ambos ao longo dos anos, com este último afirmando que “Hannah Arendt não foi capaz de compreender o seu livro” e que “a noção de banalidade dissolve a complexidade da interpretação do evento” (FINCHELSTEIN, 2010, p.44).

Como citado anteriormente, The destruction of the European Jews não é uma obra relativa aos judeus, senão um livro referente aos perpetradores. Em decorrência disso, para Hilberg não houve resistência da parte dos judeus durante o extermínio; o levante do gueto de Varsóvia, a fuga de Sobibór, ou a rebelião do Sonderkommando de Treblinka, constituem casos pontuais de resistência, e se faz adepto da ideia de historiadores sionistas de que os judeus morreram como ovelhas indo para o matadouro. Hilberg vem a compreender a resistência em termos de ação, e não como, por exemplo, Israel Gutman ou Martin Gilbert compreende, afirmando que mesmo a passividade e a dignidade na hora da morte eram formas de resistência. Para Raul Hilberg, esse tipo de interpretação vem a diminuir moralmente os verdadeiros atos de resistência, aqueles e que houve confronto entre vítimas e perpetradores.

O processo do extermínio dos judeus na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente durante o espaço de tempo que vai de 1942 a 1945, período em que foi colocada em prática a Endlösung, a Solução Final para o problema judaico no velho continente, se constitui como um fenômeno sem precedentes na História. Observamos o que Enzo Traverso vem a chamar de radicalização progressiva, no seu livro “La Historia como campo de Batalla”(TRAVERSO, 2012). A violência exercida contra os judeus durante o Terceiro Reich, foi sendo elevada ao longo do tempo, começando por boicotes aos estabelecimentos pertencentes aos judeus na Alemanha, em abril de 1933, até culminar no extermínio físico, colocado em prática de forma sistemática após a Conferência de Wannsee em janeiro de 1942, onde ficaram definidos os termos da Solução Final para o povo judeu.

O fenômeno da radicalização progressiva presente no indivíduo durante o nazismo, pode ser bem observado no estudo de caso realizado por Christopher Browning no livro Ordinary Men: Police reserve battallion 101 and the Final Solution. Browning realiza o estudo de apenas um batalhão de policiais de reserva para traçar o perfil dos homens comuns, que durante o Terceiro Reich, estiveram empregados no processo de extermínio. No livro, podemos acompanhar a trajetória de alguns comandantes do batalhão, que chegam até mesmo a se acostumarem com o assassinato em massa, tornando aquilo parte da sua rotina, ou como os alemães Sönke Neitzel e Harald Welzer chamam, o assassinato se tornou parte do marco referencial do nazismo. Estes últimos dois autores descrevem no livro “Soldados: Sobre lutar, matar e morrer”, a trajetória de soldados da Wehrmacht – as forças armadas da Alemanha nazista – que estiveram envolvidos no extermínio dos judeus. No livro, também podemos observar como soldados fizeram do assassinato em massa contra judeus parte de sua rotina, transformando tal prática num ato corriqueiro. Soldados esses, que em certos casos nunca mataram um inimigo, ou nem sequer ainda tinham ido para o campo de batalha

Tal brutalização dos indivíduos, que poderia ser impensada para algumas pessoas, ganha um suporte por historiadores que criaram uma linha de pensamento bastante polêmica e controversa nos anos 1980, o Sonderweg alemão, ou o caminho especial que a nação alemã trilhou de alguns séculos atrás e que culminou com o Shoah. A teoria do Sonderweg baseia-se numa inversão de valores democráticos que foi vivenciada na Alemanha, desde os séculos XVIII e XIX, numa experiência que consistia em minar os valores da democracia liberal vivenciada em países como os Estados Unidos, França ou Inglaterra. O Sonderweg, nesse sentido, é uma teoria comparativa, que sempre está a comparar a Alemanha com outras nações do ocidente, que tinham como modelo de governo a democracia liberal. Tal teoria, tem como principal nome o historiador representante da nova história social da Universidade de Bielefeld, Jürgen Kocka (SILVA, 2015).

O debate sobre o Sonderweg ganha um tom de absurdo com a publicação do livro Os Carrascos Voluntários de Hitler, de Daniel Goldhagen, no ano de 1996. Goldhagen é alvo de inúmeras críticas no que se refere à historiografia do Shoah, e também é incluído nas discussões realizadas por Frederico Finchelstein. Aqui, nos é mostrado como Goldhagen enxerga o antissemitismo alemão como sendo originário da Idade Média, e, indo além de teóricos do Sonderweg que apontam a origem deste caminho especial alemão na Reforma Protestante, Goldhagen afirma que a perseguição dos judeus durante o medievo já era uma característica desse caminho que conduziria ao extermínio pelos nazistas.

Além de descartar a famosa Historikerstreit, o debate entre os historiadores funcionalistas e intencionalistas, Goldhagen aponta o Shoah como sendo o fim predeterminado de séculos em que o antissemitismo estava presente na sociedade alemã. A construção desse caminho único para Auschwitz, partindo do medievo, faz com que o extermínio dos judeus europeus se constitua como um “super pogrom” (TRAVERSO, 2012, p.105). Nesse sentido, a solução final já estaria predestinada desde, pelo menos, 100 anos, e se aceitarmos tal afirmação, também estaríamos afirmando que o povo judeu foi demasiado inocente para não perceber o seu destino. É claro que não podemos aceitar tal tese, e que Goldhagen encontra-se, neste ponto, equivocado. Está também equivocado quando afirma que todos os alemães concordavam com o extermínio físico dos judeus, e quando trata de forma restrita o conceito de homens comuns de Christopher Browning, aplicando-o somente para o povo alemão, sendo assim alemães comuns.

Mas, afinal, poderemos compreender o Shoah? Essa é uma das perguntas que encerram o livro, quando são colocadas em pauta algumas ideias de Jorge Luis Borges. Essa é uma problemática que talvez nunca saibamos resolver. Alguns filósofos, dentre eles Giorgio Agamben, afirmam que nunca poderemos compreender o universo concentracionário por que não estivermos no interior deste, e que o indivíduo que realmente conheceu todo este universo, já não está mais presente: ele morreu na câmara de gás. Em contrapartida, não podemos deixar de buscar compreender este processo. Os testemunhos e diários que estão disponíveis hoje, mesmo que, muitas vezes tenha sido escrito por um indivíduo que não morreu na câmara de gás, nos permite compreender – Verstehen – a parte obscura de nós mesmos.

Notas

1 Graduando do curso de Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco – UPE. Pesquisador do GEHSCAL – Grupo de Estudos Histórico Socioculturais da América Latina, pela linha de pesquisa História do Tempo Presente – HTP/UPE. Foi bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco, com o projeto de pesquisa Grécia no Tempo Presente: Crise financeira e ascensão da extrema direita, orientado pelo Prof. Dr. Karl Schurster (Universidade de Pernambuco). Contato: [email protected].

2 Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=c%E2non.  Acesso em: 29/09/15.

Referências

ROUDINESCO, Elizabeth. A Parte obscura de nós mesmos: Uma História dos perversos. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2008.

BAUER, Yehuda. Reflexiones sobre el Holocausto. Nativ Ediciones; Jerusalém, 2013. P. 30 – 31.

FINCHELSTEIN, Frederico. El Canon del Holocausto. Buenos Aires: Prometeo, 2010. P. 69.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do Mal. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.

TRAVERSO, Enzo. La Historia como Campo de Batalla. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2012.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; et al. Enciclopédia de Guerras e Revoluções: volume II 1919-1945. Rio de Janeiro: Ed. Campus Elsevier, 2015.

Lucas Borba – Graduando do curso de Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco – UPE. Pesquisador do GEHSCAL – Grupo de Estudos Histórico Socioculturais da América Latina, pela linha de pesquisa História do Tempo Presente – HTP/UPE. Foi bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco, com o projeto de pesquisa Grécia no Tempo Presente: Crise financeira e ascensão da extrema direita, orientado pelo Prof. Dr. Karl Schurster (Universidade de Pernambuco). Contato: [email protected]


FINCHELSTEIN, Frederico. El Canon del Holocausto. Buenos Aires: Prometeo, 2010. Resenha de: BORBA, Lucas. Verstehen und Erklärung: Como explicar e compreender o Holocausto. Aedos. Porto Alegre, v.8, n.18, p.254-259, ago., 2016.Acessar publicação original [DR]

Negritude e pós-africanidade: crítica das relações raciais contemporâneas | Carlos Gadea

A temática de relações raciais, no Brasil e em outros contextos, como nos Estados Unidos, está, há muito tempo, na ordem do dia. As situações de conflito permeadas pelo racismo – tal como os casos de violência policial contra os negros – fazem emergir, nesses países, um sem número de discussões sobre a questão racial em suas diversas manifestações, sejam elas sociais, políticas, econômicas ou culturais.

A consciência do conflito e da discriminação por diversos atores sociais, tal como os ativistas dos movimentos negros e parte expressiva da Academia, tem ensejado, também, no Brasil e alhures, reflexões sobre o enfrentamento político do racismo em suas dimensões de identidade social e pertencimento cultural, expressas em noções como “raça”, “negritude” e “africanidade”. Negritude e pós-africanidade: crítica das relações raciais contemporâneas, do uruguaio Carlos Gadea, sociólogo e professor da UNISINOS, tem como proposta precípua justamente analisar as configurações e os vínculos entre identidades étnicas e sociais traduzidos nas vivências contemporâneas das relações raciais, no Brasil e nos Estados Unidos.

A hipótese central é a de que, nesses países, o “espaço da negritude”, que para o autor consiste em uma espécie de lugar social atravessado por identificações raciais, performances subjetivas e interesses práticos dos grupos implicados em relações raciais, estaria passando por sensíveis modificações nas últimas décadas.

Gadea parte de uma indagação geral inquietante: na atualidade, o “espaço da negritude” apenas teria sentido no âmbito de uma negritude ancorada na africanidade, através da ideia de ancestralidade, de memória histórica ou de um marcador como a cor da pele? A percepção da heterogeneidade crescente dos espaços da negritude, em contextos urbanos de diferenciação social e individualização se desdobra em perguntas adicionais: só se pode compreender o que representa o “negro”, ou as identidades raciais, a partir do racismo? Quais são as características das relações raciais na contemporaneidade, em diferentes contextos?

O livro é fruto de uma pesquisa de pós-doutorado realizada pelo sociólogo na Universidade de Miami, em 2012. Nessa experiência em solo norte-americano foram levadas a cabo as pesquisas e observações que serão o mote inicial para a percepção atualizada e comparativa sobre as relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, presentes no Capítulo 1, intitulado “Contextos e situações do espaço da negritude”. Miami, uma cidade profundamente multicultural, encerra, em sua complexidade própria, diversos espaços da negritude, formados por populações negras oriundas do Alabama, Geórgia, Jamaica, República Dominicana, Haiti. A cidade é o local onde, em 2012, ocorreu o controverso assassinato do jovem afroamericano Travyon Martin por George Zimmerman, um policial branco e “latino”. A reação de protesto da população negra de Miami, ainda que tenha mobilizado uma memória de violência e discriminação e justaposto os negros de forma geral contra um inimigo institucional comum, parecia não estabelecer como evidente em si mesma uma ligação entre os signos da negritude e uma percepção racializada dos conflitos e da sociedade. Esse aparente paradoxo entre ideias de cor/raça e identidade étnica é explorado pelo autor através da análise das contradições e ambiguidades envolvendo a inserção das comunidades haitianas e dominicanas da capital da Flórida na relação mais genérica com a comunidade negra – ou afro-americana – da cidade.

Uma sexta-feira por mês os haitianos de Miami realizam um encontro cultural no chamado “Little Haiti Cultural Center”, no bairro homônimo. As frequentes idas do sociólogo a esse evento resultaram na impressão de que o Haiti culturalmente representado era contemporâneo, diaspórico e imprevisível. Os haitianos não formam, evidentemente, uma comunidade homogênea; rejeitam, ademais, uma identificação automática com os “afroamericanos”, criando e atualizando sua identidade em termos de uma comunidade nacional imaginada. Nesse sentido, o espaço da negritude entre os haitianos não afirmaria a evidência de uma pertença ao discurso da memória coletiva ou da africanidade; o “pertencimento”, na realidade, reveste-se de ambiguidades para essa comunidade: por um lado, são “negros” no sistema de classificação racial dos EUA, e por essa razão são discriminados também; por outro, essas pessoas “falam” politicamente como membros da diáspora haitiana, tal como se materializou no decorrer dos protestos pela morte de Travyon Martin.

Entre os dominicanos da mesma cidade há ainda outras problemáticas identitárias. Eles seriam particularmente “indecisos”, ambíguos, frente às categorias raciais hegemônicas – “brancos”, “negros”, “latinos”. De um ponto de vista social e do fenótipo eles são “negros”, mas culturalmente se identificam como “hispânicos” – ou “latinos”. Uma característica dos dominicanos seria o fato de se constituírem socialmente como “individualidades”, e não propriamente como uma “comunidade” lastreada em uma experiência cultural comum. Não apenas não residem em um mesmo bairro quanto também não consideram terem sido deslocados compulsoriamente para os EUA – fosse por escravidão (como os afro-americanos) ou problemas econômicos em seu país de origem (latinos de forma geral). Deste modo, não vivenciam os mesmos laços de solidariedade “racial” com os negros norte-americanos nem ativam a memória de um passado escravista para construir sua identidade étnica.

Há, além disso, um traço a diferenciá-los e singularizá-los: o uso da língua espanhola. Tais particularidades servem de mote para o autor fazer uma crítica contundente ao Atlântico Negro (2001), de Paul Gilroy, livro que praticamente ignorou as histórias negras de língua espanhola e portuguesa – o Brasil, nesse caso. Gilroy parece pensar o Atlântico Negro tendo como matriz empírica e epistemológica a realidade das relações raciais nos Estados Unidos. Ora, a vivência cotidiana dos dominicanos negros, idiossincrática pela linguagem/idioma, é encenada também a partir de uma espécie de cultura nacional imaginada, “latina”, questionando assim os pressupostos sociológicos, culturais e empíricos que são mobilizados para pensar a experiência negra nos Estados Unidos como uma matriz homogeneizada em princípios como “consciência racial”, “memória da escravidão” ou “africanidade”.

Na sequência, ao final da primeira parte do livro, Gadea se debruça sobre um contexto brasileiro específico: o dos jovens negros de Porto Alegre (RS). O autor foi ao Parque da Redenção, lugar de grande movimentação cultural e de pessoas na capital gaúcha. O parque também é ocupado por jovens negros, que são em sua maioria oriundos dos bairros periféricos da cidade. Aí eles perfazem uma saída de seu contexto – estigmatizado – de origem, estabelecendo uma existência dual nos diversos espaços em que sua negritude é tornada visível. Essa “saída” seria expressão de processos de individualização e diferenciação social – próprios de culturas urbanas – vivenciados por esses jovens, que engendram assim “jogos de reversão” de adscrições socioraciais, desconstruindo essas identificações em nome de atitudes de autodeterminação. Tal experiência encontra o que é afirmado – e questionado – ao longo do livro: a negritude desses jovens não parece ter na “pertença racial” um lastro empírico evidente, nem na “ancestralidade” ou “africanidade” um eixo automático de identificação. O espaço da negritude, para esses sujeitos sociais, é produto de negociações e disputas simbólicas e semânticas, posto que sua presença no Parque da Redenção problematizaria os nexos entre o “corpo negro” e os processos de subalternidade.

Em uma tarde de domingo o dito sociólogo foi conversar com os jovens. Ao questioná-los sobre sua negritude, notou que esta era percebida – e constituída – menos por uma ligação com um “mundo afro-brasileiro” imaginado do que pela consciência da diferença que emerge do racismo em situações de tensão e conflito no cotidiano citadino – como ser barrado em uma festa, colocado na parede pela polícia, etc. Esse espaço na negritude é, portanto, relacional, ou seja, não existe uma negritude preexistente ao jogo das relações sociais/raciais. Não se trata de negar que esses jovens não tenham uma “consciência de si” enquanto negros, mas que os signos sociais da negritude existem “entre parênteses”, em “estado de suspensão”, vindo à tona nas situações de crise e conflito.

O segundo – e último – capítulo, “O reverso da negritude e o avesso da africanidade”, consiste em uma ampla reflexão teórica, ancorada nas percepções mais empíricas e situacionais do capítulo anterior. Prosseguindo em seu exame acerca das mudanças no espaço da negritude na contemporaneidade, o autor busca fortalecer o argumento de que, do ponto de vista da etnicidade, as lógicas das relações sociais, na atualidade, pari passu à racialização, colocam em jogo determinados processos de individualização e diferenciação social, problematizando nexos política e sociologicamente consagrados entre negritude e africanidade. Uma fina matriz sociológica simmeliana aqui está presente, na medida em que se afirma que o alargamento e a diversificação do campo de experiência e das interações sociais dos indivíduos negros reforçaria, paradoxalmente, sua vivência e identificação propriamente individual. Isso implicaria em repensar, por exemplo, a ideia de “gueto”, do ponto de vista dos supostos elos entre ideais comunitários e de pertença racial – tal como visto pela Escola de Chicago para o caso norteamericano. Se o gueto é espaço e metáfora de determinadas relações raciais e formas de negritude – ao menos nos Estados Unidos –, ele, todavia, não representaria as novas dinâmicas individuais e sociais pelas quais se constroem e se atualizam os espaços da negritude, material e simbolicamente falando. As experiências dos negros haitianos e dominicanos de Miami e dos jovens negros porto-alegrenses seriam testemunho dessas novas configurações.

Os sentidos da negritude são questionados: se ela representou, política e intelectualmente – para o Movimento Negro brasileiro, nos anos 1970 –, uma “tomada de consciência de ser negro”, como pode ser entendida na atualidade? De que forma coloca em xeque as estruturas epistemológicas que o Ocidente moderno criou para definir a humanidade em termos de hierarquia racial? O autor então investe sobre a noção-chave de “africanidade”:

A africanidade é um espaço de elaboração discursiva e política que pretende sintetizar a pertença coletiva de um grupo humano a uma comunidade presumivelmente fundamentada em determinadas especificidades históricas e culturais referenciadas no continente africano (p. 87; grifo do autor).

A africanidade, nessa definição, tem uma dimensão tanto pedagógica quanto de uma técnica de subjetivação, para a população negra, visando ao reconhecimento enquanto etnicidade particular e cultura comum, lastreada na ideia de uma ancestralidade. A consciência sobre essa africanidade seria condição para o autorreconhecimento enquanto “sujeito negro”. A perspectiva “afrocêntrica” presente nessa noção de africanidade é criticada pelo autor, pois esse “lugar” epistemológico não comportaria a compreensão das atitudes e comportamentos, por exemplo, dos jovens negros urbanos, não abarcando, necessariamente, as dinâmicas da vida social dos negros brasileiros em sua complexidade e multiplicidade.

A esposada leitura de autores como Stuart Hall e Michel Foucault impossibilita pensar o sujeito como dado a priori, anterior às relações sociais e discursivas que o produzem e o atualizam constantemente. Gadea diz ser necessário pensar em outras variáveis dos conflitos racismo e do antirracismo. Uma dessas variáveis estaria presente na ideia de “códigos de urbanidade”, o que implica em analisar as relações entre as cidades e as etnicidades que as habitam, nos espaços simbólicos e de sociabilidade nos quais a negritude é permanentemente dispersada e reconfigurada. A vivência dessa urbanidade diversificaria as experiências e as possibilidades de afiliação grupal dos jovens negros – o principal grupo social a que o autor se refere, no contexto brasileiro. A negritude, e aqui está uma reflexão importante, estaria para além da ideia de africanidade, e também da própria noção de comunidade. Desta forma, as referidas mudanças no “espaço da negritude” seriam atravessadas por uma marcante dualidade: “[…] por um lado, o que se pode entender como uma aproximação crescente de múltiplos contextos sociais de referência e, pelo outro, uma diferenciação social geradora de uma experiência da individualidade e da negritude muito particular.” (p. 112).

As pertenças aos grupos estão se diversificando e transformando também as experiências individuais dos “jovens negros”, na medida em que a individualização e a diferenciação social – Simmel (1977 [1908]) – levariam ao enfraquecimento dos laços entre os indivíduos mais imediatos e possibilitariam a construção de outros [laços] com indivíduos socialmente mais distantes. Tal processo é visto aqui de forma positiva, pois essa diversificação tenderia a enriquecer o caldo sociocultural no qual se dão as relações raciais – e no qual se criam novas formas de combater o racismo e pensar o antirracismo.

O livro de Carlos Gadea trabalha com um amplo espectro de questões, eixos temáticos e perspectivas teóricas. Percorre vários campos do conhecimento, especialmente a sociologia dedicada às relações raciais. Com esta sociologia se estabelece um bom diálogo, especialmente com autores da vertente pós-colonial, como Paul Gilroy (2001), Stuart Hall (2000; 2003), Sérgio Costa (2006) e Lívio Sansone (2004). Da obra de Costa pode-se dizer que se compartilha de uma perspectiva comparativa e transnacional de entender a questão racial no Brasil contemporâneo; com Sansone há uma tentativa de compreensão da negritude brasileira em um leque analítico mais plural e multifacetado, para além de discursos calcados exclusivamente na ideia de etnicidade.

Uma das contribuições mais relevantes da obra está em analisar a maneira como os ditos processos de individualização e diferenciação social no Brasil atual, próprios de contextos urbanos, dão novas configurações a discursos sobre identidade, modificando a morfologia das relações raciais e os entendimentos e desafios em torno do racismo e antirracismo em “espaços da negritude” constantemente transformados. As reflexões de Gadea sobre as ligações entre urbanidade e negritude fornecem interessantes possibilidades teóricas e campos de estudo para os cientistas sociais, seja no Brasil ou em outras sociedades.

É preciso dizer, contudo, que o trabalho poderia ser mais bem fundamentado empiricamente, especialmente em relação aos “jovens negros urbanos” da periferia de Porto Alegre. Não fica clara a opção em se ater apenas a esse grupo. Na realidade, pouco se fica sabendo sobre eles: os “jovens negros”, que fundamentam uma série de percepções sobre relações raciais no Brasil, são em número de seis. Quem são eles? De que periferia portoalegrense eles provém? Ainda que as percepções sociológicas se mostrem de fato muito pertinentes, uma “amostragem” tão reduzida é própria para se falar sobre uma complexidade que está na base dos argumentos centrais do livro? Tal ponto, ainda que fragilize, não desqualifica a abordagem teórica mais geral de Negritude e pós-africanidade, que traz um conjunto de questionamentos fundamentais para se refletir sobre os “espaços da negritude”, no Brasil e em outros contextos, a partir de olhares complexos e plurais.

Referências

COSTA, Sérgio. Dois atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34, 2001.

HALL, Suart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

SANSONE, Livio. Negritude sem etnicidade. Salvador/Rio de Janeiro: Edufba/Pallas, 2007.

SIMMEL, Georg. Sociología. Madrid: Ed. Revista de Occidente, 1977 [1908].

Rafael Petry Trapp – Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista Faperj. E-mail: [email protected]


GADEA, Carlos. Negritude e pós-africanidade: crítica das relações raciais contemporâneas. Porto Alegre: Sulina, 2013. Resenha de: TRAPP, Rafael Petry. Espaço(s) da negritude. Aedos. Porto Alegre, v.7, n.17, p.539-545, dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a questão cubana (1959-1964) | Leonardo R. Botega

O que tem em comum Arturo Frondizi, Jânio Quadros e João Goulart, além de terem sido presidentes de seus países? A resposta mais evidente é que nenhum deles concluiu o seu mandato. Frondizi foi deposto pelos militares argentinos em 28 de março de 1962, Quadros renunciou à presidência do Brasil em 25 de agosto de 1961 e Goulart foi alijado do poder por um golpe civil-militar em 1 de abril de 1964.

Além disso, há, ainda, outro ponto de contato entre esses três personagens: todos eles patrocinaram, em um período muito próximo, mudanças nas relações exteriores de seus países que ficaram conhecidas por políticas externas independentes. E mais ainda: procuraram aproximar o Brasil e a Argentina na defesa da autonomia da América Latina num momento de extrema tensão ocasionado pela emergência da Revolução Cubana que modificou o estatuto da Guerra Fria no continente americano.

É disto que trata o livro Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a questão cubana (1959-1964), de autoria de Leonardo da Rocha Botega.1 Adaptado de sua dissertação de Mestrado defendida na Universidade Federal de Santa Maria, o livro, agora, aumentará a circulação da consistente pesquisa elaborada pelo seu autor em um grande número de fontes primárias, com destaque para os anos iniciais da Revista Brasileira de Relações Internacionais com seus números que foram editados entre 1958 e 1964. Some-se a isso o expressivo número de 140 referências bibliográficas que colaboraram para que o livro tenha uma rica densidade teórica bem como uma ampla perspectiva da História do fim dos anos 50 e inícios dos 60 do Século XX.

Afinal, foi a Revolução Cubana de 1959 que trouxe a latino-americanização da Guerra Fria. Até então, pouca importância davam os Estados Unidos da América (EUA) para o subcontinente latino-americano.[2] É assim que Botega abre o primeiro capítulo de sua obra:

Quando Fidel Castro, Ernesto Che Guevara, Raul Castro, Camilo Cienfuegos e outros tomaram a capital Havana, em janeiro de 1959, sem sombra de dúvidas a América Latina passava a viver um momento diferente em seu cenário político. O forte poder de atração que esta exerceu sobre a esquerda trouxe para a América Latina a “sombra” do conflito leste-oeste, atingindo em cheio a esfera de influência dos Estados Unidos, principalmente ao definir no período 1960-1961 o seu caráter socialista.[3]

Nesse capítulo inicial, o autor produz uma visão panorâmica sobre a Argentina, o Brasil e Cuba, tendo como elemento comparativo das realidades históricas de cada um desses países o nacionalismo. Aqui é importante frisar, como o fez Eric Hobsbawm,[4] que o nacionalismo é um conceito histórico e que, portanto, ele se modifica ao longo do tempo, podendo se localizar nos mais extremos espectros políticos. Porém, no tempo e no espaço da Argentina, Brasil e Cuba dos anos 1950, houve a coincidência de o nacionalismo assumir “um caráter cada vez mais à esquerda no contexto da Guerra Fria”,[5] constituindo assim uma preocupação para os Estados Unidos que procuraram –durante a VII Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, realizada entre 22 e 29 de agosto de 1960 na Costa Rica – impor “a adoção de sanções econômicas e de medidas coercitivas ao governo de Cuba”.[6] Não obtiveram sucesso em razão da forte oposição da Argentina, do Brasil e do México,[7] que incluíram na Declaração de San José que “nenhum Estado americano pode intervir em outro Estado americano com o propósito de impor-lhes suas ideologias ou princípios políticos, econômicos e sociais”[8] .

Leonardo Botega reconstitui a trajetória política de Arturo Frondizi além de discutir teoricamente a ideologia de seu projeto de desenvolvimento conhecido por desarrollismo, que visava superar tanto os entraves patrocinados pelo latifúndio quanto pela exploração imperialista. Também analisa a difícil situação do presidente argentino que se encontrava sob fogo cruzado, entre a extrema-direita patrocinada pelos militares anticomunistas e antiperonistas e pelos peronistas que o consideravam um traidor, pelo fato de ter permitido que o capital estrangeiro explorasse o petróleo de seu país.

Nesse capítulo primeiro, o autor também, analisou a polarização vivida pelo Brasil no “tempo da experiência democrática (1945-1964)”,[9] culminando com a eleição de Jânio Quadros – quando Afonso Arinos de Melo Franco implementou a Política Externa Independente (PEI) – e sua intempestiva renúncia que “permanece ainda alvo de debates. Porém, mesmo sem provas documentais, a literatura de história e ciências sociais concorda que o presidente desejava dar um golpe de Estado”.[10] Aborda a Campanha da Legalidade, o governo parlamentarista com o reatamento de relações diplomáticas com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o turbulento período presidencialista de João Goulart, com sua desestabilização patrocinada pelos EUA e o golpe civil-militar de 1964.

Fechando esse capítulo, é realizada detida exposição acerca do desenvolvimento histórico de Cuba, partindo de sua conquista em 1511 até o período da luta revolucionária – enfatizando a relação com os Estados Unidos. Recupera a trajetória de Fidel Castro, desde sua juventude nos anos 1940, passando pelo malogrado assalto ao Quartel de Moncada e seu discurso de defesa intitulado A História me absolverá até chegar a luta em Sierra Maestra e a revolução sair vitoriosa. A partir desse momento, o autor se concentra no esgotamento da relação com os EUA, principalmente, em função da reforma agrária e da “nacionalização de todas as propriedades norte-americanas (…) 36 engenhos de açúcar, todas as refinarias de petróleo e instalações telefônicas e de fornecimento de energia elétrica”[11] e do episódio da Baía dos Porcos, onde as forças de Castro vencem os invasores. Com isso, tem início a verdadeira obsessão dos irmãos Kennedy sobre Cuba, não faltando planos de assassinar Castro operados diretamente por Robert Kennedy através da Operação Mangusto,[12] bem como a pressão cada vez mais intensa para excluir Cuba do convívio com os demais estados americanos.

O segundo capítulo nos aproxima das políticas externas independentes da Argentina e do Brasil. Através da análise da documentação produzida naquele período – discursos e pronunciamentos dos responsáveis pelas políticas externas e dos presidentes dos dois países – e de dois livros – um de autoria de Frondizi e outro de San Tiago Dantas [13] – o autor procurou responder às seguintes questões:

Quais as fundamentações da política externa independente do governo Arturo Frondizi e da política externa independente do Brasil? Quais suas bases conceituais? Que leituras tinham da realidade latino-americana e mundial? Que pontos de vista as aproximavam?[14]

Botega conclui que há muitos pontos de aproximação entre as duas políticas externas: ambas estão calcadas no nacionalismo, buscam um paradigma de maior autonomia para suas relações exteriores, procuram fazer da política externa uma ferramenta na busca pelo desenvolvimento econômico-social, criticam a deterioração dos termos de troca nas relações econômicas entre os países mais industrializados e os países em vias de industrialização, frisam que não são neutralistas mas que procuram a independência dentro do bloco ocidental (ambos são acusados pelos adversários de estarem a serviço de Moscou), pretendem manter boas relações com os EUA (Frondizi e Goulart discursaram no Congresso dos Estados Unidos), e, por fim, que são defensores dos princípios de autodeterminação dos povos e de não-intervenção.

É justamente sobre os princípios de autodeterminação dos povos e de não-intervenção que trata o terceiro capítulo do livro, ao analisar de que forma Argentina e Brasil colocaram em prática suas políticas externas independentes quando da crise da “questão cubana”.

Por “questão cubana” se entendia a adoção do socialismo a partir da declaração de que “o que os imperialistas não podem nos perdoar é que fizemos uma Revolução Socialista debaixo do nariz dos Estados Unidos e que defenderemos com nossos fuzis esta Revolução Socialista (…) Viva a Revolução Socialista! Viva Cuba Livre”[15] feita por Fidel Castro, e sua incompatibilidade com o sistema interamericano. Ressalte-se que essa modificação no estatuto da Revolução Cubana se deu em 16 de abril de 1961, um dia após tropas de exilados cubanos financiados pela CIA terem realizado um ataque com grande saldo de vítimas fatais em Cuba e um dia antes da tentativa de invasão conhecida como Baía dos Porcos, o que permite entender essas palavras como um pedido de socorro à URSS para a defesa da Revolução Cubana.

Em razão de Cuba ter se declarado socialista, primeiro o Peru e posteriormente a Colômbia (ambas com apoio estadunidense) invocaram o Tratado Interamericano de Aliança Recíproca (TIAR) para convocar uma Reunião de Consulta dos Chanceleres da Organização dos Estados Americanos (OEA) com o objetivo de “intervir coletivamente através da OEA em Cuba”[16]. Tanto o Brasil, como a Argentina e também o México, se posicionaram de forma contrária até que “o próprio Fidel Castro acabou dando munição para os seus adversários. No discurso de inauguração da Universidade Popular, em 2 de dezembro de 1961, declarou ‘sou marxista leninista e serei marxista-leninista até o último dia de minha vida’”[17]. Desse modo, ficava muito difícil, em termos políticos, barrar a convocação da Reunião.

Dado a polêmica da questão, nenhum país quis sediar a Reunião de Consulta, exceto o Uruguai. Assim, a VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos se realizou em Punta del Este entre 23 e 31 de janeiro de 1962. San Tiago Dantas, representando o grupo composto por Brasil, Argentina, México, Bolívia, Chile e Equador e Haiti (o Uruguai oscilava entre a posição brasileira e a posição colombiana pela expulsão de Cuba), defendeu que a ilha não fosse excluída do sistema americano sob o risco de estarem-na jogando aos braços dos soviéticos.

Os Estados Unidos, sob a liderança do Secretário do Departamento de Estado, Dean Rusk, exerceram pressões sobre o Brasil, a Argentina e os outros países que eram contra a expulsão de Cuba. Outras pressões eram exercidas pelos setores mais à direita internamente nos países, como o fez o exército argentino e alguns ex-chanceleres brasileiros. Contudo, foi um dos mais fracos países do continente que acabou sucumbindo às pressões dos EUA: o Haiti foi o necessário 14º voto para a aprovação da íntegra do texto de resolução apresentado por Rusk.

Leonardo Botega analisa as repercussões internas das posições do Brasil e da Argentina, que acabaram se abstendo de votar o texto completo de Rusk. Percebeu os apoios e as oposições às políticas externas independentes. No caso brasileiro, de forma mais imediata, a posição em Punta del Este acabou sendo um empecilho para San Tiago Dantas ser aprovado pelo Congresso como primeiro-ministro em junho daquele mesmo ano. No caso argentino, a pressão foi tão intensa que o país rompeu relações diplomáticas com Cuba em 8 de fevereiro e, mesmo cedendo desse modo aos militares, o presidente Frondizi foi deposto em 29 de março de 1962. Dois anos depois, tendo como uma das justificativas salvar o Brasil do comunismo, João Goulart também foi golpeado por militares e por civis.

Do belo trabalho de pesquisa realizado por Leonardo da Rocha Botega fica uma questão em aberto: até que ponto os golpes militares não foram, também, resultado das políticas externas independentes, ou talvez, resultado da posição frente a questão cubana?

Notas

1. BOTEGA, Leonardo da Rocha. Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a questão cubana (1959-1964). Porto Alegre: Letra & Vida, 2013.

2. Basta lembrar que a Operação Pan-americana (OPA) proposta por Juscelino Kubitschek em maio de 1958 não despertou maior interesse de Eisenhower. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 3ª edição ampliada. Brasília: Editora da UNB, 2010, p.293-294.

3. BOTEGA, op.cit., p.29.

4. HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

5. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O nacionalismo latino-americano no contexto da Guerra Fria. In: Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, ano 37, nº 2, 1994, p.55-56.

6. BOTEGA, op.cit., p.43.

7. As posições da política externa independente mexicana, em especial com sua relação com a questão cubana, são abordadas em profundidade por Altmann. ALTMANN, Werner. México e Cuba: revolução, nacionalismo, política externa. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p.77-86.

8. BOTEGA, op.cit., p.44.

9. A expressão é de Jorge Ferreira e Lucília Delgado. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano: o tempo da experiência democrática. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

10. FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p.25.

11. GOTT, Richard. Cuba: uma nova História. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p.211.

12. WEINER, Tim. Legado de Cinzas: uma história da CIA. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.208-217.

13. FRONDIZI, Arturo. A Luta Antiimperialista: etapa fundamental do processo democrático na América Latina. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1958. DANTAS, San Tiago. Política Externa Independente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.

14. BOTEGA, op.cit., p.104.

15. Fidel Castro apud MÁO JÚNIOR, José Rodrigues. A Revolução Cubana e a Questão Nacional (1868-1963). São Paulo: Núcleo de Estudos D’O Capital, 2007, p.354.

16. BOTEGA, op.cit., p.184.

17. Idem, p.185.

Charles Sidarta Machado Domingos – Doutor em História pela UFRGS. Professor de História no IFSUL- Campus Charqueadas. E-mail: [email protected]


BOTEGA, Leonardo da Rocha. Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a questão cubana (1959-1964). Porto Alegre: Letra & Vida, 2013. Resenha de: DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. Os primeiros anos 60 nas relações internacionais de Brasil e Argentina: a Revolução Cubana e a latino-americanização da Guerra Fria. Aedos. Porto Alegre, v.7, n.16, p.496-501, jul., 2015.Acessar publicação original [DR]

O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta | Beatriz Bissio

Nos últimos anos, o Brasil tem se inserido no mundo na condição de potência emergente, buscando consolidar-se no espaço internacional. Na academia, este processo tem se refletido na ampliação dos temas de pesquisas, destacadamente nas Humanidades. Notamse esforços em incorporar África e América Latina na agenda de estudos, produzindo diálogos e comparações úteis ao acréscimo do conhecimento e incorporação da diversidade. Entretanto, outras regiões do globo, como o mundo árabe-islâmico, permanecem menos exploradas. Entre os trabalhos dedicados a este tema, destaca-se a contribuição da professora do Departamento de Ciência Política da UFRJ, Beatriz Bissio, aqui resenhada.

O livro O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta é marcado pela trajetória da autora. Uruguaia naturalizada brasileira, Bissio atuou muitos anos como jornalista. Cobriu guerras de libertação nacional em Angola e em Moçambique, registrou o apartheid sul-africano e noticiou conflitos no Oriente Médio. Ao percorrer os países islâmicos, diz-nos que ficou profundamente marcada pela errônea tese de que existe uma profunda alteridade entre o mundo árabe-islâmico e o Ocidente. Munida desta inquietação, graduou-se em Ciências Sociais (PUC-RJ) e doutorou-se em História (UFF). Fruto de pesquisa realizada no doutorado, o livro analisa a civilização árabe-islâmica no século XIV, destacando o espaço como categoria apta à integração do mundo muçulmano, num período de fragilização política e cultural do Magrebe.

Afastando-se da perspectiva orientalista que circunscreve o mundo árabe-muçulmano à condição de exótico [2], Beatriz Bissio busca compreendê-lo a partir de dois de seus próprios pensadores: Ibn Battuta e Ibn Khaldun. O primeiro foi um viajante marroquino nascido em Tânger, em 1304, autor de Através do Islã, um relato de suas extensas viagens, aproximadamente 120 mil quilômetros percorridos em quase três décadas. O outro, Ibn Khaldun, era historiador e também viajante, nascido em Túnis, em 1332, autor do Livro das Experiências, em cuja primeira parte, Muqaddimah (ou Os prolegômenos da história universal) está o foco da autora, que complementa suas análises com as outras partes da obra, a História dos Berberes e a Autobiografia.

Dividido em duas partes e sete capítulos, o livro traz a preocupação de quem escreve sabendo que grande parte de seu público tem pouco domínio do assunto sem, no entanto, frustrar aqueles já versados no tema. Nos três capítulos da primeira parte, Bissio apresenta o mundo árabe-islâmico, localiza o leitor no Mediterrâneo do século XIV (com vários mapas) e apresenta suas personagens e fontes. A segunda parte é formada por quatro capítulos, dedicada à verticalização da análise das representações do espaço no medievo islâmico. A autora analisa o conceito de civilização presente nas obras, sobretudo na Muqaddimah, o papel da viagem na compreensão e internalização do espaço no mundo árabe-muçulmano, suas formas de representação na cartografia e nos saberes científicos da época e a hierarquização do espaço: o urbano, em função da mesquita; o território em função de Meca.

No século IX, desenvolvia-se na Espanha e no Magrebe islâmicos um gênero literário dedicado a descrever o espaço: os relatos de viagem. Decorrentes da exigência religiosa de realizar a peregrinação a Meca, aplicável a todo fiel saudável e com condições financeiras, os relatos foram produzidos por vários agentes: viajantes, espiões, mercadores, embaixadores. A palavra rihla, termo árabe para viagem, périplo, logo se tornou o nome do gênero. No século XIV, a rihla de Ibn Battuta tornava-se excepcional: saindo do Marrocos, o autor percorreu Egito, Palestina, Síria, Iraque, Irã, península Arábica, China, Índia, Afeganistão, Turquia, Rússia, Iêmen, Omã… motivado pela busca por conhecimento ao longo espaço islâmico.

O espaço é definido através da oposição entre os territórios do islamismo (dar alIslam) e aqueles ocupados pelos infiéis (dar al-kfur) e dedicados à guerra (dar al-harb), cuja incorporação nas terras do islã, acreditava-se, aconteceria mais cedo ou mais tarde. Essas definições acerca da natureza do espaço são importantes para a compreensão das obras de Khaldun e Battuta. O primeiro, modelo de sábio erudito islâmico, dedica-se na Muqaddimah a compreender as leis universais da sociedade – ciência que afirma ser sua criação – através do estudo e da viagem pelos espaços islâmicos, tendo o Magrebe como seu grande laboratório. Já Battuta dedica-se a analisar e vivenciar a unidade formada neste espaço. Apesar de cultural e historicamente heterogêneo, a fé islâmica e a língua árabe fizeram dele um território.

Recorrendo a edições dos textos de Battuta e Khaldun em diferentes idiomas, embora não no árabe, Bissio destaca o papel do espaço e da viagem na caracterização da identidade muçulmana do século XIV e anteriores, apontando a valoração atribuída pela religião islâmica à busca do conhecimento. Através da expansão muçulmana, desde o século VII, formou-se um extenso tecido social que, embora forjado sobre diversos ecossistemas e integrando povos culturalmente muito distintos – desde a Índia até a Espanha – manteve elementos de uma identidade comum: o idioma árabe, considerado sagrado e perfeito por ter sido a escolha de Deus para anunciar sua mensagem ao mundo, através de Maomé; e a fé islâmica, responsável pela unidade dos fiéis no corpo da Umma, a comunidade muçulmana que supera fronteiras políticas e étnicas diante da supremacia religiosa.

Dada a amplitude desta ocupação, a análise de referenciais da geografia cultural é central à discussão de Bissio. Conceitos como espaço social e lugar, aplicados à concepção da identidade, permeiam sua discussão, marcando o pertencimento e a exclusão na sociedade islâmica. Centrada no processo de urbanização, a fé muçulmana encontrou local privilegiado para sua divulgação nas cidades, organizando o espaço e caracterizando as relações sociais ali estabelecidas. A cidade construiu-se em torno da mesquita, onde coabitavam profissão de fé, exercício do poder político e jurídico e práticas educacionais. No plano territorial, o desenvolvimento da cartografia manteve-se ativo durante a expansão muçulmana, vistas as exigências dos Cinco Pilares do islamismo [3], dentre as quais se destacam a necessidade de orar cinco vezes ao dia na direção de Meca e realizar, ao menos uma vez na vida, a peregrinação aos lugares sagrados do Islã. O domínio do espaço era condição para exercício da fé e foi a comunhão religiosa sobre o espaço que garantiu a continuidade da Umma.

O exercício da justiça árabe-muçulmana fazia-se a partir do Corão, o livro sagrado, e da Sunna, a compilação dos ditos e feitos do Profeta. Com o aumento da complexidade social árabe-islâmica, fazia-se necessário coletar o máximo de informações úteis à construção da jurisprudência, visto esta basear-se nos exemplos advindos da vida e obra de Maomé. O objetivo inicial da viagem, portanto, era a coleta dos hadiths: atitudes, decisões e silêncios de Maomé, que compõem a Sunna e caracterizam o exercício da justiça islâmica na xaria. Através da viagem, buscava-se reconstruir as experiências do Profeta, pela coleta de tradições junto aos familiares daqueles que conviveram com ele. A viagem levava ao conhecimento.

Além do acesso ao saber, a escrita geográfica trazia à luz a grandiosidade do mundo construído pelos muçulmanos. Este, entretanto, vivia momentos de crise. No século XIV, o Mediterrâneo árabe caia diante dos impactos da Peste Negra e da fragmentação política. Com este pano de fundo, Bissio aborda o contexto histórico vivenciado por Khaldun e Battuta, importantes na configuração de suas obras. A autora argumenta que se vivia um período no qual o passado glorioso era mais importante que o incerto futuro, inspirando os escritores muçulmanos a produzir textos que garantissem à posteridade o conhecimento daquele momento histórico.

Ibn Khaldun, sobre quem já se disse ter sido o criador da Sociologia, se propôs a produzir uma obra de História peculiar à época: os homens eram o sujeito histórico e o objeto de estudo era a sociedade muçulmana. Partindo da trajetória de vida deste autor, o impacto da Peste Negra em sua formação e sua atuação política no Magrebe, na Espanha (Al-Andaluz) e no Egito, Bissio destaca a contribuição de Khaldun às Ciências Humanas, pouco estudada na tradição ocidental. O deslocamento da História para o mundo dos homens, em detrimento de ser realização da vontade divina; a compreensão da unidade do gênero humano e a explicação do desenvolvimento das civilizações através da geografia, ecologia e biologia caracterizam grande ruptura com a epistemologia vigente no período, muito embora alimentada pelas concepções muçulmanas acerca do mundo.

Documentos produzidos para serem monumentos4 de uma sociedade em decadência, os textos de Battuta e Khaldun apontam o uso pragmático da escrita como recurso à integração dos espaços e entendimento da sociedade, aproximando homens e Estados que, embora não mais organizados numa estrutura política única, o califado, seguiam na comunhão de uma identidade linguístico-religiosa (apesar das dissidências, como sunitas e xiitas). Um dos conceitos desenvolvidos por Ibn Khaldun – assabiyya, o espírito do corpo político – decorre de suas experiências ao percorrer o Magrebe neste momento, dado à derrocada de Estados e ao sentimento, captado por ele, de deslocamento do eixo civilizacional, que se movia do sul para o norte, com a emergência da Cristandade europeia e a redução das cidades muçulmanas, outrora as mais populosas, urbanizadas e ativas do período.

Na teoria das civilizações de Khaldun, o conceito umran tem sentido em civilização, seja na universalidade da sociedade humana ou na concretude de uma população sobre um território. A vida em sociedade é condição da existência humana, conforme Khaldun, e sua essência está na complementaridade entre o polo rural e o urbano. No primeiro residem os valores como força, lealdade, temperança, que fortalecem o espírito político (assabiyya); no segundo está o luxo, os excessos e prazeres, que o enfraquecem. Contudo, o urbano é o espaço central da vida social e religiosa. O equilíbrio se constitui na trajetória cíclica da história, com ascensão e queda de impérios que conquistam as cidades, se apoderam delas e se enfraquecem nelas. A umran é transmitida de um império a outro, resultando num sistema de civilização bipolar, cíclico e relativamente estável.

Enquanto Khaldun busca compreender as leis que regem a sociedade, Battuta aponta a unidade da umma como ponto central de sua análise. Ao longo da rihla na qual descreve o périplo realizado, o viajante marroquino dedica-se a apresentar a universalidade da umma. Sua narrativa, exposta por Bissio, conjuga as necessidades do saber com a atenção dedicada ao mundo do islã, seus prazeres, aromas e sabores. A manifestação da fé muçulmana nos lugares pelos quais passou, a solidariedade amparada no pertencimento à comunidade religiosa e a peregrinação como lugar do encontro são destacados por Battuta. Meca é o centro da umma e, para os muçulmanos do século XIV, as terras do islã eram a única parte do mundo que importava, pois nelas estava a verdade da revelação a ser levada a outros lugares ao redor do globo. Não obstante a desagregação política do califado abássida, a unidade linguístico-religiosa foi capaz de manter-se, tendo a referência ao espaço como eixo central de sua organização, na vida diária – através da mesquita – e na umma, por meio de Meca.

O sentido das viagens realizadas por Khaldun e Battuta pode ser melhor compreendido se colocado em termos da teoria do conhecimento do islamismo. Diferentemente do cristianismo, que prega separação entre mundo temporal e espiritual, o islã define a unidade entre essas realidades. O Corão incita os fiéis a olharem o mundo com curiosidade, pois nele se expressa a palavra de Deus. A religião estimula a ciência e, no período do medievo, a produção científica muçulmana era enorme, legando às estantes da Cristandade a maior parte das traduções da filosofia grega, que chegaram à língua latina através do árabe. A incorporação dos conhecimentos e sua transformação, buscando atender às necessidades da comunidade muçulmana, geraram um período de grande riqueza intelectual, expressa no universalismo científico e religioso da umma.

Ao romper estereótipos e preconceitos acerca do islamismo, Beatriz Bissio convidanos a um novo olhar sobre o Oriente. Ao dialogar com Ibn Khaldun, repete-lhe as conclusões: “o mundo parece estar mudando de natureza” [5], bem como é preciso que mudemos a natureza de nosso olhar sobre ele. Sua leitura apresenta-nos a possibilidade de reflexão sobre mundo além do panóptico europeu. Relações que se tecem e se reproduzem sem, necessariamente, ter o Ocidente como causa ou objeto. Somos apresentados ao islã com olhar de proximidade, de encanto e encontro. Unidos na natureza humana, mas também herdeiros do legado árabemuçulmano que nossa cultura ocidentalizante insiste em invisibilizar, vislumbramos um mundo criativo, dinâmico, parte de nossa formação histórica. Um mundo que vai muito além da sombra do Ocidente.

Notas

1. Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: [email protected].

2. SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.

3. PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização, Uma Abordagem Antropológica. Aparecida: Santuário, 2010.

4. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp. 2003.

5. BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p.292.

Thiago Henrique Mota1 – Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: [email protected]


BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.  Resenha de: MOTA, Thiago Henrique. Além da sombra do Ocidente: o mundo árabe que nós desconhecemos. Aedos. Porto Alegre, v.7, n.16, p.502-507, jul.,2015. Acessar publicação original [DR]

Historicités | Christian Delacroix, François Dosse e Patrick Garcia

Il faut attendre que le sucre fonde” H. Bergson

Na década de 1980, as ciências humanas na França passaram por movimento de renovações epistemológicas e metodológicas. A substituição do paradigma estruturalista, dominante nos anos 1960 e 1970, cedeu lugar a novas abordagens. O “giro reflexivo” da disciplina histórica, em especial, tendo em vista recuperar sua identidade específica, reabilitou noções fundamentais antes obliteradas, como o “acontecimento” e a “temporalidade”. Tal redimensionamento funcionaria como alternativa diante do enfraquecimento da corrente dos Annales. Desde então, a preocupação com a epistemologia faz a história atualmente se reaproximar da filosofia e de autores como Paul Ricoeur (1913-2005), responsável por uma reflexão filosófica sobre a história – seu estatuto de verdade, caráter narrativo e dimensões temporais, entre outros (SILVA, 2002: 39-45).

Essa virada é análoga a uma tentativa de compreensão da temporalidade em sua diversidade nesses tempos de história global. Notável exemplo disso – e da atualidade da categoria da historicidade em diversas áreas do conhecimento – pode ser encontrado em Historicités, obra coletiva publicada na França em 2009, organizada por Christian Delacroix, François Dosse e Patrick Garcia. O trabalho resulta das discussões que tiveram lugar no seminário “Regimes de historicidade e modelos temporais em história”, organizado entre 2000-2002, sob a égide do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP–CNRS) e do Centro de História Cultural das Sociedades Contemporâneas (CHCSC).

O livro trata a noção de historicidade (ou as historicidades, conforme o título) de forma plural e interdisciplinar. Colocando em teste “a hipótese da virada histórica, que está na origem da obra” (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2009: 7), a perspectiva pluridisciplinar convoca contribuições da filosofia, da antropologia, da psicanálise, da linguística e da geografia, que seriam capazes de mensurar a complexidade da noção de historicidade – “uma maneira, para nós, de não colocar somente a história no centro da circularidade da compreensão entre nossa condição histórica e nossa necessidade de historicizá-la” (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2009: 9). Na expressão dos organizadores, há uma “revolta das temporalidades”, que consiste, basicamente, em considerar a diversidade temporal de que é feita a espessura da história. Mais precisamente, o objeto de investigação do livro é a historicização dos fenômenos em diversas áreas (filosofia, antropologia, psicanálise, linguística e geografia, além da história), diante da “maré memorial” que se impôs desde os anos 1980, em consequência da crise das expectativas de futuro mais correntes.

A coletânea é dividida em quatro partes, que somam um total de dezessete textos: (1) Genealogias; (2) O momento Koselleck; (3) Um novo regime de historicidade?; (4) Transversalidades disciplinares. As duas primeiras partes trazem textos até então inéditos em língua francesa. De Paul Ricoeur, pode-se ler “A distância temporal e a morte na história”, comunicação apresentada pelo autor em Heidelberg, no evento de comemoração dos cem anos de Hans-Georg Gadamer, no ano 2000. Ricoeur procura expandir a discussão do conceito gadameriano da “distância temporal” interagindo, para isso, com os historiadores, que em seu discurso recobrem os “ausentes da história”, segundo a expressão de Michel de Certeau (RICOEUR, 2009: 14). De Koselleck, encontra-se “A desagregação da “casa” como entidade de dominação: algumas observações sobre a evolução das normas de direito de família, casa e servos na Prússia entre a Revolução Francesa e 1848”. Jochen Hoock escreve pequena “nota preliminar” ao texto de Koselleck, esclarecendo que se trata de um trabalho de história social, que escapa do simples desenvolvimento da história familiar, tão ao gosto do novecentos, tanto quanto representa um trabalho que coloca à prova, de forma bem sucedida, o modelo teórico do autor (HOOCK, 2009: 84). Na terceira parte, encontra-se publicada uma entrevista com François Hartog.

É em torno destes três autores, Ricoeur, Koselleck e Hartog, e de suas contribuições para a compreensão das relações sociais com o tempo, portanto, que giram as reflexões do livro. Principalmente, a aplicabilidade heurística da noção de historicidade é avaliada e defendida a partir de suas respectivas reflexões. Tal aplicabilidade aparece, sobretudo, na quarta parte da obra, que faz uma travessia pelas disciplinas que se utilizam das noções temporais como parte de sua epistemologia. Assim, a leitura parte de um pressuposto claro, o da centralidade para as ciências humanas da “virada histórica”; depois, define um núcleo mais ou menos original em torno dos autores que se concentraram no estudo do “tempo histórico”; recua no tempo, em busca da genealogia da historicidade: da antiguidade, passando pelo novecentos, até percorrer boa parte do pensamento histórico do século XX; por fim, abre o leque para as demais ciências, tornando explícita a consciência da transversalidade do tema, além de preconizar que há muito a ser desenvolvido em torno da “historicidade”, em áreas diversas.

Na primeira parte, além do texto de Ricoeur, destaque-se o trabalho de Christian Delacroix, “Genealogia de uma noção” – um texto crítico sobre as possibilidades e limites dos “regimes de historicidade” de Hartog. A principal objeção parece recair sobre seu uso heurístico: tal noção, dadas as dificuldades no cruzamento entre ontologia e metodologia, poderia ser assimilada a um instrumento universal de conhecimento, o que escaparia às determinações eminentemente históricas (DELACROIX, 2009: 32-3). Cumpre somente lembrar que Hartog prosseguiu em suas reflexões, respondendo a esta e outras dificuldades (HARTOG, 2010: 768-769). Outro trabalho muito significativo é o de Daniel Creutz, sobre o historiador e teórico alemão Johan Gustav Droysen (1808-1884) e a historicidade no século XIX, quando foi concebida. Autor do primeiro tratado de teoria da história, a Historik (1882), Droysen colocava em posição de centralidade a historicidade do historiador, ou seja, a premissa da interpretação do passado a partir das condições do tempo presente. Ele fora buscar na hermenêutica os critérios para a crítica e interpretação das fontes, segundo o lema da “compreensão mediante pesquisa” (CREUTZ, 2009: 56).

O segundo segmento concentra a atenção na obra de Koselleck (falecido em 2006, o livro também cuida de homenageá-lo). Além do texto do próprio Koselleck, há os estudos de Jochen Hook, “A contribuição de Reinhart Koselleck à teoria da história”, e de François Dosse, “Reinhart Koselleck entre semântica histórica e hermenêutica crítica”. Dosse pondera sobre a impossibilidade de se pensar a dinâmica histórica, depois de Koselleck, sem levar em consideração as categorias meta-históricas “experiência” e “expectativa”. Isso conduz, por exemplo, a um “elogio controlado do anacronismo”, na expressão do autor, devido ao cruzamento ou sobreposição de múltiplas temporalidades, que formam camadas, se cruzam, se chocam ou se sobrepõem. (DOSSE, 2009: 121).

O movimento seguinte, a terceira parte, concentra o foco sobre as reflexões de Hartog. Além da entrevista com este autor, há os textos de Yanick Bosc, “Thomas Paine, nosso contemporâneo?”, e de Stéphane Van Dammme, “Uma historicidade tênue à distância”, sobre historicidade da história da filosofia. De Patrick Garcia, “Era uma vez a França: O presidente e a história da França (1958-2007)” trata dos usos políticos da historicidade pelo poder público, notadamente nos discursos presidenciais. Henri Rousso, em “Os dilemas de uma memória europeia”, indaga as dificuldades de equilíbrio, em tempos de “europeização”, entre uma memória artificial, tábula rasa do passado comum europeu, e o ranço de um passado traumático de paixões nacionalistas (ROUSSO, 2009: 220). Por fim, na entrevista com Hartog, os organizadores Delacroix, Dosse e Garcia o instigam com diversos questionamentos. Hartog defende que, hoje, como elaboração de experiências individuais e coletivas do tempo, se historicizaria a historicidade ela mesma. Para ele, “logo haverá uma história possível da historicidade” (HARTOG, 2009: 142).

A seção final abre a discussão para o enfoque da temporalidade em outras áreas de investigação (psicanálise, linguística, antropologia, geografia). Marie-Odile Godard, no texto “Acontecimento e psicanálise”, estuda os impactos do acontecimento sobre a vida psíquica do inconsciente, sobretudo os sintomas de repetição nos casos de traumas de guerra. Ela aponta que historiadores e psicanalistas trabalham com o mesmo pressuposto de reconstrução do passado, individual ou coletivo, embora para o historiador a prova documental seja mais valiosa que o testemunho oral e os lapsos de linguagem (GODARD, 2009: 236). Enquanto isso, Philippe Simay, em “O tempo das tradições: antropologia e historicidade”, reflete sobre as transformações da antropologia social, que nos últimos anos vem questionando internamente a noção corriqueira de tradição e movimentando as suas próprias fronteiras, não só entre sociedades ditas tradicionais ou modernas, mas também entre os saberes etnológico e histórico (SIMAY, 2009: 273).

Sem perder de vista a dimensão memorial, à base mesmo de toda relação social com o (s) tempo(s), o livro conta com contribuição relevante (e polêmica, fora de dúvida) de Enzo Traverso sobre trauma e historicização do nazismo. Ele a analisa a partir da troca epistolar entre Martin Broszat e Saul Friedländer nos anos 1980. Estes dois historiadores, da mesma geração, tinham posições opostas no tocante às discussões da historiografia relativa ao período do nacional-socialismo. Muito simplificadamente, os contornos gerais do debate são: Broszat, em 1985, publicou artigo sobre a historicização do nazismo, em favor de uma normalização da consciência histórica alemã (TRAVERSO, 2009: 261). Friedländer, em resposta, adverte que suas consequências, ao contrário das intenções do autor, se traduziam em “procedimento empático de identificação com os atores do passado” (TRAVERSO, 2009: 266), podendo beneficiar os algozes, ao humanizá-los. Ao mesmo tempo, implodia – só então – na sociedade alemã a controvérsia em torno do holocausto. Para E. Traverso, mesmo hoje, como diria Friedländer a Broszat em 1987, “uma fusão de horizontes [integradora dos pontos de vista opostos] ainda não está em vista” (TRAVERSO, 2009: 270).

“Comentários sobre a geograficidade”, por Jean-Marc Besse, é um texto que desperta muito interesse, em função das transferências explícitas de saberes entre disciplinas. Com base em Hartog e os régimes d’historicité, Besse propõe conceito similar para a geografia, de um ponto de vista meta-geográfico. Ele procura “universais” equivalentes, no caso dos regimes de historicidade, à tríade passado-presente-futuro. Sugere, como tais, para a consciência geográfica, a “separação” (a experiência da diferença dos lugares), a “orientação” (espacial), a “inclusão” (ser ou estar em) e a “dimensão” (do espaço). Estes seriam dados meta-geográficos a serem verificados nos diferentes regimes histórico-culturais de “geograficidade” (BESSE, 2009: 296). Este conceito não estaria confinado somente às especialidades dos geógrafos, senão implicado – sobretudo hoje na unidade global – em um certo “sentido do mundo e de sua dimensão”. Pressuposto vizinho à historicidade, o regime de geograficidade encontra na dimensão do mundo terrestre análogo à finitude da existência humana (BESSE, 2009: 299).

O grande mérito da obra coletiva é a multiplicidade de abordagens e busca por aplicação da noção de historicidade a pesquisas empíricas de áreas diversas, como a geografia e a psicanálise. O livro conduz – porque propositivo, e não sintético – um estimulante balanço da atualidade da temporalidade nas ciências humanas e sociais. Dado seu caráter compreensivo, a obra suscita inúmeras reflexões. É chegada então a hora, como sugere Hartog, de uma história da historicidade? Ou ela representa, ao final, um indício de nossa atual incapacidade de romper com o eterno retorno do mesmo e projetar novamente um futuro razoável? É este o momento de fremir o domínio obsedante do presente e investir em cenários menos pessimistas? Certamente, não há resposta em via exclusiva. Segue que se deva acompanhar os debates e torcer pelo aparecimento de novas propostas que avancem sobre ulteriores questões.

Daniel Creutz, em insight brilhante, chama a atenção para a importância de uma “categoria de humanidade” presente em Droysen, que pode ainda servir de referência ao pensamento histórico contemporâneo e à história global (CREUTZ, 2009: 59). A noção de historicidade, depreende-se, poderia ser mobilizada a fundamentar um futuro mais aberto e plural, de defesa incondicionada dos direitos humanos e do meio ambiente. Nos dizeres da filósofa da ciência Isabelle Stengers e do físico-químico Ilya Prigogine, afinal, é tempo de “pensar a solidariedade entre os tempos múltiplos que compõem o nosso universo, entre os processos que partilham o mesmo futuro, e talvez mesmo entre esses próprios universos […]” (PRIGOGINE; STENGERS, 1990: 228).

Referências

HARTOG, François. Historicité/Régimes d’historicité. In: DELACROIX, C.: GARCIA, P.; OFFENSTADT, N. (Dir.) Historiographies, II: concepts et débats. Paris: Éditions Gallimard, 2010, pp. 776-771.

SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da história intelectual: entre questionamentos e perspectivas. Campinas: Papirus, 2002.

PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. Entre o tempo e a eternidade. Lisboa: Gradiva, 1990.

Raphael Guilherme de Carvalho – Mestre em História (UFPR). Doutorando em História (UFPR).


DELACROIX, Christian; DOSSE, François; GARCIA, Patrick (Orgs.) Historicités. Paris: La Découverte, 2009. Resenha de: CARVALHO, Raphael Guilherme de. Aedos. Porto Alegre, v.6, n.15, p.181-186, jul./dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

Expansión de la frontera y ocupación del nuevo sur. Los partidos de Arenales y Ayacucho, Provincia de Buenos Aires, 1820-1900 | Valeria D’Agostino

Expansión de la frontera y ocupación del nuevo sur… es un aporte al conocimiento de las formas de ocupación del territorio bonaerense una vez abierto el camino hacia el sur del Río Salado. Valeria D´Agostino nos propone hacer un recorrido por el proceso de poblamiento y ocupación de las tierras de los partidos de Arenales y Ayacucho (actual partido de Ayacucho) de la provincia de Buenos Aires, en el período que acontece desde 1820 a 1890, ampliando la perspectiva de análisis sobre esta temática que ya ha sido abordada para otros territorios bonaerenses como Chivilcoy, Dolores, Lobería, Tandil, entre otros.

Como indica la hipótesis principal de este trabajo, en el transcurso del siglo XIX, se dio en esta zona de nueva ocupación un proceso paulatino de consolidación de los derechos de la propiedad sobre la tierra, del cual resultó el afianzamiento de un sector de grandes propietarios, que sin embargo, no dejo exenta la conformación de pequeñas y medianas propiedades.

Dos ejes articularan su análisis: la diferencia entre la historia de la propiedad y la historia de la ocupación de las tierras. Para entender esta diferencia, en la investigación se abordan las características del proceso de cesión, por parte del Estado provincial bonaerense, de las tierras públicas del “nuevo sur” y su apropiación por particulares en el transcurso del siglo XIX.

La historia de la propiedad de la tierra y de la conformación de un sector de propietarios han sido dos de las problemáticas que más han acaparado la atención de los historiadores según la autora. Desde los estudios institucionalistas que criticaban al latifundio y el acaparamiento de tierras, hasta los estudios más recientes de la década del ochenta que se orientaron en la caracterización del sector hacendado terrateniente, su relación con la estructura económica y su influencia en la política provincial y nacional, la propiedad de la tierra ha sido objeto de discusión. En este sentido, D´Agostino ha venido examinando en estudios anteriores las características de la conformación de la propiedad, el mercado y la ocupación de tierras en los territorios de Ayacucho y Arenales. En el trabajo aquí reseñado, la propiedad es pensada como una relación social, abriendo nuevas puertas de análisis que permiten observar el entramado social de la época, a partir de los regímenes de ocupación de la tierra, de las relaciones de poder, de los vínculos entre los poseedores de las tierras, las relaciones familiares, el rol del Estado, entre otras. Entendida de esta forma, la propiedad está sujeta a la dinámica social que conlleva a la transformación, mutación y creación de nuevas especies de derecho de la misma, y esto es de alguna manera lo que enriquece esta perspectiva.

La autora se introduce en las diferentes decisiones tomadas por los gobiernos provinciales respeto a qué hacer con las tierras públicas, identificando distintos momentos de relevancia que permiten diferenciar el rol particular del Estado en cada uno de los mismos. El sistema de enfiteusis instalado en la década del veinte, la ley de venta de las tierras públicas sancionadas en 1836, la compra de boletos de premios durante el gobierno de Rosas caracterizó esta incipiente ocupación de los territorios en el Nuevo Sur. La mayor ruptura en la historia de la apropiación de estas tierras la observa en los embargos desencadenados, luego de la Revolución de los Libres del Sud, por el gobierno de Rosas.

La legislación posterior a la caída de Rosas, significó el comienzo del fin de la ocupación sin títulos de los terrenos fiscales y el intento de organizar las tenencias de las tierras, a partir de la sanción de la ley de arrendamientos de las tierras públicas. En la zona de Arenales y Ayacucho, D´Agostino observa que las cesiones por parte del Estado y la aparición de los primeros propietarios se dieron en forma paralela a las negociaciones entre los particulares ya sea por ventas o por herencia lo que conllevó a la división de las tenencias y la aparición de nuevos propietarios.

Estos cambios que se dictaminaban a partir de las medidas de un Estado que buscaba organizar el territorio, originaron ciertos conflictos generados principalmente por las disputas sobre los terrenos públicos, la posesión y propiedad de poblaciones y la fijación de límites de las propiedades o tenencias. La mayor parte de estos conflictos los visualiza en la segunda mitad del siglo XIX. La autora aclara que si bien la mayoría de los conflictos se resolvían apelando a la costumbre y antigüedad en la posesión, existe un caso particular que apela a la ley como fuente de derecho para reclamar sobre esas propiedades, y que de alguna manera representa una nueva forma de percibir los derechos de propiedad. “Los argumentos invocados en las situaciones de litigio que se produjeron a fines de la década de 1850 se referían a derechos sustentados en la antigüedad de la ocupación y en la posesión continua y pacífica. La propiedad aparecía digitada en la posesión, era el derecho de ocupación. Pero hacia fines de la década siguiente (…) se hace referencia a la ley como fuente de derecho a la propiedad, y al estado como garante de su ejercicio” (pág. 294).

Otra de las temáticas que aborda a la hora de pensar las transformaciones en la ocupación de las tierras, son los diversos mecanismos utilizados por los interesados para hacerse de las mismas. La ocupación sin títulos, la presencia de los “agregados”, la contratación rural, basada en contratos de arrendamientos, de sociedad y compañías (explotación directa a cargo de los enfiteutas-propietarios), la aparcería, constituyen algunos de ellos.

Finalmente, D´Agostino presenta tres casos particulares en los que se pueden ver las diferentes características que asumió el proceso de acceso a la propiedad: Félix de Álzaga, Francisco Cuelli y Simón Ezcurra. En estos casos, se visualiza, por un lado, la importancia de los vínculos políticos, económicos y sociales a la hora de hacerse de las tierras. Por otro, cada uno de ellos nos dice mucho sobre las políticas del estado provincial con respeto a las tierras y las transformaciones ocurridas en el modo de reglamentar la entrega de las mismas: la enfiteusis, los boletos de premios, el sistema de arrendamientos, la compra en el mercado público o privado. Cabe aclarar el rol fundamental de los vínculos familiares y las relaciones entre ellos que contribuyeron o no a mantener las propiedades; tal es el caso de Félix de Alzaga y las disputas por la herencia de sus propiedades por parte de sus hijos luego de su muerte. La propiedad, sostiene D´Agostino, “en tanto construcción histórica, es producto de un momento histórico dado y de la imposición de determinados intereses; como tal la propiedad es relación social” (Pág.294) y es eso lo que se deja entrever a lo largo de los seis capítulos en los que se estructura el libro, los cuales echan luz sobre un territorio en plena transformación, una sociedad en crecimiento y un Estado buscando legitimarse como tal.

Silvana Villanueva – Facultad de Ciencias Humanas, Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires.


D`AGOSTINO, Valeria. Expansión de la frontera y ocupación del nuevo sur. Los partidos de Arenales y Ayacucho, Provincia de Buenos Aires, 1820-1900. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2012. Resenha de: VILLANUEVA, Silvana. Aedos. Porto Alegre, v.6, n.14, p.148-150, jan./jul., 2014. Acessar publicação original [DR]

A redenção de Deus: sobre o Diabo e a inocência | Alexandre M. Cabral e Jonas N. Rezende

O tema do paraíso fascina o ser humano desde longa data. Para muitos, o mais célebre jardim da história foi o Éden e sua representação bíblica goza até hoje de uma grande força figurativa. O relato bíblico apresenta o deus hebraico como um ser repleto de poderes agrícolas, pois foi ele quem criou a terra, a água, a vegetação e o homem (feito de barro). Não só isso. Para além da descrição idílica, o mito do paraíso também deixa vir a lume um conflito que não tem fim: a “guerra entre Deus e o Diabo”, da qual o homem não pode escapar. É com esse pano de fundo que os filósofos Alexandre Marques Cabral e Jonas Neves Rezende buscam explicar de que maneira essa lógica binária faz-se presente no imaginário social cristão ocidental. Trata-se de uma tarefa hercúlea, contudo os autores conseguem atingir os fins a que se propõem. A obra seduz do início ao fim o leitor por meio de linguagem e estilo de ensaístas literários que buscam destacar tanto as imagens simbólicas quanto as discussões filosófico-teológicas em torno dessa narrativa.

O livro divide-se em duas partes: um ensaio filosófico-teológico de Alexandre Marques Cabral e, em seguida, um poema de Jonas Rezende. Juntos, os autores visam desconstruir a oposição que se petrificou e que ainda faz-se sentir na cultura ocidental cristã: Deus e Diabo. Do primeiro, reteve-se o bom, o justo, a glória; do segundo, o pecado, a rebelião, a inveja. Como é sabido, esse pensamento um tanto maniqueísta gerou inúmeras contestações na história e é exatamente esse aspecto que os autores buscam desvendar ao longo da obra.

Já na introdução, denominada Mito, verdade e existência, Resende não entra na discussão de explicitar se o mito (mythos) é incompatível com a ciência. É verdade que, para o homem contemporâneo preso ao pensamento lógico (logos), cartesiano e racional, os mitos são geralmente considerados ilusórios, fantasiosos e mentirosos. Todavia, segundo o autor, é preciso empatia nessa discussão para se compreender que também o mito contém realidades profundas, ocultando um tipo específico de verdade. Por conseguinte, se o mito do paraíso possui suas mais puras e coerentes representações de cunho religioso, isso não é razão para o cientista social descartá-lo como mera construção fantasiosa. Essa postura poderia levar o historiador a negar falaciosamente, por exemplo, que a literatura ou a poesia, só para citar dois exemplos, tenham qualquer aspecto válido a ensinar acerca da realidade. Logo, não é porque o Éden não existiu no plano concreto que esse espaço tenha deixado de ser sonhado e buscado. Sua verdade e sua lógica não são teóricas. Ao contrário. Por isso, os autores concebem “o mito como uma metanarrativa que fala metaforicamente de um universo atemporal” (CABRAL, 2012, p.78). Nesse sentido, à luz das discussões de Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), perfila-se, ao longo da obra, pensar o real por intermédio do mito, admitindo que também o mito produz uma espécie de cosmovisão específica.

O primeiro capítulo, A lógica do paraíso, analisa os relatos presentes no Gênesis, explicando seu universo semântico, mas sem apresentar qualquer fórmula hermenêutica que encontre no relato uma “verdade absoluta”. O que mais interessa aos autores é compreender de que maneira o mito do paraíso perdido pôde ser apropriado criativamente pelos homens ao longo do tempo e quais elementos simbólicos foram perdidos após a “queda”; é esse aspecto que pode auxiliar pesquisadores das mais diversas áreas a entender a eterna “guerra entre Deus e o Diabo”. Enfatizando a primeira parte do mito do paraíso perdido, a obra auxilia o leitor a perceber de que maneira a representação do jardim paradisíaco foi sendo associada quase sempre a uma região verdejante impregnada de enorme beleza cênica que exprime conforto, alegria, paz. Por ser um santuário, era como um espaço em que o deus hebraico representativamente andava e se comunicava com o primeiro casal humano. Assim, o mito hebraico da criação instituiu no imaginário social uma divindade onipotente e perfeita em oposição ao diabo, sempre identificado como adversário, corruptor, enganador. A obra lembra, todavia, que satanás e o deus hebraico estavam juntos no jardim e que ambos pertenciam, cada um à sua maneira, à plenitude desse espaço. Para o autor, essa harmonia conflitiva entre um e outro compunha os traços do próprio jardim e exibia esses personagens como adversários, mas não inimigos.

O segundo capítulo, O fim do paraíso: a genealogia do mal, busca explicar como a “queda” deu origem ao que os autores denominam “teatro de horrores”, que engendrou e justificou ao longo da história ocidental uma pluralidade de sofrimentos. Explana que nada externo destruíra o paraíso. A rebelião, a bem da verdade, começou por dentro. Simbolicamente, a perda da região paradisíaca demonstrou que ali não era um espaço de necessidade, mas de liberdade. A tentação, o desejo que possuiu o fruto proibido, a possibilidade de “ser como Deus”, constituem características dessa parte do mito. Mas, com a expulsão do homem do jardim, confusão e pecado se introduziram no mundo. A natureza passou a assumir um aspecto de inimigo caótico e violento contra o qual teria o homem de lutar. Assim, “Fora do paraíso, Deus tornou-se um forasteiro e Satanás transformou-se em eterno companheiro” (CABRAL, 2012, p.174). A partir da “queda”, os humanos serão encarados como seres em eterna disputa entre o seu criador e o diabo. A dualidade entre o centro (paraíso) e a periferia (ermo), tão perfeitamente ancorada na organização concreta dos espaços vividos, é um aspecto interessante a se notar nesse mito, supondo outra dualidade que opõe interior e exterior. Disso resulta, segundo o autor, a valorização do centro positivo e sacralizado (por oposição à periferia) e uma interioridade vigorosa e protetora (por oposição ao exterior). A “expulsão” ou “a queda”, enquanto deslocamento para o exterior, significa, no nível simbólico, uma espécie de confrontação com um mundo diferente, outro espaço, “um vale de lágrimas”. A travessia reforça tão somente a perda de ligação com o lugar protetor conhecido (o ecúmeno), e por isso a realidade também passará a ser dividida entre dois reinos no cristianismo: Céu (alto, superior, bom) e Inferno (baixo, inferior, mal). Esse sistema binário ajuda a explicar em parte o porquê de o Cristianismo valorizar sobremaneira o futuro, o post-mortem, exigindo dos homens um eterno processo de purificação.

Esse é o momento em que surge a “geografia espiritual” para a consciência judaica. Deus, que fugira da Terra após a queda do paraíso, habita os “Céus”. Satanás, que caíra dos céus levando uma miríade de demônios, entrou na terra e passou a comandar o inferno. Alguns anjos perseveraram ao lado de Deus. Já Satanás e seus demônios passaram a marionetizar a Terra, manipulando seres humanos à perdição (…). A divisão Céu/Inferno foi acompanhada de uma imagem ambígua da Terra. Se Deus está para além da vida terrena, estar com ele é um evento post-mortem. Se o diabo está dentro da Terra, também para estar integralmente com ele é necessário morrer. Por isso, a terra tornou-se um campo minado: ora explodem as bombas dos demônios e ora aparecem as espadas e escudos dos anjos. Aqui se decidem o céu e o inferno, pois é aqui a bilheteria onde compramos a entrada para o Céu ou para o Inferno (CABRAL, 2012, p.181-2).

O terceiro capítulo, Ocidente e ascese: a falência da oposição entre Deus e Diabo, questiona se o paraíso é de fato o paradigma fundamental do Ocidente. Para tanto, os autores abordam a questão sob a ótica dos estudos do biblista alemão Julius Wellhausen e dos escritos de Platão. Os efeitos colaterais na busca de uma ascese são evidentes no Ocidente cristão: agir moralmente, ser autovigilante, subjugar os prazeres carnais, controlar as tentações. Disso depende a salvação individual. A partir desse férreo controle, existe a possibilidade de o cristão ser digno de “entrar no céu”. Todavia, longe de significar fidelidade para com os preceitos divinos, esse autocontrole denota que o homem ocidental tem, na verdade, temor de sua perdição. As consequências desse paradigma são bem conhecidas dos historiadores: ao longo da história os cristãos mataram, difamaram, perseguiram, destruíram e anularam os “elementos tentadores” (ateus, bruxas, homossexuais, etc.). Tudo isso em nome de um ideal maior. Por isso, cristianismo e terrorismo são irmãos siameses. Olhar para um sem ver a presença do outro é praticamente impossível: “Os fundamentalismos de toda espécie, a homofobia, a misoginia, etc. sempre estiveram a serviço de um ideal de bem supremo, que funcionaliza toda realidade, posicionando-a a seu serviço” (CABRAL, 2012, p.261, grifos do autor).

O último capítulo, denominado A redenção de Deus ou o desamaldiçoamento do Diabo, busca ressignificar os personagens principais da narrativa paradisíaca do Gênesis (o deus hebraico e o diabo), dando-lhes novos sentidos. Para tanto, os autores destacam o pensamento de Willian Blake, artista londrino que se notabilizou por suas pinturas e poemas. A “lógica do jardim” deveria ser analisada à luz da supressão da dicotomia Bem/Mal e da integração Deus/Diabo, uma vez que existe uma funcionalidade do diabo que o cristianismo tende a abafar.

São, dessa maneira, demasiadas as áreas de sombra que, provavelmente, emergirão dessa obra, o que recomenda doses de tolerância aos leitores mais exigentes. Afinal, sendo a Filosofia um estudo que se caracteriza pela intenção de ampliar incessantemente a compreensão da realidade, no sentido de apreendê-la na sua totalidade, ela guarda óbvias afinidades com a racionalização e as demais operações de que faz uso para compreender o homem. Eis uma obra ricamente erudita e repleta de informações filosóficas. É contundente a profundidade das colocações dos autores e, consequentemente, notável seu valor, bem como o prazer que se extrai do texto. Obra vigorosa que elucida o mito do paraíso e a oposição entre Deus e o Diabo e que age sobre as mais variadas concepções. Não é a esperança do paraíso celeste um desejo de retorno à felicidade perdida no Gênesis? De fato, como interpretar as utopias e seu singular adendo que é o tão aclamado paraíso? Simples fantasia literária? Talvez aqui, considerada em sua ampla dimensão histórica, a primeira hipótese comece a revelar-se mais interessante. E mais complicada.

Wallas Jefferson de Lima – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do CentroOeste (PPGH/Unicentro). E-mail: [email protected]


CABRAL, Alexandre Marques; REZENDE, Jonas Neves. A redenção de Deus: sobre o Diabo e a inocência. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012.  Resenha de: LIMA, Wallas Jefferson de. Aedos. Porto Alegre, v.6, n.14, p.155-158, jan./jul., 2014. Acessar publicação original [DR]

Um patrimônio em contendas: os bens jesuíticos e a magna questão dos dízimos no estado do Maranhão e Grão-Pará (1650-1750) | Raimundo M. Neves Neto

No centro histórico de Belém (PA), situa-se ainda hoje o imponente complexo arquitetônico de Santo Alexandre, obra paulatinamente erigida entre os séculos XVII e XVIII pelos padres da Companhia de Jesus. Em dissertação recentemente defendida (LOPES, 2013), analisei a forma com esses prédios (colégio e igreja) foi conscientemente incorporado à paisagem de poder do bairro que, à época colonial, era o mais destacado politicamente na cidade. Localizado entre os edifícios síntese do poderio instituído, essas construções jesuíticas tornaram-se, elas mesmas, um conjunto discursivo de afirmação da presença inaciana na Amazônia. Foram, e são, nesse sentido, a síntese material da ação missionária, incorporada em termos espaciais, volumétricos e decorativos.

A opulência da arquitetura dos discípulos de Santo Inácio de Loyola, todavia, mantém relação imediata todo o articulado mecanismo econômico da Missão do Maranhão, essencial para manutenção dos colégios e residências desses padres. É justamente essa dinâmica de produção e gerenciamento do patrimônio jesuítico o alvo de estudo do livro de Raimundo Moreira das Neves Neto, “Um patrimônio em contendas: os bens jesuíticos e a magna questão dos dízimos no estado do Maranhão e Grão-Pará (1650-1750)”, fruto de sua dissertação de mestrado no Programa de PósGraduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará.

Produto de pesquisa acadêmica iniciada ainda em sua graduação em História, o livro se insere no necessário debate acerca das práticas econômicas dos jesuítas, tema que há tempos carece de investigações sistematizadas, tal como já indicava Serafim Leite (1953), um dos estudiosos com maior domínio na documentação histórica relativa aos padres inacianos. Preocupação historiográfica, por certo, adivinha das repetidas alusões presentes nesses documentos, nos quais colonos e autoridades coloniais reclamavam do poderio financeiro dos filhos de Loyola em terras amazônicas e, quiçá, do estado do Brasil.

Dividido em três capítulos, a obra de Neves Neto dá conta de pormenores da articulação administrativa e política dos jesuítas para construírem seu patrimônio no Maranhão e Grão-Pará, entre os anos de 1650 e 1750. No primeiro desses capítulos, o autor estabelece os parâmetros do modo jesuítico de acúmulo de bens materiais, ainda no século XVII. Trata de evidenciar as medidas iniciais dos padres para aquisição e aumento das fazendas – os núcleos de produção na Missão –, doações de terras, criação de animais, plantações, tanto na capitania do Maranhão, quanto na do Grão-Pará. Nessa seção do trabalho, essas fazendas, bem como os engenhos, são detidamente descritos em seu aparato material e organizacional. Mais do que isso, Neves Neto nos informa da estrutura hierarquizada da organização administrativa jesuítica, na qual havia padres com cargos específicos ao gerenciamento do patrimônio, os procuradores e os reitores dos colégios. Eram esses agentes os conhecedores da legislação colonial e dos potenciais benfeitores da Ordem, notadamente os moradores abastados da Colônia.

No capítulo 2, o debate recai sobre as atividades temporais dos padres da Companhia de Jesus. Essencialmente, essa questão se liga às práticas produtivas e de comércio desenvolvidas com os itens produzidos nas fazendas ou advindos das coletas das drogas do sertão. Essas atividades, por outro lado, possuíam privilégios, espécies de subsídios traduzidos em controle da mão-de-obra indígena e isenção de impostos, então denominados dízimos. Neves Neto explicita os números brutos dos produtos saídos dos portos de Belém, fornecendo dados quantitativos da circulação de mercadorias dentro do império português. Singular neste capítulo é observar o alcance da produção inaciana no mundo colonial, não apenas do ponto de vista da articulação dentro do Maranhão e Grão-Pará com as trocas entre os Colégios de São Luis e de Belém, mas também do que era exportado. Vislumbra-se, desse modo, a imperiosa necessidade de observar a relação local-global que enseja a ação jesuítica no mundo colonial, como já indicou Dauril Alden (1996).

Na última parte do livro, o historiador discute um ponto chave em estudos da economia jesuítica: os dízimos. Uma “grave questão”, como reitera Neves Neto, que diz respeito à relação da Ordem com a Coroa portuguesa, necessariamente ligadas pelo padroado régio. Para além de localizar o leitor em todas as dimensões que essa política esteve envolvida, o autor lança olhar sobre as filigranas das argumentações inacianas para exercer seus privilégios, principalmente diante das constantes oposições dos colonos. Se no capítulo anterior Neves Neto consegue dá conta do exercício produtivo da Companhia de Jesus, mostrando como ela executava suas atividades econômicas, nessa seção é desvelada a articulação efetuada pelos padres no manejo da legislação, imprescindível à legitimação de suas atividades temporais. Tais argumentos focalizavam no imperativo dessas práticas para o desenvolvimento efetivo do cotidiano missionário, ou seja, da evangelização. Do mesmo modo, é relevante a inserção dos discursos dos outros agentes, não religiosos, acerca do império econômico jesuítico, o que garante ao leitor a percepção da complexidade das relações no mundo colonial. Devo mencionar que as menções a essa rede de interpretações legais por parte dos jesuítas e colonos é presente em todo o texto de Neves Neto.

O livro aqui resenhado já é leitura obrigatória a quem deseja conhecer uma das dimensões do mundo jesuítico, a do seu patrimônio, lacuna que gradativamente vem sendo preenchida por obras de referência como esta, inedita para a Amazônia colonial. A rica documentação, associada com o excelente diálogo com a historiografia, fornece voz ao emudecimento apontado por Paulo de Assunção (2004) quanto se refere às análises sobre as práticas econômicas jesuíticas, provadas, em verdade, pela dispersão das fontes pertinentes ao assunto. Além disso, a pesquisa de Neves Neto permite o debate de período ainda pouco visitado pela historiografia amazônica, o século XVII e primeira metade do XVIII.

A leitura do trabalho aqui resenhado, ainda em seu formato de dissertação, também propiciou à minha pesquisa de mestrado a observação das particularidades da produção dos bens materiais jesuíticos. O meu foco na conformação de suas edificações, analisadas em conjunto, no bairro central da Belém colonial, não poderia estar desvinculada do entendimento da dinâmica própria a essa Ordem religiosa no que diz respeito à conformação de seu patrimônio. A gama de cultura material produzida pelos inacianos, considerando o contexto apontado por Neves Neto, é inteligível dentro da perspectiva da relação ativa que há entre sociedade e objetos (LIMA, 2011). Sinteticamente, um dos esforços dos jesuítas estava na conformação de bases materiais para consolidação da ação expansionista de fé católica, associada à política mercantil, nesse caso portuguesa. Desse modo, as paredes do Colégio e Igreja dos inacianos em Belém, tal como em outras partes do mundo, são a dimensão concreta das relações sociais do mundo colonial (LIMA, 2011; LOPES, 2013).

Referências

ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: The Society of Jesus in Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750. Stanford: Stanford University Press, 1996.

ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

LEITE, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil: 15000 a 1552. Lisboa/Rio de Janeiro: Edições Brotéria/Civilização Brasileira, 1953.

LIMA, Tânia Andade de. Cultura material: a dimensão concreta das relações sociais. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, v.6(1), p.11-23, 2011.

LOPES, Rhuan Carlos dos Santos. “Melhor sítio da terra”: Colégio e Igreja dos jesuítas e a paisagem da Belém do Grão-Pará, Um estudo de arqueologia da arquitetura. 2013. Dissertação de Mestrado (Antropologia) – Universidade Federal do Pará.

Rhuan Carlos dos Santos Lopes – Discente de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA). E-mail: [email protected]


NEVES NETO, Raimundo Moreira das. Um patrimônio em contendas: os bens jesuíticos e a magna questão dos dízimos no estado do Maranhão e Grão-Pará (1650-1750). Jundiaí: Paco Editorial, 2013. Resenha de: LOPES, Rhuan Carlos dos Santos. Aedos. Porto Alegre, v.6, n.14, p.151-154, jan./jul., 2014. Acessar publicação original [DR]

François Duprat, l’homme qui inventa le Front National | Nicolas Lebourg e Joseph Beauregard

O livro François Duprat, L’homme qui inventa le Front National [2] é parte de um ambicioso projeto desenvolvido por dois autores franceses, o historiador Nicolas Lebourg e o cinegrafista e documentarista Joseph Beauregard. Essa parceria teve como objetivo reconstruir os passos e a história do político francês François Duprat. Em abril de 2011, os autores realizaram, em parceria com o jornal Le Monde, o Institut National de l’audiovisuel (INA) e a 1+1 Production, a produção de um documentário que tentou explicar a trajetória política de Duprat e o papel essencial que ele desempenhou nos grupos de extrema direita. Após a realização do documentário, foi concretizada a elaboração deste livro, escrito apenas por Nicolas Lebourg, que, porém, deu créditos a Beauregard também. A obra foi lançada pela editora francesa Denoel em 2012.

Nicolas Lebourg é um historiador da Universidade de Perpignan, na França. Um dos seus principais campos de pesquisa é sobre a extrema direita europeia, principalmente o partido francês Frente Nacional. Conhecido e estimado pela qualidade do seu trabalho e por outros pesquisadores na História de facções políticas. Lebourg também é conhecido por seu blog Fragments sur les Temps Présents [3] (Fragmentos do Tempo Presente) e por seus artigos em revistas e periódicos especializados. Ele também é autor do livro Le monde vu de la plus extrême droite: Du fascisme au nationalisme-révolutionnaire [4] (O mundo visto da mais extrema direita: Do fascismo ao nacionalismo revolucionário).

No início do livro, a fim de legitimar a importância da pesquisa, os autores fazem uma ressalva demonstrando o porquê de se estudar à “Nova Direita’ e a influência e o papel primordial de Duprat nos movimentos, ressaltando a importância da obra. Personagem misterioso e fundamental da extrema direita francesa, ele atravessou um quarto de século da política francesa e internacional. Sua morte misteriosa antes do primeiro turno das eleições legislativas em 1978, deixou uma imagem de mártir da “causa nacional” nos grupos de extrema direita. Ele foi assassinado aos trinta e oito anos de idade, em um atentado a bomba, que explodiu seu carro em uma pequena estrada na Normandia em março de 1978. Este obscuro militante da extrema direita francesa, segundo os autores, aparece hoje esquecido pela Frente Nacional e por outros grupos radicais que ele ajudou a fundar.

A obra é importante nesse aspecto: Lebourg e Beauregard o tiram do esquecimento e do ostracismo, pois estudar o Nacionalismo Revolucionário desenvolvido por Duprat, pode nos auxiliar a compreender a formação ideológica dos partidos de extrema direita em ascensão hoje na Europa, pois além dele ter sido fundamental no desenvolvimento dessas organizações, os grupos utilizam conceitos desenvolvidos por ele. O livro, que à primeira vista parece, em seu formato, uma biografia do político, elimina essa dúvida em suas primeiras páginas, pois ultrapassa esse conceito, fazendo um importante balanço historiográfico da extrema direita na França, durante a V República (1955 – ).

François Duprat provinha de uma família de classe média do interior. Sua família tradicionalmente possuía vínculo com partidos de esquerda. Em sua adolescência ele se considerava trotskista, porém logo romperia com a esquerda e passaria a militar nos grupos conservadores. Em 1958 Duprat se filiou a um grupo nacionalista, a Jeune Nation (Jovem Nação), e posteriormente sua participação seria crucial na fundação do partido Frente Nacional. Os autores apresentam, como tese central do livro, a ideia de que François Duprat correspondeu ao principal ideólogo da FN, a partir de uma rigorosa pesquisa, baseada em centenas de entrevistas e também de numerosos cruzamentos de fontes e documentos de arquivos públicos e privados. Os autores tiveram uma árdua tarefa de reconstruir o itinerário político e pessoal de Duprat, que contém muitos detalhes e análises políticas. Encontraram todas as testemunhas chaves, como a família de Duprat, seus companheiros, seus adversários, seus inimigos. Toda a informação é verificada, cruzada. Uma obra de investigação que credita o importante papel de François Duprat. Mesmo esquecido pelos companheiros de partido, o livro demonstra como ele teve um papel fundamental no nascimento e na ascensão da Frente Nacional. A obra apresenta detalhadamente todo o contexto do surgimento da FN, a maioria dos fatos são investigados.

Entre os anos de 1958 e1978, Duprat aderiu e militou ativamente em todos os movimentos de extrema direita que se formaram durante a V República, inclusive os de ideologias neonazistas. O primeiro em que ele se alistou foi o já mencionado Jeune Nation, um grupo de extrema direita, conhecido por sua violência, fundado por Pierre Sidos, durante a guerra da Argélia. Por causa do seu enorme interesse e militância, Duprat se envolveu em diversas organizações; Europa Jovem (Jeune Europe), A Organização Luta do Povo (L’Organisation lutte du peuple), Os Grupos Nacionalistas Revolucionários de Base (Les Groupes nationalistes-révolutionnaires de base), o Movimento Nacionalista Revolucionário (Le Mouvement Nationaliste Révolutionnaire), Terceira Via (Troisième Voie), Nova Resistência e Unidade Radical (Nouvelle Résistance et Unité Radicale) e o grupo de ação politica internacional denominado de A Frente Europeia de Libertação (Le Front Européen de Libération).Em cada organização ele procurou imprimir a sua influência teórica, para se tornar o principal intelectual da extrema direita.

Além do extenso conhecimento acerca dos movimentos de extrema direita das décadas de 60 e 70, a obra não se limita a apenas esclarecer a participação de Duprat nesses movimentos. Os autores investigam detalhes sobre a vida privada do personagem, sua dedicação com a militância política, suas relações familiares e as suas amizades com políticos de outros partidos, ainda que tais pontos não constituam o enfoque principal do livro.

François Duprat foi professor de História no Ensino Médio e também aparecia como um intelectual da extrema direita, colaborando com várias revistas e cadernos políticos. Ele foi o primeiro a publicar livros negacionistas na França e a revitalizar o antissemitismo e a negação do Holocausto, combinando negacionismo e antissionismo. Entre suas obras podemos citar: “A História da SS na França”, “História dos fascismos”, “Os fascismos do mundo”, “Manifesto nacionalista revolucionário”, “A Ascensão do MSI (Movimento Socialista italiano)”, “A cruzada Antibolchevique: A Defesa do Ocidente” e entre outros. Foi ele quem conceituou a noção de “nacionalismo revolucionário”, como uma atualização do “movimento fascista”.

Intelectual e militante, Duprat era conhecido por gostar de participar de manifestações violentas; mesmo sua deficiência visual, pois possuía uma forte miopia, não o desencorajavam a fugir de conflitos com a polícia ou partidos de esquerda. Como pesquisador do nacionalismo europeu, ele viajou pelo continente para conhecer outros organismos de extrema direita e criar alianças, devido a esse interesse por grupos nacionalistas. Fascinado pelos serviços de inteligência, foi pessoalmente encarregado pela Central de Inteligência da França, onde informou seu agente sobre as vicissitudes da extrema direita. Foi também para a Nigéria e Congo, em plena descolonização, para ajudar o campo anticomunista.

No decorrer das páginas, se descobre um ecletismo ideológico da extrema direita francesa. Ambos os autores deixam nas entrelinhas a perspectiva de que Duprat evoca um personagem que fascina as pessoas, em um meio político pouco intelectualizado e organizado. Além de detalhar a mentalidade singular do personagem, os autores procuram descrever e desmistificar rumores que rondam sua história de vida, tais como as possíveis relações de Duprat com a espionagem e serviços secretos, com a imprensa, com órgãos do Estado e as fontes de financiamento das suas unidades radicais. Existiam mitos de ele ser policial infiltrado dentro dos grupos da extrema direita. De participar das agências de inteligência da KGB, da CIA e da Mossad.

No início da FN, os grupos de Duprat representavam a ala mais radical do partido. Suas células nacionalistas revolucionários influenciaram fortemente a linha de discurso do partido. O legado de Duprat para a FN compreenderia o antiamericanismo, o antissemitismo, o anticomunismo, o combate à imigração, o discurso contra o multiculturalismo e a globalização. Podemos perceber grande influência da ideologia nacionalista revolucionária no novo discurso da Frente Nacional, hoje presidida por Marine Le Pen. Podemos dizer que o bordão criado por Duprat na década de 70 caberia perfeitamente nos discursos da extrema direita hoje: “um milhão de desempregados, é um milhão de imigrantes também”.

No fim do livro, o assassinato de Duprat é metodicamente estudado, como poderíamos esperar. Um pouco como uma investigação policial, os autores descrevem com força de detalhes as circunstâncias da morte de Duprat. Eles analisam todas as hipóteses sobre seu assassinato, dando a entender, que ela pode estar relacionada a uma disputa interna da extrema direita francesa. Como até hoje não foram encontrados os responsáveis pela sua morte, o livro deixa em aberto a possibilidade de uma nova investigação, de um futuro livro. Considerado como uma personalidade explosiva, os autores fecham o livro dizendo que sua morte reflete sua vida.

Notas

2. “François Duprat o Homem que inventa a Frente Nacional”.

3. http://tempspresents.wordpress.com

Referências

LEBOURG, N. Le monde vu de la plus extrême droite: Du fascisme au nationalisme-révolutionnaire. PU PERPIGNAN edition, France, 2010. Resenha de: FRANCO DE ANDRADE, G. O Mundo visto da mais extrema-direita, do fascismo ao nacionalismo revolucionário. Cadernos do Tempo Presente, v.12, n.1, p.1-3, 2013.

LEBOURG, N. Le monde vu de la plus extrême droite: Du fascisme au nationalisme-révolutionnaire. PU PERPIGNAN edition, France, 2010.

LEBOURG, N; BEAUREGARD, J. François Duprat, l’homme qui inventa le Front National. DENOEL edition, France. 2012.

Guilherme Ignácio Franco de Andrade1 – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História, Poder e Práticas Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste. Sob orientação do Prof. Dr. Gilberto Grassi Calil.


LEBOURG, N; BEAUREGARD, J. François Duprat, l’homme qui inventa le Front National. France: Denoel edition, 2012. ANDRADE, Guilherme Ignácio Franco de. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.290-293, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

História e Psicanálise: entre ciência e ficção | Michel de Certeau

“O que fabrica o historiador quando “faz história”? Para quem trabalha? Que produz?”2. Essas são as questões que norteiam a célebre obra de Michel de Certeau A Escrita da História onde aponta as principais características da “operação historiográfica” e os caminhos traçados pela historiografia no século XX. O autor, porém, não se limitou a esse trabalho, produziu uma vasta bibliografia resultante de sua reflexão sobre a elaboração do conhecimento histórico. Por volta de 1982 buscou dar continuidade a esse livro, através de uma coletânea que comporia um segundo tomo que nunca chegou a ser publicado pelo próprio autor3. Nesse volume reuniria vários artigos que tratariam da relação entre a história e a psicanálise. Após sua morte, em 1986, esse projeto foi retomado numa obra póstuma juntamente com outros artigos de sua autoria, todos já publicados, e que tratavam da mesma temática. Assim, em 1987 foi publicado em francês, pela editora Gallimard, a primeira edição de Histoire et psychanalyse entre science et fiction. Em 2002 foi lançada na França uma nova edição, revista e aumentada, com a introdução de Luce Giard. Essa edição foi traduzida para o português por Guilherme João de Freitas Teixeira sob o título História e Psicanálise: entre ciência e ficção, publicada em 2011 pela Autêntica Editora.

Nessa obra Certeau utiliza-se da literatura, da literatura psicanalítica, da historiografia e de vários estudiosos das mais variadas formações para estruturar seu pensamento. Encontramos nos seus textos estudos das obras de Freud como A ciência dos sonhos (1900), Totem e tabu (1912-1913), Mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939), bem como os diversos textos publicados por Jacques Lacan. E várias referencias de pensadores como Pierre Nora, Lévi-Strauss, Nietzsche, K. Popper, Todorov, Paul Veyne, Roland Barthes, Deleuze e especialmente Michel Foucault.

Neste livro, além das notas de rodapé do próprio autor, encontram-se várias notas do organizador da edição em francês, Luce Giard, geralmente para explicar onde foi inicialmente publicado cada texto e para fazer referências cruzadas ou referencias com outras obras do próprio Certeau. Existem também notas do tradutor quando há dificuldade de encontrar equivalentes entre o francês e o português, quando a tradução não garante todo o significado que existia no significante da língua original, ou nas diversas vezes em que o autor faz trocadilhos. No fim da coletânea nos é apresentada toda a bibliografia de Michel de Certeau. Em seguida, referências de estudiosos do pensamento do autor e por fim as referências bibliográficas das obras citadas no decorrer do livro, tanto pelo autor, quanto pelo organizador. Termina-se o livro com um índice onomástico.

A presente coletânea é composta pela introdução de Giard Um caminho não traçado em que percorre a relação de Certeau com o tema – história e psicanálise – bem como considerações acerca das obras e da vida do autor. Em seguida, uma série de dez capítulos, que foram publicados inicialmente de forma isolada e por diferentes meios, correspondendo a artigos científicos, capítulos de livros e conferências. Existe, contudo, unidade e sentido entre os textos, não apenas pela temática comum que os perpassa, mas também pela possibilidade de ponderar sobre a própria metodologia de Michel de Certeau e de perceber como suas ideias se imbricam em uma trama. Cada capítulo contribui para a maior compreensão do pensamento do autor, não de forma progressiva, pois não existe uma hierarquia entre os textos, mas passamos a perceber como os diferentes textos corroboraram na edificação de uma teoria coerente e complexa. Assim, à medida que os textos nos falam sobre a Escrita da História eles mesmos nos servem de modelo dessa escrita.

Os três primeiros capítulos – A história, ciência e ficção; Psicanálise e história; e O “romance” psicanalítico. História e Literatura – mostram a relação construída pelo autor entre a história e a psicanálise. Todavia, Certeau faz isso de modo cauteloso, sem misturar ou confundir as identidades de cada disciplina. Seu lugar de fala é a história, e deixa isso bem claro. Embora fosse membro participante e ativo da École Freudienne de Paris desde sua fundação, por Jacques Lacan, nunca se fez psicanalista profissional. Percorria por ambas as disciplinas, gostava da fronteira, mas não residia fora de sua formação. Não procurou construir uma epistemologia geral. Sua reflexão como epistemólogo origina-se de seu trabalho enquanto historiador da mística dos séculos XVI e XVII. Ao traçar relações entre a história e a psicanálise, não a faz por simples atração, capricho ou fruto de um insight. Certeau atravessava as disciplinas por necessidade, quando um saber não respondia suas inquietações, buscava satisfazê-las em outra, mas sempre orientado pela história. Desse modo tramitava pela filosofia, teologia, linguística, literatura, antropologia e especialmente a psicanálise.

O autor não busca historicizar a psicanálise, nem pretende criar uma explicação social e histórica para a sociedade contemporânea a partir de uma leitura psicanalista. A novidade do trabalho de Certeau reside na reflexão que realiza das empreitadas de Freud como historiador. De até aonde cabe, ou não, de até aonde soma, ou não, a teoria e metodologia da psicanálise aplicada à operação historiográfica.

Volta-se para o antigo debate entre a história e a ficção. Segundo Michel de Certeau ao realizar a crítica documental o historiador consegue diagnosticar o erro/falso nesses documentos. Esse erro é a ficção, que é transferida para o campo do irreal. O que resta acreditam os historiadores ser o real e, portanto, a verdade, que se dá pela denúncia do falso. Mas o discurso histórico utiliza-se da ficção: a econometria histórica (a suposição do que poderia ser); o uso de metáforas; a possibilidade de mais de uma interpretação. Todavia, o discurso do historiador não se torna uma mentira por se utilizar da ficção, nem abandona o status de ciência, mas é real na medida em que se considera uma representação dessa realidade. O problema reside na lógica adotada pelas ciências positivas que relacionam ficção ao irreal e apenas com Freud que essa relação é revista.

Freud não foi um historiador profissional, mas escreve sobre História, e faz isso com um toque de suspense do romance policial e a inquietação do romance fantástico. No seu fazer histórico ele desorganiza tudo o que os historiadores acreditavam estar arrumado. Ele foi o único autor contemporâneo capaz de criar mitos, no sentido de criar romances com funções teóricas. A psicanálise e a história percebem o tempo e a memória de modos distintos. Contudo, os problemas que apresentam são análogos: tornar o presente capaz de explicar o passado, compreender as diferenças e as continuidades entre as organizações antigas e atuais, construir uma narrativa explicativa. Assim, a questão que vem à tona é: qual o impacto do freudismo nas discussões sobre as relações entre história e literatura?

A literatura é para a história o que a matemática é para as ciências exatas – a forma que torna o discurso inteligível. Mas no discurso freudiano é a ficção que fornece a seriedade científica. A narrativa produzida pela psicanálise, o “romance”, deveria combinar os sintomas da doença (a coleta de dados) com a história de vida/sofrimento do paciente (historicizar seu problema). O estudo tradicional, científico, não acrescentava a historicidade do caso clínico à coleta de dados, portanto dentro do discurso dito científico não entrava a história. Essa historicidade vem para superar o modelo teórico vigente. O “romance” então supera a ciência, pois além da coleta de dados (o factual) ele historiciza o caso. Em Freud, torna-se possível pensar história e ficção.

Os capítulos IV-VI: O riso de Michel Foucault; O sol negro da linguagem: Michel Foucault; e Microtécnicas e discurso panóptico: um quiproquó apresentam os problemas levantados por Foucault em diálogo com as teses de Certeau sobre a história e a psicanálise. Não uma ingênua apresentação das ideias de Foucault, nem mais um dos comentários sobre sua obra, mas uma reflexão do próprio Certeau a partir da leitura de Foucault, de quem não era apenas amigo íntimo, mas um admirador de seu trabalho. As obras de Foucault que alicerçam essa parte da obra são fundamentalmente As palavras e as coisas (1966), Arqueologia do saber (1969) e Vigiar e punir (1975).

Envolvido num certo tom de ironia, Foucault descarta as certezas que o evolucionismo pretende, mostrando certo desprezo pelo postulado de um progresso contínuo. Para ele, todo sistema cultural é uma aposta, por ser incerto e não saber precisamente aonde vai chegar, mas mesmo assim, busca dar um sentido, uma ordem à vida, elaborando um modo de enfrentar a morte. Foucault critica essa ideia de progresso porque ela pressupõe que uma cultura caminha sempre para frente, acumulando e superando a anterior, hierarquizando-as. Contudo, cada cultura oferece ao nosso pensamento um mundo de ordem, o exótico de um pensamento é o limite de compreensão do nosso. E nessa relação de alteridade, percebemos as diferenças culturais e transformamos nossa relação com nossa própria cultura. Nosso mundo de certezas desmancha-se, marcando o fim de um sistema cultural e o início de outro. Nesse processo, palavras e ideias são utilizadas para pensar teoricamente esse novo sistema, e embora tais palavras e ideias existissem nos dois sistemas elas podem alterar o significado por estarem inseridas em ordens de pensamento diferentes.

Dessa estrutura do pensamento de Foucault, Certeau detêm-se em algumas questões de ordem metodológica: a análise histórica deve ser estrutural, ou seja, fazer uma adequação entre significante e significado, pois o significado das palavras é construído historicamente; a noção de periodicidade perpassa erroneamente a ideia de continuidade, de progresso, assim, necessitamos confrontar nosso objeto com outras obras contemporâneas ao próprio objeto, não se concentrando demais no pensamento anterior (as “influências”) e no posterior (nossas próprias ideias, teorias).

Os últimos capítulos: História e Estrutura; O ausente da história; A instituição da podridão: Luder; e Lacan: uma ética da fala/palavra [parole] apresentam a perspectiva teórica de Michel de Certeau pensada em seu próprio objeto de pesquisa, a espiritualidade dos séculos XVI e XVII. Não encontraremos nesses artigos um estudo sistemático sobre essa temática tal como o faz em La Fable mystique: XVIe et XVIIe siècle (1982), por exemplo. O que norteia a composição da obra são as questões de ordem teórica e metodológica. Aqui, Certeau se detém a essas questões mostrando como elas se relacionam ao seu tema de pesquisa, é uma intervenção sobre seu próprio fazer historiográfico.

Certeau ao apresentar seu objeto lembra-nos que essa escolha – não apenas a sua, mas a de todos os historiadores – é uma escolha orientada por uma busca de identidade. Olhamos para o passado buscando algo do presente. Nesse primeiro momento encontramos com o outro por meio de nossa imaginação, reconstruímos um mundo que nunca conheceremos de fato, aí existe um erudito e não um historiador. Nossa busca é como a de um catador, que revira o lixo buscando os restos e sonhando com a casa que nunca terá. O pesquisador permanece o mesmo. Em seguida, com o contato maior com a documentação, numa relação de força, há um estranhamento com o outro e um afastamento de seu mundo. Percebemos que esse mundo nos escapa, que não é como imaginávamos ou como sonhávamos. O objeto de pesquisa se torna um outro, um estranho. Mas o que mudou com relação a nosso primeiro olhar não foi o passado, mas sim a maneira como olhamos para ele, uma mudança do próprio pesquisador diante de sua pesquisa, é nessa transformação que o erudito se torna um historiador. Fazer história é mais que produzir narrativas históricas, é ter consciência de que algo se passou, está morto, e é inacessível como vivo.

O trabalho do historiador deve fazer aparecer a alteridade. A história direciona nosso olhar para o passado a fim de se aproximar do estranho, do “selvagem” que habita as origens. O discurso histórico nos revela essa presença ameaçadora, tal qual a psicanálise, embora se utilizando de diferentes procedimentos. Assim, a concepção de história de Freud não é de uma permanência, mas de uma tensão que organiza uma sociedade ou um discurso.

Michel de Certeau é sem dúvidas um grande erudito e historiador do século XX e suas contribuições para as discussões acerca da teoria da história e metodologia da operação historiográfica estão para além do que conseguimos mapear. Encontramos nessa coletânea um compêndio de vários exercícios intelectuais do autor, uma verdadeira lição de como “fabricar” história. Certeau é comedido em sua escrita, mostra-nos como fazer a relação da história com as várias disciplinas que utilizamos como auxiliares. Escreve sobre teoria, mas preocupado em como essa serviria para resolver problemas do fazer historiográfico. Sua abordagem metodológica busca um entremeio [entre-deux] entre os eruditos do século XVII, os tratados de método do século XX e os pensadores pós-modernos. O caminho que traçou não busca responder definitivamente a toda problemática da Escrita da História, antes, porém insere mais questões para refletirmos e tomarmos consciência do que realmente fazemos ao escrever história, tomarmos consciência da nossa própria narrativa, e assim, como na psicanálise, trazer a tona o que está escondido/ ou o que escondemos no nosso ofício.

Notas

2. CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 65.

3. GIARD, Luce. Um caminho não traçado. In: CERTEAU, Michel. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. p. 37.

Maicon da Silva Camargo – Mestrando em História. Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]


CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Trad. Guilherme J. de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.  Resenha de: CAMARGO, Maicon da Silva. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.294-298, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil | Francisco Wffort

É bem conhecido o gosto com que nossos “homens de letras” e intelectuais sugeriram “sínteses” e interpretações da formação histórica do Brasil, construindo as mais variadas avaliações sobre a colonização ibérica e seus desdobramentos na sociedade do Novo Mundo. A chamada “herança ibérica”, afinal, era a possibilidade de intervenção direta nos debates políticos e sociais referentes à formação do Brasil: é justamente nesse sentido que se situa o mais recente livro de Francisco Weffort (“Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil”, editora Civilização Brasileira, 2012).

A ênfase da recente obra de Weffort recai sobre os séculos XVI e XVII (momento central para o entendimento das “origens do Brasil”, segundo o autor) – séculos que nos falam de perto: eles não estão suspensos num passado longínquo, como peças para a curiosidade de um antiquário. Afinal, como o autor explicita na célebre epígrafe retirada de Requiem for a nun, de Faulkner: “o passado não está morto e enterrado; na verdade, ele nem mesmo é passado”. Weffort, nesse sentido, apresenta uma discussão, a um só tempo, historiográfica e sociológica, buscando uma intervenção direta no debate político brasileiro: a proposta é refletir sobre a formação histórica da América Portuguesa, já que “nos primeiros tempos deste novo mundo nascido da violência, da cobiça e da fé, o que mais surpreende é o quanto sua história ajuda a compreender os tempos atuais”.[2]

A obra não se ocupa de pesquisas propriamente arquivísticas, de modo que dialoga fundamentalmente com documentos impressos (portanto, já publicados) da América colonial (Antonil, Gandavo, Barléus, Las Casas, Ruiz de Montoya etc.). As reflexões, a bem da verdade, ganham maior densidade com os diálogos estabelecidos entre os “clássicos” do pensamento brasileiro (Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Afonso Taunay, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Paulo Prado etc.), a historiografia mais recente sobre o período colonial brasileiro (Maria Fernanda Bicalho, Leslie Bethel, João Fragoso, Arno Wehling) e alguns nomes das ciências humanas em geral (Marc Bloch, C. Boxer, R. Blackburn, Norbert Elias, O. Patterson, Lewis Hanke, Q. Skinner, D. Brading). O autor, nesse sentido, empreende um significativo esforço em uma ampla análise preocupada em ressaltar as principais linhas de força (tendências históricas, por assim dizer) da formação sociopolítica brasileira.

A síntese sugerida por Weffort para o entendimento dos séculos XVI e XVII toma como ponto de partida o conceito de “conquista”: “sabemos que o Brasil, como os demais países ibero-americanos e o Novo Mundo em geral, foi conquistado em meio a guerras quase permanentes”.[3] A conquista da América Portuguesa seria um processo de dois séculos, de modo que, alimentada pela violência e pela fé, ela teria sido “um fenômeno geral das Américas, estabelecendo um padrão histórico que se prolongou além do século XVII”.[4] A abordagem sugere um interessante contraponto teórico com a própria historiografia brasileira: ao passo que, por meio do conceito de “colonização”, Fernando Novais destacava, no entendimento da formação colonial brasileira, a ocupação e a valorização das novas terras nas coordenadas socioeconômicas estruturais da Época Moderna (o “Sistema colonial”),[5] a ideia de “conquista” realçada por Weffort circunscreve a própria ocupação lusa das novas terras em um processo demarcado pela posse do território, conquista de riquezas e dominação dos povos indígenas. Além da cobiça pelo enriquecimento, o Brasil de Weffort foi profundamente marcado pela violência.

A conquista da América “nasceu, sobretudo, das memórias de um cruzadismo que, tendo sido um fenômeno geral da Europa nos séculos XI e XII, durou na Ibéria muito mais tempo do que se costuma admitir”.[6] A história da América, para o autor, está profundamente entrelaçada com a própria história Ibérica. Os séculos XVI e XVII de Weffort, portanto, estão tomados do espírito da longa Reconquista ibérica dos séculos VIII-XV: “a América Ibérica surgiu de um medievalismo, talvez já em decadência a partir do século XVI, mas que ainda trazia muito dos entusiasmos da Reconquista”,[7] de modo que a nova sociedade foi construída sobre um “rude medievalismo, agressivo e violento, que estabeleceu os inícios eminentemente rústicos de uma sociedade que tomará muito tempo para sofisticar-se e refinar-se”.[8]

Os ecos “medievais” destacados por Weffort nos primeiros séculos da “conquista”, bem entendido, não implicam necessariamente uma retomada do longo debate sobre as origens feudais, capitalistas ou escravistas do Brasil. Antes de privilegiar a estrutura socioeconômica, o “medievalismo” dos primeiros tempos dizia respeito às formas socioculturais introduzidas no Novo Mundo: é nesse sentido que se situa, por exemplo, o que o autor chama de “personalismo de fundo senhorial” da formação brasileira. Explorando o clássico debate espanhol entre Américo Castro e Sánchez-Albornoz, Weffort extrai da própria Reconquista o sobrepeso cultural e sociológico da pessoa no mundo ibérico, já que os cristãos “[…] acreditavam que sua crença na consciência da dimensão imperativa da pessoa (lhes) permitiria ascender da gleba ao poderio. Para eles, o fundamento da verdade estava em Deus e na pessoa do homem”.[9] Nesse sentido, em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, Weffort enfatizaria que “o personalismo é uma dimensão fundamental de nossa identidade”:[10] afinal, “encontra-se aí a raiz fundamental da subvalorização das normas e das leis, típica da cultura brasileira e hispano-americana em geral” (Weffort, aqui, não está tão distante da “cordialidade” magistralmente discutida por Sérgio Buarque de Holanda).[11] O autor, inclusive, assinala algumas implicações políticas desastrosas daquela crença senhorial no valor da pessoa no continente, construindo uma espécie de cultura do “casuísmo” que, contorcendo a lógica impessoal de leis e instituições às circunstâncias e aos interesses pessoais, teria algum peso no sem-número de “caudilhos”, ditadores e golpes que, de alguma forma, ainda assombram a América Latina.

A América de Weffort, no entanto, não se construiu apenas sobre as ruínas do passado ibérico. O dilema da própria “modernidade” americana, por assim dizer, está situado no que o autor chama de “paradoxos das origens”, ou seja, a complexa interação entre as heranças do Velho Mundo e a possibilidade de construção de uma sociedade peculiar, contando com elementos, instituições e processos sociais praticamente desconhecidos na composição social do mundo aquém-Pirineus. Base dessa espécie de “experimento americano” foi o complexo contato cultural entre europeus, indígenas e negros. Nesse sentido, a atuação de dominicanos e jesuítas junto às monarquias católicas ibéricas é central: tratava-se de uma concepção de império na qual “os sacerdotes se tornaram assessores das respectivas Coroas […] Assim, os dois países católicos tomaram trajetórias que os tornaram semelhantes a estados teocráticos”.[12] A visão de Weffort, aqui, parece excessivamente generalista, perdendo de vista, no caso português, por exemplo, as complexas inter-relações entre a Coroa e os jesuítas (relações que, a bem da verdade, nem sempre foram tão amigáveis). No entanto, apesar de perder nas nuanças, o autor ganha na abrangência explicativa: para Weffort, a conquista territorial, além da espada, fundamentou-se na própria “conquista espiritual” dos povos indígenas, sacramentando o domínio ibérico.

Especialmente no caso brasileiro, tratava-se de um domínio, aliás, bastante singular, já que se assentava em uma sociedade escravista, construída sobre um amplo processo de exploração da mão de obra africana. Após analisar as polêmicas e as indisposições de missionários portugueses e espanhóis em relação à escravidão indígena, Weffort assevera que “diferentemente da escravização dos índios, a escravidão dos negros […] tornou-se, de certo modo, invisível”.[13] Para o autor, isso “significa que essa parte fundamental da mentalidade colonial se manteve durante quase todo o primeiro século do país independente e se prolongou no racismo que conhecemos, em formas mitigadas, às vezes apenas disfarçadas, do Brasil contemporâneo.[14]

A própria peculiaridade das raízes ibéricas no Novo Mundo situa a formação do Brasil como um mundo de fronteira. Weffort, nesse sentido, mescla os Capítulos de história colonial, de Capistrano de Abreu, com as reflexões do clássico trabalho de Frederik Turner sobre a fronteira na expansão norte-americana ao Oeste: trata-se de definir a “fronteira”, a princípio, como um conceito de base sociológica, evidenciando o contato entre culturas como processo criador de interações e relações sociais. Weffort adensa o enfoque sociológico ressaltando fundamentalmente sua situação histórica na formação brasileira: “no sentido moderno, esse ponto de encontro entre a barbárie e a civilização é um fenômeno do mundo europeu em expansão. Tipicamente, é um fenômeno da chegada e do avanço dos europeus sobre o Novo Mundo”.[15] É justamente nesse sentido que a mescla entre Capistrano e Turner ganha sentido: ao passo que, nos Estados Unidos, a fronteira define-se na expansão oeste, “o Brasil tornou-se brasileiro” nas várias frentes (norte, sul e oeste) para o interior.

Na porção norte da América Portuguesa (sobretudo com as ocupações de Sergipe, Rio Grande do Norte, Maranhão e Pará) e nas terras mais ao sul (com as investidas sobre São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), Weffort destaca a ação de povoadores e o papel do bandeirismo, entendendo os séculos XVI e XVII como centrais para a definição moderna das fronteiras: “o sentido histórico mais abrangente que se atribui à noção de fronteira é a de um fator determinante da moderna civilização ocidental”.[16] O espaço americano – a um só tempo fronteira da conquista ibérica e fronteira sociológica do contato entre povos diversos – permite, segundo o autor, desdobrar a ideia de que “as sociedades modernas são em geral sociedades de fronteira, nascidas do influxo de centros mais modernos”.[17] Afinal, assevera Weffort, “no caso do Brasil, e talvez de outros países ibero-americanos, a fronteira sociológica criou as bases das fronteiras políticas, firmadas nos séculos XVIII e XIX”.[18]

A própria formação da estrutura política e social do Brasil, nesse sentido, situa-se justamente no entrelaçamento da “conquista” e da “fronteira” nos séculos XVI e XVII: “aqui, o sistema de produção não antecedeu ao sistema de dominação, mas criaram-se juntos”.[19] Portanto, dentro do processo mais amplo da conquista, o autor circunscreve a efetiva construção de uma nova experiência social nas novas terras – experiência fronteiriça que, torneada pela violência na subjugação da mão de obra (indígena e posteriormente africana) e pela cobiça de riquezas, logrou construir um domínio sobre a terra. Do processo sociopolítico mais amplo da conquista, o autor deriva toda uma forma social do “mando” e do “poder”, sintetizando um arco cronológico bastante extenso e complexo da história brasileira: para o autor, essa estrutura social foi projetada, em tempos mais recentes, sobre a “aristocracia” imperial e o “coronelismo” da República Velha. Nessa expansão da perspectiva cronológica, Weffort perde as mediações que marcam o exercício do poder político em diferentes contextos da história brasileira (Império e República, no caso): sacrifica, por assim dizer, a complexidade dos matizes, em prol da ênfase sobre uma forma mais geral do próprio exercício social da política.

De que modo, portanto, a história da própria América Portuguesa traz os dilemas do futuro Brasil? O livro de Weffort ensaia algumas observações sobre esta incômoda pergunta: a nova sociedade não rompeu com o passado, mas foi agregada a ele. “A nova sociedade nasceu da busca do futuro, e persiste até hoje nessa busca. Mas jamais rompeu, pelo menos não inteiramente, seus vínculos mais profundos com a tradição”.20 Escrito em tom ensaístico, extrapolando a formalidade acadêmica na análise dos textos de época e dos autores, o texto não hesita em fazer ousadas conexões com suas preocupações políticas do presente, buscando um entendimento da formação de um país construído sobre a espada, a cobiça e a fé – enfim, sobre uma ampla “conquista” (quase aventureira) militar, econômica e espiritual. Sintomático que, ao lado de Faulkner, o autor tenha colocado junto à epígrafe a conhecida passagem das Teses, de Walter Benjamin: “não existe documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”. O ensaio de Weffort sugere uma necessária reflexão sobre os impasses e os fantasmas da nossa própria “modernidade”.

Notas

2. WEFFORT, Francisco. Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012b. p. 11.

3. Ibid., p.17.

4. Ibid., p.21.

5. NOVAIS, Fernando. Colonização e Sistema Colonial: discussão de conceitos e perspectiva histórica. In: NOVAIS, Fernando. Aproximações: ensaios de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

6. WEFFORT, 2012b, p.27.

7. Ibid., p.64.

8. Ibid., p.29.

9. Ibid., p.70.

10. WEFFORT, Francisco. A capacidade prática deste país de fazer sem saber é enorme. Folha de S. Paulo, São Paulo, dez. 2012a.

11. WEFFORT, 2012b, p.70.

12. Ibid., p.39.

13. Ibid., p.48.

14. Ibid., p.49.

15. Ibid., p.59.

16. Ibid., p.60.

17. Ibid., p.60.

18. Ibid., p.60.

19. Ibid, p.174.

20. Ibid., p.217.

Felipe Ziotti Narita –  Professor Bolsista – Departamento de História – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais / UNESP. Doutorando em História – FCHS / UNESP. E-mail: [email protected]


WEFFORT, Francisco. Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. Resenha de: NARITA, Felipe Ziotti. As heranças ibéricas revisitadas. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.299-303, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

História e psicanálise: entre ciência e ficção | Michel de Certeau

Michel de Certeau (1925-1986) nasceu em Chambéry região camponesa da França. Intelectual de Inteligência brilhante e inconformado com a realidade, Certeau caminhou por vários caminhos de saberes, formou-se em Filosofia, História, Teologia e Letras Clássicas, e ainda caminhou por tantas outras disciplinas, como a Antropologia, a Linguística e Psicanálise. Michel de Certeau comuns de sua época [2]. Sua trajetória intelectual pode ser pensada como uma procura constante da palavra do outro, uma procura pelo outro e suas ações. Sua simplicidade lhe permitia perceber as artes e as criações nas coisas mais simples do cotidiano (o caminhar, o ler, o morar, o cozinhar, etc.), seu olhar nos levou a entender o sujeito como criativo, capaz de subverter a disciplina. Em linhas gerais, podemos identificar que o sujeito é o grande personagem de seus trabalhos [3]. Sua produção mostra enorme erudição, uma produção que vai do inicio dos anos 1960, até 1980. Religioso, foi ordenado sacerdote na Companhia de Jesus em 1950 e, fiel aos princípios de sua ordem, permaneceu padre e assim viveu até a sua morte.

Certeau subverte lugares. Inquieta o leitor, e ao mesmo tempo proporciona um diálogo com ele. A leitura de seus textos nos faz pensar a simplicidade do cotidiano de uma forma diferente, como um espaço de conflitos, de lutas capilares, quase imperceptíveis. Certeau nos mostra através de poucas palavras o barulho da estratégia e o silêncio da tática. Sua preocupação ainda se destaca na problematização no que se diz respeito ao conhecimento histórico e os meandros de sua produção, ao escrever “A escrita da História”, Certeau lançará questões de grande importância para a historiografia, descortinando o que está por traz do texto histórico, as suas limitações, as suas possibilidades e suas interdições. Afinal quem produz e como é produzido o texto do historiador? Quais os limites e as aberturas impostas pela sociedade dos historiadores? Quem julga a qualidade, e a validade do texto histórico. Arrisco em afirmar que A Escrita da História é um texto fundamental para se pensar o oficio, e para ser historiador.

Um dos mais importantes momentos da produção de Michel de Certeau é sua aproximação com a Psicanálise que se dá, sobretudo, por sua participação nos seminários de Lacan, de quem era grande admirador. Tendo tido uma relação direta com os textos de Freud, Certeau chega a destacar a influência do pensamento freudiano na historiografia, intervenções que ele chamará de “cirúrgicas”, essa influência permeará grande parte de seus textos. Participará ainda da Escola Freudiana de Paris, até a sua dissolução nos anos 1980.

Publicado pela primeira vez no Brasil em 2011, pela editora Autêntica, a coletânea de textos, “História e Psicanálise: entre ciência e ficção”, reúne textos que, mais uma vez, trazem à tona a heterogeneidade do pensamento de Michel de Certeau, dez capítulos que tratam desde a relação, muitas vezes conflituosa, entre história e ficção, da relação da própria história com a psicanálise, bem como três belíssimos textos sobre o pensamento e a pessoa de Michel Foucault, a quem Michel de Certeau admirava e reconhecia a força de sua produção e de seu pensamento. Porém, os temas abordados por Certeau vão mais além, abrem um leque de possibilidades para se pensar o conhecimento histórico. Trata-se de um rico material, onde é escancarado o pensamento múltiplo e fecundo de Certeau. Certeau fez de seu percurso “Um caminho não traçado”.

Inspirada na vida de Certeau, em suas práticas de esgrima e montanhismos nos Alpes da Savoia, Luce Giard, abre a coletânea de textos com um belíssimo ensaio sobre a vida e a obra do historiador do cotidiano. Usando uma linguagem metafórica, a autora faz um transcurso entre a vida e a produção historiográfica desse jesuíta, um pensador de passos firmes e inconformado com o seu próprio conhecimento, isso fez com que Certeau, caminhasse, buscasse o conhecimento incessantemente. Giard nos faz ver um Certeau simples, pensante, que estava sempre atento a perceber as artes escondidas no cotidiano, um personagem que mesmo tendo ganhado destaque no ciclo intelectual francês permaneceu sem ostentação, sem méritos. Historiador da espiritualidade e dos textos místicos, Michel de Certeau, sempre relia seus textos, demonstrando insatisfação, reavaliando suas posições e seu pensamento. Talvez seja por isso que os textos de Certeau, passados mais de vinte anos, ainda são de uma atualidade impressionante.

O primeiro capitulo trata da relação entre História e ficção, o texto procura fazer reflexões acerca das possibilidades de pensar essa relação. Nesse sentido, Certeau vai pensar o discurso da história a sua pretensão de realidade. Afirma o autor que, o historiador não fala e nem tem a ambição de falar verdades absolutas. O discurso da história, embora deseje um efeito de real, ele não outorga uma verdade sobre o passado. Assim, Certeau, perpassa questões que norteiam o conhecimento histórico, propondo reflexões de caráter teórico e metodológico sobre essa tríade – história, ciência e ficção – um texto que traz para o cenário das discussões temas que norteiam a produção da história e o lugar da narrativa.

Os capítulos II e III se preocupam em estabelecer considerações sobre a História e a Psicanálise. Questões que possibilitam nomear a obra. Os encontros de Certeau com os textos de Lacan possibilitam o autor ampliar seus conhecimentos e suas reflexões sobre as suas pesquisas, rompendo fronteiras, Certeau, ainda pensa, nesses textos a relação entre a História e a Literatura, nessa relação Freud é a grande inspiração do texto, Certeau caminha pela psicanálise buscando entender as suas possíveis relações com a história.

Como dito anteriormente, Certeau nutria profunda admiração pelo filósofo Michel Foucault, a este dedicará três textos da coletânea aqui discutida – Capítulos IV, V e VI – mais do que textos sobre a produção de Foucault, Certeau escreve textos que revelam a sua admiração pela “revolução” causada pelos escritos foucaultianos, sobretudo, por “Vigiar e Punir” que ele considera como uma obra prima. Vale destacar aqui, que alguns comentadores criam uma oposição entre Certeau e Foucault, criando um grande equivoco. Não são pensadores em conflito, trata-se de pensamentos diferentes. Enquanto Michel Foucault busca entender a disciplina e a sociedade disciplinar, Michel de Certeau preocupa-se em perceber a antidisciplina, os meios e as táticas de fuga, de rompimento com a ordem. O texto, “o riso de Michel Foucault”, é um percurso pela personalidade de Foucault, em quem Certeau identifica um “um riso incontrolável”, dois pensadores que se negaram a ocupar um lugar fixo, estático. Foucault e Certeau ainda falam, suas falas habitam o texto. Vozes que escapam o jazigo que é o texto.

Os capítulos VII e VIII, estão relacionados a relação entre história e a escrita da história. Retomam questões, que de certa forma se fazem presentes em “A escrita da História”, contudo, não se afastam da proposta temática da coletânea, continuam ainda traçando caminhos pela psicanálise. Especificamente, o sétimo é uma discussão acerca do estruturalismo, corrente de pensamento de grande repercussão nos anos oitenta. O oitavo traz o ausente da história, é na verdade um texto sobre a escrita da história, ou, a elaboração do discurso histórico, um discurso que busca vestígios, pistas do outro, do passado, para elaborar um texto inteligível.

Concluindo, o capitulo de conclusão da coletânea é dedicado a Jacques Lacan, fundador da Escola Freudiana, de quem Certeau era membro ativo, nesses textos Michel de Certeau identifica nos seminários de Lacan, uma força criadora, (co) movedora de sentidos, Certeau foca sua análise naquilo que Lacan tanto utilizou. A voz, a voz que produz efeitos, gera experiências.

Mas o que Certeau causa em seu leitor? Não tenho respostas. A dúvida talvez seja mais forte e mais criadora do que a certeza. Duvidar faz criar outras respostas, a certeza me prende, me limita. Os textos de Michel de Certeau são como gravações, como pensa Gilles Deleuze, ao ler, o leitor atento, poderá escutar sua voz, suas pausas, suas entonações, a suavidade de sua voz e a força de seu pensamento. Melhor, o leitor atento poderá vê-lo, seu corpo franzino, seu olhar perspicaz, e a força de seu pensamento.

Os textos apresentados em “História e Psicanálise” revelam a sensibilidade e a potência do pensamento de Michel de Certeau, é um texto rico, profundo e povoado de vozes. Vozes de Certeau, de Lacan, de Foucault, vozes de leitores… Em 09 de Janeiro de 1986, uma triste quinta feira, Michel de Certeau morria, porém, não se calaria. Sua voz resiste ao caráter sepulcral do texto. A voz de Michel de Certeau continua ecoando em meio às instituições que legitimam o trabalho do historiador, mas, o pensamento certeauniano não conhece fronteiras, inquieta pesquisadores de múltiplos campos de saber. Certeau, certamente proporcionou uma revolução no pensar, no fazer. Revolucionou a nossa forma de escrever a história e nossa forma de perceber o cotidiano, o sujeito e a nós mesmos. Pois, a experiência do conhecimento de nada adianta se não modificar a nós mesmos, antes de tudo.

Notas

2. Cf. CHARTIER, Roger. Estratégias e táticas. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

3. Em “A invenção do Cotidiano” (Vol. 1 e 2.) Michel de Certeau se preocupa em perceber como as pessoas elaboram práticas cotidianas a partir de uma cultura ordinária, o cotidiano passa a ser inventado pelo sujeito através de suas artes, Certeau vê na invenção do cotidiano uma liberdade gazeteira, sorrateira, que age em micro espaços e micro ações.

Silvano Fidelis de Lira – Graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba (2012) e atualmente mestrando em História na Universidade Federal da Paraíba, desenvolve pesquisas sobre memória e sensibilidade. E-mail: [email protected]


CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: LIRA, Silvano Fidelis de. Um pensamento inquieto: os caminhos de Michel de Certeau. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.304-307, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX | Denise Rollemberg e Samantha V. Quadrat

O século XX foi, talvez, o período histórico mais impactante da História da Humanidade. O nível de progresso social foi gigantesco – mesmo que raras vezes tenha beneficiado aos seres humanos de forma bem distribuída. O século XX foi o século da busca pela igualdade entre homens e mulheres, da conquista dos direitos civis, do reconhecimento dos direitos das minorias. Foi o século das Revoluções que pretenderam concluir o legado da Revolução Francesa: a Revolução Russa, mas também a Revolução Cubana, a Revolução de 1968, a Revolução Sandinista e tantas outras que enfatizavam o caráter da busca pela igualdade. Mas o século XX também o foi século dos horrores das duas Grandes Guerras Mundiais, do Nazismo, dos conflitos típicos da bipolaridade da Guerra Fria. O século XX trouxe flores, como Marc Riboud universalizou por sua célebre foto: algumas flores, no entanto, têm muitos espinhos.

Esses espinhos estão presentes por todo mundo! Não são mazelas de povos subdesenvolvidos, exclusivamente. Esses espinhos se materializaram, quase sempre, na forma de regimes autoritários. África, América, Ásia, Europa, em todos esses continentes houve ditaduras ao longo do século XX. Como as sociedades conviveram com essas ditaduras é a pergunta que articula os textos acadêmicos da coleção A Construção Social dos Regimes Autoritários, editada pela Civilização Brasileira e organizada pelas professoras Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Na última década, a editora Civilização Brasileira tem contribuído muito com a divulgação da pesquisa acadêmica em História. Foram editadas as coleções: O século XX (2000),[2] O Brasil Republicano (2003),[3] As Esquerdas no Brasil (2007), [4] O Brasil Imperial (2009).[5] Com a exceção de O Brasil Republicano, organizado em quatro volumes, as outras obras estão dispostas em três volumes e todas tem a organização delegada a professores de Universidades do Rio de Janeiro. Os mesmos moldes são seguidos na coleção organizada pelas professoras da UFF; mas há novidades na política editorial dessa coleção, entre elas, a grande quantidade de contribuições de historiadores e demais cientistas sociais do estrangeiro.

Há uma apresentação comum aos três volumes, assinada pelas professoras Rollemberg e Quadrat e na qual abordam a linha geral da coleção, baseada em dois problemas de pesquisa: “como um regime autoritário/uma ditadura obteve apoio e legitimidade na sociedade; como os valores desse regime autoritário/ditatorial estavam presentes na sociedade e, assim, tal regime foi antes resultado da própria construção social”.[6] Argumentam as autoras que o fio condutor da coleção é baseado em uma perspectiva mais original, haja vista que os estudos sobre as ditaduras, no Brasil por exemplo mas não só, são calcados fundamentalmente na idéia da resistência à implantação e ao desenvolvimento dos regimes autoritários, esquecendo-se que as ditaduras foram construídas e mantidas com o apoio de parcelas da população.

O primeiro volume da coleção aborda a Europa. Composto por 11 artigos, examinase a França colaboracionista do Regime de Vichy em dois artigos – um o ótimo “Sociedades e Regimes Autoriátios” de Marc Olivier Baruch, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS); a URSS é abordada em três artigos escritos por Marc Ferro, Daniel Aarão Reis e Angelo Segrillo – é de Segrillo a grande contribuição à coleção, em termos teóricos, ao utilizar o conceito de hegemonia elaborado por Antonio Gramsci enfatizando para o leitor leigo que “as hegemonias de classe na história não são apenas uma questão de imposição pela força, mas envolvem também uma criação de consenso em redor de certos valores, o que torna possível e mais estável sua dominação”;[7] o fascismo italiano está presente em dois artigos, um escrito por historiador francês e outro por historiadora italiana; sobre o regime nazista, duas colaborações aparecem na obra, sendo uma delas a interessante, para nós que gostamos do futebol, “O futebol sob o signo da suástica”, na qual o professor Nils Havemann, da Universidade de Mainz, demonstra o uso político do esporte. O primeiro volume ainda conta com textos sobre as ditaduras de Franco e Salazar no ocidente da Europa.

O segundo volume trata da América Latina – dos 17 artigos 8 são dedicados ao Brasil, entre eles: “Estado Novo: ambigüidades e heranças do autoritarismo no Brasil”, de Angela de Castro Gomes (grande influência para esse grupo de historiadores das Universidades do Rio de Janeiro); “Celebrando a ‘Revolução’: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o Golpe de 1964”, de Aline Presot; e “Simonal, ditadura e memória: do cara que todo mundo queria ser a bode expiatório”, de autoria de Gustavo Alonso. Sobre os demais países da América Latina esse volume – o mais extenso de todos – conta ainda com artigos para Argentina, Paraguai, Chile, Uruguai, México, Perú e Cuba (assim como eu estranho a inclusão de Cuba em uma coleção sobre regimes autoritários, outros analistas certamente estranharão a exclusão da Venezuela).

O terceiro volume analisa os continentes africano e asiático. Entre os 11 textos, chamam muito a atenção dois artigos escritos sobre a Tunísia e que foram escritos antes da Primavera dos Povos Árabes ocorrer: “À sombra da Europa, o autoritarismo no Mediterrâneo: o caso da Tunísia”, do professor Michel Camau, da Universidade de Aix-em-Provence e “Economia Política da Repressão: o caso da Tunísia” escrito por Béatrice Hibou, pesquisadora do Centre d’Études et de Recherches Internationales. O volume traz, ainda, contribuições muito relevantes sobre o Irã, o Iraque e a Coreia do Norte, demonstrando, historicamente, qual o verdadeiro sentido de terem sido enquadrados por George W. Bush como “Eixo do Mal”, além de artigos sobre a África Ocidental, São Tomé e Príncipe, África Central, China e Filipinas.

Mas a História não é feita apenas de sombras; também é feita luz! E essa luminosidade torna impossível para nós, professores de História, não condenarmos moralmente fenômenos terríveis como as ditaduras civil-militares, os fascismos e o caso incomparável – único regime realmente totalitário que o é – do nazismo. No entanto, parcelas da sociedade apoiaram as torturas, denunciaram opositores aos regimes, colaboraram com os invasores. Quem eram essas parcelas da sociedade? Por que fizeram isso? Quem foram os maiores beneficiados com essas rupturas dos Estados Democráticos de Direito? “A Construção Social dos Regimes Autoritários” fornece boas pistas para essas questões.

Notas

2. REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste (orgs.). O Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 3v.

3. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 4v.

4. FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (orgs.). As Esquerdas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 3 v.

5. GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 3v.

6. ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz. Apresentação – Memória, História e Autoritarismos. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.12. V. 1.

7. SEGRILLO, Angelo. URSS: coerção e consenso no estilo soviético. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.123. V. 1.

Charles Sidarta Machado Domingos – Professor de História no IFSUL. Doutorando em História na UFRGS. Autor de O Brasil e a URSS na Guerra Fria. Porto Alegre: Suliani Letra e Vida, 2010.


ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 3v. Resenha de: DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. As sombras do Século XX. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.308-310, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

The Greek Theatre and Festivals. Documentary Studies | Peter Wilson

As ruínas permanecem em seus lugares. Alguns textos dos tragediógrafos e comediógrafos chegaram até nós, mas o entendimento da dinâmica do teatro grego permanece ainda um mistério. Para os pesquisadores do teatro antigo, principalmente aqueles que se dedicam a entender as relações entre o teatro, a política e a sociedade na Atenas do século V a.C., ou aqueles que investigam a problemática da performance no teatro antigo, nenhum evento é tão importante como os festivais em honra ao deus Dionísio nos quais eram encenadas as tragédias e as comédias.

Compartilhando deste interesse e partindo da necessidade de atualizar as abordagens historiográficas sobre o teatro em seu âmbito material, o helenista e historiador do teatro clássico Peter Wilson editou The Greek Theatre and Festivals. Documentary Studies. O livro é um esforço coletivo de treze pesquisadores do teatro e das festas em homenagem a Dionísio, os quais realizaram em 2003 em Oxford uma conferência para reflexão sobre o tema. Ao abordar este assunto, sempre é preciso retomar os seminais estudos de Sir Arthur Wallace Pickard-Cambridge (1873- 1952): o Dithyramb Tragedy and Comedy (1927) e o The Theatre of Dionysus in Athens (1946). Estas duas obras de Pickard-Cambridge inauguraram em seu tempo a problemática das bases arqueológicas do teatro grego, tendo se tornado durante décadas referências absolutas sobre o tema.

Assim, consciente da dívida em relação às obras de Pickard-Cambridge mas também percebendo a importância de novas descobertas e enfoques sobre o tema, já na introdução Peter Wilson postula o seu objetivo com esses textos: “Introduction: From the Ground Up”, ou seja, rever tudo, reatualizar as premissas, recolocar os problemas. Os textos editados por Wilson desejam abordar o teatro grego de forma renovada, a partir de novas inquietudes historiográficas e trazendo como documentos as coleções de epigramas muitas vezes esquecidas pelos historiadores do teatro. O livro divide-se então em três grandes partes: I. Festivals and Perfomers: Some New Perspecives, II. Festivals of Athens and Attica, III. Beyond Athens.

Os festivais em honra a Dionísio inseriam-se no calendário cívico da cidade, ocorrendo durante o ano ocorriam três festas sua homenagem : as Lenéias, que aconteciam no final de janeiro, para as quais se interrompiam os trabalhos do campo, do comércio e da navegação de forma que os cidadãos se dedicassem exclusivamente às festividades; as Grandes Dionisíacas, que aconteciam no final de março e traziam grande número de viajantes para Atenas; as Dionisíacas rurais, que aconteciam em dezembro em regiões da Ática (CUSSET, 1997, p.12-3). No edifício do teatro consagrado a Dionísio era reservado um lugar para um templo do deus contendo uma imagem sua, no centro da orkhestra havia um altar de pedra em sua homenagem e nas arquibancadas, um trono esculpido era reservado ao sacerdote de Dionísio (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999). Os festivais em honra ao deus Dionísio tornavam o teatro grego um espetáculo com dia, lugar e público específicos, o qual conciliava problemas internos, contribuindo para a coesão do corpo cívico.

A primeira parte do “The Greek Theatre and Festivals”, “Festivals and Perfomers: Some New Perspecives” (p. 21-84), a qual, nas palavras do próprio autor, “reconhece a necessidade de arriscar amplas inspeções de algumas questões gerais (p. 3)”, sendo formada por três artigos. O primeiro artigo “Deconstructing Festivals”, de William Slater (p. 21-47), ambiciona uma leitura do material epigráfico disponível para a compreensão do teatro grego e propõe que os festivais têm importantes ramificações para a compreensão de questões tradicionais como a política e o poder no Mediterrâneo. Slater adota uma postura crítica em relação aos historiadores do teatro grego que não exploram as possiblidades da numismática ou da epigrafia para a compreensão dos festivais. A “desconstrução dos festivais” revela o tom de desafio aos historiadores do teatro e a urgência de restabelecer bases teóricas e documentais para compreender o fenômeno do teatro grego.

O segundo texto da primeira parte, “Theatre Rituals” de Angelos Chaniotis (p. 48-66), começa a estabelecer a importância do teatro antigo para além da teatralidade e da performance artística, tentando resgatar uma série de atividades ritualísticas ou de caráter cívico que ocorriam ao redor do evento teatral. O espetáculo do teatro, principalmente em Roma, congregava outros eventos que ajudavam a dar uma maior dimensão ao evento, como o anúncio das honras, a coroação dos benfeitores, a entrada dos magistrados, além de concursos de canto e declamações. Para Chaniotis, o teatro antigo é composto por “rituais de comunicação”, os quais podem ser entre os mortais e os imortais, em um nível social entre o “sujeito” e o seu papel dentro da sociedade, ou entre cidadãos e estrangeiros (p. 65).

No terceiro e último texto da primeira parte, com o título bastante descritivo de “The Organization of Music Contests in the Hellenistic Period and Artists’ Participation: An Attempt at Classification” (p. 67-84), Sophia Aneziri procura mostrar como os artistas ligados à música ou “Dionysiac Artists” ajudavam a organizar concursos musicais em homenagem ao deus no período helenístico. A autora classifica os concursos musicais em três categorias em relação à sua organização: (1) concursos organizados pelas associações, (2) concursos co-organizados por elas e (3) concursos dos quais elas apenas participavam. Essa espécie de “guilda” ou associação de músicos mostra uma certa cooperação entre profissionais ligados à arte e a importância desses eventos no contexto helenístico.

A segunda parte do livro, chamada de “Festivals of Athens and Attica” (p. 87-182), pode interessar mais a quem pesquisa relações entre o teatro grego, tanto a tragédia como a comédia, em relação a contextos políticos e sociais. Nas palavras do próprio Wilson, essa parte pode ser definida como “um chamado a revigorar o estudo do material familiar da metropolis do teatro através de novas perguntas, da recombinação dos seus elementos de formas produtivas e inusitadas, e da integração de evidências menos conhecidas na corrente principal da discussão” (p. 3).

O primeiro artigo, “The Men Who Built the Theatres: Theotropolai, Theatronai, and Arkhitektones” (p. 87-121) de Eric Csapo, é um dos principais artigos do livro. Csapo trabalha com epigrafia assim como Slatter, e com os indícios anuais dos festivais. Suas perguntas são dirigidas à administração do teatro em sua monumentalidade, mostrando que havia uma economia que girava em torno dessas apresentações, como os aluguéis de tendas. Assim ele demonstra como termos que aparecem apenas em fontes literárias e que foram sempre tratados como de pouca importância, como “theatrones” (Theatron-buyer) ou “theatropoles” (Theatron-seller), aparecem em relação a outros termos como o “arkhitekton” e podem dar indícios da dinâmica espacial que se desenvolvia nos festivais a Dionísio. As descobertas de Csapo levam a pensar dinâmicas econômicas e certas condições de existência material para o evento em homenagem a Dionísio. Além das fontes literárias citadas pelo autor há no final do capítulo um pequeno apêndice arqueológico escrito por Hans Rupprecht Goette, que mostra uma evolução material do espaço físico do teatro.

O segundo texto, “Choregic Monuments and The Athenian Democracy” (p. 122-49) de Hans Rupprecht Goette, debruça-se sobre os monumentos existentes perto do teatro de Dionísio e a sua representação de poder. Tais monumentos fazem contraste com algumas ideias da democracia grega. Já o último artigo da segunda parte e sexto do livro é escrito pelo editor Peter Wilson, “Performance in the Pythion: Athenian Thargelia” (p. 150-182). O artigo de Wilson desvia o foco do festival de Dionísio para o festival de Apolo, a Targélia. O festival da Targélia durava apenas dois dias e levava esse nome por ser celebrado no período chamado “Thargelion” que corresponde ao final de maio. Para o autor, o festival representava a criação da ordem civil, claramente oposto ao festival a Dionísio. A Targélia era celebrada com coros masculinos semelhantes em certos aspectos ao coro das tragédias. Peter Wilson discute as questões de performance nesse festival, pensando as relações com a música. A importância do artigo reside em trazer à discussão um festival que é pouco lembrado pelos estudantes da performance no mundo antigo, além de mostrar aspectos que circundam a ritualística que envolve o deus Apolo.

A terceira e ultima parte do livro, “Beyond Athens” (p. 184-377), é a maior em contribuições, com sete artigos. Estes artigos exploram um rico material ligado ao teatro e aos festivais menos estudados para além de Atenas. O primeiro artigo, “Dithyramb, Tragedy and Cyrene” (p. 185- 214), escrito por Paola Ceccarelli and Silvia Milanezi, analisa por meio da epigrafia evidências sobre a tragédia na cidade de Cirene (antiga colônia grega na atual Líbia) no século IV a.C. O texto das pesquisadoras trata da dinâmica organizacional em Cirene das apresentações trágicas e dos coros ditirâmbicos, tentando traçar um quadro de como era encenada uma tragédia fora de Atenas.

O segundo artigo, “A Horse from Teos: Epigraphical Notes on the Ionian Hellespontine Association of Dionysiac Artists” (p. 215-45) de John Ma, parte também da epigrafia para demonstrar a singularidade do ditirâmbico na Anatólia no século II a.C. Ma levanta a hipótese de que nesse período helenístico o ditirâmbico era apresentado por um “pseudo-coral” e envolvia também solos virtuosos de instrumentos como a cítara.

O terceiro artigo, “Kraton, Son of Zotichos: Artists Associations and Monarchic Power in the Hellenistic Period” (p. 246-278) de Brigitte Le Guen, analisa a vida de Kraton, um tocador de aulos, uma espécie de flauta também conhecida por tíbia, sobre o qual existem várias referências nos epigramas. A autora analisa o seu percurso tentando desvelar os possíveis caminhos para uma “carreira” de músico no período helenístico.

O quarto artigo, “Theoria and Theatre at Samothrace: The Dardanos by Dymas of Iasos” (p.279- 293) de Ian Rutherford, explica as bases do teatro na Samotrácia no século II, mostrando as relações entre um culto a Dardanos e um poema da série “Poeti Vaganti”.

O quinto artigo, “The Dionysia at Iasos: Its Artists, Patrons, and Audience” (p. 294- 334) de Charles Crowther, também trabalhando com epigrafia, mostra como era o teatro na cidade de Iasos, mostrando pelos documentos que a arte de Dionísio era bem recebida na cidade, tendo uma série de peças sido encenadas. Crowter mostra as listas das inscrições existentes sobre as peças e os possíveis valores pagos ou doados aos artistas de Dionísio.

No sexto artigo, “An Opisthographic Lead Tablet from Sicily with a Financial Document and a Curse Concerning Choregoi” (p. 335-350), David Jordan investiga uma tablete de chumbo de característica opistográfica, ou seja, escrito dos dois lados. O documento traz uma espécie de maldição e uma referência a uma disputa de ordem teatral. O texto de Jordan é principalmente uma apresentação deste raro documento que pode ajudar a traçar algumas ideias sobre a Sicília e as relações entre os Choregoi.

O último capítulo do livro, escrito por Peter Wilson e intitulado “Sicilian Choruses” (p. 351-77), é também dedicado à Sicília no século V. a.C. Wilson tenta mostrar as singularidades desse teatro ligado a cultos locais, em que diferentemente da Grécia as mulheres participavam do coro, e discute novamente questões de performance.

Assim, “The Greek Theatre and Festivals. Documentary Studies” é um livro que ousa em sua proposta e deseja revisar certezas para lançar novos desafios aos pesquisadores do teatro antigo. A leitura do livro é desafiadora e convida o leitor a pensar o teatro antigo por outro ângulo. Tal qualidade não é diferente e nem rara se olharmos para as outras contribuições de Peter Wilson, cujas obras se destacam sempre pelo enriquecimento aos estudos do teatro antigo em relação a dinâmicas de performance e a elementos cênicos na tragédia ou comédia. Entre os seus livros mais importantes está The Athenian Institution of the ‘Khoregia’: the Chorus, the City and the Stage (2000), além do trabalho de sociologia da música na pólis clássica, “Music and the Muses: the Culture of ‘Mousike’ in the Classical Athenian City”, editado conjuntamente com P. Murray . Mais recentemente, em 2008, Wilson editou com Martin Revermann o “Performance, Reception, Iconography: Studies in Honour of Oliver Taplin”. Os livros de Peter Wilson tornaram-se caminho obrigatório para quem deseja reatualizar as abordagens do teatro grego trabalhando com antiguidade e história cultural e atentando para evidências documentais utilizadas com menor frequência.

Referências

CUSSET, Christophe. La tragédie grecque. Paris: Éd. du Seuil, 1997.

VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999.

Mateus Dagios – Mestre em História pela UFRGS com a dissertação “Neoptólemo entre a cicatriz e a chaga: lógos sofístico, peithó e areté na tragédia Filoctetes de Sófocles”. E-mail: [email protected].


WILSON, Peter (Ed.). The Greek Theatre and Festivals. Documentary Studies. Oxford Studies in Ancient Documents. Oxford: Oxford University Press, 2007. Resenha de: DAGIOS, Mateus. Redescobrindo o Teatro de Dionísio: novas possibilidades para o teatro antigo. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.12, p.279-283, jan. / jul., 2013. Acessar publicação original [DR]

 

Política, cultura e classe na Revolução Francesa | Lynn Hunt

Outros olhares acerca da Revolução Francesa [1]

A Revolução Francesa foi abordada, e ainda o é, por diversos trabalhos significativos na historiografia mundial. Lynn Hunt, entretanto, em seu livro Política, cultura e classe na Revolução Francesa nos traz uma nova maneira de abordá-la. A autora se encaixa em uma corrente historiográfica denominada como Nova História Cultural. Esta perspectiva propõe uma maneira diferente de compreendermos as relações entre os significados simbólicos e o mundo social (tanto comportamentos individuais como coletivos) a partir de suas representações, práticas e linguagens. É a partir desta perspectiva, portanto, que Hunt analisa o tema: busca compreender a cultura política da Revolução, isto é, as práticas e representações simbólicas daqueles indivíduos que levaram a uma reconstituição de novas relações sociais e políticas.

A pesquisa acerca do tema iniciou-se na década de 1970 e resultou na publicação do livro em 1984. Inicialmente, a autora buscava demonstrar a validade da interpretação marxista: a Revolução fora liderada pela burguesia capitalista, representada pelos comerciantes e manufatores. Os críticos desta abordagem, entretanto, afirmavam que tais líderes foram os advogados e altos funcionários públicos. Focando-se nestes aspectos, após um levantamento de dados feito a partir da pesquisa documental, Hunt percebeu que os locais mais industrializados, com maiores influências de comerciantes e manufatureiros, não foram, necessariamente, os mais revolucionários. Outros fatores deveriam então ser levados em consideração para explicar tal tendência revolucionária, não somente o da posição social dos revolucionários. Sendo assim, Hunt procurou evitar tal abordagem marxista, que coloca a estrutura econômica como base para as estruturas políticas e culturais. Desta maneira, a partir de uma mudança de olhar, tomou como objeto de estudo a cultura política da Revolução, que segundo a autora, propõe “uma análise dos padrões sociais e suposições culturais que moldaram a política revolucionária” (HUNT, 2007, p.11). Para ela, a cultura, a política e o social devem ser investigados em conjunto, e não um subordinado ou separado do outro.

Tais questões surgidas em sua pesquisa estão dentro de um contexto da década de 1980, quando os historiadores culturais procuravam demonstrar que a sociedade só poderia ser compreendida através de suas representações e práticas culturais. Na introdução de seu livro, a autora nos apresenta três influências principais: François Furet, que entendia a Revolução Francesa como uma luta pelo controle da linguagem e dos símbolos culturais e não somente como um conflito de classes sociais; Maurice Agulhon e Mona Ozouf, que demonstraram em seus estudos que as manifestações culturais moldaram a política revolucionária. Suas fontes foram documentos oficiais, como jornais, relatórios policiais, discursos parlamentares, declarações ficais, entre outros; contudo, a sua abordagem não poderia ignorar outras fontes como relatos biográficos, calendários, imagens, panfletos e estampas, que são produtos de manifestações e linguagens culturais da época.

Partindo de três vertentes interpretativas, a autora procura justificar a proposta de sua análise. Critica as abordagens marxista, revisionista e de Tocqueville por entenderem a Revolução centrando-se em suas origens e resultados, desconsiderando as práticas e intenções dos agentes revolucionários. Para Hunt,

A cultura política revolucionária não pode ser deduzida das estruturas sociais, dos conflitos sociais ou da identidade social dos revolucionários. As práticas políticas não foram simplesmente a expressão de interesses econômicos e sociais “subjacentes”. Por meio de sua linguagem, imagens e atividades políticas diárias, os revolucionários trabalharam para reconstituir a sociedade e as relações sociais. Procuraram conscientemente romper com o passado francês e estabelecer a base para uma nova comunidade nacional. (Ibid, p.33)

Mais do que uma luta de classes, uma mudança de poder ou uma modernização do Estado, Hunt enxerga como a principal realização da Revolução Francesa a instituição de uma nova relação do pensamento social com a ação política, uma vez que tal relação era uma problemática percebida pelos revolucionários e já posta por Rousseau no Contrato Social.

A partir de tais considerações, Hunt estruturou seu texto em dois capítulos: no primeiro, A poética do poder, a autora analisa como a ação política se manifestou simbolicamente, através de imagens e gestos; no segundo, A sociologia da política, apresenta o contexto social da Revolução e as possíveis divergências presentes nas experiências revolucionárias. Em todo o texto, a autora nos traz um debate historiográfico acerca de termos, conceitos e concepções das três perspectivas anteriormente citadas.

Hunt destaca a importância da linguagem na Revolução. A linguagem política passou a carregar significado emocional, uma vez que os revolucionários precisavam encontrar algo que substituísse o carisma simbólico do rei. A linguagem tornou-se, portanto, um instrumento de mudança política e social. Através da retórica, os revolucionários expressavam seus interesses e ideologias em nome do povo: “a linguagem do ritual e a linguagem ritualizada tinham a função de integrar a nação” (Ibid, p.46). Contudo, este instrumento deveria inovar nas palavras e atribuir diferentes significados a elas, já que se buscava romper com o passado de dominação aristocrática. Não é a toa que a denominação Ancien Régime foi inventada nesta época.

Nesta tentativa de se quebrar com um governo anterior dito tradicional foi que as imagens do radicalismo jacobino ficaram mais evidentes, afirma Hunt. O ato de representar-se através de uma ritualística foi questionado, descentralizando assim a figura do monarca e a base em que ele estava firmemente assentado: a ordem hierárquica católica. A imagem do rei sumiu do selo oficial do Estado; nele agora estava presente uma figura feminina que representava a Liberdade. Os símbolos da monarquia foram destruídos: o cetro, a coroa. Por fim, em 1793, os revolucionários eliminaram o maior símbolo da monarquia: Luís XVI foi guilhotinado.

Há outro aspecto da linguagem evidenciado pela autora: a comunicação entre os cidadãos. Influenciados por Rousseau, os revolucionários acreditavam que uma sociedade ideal era aquela na qual o indivíduo deixaria de lado os seus interesses particulares pelo geral. Entretanto, para que isto fosse possível, era necessário uma “transparência” entre os cidadãos, isto é uma livre comunicação, na qual todos pudessem deliberar publicamente sobre a política. A partir deste pensamento e da necessidade de se romper com as simbologias, rituais e linguagens do Ancien Régime, os revolucionários precisavam educar e, de certa maneira, colocar o povo em um molde republicano. Houve, portanto, uma “politização do dia-a-dia” (Ibid, p.81), no qual as práticas políticas dos revolucionários deveriam ser didáticas, com a finalidade de educar o povo. O âmbito político expandiu-se, portanto, para o cotidiano e, segundo a autora, multiplicaram-se as estratégias e formas de se exercer o poder. E o exercício deste poder demandava práticas e rituais simbólicos: a maneira de se vestir, cerimônias, festivais, debates, o uso de alegorias e, principalmente, uma reformulação dos hábitos cotidianos.

No livro Origens Culturais da Revolução Francesa, Roger Chartier busca compreender algumas práticas que contribuíram para a emergência da Revolução Francesa. Apesar do que sugere o título, o autor não está preocupado em estabelecer uma história linear e teleológica do século XVIII partindo de uma origem específica e fechada; mas em entender as dinâmicas de sociabilidade, de comunicação, de processos educacionais e de práticas de leitura que contribuíram para um universo mental, político e cultural dos franceses naquele período. Dentre os vários capítulos de sua obra, trago aqui algumas ideias principais do capítulo Será que livros fazem revoluções? para complementar a perspectiva de Hunt, visto que os dois autores bebem de uma mesma perspectiva.

Assim como Hunt, Chartier também desenvolve em sua introdução um debate historiográfico com os escritos de Tocqueville, Taine e Mornet. No capítulo especifico citado anteriormente, Chartier afirma que estes três autores entenderam a França pré-revolucionária como um processo de internalização das propostas dos textos filosóficos que estavam sendo impressos no momento: “carregadas pela palavra impressa, as novas ideias conquistavam as mentes das pessoas, moldando sua forma de ser e propiciando questionamentos. Se os franceses do final do século XVIII moldaram a revolução foi porque haviam sido, por sua vez, moldados pelos livros” (CHARTIER, 2009, p.115). Contudo, Chartier vai além: propõe que o que moldou o pensamento dos franceses não foi o conteúdo de tais livros filosóficos, mas novas práticas de leituras, um novo modo de ler que desenvolveu uma atitude crítica em relação às representações de ordem política e religiosa estabelecidas no momento. Como foi demonstrado por Hunt, novos significados e conceitos foram reapropriados pela linguagem e retórica revolucionária. Neste sentido, Chartier propõe uma reflexão: talvez tenha sido a Revolução que “fez” os livros, uma vez que ela deu determinado significado a algumas obras.

“Assim, a prática da Revolução somente poderia consistir em libertar a vontade do povo dos grilhões da opressão passada” (HUNT, 2007, p.98). Todavia, seríamos ingênuos de pensar que estes revolucionários almejavam uma igualdade social e política sem hierarquias, na qual todos estivessem em contato pleno com o poder. Focault afirma que o poder não está centralizado, ele constitui-se a partir de uma rede de forças que se relacionam entre si: o poder perpassa por tudo e por todos. Contudo, admite que há assimetrias no exercício e nas apropriações do poder (FOUCAULT, 2006). E neste contexto revolucionário não poderia ser diferente: os republicanos, através de seus discursos, buscaram disciplinar o povo de acordo com seus interesses.

Devemos relembrar que o próprio conceito de política foi ampliado. Neste sentido, Hunt afirma que as eleições estiveram entre as principais práticas simbólicas: “ofereciam participação imediata na nova nação por meio do cumprimento de um dever cívico” (Ibid, p.155). Como consequência disto, expandiu-se a noção do que significava a divisão política e a partir de então diversas denominações surgiram: democratas, republicanos, patriotas, exclusivos, jacobinos, monarquistas, entre vários outros. Mais significante ainda foi a divisão da Assembleia Nacional em “direita” e “esquerda”; termos que perduram até hoje.

Durante este processo surgiu uma nova classe política revolucionária, conforme a autora. Contudo, não devemos pensar esta classe como completamente homogênea: ela é composta por interesses e intenções individuais, mas define-se por oportunidades comuns e papéis compartilhados em um contexto social. “Nessa concepção, os revolucionários foram modernizadores que transmitiram os valores racionalistas e cosmopolitas de uma sociedade cada vez mais influenciada pela urbanização, alfabetização e diferenciação de funções” (Ibid, p.237).

O conteúdo simbólico foi se modificando e se moldando conforme as aspirações revolucionárias durante a década que sucedeu a Revolução. Mas a autora questiona-se como tais transformações foram percebidas e recebidas nas diferentes regiões da França e de que maneira os diversos grupos lidaram com elas. Seria equivocado pensarmos que a cultura política revolucionária foi homogênea em todos os lugares, até porque tal política estava sendo construída no momento. Sendo assim, Hunt também procura contextualizar socialmente a Revolução. Ela nos propõe uma análise da sua geografia política, considerando que “a identidade social fornece importantes indicadores sobre o processo de inventar e estabelecer novas práticas políticas” (Ibid, p.153). Neste sentido, o contexto social da ação política se deu conforme as condições sociais e econômicas; laços, experiências e valores culturais de cada local.

“A Revolução foi, em um sentido muito especial fundamentalmente ‘política’” (Ibid, p.246). O estudo de Hunt nos mostra como as novas formas simbólicas da prática política transformaram as noções contemporâneas sobre o tema. Talvez este tenha sido o principal legado da Revolução Francesa e talvez ela ainda nos fascine porque gestou muitas características fundamentais da política moderna. Ela conclui, portanto, que houve uma revolução na cultura política. Mais do que enxergarmos as origens e resultados da Revolução, é fundamental compreendermos como ela foi pensada pelos revolucionários e de que maneira estes sujeitos históricos se modificaram a si próprios e a própria Revolução.

Nota

1. Resenha produzida para a disciplina de História Moderna II, ministrada pela professora Dra. Silvia Liebel, do curso de Bacharelado e Licenciatura de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

Referências

CHARTIER, Roger. Origens Culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

FOUCAULT, Michel. Estratégia, Poder-Saber. 2ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

HUNT, Lynn. Política, cultura e classe na Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Carolina Corbellini Rovaris –  Graduanda do curso de Bacharelado e Licenciatura de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: [email protected]


HUNT, Lynn. Política, cultura e classe na Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Resenha de: ROVARIS, Carolina Corbellini. Outros olhares acerca da Revolução Francesa. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.12, p.284-288, jan. / jul., 2013. Acessar publicação original [DR]

Caipira sim, trouxa não. Representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi | Soleni B. Fressato

O típico caipira brasileiro foi imortalizado nas telas do cinema pelo Jeca Tatu de Amácio Mazzaropi. Sucesso nas bilheterias dos cinemas brasileiros, as aventuras e desventuras de um caipira ingênuo e ao mesmo tempo malicioso e debochado divertiram numerosas platéias por quase três décadas. Mazzaropi produziu 32 películas entre os anos de 1952 e 1980, atuando como ator, roteirista e produtor. Seus primeiros filmes foram lançados pela Vera Cruz e posteriormente, em 1958, Mazzaropi fundou sua própria produtora – a PAM Filmes, tendo como carro chefe das suas produções o personagem do caipira Jeca, representado seja no contexto urbano ou rural. Não era a primeira vez que a figura do caipira era apropriada e recriada pelas artes; já fazia parte do imaginário brasileiro, por exemplo, o Jeca Tatu criado por Monteiro Lobato – que apesar de ser homônimo ao caipira de Mazzaropi, possuía características distintivas – e tantos outros “caipiras” que fizeram sucesso nos programas humorísticos radiofônicos.

A popularidade do Jeca nas telonas não significou um reconhecimento da crítica cinematográfica. Os filmes de Mazzaropi eram taxados como superficiais, com pouco valor estético e repleto de fórmulas repetitivas e piegas. Além disso, a representação de valores rurais em um contexto histórico de valorização da urbanização e da modernização brasileira colidiu com as percepções e interesses desenvolvimentistas de alguns setores da sociedade que tinham o anseio de extirpar a “cultura atrasada” dos caipiras. A falta de prestígio também é perceptível nas reflexões acadêmicas que ora resumiram-se ao ataque ao conservadorismo das produções de Mazzaropi, ora optaram pelo simples desprezo e ignorância.

Buscando romper com os silêncios e ponderações reducionistas em torno das películas de Mazzaropi, foi lançado recentemente o livro Caipira sim, trouxa não. Representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi, fruto da tese de doutorado da historiadora e socióloga Soleni Biscouto Fressato. A autora, que é editora da revista eletrônica O Olho da História, desenvolve suas pesquisas em torno da temática cinema-história, abordando as obras cinematográficas como uma forma de representação do real e instrumento de análise sócio- históricas. O seu objetivo é entender como está representada a cultura popular rural no cinema de Mazzaropi e as relações que são estabelecidas com outras esferas socioculturais.

Soleni não recusa ou foge do conceito de cultura popular: ela o historiciza e o problematiza. Sua abordagem teórica, sustentada pelas reflexões introduzidas por Bakhtin em Cultura Popular na Idade Média, identifica a cultura de maneira plural e heterogênea. No processo de circularidade cultural – conceito chave para a interpretação da autora – as práticas culturais populares e hegemônicas se relacionam, se influenciam e ao mesmo tempo se contradizem. Há um fluxo de permeabilidade entre as culturas, o que impede a definição de cultura popular de maneira simplista, orientada pelo signo da pureza cultural. A cultura popular pode ser compreendida como espaço de contestação e resistência, ao mesmo tempo em que há concordância e subordinação.

Um dos meios de questionar e reagir às normas dominantes é a utilização do cômico e da paródia. Tais expressões foram exploradas por Mazzaropi ao representar as dimensões da cultura popular caipira como espaços de sátira e crítica às estruturas socioculturais dominantes. A comicidade não é apresentada apenas como uma ingênua válvula de escape das vicissitudes cotidianas. Torna-se, no cinema de Mazzaropi, uma forma sútil de crítica social.

É importante pontuar que em nenhum momento Soleni defende um suposto caráter revolucionário de Mazzaropi, apenas identifica que, por trás de posturas conservadoras, a filmografia pode apontar inúmeras contradições sociais nas quais estavam (e estão ainda) inseridos os homens do campo. Um pesquisador que tem a proposta de utilizar o cinema como forma de compreender as representações e discursos sobre a realidade deve analisar as imagens para além da intencionalidade do diretor e da produção técnica, apreendendo o dizível e o não dizível. O cinema, ao fazer uma contra- análise da sociedade, revela muito além do que inicialmente era a proposta da película, pois a arte nunca perde o vínculo com o real. Além de observar e descrever os aspectos do cotidiano caipira e os elementos centrais explorados por Mazzaropi na construção dos enredos e personagens, a autora averiguou, por exemplo, os silêncios, ausências e deturpações presentes nas obras.

Soleni analisa especialmente quatro películas: Chico Fumaça (1958), Chofer de praça (1958), Jeca Tatu (1959) e Tristeza do Jeca (1961). Sua abordagem, entretanto, não se deteve apenas a estas, uma vez que a autora trabalha com o conjunto das produções de Mazzaropi, buscando contextualizá-las historicamente. A análise do contexto social do país permite ao leitor perceber como o discurso das décadas de 50 e 60 do desenvolvimentismo nacionalista, que pregava a valorização da industrialização, do trabalho, da cidade e do progresso, se contrapunha totalmente ao caipira preguiçoso de Mazzaropi, considerado pela intelectualidade da época um símbolo do atraso e da ignorância.

A problemática da tradição versus modernidade – ainda tão atual! – foi abordada expressivamente nos filmes de Mazzaropi. A modernidade, que proporcionou a transformação do modo de vida caipira a partir do avanço das práticas e organizações capitalistas, não encantou o caipira. A autora aponta que, na cinematografia de Mazzaropi, quanto mais o país tornava-se urbano e desenvolvido, mais caipira ficava o personagem Jeca Tatu. A oposição cidade versus campo também foi bastante recorrente. Mesmo nos espaço das grandes cidades, o Jeca não se adaptava e os seus gestos, trejeitos e formas de se comportar destoavam dessa nova maneira de viver. A sua inaptidão aos novos códigos suscitava nos espectadores muitos risos e gargalhadas.

Mazzaropi tinha o compromisso de divertir e entreter o seu público. Queria fazer um cinema de fácil compreensão para os brasileiros. Contava histórias nas quais muitos espectadores poderiam se identificar, já que os problemas da modernidade estavam chegando para muitos migrantes que tiveram que abandonar o campo e ir para as cidades.

Caipira sim, trouxa não apresenta ainda o contexto da produção cinematográfica da época, destacando o surgimento e o declínio da Vera Cruz, a fundação da Atlântida e a história da chanchada no Brasil. Por fim, a autora traça comparações entre o Cinema Novo e as produções de Mazzaropi. A proposta do Cinema Novo era promover a reflexão crítica com seriedade a partir de películas ricas em simbologias e elementos de contestação. Tal concepção acreditava que outras formas de fazer cinema, como o cinema de Mazzaropi, eram apenas formas de alienação. Soleni ainda discorre sobre as diferentes visões sobre o campesinato expressas nos filmes de Glauber Rocha e de Mazzaropi, comentando as diferentes maneiras de tecer críticas sociais a partir do uso do cinema.

A pesquisa de Soleni Biscouto Fressato pode abrir caminhos para outros estudos e reflexões sobre as obras de Mazzaropi, principalmente aquelas que se proponham a realizar uma análise sobre a recepção dos seus filmes – aspecto não aprofundado no livro. Acredito, contudo, que a maior contribuição da obra – além de resgatar o cinema de Mazzaropi para as novas gerações que o desconhecem – se insere na utilização do cinema como uma ferramenta de compreensão das contradições da realidade social. Soleni defende que o cinema age como um pesquisador inconsciente das diversas dimensões sociais, construindo até mesmo hipóteses sobre determinados aspectos do real. Deste modo, os estudiosos que ignoram ou desprezam as interpretações cinematográficas desconhecem o grande potencial analítico do cinema.

Ao terminar a leitura do livro percebo que o Brasil do Jeca Tatu de Mazzaropi não está tão distante do Brasil contemporâneo. Um Brasil no qual o discurso do progresso e da modernização ainda impera. Um Brasil repleto de Jecas expropriados que sobrevivem precariamente em um espaço rural cada vez mais mecanizado, ou que têm de ir para as cidades nas quais não existem nem ao menos os empregos de Chofer de praça. Jecas que agora precisam de Bolsa Família para viver – e que milagrosamente sobrevivem. Jecas que criam (e recriarão) suas formas de resistir, se adaptar e reagir sem abdicar totalmente de suas manifestações culturais. Cientistas sociais: aprendei com os nossos Jecas, que apesar de tudo, não abandonaram o riso, o deboche e a crítica.

Catarina Cerqueira de Freitas Santos –  Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

 


FRESSATO, Soleni Biscouto. Caipira sim, trouxa não. Representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi. Resenha de: SANTOS, Catarina Cerqueira de Freitas. O deboche caipira nas telas do cinema em “Caipira sim, trouxa não”. Aedos. Porto Alegre, v.4, n.10, p.169-172, jan. / jul., 2012. Acessar publicação original [DR]

A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna | Gilles Lipovetsky e Jean Serroy

Para o filósofo francês Gilles Lipovetsky vivemos já a era hipermoderna, dividida entre a cultura do excesso (o hedonismo de massas) e o elogio da moderação (valorização da saúde, dos direitos humanos, dos afetos, da consciência ambiental etc.). Vivemos não o fim da modernidade – o que o termo pós-moderno parece acusar – mas o aprofundamento do tripé que sempre caracterizou a modernidade: o mercado, o indivíduo e a escalada técnico-científica.

Com efeito, o avanço vertiginoso da globalização e das novas tecnologias de comunicação de massa, a partir da segunda metade do século XX, bem como da legitimidade dos prazeres do consumo, revolucionaram o cotidiano das massas. Decerto, a leveza do ser e os gozos privados da ordem do efêmero e da sedução das coisas, instaurados através da reestruturação da cultura de massas pela lógica da moda – isto é, o mercado organizado pelo efêmero, sedução e novidade permanente – conferiu legitimidade aos valores hedonistas e psicologistas, à renovação contínua, direito à felicidade individual e ao presentismo social [2]. Ou seja, as causas da derrocada do otimismo iluminista (o progresso ilimitado da razão) não se encontram apenas nas decepções comunistas e nas guerras do século XX, mas também em causas positivas da economia do consumo de massas, passando nós de um futurismo social (característico de uma primeira modernidade, nas teleologias de futuro paradisíaco encarnadas nas promessas revolucionárias) a um aqui-agora, e ao correspondente imperativo do carpe diem [3].

Esta concepção geral sobre a atualidade, supracitada, que já era tratada por Lipovetsky em “O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas” e seria sintetizada em “Os Tempos Hipermodernos”, é agora estendida em direção à análise da proliferação de telas e de uma cultura telânica, que não deixa de ter efeitos existenciais, contígua à era hipermoderna, de individualização crescente. Assim, rompendo com as especialidades entediantes das ciências humanas, Jean Serroy (estudioso do cinema) e Gilles Lipovetsky, um verdadeiro outsider dentro da academia, por suas ideias e temáticas, vêm com Tela Global tratar da extensão quase onipresente e certamente hiperespetacular das telas, pois se o século XX foi o século do cinema, sua segunda metade e o século XXI anunciam a era do tudo-tela.

Destarte, numa passagem que integra o último livro aos precedentes, os autores afirmam:

A mutação hipermoderna se caracteriza por envolver, num movimento sincrônico e global, as tecnologias e os meios de comunicação, a economia e a cultura, o consumo e a estética. O cinema obedece à mesma dinâmica. É no momento em que se afirmam o hipercapitalismo, a hipermídia e o hiperconsumo globalizados que o cinema inicia, precisamente, sua carreira de tela global. (p.23)

Vivemos assim uma mediocracia (de mídia, no plural do latim media), ou ecranocracia (ecrã é como usualmente chama-se tela, no português de Portugal), um poder telânico que se imiscui até nas esferas mais banais do cotidiano dos indivíduos comuns.

Como salientam os autores,

A expressão ‘tela ou ecrâ global’ deve ser entendida em vários sentidos. Em sua significação mais ampla, ela remete ao novo poder planetário da ecranosfera, ao estado generalizado de tela possibilitado pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (p. 23),

tais como TV, VHS e depois DVD, videoclipe, celular com internet WAP e já WiFi, computador, videogame, câmeras pessoais e/ou de vigilância, publicidade, conversação online, o saber digitalizado, arte digital, telas de ambiente, PCTV, TV que acessa a internet, os recentes Tablets etc.

Na vida inteira, as nossas relações com o mundo e com os outros são cada vez mais mediatizadas através de telas (…). Se convém falar de tela global é também em razão do espantoso destino do cinema, que perdeu sua antiga posição hegemônica e que, confrontado à televisão e ao novo império informático, parece um tipo de expressão ultrapassada pelas telas eletrônicas. (pp. 23-5)

As estatísticas de diminuição do número de salas de cinema traduziriam isto, ou seja, um apregoado (por alguns observadores) “fim do cinema” ou “pós-cinema”.

É contra essa ideia que Lipovetsky e Serroy escrevem o livro. Aqui se encontra, portanto, a tese central da obra, pois é “no momento em que o cinema não é mais a mídia predominante de outrora que triunfa, paradoxalmente, seu dispositivo próprio, não material, é claro, mas imaginário: o do grande espetáculo, o da transformação em imagem, do star-system” (p. 25), isto é, o sistema de constituição de estrelas, que se na era de ouro do cinema eram inacessíveis e idealizadas, hoje são celebridades mais people e em muito maior número, quer dizer, democratizadas num certo sentido.

Deste modo, em vez do “fim do cinema”, o que “vivemos [é] a expansão do espírito cinema em nossa cultura hipermoderna, um espírito que fagocita a cultura telânica, que se encontra nas transmissões esportivas” (p. 23), por exemplo, com suas multicâmeras e zooms, slow motion, igualmente nos reality shows com sua filmagem do cotidiano de pessoas comuns, na cinefilia narcísica que os celulares e câmeras digitais proporcionaram, até mesmo nas violências que são filmadas pelos próprios agentes, e tudo isso é reencontrado (na interatividade, nos downloads) pela tela do computador, que dá acesso ao mundo pela internet. Uma cinemania generalizada, portanto. Uma cinevisão do mundo, por conseguinte.

O cinema como mundo e o mundo como cinema, pois aqui, mais do que nunca, é a vida que imita a arte. E é importante lembrarmos que o cinema é em si mesmo uma arte compósita, que funde fotografia, música, representação, poesia, espaço e tempo etc (p. 302). O cinema que, outrossim, é arte para além da evasão: tem a função social de criar vínculo humano (reunir os espectadores numa mesma sala) e que já foi chamado por isso de “a catedral do século”, e grande força de aculturação que forjou a modernidade, bem como se transformando em vetor de debates, mesmo politizados, especialmente no gênero dos documentários (pp. 301-3). Em vez do declínio do cinema, o que assistimos atualmente é seu auge, o tudo-cinema: “A época hipermoderna consagra o cinema sem fronteiras, a cinemania democrática de todos e feita por todos. Longe da morte proclamada do cinema, o nascimento de um espírito cinema que anima o mundo” (p. 27).

Para finalizar, uma questão profunda debatida pelos autores é a denúncia comum de que essa crescente “espetacularização” nos despojaria da verdadeira vida, nos levaria à desrealização do mundo (a imersão completa no mundo das imagens/fantasia), que o processo de cinematização induziria ao controle dos comportamentos, ao empobrecimento das existências, à derrocada da razão, à padronização da cultura (p. 309); alienados ficaríamos, em suma. Ainda que os autores aceitem a existência de uma tendência superficializante e de certa padronização dos produtos culturais, eles não subscrevem, no todo, esta visão apocalíptica. Assim,

O que o universo telânico trouxe ao homem hipermoderno é menos, como se afirma com frequência, o reinado da alienação do que uma nova capacidade de recuo crítico, de distanciamento irônico, de julgamento e de desejos estéticos (…). Nenhuma derrocada da cultura da singularidade no reinado da barbárie estética, mas também nenhum triunfo daquilo que [Paul] Valéry chamava o ‘valor espírito’. Nenhum filme catástrofe, mas também nenhum happy end. (p.310).

Notas

2. Gilles Lipovetsky. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Cia das Letras, 1989. pp. 257-60.

3. Gilles Lipovetsky. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. pp.51-65.

Walter Luiz de Andrade Neves – Mestre em História pela UFRuralRJ. Doutorando do PPGHIS-UFRJ.


LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009. 326p. Resenha de: NEVES, Walter Luiz de Andrade. Aedos. Porto Alegre, v.10, n.4, p.173-175, jan. jun. 2012. Acessar publicação original [DR]

J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839) | Valéria A. E. Lima

Jean-Baptiste Debret (1768-1848), pintor afamado e membro correspondente da Academia Francesa, foi também historiador. Sua principal produção, a obra Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d´un artiste française au Brésil, depuis 1816 jusqu´en en 1831 inclusivement, advoga que o Brasil é uma nação civilizada e encontra-se em processo de aperfeiçoamento. Esta é, ao menos, a tese central da obra J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839) de Valéria Lima, publicada em 2007. Conhecido sobretudo por sua condição de pintor, Lima não hesita em caracterizar Debret também como historiador. O fundamento maior disso é a própria intenção do artista ao expressar seu desejo de produzir um livro historiográfico, seja adjetivando-o como histórico, seja manifestando esse anseio numa missiva enviada ao seu discípulo dileto Araújo Porto- Alegre, em 1837 (LIMA, 2007: 277).

A adjetivação da obra como histórica objetiva justamente atribuir legitimidade ao novo status adquirido pelo Brasil: o de nação civilizada (LIMA, 2007: 245). Ao propor uma interpretação histórica, Debret torna-se historiador. O escopo de Lima é justamente resgatar a intencionalidade do pintor-historiador:

Dar ênfase à biografia constitui, portanto, uma das estratégias fundamentais da abordagem que ora se propõe e que irá privilegiar as intenções que o levaram a publicar essa obra e que, ao mesmo tempo, lhe conferem sentido. Procurar entender essas intenções a partir da experiência pessoal e profissional do artista, considerando que o maior documento a seu respeito é, sem dúvida, sua própria obra (LIMA, 2007: 38, grifo meu).[2]

Ao longo de sua obra, contudo, a historiadora irá rever e matizar este intuito. No entanto, antes disso, a fim de alcançar o objetivo proposto, Lima lança mão da metodologia que define a partir de uma metáfora arqueológica. Nas suas palavras:

A escavação será efetuada, portanto, nos volumes da Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, em busca de indícios que possam esclarecer sua organização e as ideias que a presidiram. A coleta, por sua vez, será feita no contexto mais geral da época de sua elaboração, com o objetivo de recolher dados que contribuam para o entendimento da proposta de Debret (LIMA, 2007: 130).

Assim, é possível crer que a historiadora propõe uma análise verticalizada da obra, editada em três volumes ainda na primeira metade do século XIX, que perpassa sua estrutura e ordenação, além de revelar as ideias que a determinaram. Aliado a isso, a autora propõe buscar no contexto da sua produção elementos que expliquem a elucidação do projeto debretiano. Lima permanecerá, neste sentido, fiel a sua proposta. Na organização de sua própria obra, é exatamente isso que ela faz. Apresento-a, brevemente, pois.

O capítulo inicial, denominado Paris-Rio de Janeiro-Paris: a dupla travessia de um artista, é dedicado a explorar a biografia artística de Debret. Poderíamos perceber aqui, para fazer referência à metáfora utilizada, que se trata do primeiro momento de coleta do material. Lima parcela a vida produtiva do pintor em três grandes momentos, sendo o elemento central a própria travessia do artista ao Brasil. Assim, após descrever o período inicial da formação do pintor, sua inserção no ateliê do primo e famoso artista Jacques-Louis David e suas produções artísticas até o momento da viagem, a historiadora tenta entender os motivos que levaram os artistas franceses a participarem da travessia. Aqui há a contestação, por exemplo, de explicações limitadoras, como a de que os artistas teriam sido expulsos da França em virtude da instabilidade política. Entretanto, embora problematize a questão, Lima não propõe novas alternativas. A impossibilidade explicativa residirá justamente na subjetividade das intenções dos viajantes:

As condições gerais que podem ter favorecido a vinda dos artistas para o Brasil […] não podem, porém, justificar com exclusividade as opções de cada um dos integrantes do grupo, uma vez que não havia um caráter oficial nesse empreendimento. Os convites foram feitos, e os artistas, movidos por intenções nem sempre fáceis de identificar, mas certamente de cunho muito pessoal, decidiram pela travessia (LIMA, 2007: 98, grifo meu).

Desta forma, embora considere possível recuperar a intenção de Debret na realização de sua obra, a autora hesita na explanação das intenções da vinda dos artistas ao Brasil. Após o retorno à França, por fim, o pintor francês irá se dedicar à organização do material que será publicado. Para Lima, a obra seria uma forma de o artista cumprir o compromisso assumido como membro correspondente da Academia Francesa (LIMA, 2007: 104-105).

No segundo capítulo, intitulado Voyage pittoresque et historique au Brésil – considerações sobre uma obra, Lima se dedica, mais aprofundadamente, a tratar desse momento final e posterior à última travessia. Novamente estabelecido na França, Debret passa a organizar e editar sua obra. Aqui, o escopo é apontar como o pintor-historiador construiu seu projeto, revelando as escolhas e os processos que concorreram para sua constituição. Para isso, a historiadora parte do título atribuído por Debret a fim de propor sua análise inicial. Ele se constitui numa fonte de intenções. O método parece uma boa alternativa e, como constata Umberto Eco, a primeira chave de leitura de um livro reside em seu título (ECO, 1985: 8). Aqui, estamos no momento da escavação da obra; contudo, a análise é ainda mormente externa ao texto. Após debruçar-se sobre o título, Lima aponta a própria organização da obra debretiana – com os volumes apontando uma evolução progressiva da nação – como um indicativo do projeto intelectual do pintor, qual seja, a busca pela delimitação do processo de civilização do Brasil (LIMA, 2007: 131).

No capítulo terceiro, denominado A Voyage de Debret e a literatura de viagem, Lima concentra-se em cotejar a obra debretiana com o gênero largamente difundido dos relatos de viajantes. Como se percebe, trata-se de uma nova etapa da coleta. Para isso, a autora lista e comenta inúmeras produções desse gênero e aponta as aproximações e os distanciamentos com relação à obra debretiana. O intuito é menos afirmar o pertencimento do livro de Debret à literatura de viagens, do que entender as origens de sua produção e de sua composição (LIMA, 2007: 178). Dois aspectos que, de imediato, afastam-no do gênero são sua longa estada no Brasil e seu objetivo antes de informar a nação do que de informar-se. A conclusão, então, é que o livro não se ajusta às categorias dos relatos de viajantes. Novamente aqui, contudo, a historiadora assevera a dificuldade em resgatar a intenção debretiana:

As intenções de um artista e, no caso em questão do autor de uma obra cuja natureza se divide entre a literatura de viagem e os estudos históricos, não são objetos fáceis de identificar. Podemos levantar uma série de hipóteses, imaginar que ele tenha desejado cumprir um determinado programa, mas há um certo limite além do qual não nos é permitido avançar. As obras de arte, bem como a literatura, apontam para essa instância misteriosa e estabelecem limites bem claros a nossos esforços interpretativos. Lembremos, então, que Debret era, antes de tudo, um artista. Sendo assim, suas imagens, e não apenas seus textos, criarão fortes obstáculos ao nosso entendimento (LIMA, 2007: 175, grifos meus).

Assim, a historiadora revela a impossibilidade de expor as intenções do artista. Há limites para essa busca. Diante disso, Lima recorre à expressão “instância misteriosa” e volta a reafirmar a condição de artista de Debret – em detrimento de sua postura historiadora – para indicar a impossibilidade da realização da tarefa a que se propôs.

Por fim, o derradeiro capítulo é dedicado à análise interna da obra de Debret. Após coletar o material, o momento agora é de escavar a obra. Sob o título de A construção de uma obra histórica, Lima busca integrar texto e imagens debretianas para compreender como o pintor francês pensa e interpreta o Brasil. Para a historiadora, a obra deve ser inserida numa matriz de pensamento iluminista na qual a história deve ser pensada de forma progressiva com destino ao desenvolvimento e aprimoramento da civilização (LIMA, 2007: 264). Por isso, a autora estabelece um paralelo entre a obra de Debret e as estatísticas departamentais (no intuito de esquadrinhar a nação), com a Academia Céltica (no objetivo de recuperação do passado e dos monumentos antigos) e, por fim, com a produção de Jules Michelet. Em uma análise mais aprofundada a partir das imagens produzidas pelo artista, enfim, Lima então demonstra como toda a obra está orientada para a exaltação do processo civilizacional.

Entretanto, após coletar e escavar, a autora não conclui.[3] Creio que o mérito maior do livro J.-B. Debret, historiador e pintor reside no seu esforço de problematização da obra debretiana. A historiadora contesta versões anteriores, coteja a produção do pintor com gêneros literários do período, aproxima-a da obra de Michelet, mas, ao cabo, exime-se de fornecer um remate ao texto. Talvez o excesso de considerações paralelas tenha impedido a autora de delimitar uma conclusão. Refiro-me, aqui, à listagem de inúmeras obras da literatura de viagens que são apenas apresentadas ao leitor, mas não exercem nenhum auxílio na problemática proposta pela historiadora, pois não há aproximação ou distanciamento. Parece, além disso, que o intuito maior de buscar as intenções debretianas – que se revelou irrealizável – quedou por obstaculizar uma conclusão. A historiadora anuncia seu projeto; no entanto, não parece concretizá-lo.

Sublinho outra questão: Lima coteja a produção debretiana a fim de invalidar a inserção da obra na categoria literatura de viagens. No entanto, o mesmo procedimento não é realizado na caracterização da obra como histórica. A única confrontação neste sentido é com a produção de Michelet. Igualmente, uma aproximação com a obra de Flora Süssekind poderia revelar novos elementos na escolha de temáticas, na valorização da capacidade artística do indígena (destacada por Debret), no tratamento concedido ao escravo, entre outros. Ao apontar o contato e até a indeterminação de diferentes campos durante o século XIX, Süssekind demonstra, em O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem, como esse diálogo era importante. A literatura assumia preocupações históricas, consultava e criticava os relatos de viajantes e cronistas a fim de estabelecer um campo mais autônomo. Entretanto, Lima não trata em nenhum momento desta questão e também se descuida, com exceção do parecer emitido pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da recepção da obra debretiana no âmbito nacional.

Por fim, gostaria de destacar a dimensão da intencionalidade perseguida por Lima na obra debretiana. Como salientado, a autora não concretiza essa proposta. É curiosa, no entanto, a inclusão da obra de Michael Baxandall, Formes de l’intention. Sur l’explication historique des tableaux na referência bibliográfica. Embora conste na bibliografia, não há qualquer referência sua no texto. No entanto, creio que a proposta de Baxandall seria de grande valia para Lima, permitindo inclusive concretizar o escopo almejado pela historiadora. Isso porque o historiador britânico propôs pensar a intenção das obras artísticas de um modo inédito. Para ele, a intenção não se trata de algo específico e característico da mente do artista. De modo diverso, a intencionalidade aqui remeteria a uma produção racional, que pode ser delimitada a partir das relações entre o contexto cultural, o objeto produzido como resposta e a descrição da obra realizada pelo analista (BAXANDALL, 2006: 81).

Ora, independentemente da crítica ou elogio a esse esforço de recuperação da intenção do artista, Lima executa exatamente estas três dimensões. Como exposto, a historiadora preocupa-se em resgatar o contexto cultural, na medida em que explicita as características que definiam a produção de obras do gênero da literatura de viagens do período e acompanha o desenvolvimento das técnicas de produção – aquarela – e reprodução de imagens – litografia. Além disso, há uma caracterização da obra debretiana bastante aprofundada, pois a historiadora compara as aquarelas de Debret com a de outros artistas do período, identifica o destaque dado aos negros no conjunto da obra e percebe os temas neoclassicistas sendo retrabalhados pelo historiador-pintor. Por fim, mormente no capítulo derradeiro, mas de forma esparsa em todo o livro, Lima analisa as imagens debretianas de forma cuidadosa, ou seja, escava a produção do artista francês.

Creio que é possível constatar, por fim, que a intenção pareceu ser um conceito ou categoria inapropriada para a descrição de Lima. Proposta inicialmente, a historiadora reconheceu que era tarefa complicada resgatar a intenção de Debret. Entretanto isso também foi pouco relevante, pois a tese defendida, qual seja, de que Debret pensava o Brasil como uma nação civilizada permaneceu, a despeito da impossibilidade do resgate intencional. Assim, é possível concluir que a intenção antes obstaculizou do que auxiliou a historiadora na sua empresa.

Notas

2. Lima retoma essa posição no início do capítulo inicial de modo ainda mais incisivo: “Parto, portanto, do princípio de que Debret esteve, em todo momento, movido por intenções […]. As condições que determinam essas alternativas devem ser buscadas no contexto cultural da época, permitindo identificar as opções que se colocavam ao artista naquele momento específico” (LIMA, 2007: p. 67-68, grifo meu).

3. Devo esta constatação a Jurandir Malerba que, em crítica à obra, censura a ausência de uma conclusão (MALERBA, 2009: 373).

Referências

BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção. A explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

ECO, UMBERTO. Pós-escrito a O nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1985.

HARRISON, Marguerite Itamar. Resenha. In: Luso-Brazilian Review, 46:2, pp. 196-197.

LIMA, Valéria Alves Esteves. J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.

MALERBA, Jurandir. Resenha. In: Hispanic American Historical Review – HAHR, maio, 2009, pp. 373-374.

SQUEFF, Letícia. Resenha. In: Revista de História, 159 (2º semestre de 2008), pp. 265-270.

SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Eduardo Wright Cardoso1 – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto e bolsista Capes. Desenvolve pesquisa na área de história da historiografia do século XIX. Endereço eletrônico: [email protected]


LIMA, Valéria Alves Esteves. J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007. Resenha de: CARDOSO, Eduardo Wright. Uma arqueologia da intencionalidade debretiana. Aedos. Porto Alegre, v.4, n.10, p.176-181, Jan./jul., 2012. Acessar publicação original [DR]

A Distinção: crítica social do julgamento | Pierre Bourdieu

Publicado originalmente na França em 1979, sob o título La Distinction. Critique sociale du jugement, o último livro de Pierre Bourdieu traduzido para o português no Brasil apresenta uma teoria sociológica do gosto. Em uma perspectiva mais ampla, pode-se dizer que a obra oferece um arcabouço teórico acerca das categorias de percepção e de classificação do mundo social.

Dividida em três partes, além das tradicionais introdução e conclusão, A Distinção expõe, em quatro anexos, localizados no final do livro, reflexões sobre o método e relação comentada de fontes e de dados estatísticos com base nos quais o sociólogo constrói sua argumentação. E, para executar sua proposta, Bourdieu lança mão não apenas de sua tradicional escrita repleta de jogos de palavras, mas também da problematização de gráficos (construídos a partir da metodologia estatística da análise de correspondência), tabelas, ilustrações e trechos de entrevistas. Tais recursos, mais que adornar o texto, evidenciam a complexidade da leitura proposta pelo autor para o tema.

Na primeira parte, denominada “Crítica social do julgamento do gosto”, constituída de um único capítulo, Bourdieu explica que a competência cultural apreendida através da natureza dos bens consumidos e da maneira de consumi-los varia conforme as categorias de percepção dos agentes e segundo os domínios aos quais tais categorias se aplicam, desde os mais legítimos (pintura ou música) até os mais livres (vestuário ou cardápio). Nesse sentido, para buscar a significação sociológica das diferentes preferências, é necessário atentar para a relação que une as práticas culturais ao capital social e ao capital escolar. Nesses termos, o autor começa a deslindar a ideia lançada na introdução e que perpassa toda a obra: “O ‘olho’ é um produto da história reproduzido pela educação” (p.10). Utilizando-se de questionários aplicados a indivíduos de classes diversas e sobre assuntos igualmente variados no início dos anos 1960, Bourdieu analisa – através de indicadores como nível de instrução ou origem social – as preferências musicais e as relativas à pintura e à compra de móveis, demonstrando a existência de gostos mutáveis consoante as diferentes condições de aquisição de capital (econômico e cultural). Dentre tais predileções, o autor destaca o “gosto puro” – aptidão incorporada para perceber e decifrar as características propriamente estilísticas – e o “gosto bárbaro” – relacionado àqueles desprovidos de capital cultural e que, por falta de familiaridade, acabam aplicando ao objeto os esquemas que estruturam a percepção comum da experiência comum.

Na segunda parte, composta por três capítulos e intitulada “A economia das práticas”, o autor dá continuidade à reflexão, afirmando que o gosto relacionado a consumos estéticos está indissociável do relativo aos consumos habituais. Desta ideia deriva a de que o consumo tanto pressupõe um trabalho de apropriação, quanto contribui para produzir (por identificação e decifração) os produtos que se consome (mesmo os industriais). Os significados dos objetos não impõem a evidência de um sentido universal. Eles variam segundo os esquemas de percepção, apreciação e ação produzidos em condições objetivamente observáveis das classes, as quais não são definidas apenas pela posição que ocupam nas relações de produção, mas também pelo conjunto de agentes que, situados em condições de existência análogas, produzem sistemas de disposições homogêneos, os quais originam práticas semelhantes. Significa que é pelo habitus, princípio gerador de práticas objetivamente observáveis ao mesmo tempo em que sistema de classificação de tais práticas, que se constitui o espaço dos estilos de vida. Em seu interior, a distância da necessidade – possível de ser determinada pela renda – engendra o princípio das diferenças, isto é, a oposição entre os “gostos de luxo” – definidos pelas facilidades proporcionadas pela posse de capital econômico – e os “gostos de necessidade”. A alimentação, a cultura e as despesas com apresentação de si são as três estruturas de consumo através das quais a classe dominante pode se distinguir, principalmente pelas maneiras de se comportar. O interesse que as diferentes classes atribuem à apresentação de si – seja na alimentação, seja no esporte – é proporcional às oportunidades de lucros (materiais ou simbólicos) que podem esperar como retorno. No final desta segunda parte, o autor afirma que a relação entre oferta e demanda não é direta, fruto de simples imposição da produção sobre o consumo, mas uma homologia entre um campo e outro, e suas respectivas lógicas. No interior do campo da produção, responsável pelo universo de bens culturais oferecidos, estão os produtores em luta para satisfazerem os interesses/necessidades dos consumidores e, assim, obterem lucro, seguramente alheios às funções sociais que desempenham para este público. Já no campo de consumo, estão os consumidores manifestando interesses culturais diferentes, os quais se devem a sua condição e a sua posição de classe. Eles se apropriam do produto cultural de uma forma exclusiva porque orientados por disposições e competências que não são distribuídas universalmente. As diferentes formas de apropriação dos bens configuram-se verdadeiras lutas simbólicas, travadas entre aqueles que Bourdieu chama de “pretendentes” e “detentores”, pela apropriação dos sinais distintivos ou pela conservação ou subversão dos princípios de classificação das propriedades distintivas. Os “pretendentes” (exagerados, inseguros e obcecados pelo entesouramento), encarnados na figura do pequeno-burguês, tentam se apropriar dos sinais distintivos nem que seja sob a forma do símile para se distanciar dos desprovidos de distinção (as classes populares). Através do “parecer” eles pretendem “ser”. Já os “detentores”, os burgueses, são seguros de seu ser e só quando seus hábitos de consumo são ameaçados de vulgarização procuram afirmar sua raridade em novas propriedades.

Quatro capítulos integram a terceira e última parte, nomeada “Gostos de classe e estilos de vida”. Segundo o autor, no interior das classes – principalmente da burguesia e da pequena burguesia – existem variações de gosto que correspondem às frações de classe, caracterizadas, por um lado, pela distribuição das diferentes espécies de capital e, por outro, pela trajetória social. Primeiramente, ele trata da classe dominante e do que chama de “sentido de distinção”, no seio da qual há constante luta pela imposição do princípio dominante de dominação, que é inseparável do conflito de valores que comprometem toda a visão de mundo. A apropriação (material ou simbólica) confere aos bens de luxo, além de legitimidade, uma raridade que os transforma no símbolo por excelência da excelência, colocando em jogo não apenas a “personalidade”, mas a “qualidade” daquele que se apropria do produto. Em seguida, o sociólogo examina a pequena burguesia, caracterizada por ele pela “boa vontade cultural”, quer dizer, pela capacidade de tomar o símile como algo autêntico. A diferença entre conhecimento e reconhecimento assume formas diferentes dependendo do grau de familiaridade com a cultura legítima, conforme a origem social e seu modo correlato de aquisição da cultura. Daí decorrem três posições tipicamente pequeno-burguesas: a pequena burguesia em declínio (associada a um passado ultrapassado, manifesta-se contra todos os sinais de ruptura), a pequena burguesia em execução (que exibe em grau mais elevado os traços de “pretendentes”) e a nova pequena-burguesia (geralmente indivíduos oriundos da burguesia que operaram um conversão para novas profissões, mas mantendo um capital social de relações importante). Na sequência, Bourdieu trata das classes populares e seu “gosto do necessário”, disposição adaptada à privação dos bens imprescindíveis e que traz consigo um modo de resignação, um princípio de conformidade que incentiva escolhas compatíveis com as imposições das condições objetivas e adverte contra a ambição de se distinguir pela identificação com outros grupos. A submissão à necessidade acaba produzindo uma “estética” pragmática e funcionalista, recusando a futilidade das formalidades e de toda espécie de arte pela arte.

No último capítulo, Bourdieu problematiza a relação entre cultura e política, questionando a noção de “opinião pública”. Responder a um questionário, votar ou ler um jornal, para ele, são casos em que acontece um encontro entre uma oferta – uma questão, uma situação etc. definida pelo campo de produção ideológica – e uma demanda – dos agentes sociais que ocupam posições diferentes no campo de relações de classe e caracterizados por uma competência política específica (uma capacidade proporcional às oportunidades de exercer tal capacidade). A probabilidade de dar uma resposta política a uma pergunta constituída politicamente depende não apenas do volume e da estrutura dos capitais econômico e cultural, mas também da trajetória do grupo e do indivíduo considerado. Assim como o julgamento do gosto, o julgamento político não está indissociado da arte de viver.

Para os neófitos em textos bourdianos, arriscaria um conselho: iniciar a leitura de A Distinção pela conclusão, intitulada “Classes e Classificações”. Nela, o autor retoma e explica minuciosamente as principais categorias teóricas apresentadas ao longo do livro – como gosto, habitus, lutas simbólicas, classe etc. – e o modo como elas se interrelacionam, constituindo uma rede de conceitos que ajudam a tornar inteligíveis os processos de percepção e de classificação do mundo social.

A maior contribuição no livro é mostrar que as diferenciações sociais são definidas relacionalmente, e não essencialmente, contrariando a aparente inflexibilidade da máxima “gosto não se discute”. O autor apóia- se em estudos realizados em áreas diversas – ora acatando, ora questionando Emmanuel Kant, Karl Marx, Max Weber, Ernest Gombricht, entre outros – e aprofunda a reflexão sobre categorias teóricas importantes. Muitos de seus conceitos foram formulados nos anos 1960 e 1970, mas adquiriram popularidade no meio acadêmico brasileiro a partir dos anos 1990 através da organização, no formato de livros, de artigos publicados inicialmente em periódicos franceses. Nesse sentido, A Distinção preenche uma sentida lacuna para aqueles interessados em acompanhar a trajetória intelectual de Bourdieu e em entender sua lógica.

As formulações teórico-metodológicas apresentadas em A Distinção marcam um momento em que, por caminhos diversos, teóricos sociais – como Antony Giddens, Alain Touraine, Marshal Sallins e o próprio Bourdieu – buscavam alternativas ao estruturalismo. Através da perspectiva relacional e operando com um vocabulário conceitual peculiar, o sociólogo francês oferece uma via para explicar o mundo social situando os agentes no interior de estruturas historicizadas, fortalecendo, assim, o diálogo com os historiadores.

Marisângela Terezinha Antunes Martins – Mestre em História pela UFRGS, doutoranda em História pelo PPGHIST-UFRGS. E-mail: [email protected].


BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008. Resenha de: MARTINS, Marisângela Terezinha Antunes.  Os Gostos e a Dinâmica da Distinção Social. Aedos. Porto Alegre, v.4, n.10, p.182-185, jan. / jul., 2012. Acessar publicação original [DR]

The Emergence of a Scientific Culture | Stephen Gaukroger || Nature, Empire and Nation | Jorge Cañizares-Esguerra

O objetivo da presente resenha é apresentar e discutir dois livros publicados em 2006, porém de pouca repercussão no meio acadêmico brasileiro. O primeiro é The Emergence of a Scientific Culture, do historiador britânico Stephen Gaukroger, enquanto o segundo é Nature, Empire and Nation, de Jorge Cañizares-Esguerra, estudioso da América hispânica colonial na chamada primeira modernidade ou early modern period. A pequena recepção das duas obras não deixa de ser estranha visto serem ambos os autores já conhecidos do público brasileiro; de Stephen Gaukroger se publicou em 2000, pouco após sua edição original em língua inglesa, uma biografia intelectual de René Descartes [2] , enquanto Cañizares-Esguerra é o autor de How to write the history of the New World, livro ao qual, se não se lhe pode dar a pecha de influente, não obstante encontrou seu caminho nas bibliografias de alguns artigos e importantes estudos [3] . Ao longo do texto, contudo, não procurarei entender os dois livros aqui estudados com relação às trajetórias acadêmicas dos seus autores, e sim os lerei a partir das concepções – e, por que não, projetos – acerca da história da ciência que ambos veiculam. Apresentarei, portanto, primeiro o livro de Gaukroger, apontando algumas das problemáticas em que se envolve e algumas questões que podem ser tratadas nele, para, num segundo momento, discutir a obra de Cañizares-Esguerra e algumas reflexões que podem ser feitas a partir dele, procurando pontos de contato e distanciamentos entre os dois.

The Emergence of a Scientific Culture faz parte de um projeto maior acalentado por Stephen Gaukroger visando retraçar a “transformação dos valores cognitivos e intelectuais na era moderna”, do qual este é apenas seu primeiro livro. Com relação à história da ciência, sua proposta é perceber como a ciência passou a moldar os valores sociais, culturais, políticos e/ou morais da sociedade contemporânea, constituindo-se, ao menos em sua auto- imagem, como parte intrínseca da modernidade. Com isso, procura atender à condição que coloca de escrever uma “história conceitual e cultural da emergência de uma cultura científica no Ocidente” e, embora não problematize explicitamente o que considera ser uma “cultura científica”, ela não obstante está presente no modo como redescreve seu objeto de estudos. Desse modo,

Este estudo trata a ciência no período moderno como um tipo particular de prática cognitiva e como uma espécie particular de produto cultural, e meu objetivo é mostrar que se explorarmos as conexões entre esses dois, nós podemos aprender algo acerca das preocupações e dos valores do pensamento moderno que não poderíamos aprender de ambos separadamente (GAUKROGER, 2006, p.3) [4].

Ao perceber a ciência imbricada na cultura de sua época, o autor se coloca a questão de explicar a singularidade da Revolução Científica ocidental, contrapondo-se a outras culturas e civilizações que tiveram culturas científicas avançadas, mas não conseguiram imprimir a elas o mesmo caráter de expansão e inovação constantes tampouco conseguiram remodelar suas culturas a partir da ciência. Por isso, sua caracterização da ciência, percebe o autor, é ao mesmo tempo uma confirmação e uma refutação da conceituação oferecida por Thomas Kuhn. Seu objeto quebra com a lógica kuhniana porque apesar de se articular em torno às sucessivas mudanças de paradigmas, sempre influenciadas pela sociedade, também advoga a ruptura entre os desenvolvimentos científicos ocidentais e os dos demais lugares do mundo. Sua problemática, logo, escapa da mera escrita da história da ciência e entra no domínio das discussões acerca da modernidade, metamorfoseando seu objeto no da percepção da inter-relação entre um contínuo desenvolvimento da ciência e rupturas estruturais mais profundas, as quais explicam a singularidade da ciência ocidental. Não deixa, portanto, de se incluir no mesmo programa já perseguido pelo historiador italiano Paolo Rossi, em especial em seu Naufrágios sem espectador [5], livro que também procura correlacionar – embora sem determinar um e outro de forma causal – o desenvolvimento da ciência e o de certos aspectos da modernidade. Da mesma forma, também a obra de Frances Yates, em especial os volumes sobre Giordano Bruno e sobre o movimento rosacruz, [6] são referencias para a compreensão do projeto de Gaukroger, embora se deva destacar com relação a ambos os autores tanto a atualização dos debates nos quais se inserem por este último como também o fôlego de seu projeto, que afeta o próprio estatuto da história da ciência por dedicar igual atenção às doutrinas científicas elaboradas por suas personagens e à condição social do filósofo natural – muito embora se possa questionar se a delimitação temporal de seu livro, terminando no final do século XVII, dá conta de explicar esses desenvolvimentos decisivos ou se se trata apenas de um prelúdio para uma abordagem mais direta dessas questões [7].

O livro, dividido em cinco partes, começa sua narrativa propriamente dita em sua segunda seção, a qual trata da própria colocação em cena da filosofia natural pelo encontro da tradição cristã com a filosofia aristotélica. Nesse sentido, seu segundo capítulo descreve a solução agostiniana para o problema da interpretação do mundo na esteira do fim da Antiguidade e o desafio que representou a essa solução a introdução do aristotelismo no Ocidente. O terceiro capítulo trata do desafio à nova “amálgama” aristotélica representada pelo neoplatonismo renascentista e, por fim, o quarto capítulo aborda a transformação interior à própria filosofia natural no que toca a seus critérios de validade. Se antes a leitura do mundo tentava captar o significado religioso do que nele estava presente, as transformações na leitura das Escrituras, derivadas de desenvolvimentos na filologia, na história e no direito implicaram que a própria filosofia natural sofreria mudanças. Essas mudanças, aliadas às descobertas do Novo Mundo, abrem espaço para a inserção da experiência e da observação direta nos domínios da ciência, fazendo-a deixar de ser apenas a dedução de princípios primeiros a partir da realidade sensível. Percebe-se, nessa segunda parte de seu livro, a preocupação do autor de relacionar as transformações da ciência a mudanças maiores que acontecem no âmbito da cultura, o que lhe permite sustentar seu argumento mais recorrente, o de que ao invés de uma autonomia com relação ao mundo religioso, a ciência nascente se modela e se pensa através da própria religião.

É tendo esses problemas em vista que se articula a terceira seção do livro. Os capítulos cinco, seis e sete do livro são seus capítulos centrais porque são onde mais claramente se apresenta sua proposta de perceber a ciência como parte de uma cultura mais ampla. Dessa forma, os capítulos questionam, respectivamente, a prática da filosofia natural, seu praticante e o lugar que ele ocupa na sociedade. Quanto à primeira, o autor descreve o movimento da filosofia natural de se afirmar a partir de sua relação com a verdade para sua relação com a utilidade; quanto à segunda, demonstra como são transferidas as características do filósofo moral para o filósofo natural, isto é, para aquele que virá a ser o cientista, do qual se espera agora comportamento condizente com sua ocupação. Esse comportamento, que lhe faz ocupar o papel de sábio, é modelado pelas virtudes morais e religiosas. Por fim, quanto ao lugar do filósofo natural, ele problematiza a afirmação de que as universidades eram o ambiente mais propício a estes, reconstruindo a partir, sobretudo, do exemplo de Galileu Galilei a importância do mecenato aristocrático com relação à prática científica. Concernentes à epistemologia científica, as transformações estudadas implicam, primeiro, que a preocupação com a verdade passa a ser uma preocupação com a objetividade, ou seja, da defesa de modelos de conhecimento se passa à defesa (e ao ataque) dos procedimentos científicos; em segundo lugar, que o modelo medieval do magister de um colégio de artes universitário, o qual pensava a si mesmo livre de dogmas, podendo discutir uma mesma questão de diversas maneiras, é colocado de lado em favor de um intelectual preocupado em oferecer conhecimento útil à sociedade ou, em termos da primeira modernidade, à coroa. A ciência, portanto, estava afastada de um ideal atemporal de verdade e inserida em sua época.

A quarta parte, que ocupa a maior parte do livro, e a quinta problematizam os desenvolvimentos internos à ciência. De um lado, as relações entre os diversos modelos de explicação da natureza disponíveis no século XVII – a história natural, o mecanicismo e, por fim, a aplicação prática da matemática ao estudo da natureza –, deixando em aberto a disputa em torno à compreensão dominante do mundo. Essa inconclusão com que termina o livro – embora dependa de seu caráter de ser parte de um projeto maior – visa ressaltar a inexistência de uma teleologia guiando o desenvolvimento científico, mostrando que não existia (ainda) um ordenamento consensual de suas disciplinas. Ao mesmo tempo, mostra como todos os modelos explicativos visavam apoiar-se na religião ou em alguma concepção de conhecimento revelado para assegurarem sua posição. A quinta e última parte é, por sua vez, um breve excurso sobre as tentativas de unificar a ciência e o conhecimento no século XVII, questão candente e que também é deixada em aberto.

Mesmo que se possa pensar que por vezes Stephen Gaukroger esteja demasiadamente preso a discussões e problematizações epistemológicas, uma vez que discussões acerca de doutrinas científicas ocupam a maior parte do volume, seu livro é bem-sucedido em re- situar a emergência da ciência ou, como chama, de uma cultura científica na história ocidental; também é importante por estar atento às rupturas estruturais com as quais as continuidades culturais, num contexto amplo e de grandes transformações, se relacionam. É a partir deste ponto que se pode problematizar o livro de Jorge Cañizares-Esguerra.

O livro do historiador americano compila artigos escritos num intervalo de mais de dez anos que tocam no tema da história da ciência. Seu principal objetivo é discutir as proposições que afirmam o atraso cultural e científico da Península Ibérica e de seus impérios coloniais. Segundo o autor, o desprezo da história da ciência – e aqui se pode incluir também Gaukroger, pois embora ele afirme que seu projeto partiu de algumas leituras e comparações com o mundo ibérico, ele só o trate marginalmente em seu livro – é derivado de uma auto- narrativa do Norte da Europa com relação à Revolução Científica, que percebe no Sul da Europa apenas o atraso e que, por conseguinte, reafirma apenas as ciências que a teriam encabeçado – matemática, física, astronomia –, deixando de lado os desenvolvimentos, resultado dos impérios coloniais, que os reinos da Península Ibérica fizeram com relação à cartografia, à metalurgia, à engenharia, entre outros conhecimentos, agrupados normalmente como conhecimentos técnicos.

Dessa preocupação resulta também o seu segundo problema de pesquisa. Percebendo que os reinos ibéricos não se opunham ao conhecimento científico – embora tivessem políticas que não combinam com a percepção que hoje temos de ciência, como é o tema de seu primeiro capítulo, o qual aborda a figura do cavaleiro-cientista –, ele passa a demonstrar como esse conhecimento era ressignificado pelos sujeitos coloniais, enfatizando como as elites crioulas se apropriavam do conhecimento científico para defenderem seus privilégios e imporem uma idéia de América frente às metrópoles coloniais. Tendo isso em vista, ele enfatiza os modos pelos quais essas elites crioulas percebiam o mundo, modos os quais, em sua maior parte, enquadram-se numa concepção barroca de ciência e sociedade. Os “cientistas” crioulos participavam e reafirmavam a existência de uma coletividade social, participando de seus rituais e celebrações e, principalmente, eles também procuravam defender sua posição.

Assentado nas doutrinas neoplatônicas e herméticas, o clero crioulo constantemente buscava na natureza assinaturas escondidas e subliminares com significado patriótico. Para eles, o corpo humano, a Terra, e o cosmo eram todos “teatros” barrocos (nos quais os objetos eram reduzidos a uma linguagem de imagens) com analogias micro e macroscópicas inter-relacionadas. Todos os objetos tinham significados polissêmicos e as habilidades exegéticas do clero lhes ajudavam a descobrir sua importância subliminar, revelando um cosmos pleno de desígnios providenciais que favoreciam as colônias. (CAÑIZARES-ESGUERRA, 2006, p.50) [8].

E, principalmente, no capítulo seguinte, “New World, New Stars”, onde procura demonstrar a gênese do conhecimento racial nas tipologias corporais formuladas a partir do Novo Mundo. Essas tipologias – tentativas de lidar e simplificar a heterogênea realidade americana –, criadas sobretudo pelos crioulos, procuravam defender, de um lado, a primazia da América e, de outro lado, a subserviência dos indígenas a esses mesmos crioulos.

É com relação a este segundo propósito de seu livro que Jorge Cañizares-Esguerra faz suas afirmações mais contundentes e, também, controversas. Embora não se possa rejeitar sua argumentação, pode-se questionar, por exemplo, sua percepção muitas vezes simplificada dos elementos sociais presentes na América hispânica, que percebe os mesmos crioulos, peninsulares, ameríndios e negros por toda a extensão de seu território. Um segundo elemento que pode ser problematizado é a ênfase na reapropriação pelas elites coloniais do conhecimento ibérico visando à construção de uma identidade própria – o revisionismo do autor acerca das posições normalmente aceitas da história ocidental está presente também nos últimos capítulos do livro, onde tenta demonstrar a primazia pelos pintores mexicanos da pintura de paisagens (capítulo sete) e também a origem mexicana das preocupações ecológicas de Alexander von Humboldt (capítulo seis). O revisionismo, sempre bem-vindo, não é, contudo, problemático por si só, pois a argumentação de Cañizares-Esguerra é sólida e sua discussão e revisão bibliográficas bastante bem-feitas. O problema específico que pode trazer sua obra é na consideração das rupturas existentes entre um momento onde essa ciência era formulada – a primeira modernidade trabalha por Stephen Gaukroger – e o momento que lhe é o referencial para contrapor sua visão, a Revolução Científica que tomou forma em contexto e época diferentes. Ao tratar das causas pelas quais o conhecimento racial ibero-americano não deu origem ao racismo oitocentista europeu, o autor refere apenas a motivos secundários, tais como a rejeição da tradição hipocrática-galênica de medicina ou o rechaço da filosofia aristotélica. Dessa forma, Cañizares-Esguerra, ao não conseguir dar conta das transformações estruturais pelas quais passou o conhecimento científico europeu – objeto do livro de Gaukroger – e no qual, se seu argumento pretende adquirir toda a sua importância epistemológica, também o conhecimento ibérico estava inserido, acaba por reiterar a visão que pretende questionar, pois deixa intocado o construto conceitual “Revolução Científica”. Da mesma forma, o principal mérito de sua argumentação – demonstrar que, mesmo de maneiras diferentes, espanhóis peninsulares e americanos participavam do mesmo contexto intelectual – pode ser elemento a jogar contra o autor, uma vez que para sustentar seu argumento ele frequentemente subsume a identidade dessas elites crioulas no orgulho que, frisa ele, sentiam frente à incompreensão de sua realidade por aqueles que tinham a Europa como base de onde partia seu olhar. Pensando nos debates que aconteciam na Espanha bourbônica, pode-se pensar se Cañizares-Esguerra, em seu afã de desestabilizar concepções tradicionais acerca da história iberoamericana não acaba por aceitar demasiadamente fácil a imagem que essas elites crioulas fazem de si mesmas; problema candente ao se considerar as guerras de independência que se avizinham do recorte temporal que escolhe para seus estudos.

Apesar dessas críticas, a contribuição de Cañizares-Esguerra, historiador que procura sempre novas formas de abordar velhos problemas [9], é uma importante adição a uma revisão substantiva da história da ciência. Junto com Gaukroger, ambos os autores fornecem uma reestruturação importante e significativa de seu objeto, a qual certamente servirá de base para historiadores futuros.

Notas

1. Aluno do segundo ano do curso de mestrado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, cuja pesquisa é feita sob orientação do Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi e que conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]

2. GAUKROGER, Stephen. Descartes – Uma biografia intelectual. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. Publicado originalmente em 1997.

3. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. How to write the history of the New World. Stanford: Stanford University Press, 2001; refiro-me, por exemplo, a Esquecidos e Renascidos, de Íris Kantor, livro seminal para o estudo recente da historiografia luso-brasileira setecentista, assim como seu estudo em Júnia FERREIRA FURTADO. Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, Américas, África. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FAPEMIG, 2008.

4. “The study treats science in the modern period as a particular kind of cognitive practice, and as a particular kind of cultural product, and my aim is to show that if we explore the connections between these two, we can learn something about hte concerns and values of modern thought that we could not learn from either of them separately” (GAUKROGER, 2006: 3; todas as traduções são do autor).

5. ROSSI, Paolo. Naufrágios sem espectador. São Paulo: UNESP, 2000; o original é de 1995.

6. YATES, Frances. Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo: Cultrix, 1995; The Rosacrucian Enlightenment. Nova York: Routledge, 2004; sendo os originais, respectivamente, de 1964 e 1972.

7. O que não significa que o autor reifique as diferenças através de um estudo estrutural estanque, pelo contrário. É significativa, nesse sentido, sua crítica ao que chama de “abordagem weberiana” da história da ciência, a qual, segundo ele, ao ficar apenas no âmbito da contraposição entre epistemologias de diferentes civilizações, perde de vista “o valor das dimensões extra de análises, e logo se torna evidente que precisamos ir além do que acabam sendo distinções formais oferecidas por este tipo de abordagem” (GAUKROGER, 2006: 35). Sua abordagem, dessa forma, insere-se em debates recentes acerca do estudo da história política e da história dos discursos; em especial, parece reiterar proposição de Yves-Charles Zarka, em contraposição a Quentin Skinner, para quem a necessidade de relacionar os sujeitos a seus contextos não deve deixar de lado a discussão das idéias que – no interior da história da filosofia – eles esposam. No caso de Gaukroger, a dupla ênfase nas doutrinas científicas e nas condições sociais implica que a história da ciência não pode se resolver facilmente aceitando apenas uma dessas opções e não outra. ZARKA, Yves-Charles. “Que nous importe l’histoire de la philosophie?” in ZARKA, Yves-Charles (dir.). Comment écrire l’histoire de la philosophie? Paris: PUF, 1999, pp. 19-32.

8. “Steeped in Neoplatonic and hermetic doctrines, the Creole clergy constantly searching in nature for underlying hidden signatures with patriotic significance. For them, the human body, the Earth, and the cosmos were all baroque “theaters” (in that objects were reduced to a language of images) interlocked by micro- and macroscopic analogies. All objects held polysemic meanings, and the exegetical skills of the clergy helped discover their underlying import, revealing a cosmos suffused with providential designs that favored the colonies” (CAÑIZARES-ESGUERRA, 2006: 50).

9. Refiro-me, por exemplo, a Puritan Conquistadors, também do autor, o qual procura demonstrar as semelhanças entre o discurso puritano de conversão dos indígenas e expansão britânica nas América com a “demonologia” indígena veiculada pelos espanhóis. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Puritan Conquistadors – Iberianizing the Atlantic, 1550-1700. Stanford: Stanford University Press, 2006.

Pedro Telles da Silveira – Aluno do segundo ano do curso de mestrado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, cuja pesquisa é feita sob orientação do Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi e que conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]


GAUKROGER, Stephen. The Emergence of a Scientific Culture – Science and the Shaping of Modernity, 1210-1685. Oxford: Clarendom Press/New York: Oxford University Press, 2006. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Nature, Empire and Nation – Explorations of the History of Science in the Iberian World. Stanford: Stanford University Press, 2006. Resenha de: SILVEIRA, Pedro Telles da. Reescrevendo a história da ciência: The Emergence of a Scientific Culture, de Stephen Gaukroger, e Nature, Empire, and Nation, de Jorge Cañizares-Esguerra. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.240-247, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

O poder global e a nova geopolítica das nações | José Luís Fiori

Em O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações, José Luís Fiori tem o mérito de aproximar e, em alguns pontos, integrar as abordagens histórico-materialista e estratégico-realista das Relações Internacionais. O autor maneja o encaixe das abordagens concorrentes numa “teoria da acumulação do poder e da riqueza”, base de toda elaboração posterior, que irá culminar numa “teoria do poder global”. Assim fazendo, Fiori combina explanação histórica e determinação estrutural com análise de conjuntura, estratégia e tática, preenchendo espaços vazios da Teoria das Relações Internacionais.

Fiori parte da premissa de que as dimensões política e econômica determinam- se reciprocamente, sem que haja hierarquia ou precedência entre elas. Constata isso logo no Prefácio2 da obra, onde resgata a discussão entre as escolas da Economia Política Internacional. Lá trava diálogo pontual com os principais teóricos do “sistema-mundo”: André Gunder Frank, Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi; do “imperialismo”, John Hobson, Rudolf Hilferding, Nicolai Bukharin e Vladimir Lenin; e da “teoria da estabilidade hegemônica”, Charles Kindleberger, Robert Gilpin e Robert Cox. Sociólogo do desenvolvimento de inspiração estruturalista, Fiori situa-se na tradição teórica do “sistema mundial moderno”; entretanto, situa-se com reservas, diferindo, como se verá adiante, dos pensadores expoentes dessa escola em pressupostos e diagnósticos decisivos. Depois segue em retrospecto o curso do tempo da “longa duração” rumo às origens da “economia-mundo” de Fernand Braudel. Retorna até o momento em que Karl Marx identifica a passagem do “modo de produção feudal” para o “modo de produção capitalista”, quando então se formavam os primeiros Estados nacionais, no interregno que vai do século XIII ao XVI. É nesse período fulcral da história ocidental que o autor identifica o embrião da simbiose única que, criadora do “milagre europeu”, faria da Europa o centro do poder e da riqueza mundial dos séculos seguintes: a união do poder político territorial com o capital privado.

Tal simbiose dará à luz as entidades que Fiori denominou “Estados-economias nacionais”, verdadeiras máquinas de conquista militar e expansão econômica, sobre cuja potência e capacidades já haviam refletido Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes. Conforme o autor, serão esses Leviatãs, governados por príncipes associados às burguesias nacionais, que irão encarregar-se da tarefa de expandir as fronteiras territoriais e incrementar o comércio e as finanças das nações da Europa, num movimento expansivo e inexorável que terá abarcado o globo todo antes do fim do século XIX. Fiori constata que o impulso e o dinamismo dessa expansão vêm da competição militar e econômica entre os Estados. Dialogando com Von Clauzewitz, o autor constata, ademais, que a guerra entra na arena quando os capitais sofrem bloqueios, continuando a política “por outros meios”. Como bem observaram Charles Tilly e Norbert Elias, com quem o autor igualmente dialoga, a guerra vem a se constituir no traço característico da história do sistema internacional e em elemento dinamizador do próprio “processo civilizatório”. O dado que explica a perenidade da guerra e da competição econômica seria o que Fiori denomina “pressão competitiva”.

De acordo com Fiori, na medida em que toda relação de poder político é assimétrica e está baseada num “jogo de soma zero”, a própria relação termina por exercer “pressão competitiva” sobre si mesma. Levada ao extremo das consequências, a “pressão competitiva” entre os Estados poderosos, em busca de maiores parcelas de poder, e Estados fracos, em defesa de sua independência e sobrevivência, torna-se “pressão sistêmica”. Em decorrência da pressão do sistema, os Estados irão inevitável e incansavelmente competir pelas posições econômicas e políticas de seus contendores.

Segundo o raciocínio do autor temos que: a “manutenção do poder” leva à “acumulação de poder”, e esta, à “acumulação de riqueza”, dado que o núcleo do poder assenta-se sobre bases materiais. Essas bases poderiam ser obtidas à força ou por via da produção, do comércio e das finanças, ou de uma combinação de meios coercitivos e econômicos, o que tem sido mais comum ao longo da história, tal como o demonstram o colonialismo e o imperialismo. Nesse caso, a “pressão competitiva” faria com que as classes governantes e as classes capitalistas, ainda que motivadas por interesses distintos – e por vezes divergentes –, somassem esforços no incremento do poder nacional, projetando força e internacionalizando a economia.

Para Fiori, nos tempos modernos, a conquista militar de territórios fiscais e coloniais teria dado lugar à conquista de “territórios econômicos supranacionais”, onde os “Estados-economias nacionais” impõem suas moedas e seus capitais privados ocupam posições monopolistas que lhes rendem lucros extraordinários. Os Estados que dessa forma se conseguem impor tornam-se “Estados-economias imperiais”. O exemplo mais eloquente desse fenômeno de projeção imperial do poder nacional seria os EUA. O “poder global” desse país estaria assentado, explica-nos o autor, sobre as bases de um vasto “território econômico supranacional” que após o fim da Guerra Fria passou a abarcar todo o globo. A “globalização econômica” que vem avançando desde as últimas décadas do século XX nada mais seria, continua o autor, do que a expansão do “território econômico supranacional” dos EUA.

Isso fica claro se tivermos em conta os elementos que, conforme Fiori, constituem e possibilitam o novo surto global de internacionalização do sistema capitalista. (1) As tecnologias de comunicação, informação e logística que viabilizaram a formação de um mercado financeiro global operante em tempo real e a descentralização dos processos produtivos foram desenvolvidas nos EUA. (2) As multinacionais dos EUA foram as pioneiras do processo e continuam figurando entre os maiores e mais importantes atores da globalização. (3) A moeda que serve de referência contábil e meio de pagamento do sistema financeiro internacional é o dólar norte-americano, sob controle de autoridade monetária norte-americana. (4) Os EUA detêm poder de decisão de última instância nos principais foros e regimes internacionais que estabelecem as regras e procedimentos de acordo com os quais os mercados são abertos, desregulamentados e privatizados.

Com relação à estabilidade do sistema internacional, Fiori defende que não são as diferentes geometrias de poder (unilateral, bilateral, multilateral) que a garantem, mas a ameaça de um grande conflito entre as potências que conformam o “núcleo dominante” do sistema. Porém, ressalva que, mesmo que a potência hegemônica não tenha rival a sua altura, a estabilidade sistêmica jamais se pereniza, pois a posição de hegemonia é sempre transitória. Isso ocorre porque a potência hegemônica, no afã de aumentar o seu poder, movida pelo imperativo da “competitividade sistêmica”, acaba por se desvencilhar das regras e instituições que sustentavam sua supremacia, mas que depois se tornaram constrangimentos. Como exemplo desse comportamento “autodestrutivo”, Fiori menciona os EUA e a crise que essa potência hegemônica provocou ao invadir o Iraque em 2003, na Segunda Guerra do Golfo, à revelia da ONU. O decreto de falência do sistema de convertibilidade ouro-dólar de 1973 é outro exemplo expressivo de rompimento com compromissos internacionais inconvenientes citado pelo autor.

É nesse ponto que Fiori se afasta de Wallerstein e Arrighi, a eles se opondo diametralmente. Wallerstein e Arrighi preveem o declínio do poder dos EUA e, em sequência, o colapso do “sistema-mundo”. Por seu turno, tal como Paul Kennedy, Fiori admite que, quando perdem posições econômicas, os Estados inevitavelmente perdem parcela da capacidade de sustentar a supremacia militar. Todavia, ressalva o autor, esse fato em nada altera o funcionamento do “sistema-mundo”, um sistema de acumulação de poder e riqueza em constante expansão, dinamizado pela competição econômica e pelo conflito armado, marcado pela ascensão, queda e sucessão de impérios e hegemonias.

Fiori prossegue a construção de seu “sistema mundial moderno” com a identificação de três categorias de “Estados-economias nacionais” em posição inferior na hierarquia internacional. São elas: (1) a dos Estados que se desenvolvem sob os auspícios das potências centrais (“desenvolvimento associado”); (2) a dos Estados que adotam a estratégia do catch up (alcançar o líder); e (3) a dos Estados da “periferia”, que fornecem insumos para as potências do “centro”.

Já concluindo, identifica também cinco transformações estruturais e de longo prazo operantes no início do século XXI: (1) a expansão do sistema internacional com a integração de novos Estados soberanos; (2) o deslocamento do eixo articulador da economia mundial para a Ásia (“eixo sino-americano”); (3) o crescimento da importância da China como centro articulador e “periferizador” da economia mundial; (4) a consolidação do sistema monetário internacional do “dólar flexível”, a aceleração da globalização e a expansão do “poder global” dos EUA; e (5) o assentamento de um eixo geopolítico da competição entre EUA e China.

Num balanço geral, a teoria de Fiori, crê o resenhista, é dotada de consistência, coerência e rigor. Tem grande força explicativa, e a história contemporânea, com seus desenvolvimentos recentes, é ponto a seu favor.

Notas

2. Com 27 páginas (13-40), o Prefácio desempenha do papel de marco teórico da obra.

George Wilson dos Santos Sturaro – Mestrando Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFRGS. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


FIORI, J. L. O poder global e a nova geopolítica das nações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. Resenha de: STURARO, George Wilson dos Santos. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.236-239, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original

A concepção materialista da História do Cinema | Nildo Viana

Nas últimas décadas se alargaram no campo das Ciências Humanas e Sociais as discussões acerca da utilização do Cinema não apenas como um produto social, mas também como um produtor de sentidos sociais. A partir dessa perspectiva, muitos trabalhos vêm propondo a superação de concepções puramente formalistas, descritivas e estéticas realizadas ao longo do século XX. É nesse contexto que se situa A concepção materialista da História do Cinema, do sociólogo e filósofo Nildo Viana.

Atualmente professor da Universidade Federal de Goiás – UFG, Viana possui diversas publicações marcadas pela multidisciplinaridade. Todavia, há um elemento comum que perpassa grande parte de seus textos e que pode ser entendido como o eixo norteador de suas reflexões: a concepção materialista, pautada na idéia de totalidade e de luta de classes. No que diz respeito ao cinema, destaco também o livro Como assistir um filme?, publicado no mesmo ano de 2009 e cujo enfoque segue a mesma direção.

O livro é organizado e dividido em quatro capítulos, além de apresentação e considerações finais. O primeiro capítulo, História e Cinema, apresenta as abordagens historiográficas mais difundidas e aplicadas a uma “historiografia do cinema”. Viana dialoga, sobretudo, com os trabalhos de Marc Ferro, criticando sua (falta de) base metodológica, que teria conduzido Ferro a um “fetichismo do cinema”. Outro teórico do Cinema que também desperta a desconfiança de Viana é Siegfried Kracauer, este acusado de padecer de um psicologismo que não dá conta de explicar o fenômeno do Cinema. Ao tecer críticas aos dois teóricos, o autor discute sobre diversos pressupostos de teorias ligadas ao cinema, como, por exemplo, a teoria do reflexo, do mesmo Kracauer, e o realismo socialista de Eisenstein.

No segundo capítulo, Pseudomarxismo, formalismo e História do Cinema, o autor procura apontar por que grande parte dos pesquisadores recai numa visão elitista e esteticista do cinema, cuja origem encontrar-se-ia na ideologia leninista. Da mesma forma, critica os aportes metodológicos de orientação estruturalista (formalista), buscando exemplos na obra de Jean-Claude Bernardet.

O capítulo seguinte, História do Cinema e materialismo histórico, apresenta os pressupostos materialistas que, segundo o autor, devem nortear os estudos sobre Cinema, onde o reconhecimento da produção social do filme é o ponto de partida. Viana aponta, então, algumas determinações que regem a produção social de um filme e que deveriam ser pensadas dialeticamente em uma totalidade concreta, e não metafísica: o capital cinematográfico (sua determinação fundamental, segundo o autor), o filme como mercadoria, o cinema como instrumento político (intervenção estatal), a mensagem, a esfera cinematográfica e a produção do filme.

Por fim, Nildo Viana procura apresentar a aplicabilidade de sua metodologia no capítulo intitulado Expressionismo Alemão: Cinema e luta de classes na tela. Retomando a discussão com Kracauer e acrescentando agora Lotte Eisner, procura combater concepções formalistas, que entendem como expressionistas todos os filmes que possuem determinadas características, bem como outras análises que reafirmam lugares-comuns referentes a esse movimento artístico. Algumas críticas de Viana são, de fato, pertinentes e possivelmente encontram acolhida por parte de historiadores que trabalham com o Cinema em uma perspectiva social e historicista. Contudo, não há como deixar de observar alguns aspectos que fragilizam o texto.

A primeira constatação desconfortável no texto de Viana refere-se às omissões. Por exemplo, o fato de o autor dialogar com Marc Ferro e passar ao largo da contribuição de Pierre Sorlin – que discute exatamente os aspectos silenciados por Ferro, que não escapa da crítica de Viana por essas lacunas –, provoca certa desconfiança. Não passa despercebida, também, a ausência de alguns historiadores que notadamente procuraram pensar o cinema como um fenômeno social. Ora, desde a década de 1950, essa direção já vinha sendo apontada por estudiosos como Robert Mandrou e Robert Sklar, que também não ganham visibilidade na discussão.

Talvez mais desconfortável ainda seja o fato de Viana não dialogar com a produção historiográfica atual. Sua análise basicamente congela-se nos anos 1980 e 1990, e encolhe-se frente a estudos de grande relevância, como os de Robert Rosenstone, Douglas Kellner, Jacques Aumont, Christian Delage, Anthony Aldgate, Jeffrey Richards e Arthur Marwick.

Da mesma forma, Nildo Viana não abre espaço para as abordagens endógenas da História do Cinema. O único historiador brasileiro citado é Antônio Costa, que publica em 1987, de modo que recaímos novamente na resistência de Viana em estabelecer diálogos com a historiografia do século XXI. Autores como Ismail Xavier, Ciro Flamarion Cardoso, Eduardo Morettin, dentre outros, certamente enriqueceriam as reflexões de Viana.

No que diz respeito aos aportes teórico-metodológicos, algumas ressalvas também se impõem. Ao propor uma História do Cinema pautada na concepção materialista, o autor deixa transparecer apriorismos que desembocam numa forma nociva de fetichismo, não do Cinema, como nos historiadores que critica, mas do capital. Postula a inescapabilidade da História do Cinema ao capitalismo e de preceitos sob orientação do materialismo histórico como única saída para a até então inelutável história descritiva do Cinema. Aliás, o já mencionado caráter não dialógico de Viana, quando deixa de refletir sobre os estudos de importantes teóricos de História e Cinema e História do Cinema, pode também ser explicado por esse fetichismo do capital no qual ele recai, onde ficam à sombra quaisquer outros trabalhos que não os que levem em conta a luta de classes, o capital e a idéia de totalidade.

Contudo, através da leitura de A concepção materialista da História do Cinema, a despeito de uma série de aspectos que requerem algum cuidado, é possível vislumbrar mais do que o que fazer, como fazer. O estudo que Nildo Viana faz acerca do Expressionismo Alemão no cinema, ainda que breve, é estruturalmente coerente, principalmente no sentido de romper com algumas mitologias.

Não que se considere essa metodologia inovadora ou original. Inúmeros trabalhos anteriores ao de Viana, que procuraram abordar o Cinema como produto e, principalmente, produtor de sentidos sociais, foram significativamente mais longe em termos teóricos e metodológicos. Ora, a utilização do materialismo histórico e de seus pressupostos teóricos para se pensar o Cinema está na ordem do métier dos historiadores que buscam estabelecer relações entre os filmes e a sociedade que os produz.

Entretanto, nos tempos de hoje, a publicação de uma obra notadamente marxista me parecerá sempre um ato corajoso. O materialismo histórico vem padecendo de uma dose de desprestígio em face à História Cultural, admita-se. Nesse sentido, a obra de Viana procura recolocar e demonstrar, ainda que de modo sucinto e às vezes problemático, a potencialidade desse tipo de abordagem – mas que, evidentemente, pode ser muito mais expressiva quando se dialoga com a historiografia do século XXI, repleta de fluxos e polifonias. Viana, porém, ainda não atravessou essa avenida.

Bianca Melyna Filgueira – Mestranda do PPG em História da UFSC. E-mail: [email protected]


VIANA, Nildo. A concepção materialista da História do Cinema. Porto Alegre: Asterisco, 2009. Resenha de: FILGUEIRA, Bianca Melyna. O fetichismo virou contra o feiticeiro. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.232-235, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos | Reinhart Koselleck

No Brasil, o nome de Reinhart Koselleck tem, cada vez mais, se tornado familiar entre os que estudam história, sobretudo para aqueles particularmente interessados nas discussões teóricas da disciplina. Nascido no ano de 1923 em Gorlitz, Alemanha, Koselleck doutorou-se em 1954 com a tese Kritik und Krise [2], publicada cinco anos depois. Foi professor nas universidades de Bochum, Heidelberg e Bielefeld e co-autor do monumental “Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politish-zocialen Sprache in Deutschland” [Conceitos básicos de história. Um dicionário sobre os princípios da linguagem político-social na Alemanha] [3], obra em nove volumes publicados em Stuttgart entre 1972 e 1997. [4] Koselleck faleceu em 2006, aos 82 anos de idade.

Tanto a tese doutoral quanto os dicionários refletem uma preocupação do autor com a questão da semântica dos conceitos fundamentais, sobre os quais o primeiro trabalho permitiu um desenvolvimento inicial [5]. O nome de Koselleck encontra-se profundamente associado à chamada escola da “história dos conceitos” (Bregriffsgeschichte), que o autor, juntamente com seus antigos mestres, Otto Brunner e Werner Conze (que participaram da organização do monumental dicionário), iniciou em finais da década de 1960. A história dos conceitos propõe uma análise das mudanças ocorridas no conteúdo e utilização dos conceitos para um entendimento mais profundo das transformações históricas de duração mais ampla, sobretudo no período entre 1750 e 1850, que Koselleck chama de Sattelzeit e que marca, para o autor, a emergência da modernidade [6]. Discorrendo sobre a importância da história dos conceitos, Koselleck aborda a relação entre este “campo particular de estudos” (p. 104) e a história social. Para ele, a história dos conceitos não apenas contribui para a história social, como esta não pode ser praticada sem aquela, pelo menos no que se refere ao recorte cronológico trabalhado pelo autor: “Desde que a sociedade atingiu o desenvolvimento industrial, a semântica política dos conceitos envolvidos no processo fornece uma chave de compreensão sem a qual os fenômenos do passado não poderiam ser entendidos hoje” (p. 103). Por isso, conclui Koselleck, “A história social que queira proceder de maneira precisa não pode abrir mão da história dos conceitos, cujas premissas teóricas exigem proposições de caráter estrutural” (p. 118).

A proposta de uma história dos conceitos retoma, em parte, o projeto diltheyano de uma tradição hermenêutica orientada a reconstruir os significados que se sedimentam nas objetivações empíricas do sentido [7], mas esta retomada já aparece tematizada pelo “giro linguístico” [8] de Hans-George Gadamer, um dos mestres de Koselleck, para quem a linguagem é “a primeira interpretação global do mundo” que, por sua vez, “é sempre um mundo interpretado na linguagem” [9]

Em Futuro Passado, os ensaios reunidos proporcionam tanto uma síntese das perspectivas da história conceitual e da teoria da história quanto um resumo do próprio percurso historiográfico realizado por Koselleck, que a partir do estudo da linguagem buscou assinalar as transformações das quais emergiu a modernidade europeia no Sattelzeit [10]. Na argumentação de Koselleck, um dos elementos centrais que caracteriza essa modernidade diz respeito exatamente à nova percepção do tempo. De forma geral, a questão do tempo histórico, sua definição e apreensão constituem a linha que perpassa todos os ensaios que compõem este livro de Reinhart Koselleck, obra cuja primeira publicação data de 1979. Até a publicação da presente edição, o público brasileiro podia ter acesso principalmente a partir das edições francesa e espanhola [11], fato que certamente impossibilitava uma maior aproximação das contribuições teóricas de Koselleck; razão pela qual a presente edição foi (com justiça) tão bem saudada.

O livro divide-se em três partes: Sobre a relação entre passado e futuro na história moderna, Sobre a teoria e o método da determinação do tempo histórico e Sobre a semântica histórica da experiência, num total de quatorze ensaios dedicados a investigações que, se por um lado incidem sobre diversos aspectos da teoria da história, por outro guardam entre si uma questão comum: o tempo histórico. Interessa-nos apresentar esta questão e a forma como ela é tratada pelo autor. Para tanto, assumiremos uma postura dinâmica em relação ao texto, recorrendo ora a uns ensaios, ora a outros, sem, contudo, realizarmos uma apreciação detalhada de cada item especificamente. Antes, porém, situemos o autor no debate acerca do tempo na história.

Quando Marc Bloch propôs como definição do objeto da ciência histórica a fórmula “homens no tempo” [12] estava longe de simplificar a questão, como talvez possa sugerir as duas palavras concatenadas. Mesmo deixando de lado a discussão ontológica sobre o homem, cuja saída proposta pelo filósofo Ernst Cassirer é, para o historiador, bastante adequada [13], resta-nos saber, afinal, de que “tempo” está se tratando.

José Carlos Reis, comparando as noções de tempo nos Annales, Paul Ricouer e Koselleck, assinala que os conceitos de “permanência” e “simultaneidade” parecem ser centrais na perspectiva do tempo histórico dos Annales:

Os Annales, e Braudel em particular, construiriam o conceito de “longa duração”, que ao mesmo tempo incorpora e se diferencia do conceito de estrutura social das ciências sociais. A longa duração é a tradução, para a linguagem temporal dos historiadores, da estrutura atemporal dos sociólogos, antropólogos e lingüistas. [14]

Se admitirmos esta concepção como sendo a que Marc Bloch empregava em sua definição, muito embora ela seja apresentada de uma forma um tanto simplificada por José Carlos Reis, será possível percebermos a peculiaridade de Koselleck nos que diz respeito ao tratamento desta questão. Em comum, está o fato de que ambas concepções apresentavam o tempo histórico como uma alternativa aos tempos da natureza e da consciência [15]. Instaura-se um “terceiro tempo”. Não obstante esta convergência entre Ricouer, Annales e Koselleck, a definição do tempo histórico em cada um possui diferenças importantes entre si. Interessanos, contudo, indicar a definição proposta por Koselleck.

Já no prefácio do livro Koselleck expõe a hipótese central de sua argumentação. Para ele, é na relação entre o passado e o futuro, na distinção entre ambos que se constitui o tempo histórico. Partindo de uma terminologia antropológica o autor define: “… entre experiência e expectativa, constitui-se algo como um „tempo histórico‟” (p. 16). Isto é, na forma como cada geração lidou com seu passado (formando seu campo de experiência) e com seu futuro (construindo um horizonte de expectativa) surgiu uma relação com o tempo que permite que o caracterizemos como tempo histórico. A modernidade, diz Koselleck, caracteriza-se pelo progressivo afastamento entre experiência e expectativa: “só se pode conceber a modernidade como um tempo novo a partir do momento em que as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então” (p. 314). Este, por sua vez, é um tempo não apenas histórico, mas historicizado, de vez que a forma como cada geração operou esta relação entre passado e futuro pôde ser alterada. Assim sendo, Koselleck afirma que “à medida que o homem experimentava o tempo como um tempo sempre inédito, como um „novo tempo‟ moderno, o futuro lhe parecia cada vez mais desafiador” (p. 16). A experiência do novo, imprevisto, parece ter se acentuado no contexto da revolução francesa. Ali o tempo histórico sofreria uma mudança de orientação, e é por isso que o autor concentra-se na análise deste período, observando como esta nova consciência pôde ser expressa através da linguagem, na criação de conceitos de movimentos que pareciam emancipados do passado: ruptura radical, que marca ainda hoje nossa relação como o passado e com o futuro. Vale dizer: com o tempo histórico.

Koselleck fornece, portanto, as duas ideias centrais da nossa modernidade (inaugurada, no que diz respeito à questão do tempo histórico, pela filosofia da história): um futuro inédito e um tempo passível de aceleração (pp. 35-36). Segundo o autor, foi predominante na cristandade ocidental, até o século XVI, a expectativa do fim do mundo (p. 24), cujo adiamento constante não destruía (pelo contrário, até reforçava) sua certeza e espera. A modernidade define uma nova forma de relacionamento dos homens com o tempo e, de alguma forma, com a história.

A emancipação do futuro em relação ao passado é observada de forma muito arguta por Koselleck ao estudar as transformações conceituais por que passaram as ideias de “história” e “revolução”. O autor aponta que, no âmbito da língua alemã, o termo estrangeiro Historie “que significava predominantemente o relato, a narrativa de algo acontecido” foi sendo preterido pela palavra alemã Geschitchte, significando

originalmente o acontecimento em si ou, respectivamente, uma série de ações cometidas ou sofridas. A expressão alude antes ao acontecimento [Geschehen] em si do que a seu relato. No entanto, já há muito tempo ‘Geschichte’ vem designando também o relato, assim como ‘Historie’ designa também o acontecimento. (p. 48)

Esta substituição no seio da língua alemã acusa a superação (ou, pelo menos, o desgaste) das noções tradicionais de história, que a dotavam da capacidade pedagógica e exemplar: a história magistra vitæ. Já o conceito de “revolução”, que designava, originalmente, um movimento circular, passa a apontar – a partir da revolução francesa – para um estado de organização que não mais retornará à sua origem. Abre-se ao desconhecido, inaugura um novo horizonte de expectativa que não mais está desenhado no campo de experiência. Por fim, é necessário assinalar que o conceito traz junto de si uma ideia de aceleração do tempo (p. 68). Se hoje tal ideia nos parece normal, no advento desta modernidade de que vimos falando ela possuía um significado importantíssimo:

Quando Robespierre conclamou seus cidadãos a apressar a revolução para trazer a liberdade à força, pode-se enxergar por trás disso um processo inconsciente de secularização das expectativas apocalípticas de salvação. (p. 69)

É assim que, para o autor, pode-se inferir da disputa linguística uma nova consciência do tempo por partes dos agentes. Com isso, acreditamos que é possível obtermos uma ideia geral sobre a forma como Koselleck aborda a questão do tempo histórico: mostrando-o como uma criação histórica, por isso mesmo suscetível as modificações ao longo da própria história.

Notas

1 Mestrando em História pelo PPHR (Programa de pós-graduação em história da UFRuralRJ) – Bolsista Capes. E-mail: [email protected]

2 No Brasil, a obra foi publicada conjuntamente pelas editoras Contraponto e Eduerj: KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Contraponto e Eduerj, 1999.

3 Seguindo a tradução fornecida por Elias Palti. PALTI, Elias. “Introdución”. In: KOSELLECK, Reinhart. Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Barcelona: Ediciones Paidós, 2001. [pp. 09-32], p.09.

4 Além deste dicionário, sobre o qual há um detalhamento razoável no texto de apresentação do Professor Marcelo Jasmim para o livro Futuro Passado ora analisado, existem ainda outros dois dicionários que aparecem comentados no texto de Elias Palti: Historisches Wörterbuch der Philosophie [Dicionário de filosofia de princípios históricos], publicado na Basiléia em 1971 e Handbuch politisch-sozialer Grundbegriffe in Frnkreich, 1680 – 1820 [Manual de conceitos político-sociais na França, 1680-1820], publicado em Munich em 1985. PALTI, Elias. Op. cit., p.09 (a tradução em português segue a tradução para o castelhano proposta por Elias Palti)

5 Tal como sugere o Professor Marcelo Jasmim: JASMIM, Marcelo. “Apresentação”. In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora Puc-RJ, 2006. [pp.09-12], p.09. Todas as referências no corpo do texto dizem respeito a este livro.

6 PALTI, Elias. Op. cit., p.09.

7 Idem, p.14.

8 Agradeço as sugestões de Walter Luiz de A. Neves, quem me indicou a referência de Elias Palti e com quem realizei um estudo conjunto do livro de Koselleck, que serviu de base para a escrita de parte do presente texto.

9 GADAMER, apud in: PALTI, Elias. Op. cit., p.14 (tradução livre).

10 JASMIM, Marcelo. Op. cit., p.09.

11 A edição original teve como título Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten. Frankfort: Suhrkamp Verlag, 1979. A edição francesa data de 1990: Le Futur Passé. Contribuition à la sémantique des temps historiques. Paris: Editions de L‟École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1990. A edição espanhola apareceu em 1993: Futuro Pasado: para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona: Paidós, 1993.

12 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

13 O filósofo neokantiano, ao reportar-se ao debate filosófico acerca da natureza humana, afirma, seguindo Ortega Y Gasset, a ruptura com o pensamento eleático no que se refere à teoria grega do ser. Isto é, uma libertação do naturalismo; libertação esta que afirma o caráter distintivo do homem na história, não mais na natureza. CASSIRER, Ernst. Ensaio Sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994. pp. 279-280.

14 REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2006, p.198.

15 A noção de que o tempo histórico constitui um “terceiro tempo” remete inicialmente ao nome de Paul Ricouer, nos diz José Carlos Reis. Assim, o tempo histórico atua no vão entre outros dois tempos: “Se o tempo da consciência é mortal, finito, tendência do ser ao nada, e se o tempo da natureza é permanência, reversibilidade e tendência ao ser, pois o que foi retorna, ele [o historiador] deve procurar inscrever o que passa no que não passa, o irreversível no reversível…” REIS, José Carlos. Op. cit., p.183.

Referências

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

CASSIRER, Ernst. Ensaio Sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora Puc-RJ, 2006.

PALTI, Elias. “Introdución”. In KOSELLECK, Reinhart. Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Introdución de Elias Palti. Barcelona: Ediciones Paidós, 2001.

REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2006.

Bruno Silva de Souza – Mestrando em História pelo PPHR (Programa de pós-graduação em história da UFRuralRJ) – Bolsista Capes. E-mail: [email protected]


KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora Puc-RJ, 2006. Resenha de: SOUZA, Bruno Silva de. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.226-231, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

Revoluções do Poder | Eunice Ostrensky

As possibilidades de leituras e interpretações dos clássicos do pensamento político são inúmeras. No entanto, uma das formas de afirmar sua validade foi, durante muito tempo, vê-los como sujeitos que, com seus textos, rompem a própria transitoriedade da história e são capazes de responder a diferentes questões em diversos tempos e lugares. A validade de sua leitura estaria, portanto, nesta capacidade de responder não só a seus problemas e de seus contemporâneos, mas aos nossos também.

Eunice Ostrensky, professora da Ciência Política da USP, parece ir em direção contrária ao caminho exposto anteriormente. Em Revoluções do Poder, fruto de sua tese de doutorado, publicado pela Editora Alameda, a professora não só procura colocar Thomas Hobbes no contexto político da Inglaterra revolucionária no século XVII, mas, através de intensa pesquisa e leitura apurada, procura reconstruir os debates e as diversas interpretações que concorrem em ambiente inglês.

Entretanto, reconstituir o debate em tempos revolucionários, de surgimento de novas teorias e novos grupos, é tarefa árdua que requer familiaridade com a linguagem estudada e capacidade de interpretar “lances” de linguagem, para usar uma terminologia de J. Pocok (2003). Ou seja, usar certo elemento de uma forma diversa, com significados e sentidos diferentes, a fim de persuadir os possíveis leitores/ouvintes de certo discurso. No entanto, o que era óbvio para os contemporâneos de Hobbes, indiscutível para os que com ele partilhavam seu momento, já não é para nós, que nos distanciamos deles pelo abismo temporal. Por isso, as interpretações são abertas, lacunares e passíveis de crítica. Contudo, o caminho proposto pela professora é inovador em terras brasileiras e demonstra, na prática, as possibilidades abertas pelo método da Escola de Cambridge. Ou seja, entender os objetivos dos pensadores em seu momento, inseridos nos debates e diálogos de seu contexto histórico. Nas palavras de John Langshaw Austin, para escritores como Ostrensky, “as palavras também são atos” (AUSTIN, 1990), são elementos de intervenção e ação no debate político.

O livro pretende compreender o período entre 1642 e 1649, chamado pela autora de “períodos fatais” (p. 32), anos de crise da soberania em que surgem debates sobre republicanismo, limites do Estado, poder e liberdade. Esses vocábulos, complexos em sua definição mesmo fora do contexto revolucionário, ampliam suas possibilidades de definição em momentos de embate político. O ápice da “Grande Rebelião”, como era chamada então a Revolução Inglesa, se daria em 1649, com a condenação e execução de Carlos I. “Nunca antes se havia julgado, condenado e executado um rei publicamente. No passado, coroas usurpadas e reis cruéis haviam merecido execuções que se fizeram pelas costas, no escuro, porque nem mesmo os assassinos (…), pensavam em contestar a monarquia” (p. 41).

Na primeira parte do livro, Ostrensky nos apresenta os personagens que irão compor sua narrativa. Isso talvez seja um dos traços mais marcantes de seu livro: as teorias têm dono, nome e data. Os embates, reconstruídos conforme a documentação que chegou até nós são expostos em sua complexidade e dimensão, demonstrando como os que vivenciaram os períodos de tanta transformação entenderam e interpretaram o que então se passava, que significados davam para o que então ocorria e de que maneira procuraram convencer seus contemporâneos com seus argumentos. Composto por seis capítulos, o livro se divide conforme a “ordem cronológica das razões” e temática das teorias que surgiam e caíam na Inglaterra do século XVII.

Nos primeiros capítulos a autora preocupa-se em demonstrar como os realistas costumavam pensar o mundo e sua própria realidade, ou seja, o arcabouço das crenças do período pré-revolucionário a partir do qual as mudanças ocorrem. Curiosamente, tanto parlamentares como realistas costumavam reivindicar seus direitos buscando um passado mais remoto, garantindo que o oponente trazia perigosas inovações que poderiam comprometer “a ordem do mundo”. Pensados em linguagem teológica, com referências bíblicas, os sentidos dos textos sagrados eram vertidos conforme o desejo daqueles que deles se apropriavam. A Reforma, suas contradições e consequências, iriam atingir também o mundo político, suas formas de interpretação e modos de ver o mundo. Paralelo a isso estavam os discursos juristas, relacionados ao constitucionalismo inglês e a validade do commom law acima das leis escritas e da própria vontade do rei e das leis promulgadas pelo parlamento. Esse é o “pano de fundo” (p.118) dos primeiros dois capítulos, panorama conceitual primário que permite e dá as diretrizes para as inovações, que, neste período conturbado, surgiriam.

Frente às críticas ao poder realista, era necessário responder e reafirmar a necessidade do poder soberano para a manutenção da ordem e da paz social. De acordo com a autora, portanto, é necessário entender os argumentos realistas como respostas aos opositores (p. 36), de um lado os jesuítas, de outro os protestantes radicais. Para isso, linguagens diferentes são usadas, a fim de demonstrar a validade dos argumentos frente a públicos distintos, acostumados a vocábulos e sentidos diferenciados.

No capítulo III a autora procura analisar mais aprofundadamente o discurso realista, demonstrando as formas como a prática política de Carlos I aproximava-se da de Jaime I, seu pai. Contudo, nos avisa Ostrensky, embora o desejo de sistematização do pensamento régio seja necessário a fim de nos possibilitar compreensão, é indispensável percebê-los como respostas a diferentes personagens que a questionavam e a faziam justificar sua posição e pretensão. Por exemplo, enquanto Filmer, um dos maiores representantes da defesa do poder divino, escreve direcionado ao publico interno, aos juristas, Jaime I, se direciona ao público externo, formado por jesuítas e protestantes.

No IV capítulo, Ostrensky analisa os discursos e personagens do outro lado da luta: os parlamentares e os defensores desses. Frente à dificuldade em por ferio às prerrogativas régias o Parlamento lançou um argumento inovador até o momento: a separação entre o rei e a pessoa que o exerce. Segundo a autora, esse gesto, embora aparentemente tímido, abriu espaço para a afirmação da autoridade do Parlamento. Na impossibilidade de se julgar o homem, cujo cargo se tinha por sagrado, aboliu-se o cargo. Ela reconstrói e demonstra três linguagens presentes no discurso parlamentarista: o discurso da ordem, o do constitucionalismo inglês e o “populismo aristotélico”, com as noções de participação política como essências do homem. Essa colcha de retalhos que não aparece separadamente nos discursos, nos mostra as formas como a linguagem se sobrepõe, inovando e ratificando vocabulários, perceptíveis ou não aos seus personagens. No entanto, há, mesmo com as diferenças, um ponto comum: as distintas chaves discursivas afirmam que a lei assegura a deposição do monarca como tirano.

No penúltimo capítulo a autora debruça-se em um dos mais debatidos e controvertidos filósofos da modernidade: Thomas Hobbes. Se o pensador é, sem dúvida nenhuma, o grande nome do período, cujas obras chegam até nós e são debatidas com entusiasmo no mundo acadêmico, seus textos não estão “no vazio”, antes se encontram relacionados e imbricados no jogo político de seu tempo, em outras palavras, eles são veículos de intervenção. Como coloca a autora, por exemplo, Elementos da Lei é fruto do debate político das décadas de 20 e 30. Através da análise que a autora faz de um contemporâneo de Hobbes, Digges, é possível esboçar comparações entre o pensador e outras vertentes de pensamento que tiveram ou não (não é possível saber, infelizmente) contato com seu trabalho. O filósofo não firma seus argumentos em pressupostos teológicos e por essa e outras razões não foi bem recebido pelo próprio grupo que defendia a aristocracia. Embora seja possível traçar paralelos entre o pensador e seus contemporâneos, é impossível negar o caráter inovador de seus textos e afirmações, já que suas respostas à crise de soberania vão em direção a um ângulo diverso dos apresentados por seus colegas. A soberania não é direito divino, é fruto do desejo de sobrevivência do homem frente à natureza humana e seu inevitável caminho à morte prematura. Nisso centra-se também sua crítica à oratória ciceroniana, pois sendo o humano variável, é impossível se chegar a um consenso sobre certo e errado, sendo necessária a criação de uma ciência moral e política. Além disso, Hobbes inverte o termo “sedutor”, originalmente usado para os papistas, que seduziriam o rei. No sentido dado ao termo no Behemoth principalmente, sedutores são os que convencem o povo a se indispor com seu soberano. Esse é um dos exemplos da peculiaridade do pensador, que, utiliza-se de palavras usadas por seus adversários com sentido diferente, buscando, desta forma, persuadir seu leitor e mostrar os malefícios que a desobediência ao soberano poderia trazer.

No último capítulo, a autora centra sua análise naqueles que seriam os jacobinos da Revolução Inglesa: os levellers, ainda pouco estudado no Brasil. Para demonstrar como esses seriam os primeiros democratas da história moderna, a autora coloca em destaque as formas que alcançavam a ideia de representação política: tolerância religiosa e liberdade de culto, reinterpretação da lei da natureza e uma teoria dos direitos naturais. A definição de liberdade para eles será diversa da usado por Hobbes, por exemplo, já que não será no sentido de interferência dos outros na liberdade do indivíduo, mas de liberdade em atuar no espaço público. Contrários a falta de limites do poder régio, mas também do Parlamento, os levellers defendem o poder de racionalidade e decisão das multidões.

As críticas aos levellers viriam de várias frentes, principalmente devido ao radicalismo das propostas e a possibilidade de transferir o poder à multidão, vista como destituída de racionalidade. Embora autores como Hobbes não os mencionem, presume-se que seus prováveis leitores os conheceriam e estariam devidamente informados a respeito de sua argumentação, já que defende sua filosofia tendo como base elementos usados pelo grupo rival.

Em sua conclusão, intitulada A Segunda Metade do Círculo, a autora afirma que seu objetivo no livro era acompanhar a mudança da linguagem, o desgaste da visão paradigmática e a predominância da Lei Civil e Natural. Após a queda da monarquia perde sentido o constitucionalismo parlamentarista e a defesa da harmonia entre rei e Parlamento. Outras formas de entendimento, expressos através de palavras, serão usadas e terão, na mente dos leitores e ouvintes, uma entonação diversa da anterior, a base seria outra: o pensamento republicano.

A fim de concluir esta resenha, cabe dizer algumas palavras sobre este livro que é, no mínimo, instigador por sua abordagem. Diferentes dos estudos tradicionais, que buscam, através de intensa leitura, descortinar certo pensador e entender sua filosofia e principais conceitos, Eunice Ostrensky procura contrapor Hobbes com seus interlocutores. Entender o vocabulário político presentes neste momento, os debates produzidos através de um arranjo conceitual comum, mas que ao mesmo tempo esta em mutação, pode ser colocado como um de seus objetivos. Tarefa árdua que requer familiaridade com uma linguagem que se diferencia da nossa no tempo e no espaço. Lacunas existirão, assim como interpretações que certamente seriam contestadas pelos seus autores e não aceitas por eles, como é a preposição de um dos maiores defensores da proposta da autora, Quentin Skinner2 . No entanto, mostrar que filósofos colocados no Panteon pela tradição não fizeram pressuposições fora de seu tempo, mas coladas ao contexto e as possibilidades que esse lhes dava, é um dos méritos dessa proposta. Outro seria demonstrar, como já afirmou Skinner (2000, p.150), que os filósofos não respondem as nossas questões, mas as suas, cabe a nós, portanto, buscar, como eles fizeram anteriormente, respostas aos problemas de nossa sociedade.

Notas

2. Quentin Skinner afirma que um dos seus objetivos era produzir uma interpretação passível de ser aceita pelo próprio autor do texto.

Referências

AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução de Daniel Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médias, 1990.

POCOCK, J.G.A. Linguagens do Ideário Político. Tradução de Flávio Fernandez. São Paulo: EDUSP, 2003.

SKINNER, Quentin. Significado e comprensión em La historia de las ideas. Tradução de Horacio Pons. In: Primas – Revista de História Intelectual, Quilmes, nº4, 2000, p.149-191.

Débora Regina Vogt – Licenciada e mestranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalha com o livro de história do filósofo político Thomas Hobbes, Behemoth, e desenvolve pesquisa referente ao papel da referência aos antigos em sua obra. E-mail: [email protected]


Ostrensky, Eunice. Revoluções do Poder. São Paulo: Alameda, 2006. Resenha de: VOGT, Débora Regina. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.248-252, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original.

A questão dos livros: presente, passado e futuro | Robert Darnton

VLADIMIR

Vamos esperar até estarmos completamente seguros.

ESTRAGON

Por outro lado, talvez fosse melhor malhar o ferro antes que esfrie.

VLADIMIR

Estou curioso para saber o que ele vai propor. Sem compromisso.

Samuel Beckett [2]

Da palavra impressa à digitalização, ou da impressão em um mundo a cada dia mais digital: é à longa relação dos homens com os livros, e suas recentes mutações, que se dedica o historiador Robert Darnton em seu último título traduzido no Brasil. Trata-se de uma coletânea de ensaios em sua maioria publicados, como lembra o autor na introdução, na New York Review of Books (p. 16-17). Distribuídos sob uma organização temporal tripartite, como alerta o subtítulo, talvez não seja um exagero recordar, com Paul Ricoeur (1913-2005), que devemos a Santo Agostinho (354-430) tal ordenamento cronológico há muito banalizado. A constatação desse hábito não sugere, evidentemente, qualquer desprezo pelos exames das disputas diárias que, se sabe, envolvem a temporalidade tridimensional com a qual estamos acostumados, mas o contrário. [3]

Esta ordem do tempo – tão histórica – é por Darnton apropriada de modo muito pertinente, situando seus ensaios, em certo sentido, a partir de suas próprias experiências como repórter, arguto estudioso dos meios editorais iluministas, membro dos conselhos de importantes editoras universitárias dos Estados Unidos e do corpo administrativo da Biblioteca Pública de Nova York. Desde 2007 ele atua como diretor da Biblioteca Harvard. (p. 7-9). E é neste ponto que, em A questão dos livros, ingressamos nas expectativas relativas à resistência dos livros (impressos e digitais), ao controle sobre as explorações comerciais dos periódicos científicos, à manutenção e reordenamento das bibliotecas após o advento dos meios eletrônicos de arquivamento, entre outras importantes dúvidas que hoje se impõem aos pesquisadores, de maneira geral.

“O futuro, seja ele qual for, será digital” (p. 15). Sem qualquer descuido com o passado – trata-se de um estudioso da chamada “história do livro” – ou com o presente – o assunto da coletânea é de contemporaneidade inconteste – Darnton começa por um “fim” que ainda desconhecemos. A primeira parte, “Futuro”, reúne quatro ensaios em que o historiador, tal como Vladimir e Estragon, personagens da mais conhecida e aclamada peça do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989), mostra-se apreensivo. Entretanto, sua ansiedade é específica: direciona-se aos rumos do guardo e acesso do conhecimento acumulado ao longo de séculos nas páginas de livros. Ainda, ao contrário daqueles, o autor expõe, já no primeiro ensaio, “O Google e o futuro do livro” (p. 21-38), indagações de natureza prática que não devem ser deixadas a esmo. O processo de digitalização em massa de livros levado a cabo pela multinacional sediada nos Estados Unidos, com o projeto ora conhecido Google Book Search, desencadeou uma ação judicial de autores e editores que se sentiram, de imediato, violados em seus direitos autorais (p. 21).

Retornando aos ideais da República das Letras setecentista e passando pela criação e posteriores adaptações do copyright e dos campos de conhecimento (estes, emergentes a partir do século XIX), Darnton oferece bons argumentos para a “prudência” sugerida no ensaio que abre o livro aqui resenhado. Ao destacar a inerente relação saber-poder então envolvida, ele convoca as críticas dos filósofos do século XVIII referentes ao monopólio no que diz respeito à difusão do conhecimento, apontando algumas lacunas deixadas nas últimas duas décadas no tocante à garantia do interesse público no assunto em questão: a incorporação da digitalização nos meios universitários nos Estados Unidos (p. 34). Sem cair em comparações infundadas entre o Iluminismo e os dias atuais, o Google é visto como de fato é: uma empresa em franca expansão que, com boas ou más intenções, visa o lucro, opera em um mercado instável e é passível de ser vendida ou extinta (p. 36).

No segundo ensaio desta primeira parte, “O panorama da informação” (p. 39-59), o que se pode encontrar é uma lúcida retrospectiva dos saltos nos suportes do conhecimento humano desde a invenção da escrita, do pergaminho ao códice, do códice à impressão, dos primeiros passos da comunicação eletrônica à web (p. 39-41). Argumenta-se que, ao contrário do que atualmente se diz, não vivemos em uma época especial de fragilidade da informação: para o historiador ela “nunca foi estável” (p. 47). Atento ao trabalho dos historiadores e seus hábitos de pesquisa, ao estatuto das bibliotecas para os mesmos e, sobretudo, aos equívocos que atravessam tudo aquilo que, enfim, permeia a informação, um dos problemas reais levantados relaciona-se com a preservação dos textos que “nasceram digitais” (p. 56).

Em “O futuro das bibliotecas” (p. 60-75), o foco concentra-se nos acervos das universidades e a empreitada digitalizadora do Google é retomada de forma profundamente crítica. O acordo judicial da empresa é trazido à baila e os perigos do monopólio são reapresentados, inclusive com prescrições sugeridas pelo historiador – lembremos que se trata de um gestor de biblioteca (p. 64-65). As particularidades dos centros e editoras universitárias são apresentadas, ao mesmo tempo em que explana sobre preocupações pragmáticas, como a conservação de mensagens eletrônicas (possíveis documentos históricos para hoje e amanhã), a composição de acervos digitais nacionais e internacionais com acesso público garantido e a disposição correta dos orçamentos agora direcionados a aquisições tanto impressas como virtuais (p. 70-75).

O último ensaio dessa primeira parte, bastante curto, “Achados e perdidos no ciberespaço” (p. 76-82), consiste em algumas reflexões do autor no que trata ao ofício do historiador agora agregado de subterfúgios eletrônicos. Datado de 1999, o breve texto elenca algumas surpresas de Darnton quando envolvido, pela primeira vez, na elaboração de um ebook. Ainda habituando-se aos novos meios, os argumentos do historiador baseiam-se sobremaneira em comparações entre o trabalho convencional com impressos – seja na leitura, seja na escrita – e os novos limites e possibilidades das produções exclusivamente virtuais. Contudo, o impacto de suas experiências permite interessantes meditações sobre o redimensionamento da pesquisa histórica possibilitado pelos e-books e outras funções da internet.

A parte II, “Presente”, de longe a mais sucinta da obra, é composta de três ensaios: “Ebooks e livros antigos” (p. 85-95), “Gutemberg-e” (p. 96-118) e “Acesso livre” (p. 119-122). O primeiro compõe um contundente panorama dos choques entre as exigências dos campos de pesquisa no que diz respeito a publicações produzidas por seus pesquisadores, à tradição do valor do material impresso (há séculos preservado como principal meio de transmissão de informações) e às disponibilidades nem sempre respeitadas do universo digital. O ensaio agrupa, na verdade, os confrontos entre os suportes, mas também entre formatos próprios da produção acadêmica. Além disso, com a inflação dos preços que as editoras comerciais de periódicos passaram a cobrar para autorizar a liberação de seus conteúdos às bibliotecas, estas se viram obrigadas a reduzir suas aquisições de monografias. Ou seja, como frisa Darnton, a nova geração de acadêmicos tende a se ver imobilizada diante da ausência de espaços para divulgação de seus trabalhos e das cobranças relativas à eficácia na publicação de resultados para que haja progressão na carreira. O mesmo mal atinge as editoras universitárias, igualmente atingidas por questões de mercado (p. 88-89). Enfim, o que se evidencia é a comum ausência de regulamentação do ciberespaço, com a mescla entre escritos com características particulares, mas que, na rede, acumulam-se como se fizessem parte de um mesmo conjunto. Os acervos de teses, neste sentido, são, para o historiador, bons exemplos: “teses não são livros” (p. 92). O trabalho de revisão e edição que envolve a formatação de um livro ultrapassa as propostas de uma tese “crua”. Novos problemas.

“Gutemberg-e” apresenta um projeto desenvolvido pelo autor quando esteve na presidência da American Historical Association (AHA), a partir de 1999. A proposta direcionava-se no sentido de organizar a publicação de teses recriadas para divulgação eletrônica, como meio de atender àqueles diversos recém-doutores que não encontravam espaço para compartilhar de suas pesquisas. Darnton expõe ao longo do texto seus percalços diante das dificuldades na conversão das teses, do universo absolutamente desconhecido para ele no tocante às especificidades de uma edição digital e, novamente, do preconceito contra as publicações on-line (p. 101). Entre erros e acertos reconhecidos pelo ex-presidente da AHA, a transcrição da proposta de financiamento por ele formulada, quando do início do projeto, e do relatório de progresso (2002) poderão, no futuro, vir a ser um ponto de partida para esforços semelhantes nos Estados Unidos e em outras partes do mundo (p. 104-118). “Acesso livre”, ensaio que encerra a segunda parte de A questão dos livros, é um texto de quatro páginas que vale como manifesto em favor do acesso garantido a publicações acadêmicas, editado no mesmo dia em que uma resolução sobre o tema foi votada em Harvard e aprovada por unanimidade (p. 119). É, também, uma retomada sintética de todos os problemas elencados em alguns dos artigos anteriores.

Por fim, chega-se ao “Passado”, terceira e última subdivisão da obra, a maior delas. Neste ponto encontra-se um conjunto de texto que em muito rememora o legado mais conhecido de Robert Darnton no Brasil e, provavelmente, em diversos outros países, qual seja, o autor de O grande massacre de gatos e O beijo de Lamourette. 4 Com exceção do primeiro dos quatro ensaios que compõem esta etapa final, “Em louvor ao papel” (p. 125- 145), os demais são modelos de excelentes investigações relacionadas à história da leitura, escrita, edição e circulação de livros na era moderna. O primeiro ensaio, supracitado, traz informações surpreendentes acerca da destruição de originais (em diversos formatos) após a incorporação do microfilme durante boa parte do século XX nas bibliotecas dos Estados Unidos. “A importância de ser bibliográfico” (p. 146-163) destaca a relevância das listas de obras que compõem um texto após a inserção de escritos na internet e as desconfianças que daí surgiram. Segundo Darnton, a falta de prestígio da bibliografia é uma marca do século XX, pois nos séculos anteriores ela teve um valor especial nos esforços de filólogos para o estabelecimento de textos clássicos (no ensaio o caso de Rei Lear é explorado). A própria noção de literatura entre os séculos XVI e XVIII, na Inglaterra, e as relações entre contextos políticos e produção literária são vislumbradas. “Os mistérios da leitura” (p. 164-188), por sua vez, coloca à vista as pesquisas do historiador relativas às possibilidades que fontes como os “livros de lugares-comuns” abrem ao exame dos hábitos de leitura no passado. Fechando a obra, “O que é a história do livro?” (p. 189-219), texto redigido há trinta anos, retorna efetivamente ao passado, alinhavando as diretrizes que, em maior ou menos medida, agrupam os três tempos da obra. Categorias que demandavam atenção desde as primeiras sistematizações de Darnton (autores, editores, gráficos, distribuidores, livreiros, leitores) podem e devem ser retomados, agora, sob efeito das perdas e ganhos do mundo digital (p. 208-216).

Ainda que cercado dos cuidados descritos pelo autor, a obra, por tratar-se de uma coletânea, em alguns momentos repete informações e argumentos (especialmente nas duas primeiras partes). Todavia, tal aspecto em nada compromete a pertinência da proposta. Por outro lado, se ela é por demais centrada no caso norte-americano – alguns problemas e vantagens do mundo universitário diferenciam-se profundamente do caso brasileiro – há diversos elementos transnacionais para os quais ainda não se atentou por aqui. Dos “três tempos” de A questão dos livros, o “Futuro” e o “Presente” abrem questões fundamentais para pesquisadores de todas as áreas do campo historiográfico, enquanto o “Passado” garante o deleite de todo e qualquer leitor, tendo em conta o profundo conhecimento do autor em sua área de estudo e a qualidade de sua escrita.

Notas

2. BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução: Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p.37.

3. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François [et al]. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007, p.364.

4. Cf. DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Tradução: Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986; DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Evandro Santos – Doutorando em história na UFRGS e bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


DARNTON, Robert. A questão dos livros: presente, passado e futuro. Trad. Daniel Pellizari. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Resenha de: SANTOS, Evandro. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.254-259, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

Silence in the Land of Logos | Silvia Montiglio

Os antigos gregos possuíam uma “cultura da palavra” ─ todas as esferas da vida pública, como os debates na assembléia, os rituais e o teatro, eram marcados pelo uso dos discursos. A ascensão da Polis contribuiu para desenvolver um tipo específico de “logos” que visava a persuasão por meio de argumentos. [2] Na esteira destas constatações a escritora Silvia Montiglio com seu livro “Silence in the Land of Logos” coloca-nos o seu importante tema de pesquisa: o silêncio e as diferentes práticas do silêncio como um modo discursivo no mundo grego.

O livro é a adaptação da tese de pós-doutorado da autora, defendida em 1995 na École des Hautes Études en Sciences Sociales sob a orientação de Nicole Loraux. Montiglio dialoga então com os grandes nomes do helenismo francês, como Louis Gernet, Jean-Pierre Vernant, Marcel Detienne e Pierre Vidal-Naquet. Já a importância que Montiglio dá à noção de cultura coloca o seu trabalho em uma perspectiva de antropologia histórica.

Na introdução (pp. 3-8) a autora defende o silêncio como uma prática cultural específica que pode ter diferentes significados para variados grupos e que assim pode se transformar de acordo com as mudanças sociais: “If silence is a culturally specific notion, its meanings may be expected to change not only from civilization to civilization, but also within the same civilization across the time.”[3] (p. 4) Montiglio coloca-nos o seguinte questionamento para desenvolver o texto: “Como o silêncio ressoa neste mundo marcado pela voz?” (“How does silence resonate against this vocal background?” – p. 3) É em busca dessa especifidade do silêncio e guiada por sua interrogação que Silvia Montiglio desenvolve os seus oito capítulos que tratam do mundo arcaico ao período clássico ateniense, abarcando desde Homero aos oradores e não esquecendo a leitura dos textos trágicos.

No primeiro capítulo (pp. 9-45), “Religious Silence without an Ineffable God,” Montiglio tenta demostrar o erro em universalizar o significado do silêncio em diferentes práticas religiosas. A análise da autora parte do significado da noção de “inefável” para mostrar que no panteão grego existem graus de silêncio (degrees of silence) exigidos pelas divindades. Assim, são mostrados os silêncios ligados à “iniciação religiosa”, mistérios órficos e a relação entre silêncio, pureza e impureza.

O segundo capítulo (pp. 46-81), “A Silent Body in a Sonorous World: Silence and Heroic Values in the Iliad,” é centrado na Ilíada de Homero, sendo que a autora deseja reconhecer as diferentes representações do silêncio feitas pelo Aedo. O mundo da Ilíada é o lugar da nobreza guerreira, no qual o corpo desempenha um importante papel de diferenciação social. Com este indício, Montiglio procura reconhecer expressões corporais no momento de “estar em silêncio.” É assinalada pela autora a existência de um vocabulário homérico para o silêncio ─ basta citar como exemplo a palavra aneôi, que é usada diante do maravilhoso ou o ficar mudo diante do fantástico, e também o silêncio da concordância que é colocado junto com o verbo agamai.

No capítulo seguinte (pp. 82-115), “The Poet’s Voice against Silence,” é discutida a figura do Aedo e a sua relação com a voz, a verdade e o silêncio. Parte-se então de uma afirmação de Marcel Detienne que coloca o silêncio na poesia arcaica como equivalente ao esquecimento e a culpa e como oposição à memória, a qual é a glória e a verdade cristalizada pela voz. Montiglio desenvolve a sua análise na poesia de Píndaro, na qual ela descreve a oposição entre voz ─ memória e silêncio ─ esquecimento como um mediador poético.

O quarto capítulo (pp. 116-157), “’I Will Be Silent’: Figures of Silence and Representations of Speaking in Athenian Oratory,” concentra-se no silêncio como um artifício de retórica. A pergunta que pode ser feita ao texto de Montiglio é: Como o silêncio é explorado como argumento? Para responder a esta indagação, a autora explica alguns recursos retóricos muito usados na Antigüidade. Entre eles, um chamado praeteritio, que consiste em dizer que não falará de um tema em particular para chamar a atenção do auditório sobre este tema e a aposiopesis, que consiste em fazer um silêncio brusco ao fim de uma frase, de forma a eufemizar certas questões.

Na segunda metade do livro, nos quatro capítulos restantes, Montiglio passa a se dedicar exclusivamente à análise do silêncio na tragédia grega. A especificidade do texto trágico em relação às outras formas discursivas do mundo grego está no problema da ambiguidade. A tragédia grega é construída em sua estrutura por relações ambíguas entre as personagens, entre o coro, entre os atores e os espectadores, entre os homens e o mundo dos deuses. A linguagem do texto não escapa dessa relação na qual a dúvida é sempre intrínseca.

O helenista Jean-Pierre Vernant lembra-nos de uma “multiplicidade de nível” no vocabulário trágico, ou seja, a mesma palavra liga-se a diferentes campos semânticos, pertencendo ao vocabulário religioso, jurídico e político. Cabe retomar uma pequena citação de Vernant que expõe a complexidade da palavra no texto trágico: “As palavras trocadas no espaço cênico têm, portanto, menos a função de estabelecer a comunicação entre as personagens que a de marcar os bloqueios, as barreiras, a impermeabilidade dos espíritos, a de discernir os pontos de conflito”.[4]

A autora, consciente do desafio que é interpretar a linguagem do texto trágico, desenvolve o seu quinto capítulo (pp. 158-192), “Words Staging Silence,” mostrando ao leitor que não podemos esperar semelhanças entre o silêncio no teatro moderno e o silêncio no teatro grego. Montiglio defende a idéia de que a tragédia grega rejeita o vazio em cena e favorece a continuidade do som; por isso, não podemos imaginar longos silêncios em cena no teatro grego. A menção ao silêncio na tragédia pode ser compreendida naquilo que a autora considera uma tendência cultural no mundo grego de associar o não-dito com o não-visto.

O sexto capítulo (pp. 193-212), “Silence and Tragic Destiny,” analisa o silêncio na trama trágica e os resultados que a escolha do falar ou não falar pode dar ao texto. O silêncio é comparado ao Kairos, ou seja, o momento oportuno ─ diferente do Kairos, o silêncio no mundo dos homens pode não refletir o destino, mas um momento confuso das personagens. Montigio ressalta então a diferença entre o silêncio do profeta, o qual mostra um conhecimento superior pois este seu silencio é uma vontade dos deuses, e o dos homens, que ficam em silêncio quando não sabem o desenrolar do próprio destino. No texto são analisadas principalmente as tragédias de Ésquilo e de Eurípides, mas não podemos deixar de lembrar que o Édipo Rei escrito por Sófocles também coloca em cena as diferenças entre a sabedoria do profeta e do herói trágico.[5]

O sétimo capítulo (pp. 213-251), “Silence, a Herald of Death,” anuncia uma complexa relação entre o silêncio e a morte. Montiglio analisa-a e compara diferentes textos gregos com a tragédia, inclusive os textos hipocráticos, nos quais a autora sinaliza diferenças entre o silêncio masculino e feminino. Já o oitavo capítulo (pp. 252-288), “Silence, Ruse, and Endurance: Odysseus and Beyond,” concentra-se na figura de Ulisses e os seus diferentes silêncios dentro do pensamento grego. Inicialmente a autora nos lembra que o silêncio de Ulisses está ligado à mètis, que é um tipo de inteligência ligado ao mundo prático. Nas épicas de Homero os silêncios de Ulisses estão ligados a um jogo de segredo, enquanto que no texto trágico Ulisses aparece com um silêncio ligado à estratégia e ao engano. Cabe lembrar o emblemático Ulisses da peça Filoctetes de Sófocles, o qual é retratado como um sofista dotado de poucos escrúpulos para alcançar o seu objetivo.

Assim, o livro “Silence in the Land of Logos” de Silvia Montiglio é de grande importância para uma historiografia que se preocupa com representações, lutas de representações e práticas discursivas. O tema do silêncio, como colocado pela autora, nos inspira a reavaliarmos a “fala” e a eloquência do “não-falar”. O projeto ambicioso de fazer uma pesquisa abrangente sobre o silêncio na Grécia Arcaica e Clássica, centrada em preocupações culturais, e o caráter antropológico que Montiglio dá ao estudo da História possibilitam uma leitura da autora a partir dos pressupostos da “Nova História Cultural”.

Para terminar esta resenha cabe lembrar de um fragmento de uma tragédia de Sófocles que diz: “My son, be silent! Silence has many beauties.” [6] O livro de Montiglio ensina-nos a compreender algumas dessas belezas.

Notas

2. Para aprofundar o problema do Logos ver o livro de Michel Fattal: FATTAL, Michel. Logos, pensée et vérité dans la philosophie grecque. Paris: L’Harmattan, 2001.

3. Tradução: “Se o silêncio é uma noção culturalmente específica, é de se esperar que os seus significados mudem não só de civilização para civilização, como também dentro da mesma civilização através do tempo.”

4. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 20.

5. MARSHALL, Francisco. Édipo Tirano: a tragédia do saber. Porto Alegre: Ed UFRGS, 2000.

6. SOPHOCLES. Fragments. Edited and translated by Hugh Lloyd -Jones. London: Loeb Classical Library, 2003. P. 34, fragment 81. Tradução: “Meu filho, silencia! O silêncio tem muitas belezas.”

Mateus Dagios – Mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (bolsista CNPq). E-mail: [email protected]


MONTIGLIO, Silvia. Silence in the Land of Logos. Princeton: Princeton University Press, 2000. Resenha de: DAGIOS, Mateus. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.260-263, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original

A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira | Warren Dean

Pode-se dizer que a especialidade historiográfica atualmente denominada “História Ambiental” se define a partir de um tema específico. No caso, a relação entre homens e natureza ao longo do tempo. Sendo que por “natureza” a maior parte dos historiadores ambientais compreende todo o mundo não-humano ou não-criado originalmente pelo homem. Assim, como se pode inferir, a especialidade engloba uma vasta gama de discussões e problemáticas, bem como força uma série de diálogos interdisciplinares pouco convencionais no interior das Ciências Humanas. Sobretudo, com as Ciências Naturais e Físicas, incluindo aí não só a Biologia ou a Meteorologia, mas muitas outras, inclusive as ditas “aplicadas”, tais como a Engenharia Civil ou a Genética.

Apesar da preocupação em compreender aspectos das relações entre sociedades e seus ambientes naturais não ser algo assim tão recente entre os historiadores, foi só a partir dos anos 1970 que se passou a esboçar claramente o projeto de uma história “ecológica” ou “ambiental”.

Dentre os franceses da escola dos Annales, por exemplo, os próprios Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956) já apontavam, entre as décadas de 1920 e 40, para a necessidade de se compreender as bases ambientais, sobretudo geográficas, sobre as quais se organizavam as diferentes sociedades humanas do passado. Mais tarde, seu maior discípulo, Fernand Braudel (1902-1985), aprofundaria essa sensibilidade em obras como O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Felipe II (1949). Uma obra monumental na qual, entre outras coisas, o historiador chama a atenção para os cenários geológicos, hidrológicos e oceanográficos nos quais se desenvolvem os processos econômicos, sociais e políticos que analisa.

Em outros países, ainda na primeira metade do século XX, outros autores nutriram preocupações semelhantes. Nos Estados Unidos, Frederick Turner (1861-1932), bem como outros dos chamados “historiadores da fronteira”, demonstrou claro interesse no impacto representado pela expansão europeia sobre o ambiente natural da América do Norte.

Entre nós, brasileiros, autores como Euclides da Cunha (1866-1909) e, principalmente, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) também podem ser tomados como precursores desse tipo de preocupação temática. Obras como Os Sertões (1902) e Caminhos e Fronteiras (1957) seriam alguns exemplos, dentre os nossos clássicos, de reflexões preocupadas, entre outras coisas, em inserir culturas e processos sociais em contextos ambientais específicos. Contextos estes de algum modo compreendidos como elementos ativos na dinâmica histórica.

Não obstante, seria na transição dos anos 1960 para os 70 que uma historiografia claramente preocupada com as relações entre processos sociais e naturais ao longo tempo passaria a ser pensada como uma área de investigação específica no interior da disciplina histórica.

Com a eclosão de novos movimentos sociais, fora do âmbito estritamente universitário, e com a revisão e ampliação de antigos pressupostos e objetos de pesquisa, no interior da academia, a História Ambiental começou a ganhar seus primeiros teóricos e praticantes. Dentro da chamada Terceira Geração dos Annales, autores como Emmanuel Le Roy Ladurie (1929), em 1973, defendiam a legitimidade do “clima” como um objeto legítimo à reflexão do historiador [2]. Não obstante, seria nos Estados Unidos – um dos principais focos do movimento ambientalista internacional – que surgiriam os primeiros e mais influentes trabalhos de História Ambiental. Foram das universidades americanas que saíram (e ainda saem) alguns dos principais textos ligados a essa especialidade. Estudos clássicos como os de Roderick Nash (Wilderness and the American Mind, de 1967), Donald Worster (Nature’s Economy: a history of ecological ideas, de 1977) e Warren Dean (Brazil and the struggle for rubber: a study in environmental history, de 1987).

E é de autoria deste último, Warren Dean, a obra que é considerada por muitos especialistas um dos primeiros e mais importantes trabalhos de História Ambiental já realizados sobre o Brasil. Estamos nos referindo ao livro With Broadax and Firebrand: the destruction of the brazilian Atlantic Forest, publicado originalmente em 1995. Texto logo traduzido para o português (a primeira impressão brasileira é de 1996) sob o título A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira.

Falecido em 1994, num acidente automobilístico no Chile, Dean não teve a oportunidade de acompanhar o impacto que A ferro e fogo causou em nossa comunidade acadêmica. Já bastante conhecido entre os historiadores brasileiros desde os anos 1960 e 70, por livros como A Industrialização de São Paulo (1967) e Rio Claro: um sistema brasileiro de plantation (1976), a Ferro e Fogo, superou Brazil and the struggle for rubber, como exercício de história ambiental. A originalidade e amplitude do tema, os diálogos interdisciplinares e o uso de uma vasta gama de fontes fizeram desse livro um modelo teórico-metodológico dedicado a essa modalidade historiográfica. Além, é claro, de uma referência obrigatória para toda uma geração de pesquisadores que, de algum modo, se interessam pelas relações que humanos e floresta Atlântica travaram entre si ao longo dos anos, séculos e milênios afora.

Prefaciado por outro brasialinista ilustre, Stuart Schwartz – autor de Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835), de 1985 -, o livro de Warren Dean se divide em quinze capítulos. Nestes, o autor realiza um exercício incomum noutras especialidades historiográficas, mas essencial em qualquer bom trabalho de História Ambiental: a articulação entre o tempo natural (ou geológico) e o tempo social. A relação entre as grandes escalas de tempo da Geologia e da Biologia, contadas em milhões e bilhões de anos, e o tempo mais curto dos processos humanos, contados em unidades mais “modestas” como milhares, centenas ou dezenas de anos. Assim, no primeiro capítulo, somos apresentados à floresta atlântica desde a sua formação há bilhões de anos, passando pelas sucessivas eras geológicas, até a formação da biomassa que as primeiras levas de “invasores” humanos encontraram ao chegarem ao subcontinente Sul Americano há “apenas” 10 mil anos.

Warren Dean é categórico ao expressar o seu entendimento do tema proposto. Para ele uma história das florestas não deve se limitar a compreender o ambiente natural apenas do ponto de vista humano, isto é, vendo este ambiente apenas como uma simples reserva de recursos econômicos ou, ainda, como mero cenário contra o qual se desenvolveriam isoladamente as ações humanas. Em oposição a esta visão dicotômica e estática, Dean sugere um entendimento dinâmico da relação entre humanos e natureza, sobretudo se essa natureza se refere a um sistema altamente complexo como o são as florestas tropicais. Para o autor, a Mata Atlântica não foi apenas objeto da sua história, mas também sujeito. Ela atuou, impôs limites, ditou regras, ajudou a moldar atitudes e pensamentos àquelas sociedades que, um dia, se aventuraram no seu interior.

O saldo do encontro entre ambos os universos (o humano e o natural) foi, no entanto, trágico. Segundo Dean, a história da Mata Atlântica é uma história de devastação porque, de um modo geral, em todo o Planeta, a história das florestas sempre teria sido “uma história de exploração e destruição”.[3] O homem não pertenceria àquelas sociedades compostas por inúmeras espécies de plantas e animais em contínua interação. Seu equipamento natural não o possibilita viver em ambientes altamente hostis às suas necessidades como de fato é uma floresta tropical. Para permanecer lá, ela, a espécie humana, precisa alterar o mundo ao seu redor. Assim, para viver na Mata Atlântica os homens, necessariamente, precisaram destruíla. Não obstante, se algumas sociedades fizeram isto de forma mais ou menos equilibrada durante longos períodos de tempo, outras, no entanto, foram altamente prejudiciais ao equilíbrio do sistema em relação ao qual elas eram alienígenas. Foi este o caso dos invasores europeus que chegaram ao Continente Sul Americano no século XV.

Dean, portanto, não poupa ninguém no seu balanço geral da devastação da floresta atlântica. Índios, caboclos, colonos, latifundiários, grandes industriais, Estado… Para o autor, todos tiveram a sua cota de responsabilidade no resultado final do processo. A Mata Atlântica praticamente não existe mais em sua extensão e forma originais, tanto por causa dos séculos ou milênios de agricultura predatória indígena, quanto por causa das décadas de industrialização acelerada de um Estado e burguesia embriagado com a idéia de um desenvolvimento econômico rápido e irresponsável.

Seu livro, portanto, é um retrato de uma luta desigual. De um lado um dos ecossistemas mais complexos e inalterados com que a espécie humana já travou contato, de outro, a própria espécie humana com sua particular capacidade de transformar ambientes conforme as suas diversas necessidades materiais e simbólicas. O resultado deste embate, ao menos por hora, pode ser apreciado em qualquer viagem de carro ou avião ao longo do litoral brasileiro.

Narrada de forma linear e numa linguagem bastante acessível A ferro e fogo é uma obra que, por vezes, faz parecer fácil uma das modalidades historiográficas mais exigentes e sofisticadas dentro da historiografia contemporânea. Além da amplidão de seu recorte espacial (a Mata Atlântica originalmente corresponde ao que hoje abrange 14 estados brasileiros) e temporal (bilhões de anos geológicos; pelo menos, 10 mil anos de história humana não registrada em fontes escritas; e 500 anos de ocupação europeia) seu livro apresenta centenas de fontes dos mais variados tipos (relatórios técnicos, relatos de viajantes, artigos científicos, livros, manuais agrícolas, tratados de história natural, legislações ambientais, jornais, mapas, etc.) e estabelece alguns diálogos disciplinares bastante instigantes, sobretudo com a Biologia, Geografia, Arqueologia e a Antropologia. No mais, no interior da própria disciplina histórica, Warren Dean não deixa de estabelecer vínculos entre a História Ambiental e outras especialidades, em especial com a História Econômica e Social.

A despeito dos seus possíveis limites e deficiências, A ferro e fogo permanece incólume como um dos exemplos mais bem acabados de boa História Ambiental. Neste livro, parece-nos, Warren Dean consegue articular com desenvoltura aqueles três níveis, ou três grupos de perguntas, que Donald Worster definiu como centrais para a pesquisa dentro desta especialidade historiográfica. [4] A saber, Dean consegue a) dar-nos uma idéia mais ou menos objetiva do modo como a “natureza propriamente dita” se “organizou e funcionou no passado”, tantos em seus aspectos orgânicos quanto inorgânicos (incluindo aí os organismos humanos); b) demonstrar o papel ativo do meio natural no interior dos processos sociais e econômicos das diferentes sociedades que interagiram com o ambiente natural ao longo do tempo; c) abranger os diferentes significados inferidos pelos homens ao meio natural e demonstrar como essas percepções afetaram a sua relação com a floresta.

A ferro e fogo é, provavelmente, a obra-prima de Warren Dean e vai, certamente, permanecer durante muito tempo como um clássico da História Ambiental. Se não pelo peso de todas as suas conclusões e análises, ao menos pelo fato de ter conseguido concretizar o objetivo maior dessa rica vertente historiográfica: o de inserir, de maneira dinâmica, determinados processos humanos no interior de seus contextos naturais específicos. Um diálogo que, mesmo que não percebamos (ou não queiramos perceber), história e natureza sempre realizam. E isto porque, nós, antes de sermos humanos, somos criaturas vivas. Seres imersos num tempo, mas também num espaço nem sempre criado ou controlado por nós. Sujeitos e objetos de um ambiente que por vezes modelamos e que invariavelmente também nos molda.

Notas

2. LADURIE, Emmanuel Le Roy. O clima: história da chuva e do bom tempo. In.: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. p. 11-33.

3. DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. p. 23.

4. WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.4, n.8, p.198-215, 1991. p. 205.

Luiz Alberto de Souza – Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestrando em História Cultural pela mesma instituição. E-mail: [email protected].


DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. Resenha de: SOUZA, Luiz Alberto de. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.264-268, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

Pólvora y tinta: Andanzas de bandoleros anarquistas | Salvador Neves e Alejandro Pérez Coutubre

Em uma época de aprofundamento da integração econômica, geopolítica e cultural entre os países da América do Sul, chama a atenção como os estudos historiográficos sobre os países hispano-americanos ainda são bastante desconhecidos no Brasil. A produção historiográfica uruguaia, por exemplo, é praticamente ignorada no país e a imensa maioria dos trabalhos não possui tradução para o português. Dessa forma, uma quantidade razoável de obras de qualidade dificilmente chegam à comunidade acadêmica brasileira e a potenciais leitores. Um dos muitos casos do tipo é o trabalho de Salvador Neves e Alejandro Pérez Coutubre. Publicado no Uruguai pela primeira vez em 1993 e reeditado em 2006, Pólvora y tinta: Andanzas de bandoleros anarquistas descreve o famoso assalto ao Câmbio Messina, ocorrido em Montevidéu no ano de 1928.

A história, na verdade, inicia-se em outubro de 1927, na capital argentina, Buenos Aires. O Comité Pro Presos y Deportados argentino, carente de recursos para pagar advogados de defesa para os processados, ajudar economicamente às famílias dos presos e, por vezes, construir túneis para auxiliar a fuga dos detidos, decide assaltar o Hospital Rawson no dia do pagamento de seus funcionários. Os assaltantes – em sua maioria imigrantes provenientes da Catalunha – conseguem uma boa soma de dinheiro com a operação, mas acabam matando um policial no tiroteio, o que faz com que a polícia arme um grande operativo para capturá-los. Contudo, os dias passam e a imprensa porteña veicula a possibilidade dos “terríveis bandidos” já não se encontrarem em território argentino. De fato, eles haviam atravessado clandestinamente o rio da Prata com destino ao Uruguai, alcançando, posteriormente a capital do país, Montevidéu.

Montevidéu, palco da maior parte dos acontecimentos descritos no livro, era uma tranquila cidade de aproximadamente 350.000 habitantes, que conservava ainda muitos hábitos provincianos, como a siesta. Contudo, tinha fama de ser um porto seguro para fugitivos e exilados políticos e lá os assaltantes do Hospital Rawson puderam contar com o apoio de militantes anarquistas que viviam em Montevidéu para sobreviverem na clandestinidade. Com efeito, o trânsito de militantes sociais e de foragidos políticos era intenso entre a Argentina e o Uruguai, existindo diversas redes de solidariedade entre os ácratas de ambas as margens do rio da Prata. Contudo, já se faziam sentir os efeitos do freio que os setores conservadores da sociedade buscavam impor às reformas políticas, econômicas e sociais levadas a cabo a partir de 1903, durante o primeiro mandato presidencial do político colorado José Battle y Ordóñez.

Durante a estadia em Montevidéu os anarquistas planejaram cuidadosamente o assalto ao Câmbio Messina. Porém, durante a execução houve imprevistos e falhas, o que fez com que além de não terem conseguido uma soma vultosa, ainda matassem três pessoas e ferissem várias outras durante a fuga. A sociedade ficou chocada com os acontecimentos e os editoriais dos diários conservadores exigiam da polícia e do governo a imediata prisão e deportação dos responsáveis. Era preciso “livrar o país de todos os anarquistas assassinos”. Trabalhando em conjunto com a polícia argentina, os oficiais uruguaios investigaram, descobriram e desmantelaram algumas das referidas redes de solidariedade existentes entre eles, conseguindo capturar alguns dos envolvidos nos dois assaltos.

Para reconstruir a história os autores recorreram principalmente aos jornais da grande imprensa que circulavam no período (El Día, El Diario, Tribuna Popular, etc.) e aos testemunhos dos processos judiciais que se seguiram. Estruturado como uma espécie de romance policial, a narrativa do livro é bastante envolvente e faz com que o leitor se veja quase como uma testemunha dos acontecimentos. Para isso contribuem a linguagem utilizada na reconstrução das falas dos personagens e as referências a fatos importantes da historia do país.

Apesar dos méritos do livro, há alguns pontos negativos. O principal deles é a nítida carência de uma análise de maior profundidade sobre o contexto histórico uruguaio e rioplatense no qual a ação se passou. Poderia ter sido dado um destaque maior às relações políticas entre Uruguai e Argentina e às temáticas referentes à “questão social” no contexto da reação conservadora ao battlismo. Além disso, os autores poderiam ter feito considerações sobre o anarquismo na América Latina, a influência libertária sobre o movimento operário- social uruguaio e caracterizado de maneira clara a vertente conhecida como anarquismo expropriador, à qual se filiavam os assaltantes. A ausência de um mapa de Montevidéu e de imagens na obra (principalmente fotos dos locais dos acontecimentos) prejudica a compreensão e visualização dos fatos – especialmente para os que não conhecem os locais em questão.

Contudo, essas falhas não tiram o valor do livro, que continua figurando como uma interessante leitura não apenas para os interessados na história do país vizinho, mas também para os que se dedicam à história do movimento operário-social latino-americano e do anarquismo na América Latina.

George Zeidan Araújo –  Mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected].


NEVES, Salvador; PÉREZ COUTUBRE, Alejandro. Pólvora y tinta: Andanzas de bandoleros anarquistas. Montevidéu: Editorial Sudamericana Uruguaya; Fin de siglo, 2006. Resenha de: ARAÚJO, George Zeidan. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p. 223-225, jan. / jun., 2011.

A Escrita da História | Michel de Certeau

Nesta resenha almejamos abordar os pensamentos de Michel de Certeau, os quais estão contidos no capítulo referente à Operação Historiográfica, na obra A Escrita da História. O autor argumenta que a História seria ao mesmo tempo uma disciplina, uma prática e uma escrita (CERTEAU,1982, p.66). Através destes pontos nós veremos ao longo desta análise quais seriam as concepções de Certeau sobre a História e o historiador.

Vamos neste primeiro momento efetuar uma breve apresentação do autor, segundo os pensamentos da historiadora Leila Maria Massarão. No artigo Michel de Certeau e a Pós-Modernidade: Ensaio sobre pós-modernidade, História e impacto acadêmico, Massarão destaca que Certeau fez parte da Terceira Geração dos Annales [2]. Massarão aponta para o fato de que Michel de Certeau ter sido um estudioso da religiosidade francesa dos séculos XVI e XVIII [3]. As suas reflexões sobre a multiplicidade cultural, as práticas sociais e as teorias da História foram grandes contribuições do autor para a historiografia.

No capítulo introdutório sobre a operação historiográfica podemos perceber que o historiador possui como sua função dar voz ao não – dito. Através do campo teórico-metodológico o profissional da História constrói e confere sentido a um determinado acontecimento ou artefato, o qual sendo visto fora do seu contexto não nos apresentaria uma informação relevante.

Ao analisarmos a História como uma disciplina se poderia pensar que ela faz parte de um lugar social. Segundo Certeau: “A escrita da história se constrói em função de uma instituição” (CERTEAU,1982, p. 66). O autor baseia sua argumentação no fato de que é através dos interesses da instituição que a História enquanto uma disciplina vai se organizar. Os desejos institucionais vão atuar desde a metodologia empregada, ou até mesmo na seleção das fontes, para as pesquisas a serem elaboradas. Certeau frisa em seus estudos que é necessária a utilização de uma teoria para as produções historiográficas, assim se evitando a construção de dogmas. O pensamento do autor é importante, para relativizarmos as nossas idéias sobre os nossos objetos de estudo e não criarmos em nossa escrita histórica uma tendência à produção de verdades.

Certeau nos precisa que o discurso acadêmico possui um conjunto de regras a serem utilizadas, mesmo estando essa imposição no silêncio (CERTEAU,1982, pp. 70-1). As regras são expressões da instituição e da ordem social na qual a disciplina de História está inserida. A validade de um discurso acadêmico depende da aprovação de outros historiadores (CERTEAU,1982, p. 72). A não aceitação das leis acadêmicas acaba por levar um historiador a ser marginalizado da comunidade científica, o que demonstra um ordenamento de pensamentos científicos, os quais não se devem ser negligenciados.

O autor no término da sua exposição sobre o lugar social ressalta a atividade de pesquisa. Michel de Certeau afirma que a atividade de pesquisa histórica está inserida em um lugar, no qual de acordo com os seus interesses definirá o que pode vir a ser feito e o que não é permitido ser realizado. Através destes apontamentos Certeau nos deixa claro sobre o peso que a instituição e o lugar social dos indivíduos possuem sobre a construção do discurso do historiador. Além disso, o que podemos ver seria a necessidade dos usos de técnicas e métodos científicos, para legitimarem a História como disciplina e o que nela vem a ser produzido.

Ao pensarmos sobre a História como uma prática, a argumentação de Certeau começa calcada na necessidade de uma técnica para a realização da produção historiográfica (CERTEAU,1982, p. 78). O pensamento de Certeau é ratificado através da referência, que o mesmo faz a Serge Moscovici. Para o intelectual Moscovici a história seria mediatizada pela técnica (CERTEAU,1982, p. 78). As idéias de ambos convergem na visão de que a técnica faz parte da prática do historiador. O nosso historiador realça que as maneiras de se fazer História e as técnicas por ela empregadas vão variar devido aos distintos contextos culturais, que cada sociedade poderia vir a possuir (CERTEAU,1982, p. 78).

A prática do historiador se centraria em transformar um objeto em histórico, em historicizar um elemento, o qual não sendo analisado dentro de um contexto possivelmente ficaria no espaço do não – dito. Através de Certeau vemos que a prática do historiador se assemelha a de um operário. Assim ele declara que o historiador trabalha sobre um material, o que teria como objetivo transformar ele em História. O processo de manuseio do material deve obedecer a regras estabelecidas pela academia, e por último caberia ao historiador realizar o transporte do seu produto do campo cultural para o histórico. A descrição da prática muito se assemelharia à ação de um metalúrgico, como Certeau comparou em seus escritos (CERTEAU,1982, p. 79).

Em linhas gerais caberia à pratica do historiador a articulação entre o natural e o cultural e a seleção de suas fontes com as quais ele pretende trabalhar. Contudo, é importante pensar que o próprio recorte da documentação está sujeito às ações do lugar social onde o individuo está inserido (CERTEAU,1982, p. 81-2).

Na visão de Michel de Certeau a História como disciplina necessitaria de adotar uma perspectiva interdisciplinar. A História buscaria segundo o autor por modelos e conceitos de outras áreas, criticando-os, experimentando-os e assim controlando o que poderia estar coerente e o que estaria equivocado (CERTEAU,1982, pp. 88-9). Assim, através da ação das instituições a prática do historiador também possui um limite dado pela disponibilização de documentos e métodos para os seus estudos.

A História como uma escrita depende da passagem do que o historiador realizou em sua prática, para uma elaboração de um texto histórico. Esse processo ocorreria pela própria relação com o limite, a qual a atividade histórica possui. Para Michel de Certeau a história enquanto uma escrita está submetida a uma ordem cronológica do discurso, a uma arquitetura harmoniosa do texto e ao fechamento do artigo ou livro, mesmo que se acredite em uma pesquisa histórica, a qual nunca se esgote em suas possibilidades de estudo (CERTEAU,1982, p. 94).

A escrita da História faz parte de uma prática social, pelos pensamentos de Certeau. Para o autor ela está controlada pelas práticas, as quais são frutos de diversos interesses do lugar social. Assim, uma das funções da História enquanto uma escrita estaria na sua função de passar valores e assumir um caráter didático. Certeau argumenta que a escrita acaba por fazer a história, como também por contar histórias, sendo assim de interesse ao caráter de ensinamento, para a sociedade (CERTEAU,1982, p. 95).

O autor reflete sobre as várias formas de discurso existentes: o literário, o lógico e do historiador. Michel de Certeau frisa que o discurso histórico pretende possuir um conteúdo verdadeiro (verificável), na forma de uma narração, para se ter validade (CERTEAU,1982, p. 101). Uma das formas de conferir uma legitimação a um argumento seria através da citação. Esta modalidade indicada anteriormente leva o citado à categoria de referencial, para dar credibilidade as suas idéias. Não podemos esquecer que há um comprometimento nos estudos históricos, com aquilo que pode ser verificado e atestado cientificamente.

A escrita da História, na visão de Certeau, seria a ação do: “conteúdo” sobre “a forma” (CERTEAU,1982, p. 105). A visão se baseia na construção e desconstrução, a qual faz parte do cotidiano da operação historiográfica, na qual o conceitual vem dar um amparo a exposição do conteúdo, que é hegemônico na maioria dos textos. Logo, o texto é o lugar do discurso histórico, da delimitação de um recorte espacial e temporal, para ser analisado.

Vemos que a escrita histórica não é feita unilateralmente pelo historiador, mas sim em coletivo, já que é fruto da validação acadêmica e das relações com as idéias de nossos pares. Além disso, a escrita histórica é fruto das vivencias do profissional da História, as quais suas idéias perpassam ao texto devido às escolhas existentes dele e do lugar social no qual está inserido.

Podemos concluir que como disciplina a História está submetida ao contexto social na qual está situada. Sendo vista como prática, ela possuiria um conjunto de técnicas, que normatizariam a operação historiográfica. Ao seguirmos as normas estabelecidas, daríamos credibilidade à produção de uma pesquisa histórica. Assim como a prática, vemos que a escrita possui leis, para legitimarem a sua validade acadêmica. Após as leituras sobre Certeau podemos perceber que a escrita da História não pode ser fruto de apenas desejos pessoais sem uma relação com o lugar social onde estamos inseridos. Nossos escritos necessitam possuir uma relevância para a sociedade, se for almejado receber um reconhecimento de nossos pares, pela nossa produção do saber.

Notas

2. Ver parágrafo 12 do artigo: Michel de Certeau e a Pós-Modernidade: Ensaio sobre pós-modernidade, História e impacto acadêmico. Acessado: 04/05/09. Capturado do site: http://www.klepsidra.net/klepsidra24/certeau.htm

3. Ibidem, parágrafo 15.

Referências

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.

Referências de site

MASSARÃO, Leila. Michel de Certeau e a Pós-Modernidade: Ensaio sobre pós-modernidade, História e impacto acadêmico. In: Klepsidra. Publicado Originalmente em 1999. Acessado: 04/05/09. Capturado do site: http://www.klepsidra.net/klepsidra24/certeau.htm

Carlos Eduardo da Costa Campos – Licenciando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador PIBIC/CNPQ do Núcleo de Estudos da Antiguidade – UERJ, sendo orientado pela Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido NEA/PPGH/UERJ. O referido investigador atua na linha de pesquisa Religião, Mito e Magia no Mediterrâneo Antigo.


DE CERTEAU, Michel. A Operação Historiográfica. In: A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. Resenha de: CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.6, p. 211-214, jan. / jun., 2010.

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Uma História Rompida: Roma Antiga e Ocidente Moderno | Aldo Schiavone

A tradução pela Edusp de Uma História Rompida, livro do renomado acadêmico italiano Aldo Schiavone, deve ser comemorada por todos aqueles interessados no desenvolvimento dos estudos do mundo antigo em nosso país. Schiavone é um dos mais importantes membros do renomado grupo de historiadores da antiguidade e arqueólogos ligados, entre 1974 e 1980, ao Seminário de Estudos Clássicos do Instituto Gramsci, na Itália. A produção dos membros de tal grupo é das mais importantes para os estudos da história social e econômica da Roma Antiga, sendo muito influente, inclusive, nos programas de pósgraduação em História no Brasil. Porém, pela ausência de traduções para o português (ou mesmo espanhol ou inglês) de suas obras, tais autores continuam distantes dos estudantes da graduação. Portanto, essa tradução é um excelente início para a solução deste problema. Ademais, Uma História Rompida é um livro com todos os ingredientes para se tornar um clássico, pois possui uma tese inovadora, inteligente e potencialmente polêmica.

A origem do argumento do livro está na antiga discussão acerca da crise e do fim do Império Romano – tão antiga quanto o fascínio que mundo mediterrânico clássico exerce sobre estudiosos e diletantes na área. Não é mera coincidência que a primeira grande obra da moderna historiografia ocidental seja uma monumental tentativa de resolução desta questão, História da Decadência e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon.

Entretanto, o questionamento acerca do fim do mundo antigo tem sofrido metamorfoses ao longo dos últimos cem anos de rupturas e transformações historiográficas. A concepção modernista de que o a Idade Média teria sido um longo intervalo entre épocas de desenvolvimento simétrico, a Antiguidade e Modernidade, ruiu. Por um lado, a antropologia econômica, principalmente a partir de Karl Polanyi, mostrou a diversidade da realidade econômica entre as diferentes sociedades humanas. Por outro, a partir de Moses Finley, boa parte da historiografia anglo-saxã dedicada à história econômica e social do mundo romano rechaçou veemente a possibilidade de comparação quantitativa ou qualitativa entre as economias modernas e a economia romana.

Além disso, a própria idéia de ruptura entre o mundo antigo e o início do mundo medieval foi severamente questionada por estudiosos especialistas na Antiguidade Tardia, como Peter Brown. Schiavone não é insensível a tais problematizações. Contudo, acredita que a antiga questão mantém sua validade. Se realmente as economias antiga e moderna são incomparavelmente distintas, isso não significa que, dentro de sua própria lógica, a economia romana não possa ter conhecido um desenvolvimento significativo. Se realmente a antiguidade tardia demonstra linhas de continuidade importantes com o mundo romano, isso não significa que o colapso do mundo romano não seja uma realidade sensível e uma catástrofe histórica de dimensões monumentais.

Schiavone inicia a obra demonstrando uma sensibilidade ambígua entre os membros elite imperial no século II d.C.: percebia-se o presente como uma época de ouro nunca antes alcançada, ao mesmo tempo em que não se tinha maiores perspectivas de desenvolvimento para o futuro – o qual seria na melhor das hipóteses um presente continuado. Isto é, o apogeu do Império Romano foi vivido como tal por sua elite, e inexistia qualquer perspectiva de progresso, de expansão de tal desenvolvimento. Esta é, para Schiavone, a questão central: mais do que entender o fim do mundo romano, Schiavone pretende entender o momento anterior, o momento da estagnação deste mundo. Seu questionamento se centra no porquê de o mundo romano não ter se desenvolvido em outro sentido que não o da estagnação, no porquê de o mundo romano não ter tomado seu próprio caminho rumo ao desenvolvimento econômico, social e tecnológico e no porquê de apenas após a catástrofe de sua queda, a Europa, a partir da Baixa Idade Média, tomou tal caminho. Com estas questões como foco, Schiavone traça uma longa trajetória argumentativa.

Sua primeira preocupação é com a caracterização da economia romana. Schiavone concorda com a percepção de Finley de que a economia no mundo antigo está “invisível”, e acredita que duas hipóteses podem explicar isto: o fato de o trabalho no mundo antigo estar associado a uma realidade oprimida e discriminada, já que associada ao trabalho compulsório; e o fato de que a economia não existia enquanto campo autônomo da realidade. Porém, ressalta Schiavone, a distância da realidade econômica romana para suas congêneres modernas não invalida a possibilidade de estudo econômico da antiguidade. O sistema romano também tem suas regras de funcionamento e podemos tentar encontrar seus códigos descritivos. Com esta afirmação, Schiavone pretende, ao mesmo tempo em que concorda em aspectos fundamentais com Finley, distanciar-se da ortodoxia finleyriana. Certamente a economia romana não pode ser descrita em termos modernistas, mas isto não significa que ela dever ser descrita em termos minimalistas (isto é, destacando-se as ausências e os limites de tal economia).

Schiavone, para fugir da dicotomia entre as posturas primitivista e modernista, propõe uma abordagem interessantíssima para a economia romana: caracterizá-la como uma economia dual. Dois setores interdependentes, mas autônomos, conviviam: um setor ligado à economia camponesa e outro ligado aos grandes circuitos mercantis. É neste segundo setor que Schiavone identifica um desenvolvimento a partir do século III a.C., que encontrará seu apogeu entre os séculos I a.C. e II d.C. Este desenvolvimento está intimamente ligado à conquista imperial. A guerra, segundo Schiavone, constitui-se uma atividade produtiva para o sistema romano, a mais eficiente das atividades produtivas. As novas oportunidades de enriquecimento estimularam mudanças na mentalidade econômica das elites romanas. Porém, este desenvolvimento e esta transformação na mentalidade econômica não tiveram as mesmas características das transformações similares na Europa moderna que deram origem à Revolução Industrial. Isto por que Capital Comercial e Capital Industrial nunca se associaram decisivamente no mundo romano. O desenvolvimento mercantil nunca estimulou uma transformação qualitativa de grande envergadura na produção. Esta cisão determinava que todo crescimento que a economia romana pudesse experimentar seria portadora de uma deficiência genética. A economia romana só poderia experimentar o que Schiavone chama de “desenvolvimento fechado” ou “crescimento sem modernização”.

Mas qual seria a razão para tal cisão? Schiavone acredita que a relação entre três aspectos estruturais da realidade antiga nos dão a explicação: a difusão da escravidão-mercadoria, a desvalorização do trabalho e da materialidade transformadora e o déficit mecânico (tecnológico) nos processos produtivos. Schiavone se preocupa em mostrar a interrelação entre os três aspectos evitando determinações unilaterais entre eles. Desta forma, a inexistência de desenvolvimento tecnológico produtivo não é conseqüência da expansão da escravidão. Da mesma forma, a desvalorização do trabalho não é a causa do desenvolvimento da escravidão, nem vice-versa. Porém, estes três processos certamente se retro-alimentam. Schiavone acredita que a origem destes aspectos fundamentais, que cingiram o desenvolvimento filosófico, cultural e social do desenvolvimento econômico e tecnológico no mediterrâneo antigo, foram os resultados particulares, na longa duração, desta região para as conseqüências da Revolução Neolítica. Ao se verem desobrigados do trabalho cotidiano para garantirem sua subsistência, os membros da elite social desta região voltaram às costas para o mundo da produção. “A nova civilização formava-se no seio do primado do eu interior e do laço político em detrimento dos aspectos materiais da vida” (p.228). O mundo material era relegado ao plano da condição servil, sendo a liberdade constituída na socialização da polis. A vida da elite era política e não econômica. A difusão da escravidão, a recusa do trabalho e ausência de máquinas criaram, a partir desta condição, um ciclo vicioso dificilmente rompível sem uma verdadeira ruptura de época.

Porém, Schiavone não acredita que tal ruptura fosse impossível. Em sua opinião, os romanos poderiam ter encaminhado sua história por uma via diferente desta do crescimento sem modernização que acabaram por tomar. O momento de expansão imperial e consequente crescimento econômico, nos séculos finais da era antes de Cristo, teria sido um “raro momento de criatividade” na história, no qual as limitações estruturais da sociedade romana poderiam ter sido superadas por importantes transformações históricas. Muitos historiadores “modernistas” identificaram os grupos médios italianos em ascensão no século final da República como burgueses. Esta identificação certamente é incômoda por seu teor anacronizante, mas Schiavone crê que tais grupos possuíam um caráter progressista (mesmo que não similar ao das futuras burguesias européias). Uma possível “revolução municipal” poderia ter levado estes grupos a uma posição dirigente, o que poderia ter levado a história romana para caminhos bem diversos. Porém, estes grupos nunca chegaram a se organizar em torno de um programa efetivo. No momento em que esta possibilidade parecia mais próxima, no século I a.C., as grandiosas conquistas imperiais deslocaram o eixo do império para fora da Itália. A vitória de Augusto e suas soluções para a reorganização imperial tiveram, para Schiavone, um caráter de “revolução passiva” contra os grupos médios que poderiam ter assumido um caráter progressista. “Perdida a ocasião de uma virada, o sistema romano chegou, no espaço de poucos séculos, ao ponto extremo que podia atingir” (p.282).

Alguns meandros da trajetória argumentativa de Uma História Rompida merecem alguma atenção e crítica. Schiavone aborda três elementos fundamentais de interpretação da economia mediterrânica clássica, a escravidão-mercadoria, a desvalorização do trabalho e o déficit tecnológico de uma maneira inteligente: negando determinações unilaterais. Estes três elementos, portanto, se fortaleceram historicamente através de uma retro-alimentação e possuem suas origens nas conseqüências tipicamente mediterrânicas da Revolução Neolítica. De certa forma, Schiavone está ecoando, aqui, a ideia de Marx e Engels de que a divisão do trabalho surge com a divisão entre trabalho material e trabalho espiritual, que permite à consciência “emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. ‘puras’ ”[2]. No entanto, é impossível não interrogar as razões deste desenvolvimento específico da história mediterrânica frente às novas condições materiais impostas pela Revolução Neolítica. Por que, ao se ver livre do trabalho cotidiano, a elite desta região voltou às costas aos aspectos materiais da vida e se focaou nos laços políticos? Schiavone não levanta tal questão. Talvez o caminho para a resposta desta pergunta esteja em pensar justamente a relação do campesinato com o corpo político da cidade-estado, em um primeiro momento (como Ellen Wood ressalta), e as potencialidades da expansão e exploração imperial enquanto atividade econômica, em um segundo momento (aspecto presente mas pouco explorado em um capítulo anterior ao desta discussão, em Uma História Rompida).

Outro ponto que merece destaque no livro é o uso do conceito gramsciano de “Revolução Passiva”. Não devemos, certamente, criticar a utilização de conceitos pelo simples fato de não terem sido forjados para a realidade para o qual foram cunhados. A crítica ao uso de conceitos deve ser feita pela análise concreta deste uso pelo historiador, e é isso que pretendo. Schiavone descreve um processo no qual o grupo dominante tradicional, em crise, amplia suas bases (inclusive espacialmente, com a inclusão de elementos provinciais em suas fileiras) e reconstrói o sistema político, freando assim a ascensão de um grupo fortalecido com as transformações e que era o elemento “progressista”, modernizante daquela sociedade. As revoluções passivas são, para Gramsci, uma ferramenta da modernização capitalista. Desta maneira, a utilização do conceito por Schiavone vai de encontro frontal ao pensamento gramsciano, pois a revolução passiva augustana que ele descreve teria na verdade exatamente impedido um processo de modernização que o próprio Schiavone arrisca chamar de protocapitalista. A Revolução Passiva é um conceito útil para pensarmos realidades nas quais o grupo “progressista”, modernizante, se alia às classes dominantes tradicionais a fim de implementar transformações necessárias ao seu pleno desenvolvimento sem necessitar de uma perigosa aliança com os elementos populares. Nada disso acontece no modelo de explicação de Schiavone para a crise da República, muito pelo contrário.

De qualquer forma, a tese de Schiavone é tão inovadora quanto polêmica – e, acima de tudo, intrigante. Esta é a grande qualidade de Uma História Rompida: é um livro que estimula novas perguntas e, portanto, novas pesquisas. Não é preciso concordar com o argumento central do livro para reconhecer esta qualidade na obra e sua “candidatura” a futuro clássico tanto no tema da queda do Império Romano quanto da historiografia econômico-social do mundo antigo.

Notas

2. Karl Marx e Friedrich Engels. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p.35-36.

José Ernesto Moura Knust – Mestrando no Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal Fluminense.


SCHIAVONE, Aldo. Uma História Rompida: Roma Antiga e Ocidente Moderno. Tradução de Fábio Duarte Joly e revisão técnica de Norberto Luiz Guarinello. São Paulo: Edusp, 2005. Resenha de: KNUST, José Ernesto Moura. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.6, p. 205-210, jan. / jun., 2010.

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Production of Presence: What Meaning Cannot Convey | Hans Ulrich Gumbrecht

Interpretar o mundo é desencantá-lo. Desencantá-lo é afastar sua presença. Essa foi a tarefa das “ciências humanas” [2] desde a sua disciplinarização: quebrar toda e qualquer “magia”, explicando a relação dos homens com o real através de conceitos racionalmente desenvolvidos. Hans Ulrich Gumbrecht, “Albert Guérard Professor” no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Stanford, é mais conhecido no Brasil pelo livro Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo, publicado em português no final do século passado [3]. Sua obra teórica – Production of Presence: What Meaning Cannot Convey – no entanto aprofunda e esclarece muito dos objetivos de seu trabalho anterior.

Gumbrecht volta-se contra aquilo que chama de “centralidade inconteste da interpretação”, sequela de um legado metafísico e cartesiano que, ao desprivilegiar a “presença” [4] das coisas, foca-se excessivamente no “sentido” do mundo social. O resultado, argumenta o autor, é um crescente desejo de presença nas sociedades ocidentais, expresso nas artes, na cultura de massas e no fascínio pelo passado. O objetivo principal de seu texto, ressalta, é defender “uma relação com as coisas do mundo que possa oscilar entre efeitos de presença e efeitos de sentido” (p. XV). Não se trata, pois, de abandonar todas as prerrogativas científicas das humanidades, mas de criticar frontalmente a proeminência hermenêutica de seus mais variados campos disciplinares, reintroduzindo neles uma reflexão sobre o papel da experiência estética. O ponto de partida dessa reflexão deve ser a ideia heideggeriana de ser-no-mundo, contrária à oposição cartesiana entre sujeito e objeto, qual deseja superar.

É possível mapear, em diferentes períodos da história, momentos nos quais se estabeleceram “culturas de sentido” e momentos nos quais prevaleceram “culturas de presença”. Através desses tipos ideais (de claro sabor weberiano) o professor de Stanford identifica o processo pelo qual o ocidente transformou-se numa cultura baseada no sentido [5]. No pensamento medieval, acreditava-se que espírito e matéria fossem inseparáveis, tanto em seres humanos quanto em todos os outros elementos da criação divina (p. 25). O catolicismo, expressão cultural arquetípica do período, é marcado por rituais de produção de presença divina, como a transubstanciação, enquanto que o conhecimento tipicamente considerado legítimo era revelado à (e não produzido pela) humanidade (p. 80-81). A ação humana não possuía ingerência nem no mundo, nem em sua ordem do tempo, a qual se expressava independentemente num movimento escatológico. O tempo andava; os homens eram carregados por ele (p. 118-119).

A introdução do conceito de cogito permitiu traduzir o humano como “excêntrico”, único, numa relação puramente intelectual com o mundo. É com o lento estabelecimento do papel ativo do self que a capacidade de produzir conhecimento e, por fim, acumulá-lo ou mesmo superá-lo, tornou-se pensável. De um mundo em estado de envelhecimento, obcecado com a ameaça e o medo de perda do saber, como era o medieval, passava-se à possibilidade da agência humana e, com ela, a compreensão da mudança não mais como algo moralmente ilegítimo. “Finalmente, um sujeito que acreditava produzir conhecimento também se sentia capaz de esconder e manipular conhecimento” (p. 27). Os homens agora poderiam fazer história.

Com René Descartes, o primeiro a tratar a existência humana ontologicamente como res cogitans, subordinam-se não apenas a materialidade dos homens, seus corpos, mas todas as coisas do mundo enquanto res extensae da mente. A cultura ocidental, a partir dessa tradição, pode ser compreendida como a “perseguição do corpo e a repressão de todos os efeitos de presença relacionados a ele” (p. 33). Por volta de 1700, a Querelle des anciens et des modernes começou a institucionalizar a prioridade da dimensão do tempo sobre a do espaço, numa cultura já não mais baseada na presença real, como fazia o medievo, mas na predominância do cogito. O espaço, extensão que existe entre os corpos, não se constitui então como dimensão primordial (p. 83); o tempo, numa cultura baseada no sentido, oferece esse papel [6].

Visto dessa maneira, o iluminismo foi o processo pelo qual a distinção entre material e espiritual – permitindo a associação inevitável entre consciência e tempo – institucionalizou o que o Gumbrecht denomina “visão metafísica de mundo” (p. 34-49). Com ela, o espaço público representado pela política parlamentar torna-se, para a modernidade, tão central e emblemático quanto o ritual da Eucaristia para as culturas medievais (p. 85). De uma cultura baseada na presença, navegamos para uma terra sob o império do sentido. O efeito final, explica-nos, é a consolidação da “interpretação-mundo” como componente central do pensamento do ocidente.

Essa “visão de mundo metafísica”, esse querer ir além, produziu, no entanto, um sentimento de “perda do mundo” (p. 49) responsável por cavar sulcos no edifício moderno que o constituiu. No final do século XIX, essas fissuras já eram mais do que visíveis na literatura, na arte e na filosofia ocidentais. Para um homem agora condenado, por sua visão metafísica, a observar a si mesmo no ato de observação (p. 39), parecia impossível mediar duas instâncias fundamentais da existência: a primeira delas, a “experiência” ou apropriação do mundo pelos conceitos; a segunda, a “percepção” ou apropriação do mundo pelos sentidos.

Wilhelm Dilthey acreditou que – excluindo das ciências humanas (Geisteswissenschaften) a dimensão perceptiva – poderia submeter a experiência vivida à interpretação e, com ela, à atribuição de sentido. De modo paradoxal, ensina Gumbrecht, a crise da metafísica e do campo hermenêutico provocou o entronamento da filosofia interpretativa no centro das recém formadas Geisteswissenschaften. “O preço que as humanidades tiveram de pagar com essa manobra foi óbvio: a perda de todo tipo de referência não cartesiana ou não empírica” (p. 43). Transformamonos ao passo de nosso desenvolvimento disciplinar, como a história da história do século XX demonstra, nos representantes mais bem acabados da perda do mundo, do cansaço provocado pelo império do sentido e do mal estar da não-presença.

A crítica de Gumbrecht ao estado de coisas nas ciências humanas – pese o fato de que ele reedita muito das respostas do Romantismo às concepções iluministas de saber [7] – diz respeito direto a diversos desafios da historiografia e do ensino da história. Como fazer eco às demandas pelo passado? De que maneira podemos escrever com densidade e, ao mesmo tempo, atingir um grande público? Como, enfim, narrar esse passado sem sufocar nossa audiência com múltiplas atribuições de sentido? O autor não nos dá respostas específicas, como uma espécie de mapa a ser seguido, mas oferece alguns insights portentosos.

Ao escrever sobre os futuros possíveis para as ciências humanas, Gumbrecht defende a possibilidade de redesenhar as fronteiras de suas disciplinas, em especial as “da estética, da história e da pedagogia” (p. 93). Um cuidado estético, por um lado, pode possibilitar à historiografia a presentificação de mundos passados, com “a aplicação de técnicas que produzam a impressão (ou, de fato, a ilusão) de que esses mundos passados podem se tornar tangíveis novamente” (p. 94). Dessa forma, a história ganha por sua vez contornos pedagógicos mais apurados, dentro da “tarefa proeminente de confrontar estudantes com a complexidade intelectual, o que significa que gestos dêiticos – ou seja, amostras da condensação ocasional dessa complexidade – são no que devemos realmente nos focar” (p. 95).

Para atingir esse tipo de experiência estética precisamos lançar mão de estratégias literárias que endossem efeitos sinestésicos, que apelem para os sentidos, para o entendimento do mundo através da percepção. Nestes momentos efêmeros em que o passado parece se tornar presente podemos captar, subitamente, uma articulação espacial com aquilo que não mais aqui está. Gumbrecht chama a isso de “epifania”, um resultado direto da coexistência sempre tensa entre efeitos de sentido e efeitos de presença (p. 111).

Esse tipo de fenômeno busca corroborar um “desejo de presença”. Está em concordância com a experiência contemporânea do tempo, sua assimetria entre “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” [8] , típica de um “cronótopo” que não mais aceita o historicismo (e a idéia de que se pode “aprender com a história”) como referência epistemológica. “O desejo de presentificação”, escreve o professor de Stanford, “pode ser associado com a estrutura de um presente largo dentro do qual queremos reter o passado e no qual o futuro está bloqueado” (p. 121). Ao contrário da maioria dos acadêmicos, Gumbrecht parece não ver nada de errado em ceder a essas demandas: de fato, elas proporcionariam uma oportunidade de “estar em sincronia (sync) com as coisas desse mundo”.

As técnicas de presentificação, aplicadas em conformidade a um novo e inacessível futuro e a um passado que já não mais queremos deixar escapulir, tendem, sem dúvida, a enfatizar a dimensão do espaço. É apenas através do espaço que podemos ter a ilusão de tocar, experimentar e sentir objetos que estão associados com um tempo que já se foi. A tendência à espacialização (spatial turn?) demonstra, para Gumbrecht, as limitações da historiografia como meio textual no “business de fazer o passado presente” (p. 123). Neste sentido, podemos compreender seu livro anterior, Em 1926, como uma experiência que visava testar esses limites.

Caberia ao historiador presentista diminuir os efeitos de sentido – aprender a “ficar quieto por um momento” (p. 136) – e, assim, investir em formas literárias que promovam uma experiência de imersão em seus leitores. Conjurar o passado, esboçar o “clima” de outro tempo, oferecer a alteridade como modo de administrar novos elementos ao espaço de experiência – estas viriam a ser algumas das propostas desse novo tipo de historiografia [9].

Não seria o apelo de Gumbrecht um mero reflexo intelectual do presente perpétuo e invasor, do qual nos fala François Hartog? O “cronótopo pós-historicista” não pode ser pensado como nada mais do que um regime de historicidade presentista10? Não corremos o risco de, fascinados pela presença do passado, sem problematizarmos a noção de memória (noção que Gumbrecht parece de fato evitar), tornarmo-nos, como Ireneo Funes, incapazes de pensar? É realmente possível “ficar quieto”, isto é, tentar não atribuir sentido, sem, através do silêncio, comunicar alguma coisa? Por fim, hesitando em atribuir sentido ao passado não perderíamos também a possibilidade de articular qualquer sentido de futuro? Como dizia Oscar Wilde, a beleza, a verdadeira beleza, some ao primeiro contato com a expressão intelectual. A tarefa de explicar o mundo e, ao mesmo tempo, manter o seu encantamento, continua, como há duzentos anos, à nossa frente.

Enquanto isso, o endurantismo inerente às tentativas de presentificação não deixa de, no silêncio de perguntas não postadas, insistir em comunicar uma resposta, mesmo que poética…

Though they go mad they shall be sane,

Though they sink through the sea they shall rise again;

Though lovers be lost love shall not;

And death shall have no dominion.

Dylan Thomas

Notas

2. Gumbrecht utiliza aqui o termo anglo-saxão “humanities and arts”, que ele relaciona diretamente ao equivalente germânico Geisteswissenschaften. Traduzi ambas as expressões para o português como “ciências humanas”.

3. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo. Editora Record, Rio de Janeiro. 1999.

4. De acordo com o autor: “a palavra „presença‟ não se refere (pelo menos não na maioria das vezes) a um relacionamento temporal, mas espacial, do mundo com seus objetos. Algo que é „presente‟ é tangível às mãos humanas, o que implica que, inversamente, possa ter um impacto imediato em corpos humanos.” (p. XIII)

5. Ou, no vocabulário do autor, desenvolveu uma atitude “metafísica” – isto é, uma atitude (tanto pessoal quanto acadêmica) que “atribui um valor superior ao sentido de um fenômeno do que a sua presença material”. (p. XIV)

6. Como no conceito de “fluxo de consciência”, criado pelo psicólogo William James, operado narrativamente por James Joyce, Dostoievsky e Marcel Proust (dentre outros clássicos) e teorizado fenomenologicamente por Husserl.

7. Ver a crítica de KRAMER, Lloyd. Searching for something that is here and there and also gone. History and Theory. 48. Fevereiro de 2009. pp 85-97.

8. Gumbrecht foi aluno de Reinhard Koselleck e aqui utiliza as categorias esboçadas em KOSELLECK, Reinhard. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Contraponto/PUC-Rio.

9. Como explica na sua experiência literária Em 1926: “O livro pergunta em que medida e a que custo é possível fazer presentes novamente, em um texto, mundos que existiram antes de o autor nascer – e o autor está perfeitamente consciente de que esta tarefa é impossível”. GUMBRECHT. 1999. p 14.

10. Ver HARTOG, François. Régimes d´historicité. Présentisme et expérience du temps. Paris: Seuil, 2003.

Rodrigo Bragio Bonaldo – Mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected].


GUMBRECHT, Hans Ulrich. Production of Presence: What Meaning Cannot Convey. Stanford: Stanford University Press, 2004. Resenha de: BONALDO, Rodrigo Bragio. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.5, p. 132- 140, jul. / dez., 2009.

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The Fall of Rome and the end of civilization | Bryan Ward-Perkins

O Império Romano caiu? A pergunta, feita para uma pessoa educada que não fosse ligada à área de História, receberia, hoje, um inequívoco “sim”, talvez mesmo um “mas é claro!”. Não apenas isso, mas a queda do Império Romano teria nítidas implicações catastróficas: seria a vitória do barbarismo sobre a civilização, que lançaria um mundo inteiro em uma Idade das Trevas.

Provavelmente, essa pessoa educada acabaria por se surpreender ao saber de um dos momentos historiográficos mais significativos das últimas décadas do século XX, a “revolução da Antiguidade Tardia”, detonada pela obra do historiador irlandês Peter Brown, que abandonou totalmente a “visão negra” do colapso da civilização romana durante o século V (o termo “Antiguidade Tardia” designa, grosso modo, um período histórico que vai de c. 250 até c. 800). Para Brown e seus seguidores, que operam em âmbito quase que exclusivamente anglo-saxão, a Antiguidade Tardia não é uma “Idade das Trevas”, mas sim uma época de novos, interessantes e criativos começos – do cristianismo, do judaísmo rabínico, do islamismo, do Império Bizantino, do reino dos Francos, da historiografia eclesiástica.

A nossa pessoa educada surpreenderia- se ainda mais com o trabalho de outros historiadores, como o canadense Walter Goffart. André Piganiol, historiador francês, escreveria, pouco depois da Segunda Guerra Mundial, sobre a queda do Império Romano: “A civilização romana não morreu de forma natural. Foi assassinada” (p. 173). Goffart, em 1980: “o que nós chamamos de „queda do Império Romano‟ foi um experimento imaginativo que saiu um pouco dos eixos‟ (p. 9). Dito de outra forma: os invasores e conquistadores de Roma não foram assassinos de uma civilização, mas – tirando um ou outro episódio lamentável – foram cooptados pelo sistema imperial romano, que preservaram na medida do possível.

Ninguém discute a importância do fenômeno historiográfico da Antiguidade Tardia, nem a competência de Peter Brown. Mas a ótica proposta por ele para a interpretação deste período pode ser questionada, e assim o é, embora apenas em um período recente tais críticas sejam mais evidentes – e tais críticas acabam por revelar um certo mal-estar de alguns historiadores que participaram de tal movimento, sob uma certa ótica (no entanto, cabe ressaltar que a obra de Goffart não recebeu a aceitação que a de Brown teve).

Um marco tão bom quanto qualquer outro para designar o momento em que o “paradigma da Antiguidade Tardia” foi questionado de maneira decisiva é o lançamento do premiado livro de Bryan Ward-Perkins em 2005: “A Queda de Roma e o fim da civilização”, que será tema da presente resenha.

Ward-Perkins é um arqueólogo, especializado na história urbana da Itália a partir do século IV até a ascensão de Carlos Magno. Crescendo em Roma (seu pai, John Ward-Perkins, também arqueólogo, era diretor da Escola Britânica de Roma), observava os impressionantes feitos técnicos da civilização imperial, feitos que seriam impossíveis de ser imitados por séculos a fio, graças a uma ruptura econômica e social brutal. Ele é, segundo suas próprias palavras, “alguém que está convencido que a vinda dos povos germânicos foi deveras desagradável para a população romana, e que os efeitos a longo prazo da dissolução do Império foram dramáticos” (p. 10.). Neste livro, ele pretende comprovar a justeza de sua visão.

O livro se divide em duas partes: na primeira (composta por três capítulos), “a queda de Roma”, o autor elabora uma pequena história narrativa das invasões bárbaras (Por “bárbaros”, designa-se aqui os povos germânicos, sem conotação de valor). dos séculos IV e V; na segunda (composta por quatro), “o fim de uma civilização”, Ward-Perkins elenca evidências materiais para comprovar o terremoto econômico e social que o fim político do Império Romano causou.

De certa forma, na primeira parte o autor viaja por mares já navegados – aliás, navegados à exaustão, como ele não deixa de ressaltar, mencionando a lista, elaborada por A. Demandt em 1984, de 210 motivos para a queda do Império Romano propostos através dos séculos (aliás, divertidíssima: entre os motivos, encontram-se “invasões bárbaras” e “declínio econômico”, mas também “feminismo”, “capitalismo”, “comunismo”, “prostituição” e “neurose cultural”). Na verdade, Ward-Perkins pouco traz de inovador aqui. A equivalência material dos exércitos germânicos e romanos, a série de guerras civis que enfraqueceu, de maneira decisiva, o Império Romano do Ocidente, as invasões bárbaras, a resistência e sobrevivência do Império Romano do Oriente, as revoltas camponesas ocorridas no norte da Gália no começo do século V: todos são temas de pesquisa bastante recorrentes, e que foram tratados de maneira mais extensa e aprofundada em outros contextos.

Contudo, a primeira parte é necessária, posto que, na segunda parte, Ward-Perkins trata dos resultados da queda política do Império Romano no Ocidente, que para ele são catastróficos. O tom aqui passa a ser marcadamente polêmico: “Atualmente, está profundamente fora de moda afirmar que qualquer coisa parecida a uma ‘crise’ ou ‘declínio’ ocorreu no final do Império Romano, que dirá dizer que uma ‘civilização’ entrou em colapso e seguiu-se uma ‘idade das trevas’. A nova ortodoxia é que o mundo romano, tanto no Oriente quanto no Ocidente, foi lentamente transformado, de uma forma essencialmente indolor” (p. 87).

Para se contrapor a esta ortodoxia, Ward-Perkins apresenta um rico conjunto de fontes materiais do período, que iluminam cantos inesperados da sociedade romana. O principal conjunto de fontes com que Ward-Perkins trabalha é a cerâmica, por uma razão bastante pragmática: os potes sobrevivem em grande quantidade, relativamente intactos, e mesmo fragmentos podem apresentar uma quantidade de dados que permitem ao estudioso chegar a conclusões bastante sofisticadas sobre a sociedade que criou tal artefato.

Comparando a cerâmica da Inglaterra romana com a da Inglaterra anglo-saxã (admitidamente um caso extremo, tendo em vista que tal província se situava na periferia do mundo econômico romano, centrado no Mediterrâneo), o resultado é bastante surpreendente: a cerâmica romana é de alta qualidade, estandardizada, produzida em enorme quantidade (quantidade essa que só vai ser superada no final da Idade Média), tendo centros produtores em todas as provinciais imperiais e, principalmente, mesmo o mais miserável camponês tinha acesso a estes potes. No começo do século sete, um pequeno lorde anglo-saxão foi enterrado em Sutton Hoo, em meio a todas as suas riquezas. O conjunto é bastante extraordinário, mas um achado é bastante banal, tanto que pouco atrai atenção: uma garrafa de cerâmica, de alta qualidade, importada do continente. A simples existência dessa garrafa traz duas implicações bastante graves: 1) Uma cerâmica de alta qualidade, artigo comum na época romana, tornara-se um artefato tão precioso que acompanhava o seu dono para o túmulo; 2) A Inglaterra anglo-saxã não possuía um centro de produção de cerâmica sofisticada no século VII.

Tal colapso econômico pode ser medido, segundo o autor, não apenas pelo impacto sofrido pelos homens, mas – de forma tão divertida quanto significativa – pelas consequências enfrentadas pelas vacas. O colapso econômico na Inglaterra, derivado do colapso político, também causou prejuízos para a população bovina da província. A partir de ossos de vaca encontrados em sítios da Inglaterra pré-romana, romana e pós-romana, Ward-Perkins verifica que as vacas do primeiro período tinham uma altura média de 1,15 m, do segundo de 1,20 m e do terceiro 1,12 m; o que aconteceu depois da queda do Império Romano, ao menos na Inglaterra, não foi uma mera recessão, mas uma verdadeira regressão a um estado econômico mais precário até do que o existente antes da conquista romana.

Culturalmente, o impacto não foi menor. A antiga Catedral de São Pedro de Roma, erguida no séc. IV, tinha mais de 10.000 metros quadrados de área; no século VI, a S. Agnese fuori-le-mura tinha apenas 2.500 metros quadrados (Deus possuía acomodamentos notavelmente mais espartanos depois do fim do Império Romano do Ocidente). Diversos objetos encontrados em vários sítios arqueológicos demonstram, juntamente com os inúmeros grafites de Pompéia – amiúde pornográficos – que a população romana era, em grande parte, alfabetizada; pedras de catapulta recuperadas em Perugia, local de um cerco na época das guerras civis de Augusto e Marco Antônio, são repletas de mensagens curtas elaboradas por várias mãos, na esperança de não apenas esmagar a cabeça dos oponentes, como também desmoralizá-los. O exemplo mais pornográfico, citado por Ward-Perkins, é de um onde está escrito “Lúcio Antônio [líder da guarnição de Perugia], seu careca, e Fúlvia [esposa de Marco Antônio e presente no cerco], mostrem-nos seus traseiros” (p. 158). Esta atitude implica que um número significativo de soldados, e não apenas Lucio Antônio e Fúlvia, eram capazes de ler tal educada missiva, e que o conhecimento da escrita era suficientemente difundido na sociedade romana que acabava se tornando banal. Comparar-se-á tal situação com a educação no século VI: a maioria dos soberanos dos primórdios da Idade Média, incluindo o próprio Carlos Magno, eram totalmente iletrados, que se dirá do grosso da população (p. 166-167).

Vacas esfomeadas, soberanos analfabetos, apetrechos miseráveis, igrejas apertadas: tal compêndio de evidências permite a Ward-Perkins afirmar, tranqüilamente, que o final do Império Romano trouxe consigo o final de uma civilização, tal qual Ward-Perkins concebe o termo, isto é, “sociedades complexas e o que elas produzem (p. 167.)”.

Segue-se um capítulo de discussão historiográfica, na qual Ward-Perkins dialoga com a escola da Antiguidade Tardia. Ward-Perkins constata as duas principais características desta escola: uma nítida preferência pela abordagem do oriente do mundo romano (incluindo-se aí o Império Persa e as sociedades do Cáucaso e da Arábia) e uma preocupação central com o fato religioso da sociedade. Embora o autor veja importantes conquistas provindas desse movimento, ele manifesta uma preocupação que tal foco acabe distorcendo a visão que temos da sociedade romana nos séculos IV-VI de uma forma semelhante à que acabava impondo um declínio econômico às províncias orientais do Império, mas com sinal trocado: agora, o período seria de um crescimento social e cultural em todas as regiões imperiais, o que não é o caso. Da mesma forma, ele manifesta uma preocupação com os rumos que a historiografia da Antiguidade Tardia acaba tomando: no recente Guia da Antiguidade Tardia, Ward-Perkins procurou, em vão, por um verbete sobre o “prefeito pretoriano”, o mais alto posto civil do Império Romano nesse período, mas não achou nada entre “pornografia” e “reza (prayer, no original)”.

Ward-Perkins conclui seu livro defendendo o direito do historiador de usar termos difíceis, como “civilização” e “declínio” – cabe lembrar aqui que os historiadores brasileiros que estudam esse período não precisam fazer uma defesa desse direito: Norma Musco Mendes escreveu uma obra intitulada “Sistema político do Império Romano do Ocidente: um modelo de colapso”. O autor levanta a hipótese que a não-utilização do termo “declínio” seja por um receio de acabar realizando um julgamento moral, mas é possível fazer a objeção de que a palavra “declínio” não necessariamente implica uma opinião quase que metafísica acerca de uma dada sociedade (coisa que não acontece com o termo “decadência”).

Com essa obra, Ward-Perkins realizou algo muito importante: desafiando uma nova ortodoxia acadêmica, abre novos caminhos de pesquisa e faz rever conceitos arraigados no ambiente universitário. Tão polêmico quanto valioso, é uma obra-prima.

Gabriel Requia Gabbardo – Mestrando em História da UFRGS. E-mail: [email protected].


WARD-PERKINS, Bryan. The Fall of Rome and the end of civilization. Oxford: Oxford University Press, 2005. Resenha de: GABBARDO, Gabriel Requia. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.5, p. 141- 145, jul. / dez., 2009.

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América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização | Maria T. T. Lemos

O livro América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização, organizado por Maria T. Toríbio Lemos (Professora da UERJ), tem o objetivo central de realizar um amplo estudo sobre a cultura latino-americana. Fruto das pesquisas realizadas pelo Núcleo de Estudos das Américas (NUCLEAS) e pelo Laboratório de Estudos das Américas (LEPAS) do Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenados pela Professora Toríbio Lemos e pelo Professor Paulo Seda, reúne oito artigos de diferentes pesquisadores e de distintas abordagens da história da América Latina, unidos entre si pela preocupação com as questões atinentes à identidade latino-americana. Em síntese, os textos revelam a inquietude e a particularidade de cada pesquisador ao debruçar-se sobre as adversidades e problemas presentes nas sociedades sulamericana e caribenha “como a violência, a pobreza, a educação, a exclusão social, as grandes diferenças sociais entre ricos e pobres, além dos problemas políticos e econômicos dos diversos países” (p.7).

A obra se desdobra em dois blocos, Sociedades tradicionais e Modernidade e globalização, que dão ao leitor a dimensão espaço-temporal sobre a qual os estudos se lançam. O primeiro bloco, constituído por três artigos, transita “pelas práticas culturais e representações das sociedades tradicionais”, trazendo à luz discussões acerca da alteridade, exercício do poder, mitologia, cerimônias e festividades; já o segundo bloco, composto por cinco textos, transcende os aspectos primários das sociedades ditas “tradicionais”, atingindo “a complexidade das estruturas modernas das sociedades ocidentais” (p.7), abordando as relações da religião e do poder, a efemeridade do tempo presente, a educação e a pluralidade cultural, a economia global e, por fim, o contexto da América Latina no processo das migrações internacionais.

Após essa concisa apresentação da obra, antes de olhar minuciosamente cada artigo, convém lembrar que a questão da identidade mostra-se fundamental nos estudos culturais, na medida em que examinam os contextos dentro e por meio dos quais tanto os indivíduos quanto os grupos constroem, negociam e protegem sua identidade. Desse modo, os estudos culturais valem-se das interpretações que defendem a identidade como uma resposta para algo externo e diferente dela, a alteridade. Notadamente, o reconhecimento dessa identidade como algo que não é somente construído, mas também dependente da existência de um outro, abriu um lócus para grupos marginalizados e oprimidos historicamente objetarem e renegociarem as identidades que lhes foram impostas no processo de dominação. Este entendimento de identidade é a chave para a leitura da obra ora resenhada.

Ao longo do primeiro capítulo, Mundo Novo e Paraíso Terrestre: O Transe dos Viajantes na Conquista da América, Alexandre Belmonte expõe os encontros e confrontos entre culturas a partir de fontes como os registros dos viajantes (exploradores e conquistadores), da cartografia européia do século XV e de obras literárias. Destarte, contextualiza o período, discorrendo sobre a complexidade e as dificuldades em se realizar uma viagem de longo curso para o “Mundo Novo”, sobretudo pela onerosidade de cada aventura e pela necessidade de se conseguir financiamentos que, em geral, provinham do Estado, do clero ou da ascendente burguesia, quando não por todos ao mesmo tempo. Além disso, segundo o autor, havia no imaginário europeu a herança da mentalidade medieval que fomentaria uma perspectiva pessimista em relação às viagens, representada pelos mitos do além-mar.

Todavia, o eixo central deste capítulo começa a ser delineado a partir do retorno dos viajantes para a Europa, visto que “o retorno evocava uma „operação escrituraria‟ […] em que a alteridade era definida por um corte que marcava a diferença” (p.16). Eis o ponto. Para Belmonte não interessa tanto os modos de ser e viver dos ameríndios, pois “são muito mais interessantes as próprias possibilidades discursivas dos europeus sobre a alteridade representada pelos indígenas do Mundo Novo do que o modus vivendi destes” (p.17). Assim, o olhar europeu transcrito nos relatos e narrativas dos viajantes, permite ao pesquisador observar as cosmovisões e os imaginários que colocaram o europeu em contato com a alteridade cultural de forma abrupta e total.

A constatação do alto grau de organização e desenvolvimento dos Astecas, feita pelos espanhóis quando da chegada ao México, é explorada pelo professor Paulo Roberto Gomes Seda. Este os ordena a partir da influência da religião praticada pelos Astecas do período arcaico e pelos remanescentes da civilização Tolteca. Guerra, religião e poder entre os Astecas, assim chama-se o segundo capítulo, no qual o autor mostra com muita perspicácia que o contato, o conflito e a conjugação de costumes, tradições, ritos e mitos, ocorridos na peregrinação dos “bárbaros” Astecas para as regiões das cidades do lago, onde aconteceu o choque com as tribos que ali viviam, transformaria definitivamente a história desses povos, alçando os Astecas à condição de herdeiros das brilhantes civilizações do México central, tornando-os senhores de um vasto império.

O cerne do trabalho de Seda imperiosamente se coloca na exposição da organização e do exercício do poder entre os Astecas, ocorrida progressivamente a partir da religião e de uma dualidade por ela forjada que, em menos de dois séculos, intensificou-se e espraiou-se para todos os âmbitos da vida pública e privada deste povo, altamente ritualístico e crente. De um lado, o culto aos deuses guerreiros Huitzilopochtl e Tezcatlipoca, respectivamente, o grande deus solar e o deus do céu noturno, das trevas e do vento da noite; de outro, a incorporação dos deuses da terra e da água das civilizações sedentárias: Tláloc, deus camponês; e Quetzalcoatl, deus padroeiro dos sacerdotes. O paradoxo assinalado pelo autor incide justamente na questão da religião, pois esta mesma construção identitária, religiosa, dicotômica, que elevou os Astecas à hegemonia do Altiplano central, também foi, segundo ele, um dos fatores capitais para a derrocada dos Astecas frente aos conquistadores espanhóis, uma vez que essa religiosidade “contribuiu para modificar profundamente a hierarquia de valores reconhecidos por uma civilização dividida em si mesma pela dualidade de suas origens. […] dualidade presente, inclusive, diante dos conquistadores (deuses ou humanos), levando à posição vacilante do imperador e da própria sociedade” (p.53).

Dando continuidade às questões religiosas, mitológicas e ritualísticas das sociedades tradicionais, o estudo de caso intitulado Mitos e ritos andinos – Wana kawri Waka – Percursos entre as tradições orais e a contextualização dramatizada da história, apresentado pela professora Maria Teresa Toríbio B. Lemos, encerra o primeiro bloco do livro. Neste terceiro capítulo, a autora descreve aspectos das práticas culturais e representações simbólicas da antiga sociedade quéchua em homenagem ao deus Wana Kawri, considerado pelos camponeses da região andina “um deus protetor e reprodutor, que fertiliza o solo e multiplica a produção naquela região árida dos Andes” (p.56). Nesta parte, Lemos acentua a importância dos mitos para essas sociedades, distinguindo-os do rito e da cerimônia, e busca no relato de Felipe Guaman Poma de Ayala – um dos principais cronistas do Vice-Reino do Peru no século XVII – a recuperação histórica das narrativas míticas e ritualísticas quéchuas, fontes valiosas para “o conhecimento desses dois universos em confronto, o da sociedade nativa quéchua e o do dominador espanhol na América” (p.59). Ao fim e ao cabo, Maria Lemos discorre sobre a estratégia praticada pelos espanhóis na conquista da região andina e aponta para a importância do cristianismo, da evangelização mediada pela aproximação e identificação das divindades indígenas, como poderoso mecanismo de aculturação desses povos. Dessa forma, à medida que se desqualificavam os deuses indígenas, impunha-se legitimamente o Deus cristão e, por conseguinte, a cultura européia. Para além destas questões, o estudo se justifica pela tenacidade desses mitos que, ainda hoje, são reproduzidos, ressignificados e reelaborados pelo imaginário e pela memória coletiva dessas comunidades durante as festas agrícolas e folclóricas na região andina do Peru, Bolívia e Equador.

O quarto capítulo inaugura o segundo bloco e traz como principal discussão as relações de poder, expressadas, neste caso, pela instituição religiosa e/ou pelas “autoridades” religiosas. Sob o título Religião e Poder na América Latina: Um breve estudo sobre a religião como forma de controle social no Brasil, Gilberto Angellozi recorda que as relações de poder se estabelecem em todos os níveis, formal ou informal, por um determinado período ou perpetuamente. Igualmente, enfatiza que violenta ou não, a coerção não deixa de existir e aquele que a exerce ou faz uso dos seus mecanismos adquire poder sobre o outro e isso lhe dá prazer. Ocorre que, para o autor, o poder religioso passa por esse mesmo princípio e “o exercício do poder se estabelece ainda hoje como forma de libertação, especialmente nos meios religiosos, onde os fundamentalismos, sejam de direita ou de esquerda, tendem a reproduzir estruturas de dominação” (p.70). Nesse momento, o leitor tem a falsa impressão de que determinados segmentos religiosos, menos radicais, não estariam submetidos aos mecanismos do poder e aos sistemas de coerção anteriormente descritos como presentes “em todos os níveis” da vida social. É possível que essa afirmação derive da própria influência religiosa do autor que, entre outras formações, é teólogo. Talvez por isso acredite internamente em alguma forma de religião não dominadora. Afora esta crítica pontual, o estudo revela-se desvelado de uma ideologia cristã. Aliás, notoriamente, Angellozi apresenta a religião como fonte de poder e dominação, assinalando no desrespeito ao próximo, ao diferente, um dos principais causadores dos problemas sociais do passado e do presente, pois “sempre que alguém usa alguém para garantir o alicerce de um projeto pessoal, a figura do outro desaparece. Ocorre assim o desrespeito pela vida, que se traduz em destruição da natureza e das relações sociais e políticas” (p.80).

No quinto capítulo intitulado Pós Modernidade – O Sólido se Desmancha – O Eterno é Provisório e o Futuro é Presente, Raimundo Lopes Matos propõe uma análise prospectiva da Pós-Modernidade e ressalta a importância da mudança de paradigma ao observar as suas influências e conseqüências na vida do homem nos seus múltiplos domínios. Antes de tudo, o autor conceitua e situa historicamente a Pós-Modernidade, tarefa que lhe ocupa boa parte do texto. Também utiliza outros conceitos fundamentais para o entendimento deste tempo presente como, por exemplo, a globalização e a desterritorialização. Conclui afirmando que todos, em todos os âmbitos, estão envolvidos na cultura do consumismo, do veloz, do instantâneo e do on-line, “celebrando uma nova época”, “resultando em uma pluralidade de fragmentos complexos e um fluir de uma presentidade inarredável” (p.94).

Luiz Henrique Nunes Bahia, Maria Cristina Leal e Célia Linhares, escrevem conjuntamente o sexto capítulo denominado Debate sobre o pluriculturalismo na Gestão da Educação Pública: Estado do Rio de Janeiro e Rede Municipal de Nova Iguaçu. Dentro da conjuntura atual, os autores entendem que há uma pluralização da cultura urbana como resultado direto do confronto de múltiplas mensagens e ideais dispersos na sociedade globalizada. Essa dinâmica é projetada para as relações de poder e dominação de grupos e instituições, onde os pesquisadores exploram “os contrastes e tensões entre culturas políticas manifestas nos depoimentos de professores e demais segmentos da comunidade escolar” (p.99). Especificamente, nesta pesquisa, fez-se a análise comparativa entre duas regiões e contextos distintos: a rede pública estadual de ensino (RJ) e a rede pública municipal (Nova Iguaçu/RJ). Analiticamente, observaram que a pluralidade cultural encontrada hoje nas cidades mantém as hegemonias do centro decisor maior, mas conserva lugares ainda de natureza local que permitem entender as formas hegemônicas de poder.

O sétimo capítulo, As negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio e o papel do Mercosul, de Aléxis Toríbio Dantas, esboça sucintamente a evolução do Mercosul e suas ações nas negociações recentes, de maneira especial, frente à OMC, sublinhando a importância dos acordos regionais para os países emergentes, garantia de maior poder de barganha destes países perante os Estados Unidos e à União Européia. Já no último capítulo, intitulado Movimentos sociais da América Latina e a construção de novas identidades, Maria Luzia Landim trata da questão imigratória no nordeste do Brasil e reflete sobre as dinâmicas geradas nos processos de adaptação e estabelecimento físico destas pessoas, especialmente, no que concerne aos sentimentos de perda de identidade, imediatamente compensados pela procura ou criação de novos contextos e retóricas identitárias.

Finalmente, se, pelo exposto, pode-se ter uma noção sobre a questão identitária na América Latina, o conjunto de artigos apresentados mostra a amplitude e a pluralidade de temas que emergem desse recorte temático, bem como deixa muito claro que este não é um debate estanque, inexorável, mas sim uma discussão que se renova e se amplia a cada dia. Portanto, o principal mérito do livro reside na proposta abrangente e aberta dos autores de trazerem à luz assuntos polêmicos sem a pretensão de oferecer respostas definitivas, sem dúvida, instigando o leitor mais inquieto a buscar suas próprias conclusões.

Fábio Bastos Rufino – Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestrando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Bolsista CAPES.


LEMOS, Maria Teresa Toríbio (org.). América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. Resenha de: RUFINO, Fábio Bastos. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.5, p. 146- 151, jul. / dez., 2009.

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Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos | Ira Berlin

O professor Ira Berlin, da Universidade de Maryland, Estados Unidos, já ganhou diversos prêmios em razão de seus livros publicados em 1975 e 1999, intitulados, respectivamente, Slave without masters: the free negro in the Antebellum South e Many thounsands gone: the first two centuries of slavery in Mainland North America. O mesmo aconteceria com a publicação de outro livro em 2002, e traduzido para o português em 2006, Gerações de Cativeiro, que foi agraciado pela Associação Histórica Americana. Com essa publicação, o professor americano prossegue suas pesquisas na área da história dos Estados Unidos e do mundo Atlântico, enfocando o trabalho escravo.

No livro Gerações de Cativeiro, Berlin trabalha novamente com a escravidão nos Estados Unidos, dando ênfase no escravo, pois, como afirma, apesar da relação entre proprietários e cativos ser desigual, tendo estes pouco poder se comparado aqueles, havia um embate entre ambos. Os escravos eram ameaças constantes aos seus senhores e, portanto, era necessária uma contínua relação de disputas entre estes dois grupos, sendo que, às vezes, o resultado desta era a realização de algumas “concessões” em prol dos cativos. Apesar da proibição de casarem-se, muitos escravos formaram famílias; apesar de não poderem ter religião própria, criaram-se igrejas à revelia dos senhores; apesar de não poderem ter propriedades, muitos cativos adquiram posses. Deste modo, neste livro o escravo é o centro da narrativa mesmo sem esquecer outros atores sociais como os proprietários de escravos, os brancos livres, negros livres ou libertos e indígenas.

O criativo título Gerações de Cativeiro expressa a outra ideia que permeia a análise no livro: a perspectiva de mudanças. Mudanças nas gerações em cativeiro, nas gerações de comunidades escravas, as quais, como a própria palavra geração expressa, foram influenciadas pelas que as precederam e diferenciadas das posteriores. Assim, Berlin demonstra a descontinuidade, as variações e opõe-se a uma história linear dos quase 300 anos de escravidão nos Estados Unidos bem como a uma história que retrata os escravos como “socialmente mortos”, sem enraizamento, isolados no Novo Mundo trazendo à tona a ideia do escravo como ativo, como sujeito na sua própria história e na sua geração.

Observando o escravo por este viés, Berlin percebe, portanto, a escravidão como algo negociado e não simplesmente imposto e mantido através da violência. No centro deste processo está o trabalho desses cativos. Todavia, Berlin não se concentra somente na história do trabalho; ele amplia seus estudos para as relações familiares, religiosas e para o próprio vocabulário desenvolvido pelos grupos de africanos e de seus descendentes que se estabeleceram nas plantações de tabaco, arroz, índigo e nas cidades. Embora não oficiais, essas práticas formularam instituições escravas, as quais se diferenciavam da dos seus senhores.

Conectando o título com a divisão do livro, Berlin intitula e separa seus capítulos baseando-se também na concepção de gerações, as quais organizaram-se e estabeleceram-se a partir do final do século XVI até meados do XIX, com o término da escravidão nos Estados Unidos. Há, portanto, as gerações da Travessia, da Plantation, Revolucionárias, de Migrantes e, por fim, da Liberdade. Nesses capítulos, além da observação de diversas formas de relações dos cativos entre si e entre estes e seus superiores, há a análise das variações dessas relações referentes aos espaços onde estas foram constituídas. Desta forma, nos capítulos iniciais, as narrativas têm como palco as treze colônias americanas enquanto, no fim do livro, temos os Estados Unidos como nação e dividido, principalmente, entre norte e sul.

As Gerações da Travessia são os grupos iniciais de africanos trazidos para a América. Berlin nomeia esses como crioulos do Atlântico, uma vez que eram um grupo de origem não somente africana, mas também europeia. A formação desse grupo deu-se pelo contato ocorrido em virtude do estabelecimento de feitorias e pontos comerciais europeus na costa oeste da África a partir do século XV. Desta relação surgiram os crioulos, um terceiro grupo, o qual não era reconhecido nem como europeu e nem como africano. Esses crioulos eram extremamente hábeis no comércio, pois tinham maleabilidade e conhecimentos para ir e vir tanto no mundo dos europeus como no dos africanos. A despeito das vantagens comerciais e linguísticas, esse aspecto limítrofe do crioulo trazia dificuldades na sua identificação com determinados grupos detentores do poder e, por conseguinte, na obtenção de proteção por parte destes. Deste modo, questões como crimes, dívidas ou má sorte poderiam significar escravização.

Os crioulos do Atlântico, em diversas situações, desempenhavam as atividades diárias lado a lado com os europeus, os quais, em alguns casos, trabalhavam como servos. Aqueles puderam continuar e expandir sua cultura nascida no continente africano. Diferentemente do que aconteceu com as gerações posteriores, a travessia do Atlântico não desfez os laços entre os cativos: simplesmente, deslocou-os para outra localidade. Além disso, participavam das atividades religiosas europeias e tinham mais possibilidades de acesso a terras bem como a alforrias e ao casamento do que as gerações posteriores.

Com a introdução das plantations essa pequena prosperidade vivenciada pelos crioulos do Atlântico desapareceu e a segunda geração de escravos surge: estamos na Geração da Plantation. Apesar das especificidades regionais, o que compreende toda esta segunda geração é a introdução das grandes plantações e a rigidez e a brutalidade com que o sistema escravista se estabeleceu, haja vista que, neste momento, temos a necessidade de maior produção em menos espaço de tempo visando à exportação. Com a plantation, almejava-se o lucro, custe o que custar. Essa geração é o retrato que pintamos da escravidão como tal, com trabalho árduo e castigos corporais mais acentuados, com altas taxas de mortalidade, desequilíbrio entre homens e mulheres, poucas alforrias e famílias.

Não eram mais os crioulos do Atlântico, os escravos trazidos da África. Saiu-se do litoral e mirou-se nos nativos do interior do continente. Assim, a língua crioula deixou de ser corrente para dar voz às africanas do interior. O contato entre trabalhador o escravo africano e o europeu esvaiu-se, aumentando a distância entre brancos e negros.

Nesse segundo capítulo, o autor trabalha com a escravidão na região norte dos Estados Unidos. A priori, a ideia comum é considerar os estados do norte como abolucionistas e livres de escravos. Mas, Berlin demonstra que esta região quase chegou a vias de tornar-se uma sociedade escravista, ou seja, uma sociedade em que este tipo de mão de obra é o alicerce central da produção econômica e todas as relações sociais estão construídas em torno no modelo patriarcal de senhor e escravo. Todavia, a expansão da escravidão freou antes desse processo ocorrer como aconteceu na região sul.

Após o estabelecimento da Geração da Plantation, vêm, no final do século XVIII, as Gerações Revolucionárias, acompanhando e vivenciando as revoluções por igualdade e liberdade que borbulhavam tanto na Europa quanto na América. A Revolução Americana desestruturou internamente a organização da sociedade escravocrata de então, sendo que não havia mais uma uniformidade entre os proprietários de escravos, os quais estavam divididos entre legalistas e patriotas, e nem havia mais um Estado forte para a proteção da instituição escravista. Deste modo, esse período de conflitos internos gerou uma válvula de escape para os cativos.

Além da guerra, a ideologia, que permeava essa e as outras revoluções contemporâneas, também foi extremamente significativa para a erosão do poder dos senhores escravocratas. Apregoava-se, tanto na Declaração Americana de Independência como na Declaração Francesa dos Direitos do Homem, a igualdade universal. Portanto, surgiam questionamentos como: se todos eram iguais como uns poderiam ser subjugados a outros? Além disso, havia outra questão: os americanos desejavam a independência por estarem sendo escravizados pelos países metropolitanos, mas como poderiam almejar sua liberdade se continuavam a escravizar em suas terras? Esse paradoxo fortaleceu ainda mais os escravos.

Com o fim das revoluções, os escravos iriam vivenciar outro momento: a expansão das grandes plantações para o interior do sul dos Estados Unidos, criando as Gerações de Migrantes. Acompanhando a plantation, seguiram mais de um milhão de escravos vindos de outras regiões do país, haja vista que o tráfico Atlântico de africanos havia sido extinto em 1808. Esse mercado interno de cativos aqueceu-se entre os anos de 1810 a 1861 quando as terras do interior sulista foram protagonistas das plantações de algodão e de açúcar.

Enquanto no sul as relações escravocratas enrijeciam-se e se fortaleciam com os lucros das plantações, no norte, após as ondas revolucionárias, mudanças estavam em prosseguimento. Leis para a gradativa abolição da escravatura estavam sendo elaboradas e aplicadas. Em algumas regiões, a abolição aconteceu mais rápido do que em outras, apesar de a escravidão, em certos locais, perdurar com outras formas e nomes, porém com o mesmo conteúdo e objetivo. Além disso, a liberdade para os negros não significava igualdade no norte e muito menos proteção contra investidas dos brancos sulistas, haja vista que a temática da reescravização esteve sempre presente na vida desses indivíduos no século XIX. Mesmo sendo estados considerados livres e sendo refúgio e esperança de muitos ex-excravos, negros livres e cativos sulistas fugidos, o norte auxiliou na recaptura e envio de escravos para os seus senhores sulistas.

Mas, a escravidão não viveria para sempre. A partir de meados do século XIX, a possibilidade da liberdade com o fim da escravidão estava ganhando mais força. A abolição da escravatura em diversos países e o fortalecimento do movimento abolicionista no norte dos Estados Unidos eram os carros chefes desse movimento. Assim, chega-se às Gerações da Liberdade.

Com a guerra civil entre o norte e o sul, iniciada em 1861, os escravos viram o sistema escravista em colapso e aproveitaram essa fragilidade. Contudo, em seus primeiros momentos, a decepção dos escravos quanto à liberdade e a salvação vinda do norte foi grande. A guerra, diferentemente do que geralmente aprendemos, não tinha inicialmente motivos abolicionistas, como expõe Berlin. Os soldados federais não estavam lutando pelo fim da escravidão; a maioria nem se importava com estas questões. Esta relação mudou somente quando os sulistas passaram a utilizar os cativos nas fortificações e na luta contra os soldados da União. Indo de encontro com as políticas federais, os soldados do norte começaram a também fazer uso dos escravos e a não mais devolver os cativos fugidos aos seus donos sulistas. Com o passar da guerra, o governo necessitou de mão-de-obra, o que favoreceu as fugas escravas, que só aumentavam. Para o fugitivo, o envolvimento com o serviço militar significava não só liberdade, mas também a possibilidade de ter acesso à cidadania. Entretanto, foi somente em 1863 que o presidente Lincoln declarou todos os cativos dos estados rebeldes do sul como livres. Portanto, vale ressaltar que a abolição aconteceu quase dois anos depois do início da guerra, demonstrando que esta não era a intenção inicial do governo de Lincoln.

Porém, a escravidão não solapou somente com as forças externas dos federais. Dentro das plantações, os escravos também resistiam, protestavam e se rebelavam. Assim, com o fim da guerra civil, a instituição escravista estava destruída e a nova lógica em jogo era a da liberdade. A construção dessa nova sociedade era um misto de antigos e novos desejos. A história desses libertos não poderia ser elaborada ser as marcas e as vivências da escravidão. E, segundo Berlin, a herança da escravidão são essas marcas e vivências que delinearam e delineiam a formulação da vida em liberdade e do direito de ser cidadão.

O livro Gerações de Cativeiro é um trabalho de síntese histórica uma vez que o autor percorre desde as feitorias na África do século XV até as batalhas da Guerra de Secessão nos Estados Unidos no século XIX. Neste caso, ser um trabalho de síntese não significa um termo depreciativo, ao contrário. Berlin consegue entrelaçar num livro de poucas centenas de páginas diversas pesquisas menores sobre este extenso período. Os dados que apresenta não são retirados de fontes primárias e sim, dessas pesquisas que estão expressas nas notas no fim do livro. Devido ao grande número de trabalhos citados, verificamos uma grande carga de leitura e formidável capacidade de organizá-la de forma coerente e concisa por parte do autor. Porém, além desses trabalhos de outros pesquisadores, Berlin apresenta os resultados das suas próprias pesquisas anteriores resultando num livro dos quase 300 anos de escravidão nos Estados Unidos com questionamentos e apontamentos revisados e inseridos nos atuais estudos da história social da escravidão.

Ana Paula Pruner de Siqueira – Mestranda pela Universidade Federal de Santa Catarina, financiada pela CAPES. E-mail: [email protected].


BERLIN, Ira. Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Record, 2006. Resenha de: SIQUEIRA, Ana Paula Pruner de. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.3, p. 287-292, jan. / jun., 2009.

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Inmigración española, familia y movilidad social en la Argentina moderna. Una mirada desde Mar del Plata (1890-1930)

En este trabajo la autora se propone abordar un aspecto crucial para el campo de los estudios migratorios: la problemática de la integración económico social de los inmigrantes en los lugares de destino. Este tema no es analizado unívocamente en términos de “ruptura” o de “continuidad”, sino que es examinado a partir de la noción multidimensional de “recreación”. Por ello, la permanencia de rasgos étnicos particulares y el mantenimiento de los lazos familiares pueden presentarse, según Da Orden, como la vía más segura para la integración en el contexto social de acogida.

El análisis se concentra en dilucidar el rol que jugaron, para la llegada y la posterior inserción de los inmigrantes españoles en una ciudad intermedia como Mar del Plata, las redes sociales primarias, la fortaleza de los vínculos familiares y las aspiraciones de ascenso social. A través del estudio de las redes sociales primarias (y atendiendo a su carácter dinámico tanto en el lugar de origen como en el de destino de los inmigrantes), Da Orden intenta rescatar la complejidad y las peculiaridades que adquiere la construcción de las identidades étnicas en un contexto social cambiante como lo fue la ciudad de Mar del Plata a principios del siglo XX.

El planteo metodológico propuesto por la autora deja entrever una impronta sociológica y antropológica que aspira a combinar, a través de una “vía intermedia”, una perspectiva macro estructural con un enfoque relacional y micro analítico, atendiendo tanto a los sujetos y a sus experiencias de vida, como a la observación de los datos agregados relativamente amplios.

A partir de una presentación breve del tema a abordar, cada capítulo o apartado de análisis se inicia con una serie de preguntas direccionales y concluye con una síntesis  explicativa que logra responder de manera sólida a sus cuestionamientos iniciales. El desarrollo de cada tópico es llevado adelante con un ejemplar trabajo de interpretación y entrecruzamiento de fuentes de diverso tipo. Estas incluyen, entre fuentes documentales editas e inéditas: fotografías, planos catastrales del Partido de General Pueyrredón y de la ciudad de Mar del Plata, diarios y periódicos del período (El mensajero leones, El trabajo, La vanguardia, entre otros), entrevistas a inmigrantes españoles, fuentes españolas (en particular del ayuntamiento de Sorbas y del municipio de Pola Gordon), documentación de la Sociedad Española de Socorros Mutuos de Mar del Plata, datos del Primer, Segundo, Tercer y Cuarto Censo Nacional de Población de la República Argentina, Libros de Matrimonios y de Nacimiento del Registro Provincial de Mar del Plata y Expedientes Correccionales del Juzgado de dicha ciudad, entre otras. Además, la autora incorpora la reconstrucción de redes parentales y socio-ocupacionales (a partir de las fuentes nominativas disponibles: Libros de Nacimientos, Libros de Bautismos y Libros de Matrimonios de las parroquias marplatenses y españolas) que permiten un acercamiento gráfico al proceso de conformación y mantenimiento de los vínculos sociales primarios entre los inmigrantes españoles de Mar del Plata.

El libro se encuentra dividido en cinco capítulos y un epílogo, además de una introducción en la que María Liliana Da Orden expone la temática y los supuestos teóricos y metodológicos que guían su trabajo. En el primer capítulo incorpora una breve descripción sobre la realidad de procedencia de los inmigrantes, para acercarse al bagaje con el que debieron arribar a la ciudad de Mar del Plata. La España de fines de siglo XIX fue un contexto caracterizado por profundas transformaciones signadas por el avance del capitalismo en la economía local. Si bien este proceso afectó al campesinado español, también le brindó nuevas oportunidades a la economía doméstica a partir del ejercicio de algún trabajo temporario u oficio lejos del campo. Esto deja entrever, según la autora, la existencia de una tradición migratoria previa a los desplazamientos hacia América. En el segundo capítulo, realiza un análisis de las formas de asentamiento y de los mecanismos migratorios que utilizaron los españoles para arribar a Mar del Plata. A partir de ello, estudia pormenorizadamente el papel crucial que tuvieron las redes sociales primarias, y en particular, la familia en la elección de Mar del Plata como lugar de destino. También incorpora, a través del seguimiento de casos particulares, una revisión sobre el fenómeno de la “reemigración” y del “efecto de arrastre” que implicaba cada nuevo desplazamiento dentro del Continente Americano. El tercer capítulo ahonda en las posibilidades que ofrecía el mercado de trabajo de Mar del Plata y el importante papel que jugaron las relaciones sociales primarias para el arribo y la inserción laboral en la ciudad. También destaca la estrecha relación que se percibe entre la movilidad ocupacional (y las posibilidades de ascenso social que ella posibilita) y el matrimonio exogámico. El cuarto capítulo, se enfoca en estudiar las diferentes formas de adaptación que los inmigrantes españoles pusieron en juego una vez establecidos en la ciudad de Mar del Plata. A través del análisis de las pautas residenciales, la elección conyugal y las formas de crianza de los hijos, la autora subraya la importancia crucial que tenían los vínculos familiares y la permanencia de los particularismos como un medio fundamental para la adaptación al nuevo contexto social de residencia. En el quinto capítulo, se concentra en la esfera “visible” de la colectividad española residente en Mar del Plata. A partir del estudio del movimiento asociativo, se sumerge en las formas de adaptación ligadas al ejercicio del poder y la política en la nueva sociedad. Según Da Orden, estas asociaciones favorecieron la integración en mayor medida que los gremios o los partidos políticos y al mismo tiempo, unificaron a los españoles conservando sus costumbres y especificidades como colectivo. Por último, el epílogo retoma las principales conclusiones desarrolladas a lo largo del trabajo, ligadas al tema de la integración.

El trabajo incorpora valiosos aportes del debate que, en décadas pasadas, signó al campo de los estudios migratorios. Esta discusión, protagonizada por aquellos investigadores que privilegiaron las dimensiones “plurales” de los fenómenos migratorios (es decir, la permanencia de los particularismos étnicos) y por aquellos estudiosos proclives a destacar las favorables condiciones de asimilación y de homogenización de los inmigrantes en la sociedad de acogida, es retomada y en gran medida superada por el análisis de María Liliana Da Orden.

En este estudio de caso, centrado en la ciudad de Mar del Plata, la autora combina aportes de ambas posturas y demuestra que pueden ser utilizadas y revalorizadas conjuntamente, enriqueciendo los trabajos realizados en un nuevo contexto historiográfico. Si bien retoma puntos claves de la agenda de estudio germaniana, como lo fueron los matrimonios, el lugar de residencia, el movimiento asociativo, la participación política y las posibilidades de ascenso social, también incorpora el concepto de etnicidad y de grupo étnico, para hacer referencia a la permanencia de las especificidades sociales y culturales del colectivo español. De esta manera, la autora presenta un nuevo esquema de interpretación en el que la persistencia de las peculiaridades étnicas se demuestran primordiales para la integración de los  inmigrantes en la sociedad receptora. Creemos que esta original forma de reinterpretar un tema fundamental para el campo de los estudios migratorios y el análisis pormenorizado, a través del gran trabajo de entrecruzamiento de fuentes, se convierten en los principales aportes del libro de María Liliana Da Orden.

Este trabajo se presenta como un interesante modelo de análisis que combina exitosamente una interpretación novedosa con un consistente análisis de fuentes, lo que permite estimar positivamente la solidez de sus argumentos.

Alejandra Noemí Ferreyra – Universidad de Buenos Aires. E-mail: [email protected].


DA ORDEN, Maria Liliana. Inmigración española, familia y movilidad social en la Argentina moderna. Una mirada desde Mar del Plata (1890-1930). Buenos Aires: Biblos, 2007. Resenha de: FERREYRA, Alejandra Noemí. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.3, p. 293-296, jan. / jun., 2009.

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Microfísica do Poder | Michel Foucault

Um dos mais célebres pensadores do século XX, Michel Foucault escreveu textos que são considerados tratados na área de Ciências Humanas. Suas principais temáticas versam sobre sexualidade, poder, loucura, discurso, instituições, disciplina, vigilância… Ele não pode ser enquadrado em nenhuma categoria pré-estabelecida, pois seus trabalhos transpassam as Ciências Humanas de ponta a ponta.

O tema dos artigos, entrevistas e aulas que originaram o livro Microfísica do Poder, publicado pela primeira vez no Brasil em 1979 pela editora Graal, gira em torno da questão do poder nas sociedades capitalistas. É através da análise de dispositivos de segurança que Foucault fará o inventário da relação entre segurança, população e governo, assunto principal desta resenha.

Esse texto é uma versão da aula dada por Foucault no Collége de France em primeiro de fevereiro de 1978. O autor principia seu texto sobre governamentalidade, o último da série de XVII capítulos que constam no livro supramencionado, fazendo uma análise genealógica dos tratados sobre a arte de governar do século XVI ao século XVIII. O problema do governo havia sido remodelado no século XVI: problema do governo de si, governo das almas e das condutas, tema da pastoral católica e protestante, governo das crianças… Como governar? Como ser governado?

Esses questionamentos tiveram palco no século XVI devido a dois fatores: o movimento de concentração estatal que começava a instaurar os grandes Estados territoriais e a superar a idéia de feudalismo e, por outro lado, o movimento de dispersão e desavença religiosa encabeçado pelas Reforma e Contra-Reforma.

Foucault optou por opor a literatura emergente sobre a arte do governar a um único texto que segundo ele “do século XVI ao século XVIII, constitui um ponto de repulsão, implícito ou explícito, em relação ao qual – por oposição ou recusa – se situa a literatura governo: O Príncipe, de Maquiavel” (p. 278).

Antes de ser recusado, porém, o livro de Maquiavel foi reverenciado pelos seus contemporâneos e imediatos sucessores e retomado também ainda no início do século XIX quando desaparece a literatura da arte de governar e se coloca a questão de “como e em que condições se pode manter a soberania de um soberano sobre um Estado” (p. 278).

Nesse intervalo de tempo, porém, houve uma considerável produção de literatura anti-Maquiavel, umas claramente explícitas, outras nem tanto; livros de origem católica ou protestante. Foucault escolheu trabalhar o viés positivo dessa literatura, seus objetivos, conceitos e estratégias. Porém o aspecto negativo do pensamento de Maquiavel é o que mais salta aos olhos. Essa literatura da arte de governar vai contra um Príncipe caracterizado em Maquiavel como exterior a seu principado, transcendente, que recebe seus súditos como herança, aquisição ou conquista. Os laços que o unem aos seus súditos são de violência, de tradição; são artificiais, não existe uma ligação fundamental, jurídica, natural entre as partes. A relação, portanto, é tênue, frágil e pode ser abalada por fatores externos e internos. Nesse contexto o objetivo do exercício de poder, portanto é o de reforçar e manter os laços do príncipe com o que ele possui, com o que herdou ou adquiriu (território e súditos). É exatamente esse esquema proposto por Maquiavel que a literatura da arte do governar quer substituir.

O primeiro texto anti-Maquiavel que será analisado por Foucault é Espelho político contendo diversas maneiras de governar [minha tradução], de Guillaume de La Perrière. Foucault inicia pela análise morfológica do que La Perrière entende por governante e enfatiza que também se diz governar uma casa, um estabelecimento, uma ordem religiosa. Nessas literaturas da arte de governar, o príncipe não é o único em seu principado, como é o príncipe “maquiavélico”. A arte de governar mostra que há várias formas de governar, há várias pessoas que exercem essa função, são práticas coletivas de exercício de poder, onde o Estado é apenas mais uma modalidade. Maquiavel propõe uma singularidade transcendente do príncipe enquanto a literatura da arte de governar propõe uma pluralidade de formas de governos.

Na análise do texto seguinte de La Mothe Le Vayer, que escreveu um século depois de La Perrière, Foucault ressalta a tipologia das diferentes formas de governo que segundo Le Vayer são três: “O governo de si mesmo, que diz respeito à moral; a arte de governar adequadamente uma família, que diz respeito à economia; a ciência de bem governar o Estado, que diz respeito à política” (p. 278).

Na literatura da arte de governar há uma harmonia, uma continuidade (ascendente ou descendente) entre ética, economia e política; enquanto que na doutrina do príncipe há uma descontinuidade entre o poder do soberano e as demais formas de poder. Foucault cita, inteligentemente embasado na literatura da arte de governar, que se alguém quer governar o Estado deve antes saber governar a si, sua família, seus bens (em continuidade ascendente). E a continuidade descendente quer dizer que quando um Estado é bem governado, os pais de família sabem governar a si próprios, suas famílias, seus bens; e assim os indivíduos se comportam adequadamente. A instituição governamental que assegura a continuidade decrescente do bom governo do Estado passou a chamar-se Polícia. Inicia-se, assim, com a continuidade decrescente e a institucionalização da Polícia, uma coerção e vigilância sobre sujeitos individuais e as práticas coletivas.

O governo da família, que diz respeito à economia, é o elemento central da continuidade – seja crescente, seja decrescente. O papel essencial do governo foi mesclar em sua arte de governar a economia familiar e o exercício político, vigiando os habitantes, as riquezas e os comportamentos individuais e coletivos como um pai de família (p. 281).

Com o estudo filológico, sociológico e histórico da palavra “economia”, Foucault foi capaz de afirmar que no século XVI esse termo significava uma forma de governo, e no século XVIII será entendido como uma realidade, “um campo de intervenção do governo através de uma série de processos complexos absolutamente capitais para nossa história” (p. 282).

Foucault analisa os elementos que constituem o objeto de exercício de poder, ou melhor, quais são os encargos do governo. Há uma diferença de abordagens entre Guillaume de La Perrière, que vê o governo como aquele que conduz coisas a um fim conveniente, enquanto que Maquiavel entende que governar significa exercer poder sobre um território e seus habitantes. Há que ser explicado, porém, que para La Perrière “coisas” significam as relações sociais, quer seja entre homens, com as riquezas, objetos, instituições, recursos, território e fronteiras, costumes, hábitos, cultura, acidentes, desgraças, fome… Foucault exemplifica sobre governo de “coisas” falando sobre o funcionamento de um navio. Quem quer que seja o governante, ou qualquer outra determinação que o valha, terá de exercer seu poder sobre a nau, a carga, bem como prestar atenção no mar, se ocupar dos passageiros e dos marinheiros… “O essencial é portanto este conjunto de coisas e homens; o território e a propriedade são apenas variáveis” (p. 282).

Segundo a afirmação de La Perrière “governo é uma correta disposição das coisas de que se assume o encargo para conduzi-las a um fim conveniente” (p. 283). Essa passagem esclarece que a finalidade é intrínseca ao governo e é esta característica que o diferencia da soberania. A finalidade do exercício da soberania é o bem comum e a salvação. Sobre autoridade e soberania, Pufendorf, um autor do século XVII, cita: “Só lhe será conferida autoridade soberana para que ele se sirva dela para obter e manter a utilidade pública” (p. 283).

Para La Perrière, porém, a finalidade do governo não está no bem comum, mas sim na condução das coisas a um objetivo adequado a cada uma delas, portanto os seus fins são múltiplos e específicos. Para que atinja seus propósitos, a teoria do governo não estabelece leis aos homens, utiliza-se, pois, mais de táticas do que de leis, ou faz das leis, táticas. Não é, pois, através da lei que os objetivos do governo são atingidos.

É importante entender em que contexto pôde emergir a teoria da arte de governar no século XVI. Ela estava ligada ao aparelho administrativo monárquico territorial, ao conhecimento da ciência do Estado e estava intimamente relacionada com as práticas mercantis.

É no final do século XVI e início do século XVII que há uma primeira forma de cristalização da arte de governar devido à racionalização do Estado que “se governa segundo as regras que lhes são próprias” e tem sua própria racionalidade (p. 286). Pode-se entender que esta razão de Estado foi um entrave para o desenvolvimento da arte do governo que durou até o início do século XVIII.

Esta cristalização deveu-se a uma série de grandes crises do século XVII, momentos de urgências militares, políticas e econômicas que impossibilitavam a arte de governar de se expandir. A estrutura institucional e mental do século XVII também contribuiu para este bloqueio. Com a primazia do problema da soberania e suas instituições e enquanto o exercício do poder era pensado como exercício da soberania, “a arte do governo não pôde se desenvolver de modo específico e autônomo” (p. 286).

Houve, no século XVII, uma tentativa de compor a arte de governo com a teoria da soberania. Foi através dessa tentativa que se formulou a teoria do contrato: “a teoria do contrato fundador – o compromisso recíproco entre soberano e súditos – se tornará uma matriz teórica a partir de que se procurará formular os princípios gerais de uma arte de governo” (p. 286).

O desbloqueio da arte de governar, portanto o fim da cristalização que estamos comentando, se deu por vários fatores de expansão (demográfica, monetária, agrícola), mas, sobretudo, está estritamente vinculada com a “emergência do problema da população” (p. 288). Com esse novo problema posto, pode-se repensar a noção de economia não mais vinculada estritamente à família. A família estaria agora no interior da população e seria seu instrumento fundamental. Porém a população tem características próprias e produz efeitos econômicos específicos, independentes dos da família. A família, então, passa de modelo econômico da arte de governar a segmento privilegiado da população. O que permite, portanto, o desbloqueio da arte de governar é a população ter eliminado o modelo de família de constituição do governo.

O novo conceito forjado no século XVII de economia política só pôde existir devido à concepção da população como o novo objeto do governo. Bem como o a passagem da arte de governo a uma ciência política, e de um governo com técnicas e modelos da soberania para um regime de técnicas de governo, só pôde existir em torno da população, quando a idéia de família como sustentáculo econômico havia sido superada.

O conjunto configurado no século XVII entre governo, população e economia é o modelo que predomina em nossos Estados. Há ainda que se questionar sobre o que é esse Estado. Foucault diz: “o Estado não é mais do que uma realidade compositória e uma abstração mistificada, cuja importância é muito menor do que se acredita” (p. 292).

O Estado deve ser entendido, atualmente, a partir do seu modelo de governamentalidade e não de estatização. Foucault termina o texto dizendo que suas próximas aulas no Collège de France continuariam tratando desse assunto e finaliza com a afirmação de que: a “pastoral, novas técnicas diplomático-militares e finalmente a polícia” (p. 293) foram os três pilares sobre o qual se fundou a governamentalização do Estado.

Bibiana Soldera Dias – Licenciada e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestranda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (bolsista do CNPq). E-mail:  [email protected]

FOUCAULT, Michel. A Governamentalidade. In: Microfísica do Poder. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993. Resenha de: DIA, Bibiana Soldera. Aedos. Porto Alegre, v.1, n.1, p. 325-329, jun. / dez., 2008.

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Aedos | UFRGS | 2008

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Aedos (Porto Alegre, 2008-) é a revista eletrônica discente de circulação semestral do Programa de Pós-Graduação em História da Universidaade Federal do Rio Grande do Sul (PPGH-UFRGS). Seu principal objetivo é proporcionar um espaço de divulgação e debate de trabalhos acadêmicos inéditos na área de História no formato de artigos, resenhas de livros e entrevistas.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 1984 5634

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