O pêndulo de Epicuro: Ensaio sobre o sujeito e a lógica de uma história sem finalidade – Kant, Freud e Darwin – BOCCA; PEREZ (RFMC)

BOCCA, Francisco Verardi; PEREZ, Daniel Omar. O pêndulo de Epicuro: Ensaio sobre o sujeito e a lógica de uma história sem finalidade – Kant, Freud e Darwin. Curitiba: CRV,2019. Resenha de: ARMILIATO, Vinícius. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, p. 449-455, n.1, abr, 2020.

Nos confins da história da noção de história

O Pêndulo de Epicuro trata-se de mais uma publicação da parceria entre Francisco Verardi Bocca e Daniel Omar Perez. Se em publicação anterior, Ontologia sem espelhos (PEREZ;BOCCA;BOCCHI, 2014), que contou também com a parceria de Josiane Bocchi e no último ano ganhou uma tradução para o francês1, os autores fazem uma história da noção de realidade desde Descartes até Freud, na obra presente fazem a história da ideia de história que figura de modo subjacente às elaborações de Kant, FreudeDarwin. E analisando detalhadamente cada autor, apresentam como visualizam na história um rumo, um percurso ou mesmo uma tendência, de modo que ora se aproxima do legado de Epicuro, ora se afasta desta. Perguntam-se: Seria curso da história ascendente, regressivo, assintótico, cíclico ou mesmo, sem qualquer rumo? Caso não houvessem rumos possíveis, se os acontecimentos ao longo na história nada mais fossem do que o resultado da pura aleatoriedade dos acontecimentos humanos, poderíamos dizer que seu curso nada mais seria do que o efeito da seleção de acontecimentos dada pelo viés teórico do autor que diz algo sobre a história? Ainda, é possível conceber um modelo de análise da história que ofereça visualidade para a contingência e aleatoriedade dos acontecimentos da vida? São essas as questões que figuram como objeto central de O pêndulo de Epicuro. Trata-se de um trabalho minucioso e necessário. Minucioso, pela precisão e verticalidade com que abordam os autores. Nesse caso, textos marginais são evocados em paralelo aos mais célebres, além de revelarem movimentos internos e pendulares a cada autor (por exemplo, os diferentes pesos que Darwin confere à variação e à seleção ao longo de suas publicações). Necessário, enquanto trabalho que permite encarar os modos como a história é concebida e, consequentemente, observar os efeitos de tais visadas. Assim, seja uma história que marcha para um futuro promissor, seja uma história que declina ou mesmo uma história que não tem rumo, em cada uma dessas posições tem-se o fundamento ou a justificativa para a forma como a sociedade se relaciona com seu presente: devemos voltar ao passado? é no futuro que encontramos tempos melhores? O presente é o passado corrompido, degenerado? O presente é um futuro inacabado que deve ver no porvir um modelo a se alcançar? Tais questões, também abordadas na obra, não deixam de ser importantes para o mais contemporâneo dos debates sobre os rumos da civilização, da governança e da ética.

O livro conta com uma apresentação assinada por Eládio C. P. Craia, a qual leva às últimas consequências os argumentos da obra. O pêndulo de Epicuro propõe três principais capítulos, ou ensaios, dedicados a Kant, Freud e Darwin. Além disso, em sua Introdução, apresenta uma revisão objetiva e cuidadosa das leituras que visualizaram tendências na história das civilizações, como o fez Herbert Butterfield, Michel Meyer, Arnold Toynbee e Oswald Spengler, e também autores contemporâneos, tais como François Hartog.

Já nas primeiras linhas da apresentação do livro, intitulada A irrupção dos acontecimentos, encontramos o anúncio da falência na busca por uma ordem finalista da história: “Todos reconhecem que a natureza, assim como as sociedades humanas, nos seus devires, manifestam a cada instante emergências que julgávamos impossível. Sempre nos desconcertam, contudo, não desistimos de buscar suas lógicas, seu sentido histórico” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 23). Nesse sentido, a reflexão filosófica encontrou entendimentos da organização do tempo que só com Darwin é que se pôde enfraquecer “uma perspectiva de história universal e finalista, indissociável do futuro e do progresso” (BOCCA; PEREZ,2019,p. 23). Darwin teria retomado o modelo epicurista onde o presente, a aleatoriedade e a contingência seriam justamente os fatores que organizam a vida e seu percurso. O interesse por esse fato, da ausência de finalidade presente em Epicuro resgatada pela biologia evolutiva da segunda metade do século XIX” permite compreender os fatos naturais e históricos prescindindo, entre outras coisas, do futurismo assim como do passadismo, mas sobretudo, das ilusões da modernidade” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 24). Por conta disso é que no primeiro capítulo Kant é explorado, dado que tal autor procurou, conforme a o trabalho de Bocca e Perez mostra, desqualificar a perspectiva epicurista. Toda a ocorrência, todo o acontecimento, sedaria enquanto efeito de uma tendência mecânica causal. Em Kant “os elementos não são determinados contingentemente, mas recebem, por uma mecânica cega, determinação segundo leis gerais concebidas por uma sabedoria suprema” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 58). Kant viria então a substituir a contingência e o acaso por um programa de leis e tendências que orientaria o desenvolvimento da natureza. As predisposições para o progresso aparecem em vários trabalhos de Kant, como por exemplo em Ideia de uma história de um ponto de vista cosmopolita (1784), quando o autor apresenta o fio condutor da história humana que “ordena o desenvolvimento das disposições naturais do ser humano para o que chamou de cosmopolitismo” (BOCCA;PEREZ,2019,p. 62). Os autores mostram tais acepções em trabalhos posteriores, até em 1798 em O conflito das faculdades onde, novamente, a partir da Revolução Francesa, Kant apresenta “um tipo de acontecimento exemplar na experiência da humanidade que indica a aptidão humana para o progresso” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 86). Nesse sentido, articulando o passado, o presente e o futuro a partir dos acontecimentos em solo francês, vê-se o filósofo autorizar-se a “um tipo de predição acerca do futuro das sociedades humanas, de modo a fazer da ideia de República algo mais que uma quimera” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 87). Trata-se então, de uma tendência de aprimoramento da espécie reconhecida nos seres humanos, mesmo que seja, como ressaltam os autores, em uma curva assintótica em relação aos seus objetivos.

A ideia de uma curva assintótica que tende a alcançar o progresso de uma sociedade é bastante importante na comparação com o que seria uma filosofia da história em Freud, apresentada no segundo capítulo. Enquanto a tendência ao progresso é visualizada por Kant, a tendência à regressão é patente nas construções freudianas. Freud tratar-se-ia de um autor “declinista”. Tal leitura se ampara na análise de que Freud visualizou nas leis da termodinâmica que a tendência crescente de entropia nos fenômenos da matéria leva a seu desgaste total, à sua morte. Ao afirmar esta tendência ao aniquilamento como nodal na psicanálise freudiana de modo bastante original, os autores, evitando um contra-argumento de um Freud não-declinista, indicam que em sua obra há sim dois movimentos: um emancipatório e ascendente – visto na clínica – e um propriamente declinista – notado na metapsicologia. E é esta última que irão explorar no segundo ensaio, ambicionando entender qual seria a filosofia da história que através desta se decalca da psicanálise. Para eles, a metapsicologia “apresenta um determinismo naturalista composto de um certo ponto de vista evolucionista da Biologia a um ponto de vista entrópico da Física” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 89). Assim, se a clínica porta um papel emancipatório às amarrações psíquicas do paciente, o “jogo” entre o Princípio de Prazer e o Instinto de Morte leva à vitória deste último e, apesar do trabalho clínico e de desenvolvimento psíquico poder postergá-lo, jamais aniquilará seu próprio fim. Nesse âmbito, a especulação metapsicológica freudiana com o material empírico obtido em sua clínica “põe em jogo, o otimismo do esclarecimento e da autonomia do paciente ao finalismo declinista das forças entrópicas que o habitam”(BOCCA; PEREZ, 2019, p. 90). É essa aparente contradição que é investigada ao longo do capítulo e que permite notar a particularidade da ideia de história desde a perspectiva freudiana, cuja vida, a civilização e sua história, se situariam “Entre a abertura para o futuro e o declínio inexorável” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 90). Como lembra Freud em Além do princípio do prazer (1920), a finalidade da vida é atingir a morte. Aqui é preciso ressaltar que os autores resgatam em textos de Freud anteriores a este que acabamos de citar, a mesma perspectiva, declinista, embora ainda não tão explícita. Desse modo, evitam ler as tendências à regressão indicadas na década de 1920 por Freud como uma ruptura com o corpus anterior de sua obra.

Antes disso, estaria coerentemente em continuidade com trabalhos anteriores. Por exemplo, em Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), Freud já havia ressaltado que o processo civilizatório atenta contra si mesmo: a doença nervosa é o dano da civilização. Fazendo analogias com máquinas a vapor, Freud considerou que a sublimação não é capaz de redirecionar toda a força instintual “da mesma forma que em nossas máquinas não é possível todo o calor em energia mecânica” (FREUD, 1908, apud BOCCA; PEREZ, 2019, p. 103). Nas palavras dos autores, nesta obra “Freud articulou o ponto de vista biológico evolucionista a um ponto de vista físico entrópico, atribuindo à natureza, ao homem e à civilização, uma evolução cuja finalidade seria a exaustão e o declínio”(BOCCA;PEREZ,2019, p. 104).

Ora, se uma curva é assintótica em relação ao progresso (Kant) e a outra em algum momento após certa ascensão regride para o estado anterior de repouso (Freud), haveria ainda uma terceira via (Darwin), que não comportaria nenhum direcionamento. No último capítulo, Darwin é aborda do como alternativa que mais se aproxima de Epicuro, ou seja, com o pêndulo retornando a uma perspectiva que permite visualizar uma história sem finalidade.

É então no último capítulo que irão indicar uma leitura alternativa a qual subscrevem na conclusão do livro, como veremos adiante, para um entendimento próprio da história. Para tanto, exploram como a ideia de variação ressaltada por Darwin torna-se fundamental para a compreensão de um curso da história sem finalidade, haja vista o reconhecimento pelo evolucionismo darwiniano de que é a produção aleatória de pequenas variações a cada descendência que, em interação com o meio (o qual também não é estável), conduz modificações à história da espécie (trata-se nada mais que o mecanismo da seleção natural). Quanto à descendência das espécies “Darwin retoma e reafirma o ponto de vista de Epicuro, ao concebê-la como não teleológica, como imprevisível” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 130). As objeções possíveis a tal asserção são debatidas através de comentadores mais recentes (tais como Thierry Hoquet, André Pichot, Vittorio Hosle e Dieter Wandschneider), especialmente quando se viu teleologia em concepções darwinianas, como nas ideias de struggle for life, complexificação e progresso. Quanto a este último, os autores afirmam: “[…] o que quer que tenhamos em mente quanto ao progresso e ao aperfeiçoamento, só pode ser referido, não a uma meta, mas contingencialmente a partir da relação que cada criatura de uma espécie mantém com as condições de sua existência” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 137). Algo que se reforça em trabalhos posteriores a Darwin, como na genética mendeliana redescoberta em 1900 por Hugo de Vries e na síntese moderna (Ernst Mayr e Julian Huxley). Trata-se de um conjunto de trabalhos que trouxeram para o debate “temas e conceitos como mecanismo, evolução cega, acaso, contingência, aleatoriedade, probabilidade, entre outros” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 138). Ainda, o papel da variação para a diversidade da vida segue sendo considerado no cenário pós-Darwin, notadamente a partir da biologia molecular. Os autores utilizam sobretudo os trabalhos de vulgarização dos biólogos ganhadores do Nobel de Medicina de 1965, Jacques Monod, François Jacob e André Lwoff. Tais autores consideram que “a variação por mutação, que impulsiona a evolução, não seria de modo algum um fenômeno de exceção, mas ao contrário, quem sabe, a regra. Residiria no seio da natureza. Monod reafirma o ponto de vista de que a própria conservação da vida seria dependente da novidade” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 150).

Ao final da leitura dos três ensaios principais do livro, torna-se evidente como os autores se posicionam favoravelmente ao entendimento da história enquanto algo que porta um fluxo descontínuo e aberto à singularidade. Mas quando chegamos às considerações finais, vemos o que poderíamos chamar de “quarto ensaio” cujo autor seria Georges Canguilhem.

A conclusão de O pêndulo de Epicuro parece prenunciar o que seria a continuidade do trabalho ora desenvolvido. Isso porque em seu capítulo conclusivo exploram, ainda que sumariamente, mas com bastante precisão, a mirada de Canguilhem sobre o tema, especialmente quanto ao modo como este se apropria da leitura darwinista junto aos desdobramentos da biologia evolutiva da primeira metade do século XX. Referimo-nos à ideia de progresso e de finalidade, atreladas às noções de cópia e de erro utilizadas nos estudos de genética analisados em diferentes textos de Canguilhem. Para tanto, situam a crítica que este faz a leituras da biologia da década de 1960 quanto ao uso que fazem da ideia de erro (erro na cópia, na transcrição gênica), notadamente nos trabalhos dos ganhadores do PrêmioNobelde1965. Canguilhem entende que tais usos são “consequências da ilusão moderna de progresso e finalidade” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 164). Isso porque a variação, elemento fundamental para a produção de novas formas vivas, acaba se tornando um equívoco da natureza quando são entendidas enquanto “erros”: “munido da noção de erro, o geneticista alimenta a expectativa de que a natureza reproduz o padrão que ele próprio julga ter reconhecido nela” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 169). No entanto, a vida pode ser entendida como produção incessante de variação, de diferença e singularidade, e assim, não passível de ser reduzida a um tipo ideal, não havendo possibilidade de entender a diferença enquanto equívoco ou malogro. Tudo dependerá de suas relações com o meio. Tais leituras da biologia “não consideram suficientemente que o que chamam erro seria a própria condição da evolução” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 169). Anunciam então nas últimas páginas do livro que, ao se manter essas categorias não só se abre para o retorno do pêndulo a noções de progresso e de finalidade, mas também para a eugenia, para a “expectativa de correção de seu erro”. Em suma, a sobrevivência de noções como cópia e erro dificulta o abandono da ideia de progresso e finalidade ontológica da natureza e, segundo Bocca e Perez, só o abandono destas “abriria em definitivo as portas para a emergência do possível, onde ser vivo e ambiente seriam partes de um meio biológico sempre a se constituir” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 171). Em suas últimas palavras, são bastante precisos ao lembrar que a crítica de Canguilhem, a qual apresentam na sequência aos três ensaios de história da noção de história propostos ao longo de O pêndulo de Epicuro, sabe a que veio, pois “denuncia a fragilidade da iniciativa histórica de classificação dos seres vivos, especialmente a que sugere e sustenta a presença de um fio condutor de continuidade evolutiva, um poderoso instrumento de apoio para teses e ações racistas e eugênicas que merecem combate por toda parte” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 177). Lembram, por exemplo, a reintrodução do criacionismo via design inteligente, movimento presente na biologia contemporânea. Trata-se, portanto, de se estabelecer um combate contratais leituras cuja estratégia é sugerida nas últimas palavras do livro: “Que não se perca Epicuro de vista” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 177).

Entendemos que O pêndulo de Epicuro é uma ferramenta teórica densa para amparar a defesa da diversidade e singularidade das formas vivas, dado que a leitura do trabalho de Francisco Bocca e Daniel Perez subjaz um ideal, o de que os indivíduos não sejam lidos como mais ou menos próximos a uma finalidade arbitraria, artificial e historicamente constituída.

Em um momento no qual os apelos à finalidade, à refutação da diferença e à religião penetram a ciência e a filosofia, temos, nesta obra, uma reflexão filosófica condizente com nossas demandas atuais.

Nota

1 PEREZ, Daniel; BOCCA, Francisco Verardi; BOCCHI, Josiane Cristina. Ontologie sans mirroirs, essai sur la réalité – Borges, Descartes, Locke, Berkeley, Kant, Freud. Tradução de Isabelle Alcaraz. Paris: L’Harmatan, 2019.

Vinícius Armiliato – Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na mesma instituição, como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2288-3820

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Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro – MARX (C)

MARX, Karl. Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2018. Resenha de: RECH, Moisés João; TAUFER, Felipe. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Karl Marx, nascido em 5 de maio de 1818, em Trier, província alemã do Reno, estudou Direito na Universidade de Bonn e, em 1841, doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Jena. Sua tese de doutoramento corrobora essa sua afinidade com o estudo filosófico, embora revele um Marx muito diferente do militante comunista. Marx escreve sua tese sob uma Prússia arcaica, com o objetivo de assumir o cargo de professor na Universidade de Berlim, que foi frustrado em razão da situação política prussiana.

Sua tese de doutorado, Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, ganhou sua tradução para o português através da editora Boitempo. Com tradução direta do alemão, o texto conserva a afinidade com o original e proporciona acesso a mais um escrito para os leitores de língua portuguesa daquele que foi um dos principais intelectuais e revolucionários do século XIX.

A tese não é um corpo literário único em razão de ter sido encontrada incompleta, mas, a despeito da incompletude, ela revela um antigo projeto de Marx de resgatar as filosofias epicuristas, estoicas e céticas, de destacá-las como chave para compreender a filosofia grega em geral, haja vista que eram tidas como resquícios pós-aristotélicos “sem importância” para a história da filosofia.

A tese é dividida em duas partes: a primeira, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos gerais”, conta com cinco capítulos. Porém, o Capítulo IV apresenta a exposição de notas dispersas de Marx, e o Capítulo V, que se destinaria à síntese da primeira parte, foi totalmente extraviado. Esse ponto é uma certa interrupção no manuscrito. A segunda parte, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, apresenta cinco capítulos completos. O achado incompleto ainda conta com um apêndice sobre a polêmica entre Plutarco e Epicuro.

No primeiro capítulo da primeira parte, Marx estabelece seu objeto de estudo. “Parece suceder à filosofia grega o que não deve suceder a uma boa tragédia: ter um fim insosso”. (p. 29). Com essas palavras, Marx busca indicar que Aristóteles, para certos intérpretes da história da filosofia, marcou o fim da filosofia grega, assim, “epicuristas, estoicos e céticos são encarados como um suplemento quase inconveniente, totalmente desproporcional a suas formidáveis premissas”. (p. 29). Dessa forma, mediante questionamentos à tradição filosófica e à concepção hegeliana apresentada em sua Introdução à história da filosofia, Marx ressalta a importância desses sistemas filosóficos sob o argumento de que são esses mesmos sistemas “arquétipos do espírito romano, a forma em que a Grécia migrou para Roma”. (p. 30). Em outras palavras, se os sistemas pré-socráticos “são mais significativos e mais interessantes pelo conteúdo” (p.31), os pós-aristotélicos “o são pela forma subjetiva” (p. 31), que consiste no suporte espiritual dos sistemas filosóficos, quase esquecido por suas “determinações metafísicas”. (p. 31).

Trata-se, para Marx, de demonstrar como a diferença entre os sistemas de Demócrito e de Epicuro deve ocupar um lugar maior na discussão metafísica da história da filosofia. Por razões de economia textual, reserva-se para uma análise mais detalhada a exposição total desses dois sistemas e a relação com a filosofia grega em geral. Com efeito, a especificidade da proposta de Marx é somente a relação entre a o núcleo da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, e, por essa razão, o autor denuncia o preconceito arraigado à identificação da física democrítica com a epicurista.

No segundo capítulo da primeira parte, “Pareceres sobre a relação entre a física de Demócrito e a de Epicuro”, Marx cita comentários de  Posidônio, Nicolau e Sólon a respeito da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro. Ainda apresenta como Cícero, Plutarco e Leibniz criticam a filosofia epicurista em benefício da democrítica. Assim, finaliza o capítulo mostrando que todos esses estudantes de filosofia de natureza antiga “concordam em que Epicuro tomou sua física emprestada de Demócrito”. (p. 36).

Na sequência, em “Dificuldades quanto à identidade da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro”, encontra-se um esboço de contraste entre as duas filosofias. Trata-se de um capítulo de maior importância dentro da economia discursiva da obra em razão de ser e embasamento para o argumento central de Marx. A primeira divergência salta à vista na questão da “verdade e convicção do saber humano”. (p. 37, grifo no original). Marx contrapõe o ceticismo de Demócrito desenvolvido na concepção de como “se determina a relação entre o átomo e o mundo que se manifesta aos sentidos” (p. 38, grifo no original) ao dogmatismo de Epicuro. Tudo se passa como se Demócrito assumisse que a aparência do mundo sensível é subjetiva, pois os verdadeiros princípios são o átomo, e o vácuo e tudo o mais é opinião. (p. 38). O fato é que a dogmática de Epicuro toma o mundo como manifestação objetiva. Afinal, nada pode contradizer as sensações. (p. 40).

A segunda divergência: “a relação entre a ideia e ser, o relacionamento de ambos”. (p. 46, grifo no original). Para Marx Demócrito entende que a “a necessidade se manifesta na natureza finita como necessidade relativa, como determinismo”. (p. 51, grifo no original). A contraposição, dessa vez, reside no fato de Epicuro afirmar que “acaso é uma realidade que só tem valor de possibilidade”. (p. 52). O acaso, como uma possibilidade abstrata, é o que torna os fenômenos físicos possíveis, e não, necessários. Admitido todo o possível, como possível tem-se que “o acaso do ser apenas é traduzido em acaso do pensar”. (p. 53, grifo no original). Eis outra dificuldade para quem visa a identificar as duas filosofias da natureza. Aqui mora a tal interrupção no manuscrito.

Na segunda parte, “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, Marx diferencia as características do átomo no vácuo em Epicuro e Demócrito. Para o primeiro, há uma tríplice característica: a) queda em linha reta; b) desvio em linha reta; e c) repulsão dos muitos átomos. Para o segundo não há a possibilidade de um “desvio em linha reta”. Essa característica atribuída por Epicuro ao átomo é determinante na diferenciação de sua física em relação à de Demócrito.

A “declinação do átomo” – que Marx designará como a “alma do átomo” – é a particularidade abstrata que possibilita a autonomia do movimento; a possibilidade de liberdade e contingência – ao contrário da necessidade de Demócrito. (p. 78-79). Enquanto Demócrito atribui ao átomo um “princípio espiritual” (p. 78), Epicuro desenvolve a noção de declinação – de desvio em linha reta como possibilidade da contingência e da liberdade na física. “A particularidade abstrata só pode operar seu conceito […] abstraindo da existência com que ela se depara”. (p. 79, grifo do autor).

De fato, o desvio é uma libertação de sua existência relativa da linha reta. Marx destaca que “a contradição entre existência e essência, entre matéria e forma, que reside no conceito de átomo, está posta no próprio átomo individual, quando este é dotado de qualidades […] o átomo é estranhado no seu conceito”. (p. 101). Outra maneira de dizer que a natureza contraditória do conceito de átomo deriva das qualidades – tamanho, forma e peso – adotadas pela posição de Epicuro, em contraposição à Demócrito que ignora tal contradição. Para Epicuro é “por meio das qualidades, [que] o átomo adquire existência que contradiz seu conceito, [e] é posto como existência exteriorizada, diferenciada de sua essência”. (p. 86, grifo do autor). Essa diferenciação faz a contradição no conceito de átomo alcançar “sua mais gritante realização”. (p. 101).

No capítulo sobre o tempo, há uma argumentação a respeito da natureza do tempo. Em Demócrito o tempo é irrelevante para o átomo. Não tem função em seu sistema. Mas, quando a consciência filosófica questiona se a substância (átomos) é temporal invertem-se os termos: o tempo torna-se algo substancial, i.e., suprime seu conceito. (p. 103-104).

Na contramão, para Epicuro o tempo está ausente do mundo da essência, assim “torna-se a forma absoluta da manifestação”. (p. 104, grifo do autor). Marx destaca que o tempo é determinado como accidens do accidens, “é a mudança enquanto mudança refletida em si mesma, variação como variação”. (p. 104). Significa dizer que o tempo não existe em si, mas enquanto uma decorrência (acidente) do movimento e do repouso, ele é a “mutabilidade do mundo sensível agora como mutabilidade, sua variação como variação, essa reflexão da manifestação em si mesma, formada pelo conceito de tempo, tem sua existência isolada na sensualidade consciente” (p. 105), a sensualidade do ser humano é “o tempo encarnado, a reflexão existente do mundo dos sentidos em si mesma”. (p. 105, grifo do autor). Marx deixa claro que para Epicuro o tempo, como accidens do accidens, é  determinado pelos acidentes dos corpos percebidos pelos sentidos, em que “a percepção dos sentidos refletida em si é, aqui, portanto, a fonte do tempo e o próprio tempo” (p. 106); pois a reflexão dos acidentes na percepção dos sentidos humanos e sua reflexão em si mesmos são a mesma coisa. (p.107).

Em “Os meteoros”, há uma crítica às concepções astronômicas de Demócrito sobre os corpos celestes, pois “não há como extrair delas alguma coisa filosoficamente interessante”. (p. 111). A teoria dos meteoros de Epicuro demonstra ser mais profícua para debates filosóficos contemporâneos. Em oposição a todo o pensamento filosófico grego – especialmente de Aristóteles –, que estabelecia uma ligação entre os corpos celestes e os deuses e suas qualidades, Epicuro afirma que é uma tolice humana atribuir a Atlas a sustentação do céu, ou seja, é uma tolice humana divinizar os corpos celestes. (p. 115). Além disso, a teoria dos meteoros de Epicuro tem uma forte vinculação ética, o que não é raro para o pensamento grego que estabelecia uma ligação entre cosmo e polis. Assim, Marx afirma que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115).

Para Epicuro a teoria dos meteoros carrega a possibilidade, por outros meios, de fundamentar uma ética. Sendo assim, Marx defende que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115). Dessa forma, salta à vista uma tese de fundo: ao estabelecer as diferenças entre Demócrito e Epicuro, Marx encontra a autoconsciência da filosofia epicurista. (p.

31). Se para Epicuro a contradição entre forma e matéria, entre essência e aparência é constitutiva da possibilidade de declinação do átomo e, por consequência, da liberdade, logo se percebe que, nos corpos celestes, “foram resolvidas todas as antinomias entre forma e matéria, entre conceito e existência, que constituíra o desenvolvimento do átomo” (p. 121); de tal forma que os meteoros “declinam da linha reta, formam um sistema de repulsão e atração”. (p. 122).

Os corpos celestes são os átomos que se tornam reais, uma vez que a particularidade foi interiorizada, e a contradição, cessada. Contudo, no momento da reconciliação entre forma e matéria, a autoconsciência da “forma abstrata” se “proclama como o verdadeiro princípio, hostilizando a natureza que se tornou autônoma”. (p. 123). Os meteoros são a própria universalidade na qual a natureza se torna autônoma. Em contrapartida, sua constituição pela “forma abstrata” origina a particularidade abstrata que é a autoconsciência em sua ataraxia. (p. 124). “A absolutidade e a liberdade da autoconsciência constituem o princípio da filosofia epicurista”. (p. 124).

Ao final da obra, há um apêndice com o título “Crítica à polêmica de Plutarco contra a teologia de Epicuro” do qual restaram apenas fragmentos do texto original. Nesse apêndice, Marx faz remição direta a textos de Kant e Schelling, uma das poucas vezes que cita diretamente textos desses dois filósofos do idealismo alemão, ao tratar sobre a prova ontológica de Deus.

O texto revela um jovem em sua formação intelectual, com preocupações muito distantes das que o tomarão, na maturidade; mas revela igualmente nova dimensão de seu pensamento, que auxilia na reconstituição e reapropriação de seu legado intelectual: um materialismo que se abre à liberdade. A recente publicação em português da tese de doutoramento de Marx vem auxiliar os pesquisadores e estudiosos marxianos, além de contribuir, fundamentalmente, com o aprofundamento de suas ideias e de sua figura no cenário nacional.

Moisés João Rech – Docente do curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. Integrante do Observatório do Direito da mesma instituição. E-mail: [email protected]

Felipe Taufer – Mestre em Filosofia e Bacharel em Administração pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. E-mail: [email protected] Orcid ID: http://orcid.org/0000-0002-4137-9999

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