Escepticismo del Significado y Teorias de Conceptos – PINTO (M)

PINTO, Silvio Mota. Escepticismo del Significado y Teorias de Conceptos. Barcelona: Anthropos, 2009. Resenha de: ENGELMANN, Mauro L. Notas críticas sobre Escepticismo del significado y teorias de conceptos de Silvio Mota Pinto. Manuscrito, Campinas, v. 32, n. 2, p. 519-533, jul.-dez. 2009.

O fio condutor do livro é o argumento cético de Kripke (que o au-tor também atribui a Wittgenstein) em Wittgenstein on Rules and Private Lan-guage (1982). Segundo Mota Pinto, esse argumento, ou desafio, estabelece condições necessárias, que qualquer teoria de conceitos e do significado deve preencher. A partir disso, Mota Pinto analisa várias respostas ao problema cético e aponta duas como respostas satisfatórias (uma ele atri-bui a Wittgenstein e outra a Peacocke).

O livro contém cinco teses principais: (1) que Kripke e Wittgenste-in tratam do mesmo problema cético; (2) que Wittgenstein revisa a filoso-fia do Tractatus devido ao seu crescente interesse pela fundamentação de regras linguísticas; (3) que a solução que o autor atribui a Wittgenstein é uma das soluções possíveis; (4) que a teoria meta-semântica de Peackoke é também uma solução possível; (5) e que determinadas respostas ao pro-blema cético apresentadas na literatura não são boas. O livro é dividido em 6 capítulos. No capítulo 1, o autor apresenta o desafio cético e quais condições devem ser satisfeitas por uma resposta ao mesmo. De acordo com o autor, são duas as condições: (i) a condição constitutiva: mostrar um fato que poderia constituir a compreensão linguística de um certo idioma (isto é, o que constitui seguir uma regra); (ii) a condição epistêmi-ca: explicar nosso conhecimento de primeira e terceira pessoas a respeito da nossa compreensão de palavras (como sabemos qual regra seguimos) (p. 57). No capítulo 2, examina as origens do problema na obra interme-diária de Wittgenstein e seu paralelo com os argumentos de Quine para a “indeterminação da tradução” e a “relatividade ontológica”. No capítulo 3, critica um grupo de respostas ao problema caracterizado como ‘realis-mo individualista’ (McGinn, Soames e Horwich). No capítulo 4, critica as soluções ‘anti-realistas’ de Kripke, Crispin Wright e Dummett, assim co-mo as soluções externistas de Putnam e Burge. No capitulo 5, o autor apresenta a sua solução, a solução “wittgensteiniana”. No sexto e último capítulo, são discutidas as condições gerais que qualquer teoria de concei-tos deve preencher. Essas condições são extraídas do problema cético de Kripke a partir de uma revisão das condições que Fodor apresenta em Concepts. O autor, então, tenta mostrar que a teoria meta-semântica de Peackoke também soluciona o problema cético de Kripke e preenche as condições gerais de uma teoria de conceitos.

O livro funciona muito bem como uma análise do argumento céti-co de Kripke e das soluções propostas na literatura. Os capítulos 1, 3, 4 e 5 formam um texto conciso e bem argumentado. Esses capítulos apresen-tam uma articulação das várias posições no debate a respeito do seguimento de regras e podem, por isso, ser utilizados como livro-texto em um curso sobre o paradoxo de Kripkenstein. Enquanto o capítulo 1 apresenta o problema (ou paradoxo), os capítulos 3 e 4 examinam, de forma lúcida e sucinta, as soluções mais influentes na literatura (todas são descartadas como inadequadas); por fim, o capítulo 5 tenta mostrar por que a solução atribuída ao próprio Wittgenstein é a melhor. O capitulo 6 destoa um pouco desse padrão, pois introduz desiderata para qualquer teoria de con-ceitos e defende de maneira muito rápida a teoria de Peackoke (mais a esse respeito abaixo). Mesmo que esse capítulo esteja ligado aos argumen-tos centrais do livro, ele poderia ser mais desenvolvido – e, talvez, publicado à parte como uma crítica à teoria de conceitos de Fodor e uma defe-sa da teoria de Peacocke. O capítulo 2, principalmente na investigação da origem do paradoxo, é o menos satisfatório, pois, creio, as teses não são suficientemente fundamentadas. Contudo, é preciso ressaltar que o autor tem o mérito de tomar a sério neste capítulo a tarefa de explicar a origem das preocupações de Wittgenstein com o seguimento de regras, algo que raramente ocorre na literatura sobre o assunto. Afora isso, vale destacar que o autor corretamente detecta a centralidade do seguimento de regras no Tractatus. No que se segue, tratarei com mais detalhes dos capítulos 2, 5 e 6.

No capítulo 2, onde argumenta a favor da tese de que a mudança na filosofia de Wittgenstein está fundada no interesse crescente deste pe-las “regras da linguagem”, o autor atribui ao Tractatus de Wittgenstein duas teses: (a) “que o domínio de uma linguagem natural deve ser explicado em termos do domínio de uma linguagem primitiva e cristalina de pensamen-tos” e (b) “que entender expressões desta linguagem de pensamentos tra-duz-se em uma capacidade de seguir certas regras sintáticas a elas associa-das” (p. 60). Existem várias razões para pensarmos que essas teses exegé-ticas são incorretas. Primeiro, de acordo com o Tractatus, “o pensamento é a proposição com sentido” (Tractatus 4). Portanto, a noção de ‘proposi-ção’ explica a noção de ‘pensamento’, e não vice-versa. Em uma passagem dos Notebooks, de 12.09.1916, Wittgenstein explicitamente afirma isso: “Agora está claro porque pensava que pensar e falar seria o mesmo. O pensar é um tipo de linguagem. Pois o pensamento é, evidentemente, também uma figuração lógica e, assim, igualmente um tipo de proposição” (meus itálicos). O fundamental é que linguagem falada e linguagem pensada são linguagens lógicas. O “primitivo” no Tractatus não é o “mentalês”, mas o “logicês”. Se não fosse, Wittgenstein não poderia mostrar os limites do pensamento por meio da linguagem (ver Introdução do Tractatus). Em segundo lugar, se a linguagem de pensamentos explicasse a linguagem natural, o Tractatus deveria, no mínimo, tratar dessa linguagem e indicar seus elementos. Contudo, nada semelhante ocorre no Tractatus. Em uma carta a Russell de 1919, Wittgenstein explicitamente diz que não é do seu interesse determinar os elementos do pensamento e, ainda mais incisiva-mente, diz que a relação dos mesmos com os fatos figurados é irrelevante. (Essa carta é citada pelo autor na p. 72, mas erroneanmente considerada parte dos Notebooks; a razão para esse equívoco é o fato de algumas cartas haverem sido publicadas como apêndice dos Notebooks). Essa falta de in-teresse de Wittgenstein pelos elementos do pensamento parece-me in-compatível com a tese de que é uma linguagem mental que explica a lin-guagem natural de acordo com o Tractatus, como afirma o autor. Existe também uma lacuna neste capítulo que precisa ser mencionada. O autor não explica se as teses que atribui ao Tractatus são problemáticas, nem qual sua relação com o suposto crescente interesse de Wittgenstein pelo se-guimento de regras.

As razões que autor oferece para as teses a e b acima são também, creio, incorretas. Para a oferece duas razões. Primeiro, a influência da teo-ria das descrições de Russell e a ideia de que a sintaxe superficial da lin-guagem esconde sua sintaxe profunda; segundo, a influência do princípio fregiano do contexto, que implicaria uma única análise completa da pro-posição (p. 61). Certamente, aos olhos de Wittgenstein, foi mérito de Rus-sell mostrar que “a forma lógica aparente de uma proposição pode não ser sua forma real” (Tractatus 4.0031). Contudo, não é nada evidente como esse mérito de Russell levaria Wittgenstein a supor que existe uma lingua-gem primitiva de pensamentos (um mentalês de tipo fodoriano). O autor precisaria ter apresentado um argumento mostrando que: (i) a análise rus-selliana é idêntica à de Wittgenstein e (ii) que de tal análise segue-se a ne-cessária postulação de uma linguagem primitiva do pensamento que, por sua vez, explicaria a linguagem natural. O uso do princípio do contexto (segundo argumento) para justificar o mentalês e a ideia de uma única análise final da proposição parece-me, também, uma estratégia equivoca-da. Isso pode ser constatado já em Frege, para o qual não há tal coisa co-mo análise única e final da proposição. Uma das características da lógica do inventor do princípio do contexto é precisamente a ideia de que um pensamento pode ser analisado de diversos modos (ver, por exemplo, Begriffsschrift §9 e Logik, de 1897, em Nachgelassene Schriften). É, no mínimo, plausível que a multiplicidade de análises possíveis seja uma consequência do próprio princípio do contexto. O que determina como devemos anali-sar uma proposição são as inferências que queremos preservar em certos contextos inferenciais; portanto, a unidade significativa mínima deve ser a proposição (conteúdo judicativo ou pensamento, no vocabulário de Fre-ge). A tese b acima mencionada, por sua vez, é defendida com diversas passagens em que Wittgenstein fala de regras. No entanto, em nenhuma das diversas citações apresentadas pelo autor Wittgenstein fala de uma “linguagem de pensamentos”, o que é precisamente o ponto em questão (de acordo com a tese do autor).

O autor defende, no mesmo capítulo, que a mudança na filosofia de Wittgenstein (do Tractatus à filosofia tardia) deve ser explicada a partir de uma mudança de postura quanto a seguir regras. Mesmo que seja ver-dadeira a tese (conclusão a que não podemos chegar, creio, baseados so-mente na evidência apresentada no livro), ela não justifica a tese mais for-te segundo a qual Wittgenstein passa a adotar uma postura cética em relação a seguir regras. A evidência textual para essa interpretação é bastante problemática. Para fundamentar sua tese, o autor cita uma conversa de Wittgenstein com o Círculo de Viena em 1931. Eis o início da passagem citada: “Não ‘apliquei’ a regra x [:] x² aos números particulares, pois senão precisaria novamente de uma regra que me diz como posso retirar da ex-pressão com letras a construção da série dos números. E se quisesse apre-sentar tal regra (a saber, com letras), não teria ido adiante novamente: pre-cisaria de uma nova regra que me dissesse como posso empregá-la, e assim por diante” (WWK, p. 154). Mota Pinto argumenta que no Tractatus Wittgenstein tomou como certo que sabemos o que é seguir uma regra linguística e que a passagem citada marca uma mudança significativa quanto à problematização a respeito de seguir regras. É correto que Wittgenstein passa a preocupar-se com o seguimento de regras no período intermediário (isso, creio, porque precisa dar uma resposta à teoria causal do significado de Russell em The Analysis of Mind; ver Philosophische Bemer-kungen §21 e ss.). No entanto, na passagem citada acima, Wittgenstein pa-rece estar simplesmente reiterando um ponto tractariano, a saber, que regras não são ditas, mas mostram-se. Isso pode ser constatado quando observamos o que Wittgenstein diz imediatamente antes da passagem citada: “A generalidade mostra-se na aplicação. Essa generalidade preciso ver na configuração. Mas não vejo a regra geral melhor na expressão x [:] x² do que antes nos números particulares.” Sem mais evidência, é natural concluirmos que Wittgenstein está reiterando sua filosofia do Tractatus, e não introduzindo alguma novidade, como afirma Mota Pinto.

É interessante observar que a passagem citada pelo autor (parcial-mente reproduzida acima) é concluída com uma novidade na filosofia de Wittgenstein. Essa novidade, contudo, não parece ter sido notada. Eu cito a passagem: “Chegamos aqui, na verdade, a um erro estranho, que consis-te no fato de pensarmos que em lógica podemos ligar duas coisas através de uma terceira… Imagina-se duas coisas ligadas por uma corda. Mas isso é uma imagem enganosa… Nessa falsa concepção repousa a dificuldade que se encontra na questão: Como podemos empregar a regra? A resposta parece ser: novamente por meio de uma regra, e desse modo jamais sairíamos do lugar” (p. 155; dois primeiros itálicos são meus). Contrariamente ao que sugere Mota Pinto, Wittgenstein não está inventando aqui o problema de seguir uma regra. Ele está expressando, contudo, um ponto que se tornará central na sua filosofia tardia. Está dizendo que um “erro estranho” está em questão (e não, digamos, um problema sério que precisa ser solucio-nado). A passagem acima diz que é uma “falsa concepção” (ou uma “i-magem enganosa”) que gera a dificuldade a respeito da aplicação de uma regra e o consequente regresso ao infinito. É uma falsa analogia que en-gendra o problema. Wittgenstein diz que a própria formulação do pro-blema é equivocada; isto é, certas confusões filosóficas levam-nos a for-mular pseudo-problemas. Assim, sugere que a avaliação da gênese de problemas filosóficos pode nos levar a dissolvê-los antes que nos preocupe-mos com sua solução (ver, por exemplo, Investigações Filosóficas (IF) §§39, 90, 308). Se o problema pode ser dissolvido, nenhuma solução precisa ser encontrada (a “solução” consiste na dissolução, digamos, genética, do mesmo).

Creio que a possibilidade de um regresso ao infinito na justificação de regras e a ambiguidade relacionada a qual regra estamos seguindo es-tão, de fato, ligadas à mudança de Wittgenstein na sua filosofia tardia, mas a mudança consiste precisamente em não tomar tais consequências para-doxais como problemas a serem solucionados; são as confusas condições que levaram à sua formulação que necessitam investigação. Isso é o que está em questão também no “paradoxo” nas IF: “Quando filosofamos, somos como selvagens, pessoas primitivas, que ouvem o modo de ex-pressão de pessoas civilizadas, interpretam-no mal, e então extraem dele as conclusões mais estranhas” (§194). Que conclusão poderia ser mais estranha do que o paradoxo de Kripke? A questão wittgensteiniana a res-peito do cético de Kripke seria, então, “Que confusão a respeito de que modo de expressão gerou esse paradoxo?”, e não “Como podemos en-contrar uma solução para o paradoxo?”.

Algumas reservas relacionadas à solução (considerada wittgenste-iniana) do autor no capitulo 5 precisam ser apresentadas. Já listei acima algumas razões para pensarmos que Wittgenstein não inventou um pro-blema cético nos termos de Kripke. Sua intenção era mostrar a gênese de confusões filosófica para dissolvê-las, e não “resolver” problemas filosófi-cos. Wittgenstein não apresenta nenhuma tese como solução para o pro-blema cético, tampouco tenta estabelecer os fundamentos da linguagem. Na verdade, é completamente claro a esse respeito: “A filosofia não pode de modo algum interferir no uso efetivo da linguagem; portanto, ao final, ela pode apenas descrevê-lo. Pois ela também não pode fundamentá-lo” (IF §124; meu itálico). Passagens como essa, e outras similares, não são co-mentadas por Mota Pinto (nem por Kripke, evidentemente). O autor atribui constantemente teses gerais e teses fundacionais sobre a linguagem a Wittgenstein (por exemplo, nas pp. 60 e 184-203). Essa estratégia é, como vimos, equivocada do ponto de vista exegético. Se, no entanto, Wittgens-tein tivesse apresentado o problema cético de Kripke para depois resolvê-lo, e se sua solução fosse aquela proposta no capítulo 5, creio que tería-mos algumas dificuldades. No que se segue, apresentarei rapidamente aquilo que o autor chama de ‘solução wittgensteiniana’; depois, indicarei por que o cético de Kripke discordaria de tal solução. Esse ponto é rele-vante no contexto do livro de Mota Pinto, pois o autor argumenta que Kripke e Wittgenstein apresentam o mesmo problema cético (isso no ca-pítulo 1; por exemplo, p. 57).

A solução wittgensteiniana do problema cético apresentada pelo autor é, na verdade, uma solução davidsoniana. Pelas razões que indiquei acima, a aproximação de Davidson e Wittgenstein deve ser vista com sus-peita (Davidson, evidentemente, retirou das Investigações Filosóficas vários elementos de sua filosofia; isso, porém, não faz de Wittgenstein um da-vidsoniano e não faz de Davidson um wittgensteiniano). O autor atribui a Wittgenstein a tese de que é o “caráter interpretativo” da prática da lin-guagem a chave para respondermos ao cético. Uma espécie de interpretação radical à la Davidson revelaria regras que seriam, ao mesmo tempo, generalizações empíricas e normas linguístico-comportamentais. Assume-se, assim, que o “interpretado” e o “interpretante” são seres intencionais cujo comportamento é normatizado. As normas da lingua-gem, nessa teoria, constituem o significado das palavras e explicam a as-simetria entre primeira e terceira pessoas. Mas como, afinal, Wittgenstein responde ao cético? “Seguir uma regra”, argumenta o autor, é uma práti-ca; uma prática é uma atividade intencional; uma atividade intencional é uma atividade regida por regras (isso é circular, mas não me deterei nesse ponto). Assim, a interpretação é fundada em uma “prática interpretável” (p. 192). O que torna possível tal interpretação, e também distingue práticas interpretáveis de não-interpretáveis, é o compartilhamento de práticas (digamos entre nós e os seres que queremos interpretar). Sem o compartilhamento de práticas, não há comunicação possível (para Mota Pinto, essa é “a primeira condição necessária da possibilidade de interpretação” (p. 193)). Só podemos interpretar, de acordo com essa teoria, seres que tenham regras que “regem nossas próprias práticas” (p. 192). Essas práticas são, por exemplo, “inferir, calcular, medir…usar pala-vras para cores e muitas outras” (pp. 192-3). Com isso, conclui Mota Pinto: “aqueles que tivessem uma aritmética distinta, ou que vendessem madeira com base na área que ocupa a pilha de tábuas … seriam todos ininterpretáveis para nós” (p. 193). Aqui, o autor faz referência ao exemplo dos estranhos vendedores de madeira (ver Wittgenstein’s Lectures on the Foundations of Mathematics Cambridge 1939 (WLFM), p. 201 ss., e Bemerkungen ueber die Grundlagen der Mathematik I (BGM I), §§ 147-52). Os estranhos madeireiros são uma referência que Wittgenstein faz ao exem-plo da suposta negação do princípio de identidade por parte de alieníge-nas dado por Frege no prefácio das Grundgesetze (também na obra póstu-ma Logik de 1897). Antes de mais nada, parece-me claro que Wittgenstein interpreta esses seres que não compartilham de nossas práticas. De fato, no §150 da parte I de BGM, Wittgenstein diz que poderíamos tentar mudar sua prática espalhando a madeira de uma pilha; com isso, evidentemente, tentaríamos mostrar que não aumentou a quantidade de madeira depois de espalharmos as tábuas. Se isso não funcionasse, pensaríamos simplesmente que o que consideram “muita madeira” não corresponde ao que nós consideramos muita madeira (evidentemente, não os consideraríamos seres muito inteligentes – ver BGM §150-1). As atividades desses seres pareceriam, para nós, sem propósito (WLFM, p. 203). Nesse caso, talvez fosse importante averiguar a história da atividade (WLFM, p. 204). Assim, para Wittgenstein, a falta de compartilhamento de “práticas fundamentais” não torna impossível a interpretação, como sugere o autor. Wittgenstein não está, pois, apresentando uma “condição de possibilidade” quando fala da importância do compartilhamento de práticas. Talvez o ponto de Wittgenstein seja precisamente diluir a noção kantiana de “condição de possibilidade” por meio de um afrouxamento de claros limites entre interpretabilidade e não-interpretabilidade, compre-ensão e não compreensão e, até mesmo, entre aquilo que é linguagem e aquilo que não é linguagem (aqui vale lembrar que Wittgenstein pede que a linguagem com 4 palavras do §2 das IF seja concebida como uma “lin-guagem primitiva completa”).

Para Mota Pinto, o compartilhamento da prática tem, por sua vez, o acordo nos juízos como condição de possibilidade. Esses juízos com-partilhados, de acordo com o autor, são independentes do intérprete e do sujeito interpretado (são, nesse sentido, a base para determinar a objetivi-dade no seguimento de regras). Só é possível determinar se S segue a re-gra da ‘adição’ ou da ‘tadição’ com esse pano de fundo, pois esses juízos compartilhados constituem o significado de ‘adição’ (“condição constituti-va”, mencionada acima).

Não me parece claro que a solução wittgensteiniana apresentada pelo autor resolva o problema cético de Kripke. Primeiro, porque se con-sideramos que o compartilhamento de juízos é uma condição necessária para a interpretação, e tomamos os juízos matemáticos como parte desse grupo (como sugere o autor), o que devemos conluir é que o problema cético de Kripke é absurdo; pois não se pode duvidar, supostamente, de uma condição de possibilidade que fundamenta a interpretação (uma tal dúvida não seria interpretável). Contudo, o cético de Kripke apresentado por Mota Pinto perguntaria, creio, se o juízos compartilhados constituem o significado de adição ou tadição para o caso específico de, digamos, ‘68+57’. O problema é que o número de juízos compartilhados é finito e haverá sempre o caso kripkiano de determinar como esses juízos podem estabelecer qual a regra que está sendo seguida no novo caso particular. O apelo à prática geral, comum a intérprete e interpretado, também não re-solve o problema. Por suposição, intérprete e interpretado compartilham a prática de somar. Nesse caso, a prática compartilhada é finita. Intérprete e interpretado concordariam em todas as instâncias passadas de adicionar e ‘tadicionar’, mas não haveria nenhuma prática relacionada à tadição ou à adição de ‘68+57’ (digamos, não haveria uma instância prática para a con-tagem de tantos grãos de areia). Assim, não há como determinar se o que está de acordo com a prática é contar ou ‘tontar’, ou seja, se para o caso supostamente novo em nossa prática, devemos obter ‘125’ ou ‘5’ (ver Krip-ke p. 16).

No capítulo 6, quando trata de teorias de conceitos, o desafio céti-co serve para marcar duas características que qualquer teoria de conceitos deve possuir: explicar o que constitui o emprego de conceitos e a maneira assimétrica de conhecermos conceitos na primeira e na terceira pessoas. Com essa ideia geral, o autor apresenta a concepção fodoriana da natureza dos conceitos e a reformula de acordo com o que considera exigências do problema cético; depois mostra que a teoria de Fodor não é adequada e, por fim, mostra que a teoria de Peacocke, por sua vez, é adequada à re-fomulação proposta e é uma resposta convincente ao problema cético de Kripke.

A reformulação proposta por Mota Pinto, baseada nas condições apresentadas por Fodor, é a seguinte (as condições indicadas com asteris-cos foram modificadas por Mota Pinto e a C4 de Fodor é abandonada): (C1) conceitos são particulares mentais capazes de causar e ser causados por outros elementos mentais; (C2*) uma explicação da natureza dos con-ceitos deve dar conta da constituição e da epistemologia das normas asso-ciadas ao uso de conceitos; (C3*) teorias de conceitos precisam dar conta do fato de que atitudes proposicionais são produtivas e sistêmicas; (C5*) a explicação psicológica e a comunicação linguística requerem que os con-ceitos possuídos por pessoas diversas sejam suficientemente similares entre si.

A ideia básica de Fodor, como é bem sabido, consiste em postular uma linguagem mental (“mentalês”) e a partir disso determinar uma teoria representacional da mente. Para dar conta da aplicação de conceitos, Fo-dor assume “necessidades metafísicas” e essências. O autor considera que a teoria de Fodor envolve-se com muitos pressupostos que, se não duvidosos, deixam a teoria extremamente complexa. Afora isso, critica Fodor por não dar conta do aspecto epistemológico de (C2*). Não me parece claro, contudo, por que exatamente o autor pensa que Fodor não poderia tratar satisfatoriamente desse último ponto. Por que não poderiam os as-pectos fenomênicos dos conceitos fodorianos explicar a posse de concei-tos na primeira e terceira pessoas, como exige o autor (p. 241)?

O autor argumenta, então, que Peacocke oferece uma teoria de conceitos capaz de dar conta das condições apresentadas e capaz de res-ponder ao desafio cético (p. 252). Peacocke assume, como Frege, o con-ceito de ‘verdade’ como noção semântica primitiva e partir dele tenta de-rivar uma explicação para a natureza normativa de conceitos. Conceitos tem, para Peacocke, o estatuto de sentidos fregianos. Eles são conjuntos de disposições inferenciais que fornecem critérios para a posse de um conceito. As disposições que fornecem os critérios são chamadas ‘consti-tutivas’ (determinam o que é compreender o conceito) enquanto outras são meramente ‘colaterais’ (essa é uma variação da tese de Dummett, se-gundo a qual existem usos constitutivos e colaterais de palavras).

No entanto, quando Mota Pinto argumenta que Peacocke respon-de ao cético de Kripke (ver p. 214), não é claro como isso ocorre. Uma resposta é esboçada quando o autor introduz as condições que Peacocke dá para a posse do conceito ‘mais’. Ele o faz com definições recursivas utilizando as funções ‘zero’ e ‘sucessor’, que são chamadas “disposições inferenciais primitivas”. O que deveria estar em questão, seguindo o ar-gumento de Kripke, é se a determinação de ‘mais’ por meio de disposi-ções inferenciais primitivas pode determinar a soma para todos os casos possíveis. É evidente que, para o cético kripkiano, não podemos determi-nar se na instância supostamente nova ‘68+57’ as “disposições primitivas” funcionam como nos casos passados. Infelizmente, o autor não discute essa dificuldade. Não quero com isso sugerir que Peacocke não possa responder ao cético kripkiano. Talvez o faça (ver, por exemplo, Peacocke 1992, pp. 148 e ss.), mas isso não é evidente no modo como Mota Pinto utiliza-se de Peacocke para responder ao cético.

Às vezes tem-se a impressão que Mota Pinto não está particular-mente interessado em uma resposta de Peacocke ao cético, mesmo que o afirme (por exemplo, nas pp. 20 e 214). Seu interesse parece restringer-se a mostrar como as condições gerais que extrai como lições do argumento cético são satisfeitas pela teoria de Peacocke (e também pela teoria que atribui a Wittgenstein no capítulo 5). Se, no entanto, esse era o objetivo do capítulo 6, Mota Pinto talvez precisasse não apenas argumentar em linhas muito gerais que a teoria de Peacocke realmente satisfaz as “condi-ções epistêmica e constitutiva”. Na verdade, o autor apresenta apenas o problema da auto-atribuição de estados mentais e conjectura que Peacoc-ke “pense que a conexão constitutiva entre encontrar-se em determinados estados e atribuir-se tais estados proporciona algum tipo de justificação para as ditas auto-atribuições” (p. 255). A partir disso conclui: “Em vez de especular sobre o detalhe da posição de Peacocke, parece-me mais pru-dente concluir que reúne elementos para satisfazer também a condição epistêmica do ceticismo do significado” (p. 255). Contudo, não existem elementos no livro que justifiquem a prudência do autor. Assim, essa conclusão pode decepcionar o leitor, que está justificado pela introdução do livro a esperar um tratamento detalhado. Ao final, contrariamente ao que o autor sugere, tem-se a impressão de que a teoria de Peacocke não acrescenta muito ao debate sobre o ceticismo kripkiano.

Apontei algumas lacunas argumentativas presentes no livro e fiz várias críticas exegéticas, mas com isso não pretendo apagar seus méritos. Devo ressaltar a clareza expositiva e argumentativa na apresentação do problema kripkiano e suas supostas soluções, bem como a sadia e sempre bem-vinda tomada de posição do autor. Assim, mesmo que tenha critica-do várias teses do livro, recomendo-o como uma boa avaliação do debate acerca do problema kripkiano atribuído a Wittgenstein. O autor mostra como diversos problemas exegético-argumentativos estão relacionados e sinopticamente trata de parte significativa da literatura sobre os mesmos. Os méritos e os pontos discutíveis do livro são típicos de um projeto ambicioso: o livro oferece um mapa complexo do assunto tratado, mesmo que nem todas as fronteiras sejam traçadas da maneira correta.

Referências

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FREGE, G. Grundgesetze de Arithmetik. I. Band. Holdesheim: Georg Olms, 1962.

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Notas

1 Agradeço a Rogério Severo e a Rogério Lopes pelos comentários recebidos.

Mauro L. Engelmann – Department of Philosophy Federal University of Minas Gerais

Av. Antônio Carlos, 6627 . 31270-901 BELO HORIZONTE, MG. BRAZIL. E-mail: [email protected]

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