A sociedade da decepção | Gilles Ipovetsky

Gilles Ipovetsky1 Decepção
Gilles Ipovetsky | Foto: Fronteiras do Penamento

A sociedade da decepcao 2 DecepçãoA obra A sociedade da decepção, de Gilles Lipovetsky,1 3 é composta por três capítulos que se articulam e se complementam nos seguintes títulos: “A espiral da frustração”; “Consagração e descrédito da democracia”; e “Uma esperança sempre renovada”. Trata-se de um livro em formato de entrevista que foi prefaciado e inquirido por Bertrand Richard. Desde o primeiro capítulo – “A espiral da frustração” – são discutidas questões que insistem na programação tentacular dos corpos e das almas que contrastam com as análises de Foucault, ainda circunscritas à denúncia do controle e da imposição existencial totalitária sob as máscaras da democracia liberal (numa adesão secreta em obedecer). Para Lipovetsky (2017), há um novo papel social assumido pelo sujeito (de autonomia protagonista), agora impulsionado pela modernidade do consumo, dos lazeres e do bem-estar de massa, para além de ser uma existência programada e burocratizada por condicionamentos generalizados.

O autor toca uma atmosfera de suspeição da onda atual e de rejeição ao assumido discurso estático sobre alienação e controle programado da existência pelo capitalismo, em vista das dúvidas, ansiedades e incertezas de uma “realidade plural, multidimensional, mas dificilmente vivida (inclusive pelos antagonistas declarados da modernidade), como se fosse um inferno absoluto. Sem dúvida, nosso universo social contém elementos que podem induzir-nos ao otimismo e ao pessimismo” (LIPOVETSKY, 2017, p. 3). Leia Mais

Deleuze e Guattari: uma filosofia para o século XXI | Antonio Negri

Antonio Negri 2 Decepção
Antonio Negri | Foto: Christian Werner e Alexandra Weltz

Deleuse e Guatari uma filosofia DecepçãoTextos de Antonio Negri, marcados por intensos diálogos com o trabalho de Gilles Deleuze e Félix Guattari, bem como entrevista concedida pelo próprio Negri a Jeferson Viel, caracterizam este livro como uma notável radiografia histórica da incessante transformação do pensamento filosófico.

A partir do “Prefácio”, e mais especificamente, no decorrer da apreciação do Capítulo “Gilles-felix”, constata-se, com interessantes nuanças de sensibilidade, que, além de inspiração e parceria profissional, Negri encontrou em Deleuze e Guattari um fundamental suporte de natureza pessoal. A dinâmica da convivência dessa distinta tríade de filósofos, expõe laços de amizade fortalecidos essencialmente, a partir do apoio dispendido a Negri (de modo singular por Deleuze) durante seu exílio na França, em consequência de perseguições políticas sofridas em solo italiano. Certamente, louváveis peculiaridades da carreira de Negri, a exemplo de seu estilo de escrita, foram forjadas a partir da lealdade apreendida no que ele próprio retrata: “a arte de escrever a quatro mãos”. Tal habilidade foi por ele inauguralmente experimentada durante a concepção do livro As verdades nômades, em conjunto com Félix Guattari. Negri conta, com provável saudosismo, que a época compartilhada com seus companheiros guardava dias de infindáveis discussões sobre política, direito, modelos sociais disfuncionais e a latente necessidade de alterar ideais solidificados de há muito. O respeito mútuo existente entre amigos tão generosos uns com os outros, torna evidente que ambos não hesitariam em contribuir mutuamente, com suas épicas jornadas, nos rumos inquietantes daquela que lhes é uma obsessão: a filosofia. Leia Mais

Educar na realidade – L’ECUYER (C)

L’ECUYER, C. Educar na realidade. São Paulo: Fons Sapientiae, 2019. Resenha de: GONZALEZ, Nancibel Webber. Conjectura, Caxias do Sul, v. 25, 2020.

Catherine L’Ecuyer é canadense e reside na Espanha. Graduada em Direito, possui especialização pelo IESE Business School e título de Mestre Europeu Oficial em Pesquisa. É doutora em Educação pela Universidad de Navarra e publicou o artigo “The Wonder Approach to Learning”, pela revista Frontiers in Human Neuroscience, em que apresenta sua teoria sobre aprendizagem. L’Ecuyer é autora de Educar en el asombro, traduzido ao português como Educar na curiosidade: a criança como protagonista de sua educação e Educar en la realidad, traduzido ao português como Educar na realidade, do qual trata a presente resenha.

L’Ecuyer assessorou o Governo do Estado de Puebla, no México, para uma reforma da Educação Infantil, formou parte de um grupo de trabalho para o Governo da Espanha sobre o uso das novas tecnologias pelas crianças e participou da elaboração de um relatório sobre leitura digital para o Centro Regional para a promoção do Livro na América Latina e Caribe (Cerlac) (Unesco). Recebeu o Prêmio Pajarita da Associação Espanhola de Fabricantes de Brinquedos. Ministra palestras sobre Educação em diversos países, mantém um blog educativo com mais de 1 milhão de visitas e escreve artigos sobre Educação para o jornal El País. Catherine L’Ecuyer também é colaboradora do grupo de pesquisa Mente-Cerebro da Universidad de Navarra, Espanha. Leia Mais

Documentação Pedagógica e avaliação na educação infantil: um caminho para a transformação | Júlia Oliveira Formosinho e Christine Pascal

As organizadoras da obra: Júlia Oliveira Formosinho e Christine Pascal, são pesquisadoras portuguesas, que contribuem para discussões importantes, que integram inclusive a educação no Brasil, principalmente na área da infância. Essa obra foi escrita por catorze autores: Júlia Oliveira- Formosinho, Christine Pascal, Andreia Lima, Cristina Aparecida Colasanto, Donna Gaywood, Elizabeth Fee, Hélia Costa, Inês Machado, Joana de Sousa, João Formosinho, Maria Malta Campos, Sara Barros Araújo, Sue Ford, Tony Bertram. Inicialmente, a obra foi publicada na Língua Inglesa e, nessa versão, teve tradução de Alexandre Salvaterra, com a ajuda de revisão técnica de Júlia Oliveira-Formosinho, Mônica Appezzato Pinazza e Paulo Fochi.

Júlia Oliveira Formosinho [1] é uma pesquisadora sobre pedagogias de infância, aprendizagem infantil, documentação pedagógica e avaliação. Assim, seus estudos, centrados mais na infância e nos fazeres pedagógicos que a circundam, buscam uma visão de pedagogia-em-participação, teoria que desenvolveu junto a João Formosinho. É consultora do Projeto Brasileiro sobre Centros de Educação Infantil Integrados da USP, professora convidada da Universidade Católica Portuguesa em Lisboa e no Porto. Foi professora na Universidade do Minho. É diretora do Centro de Pesquisa da Associação Criança. Membro da direção da European Early Childhood Education Research Association (EECERA) e coordenadora de edições especiais da sua revista (EECERA Journal). Leia Mais

Espiritualidade para corajosos: a busca de sentido no mundo de hoje – PONDÉ (C)

PONDÉ, Luiz Felipe. Espiritualidade para corajosos: a busca de sentido no mundo de hoje. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. Resenha de: RECH, Maria Helena Bortolon. Conjectura, Caxias do Sul, v. 25, 2020.

O autor e sua filosofia – Luiz Felipe Pondé é filósofo, escritor e ensaísta. Doutor pela USP e pós-doutor pela Universidade de Tel Aviv (Israel), é professor na FAAP e PUC-SP, além de colunista na Folha de S. Paulo e comentarista da TV Cultura. Autor de vários livros, entre eles os bestsellers Filosofia para Corajosos e Amor para corajosos, também pela Editora Planeta.

A ideia e a filosofia de Pondé baseiam-se num certo pessimismo, na valorização das tradições religiosas ocidentais e no combate ao pensamento politicamente correto, nos meios universitários. Carrega fortes influências do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, do niilismo e do existencialismo. Em 2011, em entrevista à revista Veja, Pondé declarou ter deixado de ser ateu. Comecei a achar o ateísmo aborrecido do ponto de vista filosófico. A hipótese do Deus bíblico, na qual estamos ligados a um enredo e um drama morais muito maiores do que o átomo, me atraiu. […] Tenho a clara sensação de que às vezes acontecem milagres. Só encontro isso na tradição teológica, afirmou. Leia Mais

Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade – FEENBERG (C)

FEENBERG, Andrew. Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade. Tradução de Eduardo Beira; Cristiano Cruz e Ricardo Neder. Portugal: MIT Press, 2017. Resenha de: HABOWSKI, Adilson Cristiano; CONTE, Elaine. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

A obra Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade, de Andrew Feenberg, traduzida para o português por Eduardo Beira, Cristiano Cruz e Ricardo Neder, apresenta inicialmente uma introdução a Andrew Feenberg e à teoria crítica da tecnologia, com o propósito de informar o leitor sobre a biografia e as produções teóricas de Feenberg. Na obra são esboçadas as principais ideias sobre o fenômeno técnico, o que Feenberg denomina de “Teoria crítica da tecnologia”, evidenciando seu vínculo com as reflexões autocríticas da tradição cultural.

Andrew Lewis Feenberg nasceu em Nova York, nos Estados Unidos, em 1943. Seu interesse pela filosofia e literatura o levaram para a formação em Filosofia, graduando-se na Universidade John Hopkins em 1965, seguindo para a Universidade da Califórnia, em San Diego, onde obteve o título de mestre em 1967. Nos anos posteriores, passou pela Universidade de Paris, na França. Ao retornar aos Estados Unidos, Feenberg realizou o doutorado na Universidade da Califórnia, sob a orientação de Herbert Marcuse, concluindo essa etapa em 1973. Além das muitas atuações como conferencista e docente visitante em instituições de diferentes países, Feenberg trabalhou como professor na Universidade Estadual de San Diego de 1969 a 2003. Mudou-se para Vancouver, Canadá, assumindo a posição que até hoje ocupa, a de professor na Universidade Simon Fraser e a cátedra em Filosofia de Tecnologia. Leia Mais

Deleuze hermético: filosofía y prueba espiritual – RAMEY (C)

RAMEY, J. Deleuze hermético: filosofía y prueba espiritual. Buenos Aires: Las Cuarenta, 2016. Resenha de: MOSQUERA, Óscar Emerson Zuñiga. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, p. 202-207 2019.

A obra de Joshua Ramey – Deleuze hermético: filosofía y prueba espiritual – publicada em 2016 pela editora Las Cuarenta traz uma relevante contribuição aos estudos de filosofia da educação no Brasil. O livro é para professores e pesquisadores interessados em se aprofundar tanto nos estudos espirituais como na obra de Deleuze, toda vez que as referências espirituais do “filósofo da diferença” foram tratadas como algo acidental no conjunto de suas obras. Em relação ao autor, Joshua Ramey é Doutor em Filosofia pela Villanova University, e suas pesquisas se centram na Filosofia contemporânea, incluindo tópicos como: teoria social crítica, economia política e teologia política. Além do livro que aqui apresentamos, recentemente, publicou Politics of divination: neoliberal endgame and the religion of contingency (2016), além de vários artigos sobre filósofos contemporâneos.

Sem dúvida, Ramey consegue estruturar uma leitura séria e rigorosa da obra deleuziana. Trata-se de uma abordagem heterodoxa em relação aos estudos e usos da obra de Deleuze, especialmente no Brasil, tal como se evidencia em recente coleção sobre o autor intitulada Deleuze, desconstrução e alteridade (CORREIA; HADDOCK-LOBO; SILVA, 2017) ou em obras de destacado valor para estudos deleuzianos no País vinculados à educação (GALLO, 2011), nos quais termos como espiritualidade, hermetismo e Ramey não são mencionados. Igualmente, essa leitura subversiva de Deleuze não está presente no campo dos estudos espirituais, conforme trabalhos importantes nessa temática foram revisitados em Röhr (2013). Isso posto, a leitura hermética do corpus deleuziano possibilita uma convincente interconexão entre aspectos como natureza, política, ontologia e ética. Leia Mais

El derecho educativo: miradas convergentes – GONZÁLEZ ALONSO (C)

GONZÁLEZ ALONSO, F. (Ed). El derecho educativo: miradas convergentes. Espanha: Caligrama Editorial, 2018. Resenha de: TIMM, Jordana Wruck. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

O livro intitulado El derecho educativo: miradas convergentes, editado por Fernando González Alonso, foi publicado pela Caligrama Editorial, em outubro de 2018 e é fruto das discussões feitas durante o CICNIDE 2017 (V Congreso Internacional y I Congreso Nacional de Investigación en Derecho Educativo), realizado no México. Trata-se de contribuições de representantes das RIIDES Nacionais (Rede Internacional de Investigação em Direito Educativo) de oito países, sendo eles: Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, Espanha, México.

O livro está dedicado a todos os que buscam a paz, a tolerância, o respeito e a convivência. Também aos que se esforçam pela promoção e defesa dos direitos, bem como a toda a RIIDE estendida por tantos países, conforme dedicatória que abre a presente obra. Além disto, o livro é composto pelo prólogo de autoria de Andrés Otilio Gómez Téllez (presidente da RIIDE e representante da Rede no México), de doze capítulos, sendo onze redigidos em Língua Espanhola e um escrito em Língua Portuguesa. Leia Mais

Filosofia do cuidado – MORTARI (C)

 

MORTARI, Luigina. Filosofia do cuidado. Tradução de Dilson Daldoce Junior. São Paulo: Paulus, 2018. Resenha de: PROVINCIATTO, Gabriel Luís. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, p. 196-201, 2019.

Filosofia do cuidado é o segundo título da coleção Mundo da vida, inaugurada com a obra: Edmund Husserl: pensar Deus, crer em Deus (2016), da filósofa italiana Angela Ales Bello. A obra aqui apresentada caracteriza-se, sobretudo, pela abordagem de um tema específico, já exposto no título: o cuidado. Luigina Mortari, na verdade, já dedicou outras obras a essa temática, entre elas: A prática de cuidar (La pratica dell’aver cura) (2006), Cuidar de si mesmo (Aver cura di sé) (2009), Cuidar da vida da mente (Aver cura della vita della mente) (2013) e, mais recentemente, Filosofia do cuidado (Filosofia della cura) (2015). O principal ponto da obra (agora traduzida ao português) é o enfoque ético dado pela autora à dimensão filosófica do cuidado. A dimensão ética, porém, não é colocada de chofre como algo simplesmente dado ou como um pressuposto necessário a um mínimo entendimento da obra. Uma das intenções de Mortari é justificar por que o cuidado tem uma estreita ligação com a ética e, para tanto, propõe-se a construir um caminho ao longo da obra.

A estrutura da obra ajuda a compreender três aspectos cruciais: o ponto de partida teórico, a metodologia utilizada e os resultados alcançados. Há quatro capítulos: “Razões ontológicas do cuidado”, “A essência de um bom cuidado”, “O núcleo ético do cuidado” e “O concretizar-se da essência do cuidado”. O primeiro esclarece o ponto de partida teórico: aí a autora já sinaliza à relação entre ontologia e ética, bem como à importância da abordagem fenomenológica desse tema. Nesse sentido, uma ontologia do cuidado é devidamente justificada a partir de Ser e tempo (1927), de Martin Heidegger (1889-1976), à qual se somam outros dois pensadores fundamentais à continuidade do texto: Edith Stein (1891-1942) e Emmanuel Lévinas (1906-1995). O segundo capítulo, por sua vez, dá conta da questão metodológica, justificando o uso da fenomenologia como guia da pesquisa; novamente a autora se aproxima de Heidegger e traz também algumas contribuições de Husserl. Não se trata, porém, de uma mescla entre concepções distintas do que seja a fenomenologia, mas de mostrar sua relevância como método. A correlação eminente entre os dois primeiros capítulos vem à tona no terceiro: nele, de fato, a autora mostra como se desdobra essa relação entre ontologia e ética, como a fenomenologia está presente na adequada abordagem prática do cuidado e como a dimensão do cuidado é eticamente relevante ao estar em estreita sintonia com o paradigma filosófico da busca ideal do bem e de sua concretização. O quarto capítulo, muito próximo dos resultados apresentados no terceiro, mostra algumas diretrizes fundamentais à realização cotidiana do cuidado, tendo como perspectiva o paradigma ético do bem. Lá ainda são retomadas as perspectivas iniciais às quais se somam as concretizações possíveis de uma ética do cuidado. Leia Mais

Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy – ATKINSON (C)

ATKINSON, Dennis. Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy. Cham, Switzerland: Springer/Palgrave Macmillan, 2018. Resenha de: BACKENDORF, Jonas Muriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy é o mais recente livro da série Education, Psychoanalysis, and Social Transformation, organizada pela Palgrave MacMillan. De acordo com a apresentação do livro, uma das finalidades principais da série é: “to play a vital role in rethinking the entire project of the related themes of politics, democratic struggles, and critical education within the global public sphere” (p. ii). Embora não trate diretamente das idiossincrasias do cenário brasileiro e sul-americano, o livro aborda com profundidade questões de fundamental relevância para a nossa realidade presente, em especial o caráter cada vez mais explícito com que as humanidades, as artes, e o pensamento desprendido como um todo vêm sendo atacadas pelo atual governo – por meio de argumentos que vão desde a ausência de “retorno para o contribuinte” até a “militância política”1 dessas áreas de estudo, argumentos que exemplificam com transparente precisão a relevância do ataque de Atkinson aos modelos pedagógicos instrumentais, bem como da defesa de uma educação crítica e desobediente.

O autor é professor emérito na Universidade Goldsmiths, de Londres, além de ocupar o cargo de docente visitante nas universidades do Porto, de Helsinki, Gothenburg e Barcelona. Um aspecto importante da sua biografia é a experiência que tem no ensino secundário, por ter trabalhado, na Inglaterra, de 1971 a 1988. O livro de que ora me ocupo é o sexto da bibliografia do autor, sendo os outros igualmente voltados para as questões educacionais: Art in education: identity and practice; social and critical practice in art education (coautoria de Paul Dash); Regulatory practices in education: a lacanian perspective (coautoria de Tony Brown e Janice England); Teaching through contemporary art: a report on innovative practices in the classroom (coautoria de Jeff Adams, Kelly Worwood, Paul Dash, Steve Herne e Tara Page) e Art, equality and learning: pedagogies against the state. O mais próximo, em conteúdo, do atual é justamente o último, em que o autor trata, já com profundidade, de algumas das questões centrais para o presente livro, a questão da desobediência e a da postura combativa frente aos modelos fechados da pedagogia instrumental. Leia Mais

Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro – MARX (C)

MARX, Karl. Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2018. Resenha de: RECH, Moisés João; TAUFER, Felipe. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Karl Marx, nascido em 5 de maio de 1818, em Trier, província alemã do Reno, estudou Direito na Universidade de Bonn e, em 1841, doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Jena. Sua tese de doutoramento corrobora essa sua afinidade com o estudo filosófico, embora revele um Marx muito diferente do militante comunista. Marx escreve sua tese sob uma Prússia arcaica, com o objetivo de assumir o cargo de professor na Universidade de Berlim, que foi frustrado em razão da situação política prussiana.

Sua tese de doutorado, Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, ganhou sua tradução para o português através da editora Boitempo. Com tradução direta do alemão, o texto conserva a afinidade com o original e proporciona acesso a mais um escrito para os leitores de língua portuguesa daquele que foi um dos principais intelectuais e revolucionários do século XIX.

A tese não é um corpo literário único em razão de ter sido encontrada incompleta, mas, a despeito da incompletude, ela revela um antigo projeto de Marx de resgatar as filosofias epicuristas, estoicas e céticas, de destacá-las como chave para compreender a filosofia grega em geral, haja vista que eram tidas como resquícios pós-aristotélicos “sem importância” para a história da filosofia.

A tese é dividida em duas partes: a primeira, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos gerais”, conta com cinco capítulos. Porém, o Capítulo IV apresenta a exposição de notas dispersas de Marx, e o Capítulo V, que se destinaria à síntese da primeira parte, foi totalmente extraviado. Esse ponto é uma certa interrupção no manuscrito. A segunda parte, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, apresenta cinco capítulos completos. O achado incompleto ainda conta com um apêndice sobre a polêmica entre Plutarco e Epicuro.

No primeiro capítulo da primeira parte, Marx estabelece seu objeto de estudo. “Parece suceder à filosofia grega o que não deve suceder a uma boa tragédia: ter um fim insosso”. (p. 29). Com essas palavras, Marx busca indicar que Aristóteles, para certos intérpretes da história da filosofia, marcou o fim da filosofia grega, assim, “epicuristas, estoicos e céticos são encarados como um suplemento quase inconveniente, totalmente desproporcional a suas formidáveis premissas”. (p. 29). Dessa forma, mediante questionamentos à tradição filosófica e à concepção hegeliana apresentada em sua Introdução à história da filosofia, Marx ressalta a importância desses sistemas filosóficos sob o argumento de que são esses mesmos sistemas “arquétipos do espírito romano, a forma em que a Grécia migrou para Roma”. (p. 30). Em outras palavras, se os sistemas pré-socráticos “são mais significativos e mais interessantes pelo conteúdo” (p.31), os pós-aristotélicos “o são pela forma subjetiva” (p. 31), que consiste no suporte espiritual dos sistemas filosóficos, quase esquecido por suas “determinações metafísicas”. (p. 31).

Trata-se, para Marx, de demonstrar como a diferença entre os sistemas de Demócrito e de Epicuro deve ocupar um lugar maior na discussão metafísica da história da filosofia. Por razões de economia textual, reserva-se para uma análise mais detalhada a exposição total desses dois sistemas e a relação com a filosofia grega em geral. Com efeito, a especificidade da proposta de Marx é somente a relação entre a o núcleo da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, e, por essa razão, o autor denuncia o preconceito arraigado à identificação da física democrítica com a epicurista.

No segundo capítulo da primeira parte, “Pareceres sobre a relação entre a física de Demócrito e a de Epicuro”, Marx cita comentários de  Posidônio, Nicolau e Sólon a respeito da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro. Ainda apresenta como Cícero, Plutarco e Leibniz criticam a filosofia epicurista em benefício da democrítica. Assim, finaliza o capítulo mostrando que todos esses estudantes de filosofia de natureza antiga “concordam em que Epicuro tomou sua física emprestada de Demócrito”. (p. 36).

Na sequência, em “Dificuldades quanto à identidade da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro”, encontra-se um esboço de contraste entre as duas filosofias. Trata-se de um capítulo de maior importância dentro da economia discursiva da obra em razão de ser e embasamento para o argumento central de Marx. A primeira divergência salta à vista na questão da “verdade e convicção do saber humano”. (p. 37, grifo no original). Marx contrapõe o ceticismo de Demócrito desenvolvido na concepção de como “se determina a relação entre o átomo e o mundo que se manifesta aos sentidos” (p. 38, grifo no original) ao dogmatismo de Epicuro. Tudo se passa como se Demócrito assumisse que a aparência do mundo sensível é subjetiva, pois os verdadeiros princípios são o átomo, e o vácuo e tudo o mais é opinião. (p. 38). O fato é que a dogmática de Epicuro toma o mundo como manifestação objetiva. Afinal, nada pode contradizer as sensações. (p. 40).

A segunda divergência: “a relação entre a ideia e ser, o relacionamento de ambos”. (p. 46, grifo no original). Para Marx Demócrito entende que a “a necessidade se manifesta na natureza finita como necessidade relativa, como determinismo”. (p. 51, grifo no original). A contraposição, dessa vez, reside no fato de Epicuro afirmar que “acaso é uma realidade que só tem valor de possibilidade”. (p. 52). O acaso, como uma possibilidade abstrata, é o que torna os fenômenos físicos possíveis, e não, necessários. Admitido todo o possível, como possível tem-se que “o acaso do ser apenas é traduzido em acaso do pensar”. (p. 53, grifo no original). Eis outra dificuldade para quem visa a identificar as duas filosofias da natureza. Aqui mora a tal interrupção no manuscrito.

Na segunda parte, “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, Marx diferencia as características do átomo no vácuo em Epicuro e Demócrito. Para o primeiro, há uma tríplice característica: a) queda em linha reta; b) desvio em linha reta; e c) repulsão dos muitos átomos. Para o segundo não há a possibilidade de um “desvio em linha reta”. Essa característica atribuída por Epicuro ao átomo é determinante na diferenciação de sua física em relação à de Demócrito.

A “declinação do átomo” – que Marx designará como a “alma do átomo” – é a particularidade abstrata que possibilita a autonomia do movimento; a possibilidade de liberdade e contingência – ao contrário da necessidade de Demócrito. (p. 78-79). Enquanto Demócrito atribui ao átomo um “princípio espiritual” (p. 78), Epicuro desenvolve a noção de declinação – de desvio em linha reta como possibilidade da contingência e da liberdade na física. “A particularidade abstrata só pode operar seu conceito […] abstraindo da existência com que ela se depara”. (p. 79, grifo do autor).

De fato, o desvio é uma libertação de sua existência relativa da linha reta. Marx destaca que “a contradição entre existência e essência, entre matéria e forma, que reside no conceito de átomo, está posta no próprio átomo individual, quando este é dotado de qualidades […] o átomo é estranhado no seu conceito”. (p. 101). Outra maneira de dizer que a natureza contraditória do conceito de átomo deriva das qualidades – tamanho, forma e peso – adotadas pela posição de Epicuro, em contraposição à Demócrito que ignora tal contradição. Para Epicuro é “por meio das qualidades, [que] o átomo adquire existência que contradiz seu conceito, [e] é posto como existência exteriorizada, diferenciada de sua essência”. (p. 86, grifo do autor). Essa diferenciação faz a contradição no conceito de átomo alcançar “sua mais gritante realização”. (p. 101).

No capítulo sobre o tempo, há uma argumentação a respeito da natureza do tempo. Em Demócrito o tempo é irrelevante para o átomo. Não tem função em seu sistema. Mas, quando a consciência filosófica questiona se a substância (átomos) é temporal invertem-se os termos: o tempo torna-se algo substancial, i.e., suprime seu conceito. (p. 103-104).

Na contramão, para Epicuro o tempo está ausente do mundo da essência, assim “torna-se a forma absoluta da manifestação”. (p. 104, grifo do autor). Marx destaca que o tempo é determinado como accidens do accidens, “é a mudança enquanto mudança refletida em si mesma, variação como variação”. (p. 104). Significa dizer que o tempo não existe em si, mas enquanto uma decorrência (acidente) do movimento e do repouso, ele é a “mutabilidade do mundo sensível agora como mutabilidade, sua variação como variação, essa reflexão da manifestação em si mesma, formada pelo conceito de tempo, tem sua existência isolada na sensualidade consciente” (p. 105), a sensualidade do ser humano é “o tempo encarnado, a reflexão existente do mundo dos sentidos em si mesma”. (p. 105, grifo do autor). Marx deixa claro que para Epicuro o tempo, como accidens do accidens, é  determinado pelos acidentes dos corpos percebidos pelos sentidos, em que “a percepção dos sentidos refletida em si é, aqui, portanto, a fonte do tempo e o próprio tempo” (p. 106); pois a reflexão dos acidentes na percepção dos sentidos humanos e sua reflexão em si mesmos são a mesma coisa. (p.107).

Em “Os meteoros”, há uma crítica às concepções astronômicas de Demócrito sobre os corpos celestes, pois “não há como extrair delas alguma coisa filosoficamente interessante”. (p. 111). A teoria dos meteoros de Epicuro demonstra ser mais profícua para debates filosóficos contemporâneos. Em oposição a todo o pensamento filosófico grego – especialmente de Aristóteles –, que estabelecia uma ligação entre os corpos celestes e os deuses e suas qualidades, Epicuro afirma que é uma tolice humana atribuir a Atlas a sustentação do céu, ou seja, é uma tolice humana divinizar os corpos celestes. (p. 115). Além disso, a teoria dos meteoros de Epicuro tem uma forte vinculação ética, o que não é raro para o pensamento grego que estabelecia uma ligação entre cosmo e polis. Assim, Marx afirma que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115).

Para Epicuro a teoria dos meteoros carrega a possibilidade, por outros meios, de fundamentar uma ética. Sendo assim, Marx defende que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115). Dessa forma, salta à vista uma tese de fundo: ao estabelecer as diferenças entre Demócrito e Epicuro, Marx encontra a autoconsciência da filosofia epicurista. (p.

31). Se para Epicuro a contradição entre forma e matéria, entre essência e aparência é constitutiva da possibilidade de declinação do átomo e, por consequência, da liberdade, logo se percebe que, nos corpos celestes, “foram resolvidas todas as antinomias entre forma e matéria, entre conceito e existência, que constituíra o desenvolvimento do átomo” (p. 121); de tal forma que os meteoros “declinam da linha reta, formam um sistema de repulsão e atração”. (p. 122).

Os corpos celestes são os átomos que se tornam reais, uma vez que a particularidade foi interiorizada, e a contradição, cessada. Contudo, no momento da reconciliação entre forma e matéria, a autoconsciência da “forma abstrata” se “proclama como o verdadeiro princípio, hostilizando a natureza que se tornou autônoma”. (p. 123). Os meteoros são a própria universalidade na qual a natureza se torna autônoma. Em contrapartida, sua constituição pela “forma abstrata” origina a particularidade abstrata que é a autoconsciência em sua ataraxia. (p. 124). “A absolutidade e a liberdade da autoconsciência constituem o princípio da filosofia epicurista”. (p. 124).

Ao final da obra, há um apêndice com o título “Crítica à polêmica de Plutarco contra a teologia de Epicuro” do qual restaram apenas fragmentos do texto original. Nesse apêndice, Marx faz remição direta a textos de Kant e Schelling, uma das poucas vezes que cita diretamente textos desses dois filósofos do idealismo alemão, ao tratar sobre a prova ontológica de Deus.

O texto revela um jovem em sua formação intelectual, com preocupações muito distantes das que o tomarão, na maturidade; mas revela igualmente nova dimensão de seu pensamento, que auxilia na reconstituição e reapropriação de seu legado intelectual: um materialismo que se abre à liberdade. A recente publicação em português da tese de doutoramento de Marx vem auxiliar os pesquisadores e estudiosos marxianos, além de contribuir, fundamentalmente, com o aprofundamento de suas ideias e de sua figura no cenário nacional.

Moisés João Rech – Docente do curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. Integrante do Observatório do Direito da mesma instituição. E-mail: [email protected]

Felipe Taufer – Mestre em Filosofia e Bacharel em Administração pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. E-mail: [email protected] Orcid ID: http://orcid.org/0000-0002-4137-9999

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Filosofia do ensino de Filosofia: propostas metodológicas para o ensino de Filosofia – SANTOS (C)

SANTOS, Rodrigo Barboza dos. Filosofia do ensino de Filosofia: propostas metodológicas para o ensino de Filosofia. Porto Alegre: Editora Fi, 2017.Resenha de: CHAVES, Kleber Santos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

O problema no ensino de Filosofia no Ensino Médio: sua natureza, seus contornos teóricos, problemas e algumas reflexões acerca do seu ensino são alguns dos aspectos que levaram Rodrigo B. dos Santos à realização de pesquisa que culminou com a obra aqui resenhada. Santos (2017) relaciona-se com tal problema desde sua experiência como professor no Ensino Médio e foi ela que determinou sua inquietude com o ensino de Filosofia. Tal inquietação motiva sua pesquisa desde a graduação, pois Santos (2017) entende o ensino de Filosofia como um problema efetivamente filosófico, páreo a tantos discutidos na tradição filosófica, apesar de constatar que há uma omissão na reflexão desses textos e autores dentro da própria Filosofia, em virtude, dentre outras, das divergências quanto à natureza de tal problema: pedagógico, didático, filosófico?

Em busca de uma resposta e inserido na tradição filosófica da hermenêutica – como interessada na interpretação dos significados adjuntos ao entendimento e às implicações desses em um escrito –, Santos (2017) parte em busca da compreensão dos sentidos que os textos apresentam para o ensino de Filosofia em um contexto no qual se entende possível tal ensino. Dessa maneira, os textos postos em comparação demonstram que o contexto de escrita da obra permite à Filosofia ser pensada como disciplina da Educação Básica, sem a perda de sua identidade. Afinal, como parte singular do conhecimento humano, não poderia a Filosofia ser mantida distante das pessoas, portanto, não poderia estar longe da escola.

Com essa compreensão, Santos (2017) organiza seu livro em quatro capítulos, precedidos pela introdução e encerrados com as considerações finais. O autor seleciona os trabalhos de Alejandro Cerletti, Lídia Maria Rodrigo e Silvio Gallo e, por meio da análise de suas obras, discute o que é o ensino de Filosofia. Justifica que a escolha dos autores se deu em virtude de o primeiro estar consagrado como referencial obrigatório dos assuntos de ensino de Filosofia de maneira mais global e de que os dois últimos são importantes referenciais do tema no Brasil.

No primeiro capítulo, é analisada “A concepção de ensino de Filosofia para Alejandro Cerletti”. São apresentadas as ideias do argentino discutidas no livro O ensino de Filosofia como problema filosófico, resultado de sua tese de doutorado. A análise leva em consideração três categorias principais: a definição de Filosofia como problema filosófico; o entendimento do que ela seja (de sua natureza) e do que se configura seu ensino. Essas categorias são empregadas na análise das obras de Rodrigo e Gallo, nos capítulos seguintes.

Começando pela análise da obra de Rodrigo (2009), já no segundo capítulo de seu livro, o autor aponta que essa foi publicada imediatamente após o retorno da Filosofia ao currículo do Ensino Médio por força da Lei Federal n. 11.684/2008. Santos (2017) destaca a preocupação de Maria Rodrigo com o que ela classifica de “banalização da filosofia”, mas não somente, uma vez que a autora oferece caminhos à superação desse risco a que a Filosofia está submetida pelo modo como ela retorna ao currículo.

Outro destaque na obra de Maria Rodrigo, apontado por Santos (2017), consiste na sua classificação pelos estudiosos de Filosofia em níveis que vão dos clássicos da Filosofia (“filósofos originais”), passando pelos especialistas (acadêmicos e professores de Filosofia), pelos estudantes de Filosofia (que almejam se tornarem especialistas) até o aluno do Ensino Médio, que parte do zero e deseja saber algo sobre a Filosofia, sem, necessariamente, ansiar por uma especialização nessa área do conhecimento.

O terceiro capítulo é dedicado ao estudo da obra de Gallo. Segundo Santos (2017), é possível destacar os seguintes elementos acerca da discussão do ensino de Filosofia efetuada por esse autor: a necessidade de o professor ter claro para si a concepção de Filosofia com a qual se identifica e que influencia no seu modo de ensino; a importância de dar ciência aos estudantes dessa concepção, permitindo que as demais visões conceituais de Filosofia estejam presentes; a indicação do conceito como objeto caro ao processo de filosofar tanto quanto ao de ensinar a filosofar.

Já no Capítulo 4, quando se apresentam as distinções marcantes entre as obras de Gallo e Certelli, Santos (2017) reafirma a aproximação entre os autores, ao mesmo tempo que afirma ser este ponto o centro da discordância entre ambos: para Gallo, a Filosofia pode ser identificada como a “criação de conceitos”; já para Certelli, seria um “processo reflexivo de problematização”. Isso implica que o primeiro aponte o ato de conceituar como centro do filosofar, enquanto o segundo, apesar de reconhecer a importância do conceito, trata a problematização como pedra angular do ensino dessa disciplina.

Concordamos quanto ao tema central do livro de Santos (2017): o ensino de Filosofia é um problema filosófico, uma vez que não pode desconsiderar a história, os clássicos, os argumentos, os conceitos e as perspectivas desenvolvidos pelos mais diversos filósofos, já que também não se pode encerrar a disciplina nesses aspectos.

O que não se pode perder de vistas é uma constante reflexão filosófica – portanto desapressada, aprofundada e não definitiva – das práticas de Ensino de Filosofia que, certamente, devem ser observadas em todas as esferas, das institucionais com as definições legais (LDB, DCN, BNCC, dentre outras), até o cotidiano em sala de aula. Além disso, não se imagina que esse processo possa ocorrer longe dos professores e pesquisadores de Filosofia, de Ensino de Filosofia e da Filosofia da Educação.

Nas considerações finais, Santos (2017) deixa o entendimento, ainda que bastante implícito, de que apenas a modificação das práticas dos professores será capaz de tornar o Ensino de Filosofia mais filosófico, o que incorre no equívoco de reproduzir o discurso de culpabilização do docente quase como único fator dos fracassos que podem ocorrer no campo da educação.

Cabe, por fim, demarcar a importância do esforço hermenêutico na obra, tanto pela revisão conceitual e comparativa realizada por meio da análise da produção de três grandes pesquisadores contemporâneos do ensino de Filosofia, de modo a subsidiar e encaminhar muitos problemas das práticas educativas dessa disciplina, quanto – talvez de modo mais urgente pelo contexto atual da educação no Brasil – pela afirmação do papel que a Filosofia desempenha no desenvolvimento educacional dos estudantes.

Por isso, lembramos: a Filosofia só esteve fora do currículo da escola quando a controvérsia, a diversidade e o diálogo foram dela expulsos. Não sendo o saber filosófico útil (no sentido mercadológico) aos interesses imediatos dos que hegemonizam na condução do País, uma vez que a Filosofia não prescreve receitas prontas, nem aceita a repetição uníssona – mas as indaga – ameaça-se a retirada do seu parco espaço em detrimento de saberes mais pragmáticos.

Kleber Santos Chaves – Licenciado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia Nossa Senhora das Vitórias (IFNSV) e o Centro Universitário Claretiano (CEUCLAR). Especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Maurício de Nassau (UNINASSAU, 2019). Mestrando em Ensino pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Integrante do grupo de pesquisa “Currículo, Gênero e Relações Étnico-Raciais” (UESB/CNPq). Professor regente de Filosofia na rede estadual de Educação do Estado da Bahia. E-mail: [email protected] Orcid ID: https://orcid.org/0000-0002-8005-1865

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Dicionário Paulo Freire – STRECK et al (C)

STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. (Org.). Dicionário Paulo Freire. 4. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. Resenha de: ROSA, Carolina Schenatto da; SANTOS, Débora Caroline dos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Paulo Freire foi, sem dúvidas, um grande reinventor de palavras e um alargador de significados. Grande pesquisador do povo brasileiro e de suas formas de comunicação, esse sujeito, à frente de seu tempo, se apropriou das palavras atribuindo-lhes sentidos singulares e profundos, cujos estudo e reinvenção são necessários ainda hoje. No prefácio do livro Pedagogia da tolerância, Lisete Arelaro diz que “Paulo Freire tem um estilo único: é um irresistível contador de estórias e ‘causos’”. (ARELARO, 2018, p. 12). Também é um irresistível transformador de conceitos, pois escolhia com cuidado as palavras, trabalhava os sentidos, sua origem e, de forma autêntica e profundamente comprometida, conferia-lhes um significado particular.

Cleoni Fernandes, no verbete Gente/Gentificação diz que o autor foi “um inventor de sentidos produzidos com outras palavras” (2018, p. 235); foi um semeador e um cultivador de palavras com o dom de pronunciar novas realidades, como destacam os organizadores do Dicionário Paulo Freire, no início da apresentação da primeira edição. Leia Mais

Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais – LEON (C)

LEON, Denis (Org.). Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais. São Paulo: FiloCzar, 2017. Resenha de: TRINDADE, Gabriel Garmendia da. Conjectura, Caxias do Sul, v. 23, n. 3,  p. 637-642, set/dez, 2018.

Poucos tópicos de reflexão são tão polarizadores quanto a questão das relações éticas estabelecidas entre humanos e membros de outras espécies.

Não é de se surpreender, portanto, que essa temática venha ganhando, cada vez mais, espaço nos programas de estudos e adentrando as salas de aula de instituições acadêmicas brasileiras. Em anos recentes, diversas obras têm sido lançadas precisamente com a finalidade de promover e estimular a investigação e o ensino de tais assuntos em território nacional. Dentre as últimas publicações dessa série, se encontra a coletânea Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais, organizada pelo educador e pesquisador paulistano Leon Denis.1 O livro é composto de quatro ensaios escritos por pesquisadores de variadas searas do saber, os quais almejam problematizar a chamada “Educação Vegana” interdisciplinarmente. Por “Educação Vegana”, o organizador da coletânea entende “uma ação direta pedagógica, cujo objetivo é levar a teoria dos direitos animais, sua prática e o modo de vida vegano ao conhecimento do maior número de pessoas”. (LEON, 2017, p. 13). Para fazê-lo, explica Denis, o educador vegano “insere no currículo escolar de sua disciplina todas as problemáticas inerentes ao debate suscitado pelo recorte biótico chamado Ética Animal”. (2017, p. 3).

Dado que a construção de um debate suficientemente aprofundado, acerca do modo como deveríamos agir para com os animais não humanos, depende de uma análise adequada de diferentes tópicos correlacionados, educadores veganos bebem de múltiplos campos do conhecimento, tais como: filosofia, biologia, psicologia, ciência política, nutrição, entre outros.

Denis, todavia, faz questão de ressaltar que, longe de se mostrar como uma ruptura antagônica do currículo adotado em instituições de ensino, a educação vegana surge, em realidade, para complementar a base comum dos manuais de educação desenvolvidos nos últimos anos, a qual atenta para a seriedade do combate ao sexismo, racismo e elitismo. (2017, p. 14).

Nesse sentido, educadores veganos partem dos costumes e sistemas curriculares preestabelecidos e, simplesmente, adicionam o especismo – i.e., a discriminação arbitrária de membros de outras espécies – à lista de preconceitos a ser urgentemente desmantelada.

O primeiro capítulo da obra, elaborado pelo próprio organizador do volume, intenta justamente expandir a discussão acerca desse tema. Mais precisamente, em seu ensaio, Leon Denis reflete sobre a possibilidade de fundamentar a Educação Vegana no cenário brasileiro por meio de propostas ético-filosóficas de cunho neoaristotélico. É observado que essa educação, quando tratada de maneira apropriada, é capaz de avançar um aspecto essencial da evolução educativa e do aprendizado que tem sido, há muito, deixado de lado, qual seja, a busca pela excelência no viver. No que tange ao âmbito nacional, até mesmo educadores veganos vêm negligenciando continuamente esse elemento pedagógico de crescimento ético-pessoal em seus seminários. Uma das principais razões para essa aparente falha educativa seria a ênfase exagerada dada à discussão de duas correntes de pensamento da ética voltada aos animais não humanos. Por anos, pesquisadores brasileiros da área têm centralizado suas investigações, quase exclusivamente, em apreciações consequencialistas, cujo principal defensor é o filósofo australiano Peter Singer, e/ou teorias baseadas em direitos, como as desenvolvidas por Tom Regan e Gary L. Francione. Embora as contribuições desses três autores para o campo em pauta sejam indiscutíveis, o contínuo foco na literatura por eles produzida tem, por sua vez, vendado muitos investigadores para a riqueza de posições concorrentes, tais como as neoaristotélicas.

Após feitas essas constatações, Leon Denis imediatamente lança-se em uma exposição pontual dos distintos posicionamentos pautados por virtudes de Stephen R. L. Clark, Rosalind Hursthouse, Bernard E. Rollin e Martha Nussbaum. Conceitos-chave dos posicionamentos – e.g., eudaimonia e telos – são, cuidadosamente, examinados em relação à Educação Vegana, bem como suas possíveis implicações pedagógicas. Ausentes dos comentários feitos por Leon Denis estão, no entanto, as costumeiras objeções filosóficas esboçadas contra a ética das virtudes e suas respectivas vertentes. Por exemplo, a crítica de que as virtudes não seriam capazes de fundamentar um código normativo propriamente dito. Tais objeções seriam particularmente significativas, sobretudo de um ponto de vista didático, em uma comparação entre as vantagens e desvantagens das propostas neoaristotélicas apresentadas ante os frameworks consequencialistas ou aqueles baseados em direitos. Não obstante esse pequeno detalhe, o capítulo elaborado por Leon Denis constitui uma importante e aguardada contribuição aos estudos brasileiros sobre a consideração moral de não humanos e à Educação Vegana como um todo.

O segundo capítulo é assinado pela educadora social Priscila Tessuto. Em seu texto, Tessuto examina a condição dos membros de outras espécies como propriedade por intermédio da teoria sociológica durkheimiana.

Como relatado em múltiplas publicações pelo jurista norte-americano Gary L. Francione, o status dos animais não humanos como propriedade é uma instituição inerentemente problemática. Uma vez que não humanos são tidos como coisas/mercadorias, quer de um ponto de vista econômico quer cultural e/ou político-filosófico, eles acabam sendo classificados em diferentes categorias com base em seus usos – e.g., não humanos para consumo, não humanos para entretenimento, experimentação, companhia, etc. – facilitando, assim, sua exploração sistemática. Tal exploração é, por seu turno, conservada e fomentada através de inúmeras práticas e tradições adotadas pela sociedade humana.

À vista disso, Tessuto utiliza, então, a noção durkheimiana de “solidariedade mecânica” para explicar os dispositivos sociais facilitadores da perpetuação da exploração não humana. Mais especificamente, é argumentado que a personalidade dos indivíduos estaria absorvida de tal maneira pela personalidade coletiva que o uso e o consumo de membros de outras espécies passaria a ser tomado como uma faceta completamente natural da sociedade humana; de modo que o repúdio ao exercício desses costumes ou atividades seria, por sua vez, imediatamente chacoteado pela grande maioria. A partir disso, Tessuto faz uma breve, porém acurada comparação histórico-social entre o tratamento depreciativo dispensado àqueles que se opunham à escravidão humana e os que hoje contestam o status dos outros animais como propriedade. Tessuto conclui sua análise defendendo a necessidade de uma mudança de paradigma concernente à condição de humanos e não humanos, a qual poderá, enfim, levar ao cerne da questão social como atualmente é compreendida. Se bem-explorada em sala de aula, a conexão entre os escritos de Durkheim e a proposta de Francione se verá que tem todos os ingredientes para gerar vários debates envolventes, sobretudo no campo das ciências sociais aplicadas.

O terceiro capítulo é, sem sombra de dúvida, o mais ambicioso da obra. Nesse, a Professora Sarah Rodrigues analisa a possibilidade da inclusão de tópicos referentes aos direitos não humanos em aulas de matemática.

Tomando como ponto de partida as ideias do educador matemático dinamarquês Ole Skovsmose, que articula uma abordagem pedagógica voltada à educação matemática crítica, Rodrigues propõe que o papel do docente da área sob escrutínio seja reconsiderado. Ao invés de estar limitado à mera função de propositor de “exercícios de fixação”, o professor de matemática deveria ser incumbido da responsabilidade de estimular a criticidade de seus estudantes. Tal responsabilidade abarcaria, entre outras coisas, a contemplação de questionamentos éticos, os quais estariam em linha com a realidade e vivência dos discentes.

Entre os assuntos a serem ponderados de forma crítica, encontra-se a polêmica atinente ao tratamento moral concedido aos integrantes de outras espécies. Para justificar a inserção dessa temática no leque de conteúdos apreciados pelo professor de matemática, Rodrigues constrói, então, um diálogo pormenorizado com a perspectiva educacional de Skovsmose e salienta a urgência e atualidade da questão não humana.

Em um segundo momento de seu texto, Rodrigues elenca sugestões específicas de como trabalhar a Educação Vegana matematicamente. O fato é que alguns manuais didáticos já apresentam exercícios matemáticos nos quais animais não humanos figuram – porém, somente de forma periférica e sob o completo prisma de uma consciência especista e antropocêntrica.

Por exemplo, há livros que solicitam aos alunos que calculem, com base em determinadas informações, o valor da arroba de boi gordo ou a região em que um cão de guarda acorrentado poderia circular livremente. Uma vez que ainda não existem compêndios da matemática que retratem os não humanos de modo alternativo, Rodrigues recomenda que o formador interessado em explorar a dinâmica das relações interespécies faça proveito de materiais complementares que possam contextualizar tais assuntos sob uma outra ótica.

Para citar um exemplo, dados sobre o desperdício de água na indústria do leite poderiam ser utilizados em aulas de estatística no Ensino Médio. Isso talvez possa levar à revitalização da matemática escolar, a qual é comumente estereotipada como inaplicável e estranha ao dia a dia dos estudantes. Há muito o que se considerar aqui. Se as reflexões levantadas por Rodrigues realmente atrairão docentes do campo da matemática para a problematização da Educação Vegana é uma pergunta em aberto. Dito isso, a proposta do capítulo em voga certamente será vista por muitos como sendo, no mínimo, intrigante.

O quarto e último capítulo de Educação Vegana versa sobre o ensino de Literatura e a ética nas relações interespécies. Mais especificamente, os pesquisadores Evely Libanori e Diego Fascina explicitam como as obras da aclamada escritora Clarice Lispector podem ser empregadas para despertar a preocupação moral dos alunos para com os membros das outras espécies.

É do conhecimento comum que muitas das publicações de Lispector trazem personagens que exibem uma inquietação bastante forte acerca do tratamento outorgado aos não humanos. Libanori e Fascina, todavia, vão além do que é geralmente conhecido acerca desse tema e estruturam uma apreciação escrupulosa do lugar do animal não humano na bibliografia lispectoriana.

Cerca de dez textos – entre romances, contos e crônicas – são examinados, constituindo uma avaliação que percorre desde o primeiro livro de Lispector, Perto do coração selvagem (1943), até o último: Um sopro de vida (1978).

As atitudes das personagens diante dos não humanos são diligentemente averiguadas à luz dos posicionamentos de algumas das maiores referências da “Ética Animal”, tais como Singer e Francione. Tudo isso é feito tendo em mente o que poderá ser requisitado dos estudantes em sala de aula.

No tocante a este capítulo final, pode-se afirmar, com segurança, que as obras de Lispector aparentam ser uma boa porta de entrada para discussões que relacionem clássicos da literatura brasileira e o pensamento ético contemporâneo direcionado aos outros animais. Entretanto, talvez valha a pena mencionar a necessidade de evitar extrapolações e exageros interpretativos ao realizar essas conexões. Pois, como Libanori e Fascina fazem questão de relatar, a despeito das especulações morais levantadas em seus escritos acerca dos integrantes de outras espécies, Lispector não era vegana ou vegetariana – o que revelaria os limites de tais comparações.

Em conclusão, Educação Vegana é um livro curto, porém significativo. Os contribuintes desse volume trazem à tona uma gama de tópicos rotineiramente negligenciados por educadores veganos e/ou pesquisadores brasileiros da “Ética Animal”. Tópicos os quais são passíveis de ser incorporados a seminários de diversas áreas em distintos níveis educacionais.

Tendo pontuado isso, ocasionais leitores da coletânea em pauta talvez possam ter a sensação de que muito mais poderia ser dito, no decorrer dos quatro capítulos, acerca das notórias dificuldades no processo de implementação de disciplinas voltadas à Educação Vegana. Afinal de contas, apesar da consideração de animais não humanos atrair, cada vez mais, a atenção de acadêmicos e docentes de numerosos campos do saber, a inclusão de cadeiras que abordem essa temática – especialmente em instituições com currículos já consolidados – continua sendo uma tarefa bastante árdua. É por isso que talvez seja importante realizar a leitura de Educação Vegana em conjunto com outras publicações organizadas pelo próprio Leon Denis, como, por exemplo, sua obra Educação Vegana: tópicos de Direitos Animais no Ensino Médio, a qual detalha, entre outras coisas, as possíveis maneiras de sobrepujar os obstáculos comuns ao desenvolvimento e à execução de aulas que lidem com Educação Vegana. Se assim for feito, essa nova antologia pode muito bem se tornar o alicerce intelectual de incontáveis colaborações interdisciplinares futuras sobre as relações mantidas entre humanos e não humanos.

Nota

1 Leon Denis é autor de Educação Vegana: tópicos de direitos animais no Ensino Médio (Libra Três, 2012) e organizador da antologia Educação e direitos animais (Libra Três, 2014).

Gabriel Garmendia da Trindade – Doutorando em Global Ethics pelo Centre for the Study of Global Ethics. Department of Philosophy da University of Birmingham (Reino Unido). E-mail: [email protected]

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Banalidade de Heidegger – NANCY (C)

NANCY, Jean-Luc- Banalidade de Heidegger. Trad. De Fernando Bernardo e Victor Maia. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 23, n. 1, Jan/Abr, 2018.

Luís Gabriel Provinciatto – Doutorando em Ciência da Religião – área de concentração: Filosofia da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com bolsa de financiamento Capes. Mestre em Ciências da Religião e licenciado em Filosofia pela PUC-Campinas. E-mail: [email protected]

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Paulo Freire: uma prática docente a favor da educação crítico-libertadora – SAUL (C)

SAUL, Ana Maria. Paulo Freire: uma prática docente a favor da educação crítico-libertadora. São Paulo: Educ, 2016. Resenha de: DALZOTTO, Mariana Parise Brandalise. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 3, p. 623-626, set/dez, 2017.

Quando pensamos nos autores que estudaram e reinventaram o conceito de educação no Brasil,1 é impossível não lembrar Paulo Freire. Seu pensamento é referência e tema de estudo, independentemente do passar dos anos, pois está fundamentado na prática educativa realizada, principalmente, neste país. De forma concisa, Ana Maria Saul busca tratar da atualidade do pensamento de Paulo Freire ao refletir sobre sua notória presença em pesquisas de pós-graduação e em práticas educativas no Brasil.

Ela também comenta, brevemente, a história do educador, escrevendo a respeito de algumas vivências com o mesmo. Por isso, em alguma medida, é possível observar que parte da biografia da autora se mistura com seus escritos no livro. Leia Mais

Convergencias teóricas: usos y alcances de la retórica – VIDAL; CISNEROS (C)

VIDAL, G. R.; CISNEROS, É. L. Convergencias teóricas: usos y alcances de la retórica. México: IIF/Unam, 2015. Resenha de: PAULA, Erico Lopes Pinheiro de. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 3, p. 618-622, set/dez, 2017.

A obra é o 32º volume da Colleción Bitácora de Retórica, editada pelo Instituto de Investigaciones Filológicas da Universidad Nacional Autónoma de México (IIF/Unam). O trabalho foi organizado pelos professores Gerardo Ramírez Vidal e Érika Linding Cisneros, com o subtítulo “Homenaje a Helena Beristáin”. A coletânea reuniu 17 textos acadêmicos, para marcar os dois anos de falecimento da pesquisadora emérita do IIF/Unam. Sobre os organizadores, Vidal foi secretário-geral da Asociación Latinoamericana de Retórica entre 2010 e 2012. O pesquisador desenvolve projetos individuais com enfoque no movimento sofístico nos séculos 5-6 a.C. na Grécia. Cisneros é membro do Sistema Nacional de Investigadores no México, desde 2007, e direciona seus trabalhos ao fenômeno da construção do pensamento social e político.

Logo na apresentação, os organizadores citam quais seriam as aplicações atuais para a disciplina “Retórica”. Segundo Vidal e Cisneros, entre as atividades teóricas e didáticas empreendidas de forma subjacente, a retórica possibilita investigar questões teóricas e metateóricas, relacionando-as com um sistema crítico. A seção também sistematiza breve apresentação dos artigos reunidos, analisando-os em três capítulos independentes. Leia Mais

Educação na era digital: a escola educativa – PÉREZ GÓMES (C)

PÉREZ GÓMES, Angel I. Educação na era digital: a escola educativa. Trad. de Marisa Guedes. Porto Alegre: Penso, 2015, Resenha de: MENDES, Michel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 2, p. 394-400, maio/ago, 2017.

O que significa formar uma personalidade educada, capaz de enfrentar, com certa autonomia, o vendaval de possibilidades, confusão, riscos e desafios deste mundo globalizado, acelerado e incerto? Como superar o vazio de um conhecimento retórico que não serve para orientar a ação? É possível ter uma escola verdadeiramente educativa, que ajude cada indivíduo a se construir de maneira autônoma, sábia e solidária? Essas são algumas das provocações “guarda-chuvas” que modelam e orientam a obra de Pérez Gómes. O autor é de origem espanhola, nascido em Valladodid, cidade situada a noroeste da Península Ibérica, Doutor em Pedagogia pela Universidade Complutense de Madrid e Professor Titular na Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Málaga.

As provocações apresentadas na obra refletem a necessidade pessoal do autor de pensar e reconsiderar questões pertinentes à educação, as quais também são compartilhadas por inúmeros profissionais da área. Leia Mais

Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant – NODARI (C)

NODARI, Paulo César. Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. Paulus, 2014. Resenha de: RECH, Moisés João. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 2, p. 401-407, maio/ago, 2017.

A tarefa que Paulo César Nodari se coloca é, em grande medida, ambiciosa, para dizer o mínimo. Sua pesquisa de tese de Pósdoutoramento que se constituiu na presente obra, tem como mote o “projeto filosófico da paz no contratualismo moderno” (2014, p. 298), na qual Nodari empreende profundos estudos acerca de autores clássicos do pensamento político-moral da modernidade: Hobbes, Locke, Rousseau e Kant – com notória ênfase no pensador de Königsberg. O inovador enfoque elaborado em Ética, direito e política… é justamente olhar sob um novo prisma os autores destacados, qual seja, o prisma da paz. Desse modo, Nodari desembaraçar-se da carga pessimista que os autores contratualistas carregam consigo, no que diz respeito à propensão da natureza humana à guerra.

Para tanto, o texto se desenvolve a partir de duas partes, que se dividem em seis capítulos. A Primeira Parte, intitulada: “O contratualismo moderno e o projeto filosófico da paz: Hobbes, Locke e Rousseau” é subdividido em três capítulos, que, igualmente, são divididos em partes de contextualização e de inovação. Leia Mais

A filosofia e o cuidado da vida – BUZZI (C)

BUZZI, Arcângelo R. A filosofia e o cuidado da vida. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 1, p. 181-186, jan/abr, 2017.

A linguagem utilizada na obra não pretende esgotar o significado do que seja esse tal cuidado da vida, já anunciado no título, mas antes fazer notar a relevância de tal tema para a elaboração da própria tarefa fundamental do pensamento – pensar a vida –, também expressa no título sob o nome de filosofia. Nesse sentido, Buzzi não conceitua propriamente nem o que seja cuidado e nem o que seja filosofia, mas convida o leitor a traçar um caminho no qual ambos os termos estão conjugados. O modo de utilizar a linguagem, então, é fundamental, pois se trata de indicar sem determinar.

Além disso, a maneira simples com que são colocadas as palavras e as citações permite uma intimidade com a obra, realizando, de fato, a proposta de viabilizar um caminho. Engana-se, porém, o leitor que acreditar que na obra há uma linguagem simplista: a simplicidade da obra está em sua essencial preocupação com o fundamental de cada questão levantada, sendo o autor, dessa forma, objetivo e preciso em suas assertivas. Além do mais, o próprio autor se utiliza de grandes expoentes do pensamento, mostrando-os como vias possíveis para pensar os vários desdobramentos do cuidado da vida. Não há equívoco em afirmar: a obra serve tanto para aqueles que já são iniciados nessa dinâmica própria do filosofar quanto para introduzir, nessa tarefa, tantos outros que dela se aproximarem. Por isso, pode-se dizer que o autor é capaz de continuar um caminho, pois escreve àqueles que já estão inseridos na própria filosofia, bem como é capaz de convidar a esse caminho, viabilizando-o pela linguagem simples, fundamental e, acima de tudo, por permitir ao próprio leitor a tarefa de pensar. Leia Mais

Laerte Ramos de Carvalho e a constituição da história e filosofia da educação como disciplina acadêmica – BONTEMPI JÚNIOR (C)

BONTEMPI JÚNIOR, Bruno. Laerte Ramos de Carvalho e a constituição da história e filosofia da educação como disciplina acadêmica. Uberlândia: Edufu, 2015. Resenha de: MUSTAPHA, Samir Ahmad dos Santos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 3, p. 666-671, set/dez, 2016.

Bruno Bontempi Júnior apresenta em livro a tese defendida em 2001. O autor conseguiu, no trabalho trazer à luz uma geração de intelectuais da educação que, nas décadas de 50 e 60 (séc. XX), se constituiu em importante espaço científico e de atuação nos fatos políticos do período.

O livro retrata a evolução da universidade como espaço de pesquisa e de formação de quadros intelectuais para uma carreira no ambiente de uma cátedra. Também observa o processo de ambientação em uma cadeira e a definição de saberes em disciplinas, no caso, a constituição do campo de história e filosofia da educação. Leia Mais

Entangled empathy: an alternative ethic for our relationships with animals – GRUEN (C)

GRUEN, Lori. Entangled empathy: an alternative ethic for our relationships with animals. New York: Lantern Books, 2015. Resenha de: MARIN, Ana Paula Foletto; TRINDADE, Gabriel Garmendia da. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 3, p. 672-677, set/dez, 2016.

Recentemente, empatia se tornou um tópico de interesse em múltiplos campos profissionais (e.g., direito, administração, recursos humanos, etc.), além de alvo de pesquisa em diferentes áreas do conhecimento (e.g., psicologia, filosofia, neurociência, etologia, etc.).

Embora empatia seja um termo constantemente empregado como se o seu significado fosse aceito por todos, é surpreendentemente difícil encontrar uma base comum entre especialistas não apenas no que concerne à melhor maneira de defini-la, mas também de entendê-la. Leia Mais

Motivação para ensinar e aprender: teoria e prática – SCHWARTZ (C)

SCHWARTZ, Suzana. Motivação para ensinar e aprender: teoria e prática. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: CAMPOS, Paulo Tiago Cardoso de. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 3, p. 660-665, set/dez, 2016.

O ponto de partida para a elaboração da obra de Suzana Schwartz incluiu uma pesquisa realizada no início de seu doutorado, a qual apurou este resultado: 75% dos 200 respondentes a um questionário, todos professores-alfabetizadores, declararam ser a “falta de motivação para aprender” a razão para a não aprendizagem de seus alunos. A autora afirma que há estudos que revelam decréscimo de motivação para a aprendizagem entre o início da Educação Básica e o quinto ou sexto ano. Na obra, a autora ocupa-se de questões que a inquietam intelectualmente, como: O que leva os alunos ao interesse e esforço para aprender, e em que medida isso depende deles ou do ambiente que os cerca, incluindo a sala de aula e o professor, em especial? Quais são as consequências da ausência de motivação, ou, ainda, da desmotivação, para a aprendizagem? De que maneira a motivação se relaciona com o trabalho docente?

A definição geral de motivação mais destacada pela autora considera que, inicialmente, há motivos ou metas que as pessoas definem (como, por exemplo, a busca de qualificação profissional), enquanto motivação é o processo através do qual os motivos surgem, se desenvolvem e mobilizam comportamentos. É aquilo que produz energia inerente às ações e aos meios de executá-las, e é afetado por fatores cognitivos e afetivos, tendo-se em vista experiências anteriores dos sujeitos, crenças e valores e aspectos contextuais (alguns desses sob controle do professor). Leia Mais

Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades – NUSSBAUM (C)

NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: M. Fontes, 2015. Resenha de: CESCON, Everaldo. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 2, p. 461-466, maio/ago, 2016.

Ensinar a ser homens de negócios ou cidadãos responsáveis? Treinar para obter lucros ou educar à cultura do respeito e da igualdade? É preciso saber interpretar o mundo no qual se vive ou bastam técnicos e cientistas capazes de fazê-lo funcionar? Essas são algumas das questões enfrentadas por Nussbaum, filósofa liberal de tendência reformista e progressista com ascendência aristotélica.

A autora aborda a crise do ensino humanista que, vista em escala mundial, parece prejudicial para o futuro da democracia e das novas gerações. A corrida ao lucro no mercado mundial está dissolvendo a capacidade de pensar criticamente, de transcender os localismos e de enfrentar os problemas mundiais como “cidadãos do mundo”. Leia Mais

Heidegger urgente: introdução a um novo pensar – GIACOIA JÚNIOR

GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Heidegger urgente: introdução a um novo pensar. São Paulo: Três Estrelas, 2013. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 1, p. 232-237, jan/abr, 2016.

Já há no Brasil uma imensidão de obras, quer originais em português, quer oriundas de traduções de outros idiomas, que se propõem a comentar, introduzir, explicar ou compreender o pensamento de Martin Heidegger (1889-1796). A obra de Oswaldo Giacoia Junior, publicada em 2013, encontra-se nessa lista e conta com algumas peculiaridades que dão a ela um destaque diante das outras. Isso não sem justificativa: há elementos que somente um bom leitor, intérprete e escritor conseguiria captar diante dos volumosos números das Obras completas (Gesamtausgabe) do filósofo alemão; uma leitura atenta e refinada e, sobretudo, um olhar filosófico, estão presentes nesse pequeno ensaio que leva como subtítulo “introdução a um novo pensar”. Desse modo, a presente obra de Giacoia conduz não somente a uma introdução ao pensamento de Heidegger, mas a um pensar filosofante com Heidegger.

Para um bom entendimento daquilo que aqui se propõe, é muito interessante apresentar a estrutura da referida obra: Introdução; O pensador do fim da metafísica; O primeiro Heidegger; A viravolta e a história da verdade do Ser; Como ler Heidegger; Conclusão. As divisões da obra, com certeza, possuem uma lógica baseada na estrutura do pensamento de Heidegger, o que, de fato, deve ser considerado. Porém, mudanças no trajeto de leitura serão propostas com o presente trabalho, bem como a intersecção de textos do próprio Heidegger para que, assim, o “pensar com Heidegger” ganhe maior clareza e, ao final do texto, tenha-se reais condições para construir um “novo pensar”, singular e autêntico. Deve- se destacar ainda que o foco maior do presente trabalho recai sobre a penúltima parte da obra acima referida, pelo fato de ela mostrar a grande erudição do autor. Leia Mais

Mergulhos de leitura: a compreensão leitora da literatura infantil – RAMOS; PANOZZO (C)

RAMOS, Flávia Brocchetto; PANOZZO, Neiva Senaide Petry. Mergulhos de leitura: a compreensão leitora da literatura infantil. Caxias do Sul: Educs, 2015. Resenha de: GABRIELLI, Mariele. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 1, p. 238-243, jan/abr, 2016.

A obra Mergulhos de leitura: a compreensão leitora da literatura infantil, objeto de análise deste estudo, é fruto de trabalho desenvolvido a quatro mãos, pelas professoras-pesquisadoras Flávia Brocchetto Ramos, Mestre e Doutora em Letras pela PUCRS, e Neiva Senaide Petry Panozzo, com Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRGS, que uniram suas experiências pedagógicas ao gosto de estudarem juntas. Essa pareceria iniciou na década de 80, quando, compartilhando o trabalho de coordenação pedagógica na Secretaria Municipal de Educação de Caxias do Sul, Flávia e Neiva trocavam ideias, pensavam o currículo e a formação continuada de professores, no que tange à linguagem literária e questões ligadas à leitura no âmbito das artes visuais.

Atualmente, Flávia Brocchetto Ramos e Neiva Senaide Petry Panozzo atuam como docentes e pesquisadoras na Universidade de Caxias do Sul. Colecionam artigos publicados em parceira, cursos de formação de professores e juntas já publicaram a obra Interação e mediação de leitura literária para a infância (2011). Leia Mais

Práticas de leitura e religiosidade em Dom Quixote – VIANNA (C)

VIANNA, Marielle de Souza. Práticas de leitura e religiosidade em Dom Quixote. Caxias do Sul: Educs. Resenha de: BOMBASSARO, Luiz Carlos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 20, n. 3, p. 225-230, set/dez, 2015.

Para quem deseja estudar e compreender as significativas e complexas relações entre literatura, leitura e religiosidade, está à disposição um belo e instigante livro: Práticas de leitura e religiosidade em Dom Quixote, de Marielle de Souza Vianna, publicado pela Editora da Universidade de Caxias do Sul (Educs). Nesse livro, a autora mostra como o entrelaçamento de leitura e religiosidade constitui um dos temas centrais daquele que é considerado um dos romances fundadores da literatura moderna: Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. Numa investigação meticulosa, que associa reconstrução histórica do contexto sociocultural e análise textual da obra cervantina, Vianna destaca a importância que a leitura e a religiosidade adquirem na estruturação dessa obra-prima, romance que marcou a transformação radical da literatura ocidental. O resultado é uma defesa inconteste do valor e do sentido da leitura e um convite para revisitar a fascinante, multifacetada e desafiadora obra de Cervantes.

A paixão pela leitura e pelo seu ensino é declaradamente o motivo que deu origem ao livro. Vianna a toma como pressuposto de seu trabalho que, além de ser uma produção simbólica marcante da nossa cultura, a leitura é antes um modo específico de interpretação da realidade e uma forma de vida. A leitura vem entendida, assim, como “um processo dinâmico constituído por múltiplas dimensões que envolvem o modo de ser, de perceber e de agir do ser humano no mundo”. (p. 12). Dessa  hipótese de trabalho, o leitor encontrará provas incontestáveis já nas primeiras páginas do livro, quando a autora indica quatro dimensões básicas da leitura: uma ontológica, uma estética, uma gnosiológico-hermenêutica e outra ética. A prática de leitura configura, assim, o modo de ser, de conhecer e de agir. Por isso, Vianna descreve o ato de ler como “uma relação existencial, um processo de descoberta e de construção de si mesmo e do mundo”. (p. 9). A prática de leitura é uma forma de vida e de convivência. Leia Mais

Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética – SANDEL (C)

SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Trad. de Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Resenha de: MEURER, Quétlin Nicole. Conjectura, Caxias do Sul, v. 20, n. 2, p. 230-237, maio/ago, 2015.

Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética é fruto de vários estudos e principalmente da participação do autor no Conselho de Bioética criado pelo presidente George W. Bush em 2001, com o intuito de refletir em torno de temas controversos ligados à engenharia genética. Por isso, o autor explora dilemas morais relacionados à busca do ser humano para aperfeiçoar a espécie.

O livro é dividido em cinco capítulos: a ética do melhoramento; atletas biônicos; filhos projetados, pais projetistas; a nova e a velha eugenia; e domínio e talento; além do epílogo. Também conta com notas e índice remissivo, o que permite melhor manuseio da obra.

O primeiro capítulo abre-se com reportagens de jornais, como do Washington Post, que relatam histórias sobre escolhas genéticas. O autor se pergunta: O que há exatamente de errado em gerar um filho que seja um gêmeo idêntico do pai ou da mãe, de um irmão mais velho que morreu tragicamente ou, até mesmo, de um cientista, um atleta ou uma celebridade admirada? Discute, a partir de então, o porquê de nos sentirmos perturbados com essa ideia. O problema inicial estaria na falta de autonomia dessas crianças que nasceriam predeterminadas, ou seja, não inteiramente livres. Entretanto, posteriormente, desfaz esse argumento, uma vez que, mesmo não havendo um projetista (nesse caso os pais), ninguém escolhe sua herança genética. Mesmo assim, o fato de crianças poderem ser geradas sob encomenda nos causa uma imensa inquietude moral. Segundo o autor, existem exemplos de biotecnologia desenhados no horizonte: melhoramento muscular, da memória, da altura e escolha do sexo, sendo eles uma escolha de consumo.

Então, apesar de todos os melhoramentos genéticos começarem na tentativa de prevenir uma doença ou um distúrbio genético, hoje são instrumentos de melhoria da espécie. A diferença, portanto, entre curar e melhorar tem cunho moral. Logicamente, é sabido que, quando a ciência avança mais depressa do que a compreensão moral, a humanidade luta para articular seu mal-estar com conceitos de justiça, autonomia e direitos humanos. Porém, nos parece, assim como para o autor, que o melhoramento de músculos em atletas para torná-los mais competitivos, por exemplo, não está relacionado com uma questão de justiça. Já existem atletas mais aptos geneticamente, simplesmente por herança e se esse fosse o principal argumento, se essas modificações estivessem disponíveis a todos, não haveria problemas a serem discutidos. Isso, no entanto, não acontece. A questão censurável, portanto, está voltada a motivos que vão além da justiça e da igualdade.

No segundo capítulo, analisa nossa resposta moral ao melhoramento, isto é, não haveria mais dedicação e talento; significa que daríamos mais importância ao farmacêutico do que ao jogador, por exemplo, uma vez que treinamento e disciplina não teriam mais importância, mas sim, o melhoramento genético a que foi submetido o atleta. O problema estaria no que Sandel chama de “superoperação, uma aspiração prometeica de remodelar a natureza, incluindo a natureza humana, para servir aos nossos propósitos e satisfazer os nossos desejos”. (p. 40). Não haveria mais dádiva na natureza humana. Reconhecer que a vida é uma dádiva é reconhecer que nossos talentos não são mérito unicamente nosso. Isso nos conduz à humildade e, apesar de parecer religioso, tem efeitos para além da religião. Entretanto, tem-se percebido diversas formas de “alterar” atletas sem esteroides ou qualquer outro medicamento ou mesmo sem modificações genéticas. Os casos apresentados pelo autor são a dieta hipercalórica para ganho de peso de alguns jogadores de futebol americano e da casa da Nike nos EUA, que possui oxigênio limitado, a fim de simular grandes altitudes e aumentar, desta forma, a produção de glóbulos vermelhos nos atletas. Esse aumento os tornaria mais aptos à corrida, uma vez que estariam acostumando seu corpo à reduzida oxigenação. Desse ponto, faz uma análise sob duas perspectivas: se, por um lado, considerarmos o esporte como sendo uma disputa de talentos, esse ficaria prejudicado com as modificações genéticas.

Entretanto, por outro, se fosse apenas um entretenimento, em que regras são pouco importantes, e o que faz a diferença é a quantidade de público que atrai, poderia ficar beneficiado caso atraísse mais pessoas. Porém, é óbvio que o esporte evidencia uma disputa de talentos e que, se fosse apenas um passatempo, não existiriam regras nem torcida e, tampouco, disputa admirada pelos espectadores. Os jogadores seriam nivelados, de certa forma, pela engenharia genética.

Em “Filhos projetados, pais projetistas” fica evidente a intenção do autor em demonstrar o lado perturbador da eugenia. Para ele, os filhos sempre foram dádivas e merecedores de amor incondicional dos pais. O amor destinado aos filhos nunca foi dependente das qualidades e talentos que esses, porventura, pudessem possuir ou vir a adquirir. Não escolhemos, em suma, nossos filhos e, tampouco, o seu futuro.

Entretanto, há pelo menos uma década, os pais resolveram se tornar maestros da vida dos filhos. Além de exercerem sua função natural de educadores, interferem de modo pontual na vida deles: matriculam-nos nas melhores escolas, em alguma atividade esportiva, em aulas de balé, contratam professores particulares e, inclusive, encaminham-nos a curso pré-vestibular para que possam frequentar as melhores universidades.

O autor aponta que nos Estados Unidos os administradores de faculdades precisam ser treinados para controlar pais dominadores que chegam a fazer as monografias dos filhos e dormir em conjuntos habitacionais estudantis para averiguar exatamente como os filhos estão se portando.

Outro apontamento é o uso excessivo de medicamentos como a Ritalina. Tal medicamento que anteriormente era utilizado apenas para tratar distúrbios de deficit de atenção, hoje, é utilizado em pessoas perfeitamente saudáveis para aumentar a sua concentração. É claro que o amor incondicional não impede que os pais moldem e dirijam a vida de seus filhos de modo a desenvolvê-los da melhor maneira possível. Por isso, a pergunta central deste capítulo é: Qual a diferença que há entre oferecer ajuda aos filhos por meio de educação e disciplina e fornecê-las por meio do melhoramento genético? A diferença, segundo o autor, reside no fato de que os pais que desejam melhorar os filhos tendem a exagerar e a converter os mesmos em produtos da sua vontade ou instrumentos da sua ambição: pais alucinados por algum tipo de esporte acabam determinados a transformar os filhos em campeões. Há, também, aqueles que predeterminam a profissão da criança. O autor termina o capítulo  com a opinião de que, no campo da moral, a eugenia e a educação fornecidas por pais ansiosos em moldar seus filhos não apresentam grande distanciamento. Ao mesmo tempo, porém, não devemos abraçar, por isso, a eugenia. Devemos, sim, questionar essa dominação dos pais que deixam de lado o sentido de dádiva da vida.

A velha e a nova eugenias demonstram que não há grande diferença entre o que se pensava e o que se pensa hoje em termos de engenharia genética. Primeiramente, cabe destacar que o termo eugenia foi criado pelo cientista Francis Galton com o sentido de bem-nascido. Ele entendia que o principal papel da racionalidade era o aprimoramento da raça humana, e que essa ideia deveria ser uma nova religião. Em nome disso, inúmeras pessoas (para catalogar e coletar dados) foram encaminhadas a prisões, hospitais, asilos e sanatórios, juntamente com outras que já se encontravam nesses lugares, após serem consideradas defeituosas, foram esterilizadas. Destaca-se que em 1927, a Suprema Corte dos Estados Unidos defendeu a constitucionalidade das leis de esterilização dos mais diversos Estados do país em nome da não propagação de uma raça de manifestamente inadequados. Da mesma forma, em 1933, quando conquistou o poder, Adolf Hitler promulgou uma lei de esterilização na Alemanha sobre a qual orgulhosamente se manifestou em Mein Kampf [Minha luta]. Contudo, como se sabe, a eugenia alemã foi muito além da esterilização, com assassinatos em massa. Em momento mais recente, por volta de 1980, o governo de Cingapura ofertava dinheiro às famílias pobres que se submetessem à esterilização e estimulava, ao mesmo tempo, mulheres de nível universitário a terem mais filhos. Isso tudo em nome da preservação dos padrões de educação. Apenas a título de curiosidade, somente em 2003 (após reportagens investigativas) os americanos fizeram pedidos formais de desculpas aos esterilizados compulsoriamente. Assim, o termo eugenia, no passado, passou a ter um sentido repugnante. Hoje, não está mais ligada ao Estado, mas às ambições humanas e, consequentemente, ao comércio de genes. Pais podem comprar óvulos e espermatozoides com características genéticas que desejam para os filhos e procederem a uma inseminação artificial, sem qualquer coerção. Isso demonstra que não era a coerção do Estado o único problema. Com a liberdade de escolha, as intenções eugênicas do passado não foram deixadas de lado, o que provoca um mal-estar social. Os bancos de semên catalogam apenas doadores com características exigidas pelos clientes, entre elas, formação universitária. É claro que há biótipos determinados  também. Assim, o discurso sobre a biotecnologia vem sendo revivido principalmente no que diz respeito a uma eugenia liberal. Geneticistas, atualmente, acreditam que se os melhoramentos fossem distribuídos de modo igualitário, as medidas eugênicas não seriam censuráveis, mas moralmente necessárias. Para endossar essa ideia, o autor cita John Rawls (Teoria da Justiça) e Ronald Dworkin (Playing God: Genes, Clones and Luck). A diferença primordial entre a eugenia do passado e a atual está no individualismo. Antes se tinha um Estado autoritário e disposto a melhorar a sociedade como um todo e com métodos discutíveis, é claro.

Hoje, se trata de pais abonados financeiramente e dispostos a pagar quantias altas para terem filhos conforme desejam e armá-los para uma sociedade competitiva. O autor destaca que os eugenistas liberais, em sua maioria, defendem, também, que essas modificações devem deixar em aberto o futuro dessas crianças, ou seja, não podem determinar carreiras ou modos de vida. Embora com defensores de peso já citados anteriormente, é trazido à baila um importante filósofo alemão contrário a essa permissividade. Trata-se de Jürgen Habermas. Sandel informa que, na teoria de Habermas, a eugenia liberal não pode ser permitida, uma vez que desconsidera conceitos espirituais e teológicos, além da autonomia e da liberdade – não depende de nenhuma concepção particular de bem-viver. Prejudicaria a autonomia uma vez que esses indivíduos não seriam autores da própria história e, quanto à liberdade, na medida em que destrói relações simétricas entre seres humanos livres e iguais. Termina esse capítulo informando que a teoria de Habermas é muito mais profunda, pois leva em conta, ainda, talentos adquiridos e conquistas humanas, bem como a postura dos pais diante do mundo e suas atitudes de dominação dos filhos.

No último capítulo, “Domínio e talento”, as questões centrais são a humildade, a responsabilidade e a solidariedade diante da possibilidade de a biotecnologia dissolver nosso senso de dádiva em relação à vida.

Sob a ótica da religião, não compreender que nossos talentos e nossas potências não se devem unicamente a nós mesmos é não compreender nosso lugar na criação e confundir nosso papel com o de Deus. Mas não é só sob o ponto de vista da religião que podemos descrever nossa relação com a humildade, com a responsabilidade e com a solidariedade. Em um mundo social que preza o domínio e o controle, a experiência de ser pai ou mãe é uma escola de humildade, já que não podemos escolher os filhos que teremos. Essa também seria diminuída ao passo que nos  acostumaríamos ao automelhoramos ou deixássemos de escolher determinadas características: mestres de nossas cargas genéticas, maior o fardo que carregaremos em relação às qualidades que não possuímos.

Isso, paradoxalmente, poderá reduzir nosso grau de solidariedade com os mais carentes. O autor aponta (como exemplo) os planos de saúde. Os saudáveis acabam subsidiando os doentes, uma vez que unem seus recursos e riscos. Isso só acontece porque as pessoas não conhecem nem controlam os próprios fatores de risco. Se conhecessem, provavelmente, não nutririam qualquer sentimento moral que a solidariedade social requer. Os bem-sucedidos não sustentariam a noção de dádiva (que nenhum de nós é completamente responsável pelo próprio sucesso) que os premiou e não sentiriam qualquer responsabilidade moral em relação aos menos afortunados na loteria genética. Por se tratar do último capítulo, o autor defende seus argumentos contra o melhoramento genético pressupondo as objeções que outros autores poderiam fazer a tais argumentos. Em relação à vida ser uma dádiva, explicita que não há, necessariamente, uma questão religiosa relacionada, pois, embora alguns creiam que Deus é o responsável pela nossa vida, não é preciso acreditar nele para valorizar a vida e a reverenciar. Podemos compreender a vida como um direito inalienável e inviolável sem, necessariamente, abraçar os conceitos de santidade. Após, Sandel argumenta que não deseja provar que o custo da biotecnologia é maior que o benefício.

Apenas acredita na ponderação, uma vez que as modificações genéticas são aparentemente uma forma de nos dominarmos para nos encaixar no mundo. Isso não é autonomia; é apenas contemplar nossa vontade. Além disso, poderá significar um retrocesso, uma vez que, após décadas, o homem percebeu que não precisa dominar a natureza, mas apenas juntar-se a ela como parte dela.

Para finalizar, no epílogo, cujo título inicial refere-se à ética embrionária, o autor defende que há diferença entre curar e melhorar. Defende a pesquisa com células-tronco para a cura de doenças, argumentando que nem tudo que nos é dado é uma dádiva e que, para a cura de determinadas doenças, é necessária tal manipulação de genes.

Nesse sentindo, não seria uma conduta antiética. Porém, tal questão retoma antigas discussões sobre a existência (ou não) de vida nesse estágio do embrião. Além disso, questiona-se a existência de diferença na conduta humana: se esses embriões fossem excedentes e descartados de tratamentos para infertilidade ou se fossem clones, a conduta humana na pesquisa seria eticamente louvável? O projeto de lei sobre células-tronco votado pelo Congresso americano (vetado por Bush em 2006) fazia distinção e só permitia pesquisas com embriões excedentes de tratamentos de infertilidade. Aparentemente, essa distinção parece moralmente defensável, mas não se sustenta sob o ponto de vista de que não deveria haver embriões excedentes (na Alemanha há lei que proíbe os médicos de fertilizarem óvulos que não serão implantados). Destaca-se, que para fins de pesquisa, o embrião acaba por ser destruído na fase de blastócito (células das quais se pode reproduzir tecidos humanos).

Assim, parece-nos um tanto mórbido, ao menos, criar vidas humanas para destruí-las com o único propósito de explorá-las. Alguns senadores norte-americanos, à época, justificaram seu voto desfavorável afirmando que não se pode considerar aceitável matar deliberadamente um ser humano para ajudar outro. Porém, os que eram a favor da pesquisa argumentavam que a Fecundação In Vitro (FIV) produz inúmeros embriões excedentes para aumentar as probabilidades de uma gravidez bem-sucedida, já sabendo que vários serão descartados. Então, se poderia utilizar esses excedentes, que teoricamente serão descartados, para salvar vidas. Segundo dados trazidos pelo autor, um estudo recente revelou que 400 mil embriões congelados estão definhando nos Estados Unidos.

Assim, uma vez que esses embriões já existem, não haveria nada a perder. Entretanto, quanto ao embrião-clone ou ao excedente, como bem argumenta o autor, não há diferença. Se considerarmos antiética a destruição de embriões excedentes para fins de pesquisa por já haver vida, da mesma forma temos que considerar na clonagem. Não há como fazer diferença sobre esse aspecto, uma vez que o cerne da questão é a existência de vida na fase em que são destruídos os embriões. Para Sandel, blastócitos são apenas células e não um bebê propriamente dito, considerando falha a crença religiosa de que a alma surge no momento da concepção, e que a vida humana é inviolável desde essa mesma concepção, já que não há uma linha para delimitar o início da personalidade. Para ele o blastócito é como uma célula epitelial. Ninguém negaria que é humana e viva, mas também ninguém tentaria argumentar que se trata de um ser humano propriamente dito. Sustenta que o fato de toda pessoa ter sido um dia um embrião não prova que o embrião é pessoa, são apenas seres humanos em potencial. A vida humana se desenvolve em níveis. O fato de haver um desenvolvimento contínuo que transforma o blastócito em embrião, esse em feto e, finalmente, em recém-nascido, não determinaria que um bebê e um blastócito fossem, no sentido moral, equivalentes. Na verdade, se estivéssemos convencidos de que são equivalentes, proibiríamos as pesquisas com células-tronco e baniríamos tratamentos de fertilidade que produzem e descartam embriões excedentes, tratando como assassinato e sujeitando os cientistas à punição criminal.

Outro argumento do autor é o de que muitos embriões são perdidos durante uma gestação natural, ou por aborto, ou por não conseguirem se fixar no útero, e, em nenhum desses casos, a religião (maior defensora da vida incipiente) prega que se façam os rituais funerários que se fariam para a morte de um bebê. Deixa claro, entretanto, que os embriões não são objetos ao nosso dispor. Devem ser respeitados como vida em potencial, e só não devem ser considerados pessoas. Para ele não devemos partir da alegação kantiana de que o universo moral se divide em termos binários: tudo é pessoa ou coisa. Afirma, ainda, que a pesquisa com células-tronco voltada à cura de doenças debilitantes é um exercício nobre do engenho humano para promover a cura e desempenhar nosso papel de reparar o mundo dado. A única ressalva é a necessidade de leis que regulamentem essas pesquisas para tornar o progresso da biomedicina uma bênção para a saúde e frear o uso descontrolado da vida humana.

Quétlin Nicole Meurer – Mestranda em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Encontros e diálogos: pedagogia da presença, proximidade e partida – SÍVERES (C)

SÍVERES, Luiz. Encontros e diálogos: pedagogia da presença, proximidade e partida. Brasília: Líber Livro, 2015. Resenha de: VASCONCELOS, Ivar César Oliveira de Conjectura, Caxias do Sul, v. 20, n. 2, p. 223-229, maio/ago, 2015.

Na complexa teia em que se transformou o mundo, fragmentado e dissolvido na modernidade líquida (cf. Bauman), os indivíduos se orientam e vivenciam as relações sociais menos conforme lógicas de ação razoavelmente organizadas e mais de acordo com uma autonomia construída na pluralidade de valores e na constante ruptura. Em vez da clássica ideia de ação, o mundo atual pode ser explicado pela noção de experiência social – condutas individuais e coletivas construídas na pluralidade de princípios e na ação dos indivíduos, responsáveis pelo sentido de sua ação (cf. Dubet). Essa noção pode ser interpretada como encontros entre seres humanos situados num mundo complexo, impulsionado por e para diversificados sentidos. Encontros que desafiam pessoas e instituições a exercitarem a capacidade de dialogar, um exercício que tem sido analisado e explicado a partir de variadas perspectivas – filosófica, antropológica, epistemológica e, particularmente, no caso da escola, da perspectiva pedagógica.

Nesse cenário, diversas questões se relacionam com o diálogo intergeracional. Jovens e não jovens vivenciam múltiplas maneiras de existir – enquanto os primeiros submergem nessas múltiplas maneiras de se fazerem presentes no mundo, os segundos, muitos deles, não se reconhecem nessa multiplicidade. Um cenário assim pode até favorecer o exercício do diálogo com os jovens, podendo estimular a criatividade, a construção de saberes e uma atuação local e global. Contudo, pode abrigar problemas sociais envolvendo a juventude, como, por exemplo, as dificuldades de ingressar no mundo do trabalho e o acesso à habitação (parte dos jovens coabita mais tempo com os pais, às vezes, mesmo casados), resultando até em revolta, marginalidade e delinquência, podendo associar-se ao consumo de drogas (cf. Pais). No âmbito da educação, constatam-se a violência, o aborrecimento e o desinteresse de adolescentes e jovens com relação à escola, ao analfabetismo e à evasão. Leia Mais

O livro da hospitalidade:  acolhida do estrangeiro na história e nas culturas – MONTANDON (C)

MONTANDON, Alan. O livro da hospitalidade:  acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Senac de São Paulo, 2011. Resenha de: COMANDULLI, Sandra Patricia Eder. Conjectura, Caxias do Sul, v. 20, n. 1, p. 183-190, jan/abr, 2015.

O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas, no original Le livre l’hospitalité: accueil de l’étranger dans l’histoire et les cultures (2004) foi concebido por Alain Montandon, professor titular de filosofia e de literatura geral e comparada na Universidade Blaise-Pascal, Clermont-Ferrand. No prefácio, Montandon afirma que “a hospitalidade é sinal de civilização e de humanidade”. É “uma maneira de viver em conjunto, por meio de regras, ritos e leis”. A proposta de Montandon é percorrer o tema da hospitalidade “de portas abertas ao leitor”, a quem ele denomina “nosso hóspede”. Para Luiz Octavio de Lima Camargo, doutor em Sciences de l’Education pela Universidade Sorbonne-Paris V e autor da apresentação da edição brasileira, é uma obra enciclopédica que “tem por objetivo trazer a noção da hospitalidade para dentro do terreno da reflexão filosófica e da observação empírica”.

Para Camargo “a justo título, pode ser considerada uma obra, se não fundadora, ao menos sistematizadora dos estudos de hospitalidade, já que define e expande consideravelmente os limites do tema”.

Cerca de oitenta colaboradores, entre eles, filósofos, antropólogos, psicólogos, comparatistas, historiadores, etnólogos, literatos, especialistas em comunicação e sociólogos, oriundos de diversos países e de formações distintas escreveram os textos. A edição brasileira, publicada pela editora Senac (2011), foi traduzida por Marcos Bagno e Lea Zylberlicht. A obra é apresentada em cinco grandes partes, cada uma dividida em seções que agrupam os artigos. No final, há um capítulo sobre os autores, um capítulo de bibliografias – geral, por artigo e indicação de títulos publicados em português – e o índice, dividido em temático, onomástico e de obras citadas.

Esta resenha focaliza os artigos da quinta parte sobre filosofia e política, fazendo-se menção ao assunto de cada um deles. O primeiro é Jacques Derrida – Um pensamento do incondicional, escrito por Ginette Michaud, professora titular do departamento de literaturas de língua francesa da Universidade de Montreal. Michaud divide o conceito de hospitalidade, segundo Derrida, em três momentos reflexivos: a hospitalidade como um princípio ético, incondicional e infinito; a hospitalidade concretizada em responsabilidade e traduzida em palavra e gesto; a língua como hospitalidade, concentrando num silogismo hostipitalidade (1995), o paradoxo de ser hospitaleiro e, ao mesmo tempo, de provocar a hostilidade ao impor a língua ao hóspede. A busca incansável de Derrida, conforme Michaud, é pela hospitalidade “onde nunca saberemos quem acolheu quem e se (condição sem condição) a acolhida encontrou realmente lugar, foi dada e recebida e tornada acontecimento ao chegar”.

Marie Gaille-Nikodimov, professora titular de filosofia, na Universidade de Paris X-Nanterre, é autora dos três textos descritos a seguir. A acolhida problemática da filosofia na cidade propõe uma reflexão sobre as seguintes questões: Onde praticar o ato de filosofar? Em que condições? Onde a filosofia é capaz de melhor se desenvolver? A escola é o lugar, por excelência, de descoberta da filosofia? Deve constituir uma disciplina específica ou, ao contrário, estar presente em todos os cursos oferecidos pela universidade? Para responder essas perguntas, a autora propõe uma reflexão que perpassa a história da filosofia, apoiada em Sócrates, Descartes, Spinoza, Kant e Derrida. O primeiro, diante da crise de valores que atinge Atenas, chama cada um à razão em detrimento das suas crenças e opiniões e, condenado à morte, dirige-se aos atenienses salientando que a sua linguagem não é a mesma que a deles. Descartes, em 1641, nas Meditações metafísicas, reafirma a linha de demarcação entre o domínio da fé e da razão. Spinoza introduz o Tratado teológicopolítico, publicado em 1670, afirmando que “[…] a liberdade de filosofar não apenas pode ser concedida sem prejuízo para a piedade e a paz da república, mas também que não pode ser suprimida sem se suprimir ao mesmo tempo a paz da república e a piedade”. (SPINOZA, 1999 apud GAILLE-NIKODIMOV, 2011, p. 1018). Kant, em O conflito das faculdades  (1794), argumenta que a filosofia deve se submeter à lei da razão e não à lei dos governantes. Por último, a reflexão se volta para o discurso de Derrida, que coloca a questão da hospitalidade à filosofia de um ponto de vista cosmopolítico, ou seja, “em outro espaço diferente da cidade”, considerando-se por um lado “a multiplicidade dos modelos, dos estilos, as tradições ligadas às histórias nacionais ou linguísticas” e, por outro, “exceder constantemente o quadro desta ou daquela língua […] e circular de um espaço linguístico/de conceitualização a outro”.

Em Conflito do direito e das leis não escritas, o texto avança em busca da resposta para a questão: conceder ou não o direito de cidadania aos estrangeiros? Dentre as possibilidades, Nikodimov relaciona algumas, dentre elas: a questão econômica, ou seja, o benefício que o Estado pode ter com a concessão; o direito dos cidadãos de decidirem que tipo de comunidade querem criar e quem a ela pode pertencer; a ideia da existência de leis não escritas, que são o fundamento maior do direito dos refugiados; a hospitalidade como um ato jurídico e não filantrópico ao qual o Estado deve se conformar e, do primado do indivíduo sobre o Estado no qual a igualdade entre os homens fundamenta a obrigação de conceder o direito de cidadania.

O terceiro texto Sobre a ambiguidade dos direitos do homem está pautado na possibilidade de uma hospitalidade de Estado, em que o homem, cidadão privado é o sujeito de direito. A ideia de uma hospitalidade humanista repousaria, segundo Nikodimov, “sobre uma teoria que faz do homem, enquanto espécie, a origem e a finalidade dos direitos”. A partir dessa concepção, a hospitalidade assume um sentido jurídico-político fundamentada no direito cosmopolítico de Kant (1795).

Pretende, no entanto, ir além, ao classificar o homem como um sujeito de direito em relação a uma comunidade de direito internacional e não mais sob as condições de um estatuto jurídico exercido pelo Estado sobre o seu território. A hospitalidade humanista transporia uma fronteira do Estado-nação para a ideia de uma comunidade sem exclusão, ao pressupor a pessoa humana como único sujeito de direito e, assim, conferir a todos os indivíduos a mesma condição jurídica em virtude de seu pertencimento comum à humanidade.

O exílio é o tema que Sylvie Aprile, professora de história contemporânea da Universidade François-Rabelais, de Tours, aborda em Mutações e transferências. Inicialmente, ela cita a passagem da Bíblia no Êxodo, 22, 20 que diz: “Não maltratarás o estrangeiro, nem o oprimirás.

[…] Pois vós fostes estrangeiros no Egito.” A nostalgia está presente no tema do exílio e sua expressão mais comum, a queixa, é expressa pelo verso poético, o romance ou o anátema. O exílio é vivido como uma provação passageira que se configura na relação problemática da língua, na dificuldade do exilado de compreender os signos estranhos à sua volta, na ausência material das lembranças do passado, na falta de enraizamento ao solo estrangeiro, no olhar voltado para o passado e na hostilidade ao presente.

Dois artigos falam da imigração, no continente europeu, com ênfase na França por ser um país com tradição em receber muitos imigrantes. França/Europa foi escrito por Rose Duroux, professora emérita da Universidade Blaise-Pascal, em Clermont-Ferrand e Discurso e contradições por Mireille Rosello, professora de literatura e cultura de expressão francesa na Universidade do Northwestern, Chicago. Duroux faz uma abordagem diacrônica a respeito da imigração na França, fazendo menções históricas e citações quantitativas. As questões propostas por ela relacionam-se com o fato de ser a França o país que é exemplo para o mundo na questão dos Direitos Humanos: como é possível vencer o desafio da hospitalidade, se a imigração é um fato recorrente e crescente? A imigração ocorre devido a motivações econômicas, pessoais e familiares, de um lado, e, de outro, por questões políticas, origens étnicas, religião ou nacionalidade. A hospitalidade está estruturada em três conceitos concomitantes: assimilação, inserção e integração. O grande desafio que se impõe neste século XXI e uma das alternativas, segundo Duroux, para fazer frente à questão da imigração clandestina, seria a supressão dos vistos, a regulamentação da permanência e a abertura das fronteiras aos trabalhadores. Indo além, ela propõe que a Constituição europeia, ainda em preparação, contemple a “utopia positiva”, ou seja, a hospitalidade como o princípio da integração. Mireille Rosello, no seu Discurso e contradições, relaciona a hospitalidade ao contexto em que ela é praticada. No século XVIII, a Revolução Francesa introduziu a ideia dos valores republicanos universais, segundo os quais os direitos de todo o ser humano, independentemente de sua origem, estariam garantidos.

Entretanto, o clima hospitaleiro logo cedeu espaço e deu lugar à insegurança em relação ao que vem de um país não amigável. Contemporaneamente, a França pode não ser mais considerada um modelo de acolhimento, pois se encontra dividida entre um ideal de hospitalidade, e uma razão que se opõe à entrada daqueles que carregam  consigo a miséria. Segundo Rosello, a dificuldade na relação entre hospitalidade e imigração reside na questão: “como uma nação e um convidado (isto é, duas entidades a priori não comparáveis) podem estar ligados por um contrato de hospitalidade adaptado a uma situação contemporânea pós-colonial e transnacional?” Ela aponta as contribuições de Derrida e Baudrillard, segundo os quais a “hospitalidade e imigração às vezes não se entendem nada bem, principalmente, quando foi o próprio poder hospitaleiro da nação que contribuiu para colocar os estrangeiros em posição de solicitantes perpétuos”.

Magali Bessone, professora titular de filosofia na Universidade de Nice Sophia-Antipolis, escreveu os textos Excluído e marginalizado e A subversão heroica do público e do privado. No primeiro, ela afirma que a categoria de exclusão só adquire sentido em relação à de inclusão, de inserção e de integração. Os excluídos têm dificuldade “de definir sua própria situação, porque, com frequência, não têm acesso aos meios de expressão necessários para formular essa definição”. De outro modo, também a categoria dos incluídos encontra dificuldade de definição porque “sempre nos sentimos excluídos em relação a algum outro, sempre estamos excluídos de alguma coisa”. Bessone distingue formas de exclusão exercidas por aqueles que se julgam incluídos por deterem algum tipo de poder: na presença de uma ameaça à sociedade, é o estranho, o diferente que será objeto de exclusão; a “construção de um status de exceção”, como o ocorrido com os judeus na Alemanha nazista, e a criação de “espaços fechados no seio da comunidade, mas sem contato com ela: os guetos, os asilos ou as prisões”. Ela aponta a incoerência do coletivo que ignora as trajetórias particulares do indivíduo, colocando-o sob o domínio da inclusão. Por fim, conclui o texto, afirmando que “a exclusão demonstra a distância entre o que se supõe que os humanos sejam e o que eles são de fato”.

No segundo texto, Bessone enfoca o transcendentalismo, movimento nascido nos Estados Unidos (1836), cujo maior expoente foi Ralph Waldo Emerson, fundamentado na ideia de que “Deus deu aos homens os dons da perspicácia, da inspiração e da intuição” e que “é o instinto e não a razão, que nos conduzirá aos outros, ao mundo, e a nós mesmos, com uma atitude hospitaleira”. O termo transcendentalismo foi adotado em referência a Kant, que mostrou que havia uma “categoria de ideias muito importantes, de formas imperativas, que não provinham da experiência, mas graças à qual a experiência era  tornada possível; que elas eram intuições do próprio espírito; e ele as chamou de as formas transcendentais”. (EMERSON, 1967 apud Bessone, 2011, p. 1120). A hospitalidade, do ponto de vista transcendentalista, “é um modo privilegiado de estar junto, em que a verdade de cada um deve ser pôr a descoberto; dessa forma, ela é eminentemente política e, ao mesmo tempo, moral e religiosa”. As leis da hospitalidade têm o caráter das leis divinas, e o herói é o homem “cuja alma é nobre, e que, obedecendo a Deus, dá provas de uma generosidade hospitaleira”. Deus é a unidade do homem com todos os homens e com a natureza e é, ao mesmo tempo, totalidade e individualidade, o elo entre tudo o que existe. A hospitalidade não é “uma obrigação legal, e sim uma obrigação moral (no sentido kantiano do termo), ou, mais geralmente, uma exigência ética”.

O sonho de universalidade, escrito por Pierre-Yves Beaurepaire, professor assistente de história moderna na Universidade de Orleans, tem como tema a franco-maçonaria, que iniciou na época do Iluminismo (século XVIII) com um projeto de “reerguer a Torre de Babel”, estabelecendo entre seus membros uma ligação baseada na hospitalidade que Beaurepaire chama de planetária. Ele destaca que essa característica sofreu reveses com o passar do tempo. Atualmente, os franco-maçons, para recuperarem a “utopia da aldeia planetária”, investem “nas novas redes de comunicação, para definir os contornos de um novo espaço de hospitalidade maçônica: as ciberlojas, que permitem aos irmãos dispersos pelos quatro cantos do mundo bater à porta de ‘seu’ templo”.

René Schérer, professor emérito em filosofia na Universidade Paris VIII, é o autor de Necessidade do absoluto e esperança do melhor. O propósito do texto é colocar frente a frente a hospitalidade e a utopia, formando uma aliança, segundo ele, “paradigmática”, de reencontro “entre o velho e o novo: a hospitalidade, esse fato imemorável das sociedades humanas, e a utopia, perspectiva em direção do possível, do futuro”. O pano de fundo do texto é a obra Utopia de Thomas More. Schérer pergunta: Deve-se hospitalidade aos irregulares, aos clandestinos, que estão em situação incerta e que não receberam uma decisão positiva por parte dos Estados hospedeiros? Qual é a forma dessa hospitalidade? Dar hospitalidade a todos não seria uma utopia? Ele conduz o exame das possíveis respostas, contrapondo os dois termos: a utopia que “suspende, em uma espécie de epoché reveladora, toda crença no mundo, no real dominante, para melhor compreendê-lo e avaliá-lo”; e a hospitalidade, “o valor que, eminentemente, resiste a essa suspensão, precisamente  porque ela é de alguma forma, imanente a todo deslocamento, à viagem e à acolhida”. Contudo, mesmo concebida como “fechada e resistente”, a utopia já é “hospitaleira para o pensamento que a forma; hospitaleira desde a sua formação em um pensamento”.

Emmanuel Levinas – Rosto e epifania do outro, escrito pelo professor assistente de literatura e cinema latino-americano, na Universidade de Paris XII, Joachim Manzi, encerra a seção de Filosofia e política da obra.

Levinas nasceu em 1906, numa família judaica na Lituânia. Aos dezessete anos, estabeleceu-se na França, onde desenvolveu estudos de filosofia e, em 1995, faleceu. O princípio ético do filósofo, que perdeu seus familiares e foi feito prisioneiro durante o nazismo, está fundado no acolhimento incondicional do outro. Suas duas principais obras são Totalidade e infinito (1962) e Autrement qu’être ou au-dèla de l’essence (1974). Na primeira, Levinas propõe a hospitalidade como sendo “a verdadeira natureza incondicional da acolhida”. Esta acontece quando o outro acolhe antes mesmo que o eu concorde em ser acolhido. Acolher o outro é uma experiência que anula a resistência do eu e permite o início de uma consciência moral, que se manifestará no encontro “face a face com o rosto de outro”. A acolhida é uma relação intersubjetiva que contrasta com a ética racionalista e a dominação do discurso totalizante na sociedade ocidental. Conforme Manzi, o indivíduo, para Levinas, “torna-se cada vez mais heterônomo” ao não poder determinar as leis às quais obedece e a sua liberdade fica subordinada à exterioridade do outro e a de Deus, como ideia do infinito. Levinas “coloca no centro do face a face uma assimetria e uma renúncia de si que impedem qualquer retorno a si”. A subjetividade está sujeita à acolhida do outro e é ela que permite ao indivíduo vir a ser, como se na sujeição ao outro pela hospitalidade, o eu recebesse a si próprio. Se em Totalidade e Infinito a hospitalidade é assimétrica, em Autrement qu’être ou au-dèla de l’essence, Levinas revela “uma nova concepção do indivíduo”, que suprime qualquer pretensão de conquistar a totalidade do outro. A passividade prevalecerá sobre a atividade como uma exposição ao outro “anterior a qualquer proteção e a qualquer vontade”, como se o indivíduo passasse de autóctone para aquele que está fora do seu lugar. Manzi interpreta a dominação do eu pelo outro no pensamento de Levinas como o “traço de um indivíduo ferido, traumatizado, que, tendo sobrevivido ao Holocausto, deve testemunhar sobre ele apesar de tudo”. É a presença do rosto do outro que afirma a fidelidade absoluta do eu com o outro, ao mesmo tempo que desfaz “qualquer ideia de alteridade que o eu pôde ter”. Manzi lembra que Levinas inspirou-se na ideia cartesiana do infinito, enquanto ideia exterior ao pensamento e, segundo a qual, surge ao eu porque lhe foi dada por “Alguém outro, Deus”. É do infinito que vem a resistência do eu que deseja totalizar o outro, e que, ao mesmo tempo, convida o outro a vir ao seu encontro. O face a face com o rosto de outrem leva o discurso filosófico de Levinas “a contradições em aparência insolúveis e, no entanto, sem cessar abordadas corajosamente na sua escrita, porque se encontram precisamente na origem do sentido”. O eu poderia renunciar à resistência e usar sua liberdade para matar o outro e, então, diante do arbitrário e do injusto, o eu “que se lê nos olhos que me olham no momento da acolhida do rosto”, que Levinas associa ao termo epifania, tem a consciência da impossibilidade ética de matar. Em Totalidade e infinito, a epifania do rosto permite que nos olhos do outro esteja também “numa distância infinita” o olhar de todos os outros que interpelam e atraem o eu para o encontro com o outro. Em Autrement qu’être, a presença de um terceiro obriga o eu não apenas a responder pelo outro, mas representa uma exigência para com “todos os outros próximos, pela humanidade”. Para Derrida, a presença de um terceiro colocado entre a relação do eu com o outro é entendida como “o vínculo da ética com tudo que a ultrapassa e a trai, como a ontologia e a política, por exemplo”. (DERRIDA, 1997b, apud MANZI, 2011, p. 1.167). Manzi finaliza o texto, descrevendo a dimensão feminina que está presente no pensamento de Levinas, em que ele interpreta a fecundidade da mulher como uma inteira receptividade a outrem e um abandono sem retorno a si.

O enfoque da hospitalidade na perspectiva da Filosofia e política continua sendo um grande desafio na época contemporânea, em que os movimentos migratórios são crescentes, atingindo níveis que beiram o incontrolável e que as fronteiras parecem cada vez mais permeáveis. Nesse contexto político, como a hospitalidade pode ser praticada? E como fazer da ética um princípio norteador das políticas ligadas à imigração? São questões difíceis com respostas que, pode-se pensar, até impossíveis.

A proposta do estudo sobre a hospitalidade é tornar a acolhida um exercício que deve permear o pensamento e as ações humanas, em processos permanentes de hominização e de civilização.

Sandra Patricia Eder Comandulli –  Mestranda em Filosofia na Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]

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Ética prática – SINGER (C)

SINGER, Peter. Ética prática. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. 3. ed. São Paulo: M. Fontes, 2012. Resenha de: LEITE, William Wiltonn. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p. 229-232, set/dez, 2014.

O livro Ética prática está composto de um prefácio, 12 capítulos e um apêndice. Peter Singer, filósofo utilitarista nascido na Austrália, atualmente professor na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, expõe, inicialmente, em seu livro, o que não considera ética e o que pensa ser ética. Em seguida, conduz a uma exposição argumentativa sobre a aplicação prática de determinadas concepções éticas a alguns temas relevantes e polêmicos do momento histórico que vivemos. Singer confronta a ideia de uma singularidade atribuída à vida humana, principalmente quanto a uma interpretação como algo sagrado, que impeça que essa seja examinada em relação a si mesma, à vida dos outros seres vivos com que o homem compartilha esse momento no Planeta e ao próprio meio ambiente como um todo. Analisando várias concepções de condutas éticas, conclui por defender a ideia de um tipo de utilitarismo preferencial, não clássico, por estar baseado no princípio da igualdade na consideração dos interesses dos agentes envolvidos numa específica conduta ética.

Singer começa o Capítulo 1 referindo que os assuntos relacionados à sexualidade ou uma teoria bem-elaborada em um sistema ideal de grande nobreza na teoria, mas inaproveitável na prática ou que a religiosidade, o relativismo, e u subjetivismo não são questões éticas. Leia Mais

eifar, semear: a correspondência de Van Gogh – GODOY (C)

GODOY, Luciana Bertini. Ceifar, semear: a correspondência de Van Gogh. 2. ed. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2009. Resenha de: AFIUNE, Pepita de Souza Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p.  224-228, set/dez, 2014.

A autora Luciana Bertini Godoy é graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Mestre em Psicologia Social e Doutora em Psicologia Social pela mesma universidade. Pesquisadora do Laboratório de Psicologia da Arte do Instituto de Psicologia da USP, recebeu apoio da agência financiadora de pesquisas Fapesp.

Atua na área de Psicologia da Arte, realizando vastas pesquisas e desenvolvendo muitos frutos sobre a biografia e obras de Van Gogh. Leia Mais

A religião na sociedade urbana e pluralista – OLIVEIRA (C)

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A religião na sociedade urbana e pluralista. São Paulo: Paulus, 2013. Resenha de: KRINDGES, Sandra Maria. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p. 217-223, set/dez, 2014.

A religião na sociedade urbana e pluralista, de Manfredo Araújo de Oliveira, instiga-nos à reflexão acerca do lugar ocupado pelo fenômeno religioso nos tempos hodiernos, caracterizado como elemento imprescindível de análise para a compreensão do fenômeno da globalização. Esse não se reduz a transformações meramente na esfera econômica, mas de amplas e complexas transformações da realidade a partir do progresso tecnológico-científico e de sistemas de comunicação multifacetados, astutos e revolucionários para denominar o que ora se entende por era da informação e do conhecimento. O texto situa o leitor tanto nos aspetos tradicionais e históricos da ciência e da cultura, mas também e fundamentalmente, quanto à presença da religião ante os desafios da cultura contemporânea nesse contexto de modernidade tardia.

O texto divide-se em duas partes, sendo que na primeira o capítulo intitulado: “A religião no contexto sociocultural da modernidade tardia”, é subdivido em dois subcapítulos: o primeiro refere-se ao “Saber científico como determinante na sociedade contemporânea” e o segundo, “A presença da religião no novo contexto societário”. Nessa primeira parte, Oliveira aborda a cientificidade e seu determinismo na sociedade contemporânea e a religião inserida nesse contexto. Discorre a respeito das transformações no campo das ciências e das novas concepções de saber, e da racionalidade concebida como a possibilidade do homem de compreender o ser e a realidade em sua totalidade, a partir da compreensão ontológica do homem e do universo. Passa-se, porém, à era da tecnicização das ciências, caracterizando-se como um saber ou uma racionalidade instrumental. Leia Mais

A identidade cultural na pós-modernidade – HALL (C)

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. Resenha de: POLETTO, Júlia; KREUTZ, Lúcio. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 2, p. 199-203, maio/ago, 2014.

É indiscutível a satisfação que, como pesquisadores, sentimos ao ler um livro que amplia as compreensões sobre determinado assunto. Mais do que apenas ler, é encontrar e explorar esses escritos, os quais nos auxiliam na “desconstrução” de conceitos e na reconstrução do conhecimento, ampliando assim nossas lentes sobre o assunto pesquisado.

Assim acontece em A identidade cultural na pós-modernidade, livro escrito por Stuart Hall e editado pela DP&A. Stuart Hall (1932-2014) foi um jamaicano que viveu e trabalhou na Inglaterra, transitando constantemente entre culturas diferentes em seu próprio processo identitário. Esta experiência o motivou e inspirou para as reflexões que construiu acerca da identidade, dentro da perspectiva dos estudos culturais. O autor faleceu recentemente (fevereiro de 2014) e deixou para os pesquisadores um primoroso legado científico, sendo alguns de seus escritos mais importantes: Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais; Raça, cultura e comunicações: olhando para trás e para frente dos estudos culturais; Centralidade da Cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo e Da diáspora: identidade e mediações culturais. Da mesma forma, a obra A identidade cultural na pósmodernidade elaborada por Stuart Hall contribui para esse arsenal de produções que discutem cultura e identidade. Leia Mais

Egocentricidade e mística: um estudo antropológico – TUGENDHAT (C)

TUGENDHAT, Ernst. Egocentricidade e mística: um estudo antropológico. Trad. de Adriano Naves de Brito e Valerio Rohden. São Paulo: WMF M. Fontes, 2013. Resenha de: CESCO, Marcelo Lucas. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 2, p. 204-208, maio/ago, 2014.

Ernest Tugendhat nasceu em 1930, em Brünn. Atualmente, vive em Tübingen. É professor emérito de Filosofia nas Universidades de Berlin e Tübingen. Sua obra, traduzida para o português, é composta por uma grande variedade de livros e artigos, entre eles se destacam Propedêutica lógico-semântica (1996), Lições introdutórias à filosofia da linguagem (2006) e Lições de ética (1997). Vem somar-se a estas obras traduzidas Egocentricidade e mística: um estudo antropológico, texto que será apresentado nesta resenha.

No referido texto, Tugendhat faz uma análise filosóficoantropológica, buscando, se não primeiramente responder, suscitar outras perspectivas de possíveis respostas para perguntas como: O que significa dizer “eu”? Por que os seres humanos buscam a paz de espírito? O que diferencia o homem dos outros animais? Como é que se dá a relação do homem com a vida e com a morte? Qual a diferença entre religião e mística? Este livro é dividido em duas grandes partes, a saber: na primeira, com o título de “Relacionar-se consigo mesmo”, o autor se foca mais em questões antropológicas, especificamente tentando responder o que ele entende por egocentricidade. Na segunda parte, sob o título “Tomar distância de si mesmo”, Tugendhat tem o foco voltado para as questões do que e como ele compreende a mística. Leia Mais

Corpos voláteis, corpos perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagogias e políticas do pós-humano – COUTO (C)

COUTO, Edvaldo Souza. Corpos voláteis, corpos perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagogias e políticas do pós-humano. Salvador: Edufba, 2012. Resenha de: JÚNIOR, Osvaldo Barreto Oliveira. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 1, p. 195-200, jan/abr, 2014.

“Corpos voláteis, corpos perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagogias e políticas do pós-humano” é um livro do professor universitário Edvaldo Souza Couto (EDUFBA, 2012, 182 páginas) que analisa as mutações por que passa o nosso corpo na contemporaneidade, argumentando que estar-no-mundo nos faz seres mixados, híbridos, pós-humanos. Assim sendo, as políticas, as filosofias e as fisiologias modernas, que legitimaram uma humanidade dividida, dicotômica e racional, dão lugar a políticas do pós-humano, do corpo ciborgue, da hibridização homem-máquina.

O livro reúne sete ensaios publicados pelo autor em revistas científicas, em anais de eventos, ou como capítulos de livros, entre 2000 e 2009. Nesses ensaios, o autor discute a busca incessante das pessoas pela transformação do próprio corpo, apresentando-nos análises consistentes de fatores sociopolíticos, ético-filosóficos, estéticos, técnicos e culturais que promovem a transformação do humano em pós-humano, do corpo natural em corpo ciborgue, ou do psicocorpo em cibercorpo. Leia Mais

O que o dinheiro não compra – SANDEL (C)

SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. Resenha de: BERTONCELLO, Leandro da Silva Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 1, p. 191-194, jan/abr, 2014.

Michael Sandel é uma das mais renomadas autoridades da filosofia no contexto atual. Ele é mais conhecido em função do curso Justice, ministrado na Universidade de Harvard, disponível na internet no site <http://www.justiceharvard.org/>. Para um auditório lotado, Sandel lança a polêmica sobre questões, como: A tortura é justificável? ou Você furtaria um remédio de que seu filho necessita para sobreviver? ou, ainda: Às vezes é errado dizer a verdade? No seu mais recente livro, O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado (traduzido para o português por Clóvis Marques e publicado em 2012 pela Civilização Brasileira), Sandel analisa e critica a crescente mercantilização da vida moral. Demonstra, por exemplo, que, em algumas unidades carcerárias nos EUA, os presos podem pagar para desfrutar de acomodações melhores; casais estadunidenses podem pagar por uma barriga de aluguel na Índia, onde tal prática é permitida; na União Europeia, uma empresa pode pagar 13 euros pelo direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera.

O autor reflete que, após o fim da Guerra Fria, quase tudo passou a poder ser comprado e vendido, e que os mercados passaram a governar nossa vida como nunca. Dois motivos são apontados para a preocupação com a invasão pelo mercado: a desigualdade, pois os pobres ficam cada vez mais afastados da influência política, de um bom atendimento médico, de uma casa em um bairro seguro e de escolas de qualidade (a distribuição de renda adquire importância maior); e a corrupção, pois os mercados corrompem ao estabelecer preços para coisas da vida, com o descarte de valores não vinculados à compra e venda. Leia Mais

Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade – LAZZARATO; NEGRI (C)

LAZZARATO, Maurizio; NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Tradução de Monica de Jesus Cesar. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2013. Resenha de: SILVESTRIN, Darlan. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 1, p. 186-190, jan/abr, 2014.

Antonio Negri é um filósofo italiano, contemporâneo, estudioso do pós-operaísmo, com uma ampla pesquisa sobre a nova configuração mundial realizada pela força do capital e suas consequências, de modo particular no mundo do trabalho. Tem diversas obras traduzidas para a língua portuguesa, dentre as quais Império (2004) e Multidão: guerra e democracia na era do Império (2005), ambas pela Editora Record. E Maurizio Lazzarato é um sociólogo italiano.

Esta obra trata de uma coletânea de ensaios que apresentam as transformações ocorridas no mundo do trabalho. Primeiramente, foram publicados na revista francesa Futur Antérieur, do próprio Negri. Foram publicados pela primeira vez no ano de 2000, e, felizmente, a Editora Lamparina apresenta ao público, em 2013, a 2ª edição dessa importante obra para a compreensão do pensamento de Antonio Negri e das transformações no mundo do trabalho.

O modelo fordista de produção tornou-se obsoleto, mas, obviamente, tem sua importância celebrada na evolução dos parâmetros da produção industrial, consequentemente, nos desenvolvimentos econômico e social como um todo. Com o passar do tempo, e inclusive por força da luta dos operários pelo reconhecimento de seus direitos, o trabalhador passou a ser visto como alguém que também existe como ser social, dotado de sensibilidade, de sabedoria, que pode colaborar e ser pró-ativo em seu ambiente de trabalho muito além do mero desempenho mecânico de suas funções. Nessa visão, o trabalho passou a ser visto com certa imaterialidade, repleto de subjetividade, modificando temporal e espacialmente a posição que o trabalhador deve ocupar.

Com a evolução do tema trabalho ao longo das últimas décadas, veio à tona um fato inegável, não é a quantidade de trabalho, nem mesmo o tempo que se trabalha, o grande propulsor do desenvolvimento. Passou-se a entender que, a partir do momento em que o trabalhador se torna um agente social, que interage com todas as dinâmicas ao seu redor, passa a produzir mais e melhor. A presença da subjetividade torna-se visível e compreensível, permitindo uma gama de evoluções, de percepções, que mudam a maneira como se trabalha, para que e quem se trabalha; nesse sentido, se encaixa com perfeição o termo cooperar.

Esse visa exatamente ao desenvolver engajado com todos os setores da sociedade, porque se entende que tudo faz parte de uma mesma engrenagem, e que somente pela união é possível crescer qualitativamente, alcançando por natural consequência uma ascendente quantitativa.

Essa concepção de trabalho imaterial se deve muito aos movimentos sociais no período que remonta a 1968, especialmente àqueles motivados por estudantes, que, até mesmo por não fazerem parte da classe operária, conseguiam observar aspectos por esses não vistos. Toda a luta, movida por ideais socialistas, mas fundamentalmente pelo reconhecimento da dignidade humana no ambiente de trabalho, foi observada por pensadores de todos os lugares. Desde tal época, os mesmos já afirmavam a importância da subjetividade do trabalhador, no florescer de seu intelecto, que pudessem ser alguém que superasse os moldes de uma linha de produção, podendo evoluir e movimentar criticamente todos os processos que fazem parte de seu cotidiano.

Existe um claro antagonismo entre a visão fordista de trabalho e a visão pós-fordista. A primeira evidenciada pelo trabalhador que apenas fazia parte de uma linha de produção, cuja subjetividade era desprezada por completo. Com o tempo, a luta anticapitalista trouxe a figura característica do trabalhador que não é apenas um operário na acepção do termo, mas um ser social, que tem suas opiniões bem-definidas, com capacidade para perquirir seus direitos e transformar o mundo. Por mais que o tempo passe, e com ele aconteçam inúmeras transformações, não podemos esquecer de que, se hoje vivemos numa sociedade mais justa, com garantias ao trabalhador, é devido à existência dessas duas visões antagônicas, até porque ambas são necessárias. A questão é encontrar o ponto de equilíbrio entre elas, podendo, por meio dessa mediação, chegar ao padrão ideal do que se entende por trabalho imaterial.

A hodierna conceituação de trabalho imaterial trouxe não apenas um novo modelo de trabalho, mas também indicou a existência de novas formas de poder, abarcadas por novos processos de subjetivação. Quando o trabalhador reconhece a própria importância, passa naturalmente a avocar direitos sobre o seu labor, provando que é imprescindível para o desenvolvimento das instituições e, por isso, detém certo poder mediante as demais esferas, inclusive, e de modo substancial, na política.

Essa nova visão do trabalho modificou aspectos interiores no que tange à produção, bem como aspectos exteriores que afetam, portanto, o mercado de consumo. Na época do modelo fordista, a industrialização baseava-se na produção de modelos de mercadoria padronizados, sem grandes distinções ou variedades: por sua vez, o consumidor daquela época também era pouco exigente. Com o passar dos tempos, isso se modificou completamente. Atualmente os meios de produção precisam acompanhar esse movimento frenético no qual a sociedade vive e se relaciona, primando por investimentos em qualificação, informação, inovação e todas as ferramentas necessárias para acompanhar a maneira instantânea como as dialéticas sucedem em nível global. Nesse mesmo sentido, obviamente, também segue o setor de serviços. É justamente no interior dessa relação de produção e consumo que habita o trabalho imaterial, ele é o grande mentor de todas as mudanças, do ritmo que movimenta os ramos sociais em suas atividades e objetivos.

A partir da década de 90 (séc. XX), mais especificamente, com a “Era Berlusconi”, surge a figura do “empreendedor político”, caracterizada pelo indivíduo que, além de manipular a opinião popular por meio da mídia, conhece e domina com maestria o novo modelo de produção, conhecendo todos os detalhes que movem essa estrutura de produção e consumo. Tais mudanças atingiram também o tradicional modelo de empresário, não sendo mais aquele que se atém à administração clássica de sua empresa; a questão em pauta é socializar a empresa, para isso um dos mecanismos utilizados são as chamadas redes de comercialização, exemplificadas pelo método franchising. Dessa forma, a empresa vem se tornando imaterial de modo que possa atingir o mundo todo, tornando-se globalizada. Percebe-se, assim, o quanto a imaterialidade do trabalho atingiu sem precedentes todos os âmbitos sociais.

Outro viés fundamental para a realização dessa imaterialidade que atinge o consumo de modo geral é a publicidade, entendida aqui como fator interativo com o consumidor, captando seus desejos (hoje não mais reconhecidos pela padronização, mas pela diversidade de produtos), e reproduzindo via imagens, conceitos, a criação e recriação do desejo de consumo, como forma de necessidade, ou, de maneira fugaz, até mesmo de status. Os setores de marketing, justamente por essa interação direta com o consumidor, são encarados como sendo os principais departamentos de uma empresa. Nesse diapasão, a figura de políticos e empresários acaba por se fundir, é a combinação do visionário economista com o estrategista político, transformando-se na característica única daquele que faz uso da subjetividade dos indivíduos, a favor do sucesso de sua atividade-fim.

Dentre as novidades pós-fordistas, podemos ainda destacar a do trabalho autônomo, que, embora gere uma maior responsabilidade em seu desempenho, pelo fato de o salário confundir-se com a própria renda, traz em seu bojo o traço fundamental da libertação, ou seja, a liberdade do operário (que antes estava retido em uma linha industrial) de poder escolher e construir seu próprio caminho, segundo seus objetivos e possibilidades.

Diferentes filósofos, pensadores, críticos, enfim, estudiosos das áreas sociais e humanas, desde há muito tempo, vêm acompanhando o dinamismo que envolve o trabalho e suas relações tanto intrínsecas quanto extrínsecas. Todos os conceitos e teorias hoje pertinentes ao tema provieram de debates sociais, das muitas lutas pela conquista dos direitos trabalhistas, pelos cenários políticos e, é claro, pelas diferentes conjecturas econômicas que moveram e movem a sociedade. Desse modo, cada fato sucedido deve ser considerado salutar para a estruturação do conceito hoje conhecido como trabalho imaterial, pois propõe uma visão humanizada do trabalho, mais ampla, capaz de contemplar aspectos sociais e humanos em prol do desenvolvimento da sociedade como um todo. Pode-se afirmar, apesar de infelizes exceções, que o trabalhador, hoje, é encarado como um cidadão, efetivamente portador de direitos e deveres, capaz de alterar substancialmente o meio onde atua e vive, mantendo, principalmente, sua subjetividade diante dos mais variados contrastes e sendo levada em consideração e essencialmente respeitada.

Essa obra parece ser a grande contribuição de Negri, juntamente com Lazzarato, para a compreensão da socialização do trabalho, na qual Negri, de modo particular, busca a fundamentação para o conceito de trabalho imaterial no pensamento de Marx, quando trata da questão do trabalho vivo ou trabalho social na obra pouco conhecida Grundrisse, com tradução recente para a língua portuguesa e publicada pela Boitempo Editorial. Negri faz uma leitura política dessa obra de Marx e encontra no conceito de intelecto de massa, ou general intellect, ou no conhecimento que está no cérebro das pessoas e no trabalho social, a constituição de novas subjetividades e novas formas de vida, marcadas pela cooperação entre as pessoas no processo produtivo.

Darlan Silvestrin  – Mestrando pelo PPGFil da UCS, Caxias do Sul, RS. E-mail: [email protected]

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Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas – HARVEY (C)

HARVEY, David et al. Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. Trad. de João Alexandre Peschanski. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2012. Resenha de: SILVESTRIN, Darlan. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 3, p. 185-191, set/dez, 2013.

Esta obra é uma coletânea composta por singulares artigos de escritores, críticos, historiadores e jornalistas, acerca dos manifestos ocorridos em escala mundial, no ano de 2011. Para a realização dessa, foram utilizados recursos gráficos de baixo custo e, fundamentalmente a colaboração dos autores que cederam seus trabalhos sem custo algum, da mesma forma os tradutores, essenciais para esse desenvolvimento. A comercialização desta obra não visa a aspectos lucrativos, mas tão-somente sociais.

Precedente analítico do atual cenário de manifestações populares ocorrentes no Brasil e no mundo, essa publicação, embora remetida aos manifestos de 2011 e 2012, aborda com a devida criticidade questões relevantes que ocasionaram motivações populares de protestos por todo o Globo. O capitalismo notavelmente pode ser considerado o grande opressor da sociedade. Assim como propulsiona o desenvolvimento econômico, precariza, num ritmo acelerado, as disparidades sociais, e tudo isso é dirigido por agentes políticos que parecem ignorar completamente os anseios da população. As atuais reivindicações denotam novas configurações, a começar pelo uso das redes sociais na divulgação das pautas, organização e convocação do povo para as ruas. Constata-se que os procedimentos para lutar podem ser outros, mais modernos e caracterizados pelo acesso instantâneo à informação, entretanto, o espírito e o desejo eminente por mudanças continuam sendo os mesmos. Leia Mais

Força de lei: o fundamento místico da autoridade – DERRIDA (C)

DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: M. Fontes, 2010. Resenha de: BELTRAMI, Fábio. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 3, p. 196-199, Set/dez, 2013.

Jaques Derrida foi um filósofo nascido em El-Biar, na Argélia, em 1930. Ensinou na Sorbonne, na École Normale Supérieure e École de Hautes Études. Viveu grande período de tempo na França e alternou docências tanto na França como nos Estados Unidos da América. Faleceu em Paris, em outubro de 2004.

O livro Força de lei: o fundamento místico da autoridade, no original [Force de loi…] (1994), com segunda edição no Brasil pela Editora M. Fontes, no ano de 2010, com 145 páginas e tradução realizada por Leyla Perrone- Moisés, consta de duas exposições realizadas por Derrida. A primeira parte do livro, intitulada “Do direito à justiça”, foi apresentada pelo filósofo em um colóquio organizado por Drucilla Cornell na Cardozo Law School, em outubro de 1989. Já a segunda parte, intitulada “Prenome de Benjamin”, foi apresentada em 26 de abril de 1990, em colóquio organizado por Saul Friedlander, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, EUA. Leia Mais

Estudos da linguagem na educação – PAVIANI (C)

PAVIANI, Neires Maria Soldatelli. Estudos da linguagem na educação. Caxias do Sul: Educs, 2012. Resenha de: KAODOINSKI, Fabiana. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 3,,p. 200-204, set/dez, 2013.

Neires Maria Soldatelli Paviani, nascida em 1946, em Flores da Cunha – RS, possui vasta experiência na área da educação, visto que iniciou a docência, no Ensino Fundamental e no Médio, em 1969. Em 1977 passou a ser professora no Ensino Superior, obtendo, nesse percurso, variadas experiências a respeito da inter-relação entre linguagem e educação.

Atualmente, atua no curso de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado), da UCS, sendo pesquisadora vinculada à linha de pesquisa Educação, Linguagem e Tecnologias desse Mestrado. Paviani possui Doutorado em Educação pela UFSCar-SP, Mestrado em Linguística pela UFRGS e Licenciatura em Letras: Português/Francês pela UCS. Publicou os livros: O pronome ético: uma característica dialetal (2004); Linguagens e práticas culturais (2006); Linguagem e educação (2008); Linguagem e suas implicações metodológicas (2008); e, em coautoria, Língua, cultura e valores (2003); Dicionário de italianismos (2006); Práticas de linguagem: gêneros discursivos e interação (2009); Gêneros de texto: subsídios para o ensino em diferentes disciplinas (2012). Leia Mais

Uma era secular – TAYLOR (C)

TAYLOR, Charles. Uma era secular. Trad. de Nélio Schneider e Luiza Araújo. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2010. Resenha de: CAMATI, Odair. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 3, p. 192-195, set/dez, 2013.

Charles Taylor é um filósofo contemporâneo, nascido em 5 de novembro de 1931, na cidade de Montreal, no Canadá. É Professor Emérito de Filosofia e Ciência Política na Universidade de Mcgill. De 1976 a 1981, Taylor dirigiu a cadeira de “Pensamento Político e Social” na Universidade de Oxford. Suas principais contribuições são na área da filosofia política, filosofia social e história da filosofia, com isso defende uma participação ativa na vida política, tendo concorrido ao Senado canadense.

O livro Uma era secular, no original [A Secular Age] (2007), lançado no Brasil pela Editora Unisinos, em 2010, está divido em cinco partes, nas quais Taylor busca responder a dois questionamentos, a saber: (i) o que significa dizer que vivemos em uma era secular; e (ii) por que passamos de uma sociedade na qual era praticamente impossível não acreditar em Deus para uma sociedade na qual a fé representa uma entre tantas possibilidades humanas. Para isso o filósofo canadense apresenta três formas de compreender a secularidade: a primeira é a tradicional separação entre Igreja e Estado; a segunda forma afirma que a secularidade consiste no abandono de convicções e práticas religiosas; por fim, a terceira forma à qual Taylor se dedica é a compreensão da fé como uma opção entre outras. Leia Mais

Grandes questões da ciência – SWAIN (C)

SWAIN, Harriet (Org.). Grandes questões da ciência. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2010. Resenha de: CAMPOS, Paulo Tiago Cardoso. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 148-156, maio/ago, 2013.

A obra organizada por Harriet Swain, aqui resenhada, conta com 20 capítulos que tratam de diferentes temas, cada um deles escrito por um autor e antecedido por uma introdução escrita por outro autor. Dentre os autores dos capítulos há alguns dignos de nota, como Martin Rees, Astrônomo Real, que escreve o capítulo sobre como começou o universo, e a neurocientista Susan Greenfield, da Universidade Oxford, considerada uma das mais importantes cientistas da atualidade; ela escreveu o capítulo sobre o que é o pensamento. Os capítulos são normalmente intitulados com perguntas. A maior parte dos autores é britânica, e alguns são norteamericanos.

Os temas cobertos pelo livro abrangem uma grande variedade de assuntos, e exibem tanto abordagem “positiva” (por exemplo, o capítulo O que é inteligência?) quanto “normativa” (como o capítulo “É certo interferir na natureza?”). O texto é escrito de forma acessível, num estilo quase jornalístico, sem perda do rigor das análises e do emprego dos termos adequados, mas compreensíveis. Leia Mais

Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann – GAY (C)

GAY, Peter. Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 157-162, maio/ago, 2013.

Literatura e história: aproximações teóricas e divergências metodológicas

A narração não podia ter uma condição própria, pois, conforme os casos, estava submetida às disposições e às figuras da arte retórica, ou seja, era considerada como o lugar onde se revelava o sentido dos próprios fatos ou era percebida como um obstáculo importante para o conhecimento verdadeiro. […] Só o questionamento dessa epistemologia da coincidência e a tomada de consciência sobre a brecha existente entre o passado e sua representação, entre o que foi e o que não é mais e as construções narrativas que se propõem ocupar o lugar desse passado permitiram o desenvolvimento de uma reflexão sobre a história, entendida como uma escritura sempre construída a partir de figuras retóricas e de estruturas narrativas que também são as da ficção. (CHARTIER, 2009, p. 12).

Assim, Roger Chartier, em seu livro A história ou a leitura do tempo, resumia as contendas entre historiadores, críticos literários e filósofos nos anos 1960 e 1970, e que se desdobraria na “crise da história” dos anos 1980 e 1990. Na década de 1970, o historiador Peter Gay não deixou de lado essas questões, mas seu caminho seguiu um rumo também peculiar. Em suas obras: O estilo na História: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt (de 1974), Arte e ação: as causas na história – Manet, Gropius, Mondrian (de 1976) e Freud para historiadores (de 1985), além de “pagar seu tributo à historiografia”, com uma trilogia não planejada, o autor também revisou o campo dos estudos históricos, ao propor articular novamente arte e ciência na escrita da história, em uma abordagem inovadora sobre o estudo da história social das ideias, utilizando-se das contribuições da Psicologia (em especial, da Psicanálise), para entender os homens e as sociedades do passado.

Ao publicar, em 1974, O estilo na história, ele não destacava especial apreço, ou atenção, sobre as discussões a respeito da “virada linguística”, proporcionada pela recepção do estruturalismo e do pós-estruturalismo francês nos Estados Unidos. Como ele próprio indica no livro, destinava maior consideração aos trabalhos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), Ferdinand de Saussure (1857-1913), Claude Lévi-Strauss (1908-2008) e Erich Auerbach (1892-1957). Principalmente o último, que o marcou profundamente, ao ler seu livro: Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, de 1946. Ao tratar da composição do estilo na obra de cinco historiadores: Edward Gibbon (1737-1794), Leopold von Ranke (1795-1886), Thomas Macaulay (1800-1859), Jacob Burckhardt (1818- 1897) e Theodor Mommsen (1817-1903), discutido na conclusão do livro, acentuaria de modo sutil sua crítica a Roland Barthes (1915-1980). Primeiro, porque o estilo não se encontrava apenas no campo da escrita, mas na sua interação com o escritor, sua época e seu meio. Segundo, porque as metáforas que lhe seriam inerentes não inviabilizavam a representação do princípio da realidade, antes a destacaria com maior sensibilidade e profundidade. Isso porque, ao ser o próprio homem, como o definiu Georges-Louis Leclerc (1707-1778), (mais conhecido como) conde de Buffon, o estilo demarcaria a matéria, a retórica, a maneira e as estratégias da escrita, mas ao ser também mais do que ele, como destacou Peter Gay, o estilo “nem sempre é o homem, decerto não o homem por inteiro”, mostraria sua relação com o “contexto de produção”, com o “lugar social ocupado pelo autor”, suas “leituras” e sua “formação”. Com isso, o estilo “por vezes, é menos do que o homem; com frequência é mais que ele”. (1990, p. 193).

Por isso, também, o estilo “é a arte da ciência do historiador”. Não foi por acaso, nesse sentido, que a continuidade de seus estudos, nesse campo, o levasse a analisar a “causalidade na história”, e a maneira como se apresentava na escrita, mas tendo em vista seus contornos em “artistas”, e não, nesse caso, em “historiadores”, como mostrou em seu livro: Arte e ação: as causas na história – Manet, Gropius, Mondrian (de 1976). No início dos anos de 1980, o autor prolonga tal esforço metodológico, apresentando sua proposta de aproximar a escrita da história, com a análise do “inconsciente”, exposta pela Psicanálise – tendo em vista a obra de Sigmund Freud (1856-1939), de seus seguidores e intérpretes (GAY, 1989b).

Assim, a sua “justificativa para a história como uma ciência elegante, razoavelmente rigorosa, apoiava-se fortemente […] no [s]eu comprometimento com a psicologia, em particular com a psicanálise”. Para o autor, a maior contribuição a ser encontrada nessa aproximação, outrora iniciada pelas descobertas de Marc Bloch (1886-1944) e de Lucien Febvre (1878-1956), com o movimento que geraram a partir da revista Annales, é que a “história psicanalítica pode entrar para expandir a nossa definição de história total decisivamente ao incluir o inconsciente, e o incessante tráfico entre a mente e o mundo, no território legítimo da pesquisa do historiador”.

(1989a, p. 165). Apesar de não dialogar diretamente, até este momento, com os filósofos franceses dos anos 60, que contribuíram para desencadear “a virada lingüística”, que nos Estados Unidos trouxe um grande impacto, ao questionarem a maneira pela qual os estudos históricos eram apresentados em suas formas narrativas, a obra de Peter Gay, nem por isso, deixou de reiterar a incontornável ligação entre a arte e a ciência, sobre os estilos da escrita da história apreendidos pelo historiador.

Quase duas décadas depois de concluir sua trilogia, sobre o estilo e suas relações com a história e sua escrita, o autor volta-se agora com maior atenção para o que até então havia deixado um pouco de lado, o romance e sua representação da realidade. Por que não só de divergências são constituídos os discursos histórico e literário. E seu livro Represálias selvagens (originalmente publicado em 2002), neste caso, não é apenas uma reconciliação do autor com o campo da produção literária, mas também um avanço quanto as suas análises sobre o estilo e a maneira pela qual caracteriza autor e obra, ao abordar o “princípio de realidade” contido na escrita – tanto da narrativa histórica, quanto na do romance. Contudo, o estudo da produção literária exige certa cautela, porque o romance encontra-se na “intersecção estratégica entre a cultura e o indivíduo, o macro e o micro, apresentando ideias e práticas políticas, sociais, religiosas, desenvolvimentos portentosos e conflitos memoráveis, num cenário íntimo”.

(GAY, 2010, p. 16). Apesar de os leitores quererem confiar “nos escritores de ficção tanto quanto acham que querem confiar nos historiadores”, ambos constroem representações peculiares sobre a realidade. Ainda que as aproximações teóricas, sobre os espaços de análise do romancista e do historiador sejam evidentes, há divergências metodológicas significativas na maneira como cada um procede com as fontes e reconstrói o vivido.

Para realizar seu estudo, o autor pautou-se na trajetória de três romancistas representativos do século XIX e início do XX: Charles Dickens (1812-1870), Gustave Flaubert (1821-1880) e Thomas Mann (1875-1955), dando destaque, respectivamente, aos seus romances: Casa sombria (de 1852- 1853), Madame Bovary (de 1857), e Os Buddenbrook (de 1900). Poderíamos resumir seus objetivos, neste livro, em três questionamentos principais, a saber: 1 – De que maneira a Literatura (e a História) (re)constrói uma representação peculiar da realidade?; 2 – Como uma visão de mundo molda uma linguagem e forja uma prática discursiva?; 3 – E de que modo a linguagem é perpassada por ideologias (ou por componentes ideológicos)? Para ele, Dickens teria sido um anarquista zangado (ao criticar e satirizar a sociedade inglesa da Era Vitoriana), Flaubert um anatomista fóbico (por ver os pormenores das relações sexuais e ironizar a maneira pela qual a sociedade francesa da Belle Époque viam-nas como um tabu) e Mann um aristocrata rebelde (ao viver silenciosamente sua homossexualidade e expor o cotidiano da aristocracia alemã oitocentista), em suas formas específicas de apreenderem o princípio de realidade nos seus romances históricos.

Apesar das evidentes contribuições que esses romances, e seus autores, possam trazer para a pesquisa histórica, o historiador deve ter claro que seu uso “é severamente limitado”, ainda que o “mundo que o romancista realista cria [seja] o mesmo do historiador, apenas alcançado por seus próprios caminhos” (p. 141), e que ambos tenham também em comum “o estudo das mentes individuais e das mentalidades coletivas”. (p. 144).

Dito isso, o autor passa a verificar por que a crítica pós-moderna, ao delinear o espaço de produção da história e do romance, estabelece uma fronteira tênue quanto ao significado da verdade, e seu alcance entre esses diferentes discursos narrativos. Se Jacques Derrida (1930-2004) foi o guru do movimento, Hayden White foi, sem dúvida, “o mais influente entre os historiadores pós-modernistas”, e “levou a perspectiva relativista a seus limites” (p. 145-46), ao ver indistintamente o discurso histórico e o discurso literário: “Ele converte a história num tipo de romance (geralmente não reconhecido) sobre o passado.” (p. 176). Para dar maior consistência aos seus argumentos, Peter Gay demonstra por que foi importante para Hayden White alinhar sua trajetória com os apontamentos centrais da virada linguística, estabelecendo uma relação direta com as obras de Michel Foucault e Friedrich Nietzsche. O que, em suas palavras, se constituiria como o mestre desse autor, “como de outros pós-modernistas, é (além de Friedrich Nietzsche, o favorito de todo mundo nesta escola de pensamento) Michel Foucault. Mas, o “principal problema com as excursões pós-modernistas de Foucault na história é que sua psicologia é irremediavelmente reducionista: para ele, é tudo uma questão de poder, de uma conspiração meio involuntária dos que têm contra os que não têm [o poder em suas mãos]”. (p. 176-77).

Para ele, as mesmas ressalvas seriam válidas para outros pós-modernistas (como: Jacques Lacan, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Jean Baudrillard). De acordo com ele: Para os pós-modernistas, os fatos não são descobertos, mas criados; seus ancestrais intelectuais, remontando ao menos até Goethe, insistiram por muito tempo que todo fato já é uma interpretação.

Como uma interpretação social, é inerentemente modelado pelos mitos dominantes que mantêm o historiador (bem como o romancista) preso em sua garra de ferro. Vieses, antolhos, estreiteza de visão, pontos cegos, toda espécie de impedimentos à objetividade são essenciais na própria natureza de todos os esforços humanos para conhecer; o estudioso do passado é o prisioneiro de sua própria história pessoal. Nessa visão, escrever história é apenas outra maneira de escrever ficção. (p. 146, grifo nosso).

Postura frágil, o pós-modernismo, para o autor estabeleceria sutilmente: À parte seu absurdo inerente, a tentativa pós-modernista de reduzir à irrelevância a busca da verdade empreendida pelo historiador tem conseqüências práticas. Forçaria os escritores de fatos e os escritores de ficção a um casamento indesejado sob a mira de uma arma. […] O que significa que os historiadores não precisam dos pós-modernistas para lhes dizer que o ponto de vista de profissionais individuais, em parte inconsciente, pode impedir um tratamento objetivo do passado. Eles assim afirmariam ao desmascarar alegremente a parcialidade dos outros. Mas tratariam essas armadilhas no caminho para a verdade antes como obstáculos a ser superados do que como leis da natureza humana a ser humildemente seguidas. (p. 146-148).

O que significa que os “debates dos historiadores (sem os quais a profissão seria reduzida a um tedioso relato de fatos universalmente aceitos) fazem parte de um interminável empreendimento coletivo que tenta se aproximar do exato ideal de lorde Acton: um acordo inteiramente bem informado sobre o passado”. Além disso, nenhuma “das objeções propostas contra esse ideal é válida”, por que para “falar sem rodeios: pode haver história na ficção, mas não haver ficção na história”. (p. 150).

Após resumirmos os principais pontos da discussão do autor nos anos 1970 e 1980, e o modo como avança sobre eles neste livro (ainda que nos aspectos fundamentais não tenha mudado sua perspectiva de análise), podemos passar a algumas constatações: a) mesmo não considerando todos os argumentos provenientes da virada linguística nos anos 1970 e 1980, o autor não deixou de lado tal questão, e ao voltar sobre ela, além de resumir as principais fragilidades dessa postura, e do empreendimento pós-moderno (que lhe deu continuidade), também demonstrou a importância dos romances para a pesquisa histórica; b) ao indicar as especificidades metodológicas do discurso histórico e do discurso literário, o autor também mostrou que os caminhos como cada um chega à, ou pensa, a verdade são diversos; c) como diversos são ainda os recursos que ambos têm à disposição para, a partir do princípio de realidade, construir suas narrativas.

Referências

CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

GAY, P. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

____. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Resenha recebida em 21 de setembro de 2012 e aprovada em 5 de outubro de 2012.

Diogo da Silva Roiz – Mestre em História pela Unesp. Professor na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campo Grande – MS – Brasil. E-mail:[email protected]

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Ensaio filosófico sobre a dignidade: antropologia e ética das biotecnologias – BAERTSCHI (C)

BAERTSCHI, Bernard. Ensaio filosófico sobre a dignidade: antropologia e ética das biotecnologias. Trad. Paula Silvia Rodrigues Coelho da Silva. São Paulo: Loyola, 2009. Resenha de: WEBBER, Marcos André. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 163-166, maio/ago, 2013.

Bernard Baertschi é professor e pesquisador no Departamento de Filosofia da Universidade de Genebra. Ao lado da pesquisa sobre a filosofia francesa dos séculos XVIII e XIX, Baertschi possui muitos livros e artigos publicados com o foco voltado ao pensamento ético, especialmente no que se refere aos fundamentos da ética, à ética das biotecnologias e à neuroética.

Atualmente, é titular da disciplina de Bioética no Instituto de Ética Biomédica e do Departamento de Filosofia da Universidade de Genebra. Leia Mais

The gamification of learning and instruction: game-based methods and strategies for training and education – KAPP (C)

KAPP, Karl M. The gamification of learning and instruction: game-based methods and strategies for training and education. San Francisco: Pfeiffer, 2012. Resenha de: FARDO, Marcelo Luís. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 1, p. 201-206, jan/abr, 2013.

Este livro, lançado em maio de 2012 e ainda sem tradução para o português, é o primeiro voltado a este recente fenômeno chamado gamificação da educação. Em suas 336 páginas, o autor concentra-se em explicar esse conceito e mostrar métodos e estratégias de como aplicá-lo em ambientes de ensino e aprendizagem.

Kapp é professor de tecnologias instrutivas no Departamento de Tecnologias Instrutivas da Universidade de Bloomsburg, na Pensilvânia. Leia Mais

Aprendizagem em ambientes virtuais [recurso eletrônico]: compartilhando ideias e construindo cenários – VALENTINI; SOARES (C)

VALENTINI, C. B.; SOARES, E. M. do S. Aprendizagem em ambientes virtuais [recurso eletrônico]: compartilhando ideias e construindo cenários. Caxias do Sul: Educs, 2010. Resenha de: FLORES, Jerônimo Becker Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 1, p. 207-211, jan/abr, 2013.

A obra é organizada pelas professoras pesquisadoras Carla Beatriz Valentini e Eliana Maria do Sacramento Soares, sendo uma síntese dos resultados de pesquisas e experiências do grupo LAVIA.1 O formato digital dessa edição está mais condizente com as propostas apresentadas na mesma, que discorre sobre as tecnologias digitais, em especial ambientes virtuais de aprendizagem (AVA) e suas implicações no contexto educacional.

Escrito por distintos autores, cada capítulo é um nó de uma complexa rede, que leva o leitor a refletir sobre as possibilidades oferecidas pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e suas perspectivas no âmbito da educação. Leia Mais

A ideia de justiça – SEN (C)

SEN, Amartya. A ideia de justiça. Trad. de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: DALSOTTO, Lucas Mateus. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 1, p. 212-215, jan/abr, 2013.

Qual deve ser o objetivo primeiro da justiça? Essa é, por assim dizer, a interrogativa que move grande parte dos escritos do economista e filósofo indiano Amartya Sen (1933), em especial em seu mais recente e proeminente livro denominado A ideia de justiça. Dentre as particularidades do autor, cabe sublinhar que Sen nasceu em Santinikenatan, onde atualmente é Bangladesh, e é professor da Universidade de Harvard. Foi laureado com o Prêmio de Ciências Econômicas em memória a Alfred Nobel no ano de 1998 por sua contribuição e pesquisa a respeito da teoria da escolha social e do walfare state, além de ser também um dos criadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) juntamente com Mahbub ul Haq.

Publicado inicialmente em 2009 na Grã-Betanha, A ideia de justiça é uma homenagem e ao mesmo tempo uma crítica ao pensamento de John Rawls (p. 23), importante filósofo americano que em 1971 publicou a importante obra Uma teoria da justiça, a qual marcou para sempre o pensamento seniano, inclusive servindo como ponto de partida para a presente obra. O livro é composto por 18 capítulos, subdivididos em quatro grandes partes, além de uma longa e esclarecedora introdução. Esses quatro núcleos em que o autor divide o texto dão uma compreensão geral da obra e organizam as teses defendidas por ele de forma profunda. Leia Mais

História da ética – SIDGWICK (C)

SIDGWICK, Henry. História da ética. São Paulo: Ícone, 2010. Resenha de: SCARIOT, Juliane . Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 3, p. 170-174, set/dez, 2012.

A ética pode ser inserida entre os temas filosóficos que mais despertam o interesse de pensadores de diferentes épocas. Estabelecer o que propriamente ela é, o que é a virtude, qual é a conduta correta, o que é o bem e qual é a relação da ética com a psicologia, a política, a teologia e o direito são algumas das questões tradicionais desse âmbito. Considerando a relevância do tema, Sidgwick (2010) apresenta a História da ética, obra que fornece uma visão geral da ética desde, aproximadamente, 550 a.C. até o século XIX, época na qual Sidgwick escreveu a obra. Obviamente, no tocante aos estudos éticos de seu tempo, o autor enfatiza a ética inglesa, na qual ele próprio se inseria.

Sidgwick nasceu em 1838 e faleceu em 1900, desenvolvendo suas pesquisas na Universidade de Cambridge, instituição na qual trabalhou como professor. A principal obra de Sidgwick é The methods of ethics, de 1874, em que ele compara criticamente o método do egoísmo ético, da moralidade do senso comum e da benevolência universal. Esse livro foi revisado e editado sete vezes, ou seja, há sete diferentes edições da obra e, apesar de sua importância para os estudos éticos, nenhuma das edições foi traduzida para o português. Além das contribuições à filosofia moral, Sidgwick estudou matemática, filosofia política e jurídica, epistemologia, metafísica, parapsicologia, pedagogia, etc. Leia Mais

Estudo de caso: uma estratégia de pesquisa – MARTINS (C)

MARTINS, Gilberto de Andrade. Estudo de caso: uma estratégia de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2006. Resenha de: CAMPOS, Paulo Tiago Cardoso. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 3, p. 164-169, set/dez, 2012.

A obra aqui resenhada tem um duplo propósito e valor: por um lado, versa sobre um tema compreendido de forma muitas vezes deficiente nos círculos acadêmicos, e isso se reflete em trabalhos (monografias, artigos, dissertações) nos quais a falta de rigor é patente; por outro, é escrito de maneira clara, didática, acessível e desmistificadora.1 O primeiro ponto destacado acima é assinalado pelo autor do livro, assim como também destaca o caráter de dependência da pesquisa, desenvolvida com o emprego da estratégia do estudo de caso, em relação à construção de uma adequada plataforma teórica e a necessidade de demonstrar a articulação dessa com os dados colhidos na realidade histórica concreta a respeito da qual versa o estudo de caso.

De novo, isso reforça o escrito acima: o livro procura suprir falhas constatadas em diversos estudo de casos publicados como artigos ou apresentados na forma de dissertações de mestrado e monografias de conclusão de cursos de graduação. Dentre essas falhas está a falta de rigor na demonstração de uma plataforma teórica sólida (resultante de uma revisão de literatura), ausência de ligação entre essa plataforma e os dados coletados e problemas na extração de conclusões que sejam oriundas de interpretações rigorosas desse conjunto de elementos (plataforma teórica e dados coletados); e também trabalhos que se intitulam estudo de caso sem sê-lo. Leia Mais

Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt – CASTELO BRANCO (C)

CASTELO BRANCO, P. H. V. B. Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt. Curitiba: Appris, 2011. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 2, p. 187-190, maio/ago, 2012.

A obra de Carl Schmitt foi, durante muito tempo, lida em função das ligações de seu autor com o Terceiro Reich na Alemanha nazista. Entre essa e outras razões permaneceu silenciada na França, como nos indica o estudo de Jean-François Kervégan (2006), ao analisar as dimensões da ideia de político e da ação política nas obras de Hegel e Schmitt. Além disso, prossegue o autor, “o fato de Schmitt ter se alinhado ao nacional-socialismo, cuja vitória foi descrita por ele mesmo como ‘a morte de Hegel’, parece ser a confissão de um xeque especulativo: o decisionismo professado durante os anos 1920″. (2006, p. XIV). Isso, por acaso, não redundou somente na França, mas também na Itália, na Alemanha e nos Estados Unidos, na elaboração de estudos polêmicos, cujo norte era justamente o de alinhar a obra de Schmitt ao antissemitismo e ao nazismo.

Ainda que não parta de avaliação semelhante, a obra de Castelo Branco procura justamente destacar em que medida as tentativas de secularização da política e do direito permaneceram inacabadas na obra de Schmitt.

Versão revista de sua Tese de Doutorado, seu texto nos apresenta de que maneira Schmitt construiu seu projeto político e intelectual. Para Gabriel Cohn, que faz o prefácio da obra, secularização “é mais do que trânsito de ideias no éter dos significados”, pois é “literalmente trazê-las para o século, torná-las efetivas aqui e agora, manchá-las com a marca da empiria e da existência concreta”. (2011, p. 15). Para efetuar tal análise, Castelo Branco efetua um estudo minucioso da obra de Carl Schmitt, detalhando como  apreendia a questão da lei e da decisão, qual era a representatividade do Estado e qual era a função da secularização nos processos de formação de suas estruturas institucionais, e em que medida a secularização do conceito de político agiria em prol desse processo. Nesse aspecto, sua hipótese é de que “o conceito de secularização é um pressuposto imprescindível para compreender alguns dos principais temas abordados por Schmitt nos seus estudos, como é o caso da decisão, do significado do Estado e do indivíduo e dos critérios do político”; assim, por “desempenhar um papel epistemológico no pensamento de Schmitt, entender seu conceito de secularização é uma condição essencial para tornar acessível o modo como o autor desenvolve outros conceitos, como decisionismo, exceção, mediação e soberania”. (2001, p. 20).

Desse modo, antes de aprofundar como Schmitt entende a secularização, o autor nos demonstra seu itinerário, tendo em vista que o progresso da razão universal e autônoma da época das Luzes do século XVIII teria eliminado os laços tradicionais e realizado a independência de uma esfera temporal. Sob este ponto de vista, os conceitos jurídicos e políticos do Estado moderno encontrariam seu fundamento racional no aperfeiçoamento moral e no progresso de um desenvolvimento histórico. O uso do conceito de secularização é objeto de disputa, por ser utilizado para legitimar a descontinuidade da modernidade e, consequentemente, do fundamento dos conceitos jurídicos que surgem com o Estado moderno. (p. 21).

E que, aliás, estaria na obra de Schmitt, apesar de suas preocupações, numa forma inacabada. Mas entender como tal questão se processa em sua obra não é uma tarefa nada fácil, e Castelo Branco conduz com desenvoltura seus argumentos para nos demonstrar que, ainda que esteja em estado inacabado, a ideia de secularização construída na obra de Schmitt é fundamental para entender todos os nexos de sua interpretação do político e do Estado, da lei e da decisão. Apesar de se aproximar da concepção de secularização de Löwith, que “não reconhece uma modernidade autônoma”, Schmitt percebe que a “transformação da religião em assunto privado não elimina a existência de um núcleo metafísico ou a crença de que o privado ocupe o lugar de algo sagrado”, entre outras razões, porque a “cultura da satisfação individual, do consumo ou da possibilidade de subjetivação de toda sorte de experiência, remete ao tema da secularização e, consequentemente, ao problema do esvaziamento de referências supraindividuais de orientação da conduta”. (p. 22). Por isso, o autor indica que “sob o ponto de vista político, mais importante do que a privatização dos bens da Igreja seria examinar a privatização do meio ambiente que fornece a medida ou diretriz às ações humanas” (p. 23), e é esse o caminho que segue para compreender a obra de Schmitt.

Ao centrar seu olhar sobre a obra de Schmitt, a partir da maneira que ele constrói seu conceito de secularização, o autor entende que sem ela esse não teria chegado a seu conceito de decisão. Daí a importância de inquirir a lei e a decisão, como se articulam e como são produzidas e empreendidas.

Com isso, passa a inquirir como a secularização constitui um dos alicerces fundamentais, para dar solidez à formação do Estado moderno, significado às suas instituições e bases às suas regulamentações. Por fim, demonstra como o conceito de secularização atua sobre o conceito de político.

Depois de efetuar tal análise, observa que “o sentido principal do conceito de secularização de Schmitt revela que a negação dos conflitos eleva o grau de contingência, aumentando o risco dos antagonismos”, pois a “omissão ou o encobrimento do conflito impede a sua restrição”, e o “reconhecimento da impossibilidade de se extinguir os antagonismos da vida humana abre a possibilidade para a sua contenção” (p. 291), ao se efetuar uma distinção clara entre amigo e inimigo. Além disso, o “conceito de secularização de Schmitt intenta recuperar as distinções nítidas alcançadas pelo Estado moderno europeu com a neutralização das guerras religiosas, a fim de postular o monopólio do político pelo Estado e evitar sua subordinação a categorias econômicas e princípios universalizantes”.

(p. 292). Por outro lado, após definir amigo e inimigo, e revelar o caráter inevitável dos antagonismos, o autor nos indica que secularizar, para Schmitt, “consiste em romper a generalidade e a regularidade de ordenamento de normas e expor a realidade concreta do sentido político do agir e decidir humanos”, tendo em vista que “não está mais em jogo o enfrentamento do poder espiritual de representantes da Igreja que buscam intervir na esfera secular de um domínio público, mas combater o encobrimento do político por parte do liberalismo e do positivismo”. (p. 295).

Portanto, ao descortinar os nexos e os significados do conceito de secularização na obra de Carl Schmitt, Castelo Branco, além de nos oferecer caminhos instigantes para rever a obra desse autor, a oportunidade de verificar que, apesar de aparecer de modo inacabado, a secularização constituía verdadeiramente um dos núcleos pelos quais Schmitt pensou a política, definiu a ideia de amigo e inimigo, como os antagonismos poderiam ser arrefecidos, mas não anulados completamente, e de que forma lei e decisão estavam articuladas em sua obra para perfazer a compreensão do conceito de político.

Referências

KERVÉGAN, J-F. Hegel, Carl Schmitt: o político entre a especulação e a positividade. Barueri: Manole, 2006. Recebido em 26 de abril de 2012.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). Professor na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Uems). E-mail: [email protected]

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Justiça: o que é fazer a coisa certa – SANDEL (C)

SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.Resenha de: BOMBASSARO, Alessandra. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 2, p. 183-186, maio/ago, 2012.

Considerando um dos mais importantes filósofos de sua geração, Michael Sandel leciona há mais de vinte anos na Universidade de Harvard, no famoso curso “Justice”, por onde passaram cerca de 15 mil alunos.

Quando ele profere as suas aulas no amplo anfiteatro universitário, quase mil alunos o acompanham na exposição de temas sumamente instigantes.

Sandel é ouvido atentamente ao abordar grandes problemas filosóficos relacionados a prosaicos assuntos da vida cotidiana, incluindo, por exemplo, a união entre pessoas do mesmo sexo, suicídio assistido, aborto, imigração, impostos, o lugar da religião na política, os limites morais dos mercados.

Para ele uma abordagem da filosofia – considerada por ele a mais segura – ajuda a entender melhor a política, a moralidade, contribuindo também para a revisão de aferradas convicções.

As questões propostas por Sandel, que integram um extenso elenco de problemas contemporâneos, são cada vez mais discutidas por sua complexidade. Por exemplo: Quais são as nossas obrigações uns com os outros e em uma sociedade democrática? O governo deveria taxar os ricos para ajudar os pobres? O mercado livre é justo? Às vezes é errado dizer a verdade? Matar é, em alguns casos, moralmente justificável? É possível, ou desejável legislar sobre a moral? Os direitos individuais e o bem comum estão necessariamente em conflito? Sandel é um crítico do liberalismo. Sustenta que essa ideologia política se caracteriza pela importância que dá aos direitos civis e políticos dos indivíduos. É a defesa intransigente da “liberdade pessoal”, em torno da qual se agregam a liberdade de consciência, de expressão, de associação, de ocupação e de exercício sexual. Os liberais não admitem que, em tais âmbitos, o Estado pretenda intrometer-se, a não ser para proteger os que poderiam sofrer dano.

Enquadrado no grupo dos “comunitaristas”, Sandel denuncia, nas críticas ao liberalismo, uma concepção anti-histórica, associal e incorpórea do sujeito, implícita na ideia de um indivíduo dotado de direitos naturais que preexistem à sociedade. O autor nega a tese da prioridade do direito sobre o bem, que se encontra, por exemplo, no centro do novo paradigma liberal estabelecido por John Rawls.

O que Sandel pretende destacar reside no fato de que o liberalismo se apoia, erroneamente, no pressuposto de que as pessoas podem escolher e revisar os seus fins na vida “sem nenhuma dependência de laços comunitários”. Adotando uma posição contrária, o autor afirma que certas obrigações comunitárias são “constitutivas” da identidade dos indivíduos, além de toda escolha. Tais obrigações compartilhadas formariam a base para uma “política do bem comum”, contrastando com a “política dos direitos” do liberalismo.

Tais pressupostos são apresentados por Sandel, principalmente, em sua obra Liberalism and the limits of Justice, literalmente [Liberalismo e os limites da Justiça] (2000). É com ela que o autor participou, contribuindo para o início do “debate liberalismo-comunitarismo” que dominou a filosofia política anglo-americana nos anos 80 (séc. XX). Sandel também defende que certas liberdades civis, tais como a de consciência e da sexualidade, são melhor entendidas como protetoras de fins “constitutivos” do que como protetoras de escolhas “sem limites”.

Sandel pretende ressuscitar uma concepção de política como domínio onde cada um reconhece o outro, ambos como participantes de uma mesma comunidade. Contra a inspiração kantiana do liberalismo, baseada nos direitos, os comunitaristas apelam para Aristóteles e Hegel. E, contra o liberalismo, Sandel apela para o republicanismo cívico. É o que deve favorecer o regresso a uma política do bem comum baseada em valores morais partilhados. Entretanto, não fica clara a questão: Mas como fica a defesa da liberdade individual? Feitas essa aproximações às posições e propostas do autor, é importante agora guiar a atenção, objetivamente, para a obra de Sandel: Justice, título original em inglês, aqui traduzida como [Justiça: o que é fazer a coisa certa]. Ela foi publicada em 2009, nos Estados Unidos, tendo sido traduzida por editoras de vários países. No Brasil, todos os seus direitos foram adquiridos pela Editora Civilização Brasileira, cujos livros são distribuídos pela Record.

Em dez capítulos, Sandel discorre sobre a filosofia do livre mercado, enfatizando a ganância com o abuso dos preços. Examina o socorro financeiro aos bancos, no decorrer da presente crise internacional. Faz uma reflexão sobre o utilitarismo de Jeremy Bentham e a posição de John Stuart Mill.

Enfoca a questão da tortura, da desigualdade econômica e do Estado mínimo pretendido pelos liberais. Insinua-se, em seguida, no âmbito da bioética, abordando temas como o suicídio assistido, a barriga de aluguel, a utilização de células-tronco, o direito ao aborto. Quando enfoca questões atinentes aos direitos humanos, analisa o pensamento kantiano em torno da maximização da felicidade, moralidade, liberdade e justiça. Logo, Sandel examina a teoria da justiça de Rawls. Evolui para o problema da segregação racial, do propósito da justiça, do significado de política e vida boa, de justiça e vida boa, finalizando com o desejo de uma política do bem comum.

O livro Justiça – como o próprio Sandel afirma –, começou como um curso. Por quase três décadas, o autor teve o privilégio de ensinar filosofia política a universitários de Harvard e, durante vários desses anos, ministrou aulas sobre uma matéria chamada “Justiça”. O curso expõe aos alunos algumas das maiores obras filosóficas escritas sobre justiça e também aborda controvérsias legais e políticas contemporâneas que levantam questões filosóficas.

Alessandra Bombassaro – Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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A felicidade na ética de Aristóteles – PICHLER (C)

PICHLER, Nadir A. A felicidade na ética de Aristóteles. Passo Fundo: Ed. da UPF, 2004. Resenha de: VIANA, Luisa Andrea. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 238-240, jan/abr, 2012.

Pichler possui graduação em Filosofia pela Fundação Educacional de Brusque (1992) e Mestrado em Filosofia pela Unisinos (2003).

Doutor em Filosofia pela PUCRS (2009), na área de Filosofia Medieval, com tese sobre A beatitude na filosofia moral de Tomás de Aquino. Atualmente, é professor adjunto na Universidade de Passo Fundo. Publicou vários artigos, produções técnicas, textos em jornais e revistas, trabalhos em anais de congressos, capítulos de livros e livros, tais como Filosofia e pós-modernidade (Imed, 2011) e A felicidade na filosofia moral de Tomás de Aquino (Méritos, 2011).

O livro A felicidade na ética de Aristóteles, de Nadir Antônio Pichler, nasceu da sua Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos, em 2003. Leia Mais

Filosofia, ética e educação: de Platão a Merleau-Ponty – PAVIANI (C)

PAVIANI, Jayme. Filosofia, ética e educação: de Platão a Merleau-Ponty. Caxias do Sul: Educs, 2010. Resenha de: SABBI, Caros Roberto. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 241-245, jan./abr, 2012.

Nas dobras do tempo, tal qual um legítimo pontifex,1 Paviani liga mais de dois mil e trezentos anos que separam um dos expoentes da filosofia, senão o maior – Platão – ao filósofo fenomenólogo francês Merleau-Ponty na sua obra Filosofia, ética e educação: de Platão a Merleau- Ponty.

O primeiro, representando a Academia, criada por ele próprio em 387 a.C., num olival situado no subúrbio de Atenas, enquanto o segundo, em 1952, ganhou a cadeira de Filosofia no Collège de France. De 1945 a 1952, Merleau-Ponty foi coeditor (com Jean-Paul Sartre) da revista Les Temps Modernes. Leia Mais

A ética da autenticidade – TAYLOR (C)

TAYLOR, Charles. A ética da autenticidade. Trad. de Talyta Carvalho São Paulo: É Realizações, 2011.Resenha de: BELTRAMI, Fábio. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 230-233, jan/abr, 2012.

Charles Taylor é um autor contemporâneo, nascido em 5 de novembro de 1931, na cidade de Montreal, no Canadá. É professor de Filosofia e Ciência Política na Universidade McGill, na cidade de Montreal. O livro A ética da autenticidade, no original The ethics of authenticity (1992), lançado no Brasil pela editora É Realizações, no ano de 2011, com 128 páginas e tradução realizada por Talyta Carvalho, está estruturado em dez capítulos, nos quais Taylor busca uma compreensão acerca das relações atuais dos indivíduos e como os mesmos tendem a se comportar atualmente, focando seu estudo em questões relativas à autenticidade.

No que tange à autenticidade, Taylor percorre uma trajetória histórica sobre as fontes da mesma, citando Rousseau e o contato íntimo do ser humano consigo mesmo, bem como Herder, com a ideia de que cada ser humano tem um jeito original de ser humano e a necessidade de um contato consigo mesmo, com sua natureza interior, com o ser humano que é o modo particular de cada um ser humano. Para Taylor a autenticidade está baseada na ideia de que, independentemente de mim, existe algo nobre, valioso e, portanto, significativo na configuração da minha própria vida. A partir desse pressuposto, Taylor propõe um estudo sobre questões referentes à autenticidade e propõe uma alternativa focada nela, sustentando a possibilidade de defesa de um ideal de autenticidade. Leia Mais

Principia ethica – MOORE (C)

MOORE, George Edward. Principia ethica. Trad. de Maria Manuela Rocheta Santos e Isabel Pedro dos Santos 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. Resenha de: SCARIOT, Juliane. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 234-237, jan/abr, 2012.

Qual é o âmbito da ética? O que é bom? O que é o bem? O que é bom em si mesmo? O que significa dizer que determinada ação é um dever? Essas são questões abordadas pelo filósofo inglês Moore (1873- 1958) no livro Principia ethica, um clássico da ética, publicado em outubro de 1903. Originalmente, a obra era composta de seis capítulos e um prefácio, mas a edição aqui utilizada inclui o prefácio à segunda edição, no qual Moore analisa as críticas tecidas ao seu texto e aponta algumas alterações que seriam necessárias; também há o artigo “O conceito de valor intrínseco”, publicado em 1922, e o texto “O livrearbítrio”, que integra Ethics, obra publicada em 1912 e reeditada em 1966.

É importante mencionar que, além dos textos de Moore, a obra tem uma introdução na qual apresenta, brevemente, o autor e a obra. Leia Mais

Platão & a educação – PAVIANI (C)

PAVIANI, Jayme. Platão & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.1. Resenha de: RECH, Gelson Leonardo. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, Set/dez, 2011.

A obra Platão & a educação, do professor Jayme Paviani, é uma obra na qual o autor articula o pensamento educacional de Platão, um dos filósofos mais importantes do Ocidente. O livro integra a coleção “Pensadores & Educação” da Editora Autêntica com o objetivo de apresentar as ideias de renomados e significativos autores do pensamento educacional.

O livro, de caráter introdutório à leitura de Platão sob a perspectiva educacional, está organizado em 17 pequenos capítulos nos quais se articulam os diversos diálogos de Platão percorrendo as relações desses com a questão educacional e, no fim é completado por mais quatro capítulos com “Comentários aos Diálogos” (Ménon, Protágoras, República e Leis) seguido de “Textos Selecionados” que abordam a temática educacional, além de uma rica e sintética “Terminologia” e “Cronologia” que situam sobretudo os neófitos. A despeito da ressalva do próprio autor sobre a “falta de tempo para me dedicar melhor aos detalhes” (p.8), temos uma publicação acessível a estudantes dos cursos de licenciatura, a pesquisadores e professores, com esmerada redação que busca, além de apresentar o pensamento do filósofo, estabelecer relações com a atualidade – traço digno de nota – dirigindo-se a todos que queiram iniciar a leitura de um clássico da filosofia. Leia Mais

Hobbes e a liberdade republicana – SKINNER (C)

SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana. Trad. de Modesto Florenzano. São Paulo: Edunesp, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, Set/dez, 2011.

A história intelectual tem buscado forjar padrões de análise que a convertam num campo de estudo estabelecido e fixado como outros já consagrados, a exemplo da história política, da econômica, da social e da cultural. Por suas íntimas aproximações com a história filosófica e com a história das ideias, definir seguramente suas fronteiras teórico-metodológicas e seu alcance interpretativo do objeto, assim como seu corpus documental, torna-se, além de um problema tenso e contraditório, um desafio para o estudioso da temática. Se mesmo entre os lugares principais de produção, a história intelectual é ao mesmo tempo ambígua, sem necessariamente construir procedimentos de pesquisa comuns, como se observa nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Alemanha e na Itália, como então se deveria proceder ao seu estudo e à sua apropriação? A obra de Skinner está entre aquelas que, desde os anos 60 (séc.XX), tem se debruçado com afinco sobre a questão. Agrupando-se ao que ficou definido como contextualismo linguístico inglês, ele se esforçou para a criação de procedimentos adequados para que a história intelectual fosse, entre outras coisas, um instrumento apropriado para o estudo do pensamento e da ação política no tempo. Estudioso da história moderna, preocupou-se com a investigação do pensamento renascentista, reformista, contrarreformista, liberal e conservador, e com a maneira como estabeleceriam relações com seu contexto. Para ele, somente ao se agrupar o contexto de produção das obras é que se torna possível visualizar os jogos linguísticos usados pelos letrados e políticos do período e reconstituir como agem e se movimentam no campo de produção das obras e da ação política, estabelecer os nexos de ação do grupo e do indivíduo, analisar os discursos e as estratégias de ação, além de permitir definir quais são as intenções dos agentes sociais em sua escrita, por já formar nela uma ação política, com desdobramentos sociais profundos, ao ser apropriada pela sociedade.

Evidentemente, a proposta analítica do autor é consistente e articulada, o que não quer dizer que seja isenta de fragilidades. O ponto, talvez, mais criticado em sua proposta é justamente a de agrupar e definir as intenções dos agentes sociais, por meio do estudo de seus escritos. Leia Mais

Cartas sobre a hipermodernidade ou O hipermoderno explicado às crianças – CHARLES (C)

CHARLES, Sébastien. Cartas sobre a hipermodernidade ou O hipermoderno explicado às crianças. São Paulo: Barcarolla, 2009. Resenha de:GONÇALVES, Marco Antonio. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, Set/dez, 2011.

Num ensaio sobre nossa temporalidade qualificada como hipermoderna, diferenciando-a do conceito de pós-moderna, pois isso pressuporia a ideia de rompimento dos princípios constitutivos da modernidade – racionalidade técnica, economia de mercado, democratização do espaço público e extensão da lógica individualista – Charles parte da tese de que esses princípios não foram rompidos, mas que estão sim radicalizados.

Com conteúdos bastante relevantes, Cartas sobre a hipermodernidade reúne dez cartas que contribuem para o debate evitando uma atitude simplória de desespero ou indignação dessa lógica individualista presente em diversos níveis.

Sobre essa ótica, o autor procura, primeiramente, responder: o que é o pós-moderno? (Carta 1) – Vivemos num momento de instabilidades e de questionamentos acerca da relatividade dos valores e dos gostos.

Constata-se isso com as questões inéditas que as tecnociências nos trouxeram – estendidas ao campo dos direitos individuais –, o desaparecimento dos grandes projetos políticos e a angústia por não mais possuirmos referenciais seguros.

O autor questiona: por que utilizar o conceito de hipermodernidade e não se limitar a dizer simplesmente que a modernidade continua normalmente o seu desenvolvimento? A modernidade mobilizou intensamente os homens ao lhes prometer novos rumos: desaparecimento das tarefas inglórias e desgastantes graças ao progresso tecnológico, justiça e igualdade para todos após reformas políticas adequadas, e felicidade universal em razão de uma reformulação da ordem social. (p. 16). Mas essas promessas não foram honradas nem plenamente concretizadas: o progresso tecnológico colocando-se a serviço de causas nobres e vise a justiça e a igualdade permanecendo como reivindicações, e a felicidade, como ideal.

Surgiram novos temores e uma ambiguidade de sentimentos de fascinação e de angústia abordados na Carta 8 – “Entrada para um novo cenário”. As tecnociências não param de revolucionar os referenciais de nosso mundo e, infelizmente, a atual lógica da descoberta científica não está atendendo mais a uma visão humanista como no passado. Está mais preocupada com a rentabilidade do que com a verdade, esquecendo seu horizonte de inteligibilidade e de enquadramento ético.

Dentro deste panorama, a Carta 9 – “Glosa sobre a resistência” analisa as modificações pelas quais a universidade passa. Numa lógica mercantil balizada num cálculo individualista de custo e benefícios, vê-se inserida num contexto complexo de relações pessoais, pedagógicas e sociais.

Mas não seria correto reduzir a universidade a “supermercado do conhecimento” que visa apenas às exigências do mercado. Grande número de estudantes e professores assume as autênticas exigências universitárias e se dedica com abnegação e rigor aos seus estudos, com preocupações sociais, éticas ou ambientais, ou seja, são e formam cidadãos capazes de melhor compreender os desafios atuais e participam ou influenciam nas decisões coletivas assumidas.

Como explicar o retorno da temática da felicidade na filosofia contemporânea? Esse retorno a um pensamento preocupado com considerações eudemônicas – desaparecidas das considerações filosóficas no século XVIII – que contraponha a lógica hipermoderna é abordada em Comentários às metanarrativas (Carta 2). Fala-se que há uma falência do projeto moderno devido ao esvaziamento ou à eliminação das metanarrativas (sociedade sem classes, felicidade universal, realização do espírito, emancipação dos indivíduos).

Essa ideia, segundo o autor, é frágil se não levar em conta a complexidade da sociedade contemporânea. Argumenta que nem todas as grandes narrativas foram desacreditadas – os direitos humanos jamais foram tão festejados e consensuais – e o desaparecimento de boa parte das metanarrativas não significa o fim da modernidade. Ao contrário, há uma celebração do passado, a preservação da memória e a sensibilização para com um passado ao qual já não é mais possível voltar.

Alguns fatores podem ser destacados para exemplificar aquele abandono: a adoção de um discurso autônomo da ciência moderna como única detentora da verdade e conhecimento capaz de conduzir à felicidade, o aparecimento de uma nova reflexão política, social e econômica, assim como relacionado à filosofia de Kant e a substituição da questão da felicidade pela da obrigação. Todos nós desejamos ser felizes, mas somos incapazes de dizer o que, de fato, garante a nossa felicidade, fazendo dela um ideal da imaginação e nada mais.

Cresceu, no século XX – junto com o progresso científico e a experiência dos regimes totalitários –, nossa preocupação e desconfiança pelo fato de as ciências naturais e humanas serem incapazes de dar uma resposta ética aos desafios que elas mesmas criaram. Assistimos ao ressurgimento e à atualização no discurso filosófico sobre a felicidade.

O autor diz: Atualmente, são essas utopias que parecem ultrapassadas e a filosofia, entendida como sabedoria, perfeitamente atual. A função da filosofia, hoje, pode ser a de ocupar esse espaço deixado livre pelas utopias políticas, a fim de nos permitir pensar conjuntamente felicidade coletiva e felicidade individual, sem deixar o coletivo preponderar em detrimento do individual, o que representaria um retorno às experiências totalitárias, nem o individual predominar sobre o coletivo, o que representaria a anarquia. (p. 44).

A crença na regulação da ordem social pelo mercado, que teria a virtude de aumentar naturalmente a felicidade coletiva, também se enfraqueceu. A felicidade prometida pela sociedade de consumo que ainda não tornou realidade e a conscientização de que o bem-estar não pode ser garantido somente pela compra de bens materiais explicam a reabilitação de uma filosofia que pretende trazer respostas à felicidade.

A volta atual à filosofia se explica, sobretudo, pelo aumento do individualismo e do hedonismo que movem as nossas sociedades hipermodernas, que fazem do indivíduo o próprio centro da sua lógica e, da sua felicidade, o objetivo da existência humana. Contudo, a busca dessa felicidade hipermoderna está baseada numa filosofia sob a forma de iniciação aos grandes mestres espirituais, a qual reúne novas formas de religiosidade, caminhos espirituais de todo tipo, buscas místicas e o retorno às sabedorias filosóficas. Uma extensão da lógica do consumo ao domínio da espiritualidade e uma válvula de escape para as tristezas existenciais.

Os ensaios filosóficos obtêm, hoje, um sucesso excepcional, e a demanda social pela filosofia – seja através de cafés filosóficos, de especialistas em filosofia ou de programas na mídia – nunca foi tão forte. Os indivíduos buscam, em geral, mais o prazer do que o filosofar.

Esse modismo não encontra igual repercussão na invasão dos Departamentos de Filosofia nas universidades. A filosofia tem o objetivo de distinguir as falsas felicidades, o que se chama de ilusões, da verdadeira felicidade, relacionada com a verdade.

Se a filosofia não nos torna felizes, ela pode, ao menos, nos dar as chaves para sermos menos infelizes. A felicidade à qual a filosofia quer dar acesso não é qualquer felicidade, ela não está baseada em mentiras, na ilusão ou no esquecimento, mas sim sobre um máximo de lucidez.

Para o filósofo, mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa felicidade. (p. 51). Algumas reflexões filosóficas que nos permitem ao menos uma melhor compreensão das razões da infelicidade que afeta a nossa existência dizem respeito à própria vida e à relação natural e necessária que ela tem com a morte. Acredita-se que a felicidade se encontra em bens fugazes e efêmeros que acumulamos para sentir segurança. A mensagem da filosofia é simples: é preciso moderação, saber impor limites aos desejos, ao que é necessário à obtenção de uma vida agradável, sem ir além do que basta. Essa mensagem é bastante difícil de se entender numa sociedade de hiperconsumo, mas que retoma, apesar de tudo, as preocupações contemporâneas sobre a necessidade de se limitar à retirada de recursos naturais a fim de se preservar o meio ambiente e de se preocupar com o destino das gerações futuras.

Na “Mensagem sobre o curso de filosofia” – Carta 10, percebe-se que há um aumento de atenção com relação à filosofia, apesar de outras disciplinas tomarem o seu lugar na tarefa de pensar o mundo e não ser mais concebida como a única ciência com a pretensão à verdade. Nessa carta, o autor dá indicativos de uma crise da filosofia – com suas razões históricas e culturais – em torno das problemáticas metafísicas, morais e éticas. Ele defende uma filosofia modesta, essencial à nossa época, indispensável como disciplina a ser ensinada, mesmo com divergência sobre como ensiná-la e sobre o conteúdo a ser ensinado.

Filosofia modesta porque ela não pretende mais dizer onde está a verdade, mas filosofia essencial, apesar disso, pois ela pode permitir distinguir o falso ou indicar os limites que não devem ser transpostos.

E nós precisamos sim de filosofia, ou seja, de argumentação racional, de debates públicos e críticos, de reflexão sobre a vida, para responder aos desafios que as ciências nos trazem e que a administração das nossas sociedades democráticas exige. (p. 195).

Essa preocupação é percebida na Carta 3, – “Sobre a história universal”, ao se fazer um resgate histórico dessa questão até os dias atuais quando se afirma o fim das filosofias da história. Vê-se a necessidade de se pensar respostas coletivas em termos de desenvolvimento econômico, de visão de mundo e evitar “as armadilhas do etnocentrismo histórico e do universalismo abstrato, buscando o seu objetivo mais nobre, a preservação da humanidade e do meio ambiente que torna possível sua existência. (p. 75).

Na Carta 4 – “Apontamento sobre a legitimidade”, o texto aborda a questão do multiculturalismo contemporâneo a partir da linguagem da tolerância como virtude política. Analisada e valorizada filosoficamente, no seu sentido moderno, a tolerância é indissociável de uma reflexão política sobre os direitos individuais e sobretudo a liberdade de consciência e de crença. O autor afirma: O multiculturalismo não é uma posição frágil, mas forte, não se traduzindo por um relativismo moral ou uma anarquia total na qual todas as reivindicações seriam aceitáveis e aceitas. As nossas democracias, cujos recursos estão longe de se esgotarem, devem ser inflexíveis sobre os princípios (defesa dos direitos individuais, promoção da dignidade da pessoa humana) e flexível no tocante aos valores culturais problemáticos. (p. 94).

Vinculado a essa temática, “Mensagem sobre a confusão das razões” – Carta 5, sustenta que essa (in)flexibilidade só foi possível graças às revoluções sociais e políticas que redefiniram a natureza, o estatuto do Estado, da sociedade civil e do indivíduo.

O Estado pós-moderno apresenta-se como um Estado mínimo com prerrogativas reduzidas, ação mais modesta e mais atenta às necessidades sociais, descentralizado, pragmático, baseado em prioridades essenciais (educação, justiça e segurança). Contudo, percebe-se que há um discurso de crise da política-tradicional, indiferença ao jogo político, queda da militância política e presença da chamada política espetáculo. Contrapõe-se a isso um aumento de cidadãos mais exigentes e responsáveis, em instâncias de exercício de poder mais direto, mais consultivo e mais participativo. Torna-se necessário um novo pacto social. Em vez de Estado mínimo, o autor diz ser necessário se pensar num Estado responsável.

A Carta 6 – “Pós-escrito ao terror e ao sublime” analisa modernidade e estética, o início do desaparecimento e a dessacralização das “grandes narrativas” artísticas e literárias, a renovação da estética urbana moderna nos anos 60 (séc. XX) e a revolução nos comportamentos a partir dos anos 80 (séc. XX): a valorização do hedonismo, a preocupação com a sedução, a promoção do cotidiano, o desaparecimento das correntes artísticas em prol de iniciativas mais individualizadas, a valorização das emoções e das percepções, o fim das vanguardas, a negação das hierarquizações estéticas, etc. (p. 119).

A partir da segunda metade do séc. XX, o consumismo e os valores vinculados a ele, sob o manto de uma cultura narcisista, fizeram com que a arte se tornasse um produto social como qualquer outro, submetido às leis do mercado. O desaparecimento de normas estéticas provocou novas formas de ecletismo, cada um podendo ao mesmo tempo e sem contradição gostar de diferentes manifestações artísticas. Devemos cuidar para não cair num relativismo cultural, no qual tudo tem valor e, ao mesmo tempo, tudo não vale nada.

A situação do hiperindividualismo contemporâneo é o grande tema da Carta 7 – “Nota sobre o sentido da expressão ‘hiper’”, que é marcado por uma lógica paradoxal: vivemos numa sociedade que massifica, padroniza e, ao mesmo tempo, cria seres autônomos e ambíguos, estimula os prazeres e produz comportamentos angustiados e esquizofrênicos divididos entre uma cultura do excesso e o elogio da moderação. Sua superação pressupõe não só uma responsabilização coletiva, exercida em todos os setores do poder e do saber, mas também individual, ao assumir autonomamente o legado da modernidade.

O hiperconsumismo funciona como uma forma de hiperindividualismo. Não leva nem ao desaparecimento dos ideais nem à corrupção da moral – seria simplista dizer que a sociedade hipermoderna é um espaço sem valores. Várias pessoas sentem a necessidade de agir, de intervir, de ajudar, a partir de uma deliberação que lhes é própria e não em razão do pertencimento a tal ou a qual estrutura política ou religiosa.

Pelo que se pode perceber, a análise da hipermodernidade exige um esforço em eliminar certos dogmatismos intelectuais e ideológicos que, em nossa formação e no mesmo agir pedagógico e social, nos foram incutidos. Assim, numa mudança de paradigma epistemológico, é preciso ter a lucidez de perceber a complexidade de suas manifestações, para que as ações sejam eficazes nas transformações desejadas e necessárias.

Marco Antonio Gonçalves – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFil). Mestrado em Ética, da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

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Filosofia da ciência – OLIVA (C)

OLIVA, Alberto. Filosofia da ciência. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003 1. Resenha de: CAMPOS, Paulo Tiago Cardoso. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, Set/dez, 2011.

A obra Filosofia da ciência, de Oliva, procura mostrar um panorama geral sobre ciência, o que a distingue em termos de conhecimento e de fundamentação, dentre outros temas, conforme se explana nos parágrafos a seguir sobre o conteúdo das suas nove seções. Essas são seguidas de referências e fontes comentadas (a maior parte em inglês) e de uma bibliografia complementar para leitura. É um livro adequado para dar apoio às disciplinas “Epistemologia” e “Seminário de Pesquisa”, por ter linguagem acessível sem, no entanto, se afastar do rigor acadêmico e da riqueza das análises. Apresenta várias teses a respeito dos temas e subtemas que discute no livro, ao mesmo tempo que exibe a própria posição quanto a alguns deles. Isso é muito importante ao leitor, especialmente para os alunos de graduação das disciplinas acima apontadas, uma vez que lhes permite distinguir as várias correntes e teses, seus pontos fortes e fracos, além de seus seguidores e contendores e, com isso, elaborar uma síntese pessoal.

Na primeira seção de Filosofia da ciência, intitulada “Primeiro motor do conhecimento”, o autor esclarece que a busca de conhecimento por parte do homem reflete uma resposta desse aos perigos e problemas que o mundo lhe oferece. Saberes aplicados, no pós-pensamento mágico, elaborados a partir da apreensão da racionalidade dos fenômenos, permitiram exercer controle e poder sobre eles. Isso é deliberadamente o que apregou Francis Bacon no início da modernidade. Oliva afirma que as explicações científicas permitem transformar o mundo, mais do que compreendê-lo, e que elas diferem da filosofia e da arte. Enquanto o “valor” de uma obra de arte é aferido pela sua capacidade de se perpetuar no tempo, o do produto da atividade científica (teorias) é diferente. Ao fim dessa seção, o autor examina, de forma introdutória no texto, os critérios epistemológicos de cientificidade (no caso, numa explicação da linha popperiana, declara ao leitor que uma teoria científica só é aceita quando não há evidência empírica capaz de solapá-la) e aprofunda esse exame na sexta seção. Leia Mais

Competência pedagógica do professor universitário – MASETTO (C)

MASETTO, Marcos Tarcísio. Competência pedagógica do professor universitário. São Paulo: Summus, 2003 1. Resenha de: Campos, Paulo Tiago Cardoso. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, Set/dez, 2011.

A obra Competência pedagógica do professor universitário, de Masetto examina um conjunto de temas concernentes ao professor universitário, cuja explanação dos capítulos consta nos parágrafos a seguir. A obra foi muito bem-escrita e enfoca um tema de grande relevância no meio acadêmico, pois, em certos meios e em certas áreas, ainda há ausência de um maior profissionalismo docente, seja pela falta de preparo do professor, seja mesmo pelo fato de as instituições, apressadas em preencher lacunas de turmas e disciplinas, muitas vezes designarem docentes que atuam profissionalmente em suas áreas, mas que não são profissionais enquanto são docentes. Ou seja, são profissionais (médicos, engenheiros, contadores) que “dão aulas”, mas não são necessariamente profissionais como professores.

O livro começa com o questionamento: por que tratar do tema? seguido de três justificativas para tal. A primeira, porque no Brasil há pouco se atentou para a necessidade de capacitação pedagógica específica para atuar no Ensino Superior. Isso se deve à estrutura organizacional do mesmo, que se assenta no modelo francês/napoleônico de cuja lógica emerge o conhecimento e a experiência como automaticamente garantidores das condições de lecionar em universidade. Historicamente, segue-se um modelo profissionalizante, tradicional e conteudista. A segunda: o impacto da revolução tecnológica (tecnologia da informação) sobre a produção e a socialização do conhecimento fez com que a universidade não tivesse exclusividade nessa tarefa. Consequentemente, novas exigências profissionais emergiram dessas transformações, como novas habilidades e competências, as quais têm impacto sobre a atuação do professor, que deixa de ser um transmissor de conhecimentos e passa a ser um orientador de seus alunos no seu progresso intelectual. A terceira: a declaração da Unesco, de 1998, no sentido de se desenvolver, no século XXI, uma formação cidadã, permanente, responsável, contemplando valores, exercício da pesquisa e da interdisciplinariedade na universidade.

O Capítulo 2 discute a necessidade de profissionalismo, de parte do professor universitário brasileiro, em sua ação docente a partir de mudanças ocorridas ao longo do século XX, quais sejam: no ensino, mais tradicional, iniciou-se uma preocupação com a aprendizagem e a capacidade de pensar, valorizando-se não apenas aspectos cognitivos, mas também outros, como valores, capacidade de adaptação e de convívio em grupo; na pesquisa, ainda incipiente em nível da graduação, apesar dos grandes avanços ocorridos a partir dos anos 70 (séc. XX) e ainda antes, que pressionaram a organização curricular a incluir o estudo através da pesquisa orientada. Dessas influências deduz o autor que o professor passa a ser um parceiro de aprendizagem, um motivador, aliado e incentivador dos estudos e da compreensão da realidade pelos alunos, incluindo-se nisso a visão que o professor transmite de sociedade, homem e época histórica e as condições políticas e ideológicas em que vive e atua. É um perfil inusitado, que não mais pode ser contentado com conhecimentos e habilidades profissionais, mas que deve contemplar capacitação específica, cujos detalhes o autor fornece no mesmo capítulo.

O Capítulo 3 dá continuidade ao tema, enfatizando a necessidade de o professor universitário centrar-se na aprendizagem dos alunos, contemplando a área de conhecimento, os aspectos afetivo-emocionais,  as habilidades e atitudes e os valores. Trata-se da aprendizagem significativa, aquela que exerce transformações no aprendiz e que resultam em novos modos de ele ver o mundo, descobrindo novos significados e sentidos para fatos, informações, conhecimentos. E ainda da aprendizagem continuada, implicando que o aluno aprendiz altere atitudes que o conduzam a, continuamente, buscar aprender e a desenvolver sua formação e educação pessoais. Não se trata, portanto, de enfocar exclusivamente o conhecimento (o cognitivo, “conteudista”); engloba outras dimensões da pessoa que vão para além do conhecimento.

Qual é o papel do professor em decorrência disso? O Capítulo 4 indica que há algumas maneiras de operacionalização: 1) a interação entre professores de uma mesma disciplina e/ou do mesmo curso, que visa a definir conjuntamente o que é necessário que os alunos aprendam; 2) a fixação de um pacto de aprendizagem, de parceria e de relação entre adultos (professor-alunos) no primeiro dia de aula. O docente ajuda os alunos a superarem as dificuldades, podendo, para tanto, verificar seus conhecimentos prévios na primeira aula, para apurar as “condições iniciais” e, continuamente, levantar dificuldades e modos de superá-las, além de ministrar aulas com variações nas estratégias (aulas expositivas, seminários, leituras, tarefas grupais, elaboração de resenhas, estudos de caso). As atividades de aprendizagem tornam-se agradáveis desse modo porque contribuem para o crescimento de todos, inclusive do professor; 3) a interação entre os alunos, já que muitas vezes as explicações e os exemplos fornecidos pelo professor podem não atingir todos igualmente, o que pode ser superado se o professor estimular e permitir tarefas em grupo, debates, discussões e trocas entre os alunos; uns aprenderão com os outros; e 4) o emprego de monitoria para auxiliar o professor nas atividades de grupo, no planejamento, na avaliação e no feedback das diversas modalidades de aula empregadas. Todas essas maneiras visam a um único objetivo: o desenvolvimento da aprendizagem nos alunos.

Antes de passar para a análise do ambiente da sala de aula, Masetto trata, no Capítulo 5, da relação do professor do Ensino Superior com o Projeto Político Pedagógico (PPP), documento que procura dar orientações para os cursos e o perfil do egresso, bem como o objetivo do curso em questão. Habitualmente, o PPP se articula com o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) da instituição de Ensino Superior e a situa quanto à concepção de elemento humano que pretende formar para atuar na sociedade como profissional. Isso reflete uma visão de homem, de sociedade e de profissional, e o professor precisa conhecer  tanto o PDI quanto o PPP de modo a integrar sua disciplina com as demais e com as atividades de extensão e pesquisa da instituição, sempre visando à aprendizagem dos alunos.

O Capítulo 6 centra-se no currículo do curso e, depois de apresentar os seus tipos, examina o professor como seu conceptor e gestor. A elaboração curricular necessita contemplar intenções quanto à formação profissional desejada e definida pela instituição (via PDI e PPP), as necessidades da sociedade, o desenvolvimento científico e tecnológico e as prováveis exigências futuras de atuação profissional dos alunos, visando-a que esses sejam agentes de transformação da ordem social. O professor deve participar das discussões com outros professores, com a direção, com os funcionários e alunos e, na execução curricular, atuar, principalmente, como um mediador entre o currículo e os alunos e com as demais disciplinas e atividades (de extensão, pesquisa e outras) integradoras definidas.

No Capítulo 7, o autor trata da aula, que é definida como um grupo (coletivo) de pessoas que busca um objetivo comum, a aprendizagem, através da análise de problemas, pesquisas, experiências, vivências, leituras, etc. A aula propiciadora da aprendizagem é aquela que parte da realidade, que a trata cientificamente, que a analisa com teorias, e volta a ela com novos dados, dando-lhe um novo olhar e significado. Isso dá outro sentido à participação dos aprendizes nas atividades de aula; também exige do professor o emprego de novas habilidades e técnicas (novas tecnologias e atitudes didáticas, como visitas, aulas expositivas, debates, pesquisas), o domínio dessas e a capacidade de conduzir as atividades do grupo com vistas à aprendizagem. Pode-se dizer que a aula é um grupo tentando crescer, expandir seus horizontes, abrir-se para o mundo e para relacionamentos, não apenas num ambiente físico definido (sala de aula), como também em ambientes profissionais (hospitais, escritórios, empresas) e virtuais (com aplicação de tecnologias da informação). Consequentemente, a avaliação precisa põe em relevo a aprendizagem, o feedback, o crescimento (evolução) e o desempenho de todos (alunos e professor), e não para servir de medição de erros ou acertos; não para definir a nota final via confronto erros/acertos, mas como instrumento de acompanhamento contínuo da aprendizagem, do progresso global dos aprendizes e da execução do plano fixado inicialmente (a avaliação é retomada no Capítulo 10).

O Capítulo 8 trata das técnicas de desenvolvimento da aprendizagem em aula. Masetto esclarece que há técnicas mais adequadas do que outras  para certos objetivos; algumas técnicas se mostram melhores para certos grupos de alunos do que para outros e, finalmente, que a variação de técnicas proporciona que todos os tipos de alunos sejam atingidos: alguns apreciam mais ouvir (aula expositiva), outros, fazer exercícios, outros preferem aulas com imagens e som, outros, ainda, visita técnica, outros gostam de debates (leituras preparatórias extraclasse são fundamentais em qualquer delas e precisam estar afeitas ao que é desenvolvido em aula). Se o professor varia o número de técnicas que emprega em suas aulas visando à aprendizagem, permite que todos sejam atingidos e, portanto, beneficiados, mais do que somente se fixar em uma ou poucas delas. Essas técnicas o professor precisa conhecer e dominar, além de saber decidir qual delas aplicar conforme o contexto que encontra e de criar outras técnicas que melhor se adaptem à realidade em que atua. As grandes linhas de técnicas compreendem ambientes presenciais (aulas expositivas, debates, exercícios, discussão de problemas, estudos de caso), ambientes profissionais (visitas, aulas práticas) e virtuais (teleconferência, e-mail, chat, etc.), todas obviamente visando à aprendizagem.

No Capítulo 9, o autor mostra caminhos para a seleção de conteúdos significativos para uma disciplina, a qual, mesmo que seja padronizada pela instituição (plano, programa a cumprir), não impede em o professor (individualmente ou em conjunto com seus pares) selecionar aquilo que realmente é importante para o aluno aprender: que grandes linhas abordar, quais exemplos, quanta ênfase dar, a profundidade, etc. Ao encerrar a disciplina, ouvir os alunos a respeito de como sua aprendizagem foi influenciada. Tudo isso permite progredir continuamente nas disciplinas e na ação docente.

O Capítulo 10 cobre a relação entre o processo de avaliação e o de aprendizagem. Como já levantado acima (Capítulo 7), a avaliação precisa ser coerente com o objetivo da aprendizagem, e, para tal, é necessário que não vise a contemplar apenas uma nota fria que expresse a dualidade erro/acerto. Ao invés disso, necessita ser reflexo do processo de aprendizagem, de evolução e de progresso (crescimento global da pessoa) na apropriação de conhecimentos, habilidades e competências. Cada instrumento de avaliação (trabalhos, provas objetivas, provas discursivas, relatórios de observação, debates, etc.) tem pontos fortes e fracos, que Masetto explana e aprecia cuidadosamente. Em vez de servir para medir o grau de informações e conhecimentos absorvidos, deverá a avaliação contribuir para a correção de rumos, de compreensões indevidas,  modificações nos esquemas de aula e de técnicas empregadas, visando-se à aprendizagem no seu sentido global, como acima indicado.

O Capítulo 11 trata de uma questão importantíssima: o planejamento de uma disciplina como instrumento de ação educativa.

Nesse capítulo, o autor esclarece que muitas vezes há a repetição de um semestre para outro do mesmo plano, o professor não o modifica, não pensa a respeito de se está executando o mesmo para cumprir o estabelecido pela burocracia ou se está ajudando a formar um profissional que mais tarde fará intervenções na sociedade. A reflexão a respeito é relevante, e Masetto se debruça nela com grande esforço, dando sugestões valiosas acerca de decisões, estratégias, atividades, etc.

O Capítulo 12 (final) procura mostrar como o professor que não recebeu treinamento formal em metodologia do Ensino Superior poderia iniciar um trabalho como o preconizado no livro. Masetto indica que há várias formas, como a formação de grupos de docentes que partilhem ideias referentes ao trabalho docente, seminários, encontros, etc. sempre, porém, com o apoio da instituição de Ensino Superior em que trabalha.

O autor assinala que o livro se propôs a apresentar ideias e sugestões, mas não prescrever normas de conduta profissional.

A obra não apresenta fragilidades dignas de nota e é fortemente recomendável para leitura. Além disso, pode ser comparada, por exemplo, ao livro Constructivismo y escuela, de Rafael Porlán (Sevilla, Espanha: Díada, 2000). Esse último autor centra-se na resolução de problemas como maneira de promover a aprendizagem e enfoca vários pressupostos implícitos na atividade docente, modelos de currículo, etc., para efetuar a análise apresentada no livro. Como Masetto, Porlán tem como foco o professor e sua relação com os alunos no processo de aprendizagem.

Outro ponto é que Porlán narra inicialmente história de uma pessoa que interrogou três pedreiros sobre o que estavam fazendo. “Estou sentando tijolos”, disse o primeiro; “Estou levantando esta parede”, disse o segundo; e o terceiro pedreiro respondeu: “Estou erguendo uma catedral.” O professor profissional e consciente do que está fazendo em aula – na forma apresentada por Masetto – assemelha-se ao terceiro pedreiro: está contribuindo com a formação de pessoas que farão intervenções na sociedade, é não está apenas “dando aulas” – como, aliás, também lembra Porlán. Essa formação não está relacionada de forma exclusiva com conhecimentos (com o cognitivo); ela alcança outras dimensões, como  mostram os capítulos da obra aqui resenhada. Para dar essa formação aos alunos, o professor universitário precisa ter formação apropriada e não apenas “boa vontade”. É necessário que seja profissional como docente e consciente do significado de sua ação, do mesmo modo que o terceiro pedreiro.

Nota

1 Resenha da obra Competência pedagógica do professor universitário (São Paulo: Summus, 2003) é um livro de autoria de Marcos Tarcísio Masetto. O autor é professor universitário desde 1963, com graduação em Filosofia pela Faculdade Anchieta de São Paulo, mestrado e doutorado em Psicologia Educacional pela PUCSP e livre docente em Didática pela USP. Sua atuação profissional se voltou historicamente para assuntos didáticos e pedagógicos no Ensino Superior, através de seminários, palestras e conferências direcionados aos mais diversos cursos, como Engenharia, Nutrição, Direito e Administração. Atualmente, na PUCSP, exerce atividades na graduação e pós-graduação em Educação e já ocupou o cargo de vice-reitor. Na Universidade Presbiteriana Mackenzie leciona Didática para a graduação em Pedagogia. A produção científica e as atividades de Masetto incluem diversos livros, artigos, trabalhos apresentados em congressos, além de orientações a mestrandos e doutorandos. Destacam-se os seguintes livros de sua autoria: O professor universitário em aula (São Paulo: MG, 1980), Aulas vivas (São Paulo: MG, 1992), Docência na universidade (Campinas: Papirus, 1998) e Novas tecnologias e mediação pedagógica (Campinas: Papirus, 2000), este último em coautoria

Paulo Tiago Cardoso Campos – Mestre em Economia pela UFRGS, professor no curso de Ciências Contábeis da UCS e no curso de Administração da Faculdade Fátima de Caxias do Sul. Contador.

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Línguagem e comunicação – PAVIANI (C)

PAVIANI, Neires Maria Soldatelli. Línguagem e comunicação. Caxias do Sul: Educs, 2008. Resenha de: ROSA, Marcelo Prado Amaral. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 2, Maio/Ago, 2011.

O livro Linguagem e educação é uma produção textual vinculada a projetos de pesquisa que possuem temática dirigida a considerações sobre leitura e gêneros discursivos, aspectos socioculturais e regionais da linguagem. A organização em forma de livro visa a alcançar a homogeneidade temática, pois alguns desses ensaios já foram publicados, na íntegra ou parcialmente em revistas especializadas. É destinado diretamente aos docentes do Ensino Fundamental e do Médio e, do mesmo modo, para acadêmicos de cursos de graduação em licenciaturas e de programas de pós-graduação.

A autora da obra, professora Neires Maria Soldatelli Paviani, é Doutora em Educação, na área de Metodologia de Ensino, pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar-SP). Atualmente, é professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS), vinculada às linhas de pesquisa educação, linguagem e tecnologia. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Sociolinguística e Dialetologia, atuando principalmente nos seguintes temas: professor de Português, situações de bilinguismo, formação do professor. É autora e coautora de outras sete obras, entre elas, Universo acadêmico em gêneros discursivos (2010), Práticas de linguagem: gêneros discursivos e interação (2009) e Linguagem e práticas culturais (2006).

A obra em questão se apresenta dividida em oito capítulos estruturalmente independentes, podendo cada texto ser usado de forma individualizada sem prejuízo nenhum de compreensão por parte do leitor; ao mesmo tempo, são textos que podem vir a se complementar.

Os capítulos da obra são: (i) “Situações de bilinguismo e variação linguística no ensino”; (ii) “Estudos sociolinguísticos e valores”; (iii) “Estigma social da pronúncia no ensino do Português”; (iv) “Linguagem literária e os saberes”; (v) “A função do professor e o ato de ler do aluno”; (vi) “A leitura na formação científica do profissional”; (vii) “O meio cultural na formação do leitor”; e (viii) “A linguagem do teatro e a educação”. A obra completa apresenta 129 páginas.

O primeiro capítulo, “Situações de bilinguismo e variação linguística no ensino”, que contém os seguintes subtítulos: i.i) conceito de língua; i.ii) variação linguística; i.iii) noções de norma e (dialeto) padrão; i.iv) situações de bilinguismo; i.v) comunidades bilíngues e tipos de bilinguismo; i.vi) intereferências, empréstimos e influências de bilinguismo; e i.vii) referências, tem como base um estudo realizado no município de Flores da Cunha – RS, uma vez que esta localidade é caracterizada por apresentar diferentes modos de composição da fala bilíngue. Ainda apresenta como objetivo principal as definições operacionais dos seus tópicos secundários acima expostos. Procuro, assim, mencionar aqui diferenças, identidades e outras operações analíticas e interpretativas no desenvolvimento da temática. Tais definições se evidenciam como de suma importância devido à diversidade de pontos de interpretação, que os conceitos tratados neste estudo podem vir a ter.

Assim, o redimensionamento de conceitos gerais e amplos, como no caso de língua e de conceitos mais específicos, como de bilinguismo, podem vir a mostrar variedade ou graus de bilinguismo social, estando entre as principais referências utilizadas para as construções teóricas os textos de Câmara Júnior, Saussure, Titone, Savedra e Heye.

O objetivo do segundo capítulo, “Estudos sociolinguísticos e valores”, com os subtítulos: ii.i) “Interdisciplinaridade da sociolingüística”; ii.ii) “Definição de sociolingüística, segundo Berruto”; ii.iii) “Objeto e campos de ação da sociolinguística, conforme Berruto”; e ii.iv) “Referências”, é verificar que aspectos sociolinguísticos e culturais estão inter-relacionados na variedade do Português falada em uma região de descendentes de imigrantes italianos (Nordeste do Rio Grande do Sul). A importância deste estudo vem ao encontro de aspectos que nem sempre, nas diferentes pesquisas linguísticas, se dão conta da língua como um fenômeno global, fazendo com que a língua deixe de ser vista como prática cultural. Nesse capítulo também é abordado, de forma muito bem-amarrada com a história da própria sociolingüística, a questão da importância interdisciplinar da sociolinguística e que, devido a esse aspecto, é possível a realização de estudos sobre fenômenos culturais extralingüísticos, que interferem e influenciam no uso da língua e não somente dos aspectos linguísticos em si. As principais referências neste capítulo são Labov, Santos, Tarallo e Berruto.

No terceiro capítulo do livro em questão, “Estigma social da pronúncia no ensino do Português”; é tratada a questão da importância da pronúncia (sotaque de uma língua) sobre a perspectiva da atuação do Professor no ensino de português em situações de bilinguismo e em grau relativo (falantes que falam línguas de imigrantes, ou que não falam, mas entendem). Para ilustrar a situação da abordagem desse capítulo, são apresentados trechos de depoimentos de professores do Ensino Fundamental de uma região colonizada por imigrantes italianos, o que traz para o texto um sentido de empatia com o público-alvo da região onde está localizada a Universidade de Caxias do Sul. É notória, nesse texto, a relevância desses aspectos para a comprovação de que o ensino de Língua Portuguesa deve ter suas peculiaridades em regiões marcadas pela imigração, pois o bilinguismo é um traço antropológico que vai além do mero “erro de pronúncia lingüística”. Vale destacar os textos de Bisol, Câmara Júnior, Titone, Mescka e Weinreich, que compõem o quadro referencial deste capítulo.

O quarto capítulo “Linguagem literária e os saberes” versa sobre o fato de a literatura ficcional servir de momento de aprendizagem para o leitor, devido à sua característica primeira de entretenimento. O texto expõe, de forma clara e simples (sem ser simplória), a relação entre literatura ficcional, saberes e vida acadêmica. A autora afirma categoricamente que “o ato de ler obras literárias é algo fundamental para as funções sociais e profissionais, pois amplia a visão e a compreensão dos problemas do homem e do mundo”. (p. 69). Nesse capítulo, friso a diferenciação entre leitura técnica e literária, dada pela autora, via palavras de Giannetti. Existe ainda o cuidado da autora em não mascarar, nem tampouco sobrepor um tipo (ficcional) de leitura sobre outro tipo (técnico), deixando claros os saberes que cada leitura proporciona ao leitor. Para ilustrar as experiências trazidas pela leitura literária, a autora ilustra com depoimentos informais de leitores. Ainda é destaque, juntamente com Giannetti na construção teórica, os autores Barthes, Bourdieu e Merleau-Ponty.

Na sequência, no Capítulo 5, “A função do professor e o ato de ler do aluno”, com os subtítulos: v.i) “Nos bastidores: as providências”; v.ii) “As expectativas do público”; v.iii) “Primeiro ato: sala de aula”; v.iv) “Segundo ato: aplicação (é fazendo que se aprende)”; v.v) “Desce a cortina: aplausos”; e v.vi) “Referências”, a autora, fazendo uma analogia com a linguagem teatral, trata especificadamente sobre o ato de selecionar textos e como trabalhá-los com finalidades didático-pedagógicas. Por meio das palavras de Braga e Silvestre, a autora traz para a conversa a identificação generalista e vaga da intencionalidade na seleção de textos. Dessa forma, são apresentadas, no texto, questões norteadoras que servem para o esclarecimento de decisões sobre ações de leitura. Nesse capítulo, ainda, enfatiza como é importante que o professor tenha consideração com as expectativas do público-alvo para quem é destinada a escolha das leituras, pois é preciso criar condições favoráveis de leitura ao leitor, para que a experiência de leitura textual seja agradável, prazerosa, enfim que a leitura não seja um mero exercício, uma vez que “o papel do professor é semelhante àquele que pretende acender uma fogueira” (p. 84) que, uma vez acesa, queima sozinha. Ainda, no decorrer da leitura, são apresentadas atividades de leitura em três etapas que podem vir a auxiliar as atividades dos docentes, desde que processadas de forma integrada.

Nesse capítulo, são destaques as referências a Braga e Silvestre, Freire, Martins e Merleau-Ponty. Já no texto do Capítulo 6, “A leitura na formação científica do profissional”, com os subtítulos: vi.i) “Como transformar o estudo da língua em modos de formação”; e vi.ii) “Referências”, o foco de abordagem da autora recai sobre a necessidade de atribuições de sentido ao que se ensina e de sensibilidade no ato de ensinar, pois a leitura é uma atividade social que possibilita o desenvolvimento e o amadurecimento da criticidade e da criatividade. Nas palavras de Martins (1993, p. 102), o professor “precisa mostrar ao aluno que ler significa inteirar-se do mundo, sendo também uma forma de conquistar autonomia, de deixar de ler pelos olhos de outrem”. Mais ao fim do texto, são expostas de forma sutil as teorias de argumentação, aspecto que saliento como valioso no texto devido à sua importância, uma vez que a língua é, por excelência, comunicação. Entre as referências usadas pela autora para a construção do texto, destacam-se os estudos de Duranti, Paviani, Perelman e Oldrechts-Tyteca, Silva e Toulmin.

Em “O meio cultural na formação do leitor”, Capítulo 7, cujos subtítulos são: vii.i) “O meio cultural e a leitura”; vii.ii) “Leitura e aspectos socioculturais”; vii.iii) “Uma fotografia sociolinguística”; vii.iv) “Considerações finais”; e vii.v) “Referências”, tem como importantes as influências que o meio cultural exerce sobre os hábitos de leitura como prática cultural, partindo de dados coletados entre estudantes ingressantes no Ensino Superior. Os dados foram coletados no ano de 2002 (Tear1), aprendizes matriculados na disciplina de Língua Portuguesa Instrumental, da Universidade de Caxias do Sul, totalizando uma amostra composta por 144 alunos. Os instrumentos para obtenção dos dados foram: um questionário socioeconômico e cultural e um teste de leitura em que se verificou: dominância explicativa e argumentativa de gêneros textuais, respectivamente, reportagem e editorial. Os dados revelam que a família desses ingressantes é de etnia italiana, em sua maioria, não passando de 15% os pais que possuem formação em curso de nível superior. Sobre o incentivo à leitura, o dado levantado de maior destaque é o fato de a figura da mãe ser a grande incentivadora, ficando em segundo plano a escola. Os referenciais de destaque nesse trabalho são Bourdieu e Marcuschi, além de outros.

No oitavo, e último capítulo da obra em questão, “A linguagem do teatro e a educação”, com os subtítulos: viii.i) “Experiência humana”; viii.ii) “Atividade educativa”; e viii.iii) “Referências”, em forma de relato, são abordados as consequências e os resultados de uma experiência teatral como atividade educativa, que, por aproximadamente uma década, foi realizada em uma escola. Essa experiência lúdica tem, em sua essência, objetivos pedagógicos (expressão e comunicação) mais que objetivos técnicos e profissionais relacionados ao teatro. A autora toma o cuidado de examinar que atenção é dada ao tipo de texto para a peça teatral, devendo esse ser adequado às peculiaridades do grupo e da escola. Ao final do texto, é ratificado o emprego do teatro na escola como recurso potencial e acessível para que o aluno venha a “perceber e a expressar a si mesmo o mundo que o rodeia”. (p. 127). A referência usada nesse capítulo é Montenegro.

Os textos que compõem o livro Linguagem e educação apresentam como características de escrita a clareza e a preocupação de servirem de subsídios diretos para a prática pedagógica, o que pode ser atestado pela ordem dos textos que basicamente se dirigem da teoria para a prática em sala de aula. Ainda: enfatizo a importância do livro com base na ampliação dos fundamentos e conceitos que se circunscrevem à área educacional, a partir, especificadamente, de aspectos relacionados à linguagem, à educação, à leitura, à literatura, à variação linguística, à sociolinguística, entre outros. Com base na análise geral do livro, evidencia-se o imbricamento existente e que a autora clarifica entre linguagem e pensamento, interação, expressão corporal, o outro, com as origens e com o mundo que nos cerca, implicando, de tal maneira, o entendimento do ser humano como um ser social. Assim, justifica-se a frase de Guimarães Rosa, que serve de epígrafe à obra: “A linguagem e a vida são uma coisa só”.

Devido ao supraexposto, é reiterada aqui a recomendação da leitura deste livro por professores, acadêmicos de cursos de graduação em licenciaturas e acadêmicos de Pós-Graduação vinculados à linha de pesquisas da área de educação, linguagem e tecnologia, devido ao fato de essa obra se apresentar como geradora de ideias, de propor soluções de problemas ou de instigar a leituras complementares e diálogos.

Marcelo Prado Amaral Rosa – Licenciado em Química pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), campus de Frederico Westphalen/RS. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Práticas de linguagem: gêneros discursivos e interação – FONTANA et al (C)

FONTANA, Niura Maria; PAVIANI, Neires Maria Soldatelli; PRESSANTO, Isabel Maria Paese. Práticas de linguagem: gêneros discursivos e interação. Caxias do Sul: Educs, 2009. Resenha de: VIAPIANA, Simone. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 2, Maio/Ago, 2011.

O livro Práticas de linguagem: gêneros discursivos e interação, editado pela Editora da Universidade de Caxias do Sul (Educs), com apoio da Universidade de Caxias do Sul (UCS), das empresas da região: Timo, Seccare e Valtec, tem como autoras as professoras e Ppesquisadoras Niura Maria Fontana, Neires Maria Soldatelli Paviani e Isabel Maria Paese Pressanto. Trata-se de um livro didático que tem o objetivo de auxiliar os professores de Língua Portuguesa no desenvolvimento de aulas que aproximem a língua do seu real uso. É proposta do livro oportunizar o desenvolvimento da competência discursiva por meio de gêneros discursivos. A obra, aqui resenhada, surgiu como decorrência de pesquisa realizada na Universidade de Caxias do Sul. Essa pesquisa foi desenvolvida com alunos universitários (2004-2005) com apoio da Fapergs1 e da BIC/UCS,2 visando a fazer um levantamento das habilidades de leitura que esses possuíam. Os resultados da pesquisa fizeram com que as autoras pensassem em estratégias que pudessem promover a formação de leitores mais competentes, propondo o desenvolvimento de habilidades de leitura via sequências didáticas que compõem a obra.

O livro é composto de duas partes. A primeira parte apresenta um conjunto de oito sequências didáticas, tendo, como tema norteador, questões ambientais, com destaque à responsabilidade ecológica. Elas são montadas seguindo igual estrutura, com pequenas variações decorrentes das especificidades dos gêneros trabalhados. Isto é, tais sequências são compostas por uma reflexão inicial, com o título “Formas de ver a realidade”, a partir de uma charge, seguida de atividade: de préleitura, com o título “Preparando a leitura”; de leitura-descoberta, intitulada “Construindo os sentidos do texto”; de atividades de pósleitura; “Ampliando a rede de leitura” e “Relacionando texto e realidade” e de tarefas de interação, “Produzindo textos em cadeia”. Há, também, uma seção que trata de mecanismos de linguagem e, no fim da sequência, uma atividade de metacognição, “Analisando o próprio processo de leitura”. Como projetos de trabalho, essas atividades têm o propósito de levar o aluno a pensar a realidade que o cerca e a relacionar o tema com a vida, ou seja, relacionar o texto com seus contextos de produção e recepção.

No primeiro item da introdução do livro, as autoras tratam dos temas de leitura, escrita e produção oral como práticas sociais. Apresentam a importância da leitura e da escrita na sociedade a partir da visão de linguagem como prática social. No segundo, abordam as concepções de língua como balizadores da abordagem do ensino de leitura e da produção oral e escrita. No terceiro, tratam dos gêneros e dos modos de organização discursiva. Apoiadas em estudos bakhtinianos, postulam que a comunicação verbal ocorre por meio do discurso. No último, as autoras comentam práticas de linguagem no sistema educacional, destacando que o ensino tradicional tem privilegiado o ensino de estruturas linguísticas descontextualizadas, e que a visão contemporânea de ensino de língua materna, defendida nos Parâmetros Curriculares Nacionais, propõe que a língua seja trabalhada a partir de contextos de comunicação relevantes aos usuários da língua. Após a introdução, são apresentadas oito sequências didáticas.

A Sequência 1 tem como eixo temático a responsabilidade ecológica. O gênero textual em foco é o anúncio publicitário; os aspectos linguísticotextual- discursivos abordados são: crase, mecanismos de coesão textual, funções da linguagem, aspectos de argumentação, paráfrase e uso da vírgula; as habilidades cognitivas a serem desenvolvidas são as de compreensão, análise, síntese, comparação e avaliação; as estratégias de leitura são as de antecipação, formulação de hipóteses, compreensão de elementos paratextuais, integração das partes no todo, identificação do enunciador e formulação de inferências; os gêneros escritos produzidos serão: carta, e-mail e anúncio publicitário; e o gênero oral a ser produzido nessa sequência é o diálogo argumentativo.

Na Sequência 2, é apresentada a economia de água, com base no folheto de divulgação. Os aspectos linguístico-textual-discursivos abordados são os modos de organização discursiva, as funções da linguagem (manipulativa e imaginativa) e estratégias de redução textual. As habilidades cognitivas trabalhadas são as de compreensão, análise, avaliação, comparação e síntese. As estratégias de leitura desenvolvidas são as de ativação do conhecimento prévio, compreensão de elementos paratextuais, identificação da presença de humor, identificação do enunciador, levantamento de hipóteses e identificação do receptor. Os gêneros escritos produzidos são: anúncio publicitário, folheto de divulgação de campanha, e-mail, charge e lista de instruções. O gênero oral produzido é o diálogo argumentativo.

A temática da relação do ser humano com o meio ambiente está presente na Sequência 3, a partir da carta argumentativa e do ofício. Os aspectos linguístico-textual-discursivos abordados são as funções de linguagem (manipulativa e imaginativa), os modos de organização discursiva, argumentação, coesão textual, metáfora e gerúndio. As habilidades cognitivas trabalhadas na Sequência didática 3 são: análise, compreensão, avaliação, síntese e aplicação. As estratégias de leitura desenvolvidas são as de ativação do conhecimento prévio, identificação de contextualizadores, identificação de teses e argumentos e posicionamento crítico. Os gêneros escritos produzidos na Sequência 3 são: carta argumentativa, comentário crítico, resenha, charge e poema. O gênero oral produzido nessa sequência é o diálogo argumentativo.

É contemplada a degradação ambiental na Sequência 4, por meio do conto, da tira e do gênero pergunta/resposta. Os aspectos linguísticotextual- discursivos abordados são: os níveis de linguagem; as funções da linguagem (imaginativa) e os tempos verbais (mundo narrado). As habilidades cognitivas da sequência são: análise, compreensão, avaliação, síntese e aplicação. As estratégias de leitura desenvolvidas são: ativação do conhecimento prévio, identificação de contextualizadores, identificação de teses e argumentos e posicionamento crítico. Os gêneros escritos produzidos nessa quarta sequência são relato, conto, carta, e-mail e reportagem. O gênero oral produzido é o diálogo argumentativo.

A Sequência 5 contempla a poluição urbana como rede temática. O gênero dos textos lidos nessa sequência é o editorial. Os aspectos linguístico-textual-discursivos abordados são: funções da linguagem (ideacional), mecanismos argumentativos, gêneros textuais, níveis de linguagem, denotação e conotação. As habilidades cognitivas da sequência são: análise, síntese, aplicação, avaliação e compreensão. As estratégias de leitura desenvolvidas são: ativação do conhecimento prévio, inferência e levantamento de informações. Os gêneros escritos produzidos na Sequência 6 são: editorial, esquema, carta ao jornal e verbete. O gênero oral produzido nessa sequência é a apresentação oral de história e o diálogo argumentativo.

Não só a poluição como também o uso racional da água aparecem no artigo de opinião na Sequência 6. Os aspectos linguístico-textualdiscursivos abordados são mecanismos argumentativos (teses e argumentos), pontuação, referenciação, sinonímia, aspecto verbal e definição. As habilidades cognitivas são: compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação. As estratégias de leitura desenvolvidas são: ativação do conhecimento prévio, inferência, identificação das ideias centrais e secundárias e condensação. Os gêneros escritos produzidos na Sequência 6 são: artigo de opinião, carta ao leitor e e-mail. O gênero oral produzido é o diálogo argumentativo.

O gênero textual resenha, na Sequência 7, aborda problemas ecológicos. Como domínio social da comunicação, a sequência trata da manutenção e transmissão de saberes. Os aspectos linguístico-textualdiscursivos apresentados são: referenciadores e articuladores, verbos de citação, conectores, sinonímia, pontuação (aspas), resumo e paráfrase.

As habilidades cognitivas desenvolvidas na sequência são: compreensão, análise, síntese e avaliação. As estratégias de leitura desenvolvidas são: ativação do conhecimento prévio, inferência, identificação das ideias centrais e secundárias, interligação/associação de conceitos, efeitos reflexivo-interativos da leitura na realidade do leitor. Os gêneros escritos produzidos na Sequência 7 são resenha e entrevista. Os gêneros orais produzidos nessa sequência são o depoimento/relato oral e entrevista.

A Sequência 8 (a última), possui como tema a visão sistêmica do universo. O gênero de texto lido nessa sequência é o ensaio. Como domínio social da comunicação, trata da discussão de problemas sociais controversos. Os aspectos linguístico-textual-discursivos abordados são: referenciadores sequenciadores/articuladores e argumentação. As habilidades cognitivas desenvolvidas na sequência são: compreensão, análise, síntese e avaliação. As estratégias de leitura desenvolvidas são:  ativação do conhecimento prévio, inferência, identificação das ideias centrais e secundárias, interligação/associação de conceitos, efeitos reflexivo-interativos da leitura na realidade do leitor. Os gêneros escritos produzidos são: resenha e entrevista, e o gênero oral é o depoimento/relato oral e entrevista.

A parte II, denominada “Apontamentos teóricos”, contém informações sobre tópicos teóricos que sustentam e apoiam as práticas orais e escritas, propostas nas sequências em geral. A obra apresenta, também, uma planilha que servirá para o aluno registrar o que lhe chamou a atenção sobre o tema ecologia. Há sugestões de fontes de leitura, de vídeos, de programas de TV, de livros para o aluno e o professor acessarem e ampliarem os conhecimentos. Essa seção é um suporte aos professores e alunos para as práticas orais e escritas de linguagem.

As autoras elencam, nesse livro, várias sugestões de como é possível aprimorar o ensino de Língua Portuguesa na prática de sala de aula, embasadas em uma perspectiva de língua como processo dialógico e social. Sendo assim, essa é uma obra didática de relevância social, científica e pedagógica.

Dentre as recentes produções desse gênero, sem dúvida, essa é uma obra que se destaca pelo rigor e pela seriedade com que foi elaborada. É importante ressaltar que se trata de uma edição de qualidade tanto da parte gráfica quanto do conteúdo, pois se percebe que cada detalhe que compõe a obra foi pensado como um todo. E as autoras foram felizes no tratamento da questão dos gêneros discursivos e da temática ao objetivarem a proposta de um ensino na perspectiva sociointeracionista.

Certamente, professores e alunos de diferentes níveis de escolarização beneficiar-se-ão com as estratégias de leitura nela sugeridas para a promoção de leitores mais competentes.

Como se trata de obra voltada a alunos universitários (devido aos resultados de pesquisa), quando o público-alvo forem alunos do Ensino Fundamental ou Médio, alguns ajustes ou algumas adequações poderão ser necessários para atender às diferentes demandas de aprendizagem.

Enfim, é uma obra que merece ser recomendada aos estudiosos e profissionais da área e afins, pois trata das questões de linguagem com rigor científico e pedagógico, visando ao real uso da língua. Ou seja, a proposta é de ensinar língua Portuguesa a falantes nativos de forma significativa, por meio de gêneros discursivos que tratam de temas de maior importância para a sobrevivência do Planeta e de processos de interação com as práticas sociais.

Notas

1 Fundação Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul.

2 Programa de Bolsas de Iniciação Científica

Simone Viapiana – Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade de Caxias do Sul (PPGEd – UCS) e Professora de Espanhol no Programa de Línguas Estrangeiras (PLE) da UCS.

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Linguagem e educação: o ensino e a aprendizagem de gêneros textuais – MACHADO (C)

MACHADO, A. R. et al. Linguagem e educação: o ensino e a aprendizagem de gêneros textuais. Campinas: Mercado das Letras, 2009. Resenha de: BONES, Vanessa Elisabete Urnau. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 2, Maio/Ago, 2011.

Há algumas décadas, novas práticas para o ensino de língua estão sendo estudadas por pesquisadores de todo o mundo. Didáticas arcaicas e descontextualizadas estão, aos poucos, sendo deixadas de lado para dar espaço ao ensino de língua envolto nos gêneros textuais. É com essa proposta de ensino que a Professora Lília Santos Abreu-Tardelli, Doutora e Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (Lael) pela PUC-SP, juntamente com a Professora Vera Lúcia Lopes Cristovão, pós- Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela mesma universidade, organizaram o livro Linguagem e educação: o ensino e a aprendizagem de gêneros textuais, que reúne textos da autora Anna Rachel Machado e colaboradores.

Lançado em agosto de 2009 pela Editora Mercado das Letras, integrando a Coleção Idéias sobre Linguagem, visa a divulgar as abordagens teóricas e metodológicas mais atuais, bem como propalar trabalhos de qualidade. O livro Linguagem e educação possui 184 páginas, divididas em dez partes, que traçam a caminhada de Machado pelo interacionismo sociodiscursivo, a partir de recortes de artigos escritos ao longo de 15 anos de pesquisa.

Pioneira do interacionismo sociodiscursivo no Brasil, de acordo com Abreu-Tardelli e Cristovão, primeiras orientandas, organizadoras e responsáveis pela apresentação dessa obra, a Tese de Doutorado de Machado, defendida em 1995 no Programa de Pós-Graduação de Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP, com orientação * da Profª Dra. Maria Cecília Camargo Magalhães em co-orientação com Jean-Paul Bronckart, é o primeiro trabalho escrito em nosso país sobre essa abordagem metodológica. Atualmente é professora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Lael da PUC-SP, autora, coautora, organizadora e tradutora de vários livros, dentre os quais se destaca O diário de leituras: a introdução de um novo instrumento na escola (1998); é coautora de Planejar textos acadêmicos (2005) e de Trabalhos de pesquisa: diário de leitura para a revisão bibliográfica (2007); organizou o livro O ensino como trabalho (2004), co-organizou Gêneros textuais e ensino (2002), Atividades de linguagem, discurso e desenvolvimento humano (2006) e O interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e metodológicas (2007). Foi a tradutora do livro Atividades de linguagem, textos e discursos de Bronckart (1999).

Resultado de anos de pesquisa, o livro Linguagem e educação: o ensino e a aprendizagem de gêneros textuais apresenta, em seu primeiro capítulo, um texto de Machado em coautoria com a Professora Dra. Ana Maria de Mattos Guimarães. Intitulado “O interacionismo sociodiscursivo no Brasil”, esse capítulo trabalha diacronicamente com o contexto sóciohistórico- cultural do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) no Brasil.

Para isso, as autoras iniciam retomando os fatos políticos do cenário brasileiro desde a década de 60 (séc. XX) até o governo Fernando Henrique Cardoso, juntamente com as alterações educacionais ocorridas nesse período. Essa caminhada permite que o leitor se situe historicamente e entenda de modo claro como se deu o primeiro contato das pesquisadoras Profª. Dra. Roxane H. Rojo e Maria Cecília C.

Magalhães com as teses do ISD e a posterior aceitação dessas teses no cenário educacional brasileiro. A criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) também é comentada por Machado e Guimarães, ao mesmo tempo que chamam a atenção para algumas incoerências bibliográficas neles contidas. Ainda nesse capítulo, as autoras propõem um diálogo sobre a expansão institucional das ideias do ISD no Brasil e os rumos das pesquisas desenvolvidas, pela menção feita aos grupos de pesquisa existentes em Programas de Pós-Graduação brasileiros. Embora seja extensa a listagem dos grupos de pesquisa, a alusão a eles é vista de maneira positiva, pois permite que estudiosos e pesquisadores do quadro do ISD no Brasil visualizem com mais facilidade possibilidades de parceria e de ampliação de suas pesquisas.

Em seu segundo capítulo, denominado “Colaboração e crítica: possíveis ações do linguista na atividade educacional”, Machado trabalha com os termos linguística e ensino. De forma resumida, a autora comenta, inicialmente, algumas concepções de linguística na visão tradicional e, posteriormente, recorre ao ISD, mais especificamente aos estudos de Bronckart (2004), para ampliar a noção e abrangência dos termos estudados. Com a pretensão de ampliar a visão do papel do linguista, Machado passa a trabalhar com o conceito de atividade educacional ao invés de ensino, já que, para a autora, o trabalho do linguista não deve se restringir ao provimento de materiais pertinentes ao estudo de línguas, mas de todas as disciplinas, visto que é via textos que os conhecimentos são mobilizados. Para que o leitor visualize outras possibilidades de trabalho do linguista, a autora apresenta eficazmente uma análise crítica e analítica de documentos dos PCNs que contêm a transposição didática de alguns estudos de Bakhtin e dos autores genebrianos Dolz e Schneuwly e enfatiza a importância do linguista não só na produção de materiais, mas também na análise de processos já efetivados.

Seguindo com uma linha de textos interessantes para professores, estudiosos, simpatizantes e iniciantes no quadro do ISD, o terceiro capítulo apresenta o texto “Diários de leituras: a construção de diferentes diálogos na sala de aula”. Nele, a autora esboça sua indignação diante das críticas feitas aos professores que são, de acordo com parte da sociedade e gestores governamentais, os responsáveis pelo baixo desempenho dos alunos nos testes de desempenho de leitura. Com o objetivo de sugerir uma alternativa inovadora e eficaz para melhorar esse índice, Machado expõe os resultados de uma pesquisa que durou mais de dez anos e que se baseou na produção de diários de leitura. Para isso, a autora elenca as características do gênero diário de leitura, analisa o processo de leitura e compreensão na esfera escolar, aponta à necessidade de revisão da concepção tradicional, que considera a leitura como um processo individual e solitário. Ainda: traz algumas dicas que orientam a produção, a discussão e a avaliação dos diários de leitura, bem como descreve e exemplifica alguns fenômenos observados em diários de leitura, elaborados a partir de experiências didáticas. Salienta-se, aqui, a seriedade das pesquisas realizadas por Machado, afinal esse artigo não é o resultado precoce de uma experiência, mas comprova a validade de anos dedicados à pesquisa do gênero diário de leituras.

Sendo esse livro uma coletânea de textos de Machado, publicados em diferentes meios de divulgação científica (livros e revistas), percebese, por vezes, a recorrência da sua base teórica. Nesse sentido, o Capítulo 4, que se intitula “Uma experiência de assessoria docente e de elaboração  de material didático para o ensino e a elaboração de textos na universidade”, se baseia no relato de uma experiência de assessoria docente com o objetivo de modificar o ensino de produção textual no meio universitário, retomando o conceito de ISD, gênero textual, transposição didática e sequência didática, ancorado, em grande parte, nos estudos de Bakhtin (1953), Bronckart (1997), Schneuwly (1994) e Dolz e Schneuwly (1999), referenciados em sua completude, na última parte desse livro. Embora a recorrência teórica aconteça, é importante ressaltar que, em cada texto, Machado traz novas informações e se detém sempre em um aspecto distinto. Dessa maneira, nesse capítulo, a autora trabalha com a construção de uma sequência didática e os aspectos que a envolvem em uma situação de assessoria docente e finaliza enfatizando “o valor e a preocupação contínua que se deve ter com a verdadeira escuta do outro”. (MACHADO, 2009, p. 120).

Intitulado “A construção de modelos didáticos de gêneros: aportes e questionamentos para o ensino de gêneros”, o quinto artigo de Machado, em coautoria com Cristóvão, trabalha com alguns problemas encontrados nas práticas de transposição didática dos gêneros textuais.

Como forma de superar esses problemas e de auxiliar professores na construção do modelo didático de gênero, as autoras elencam algumas pesquisas e as dividem de acordo com a “capacidade” que o professor deseja trabalhar. Pode-se observar que, além de sugerir publicações didáticas com suporte na construção de modelos didáticos de gêneros, esse texto incentiva professores a construírem seus próprios modelos, afinal, a construção do quadro teórico-metodológico do ISD acontece coletivamente.

Na sequência, no livro aqui resenhado, encontramos o último artigo de Machado, denominado “Um instrumento de avaliação de material didático com base nas capacidades de linguagem a serem desenvolvidas no aprendizado de produção textual”. Nesse texto, a autora discorre sobre a reestruturação dos cursos e do ensino de leitura e produção textual, relaciona algumas pesquisas sobre os gêneros e a elaboração de novos materiais didáticos que visam a atender a essas modificações e analisa três sequências didáticas, que trabalham com o gênero textual resenha crítica. É interessante enfatizar que, no decorrer dessa leitura, Machado nos faz, involuntariamente, refletir sobre a qualidade dos materiais didáticos disponíveis no mercado editorial e a necessidade de contextualização das atividades neles presentes, auxiliando, dessa forma, na construção do senso crítico não só dos professores, mas também dos produtores desses materiais.

Nesse sentido, de modo geral, aponta-se que a metodologia utilizada pela autora na escrita dos artigos comprova a validade de seus estudos, afinal, a relação feita entre as bases teóricas e as práticas didáticas experienciadas pela autora, além de ilustrar e esclarecer alguns aspectos teóricos, dá mais credibilidade aos artigos que compõem o livro, pois não são teorias e suposições postas no papel, mas experiências vividas e divulgadas com o intuito de auxiliar na renovação do cenário educacional brasileiro.

Sendo Anna Rachel Machado uma figura respeitada no cenário dos estudos do ISD no Brasil, a presente coleção de textos de sua autoria e em coautoria tem o posfácio assinado por Joaquim Dolz, importante pesquisador sobre o desenvolvimento da linguagem, ensino e aprendizagem de línguas em situação escolar. Dolz, que é Doutor em Ciências da Educação, colaborador científico no Departamento de Instrução Pública do Cantão de Genebra e Professor na Universidade de Genebra, ao escrever o posfácio dessa obra, não poupou elogios à originalidade dos textos de Machado e à importância dessa autora na divulgação dos pressupostos teórico-metodológicos do ISD no Brasil.

O renomado autor também deixa explícito que o livro Linguagem e educação: o ensino e a aprendizagem de gêneros textuais merece destaque, pois possibilita um diálogo coletivo entre instituições brasileiras e pesquisadores internacionais, que se dedicam a questões relativas ao desenvolvimento da linguagem e da educação.

Assim, a partir das considerações levantadas no decorrer desta resenha, é possível dizer que o livro Linguagem e educação: o ensino e a aprendizagem de gêneros textuais possui um valor imensurável, haja vista desenvolver sistematicamente o percurso do ISD no Brasil e auxiliar estudiosos e simpatizantes dessa abordagem teórico-metodológica no entendimento de conceitos básicos e na criação do senso crítico ante publicações dessa ordem.

Vanessa Elisabete Urnau Bones -Licenciada em Letras pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais – HONNETH (C)

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003. Resenha de: SALVADORI, Mateus. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, Jan/Abr, 2011.

A figura mais proeminente dentre os teóricos da terceira geração de Frankfurt é Axel Honneth. Os seus estudos concentram-se nas áreas: filosofia social, política e moral, tratando ,principalmente, da explicação teórica e crítico-normativa das relações de poder, respeito e reconhecimento na sociedade atual.

O objetivo central de Honneth na obra Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, é mostrar como indivíduos e grupos sociais se inserem na sociedade atual. Isso ocorre por meio de uma luta por reconhecimento intersubjetivo e não por autoconservação, como salientavam Maquiavel e Hobbes. As três formas de reconhecimento são as seguintes: o amor, o direito, e a solidariedade. A luta pelo reconhecimento sempre inicia pela experiência do desrespeito dessas formas de reconhecimento. A autorrealização do indivíduo somente é alcançada quando há, na experiência de amor, a possibilidade de autoconfiança, na experiência de direito, o autorrespeito e, na experiência de solidariedade, a autoestima.

Honneth, inspirando-se no conceito de reconhecimento do jovem Hegel, busca fundamentar a sua própria versão da teoria crítica. Com isso, ele pretende explicar as mudanças sociais por meio da luta por reconhecimento e propõe uma concepção normativa de eticidade a partir de diferentes dimensões de reconhecimento. Os indivíduos e os grupos sociais somente podem formar a sua identidade quando forem reconhecidos intersubjetivamente. Esse reconhecimento ocorre em diferentes dimensões da vida: no âmbito privado do amor, nas relações jurídicas, e na esfera da solidariedade social. Essas três formas explicam a origem das tensões sociais e as motivações morais dos conflitos.

A primeira forma de reconhecimento consiste nas emoções primárias, como o amor e a amizade. Para investigar essa esfera, o autor volta-se aos trabalhos da psicologia infantil de Donald Winnicott. O ponto de partida dessa primeira forma é uma fase de simbiose, chamada por Winnicott “dependência absoluta”. A mãe e o filho estão em um estado de indiferenciação. As reações do filho são percebidas pela mão como um único ciclo de ação. Winnicott chama isso “intersubjetividade primária”, em que há uma unidade de comportamento. Porém, para ampliar o seu campo social de atenção, a mãe começa a romper a sua identificação com o bebê. Com isso, o bebê aprende que a mãe é algo do mundo e que não está à sua inteira disposição.

Essa segunda fase é chamada “dependência relativa”. É nesse período que a criança desenvolve a sua capacidade para uma ligação afetiva. A criança reconhece o outro como alguém com direitos próprios, independente. Para Winnicott, a fim de alcançar essa independência do outro, a criança tem que desenvolver dois mecanismos psíquicos: destruição e os fenômenos e objetos transicionais. A destruição (mordidas no corpo da mãe) consiste em atos que a criança pratica quando descobre a independência da mãe. Eles se tornam positivos quando o bebê reconhece a independência da mãe, amando-a sem as fantasias de onipotência. Os fenômenos e objetos transicionais (travesseiro, brinquedo, dedo polegar) são elos de mediação entre a fase da fusão e a da separação.

A criança somente alcança a criatividade quando fica sozinha com os objetos transicionais. Isso é possível devido à dedicação emotiva da mãe, mesmo estando distante da criança. Essa confiança na dedicação materna faz com que a criança desenvolva a autoconfiança. Nessa análise de Winnicott, pode-se concluir que o amor é uma forma de reconhecimento e, por meio dele, o indivíduo desenvolve uma confiança em si mesmo, indispensável para seus projetos de autorrealização pessoal.

Para Honneth o amor somente surge quando a criança reconhece o outro como uma pessoa independente, ou seja, quando não está mais num estado simbiótico com a mãe. O amor é o fundamento da autoconfiança, pois permite aos indivíduos conservarem a identidade e desenvolverem uma autoconfiança, indispensável para a sua autorrealização. O amor é a forma mais elementar de reconhecimento.

O amor se diferencia do direito no modo como ocorre o reconhecimento da autonomia do outro. No amor, esse reconhecimento é possível, porque há dedicação emotiva. No direito, porque há respeito.

Em ambos, somente há autonomia quando há o reconhecimento da autonomia do outro. A história do direito ensina que, no século XVIII, havia os direitos liberais da liberdade; no século XIX, os direitos políticos de participação e, no século XX, os direitos sociais de bem-estar. De modo geral, essa evolução mostra a integração do indivíduo na comunidade e a ampliação das capacidades, que caracterizam a pessoa de direito. Nessa esfera, a pessoa é reconhecida como autônoma e moralmente imputável ao desenvolver sentimentos de autorrespeito.

A solidariedade (ou eticidade), última esfera de reconhecimento, remete à aceitação recíproca das qualidades individuais, julgadas a partir dos valores existentes na comunidade. Por meio dessa esfera, gera-se a autoestima, ou seja, uma confiança nas realizações pessoais e na posse de capacidades reconhecidas pelos membros da comunidade. A forma de estima social é diferente em cada período histórico: na modernidade, por exemplo, o indivíduo não é valorizado pelas propriedades coletivas da sua camada social, mas surge uma individualização das realizações sociais, o que só é possível com um pluralismo de valores.

A passagem progressiva dessas etapas de reconhecimento explica a evolução social. Ela ocorre devido à experiência do desrespeito que se dá desde a luta pela posse da propriedade até à pretensão do indivíduo de ser reconhecido intersubjetivamente pela sua identidade.

Segundo Honneth, para cada forma de reconhecimento (amor, direito e solidariedade) há uma autorrelação prática do sujeito (autoconfiança nas relações amorosas e de amizade, autorrespeito nas relações jurídicas e autoestima na comunidade social de valores). A ruptura dessas autorrelações pelo desrespeito gera as lutas sociais. Portanto, quando não há um reconhecimento ou quando esse é falso, ocorre uma luta em que os indivíduos não reconhecidos almejam as relações intersubjetivas do reconhecimento. Toda luta por reconhecimento inicia por meio da experiência de desrespeito. O desrespeito ao amor são os maus-tratos e a violação, que ameaçam a integridade física e psíquica; o desrespeito ao direito são a privação de direitos e a exclusão, pois isso atinge a integridade social do indivíduo como membro de uma comunidade político-jurídica; o desrespeito à solidariedade são as degradações e as ofensas, que afetam os sentimentos de honra e dignidade do indivíduo como membro de uma comunidade cultural de valores.

As mudanças sociais podem ser explicadas por meio do desrespeito, gerador de conflitos sociais. Os conflitos surgem do desrespeito a qualquer uma das formas de reconhecimento, ou seja, de experiências morais decorrentes da violação de expectativas normativas. A identidade moral é formada por essas expectativas. Uma mobilização política somente ocorre quando o desrespeito expressa a visão de uma comunidade.

Portanto, a lógica dos movimentos coletivos é a seguinte: desrespeito, luta por reconhecimento, e mudança social. Honneth, seguindo as ideias de Hegel, afirma que a eticidade é o conjunto de condições intersubjetivas, que funcionam como condições normativas necessárias à autodeterminação e a autorrealização.

A teoria de Honneth é explicativa, pois busca esclarecer a gramática dos conflitos e a lógica das mudanças sociais com a finalidade de entender a evolução moral da sociedade, e crítico-normativa, porque fornece um padrão – a eticidade – para identificar as patologias sociais e avaliar os movimentos sociais. A eticidade, portanto, é o conjunto de práticas e valores, vínculos éticos e instituições, que formam uma estrutura intersubjetiva de reconhecimento recíproco. Por meio da vida boa, há uma conciliação entre liberdade pessoal e valores comunitários. A identidade dos indivíduos é formada pela socialização, ou seja, é formada na eticidade, inserida em valores e obrigações intersubjetivas. Portanto, não há como pensar a existência de um contrato para o surgimento da sociedade, mas nas transformações das relações de reconhecimento.

Esse conceito formal de eticidade, elaborado por Honneth, visa a ser uma ampliação da moralidade, integrando tanto a universalidade do reconhecimento jurídico-moral da autonomia individual como a particularidade do reconhecimento ético da autorrealização. Por conseguinte, esse conceito tem como objetivo alcançar todos os aspectos necessários para um verdadeiro reconhecimento.

Na sociedade moderna, o indivíduo tem de encontrar reconhecimento tanto como indivíduo autônomo livre quanto como indivíduo, membro de formas de vida culturais específicas. Essa concepção formal de eticidade fica sempre limitada pelas situações históricas concretas. Portanto, ela não cai num etnocentrismo, nem numa utopia, pois ela é uma estrutura que se encontra inserida nas práticas e instituições da sociedade moderna.

Mateus Salvadori – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor na Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Elementos da filosofia moral – RACHELS (C)

RACHELS, James. Elementos da filosofia moral. Trad. de Roberto C. Filho. 4. ed. Barueri: Manole, 2006. Resenha de: BRESOLIN, Keberson. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, Jan/Abr, 2011.

Pensar ética é pensar sobre o modo como as pessoas relacionam-se consigo mesmas, com o outro, com a sociedade e em alguns casos, com o sobrenatural e o ambiente. Ou seja, pensar a ética é pensar a totalidade das relações que se desdobram sobre o horizonte da historicidade humana. Isso não é fácil, muito menos simples. E, quando o assunto em pauta é ética, parece que todos entendem; ou ainda, quando não entendem usam um argumento infalível [unfehlbar], qual seja, “a ética é subjetiva, então, depende de cada um”, logo, a contenda é encerrada.

Essa postura, além de relativista, demonstra a necessidade de um estudo profundo e profícuo sobre a ética para, assim, compreender que ela é uma maneira de agir a partir de princípios e/ou valores definitivamente refletidos e fundamentados. A tentativa de James Rachels, no seu livro Elementos da filosofia moral, é exatamente esta: abordar temas centrais do pensamento moral com a finalidade de mostrar seus fundamentos e seus argumentos sejam eles sustentáveis ou não.

Rachels, filósofo norte-americano, nasceu em Columbus, Geórgia em 30.5.1941 e faleceu em 5.9.2003. Proferiu aulas nas seguintes universidades: University of Richmond, New York University e na University of Alabama at Birmingham onde permaneceu por 26 anos. Sua primeira obra intitulada Moral problems (1971), ao ser lançada, contribuiu para que as faculdades norte-americanas repensassem o modelo de ensino da ética, ou seja, nesse momento, nos EUA, a metaética dominava os debates nas universidades, de modo que sua obra contribuiu a que o ensino da ética se voltasse para questões morais de envergadura prática.1

Em 1975, no início dos debates em torno de questões bioéticas, Rachels escreveu um artigo intitulado “Active and passive euthanasia”.

No ano de 1986 aparece, então, o livro The elements of moral philosophy [Elementos da filosofia moral] e, no mesmo ano publica The end of life (1986) e, em seguida, Created from animals2 (1990), Can ethics provide answers? (1997), The legacy of Socrates (2007). Pouco antes de ser diagnosticado com câncer, Rachels conclui seu livro Problems from philosophy, que foi publicado postumamente. Além disso, escreveu inúmeros ensaios e artigos e editou vários livros, mas seu best-seller é, sem sombra de dúvidas, o livro Elementos da filosofia moral.3 Esse livro já está na sua quarta edição no Brasil, justamente por ser um excelente livro de filosofia moral. Apresenta uma linguagem simples, sem deixar de ter argumentos extremamente bem-elaborados. Combina de maneira formidável exemplos práticos com teorias éticas complexas, sem ser, por isso, leviano ou descritivo. Diferentemente de outros livros, os quais abordam a ética com a metodologia por autores, o livro de Rachels aborda temas, dentro dos quais desenvolve os principais autores que abordaram tal assunto. Dessa forma, os temas escolhidos para estigmatizarem os capítulos são postos não com uma preocupação histórico-temporal, mas, a nosso ver, com uma preocupação de inserir e instruir o leitor nos mais importantes debates/temas éticos.

Rachels elaborou 14 capítulos para seu livro, sendo que podemos encontrar nele não apenas questões centrais da milenar ética normativa, mas também questões da jovem metaética. Como todo bom livro, o primeiro capítulo (“O que é a moralidade”?) desenrola uma discussão sobre a natureza da moral. Faz isso de maneira inusitada utilizando-se de três exemplos práticos nos quais a decisão moral não é simples. Os exemplos: a bebê Teresa (bebê anencéfalo), Jodie e Mary (gêmeos siamesas) e Tracy Latimer (vítima de paralisia cerebral), de cunho prático, são apresentados em toda a sua complexidade e dificuldade de resolução.

Depois disso, Rachels apresenta o que ele chama “concepção mínima de moralidade”, a qual, a nosso ver, reflete uma postura utilitarista. A concepção mínima de moralidade é o esforço ou, pelo menos, o esforço para dirigir nossa conduta por razões ou, ainda, fazer aquilo que nos mostre as melhores razões para fazer sem deixar de ser, ao mesmo tempo imparcial, ou seja, considerar os interesses de todos os envolvidos na ação de maneira não parcial. Segundo Rachels, essa é a melhor concepção moral porque ela é mínima, ou seja, aquilo que todos podem igualmente concordar em fazer, não exigindo uma moralidade austera ou ascética do agente.

No segundo capítulo intitulado “O desafio do relativismo cultural”, Rachels aborda de maneira genuína o problema que o relativismo cultural desencadeia para a moral. Primeiramente, o autor se coloca na postura de um relativista cultural de maneira a extrair daí as consequências sérias de ser relativista cultural. Demonstra, então, que não poderíamos criticar outras culturas pelas suas ações e atos, visto que o certo e o errado são relativos de cada cultura em um determinado momento espaciotemporal.

Faz isso utilizando-se de inúmeros exemplos, como a excisão no Togo, as diferentes e antigas práticas funerais entre os gregos e os Calatinos (tribo de indianos). Os exemplos/fatos são algo marcante em toda obra, tornando-a, pois, atraente não apenas a estudantes de ética, mas também a pessoas leigas no assunto que possuem uma centelha de curiosidade pela ética.

“O subjetivismo em ética” é o título do terceiro capítulo, no qual aborda o relativismo em uma dimensão doméstica, ou seja, “particularista-subjetivo”. Aborda, além disso, a questão do sentimento moral e sua nova estruturação dada pelo emotivismo e a complexa questão posta pela oposição cognitivista versus não cognitivista em moral, qual seja, existem ou não fatos morais? No quarto capítulo, “Dependerá a moralidade da religião?”, o autor realiza uma excelente análise sobre a relação religião/moral e como elas se aproximaram ao longo do processo ético-histórico. Rebate categoricamente o fato de algumas pessoas crerem que, se não existir um Deus punidor, então, não há motivo algum para haver ações morais, ou seja, por que agir moralmente se não há castigo, nem vida pós-morte? Ausculta, ainda, a teoria dos mandamentos divinos, demonstrando como esse argumento é carente de fundamentação. Faz isso a partir da célebre afirmação de Sócrates no diálogo Eutifron, no qual se pergunta se o comportamento é correto porque os deuses ordenaram ou os deuses ordenaram porque é correto. Aborda, também, com alguma mazela a teoria da lei natural.

No quinto capítulo aborda “O egoísmo subjetivo” no qual se apropinqua da possibilidade de altruísmo. Mas, a nosso ver, o capítulo sexto intitulado “O egoísmo ético” é muito mais consistente e persuasivo.

Trabalha com argumentos a favor e contra o egoísmo e acaba com o lendário mito de que todo indivíduo egoísta é moralmente mau. Egoísmo é uma concepção moral. Ser egoísta é preservar unicamente seus interesses. No capítulo sétimo “A abordagem utilitarista” e o oitavo “O debate sobre o utilitarismo”, Rachels aborda genialmente o utilitarismo, demonstrando, então, a origem do mesmo e, em seguida, novamente citando vários casos concretos, propõe argumentos prós e contras. Como já dito anteriormente, o livro, segundo nossa leitura, possui um cunho utilitarista leviano, ou seja, não compromete a obra, muito menos a torna tendenciosa. A própria solução apresentada por Rachels ao relativismo cultural, no capítulo segundo, ou seja, um critério neutro de avaliação cultural, apresenta, indiscutivelmente, personalidade utilitarista.

Ao tratar de Kant, nos capítulos nono e décimo, o autor perscruta o âmago da concepção moral kantiana. No capítulo nono, proposto em forma de pergunta (“haverá regras morais absolutas?”), objetifica a moralidade kantiana, demonstrando os dois imperativos: categórico e hipotético. A partir da perspectiva kantiana a resposta à pergunta que originalmente está posta no título do capítulo é sim. Rachels demonstra que o imperativo categórico não suporta exceção e, por isso, toda regra de conduta que surge dele é categoricamente absoluta. Essa regra é apresentada como obrigação da razão e consiste, então, tanto em uma obrigação para fazer como uma obrigação para não fazer alguma ação. O autor trabalha com o famoso texto kantiano “Sobre o suposto direito de mentir por amor à humanidade” para enfatizar a absolutidade das regras categóricas, inclusive, em momentos nos quais a mentira poderia salvar uma vida. O capítulo décimo “Kant e o respeito pelas pessoas” não foi feliz como o anterior. Deixa a desejar na concepção kantiana de dignidade humana. Utiliza-se de uma interpretação da qual não pensamos ser kantiana o suficiente para abarcar a profundidade de tal percepção.

A seguir, Rachels, junto com Hobbes, expõe “A ideia de contrato social” (título do décimo primeiro capítulo), no qual ratifica o paradigma do filósofo britânico ao afirmar o caráter não social e egoísta do homem.

A natureza fez os homens tão iguais que é inevitável o conflito, uma vez que as necessidades são semelhantes, e os recursos, finitos, sendo, pois, necessário um Estado poderoso, o Leviatã, para administrar tais conflitos.

Apresenta também o famigerado dilema do prisioneiro para assoalhar que a decisão fundamentada em princípios cooperativos é a melhor escolha.

No capítulo décimo segundo “Feminismo e a ética do cuidado”, Rachels analisa um tema recente em filosofia moral. A partir dos estágios propostos pelo psicólogo Lawrence Kohlberg e de suas constatações realizadas a partir do “dilema de Heinz” de que o menino estaria em nível superior de moralidade ao ser comparado com uma menina de mesma idade, Rachels desenrola um debate, com o auxílio das ideias de Carol Gilligan, sobre como há diferença na construção de juízos de valoração entre homens e mulheres. Enquanto os homens prezam por uma ética principialista, a ética feminista possui um cunho de cuidado. Esse capítulo é excelente, porque o autor parte dos diferentes aspectos psicológicos que há entre homens e mulheres para chegar, então, a visualizar como tais diferenças influenciam a construção de juízos de valor.

No penúltimo capítulo, o autor aborda a “Ética das virtudes”. Esse paradigma ético não está preocupado, como enfatiza ele, em formular obrigações morais, mas em compreender o que torna o caráter bom. O que é virtude? Como praticá-las? Quantas são? tornam a preocupação com essa ética diferente das demais, embora continue sendo normativa.

Dessa maneira, o autor demonstra a especificidade da ética das virtudes em relação às éticas dos mandamentos morais, elaborada, principalmente, a partir da modernidade.

No último capítulo, Rachels faz uma reflexão em torno de como seria uma teoria moral satisfatória. Aqui os traços utilitaristas do autor são ainda mais claros. Evidenciando o fato de que existem inúmeras teorias éticas, que são, em muitos casos, incompatíveis entre si, Rachels pergunta-se: como seria uma teoria moral satisfatória? Promover os interesses de todas as pessoas de maneira imparcial, tratando cada uma delas como merecem, ou seja, por serem agentes racionais devem ser tratados sem distinção simplesmente por possuírem o poder de escolha.

Todavia, o autor ressalva que a ideia de promover de forma igual os interesses de todos não parece conseguir captar a amplitude da vida moral, fazendo, pois, uma reserva em relação à questão do merecimento pessoal, ou seja, à consideração das individualidades. Dito isso, o autor comenta as concepções de Smith e o “utilitarismo dos motivos” de Sidgwick, acerca do qual não se mostra simpático e propõe o “utilitarismo de estratégias múltiplas”, ou seja, o fim fundamental continua sendo o bem-estar geral, mas se pode defender estratégias diferentes como meio para buscar esse fim. Consoante Rachels, há aqui uma combinação de métodos, motivos e virtudes de tomada de decisão que será melhor para o agente, considerando as suas circunstâncias, o caráter e as capacidades.

Aqui é necessário pensar melhor no sentido de otimizar as condições de possibilidade de o agente ter uma boa vida, ao mesmo tempo que otimiza as possibilidades de as outras pessoas terem vida boa.

Sem dúvida, o livro Elementos da filosofia moral é uma excelente obra de introdução a questões éticas. Mostra-se de grande valor no ensino da ética, uma vez que isso se torna claro diante da quantidade de casos e exemplos utilizados ao longo de toda obra, sem deixar a desejar, ao mesmo tempo, um conteúdo fundamentado. Não é um livro catequético, pelo contrário, apresenta, na maioria das vezes, argumentos prós e contras à teoria abordada, embora, como já mencionado, segundo nossa leitura, possua um fio condutor utilitarista.

Notas

1 Cf. Disponível em: < http://www.jamesrachels.org/ >. Acesso em: 31 dez. 2010.

2 Rachels arguiu a favor do vegetarianismo moral e dos direitos dos animais. Neste livro Created from Animals, ele assevera que a visão de mundo darwinista tem implicações filosóficas fundamentais e [deveria] altera[r] o modo como tratamos os animais não humanos. 3 Cf. Disponível em: < http://www.jamesrachels.org/ >. Acesso em: 31 dez. 2010.

Keberson Bresolin – Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul.

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Sobre ética: Aristóteles, Kant e Levinas – NODARI (C)

NODARI, Paulo César. Sobre ética: Aristóteles, Kant e Levinas. Caxias do Sul: Educs, 2010. Resenha de: CROCOLI, Daniel José. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, Jan/Abr, 2011.

A obra Sobre ética apresenta as diferentes formas de se pensar a dimensão ética, fazendo referência ao olhar teleológico, ao deontológico e ao da alteridade. A primeira parte do texto, organizada no primeiro capítulo, descreve, a partir de Aristóteles, o entendimento teleológico da ética. A segunda parte, constituída de três capítulos, coloca a visão deontológica de Kant. O quinto capítulo se configura a partir dos estudos de Levinas e a alteridade como pano de fundo para se pensar a problematização das questões éticas. O texto é uma leitura acessível do ponto de vista argumentativo, passando pelos principais conceitos referentes ao entendimento ético dos autores em discussão. A riqueza do texto também se confirma pela vasta bibliografia consultada pelo autor ao escrever essa obra. Nas notas de rodapé, o autor nos possibilita um contato direto com os originais referidos no texto, abrindo um importante espaço para esclarecimento de conceitos.

Na abordagem aristotélica, o autor retoma a pergunta de Aristóteles: “Qual o bem supremo do homem e o fim a que tendem todas as coisas?” (p. 9) e retoma o conceito de felicidade como sendo o bem supremo a que se dirige o ser humano pela atividade racional que esteja de acordo com a virtude. O autor destaca que “Aristóteles interpreta a ação humana segundo a categoria de meio e fim”. (p. 16). E, nessa relação, há a necessidade de se pensar um limite para essa sequência. Se todas as coisas tendem a um fim, a um bem, esse bem não é unívoco, pois há uma multiplicidade de fins a que cada ser se dirige. Essa multiplicidade de bens, ou de fins, é organizada em categorias o que faz pensar em um bem supremo. “Aristóteles acredita que a felicidade é este bem soberano, porque é algo final e autossuficiente.” (p. 18). Mas como entender a felicidade no sentido universal sem cair na concepção subjetiva de que cada um possui um conceito próprio de felicidade e, ao mesmo tempo, se distanciar de Platão e manter o caráter imanente do bem soberano? A resposta surge com a ideia de natureza racional do homem, ou seja, “se nós somos seres racionais, por nossa forma natural, então, fica claro que o fim natural será agir segundo a razão”. (p. 20). A felicidade só é alcançada na medida em que o homem se orienta pela razão: “Portanto, para ser feliz, o homem deve viver pela inteligência e segundo a inteligência.” (p. 21). O homem chega à felicidade somente pelo uso da razão em conformidade com a virtude. Essa proximidade entre razão e virtude permite afirmar que o homem feliz é aquele que pensa e age a partir da virtude, e a sabedoria é virtude por excelência.

A virtude está associada à atividade da alma, própria do homem, que se divide em três partes: duas irracionais, presentes em todos os seres vivos, e uma racional, própria do homem. “Então, a parte da alma especificamente humana, que consiste em dominar as tendências e os impulsos, que são por si desmedidos, Aristóteles chama virtude ética.” (p. 25). As virtudes éticas não estão dadas por natureza, mas se desenvolvem com a prática, pelo hábito. É somente realizando ações justas que o homem se torna justo. O autor reforça que, para Aristóteles, o hábito, a ação virtuosa, é que consolida a verdadeira virtude, pois nenhum homem se torna virtuoso da noite para o dia, mas pelo conjunto de suas ações. A virtude se caracteriza não pela falta, nem pelo excesso, mas pela equidade, pelo equilíbrio.

O texto apresenta a divisão feita por Aristóteles entre as virtudes éticas e dianoéticas, ou seja, enquanto as virtudes éticas estão ligadas ao hábito, à ação, as dianoéticas estão ligadas à parte mais elevada da alma e se relacionam com a phronesis [prudência] e com a sabedoria. A phrónesi: “consiste em saber dirigir corretamente a vida do homem”. (p. 29).

Nessa primeira parte do texto, fica claro o entendimento global da abordagem aristotélica sobre a ética, de aproximar a razão, o conhecimento e a prática. A felicidade somente é alcançada a partir de uma vida virtuosa, orientada pela razão. A ética e a política estão próximas em Aristóteles, de forma que as ações concretas, realizadas de acordo com a sabedoria prática, possibilitam que o homem chegue à sua finalidade, ao seu bem, que se identifica com a felicidade e com a visão teleológica da ética.

O capítulo segundo dá início à segunda parte do texto, que se prolonga juntamente com os capítulos terceiro e quarto e faz referência à filosofia de Kant voltada ao estudo da ética. A proposta dessa parte é pensar a chamada revolução copernicana levanta para o entendimento da ética kantiana. Assim como a revolução copernicana traz a possibilidade de pensar que o conhecimento não se regula a partir do objeto, mas do sujeito que conhece, “a intuição dos objetos não deve se regular pela natureza dos objetos, mas, antes, pela natureza da nossa faculdade de intuição”. (p. 54). Assim também o fundamento da ética deve ser buscado na própria razão. A ética nos sentidos universal e racional não pode depender de fundamentos externos (como é o caso de uma fundamentação metafísica), ou pela tradição. Nesse caso, a razão deve ser entendida como autônoma e capaz de dar-se a si mesma uma vontade e uma vontade boa em si mesma. “Kant revoluciona a ética com a ideia da autonomia moral da razão, capaz de determinar a ação.” (p. 61). A autonomia nada mais é do que a possibilidade de pensar o homem com a capacidade de dar-se a própria lei no sentido universal. “O bem não deve mais ser pressuposto ou se constituir em fundamento da lei moral, mas deve, antes, ser deduzido dela.” (p. 62). Para Kant, acentua o autor, a lei moral leva à constituição do bem, ao passo que na metafísica a ideia de bem-trazida pela tradição – determina a lei moral. A parte final desse segundo capítulo reforça a ideia de que a virtude é a capacidade do homem de guiar-se pela razão, é uma conquista de si próprio como ser moral.

O capítulo terceiro apresenta o texto da Fundamentação da metafísica dos costumes para mostrar que os conceitos de lei moral e liberdade não tornam contraditória a argumentação sobre a autonomia e de que a razão se impõe uma lei justamente para se distanciar das determinações da natureza sensível. O imperativo categórico representa um acréscimo ao sujeito na medida em que esse não é somente razão, mas influenciado pelos sentidos. O caráter imperativo do “dever ser” dá condições à vontade de se manter guiada por proposições sintéticas a priori, de caráter universal e que superam as inclinações sensíveis, “de modo que aquilo para o qual as inclinações e os apetites o estimulam em nada pode lesar as leis de seu querer como inteligência”. (p. 97). Dessa forma, o imperativo categórico é uma determinação da vontade que tem como pressuposto a liberdade. É justamente por ser a vontade livre, que essa se lhe apresenta o dever-ser, fortalecendo a ideia de autonomia e de não determinação externa a si mesma. O entendimento de que é a razão, que determina os objetos no campo da ciência pelas condições de possibilidade de todo o conhecimento é a mesma razão, que no campo da ética, torna-se o fundamento de toda lei moral. Assim, se abre a noção de revolução copernicana para o entendimento da ética kantiana tendo a razão no seu aspecto normativo como fundamento da ética.

No capítulo quarto, o autor apresenta o conceito de “sumo bem”, de Kant, argumentando que a moralidade e a felicidade são os dois elementos que o compõem. Acrescenta que a felicidade e a moralidade não podem ser os princípios da vontade, pois essa deve ter seu fundamento em princípios formais o que reforça a necessidade de que a vontade tenha em si a causa de suas ações. (p. 117). Desse modo, a felicidade e a virtude se tornam consequência da lei moral e não o contrário. “O conceito de sumo bem é usado, portanto, para ligar especialmente natureza e liberdade, felicidade e moralidade”. (p. 125-126). O texto faz distinção entre saber e acreditar, mostrando a não contradição entre esses dois termos na medida em que o primeiro se refere ao mundo fenomênico, e o segundo aos elementos que estão além da experiência como é o caso dos postulados da razão (Deus, imortalidade e liberdade).

Para esse estudioso, a existência de Deus é necessária na argumentação kantiana, pois a razão coloca Deus como condição de se pensar a natureza como causada, e a felicidade como elemento subordinado à moralidade.

O sumo bem representa a totalidade dos fins morais, e essa ordenação racional exige um fim do qual decorre toda derivação, por isso a exigência de admitir a existência de Deus. A felicidade torna-se um conceito racional que indica a capacidade de autodeterminação da vontade, sendo o segundo elemento do sumo bem. A capacidade da razão de dar-se a própria lei pela determinação da vontade caracteriza a visão deontológica da ética.

A terceira parte da obra se concentra no quinto capítulo e aborda a visão de Levinas sobre a ética. Destaca o autor, já no título do capítulo, a importância do conceito de rosto como apelo à responsabilidade e à justiça. “O rosto do outro ser humano é a sua forma de apresentar-se, não de ser representado, diante do eu que o olha e o toca, mas sem objetivá-lo.” (p. 175). Pelo rosto, do encontro face a face, Levinas entende que ocorre a superação da visão ontológica do ser, pois essa aprisiona e neutraliza o outro na medida em que o reconhece a partir do eu. A descoberta do outro é a descoberta do totalmente outro, ou seja, que não se opõe ao eu, mas se apresenta como diferente. “O outro não é o que eu sou. Não é um alter ego, mas um alter do ego.” (p. 174). Significa dizer que o outro faz uma exigência ao eu, de ser reconhecido como diferente, que não se aprisiona. Na relação face a face, o outro é o fundamento da ética. “O rosto do outro é um mandamento, […] exige justiça.” (p. 177).

O eu perde seu lugar, torna-se vulnerável e é exigido a ele ser responsável e justo. Para o autor, Levinas, ao se distanciar da ontologia, permite que se pense a dimensão ética como um movimento que é anterior à própria consciência, referindo-se ao conceito de proximidade. “Bem antes da consciência da escolha, o homem aproxima-se do homem. É tecido de responsabilidade.” (p. 183). O outro, que está próximo, possibilita a criação de sentido para a subjetividade e, dessa forma, o eu se torna responsável originariamente pelo outro. A alteridade é a “relação sem relação”, originária da responsabilidade e da justiça.

Daniel José Crocoli – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Professoras: histórias e discursos de um passado presente – FISCHER (C)

FISCHER, Beatriz T. Daudt. Professoras: histórias e discursos de um passado presente. Pelotas: Seiva, 2005. Resenha de: SCUSSEL, Cláudia Luci. Professoras primárias e seus papéis no palco da vida. Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 3, Set/Dez, 2010

Antes de falar da obra Professoras: histórias e discursos de um passado presente, passo a mencionar alguns dados da escritora para que o leitor, com base nesse conhecimento, mergulhe no interior do livro conduzido por um vínculo criado a partir de uma história de vida – da autora.

Beatriz T. Daudt Fischer é graduada em Pedagogia, Mestre em Fundamentos Sociais da Educação e Doutora em Educação. Atualmente é professora titular na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Possui experiência na área de educação – docência e pesquisa – com ênfase em História da Educação, investigando temáticas relacionadas à história cultural, à memória, a trajetórias docentes e a políticas educacionais. Também integra a Associação Nacional de Pesquisa e Pós- Graduação/Anped, a Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e a Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação (Asphe).

Como o sujeito professora primária se constituiu entre os anos de 1950 e 1972? Quais são as condições, possibilidades históricas que contribuíram para constituí-la desse modo? Os “anos dourados” do magistério existiram de fato? Como era a vida dessas professoras primárias? Afinal, professoras ou missionárias? O livro Professoras: histórias e discursos de um passado presente contribui ao esclarecimento dessas questões. Essa publicação pela Editora Seiva (Pelotas), em 2005, discorre sobre a trajetória de formação docente de professoras primárias que atuaram no magistério, nos anos 50 do século XX, e as relações de poder e saber que se estabeleceram nesse processo.

A obra, com 302 páginas, está organizada em seis capítulos assim denominados: “No casarão das memórias”; “O que dizem os jornais da  época”; Tempos de Magistério”; “A professora e a Revista do Ensino”; “Um passado presente”; e “Lentes e ferramentas”. Através de consultas em jornais e revistas, bem como da coleta de histórias de vida de professoras primárias, a obra desdobra práticas que ajudaram a constituir um grupo de mulheres como sujeitos históricos. Nessa perspectiva, encara memórias como discursos, articulando esses ao contexto histórico da época.

No capítulo inicial, intitulado “No casarão das memórias”, Fischer trata do contexto em que as entrevistadas estavam inseridas, bem como das práticas que permearam sua vida, influenciando maneiras de pensar, de ser e de agir. Sua pesquisa reporta-se a professoras com idade entre 60 e 80 anos, cujo estado civil parece determinar, em grande parte, a posição social. Implícita em seus depoimentos, há a baixa remuneração profissional a qual eram submetidas; as que progrediram financeiramente, assim o fizeram devido ao casamento. São professoras que se constituíram em um momento histórico, quando diferenças de gênero se faziam presentes de forma intensa, tanto na figura da mulher em relação ao seu papel de dona do lar, quanto ao acesso à escola e a papéis assumidos na sociedade. A presença de livros ou a assinatura de revistas e jornais era uma prática comum no convívio familiar das pesquisadas.

A autora, ao mencionar as lembranças de infância e da mocidade das ex-professoras primárias, pontua momentos marcados por brincadeiras ingênuas e outros recordados e refletidos num misto de nostalgia e criticidade, quando comparados a parâmetros da sociedade atual. Para as depoentes, lembranças do tempo em que eram alunas remetem, principalmente, à escola elementar. Apesar de certa discordância, pontuam aspectos como: elogios aos professores e a formação teórico-prática à qual eram submetidas; a presença de matérias relacionadas à formação humana; o rigor e a disciplina; a memorização; o controle e o autoritarismo. Segundo Fischer (p. 62), “há um ponto em que todos os depoimentos, sem exceção, encontram afinidade. Trata-se das práticas de controle, sejam elas explícitas ou não”.

No capítulo subsequente: “O que dizem os jornais da época”, ao se referir aos periódicos pesquisados, Correio do Povo, Última Hora e Zero Hora, editados no mês de outubro, entre os anos de 1950 e 1972, em especial aos discursos relativos ao sujeito-professora ou ao magistério de modo geral, a autora elenca três momentos decisivos para examinar o que os textos dizem sobre essa época: 1950-1962: anos dourados? 1963: o ano que começou… 1965-1972: o eterno mesmo volta a se instalar. De acordo com ela, os discursos estavam encharcados de mecanismos de controle: as homenagens às professoras primárias, por exemplo, ao mesmo tempo que exaltavam a figura da mestra, lembravam-na das atitudes a honrar; todos os discursos mantinham gramaticalmente o gênero masculino (“o professor”), embora a rede escolar fosse absolutamente tomada por mulheres; a forte presença do catolicismo nas atividades para comemorar o “Dia do Professor”; as palavras virtudes e sacerdócio estavam diretamente relacionadas à figura da professora primária; também as raras greves e reivindicações salariais foram devidamente controladas por contextos discursivos e extradiscursivos.

No terceiro capítulo: “Tempos de Magistério”, a autora afirma que houve diferentes motivos para as entrevistadas optarem em ser professoras, entre elas, a admiração por suas mestras de infância, a influência da família, o magistério como a única e/ou melhor profissão na época. Tempos que se constituíram de dedicação à missão escolhida, moralismo e controle por parte da Igreja Católica, baixos salários, mas, ao serem presentificados, são descritos com saudosas recordações.

Chegando ao quarto capítulo: “A professora e a Revista do Ensino”, Fischer aponta que é impossível discorrer sobre o magistério dos anos 50 e 60 (do séc. XX) sem mencionar a Revista do Ensino. Procurou, então, em sua pesquisa, conhecer os discursos implicitamente presentes nos conteúdos das páginas da mesma, que nortearam, nesse período, práticas docentes. Segundo a autora, essa revista permeou o universo das professoras, ora as incitando a seguir a docência como vocação, outras vezes as desafiando a buscar novos conhecimentos acerca da ciência da educação através da divulgação de Congressos Nacionais de Professores Primários, informados pela Revista do Ensino. Ressalta, ainda, que, dentre os discursos publicados na referida revista, exaltando a sublime missão da professora, também, e apesar de tímidas, se faziam presentes matérias que abordavam o contexto escolar, trazendo questões relativas a alunos carentes, baixos salários, etc. Porém, segundo a memória das professoras pesquisadas, interessava somente as sugestões didáticas trazidas pela revista.

No penúltimo capítulo: “Um passado presente”, a autora afirma que “cada época tem sua própria forma de se colocar no mundo” (p. 227), o que a impossibilita de avaliar e estabelecer comparações entre o magistério de diferentes momentos históricos. As narrativas e os documentos analisados, porém, permitem refletir sobre as práticas reproduzidas, ou não, no decorrer dos anos.

A autora encerra o livro desvelando as ferramentas e os aportes teórico-metodológicos que conduziram seus estudos investigativos, partindo do pressuposto de que os sujeitos se constituem a partir das suas vivências históricas. A partir desse olhar, discorre sobre como a professora primária foi se constituindo em meados do século XX.

Inspirada em Foucault, enfoca duas questões: práticas e relações de poder que permearam posturas, saberes, discursos e fazeres docentes, em uma determinada sociedade e num determinado momento histórico.

Esse livro apresenta uma leitura interessante, pois o estilo da autora traz a marca da sua experiência como pesquisadora autobiográfica e professora, conduzindo o leitor pelos caminhos da docência, trilhados pelas professoras primárias entrevistadas. É uma obra indicada a professores e àqueles que percorrem e desvendam os caminhos da história da educação, servindo, também, como referência para todos aqueles que estão vinculados à educação, de modo geral, e, em especial, ao fazer docente.

A história de vida é uma das maneiras de entender o processo educativo em diferentes tempos e espaços, podendo ser vista como o palco onde os atores transbordam ansiedades, temores, medos, conquistas, assumindo papéis que lhe foram delegados pelo contexto circundante.

Pelo fato de possibilitar ao leitor adentrar nos bastidores da vida da professora primária daquela época, percebendo suas crenças refletidas em seus fazeres, sentindo a vida sendo construída mediante práticas e discursos nem sempre explícitos, a leitura dessa obra contribui para processar uma autorreflexão acerca de nossas próprias vivências.

Referências

FISCHER, Beatriz T. Daudt. Professoras: histórias e discursos de um passado presente. Pelotas: Seiva, 2005. 304 p.

Cláudia Luci Scussel – Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar – KOHAN (C)

KOHAN, Walter Omar. Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar. Trad. de Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Resenha de: Andréia Bonho Borba. Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 3, Set/Dez, 2010

O autor Walter Omar Kohan é Pós-Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris VIII, professor titular na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

Possui mais de cinquenta artigos publicados em periódicos especializados e é autor e/ou organizador de 30 livros no Brasil e no Exterior.

Seu livro Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar trata-se, sem dúvida, de uma obra cuja contribuição para o campo da Filosofia da Educação logra-se sobremaneira valiosa, sobretudo àqueles que se dispõem a problematizar sua própria relação com o saber, com o ensino e com a aprendizagem.

Como o autor esclarece no início do livro, sua proposta é apresentar a ideia de que não há como evitar, na relação entre ensinante e aprendiz de filosofia, tensões epistemológicas, éticas, estéticas, políticas, entre outras, e que essas tensões, longe de serem um desestímulo à filosofia e à educação, são sua própria condição e possibilidade, uma vez que contribuem para o fortalecimento das forças e potências que habitam o pensamento daqueles que ensinam e aprendem filosofia.

O livro, que se divide em três capítulos, tem como fio condutor o pensar filosófico e convida a uma reflexão acerca da relação entre ensinante e aprendiz, abordando o pensamento de Sócrates a partir da interlocução com filósofos contemporâneos, como Michel Foucault, Jacques Rancière e Jacques Derrida.

No primeiro capítulo, intitulado “O enigma-paradoxo de Sócrates”, Kohan afirma que a filosofia com Sócrates, nasce não como um saber já pronto, mas como uma forma de exercer, na prática da própria vida, certa relação com o saber. E, nesse sentido, ele destaca a potência afirmativa da ignorância na relação de ensino e aprendizagem enquanto é constante estimuladora de buscas.

O autor segue afirmando que a filosofia, pensada a partir de Sócrates, rompe com a dissociação entre filósofo e professor de filosofia, uma vez que exige daquele que a ensina que também a vivencie e que permita aos demais que também se tornem partícipes dessa vivência.

O primeiro capítulo é encerrado com a apresentação de um texto de Michel Foucault – extraído da primeira hora da aula dada por ele no Collège de France, em 1984 – no qual ele argumenta que Sócrates, ao invés de assumir o papel de um professor que sabe tudo – e, por esse motivo, exige que seus alunos o escutem e o sigam – assume o papel de alguém que não detém o saber e que apenas se ocupa dos demais a fim de auxiliá-los para que compreendam que também nada sabem e se ocupem de si mesmos.

No segundo capítulo, intitulado “A política de Sócrates e a igualdade das inteligências”, o autor apresenta a surpreendente crítica a Sócrates proposta por Jacques Rancière em seu livro O mestre ignorante, no qual afirma que Sócrates assume a posição de alguém que nada sabe apenas com a finalidade de submeter a inteligência de seu interlocutor à sua própria. Ora, Sócrates parte do pressuposto de que é o mais sábio justamente por ser o único a saber que não sabe. Dessa maneira, em seus diálogos, ele já tem presente, de antemão, o ponto ao qual quer conduzir o interlocutor por meio de suas perguntas e, além disso, já tem presente, também, que todos os interlocutores têm, pelo menos, uma coisa a aprender com ele: o reconhecimento de sua própria ignorância, de seu próprio não saber. Dessa maneira, parece não haver uma verdadeira abertura ao diálogo, uma vez que Sócrates não leva em consideração o que seu interlocutor tem a dizer simplesmente pelo fato de que o que ele diz não se afigura em concordância com o que Sócrates julga ser satisfatório. Assim, Sócrates não dialoga com seu interlocutor porque, de fato, ignore algo e deseje aprender, mas segue perguntando até que o outro reconheça uma suposta posição de inferioridade epistemológica e aceite pensar o que ele julga ser relevante que seja pensado.

A título de encerramento do capítulo, Kohan traz um excerto extraído do prefácio à edição brasileira do livro O mestre ignorante, no qual Rancière apresenta os fundamentos que alicerçam sua crítica a Sócrates.

O terceiro capítulo, intitulado “O enigma-paradoxo de aprender e ensinar filosofia” problematiza as relações entre o ensinar e o aprender filosofia a partir de seis antinomias, a saber: a) a autonomia necessária e impossível, nela o autor apresenta o paradoxo que, a partir de Sócrates, a questão da autonomia vivencia com a filosofia, uma vez que, por um lado, Sócrates estabelece o campo do pensável a seus interlocutores e, por outro, quando não o faz, deixa vir à tona a potência transformadora do ensinar e do aprender. Kohan, então, apresenta a pergunta acerca da possibilidade ou não de se ensinar filosofia sem antecipar o campo do pensável ao aluno; b) transmitir o intransmitível, sendo que o autor traz a debate Jacques Derrida, para quem a experiência da filosofia não é passível de ser transmitida ou ensinada. E, nesse sentido, Kohan afirma que Sócrates auxilia a pensar numa relação pedagógica diferente daquela pautada na lógica da transmissão; c) saber ou ignorar, e Kohan, a partir de Rancière e Sócrates, questiona as implicações que o recorrente apelo dos filósofos à ignorância acarreta sobre o campo do pensável entre quem ensina e quem aprende filosofia; d) o método e sua ausência, nesse o autor declara que não há “o” método filosófico, mas uma pluralidade de métodos e que não é possível fixar a filosofia em uma única opção metodológica, uma vez que o que importa são as relações filosóficas ou antifilosóficas com os diferentes métodos de ensino. Além disso, segundo o autor, Sócrates auxilia a pensar essa questão, na medida em que, em seus diálogos, o que está presente não é uma maneira fixa de relacionar-se com seus interlocutores, mas uma relação que fatalmente os obriga a pensar e a se ocupar de si mesmos; e) dentro e fora dos muros, em que o autor afirma que Sócrates demonstra a possibilidade de valorização da abertura do discurso filosófico ao mesmo tempo que mantém certa especificidade capaz de permitir que a diversidade de práticas seja ainda chamada filosofia; f ) transformar e descolonizar, aí Kohan assegura que a leitura de Sócrates auxilia a reconfigurar a relação entre filosofia e transformação do pensamento, na medida em que oportuniza que se pense e viva de outra maneira. Além disso, o autor novamente recorre ao filósofo Derrida, para quem é necessário haver movimentos parciais, heterogêneos, diferentes, de descolonização do próprio pensamento a fim de que não se recrie a lógica colonizadora que habita aquele pensamento e a realidade na qual está inscrito. Kohan afirma que esse desafio proposto por Derrida se atualiza paradigmaticamente com Sócrates, uma vez que sob o nome Sócrates escondem-se demasiadas forças – tanto favoráveis quanto contrárias à transformação de si no pensamento – para serem ignoradas. Segundo o autor, por meio de Sócrates, é possível pensar que a filosofia tanto pode ser um trabalho libertador quanto dominador do pensamento. O autor segue argumentando que a tarefa de descolonização do próprio pensamento é contínua e infinita e deve ser proposta não apenas no âmbito do ensinar filosofia, mas também com vistas a uma educação filosófica.

Dessa maneira, segundo ele, filosofia e educação se reencontram, não para decifrar o enigma, mas para alimentá-lo, pensá-lo, colocá-lo a serviço de outros pensamentos, a fim de pensar e praticar uma educação filosófica descolonizadora, paradoxal, enigmática, sensível às tensões que habitam a relação entre o ensinante e o aprendiz.

Por fim, como fechamento do capítulo – e também do livro como um todo – Kohan apresenta um texto de J. Derrida que tem a forma de uma carta enviada por ele aos participantes do Colloque Rencontres École et Philosophie, em 1984, quando são apresentadas sete exigências contraditórias quanto à instituição da filosofia, exigências essas que propõem que se pense a relação entre a filosofia e seu ensino.

Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar é um livro que aborda, de maneira profunda e inquietante, a relação da filosofia com o saber, e que convida o educador a refletir acerca de suas práticas docentes, a fim de problematizar, não somente o que faz, mas por que faz aquilo que faz e nisso parece residir sua atemporalidade e relevância.

Referências

KOHAN, Walter Omar. Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar. Trad. de Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 96 p. (Coleção Ensino de Filosofia).

Andréia Bonho Borba – Mestranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade de Caxias do Sul, licenciada em Filosofia pela UCS e professora de Filosofia em curso pré-vestibular

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O legado educacional do século XX no Brasil – SAVIANI (C)

SAVIANI, Dermeval et al. O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2004. Resenha de: TORRES, Eli Narciso da Silva Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 3, Set/Dez, 2010.

O livro O legado educacional do século XX no Brasil, assim como O legado educacional do século XIX, é o resultado de pesquisas das Professoras Jane Soares de Almeida, Doutora em História e Filosofia da Educação pela USP/SP, Rosa Fátima de Souza, Doutora em Educação pela USP/ SP e Vera Teresa Valdemarin, Doutora em História e Filosofia da Educação pela USP/SP, reunidas em torno do pensamento do Professor Dermeval Saviani (Unicamp). Os textos são fundamentais para a compreensão de aspectos da historiografia da educação brasileira. No entanto, no livro anterior, ocorreu um maior distanciamento do objeto em decorrência do fato de as autoras estarem analisando o século XIX, ou seja, localizando-se no fim do século XX. Enquanto em O legado educacional do século XX, o recuo não ocorre da mesma forma, pois a análise acontece enquanto os fatos são construídos historicamente, e os pesquisadores não veem com clareza a herança que estaria sendo transferida para o século XXI.

O primeiro capítulo “O legado educacional do ‘longo século XX’ brasileiro”, Saviani classifica o século XX como longo, pois o observa a partir de 1890, desdobrando-o até o início do século XXI. Saviani procura delinear os meandros políticos e sociais que propiciaram a materialização e a ampliação do sistema educacional brasileiro, principalmente as transformações sociais ocorridas a partir do fim do século XIX. Saviani aponta, principalmente, à abolição da escravatura no Brasil, à transição império/república, ao ideário de Estado laico, à cientifização a partir da influência positivista, ao fortalecimento do setor  industrial, além de à ampliação e urbanização de centros urbanos, o que favoreceu a formação de novas classes sociais. Nesse contexto, ocorre o lançamento de O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, no qual os escolanovistas partiam do pressuposto de que a educação é função essencialmente pública, laica e obrigatória. Porém, a influência estadunidense na formação do processo educacional brasileiro potencializou ainda mais as disparidades sociais.

Enquanto o segundo capítulo da obra, intitulado: “Mulheres na educação: missão, vocação e destino?: a feminização do magistério ao longo do século XX”, Almeida descreve a condição da mulher a partir da perspectiva de gênero, ou seja, mulheres como grupo social inseridas em uma sociedade hegemonicamente masculina. Outra especificidade é o fato de trabalhar a temática sob a perspectiva foucaultiana, utilizando-se de expressões como: “normalização da instrução feminina”, “vigilância do corpo” e “controle da feminilização”. Nesse bojo, a autora aponta às condições, pelas quais as mulheres brasileiras foram submetidas, perpassando desde a repressão sexual até a delimitação dos espaços públicos, respaldadas pela doutrinação religiosa imposta pela Igreja para alcançarem algumas condescendências, entre elas o magistério. Porém, se manteve o vínculo imaginário entre a função da professora e a maternidade, dessa forma, a mulher poderia continuar desempenhando sua função social predeterminada.

O terceiro capítulo, “Lições da Escola Primária”, é caracterizado pela reflexão de Souza acerca da constituição e estruturação dos grupos escolares, que se tornaram a representação da nova organização da escola primária, além de influenciar muitos intelectuais na maneira de compreender a escola durante o século XX. Seu projeto sociocultural estendeu-se até o advento da escola de Ensino Fundamental.

Ela reportava a uma clara concepção de ensino; educar pressupunha um compromisso com a formação integral da criança que ia muito além da simples transmissão de conhecimentos úteis dados pela instrução e implicava essencialmente a formação do caráter mediante a aprendizagem da disciplina social – obediência, asseio, ordem, pontualidade, amor ao trabalho, honestidade, respeito às autoridades, virtudes morais e valores cívico-patrióticos necessários à formação do espírito de nacionalidade. (SOUZA, 2004, p. 127).

Em o legado do século XX, no quarto capítulo intitulado “Os sentidos da experiência: professores, alunos e método de ensino”, Valdemarin converge e aprofunda o debate em torno de questões metodológicas, sobretudo, quando indica processos de substituição do método intuitivo – visão platônica dos sentidos sensoriais, símbolo da racionalização educacional, a partir do qual o aluno precisa chegar ao mundo inteligível para se aproximar do saber real. Pela concepção do pragmatismo deweyano, que observa e aprecia o empirismo cotidiano, desconsidera a dicotomia “realidade escolar e mundo baseado na experiência”, pois Dewey apresenta o conceito de experiência reflexiva para desencadear novas práticas pedagógicas e, consequentemente, aguçar a produção de novos conhecimentos dos alunos. O método deweyano de ensino observa as práticas educacionais, situando-o em um modelo de sociedade democrática e consolidada sob bases econômicas capitalistas.

O legado educacional do século XX no Brasil é uma importante contribuição desses pesquisadores à historiografia educacional brasileira. Além de sugerir diversos questionamentos oportunos acerca da constituição e consolidação dos modelos pedagógicos adotados no Brasil, revela as condições materiais e os agentes históricos que proporcionaram tal realização, os processos de “democratização da escola pública”, a promoção de um projeto cultural de racionalização da escola primária, de transformações da realidade profissional dos professores, homens/ mulheres, igualmente humanos, com desigualdades socioculturais e a introdução de novos métodos de ensino e aprendizagem do aluno e profissionalização do docente. Contribui, assim, para uma melhor compreensão de temas educacionais atuais, incoerências e avanços praticados no sistema de ensino da sociedade brasileira.

Referências

SAVIANI, Dermeval et al. O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2004. 224 p.

Eli Narciso da Silva Torres – Cientista Social. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Bolsista da Capes. E-mail: [email protected]

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A Caverna – SARAMAGO (C)

SARAMAGO, J. A Caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Resenha de: LEÃO, Andreza Marques de Castro. A caverna. 206 Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 3, set./dez. 2010.

A presente resenha tem por foco apresentar o livro intitulado A Caverna, de autoria do conhecido escritor português José Saramago. É mister esclarecer que se trata de um romance, com personagens fictícios, como o autor relata, e que pode trazer inúmeras contribuições ao estudo da História da Educação, traçando, também, relevantes e instigantes articulações com a Filosofia da educação.

Em relação à linguagem empregada, o romance apresenta características peculiares, que são o uso ínfimo, até mesmo a abolição completa dos sinais gráficos de pontuação, procedimento esse que aproxima a linguagem escrita da oral.

Quanto aos personagens do enredo, há cinco principais: Cipriano Algor (oleiro); Marta (filha de Cipriano); Marçal Gacho (genro do oleiro); Isaura (estudiosa, viúva apaixonada por Algor); e Achado (um cão com atributos quase humanos).

A história se passa no Centro (de fato esse pode ser tanto um dos locais do enredo, quanto um dos personagens centrais); na olaria, que é um lugar de transição entre cinturões industriais e o cinturão verde, que fica próximo de uma cidade, porém é um local não urbano onde moram Cipriano, Marta, Marçal, quando está de folga, e na vila em que reside Isaura.

O foco central do enredo é o dilema de Cipriano: mudar-se ou não com a filha e o genro para o Centro quando esse fosse promovido à guarda residente.

Cipriano, como citado anteriormente, é um oleiro de profissão, com tradição familiar de artesões, que tem 64 anos e um modo rude de encarar as pessoas e as situações corriqueiras; talvez tal fato seja decorrente da profissão, que lhe exigia ter de amassar e cozinhar o barro, ou seja, trabalhar com coisas brutas. Não obstante, é uma pessoa de grande sensibilidade, fazendo sempre reflexões sobre a vida.

Marta é auxiliar e companheira do pai, mulher de muitas ideias. Ela é mais otimista que ele, embora, não tanto quanto Marçal em relação à mudança para o Centro, visto que receia o que pode ocorrer com seu pai. Fica grávida no início do livro e continua a auxiliar o pai mesmo durante a gravidez.

Marçal é segurança do Centro. Na realidade, é guarda residente, e não entende como Cipriano temia em ir morar em outro lugar que não no Centro. Gacho tem problemas com seus pais, e seu maior sonho é ser promovido no serviço e, cada vez mais, participar e ser envolvido pelo Centro. Seus pais também queriam morar no Centro com ele, mas devido à impossibilidade de esse pedido ser atendido, visto que os apartamentos lá são pequenos, não podendo comportar Marta, Cipriano, Marçal, o futuro filho, e mais os pais desse, há um desentendimento familiar. Ambas as famílias não cultivam um bom relacionamento em vista de um acidente que Marçal teve no forno da olaria, na época em que ainda namorava Marta, que lhe ocasionou uma cicatriz oblíqua que ele tem em uma das mãos.

Isaura é uma viúva da região onde Cipriano mora e por quem ele nutre uma grande estima. Todavia, ele luta contra esse sentimento. Em relação ao Centro, para ela é uma entidade distante e que pouco afeta sua vida. Após ter ficado viúva, procura emprego na vila, e passa a trabalhar numa loja. Talvez tenha sido por essa atitude que Cipriano tenha se apaixonado por ela.

Achado é o mais “humano” dos cães. Foi encontrado num dia de chuva e por seus modos quase humanizados cativou o carinho de Cipriano e Marta. É ele que escuta os lamentos de Cipriano e procura entender os difíceis e contraditórios sentimentos humanos. “o Achado é um cão consciente, sensível, quase humano.” (p. 349).

No enredo, os personagens, além de terem nome próprio, também são chamados pelo apelido característico. Quanto aos de Cipriano e Marçal, chama a atenção os seus respectivos significados. Algor significa frio, e Gacho, a parte do pescoço do boi em que se assenta a canga. Essa alusão feita por Saramago descreve bem e de modo sucinto a característica principal de tais personagens à luz da história: Algor se mantém frio perante o Centro, receoso quanto a ter de morar nele; por outro lado, Gacho se deixa escravizar pelo Centro, se submetendo a ele. Assim, ambos apresentam visões opostas de Centro: o primeiro de opressão, e o segundo, de submissão.

O livro inicia a história narrando a ida de Cipriano Algor ao Centro, local em que levava suas mercadorias: louças de barro para entregar, pois era fornecedor. No entanto, se confronta com uma árdua realidade: suas mercadorias não são mais “aceitas” pelo Centro, visto que a venda das louças tinha baixado, pois apareceram louças de plástico, as quais eram mais baratas, não quebravam e eram mais leves, havendo uma maior demanda por esse tipo de louça do que pelas de Algor, ou seja, seus produtos não atendiam mais aos anseios do mercado. Diante disso, Cipriano fica perplexo e contesta o chefe das vendas quanto às suas mercadorias: “Não é razão para que se deixe de comprar as minhas, o barro sempre é barro.” Contudo, o chefe responde: “Vá dizer isso aos clientes, não quero afligi-lo, mas creio que a partir de agora a sua louça só interessará a colecionadores, e esses são cada vez menos.” (p. 23).

Cipriano fica indignado com essa situação, porquanto suas mercadorias são desvalorizadas. Sabiamente Marta compreende essa situação, problematizando que, na verdade, não são os gostos das pessoas que determinam o que o Centro deve produzir, é o contrário: “Os gostos do Centro que determinam os gostos de toda a gente.” (p. 42).

Pensativo, Algor concluiu que se o Centro persistisse na averiguação dos novos produtos que estava sendo realizada, a olaria talvez fosse apenas a primeira vítima. De fato, ele entendeu que as inovações tecnológicas estavam ganhando espaço, ao passo que as atividades ditas “manuais”, como a sua de oleiro, não mais teriam lugar nesse contexto, por isso, ele se vê como uma espécie em extinção.

Cabe pontuar que dentre as reflexões que Saramago faz, deixa claro, na história, que a modernização vai extinguindo aos poucos as profissões.

Com a notícia de que o Centro não mais adquiriria seus produtos, sendo tal decisão irrevogável, e sabendo que estava proibido de fazer negócios diretamente com os consumidores, Cipriano começa a ficar angustiado, pensando em como viverá do seu trabalho se o Centro, além de tudo, não o autoriza a vender seus produtos a outras pessoas, tendo de abandonar suas mercadorias no campo, num local escondido.

Com esse episódio de recusa de suas mercadorias, desgostoso, ele passa a refletir sobre sua vida e questões essenciais envolvidas, como a sobrevivência. A partir disso, analisa criticamente a condição de vida do trabalhador assalariado, que aceita o destino desse labor:

Cipriano passa de uma hora para outra [a] desmerecer a reputação do operário madrugador ganhada numa vida de muito trabalho e poucas férias. Levanta-se já com o sol fora, lava-se e faz a barba com mais vagar que o indispensável a uma cara escanhoada e a um corpo que se habituou à limpeza, desjejua pouco mas pausado, e finalmente, sem acréscimo visível no escasso ânimo com que saiu da cama, vai trabalhar. (p. 55).

Algor percebe o contexto global em que está inserido, em que uns exploram, e outros são os explorados. Portanto, compreende que uma vez que o indivíduo não se enquadra em nenhuma dessas condições, isto é, fica fora desse sistema, ele não tem como sobreviver.

Devido à sua angústia, Cipriano foi ao cemitério visitar a lápide de sua falecida esposa, que, há três anos, o havia deixado. Nesse local, encontra a viúva Isaura (estudiosa, mulher de 45 anos), que relata a Algor que queria comprar um cântaro. Na ocasião, ele fala que faria melhor, daria um a ela, o que ele fez no dia seguinte, quando a viu. Esse encontro com Isaura despertou a atenção dele por ela.

Após esse episódio, surge na olaria um cão. Em vista de seu súbito aparecimento, lhe deram o nome de Achado.

Em decorrência da situação difícil de Cipriano, Marta sugeriu que fizessem bonecos de barro como produtos substitutivos das louças de barro. Ambos se empenham na confecção de modelos a serem mostradas.

Assim, Cipriano revela a ideia ao chefe de vendas do Centro. Ao apresentá-la, o chefe não lhe deu resposta imediata acerca da aceitação, contudo, ficou de pensar no caso. Em vista disso, Algor conclui que “para o Centro não tem importância uns toscos pratos de barro vidrado ou uns ridículos bonecos a fingir de enfermeira, esquimós e assírios de barba, nenhuma importância, nada, zero”. (p. 99). Todavia, o Centro se propôs a fazer uma encomenda experimental dos bonecos, mas a possibilidade de novas encomendas dependeria do modo como os clientes receberiam tal produto, pois “para o Centro… o melhor agradecimento está na satisfação dos nossos clientes, se eles estão satisfeitos, isto é, se compram e continuam a comprar, nós também o estaremos”. (p. 130). Desse modo, os bonecos seriam submetidos a uns inquéritos orientados sob duas vertentes: Situação prévia à compra, isto é, o interesse, a apetência, a vontade espontânea ou motivada do cliente, em segundo lugar, a situação decorrente do uso, isto é, o prazer obtido, a utilidade reconhecida, a satisfação do amor próprio, tanto de um modo de vista pessoal, como de um ponto de vista grupal. (p. 239).

Devido à não mais aceitação dos pratos de louça que fornecia ao Centro e ao receio de não receptibilidade dos bonecos por esse, Cipriano, apesar de sua luta e recusa internas de ir morar ao Centro, decide se mudar com a filha e o genro para lá, na ocasião em que esse fosse promovido. Saramago mostra, de modo nítido, no enredo, que essa atitude de Cipriano é causada pelo desgosto que sentia, ao se ver sem outro modo de sobreviver. Isso ocasiona perplexidade mental, visto que “teria de ir viver para o mesmíssimo Centro que acabava de lhe desprezar o trabalho”. (p. 197). Acrescente-se a isso, que sua autoestima também fora abalada, uma vez que se considerava um empecilho, um estorvo, um inútil para a filha e para o genro.

Assim, com a nomeação de Marçal, Cipriano vai com ele e a filha morar no Centro, num pequeno apartamento que é cedido aos guardas e que se localiza dentro do Centro. Porém, antes da mudança, Algor deixa sob a incumbência de Isaura o cuidado de Achado, porque o Centro não aceita animais. Apesar de ele, durante todo o enredo, lutar contra o sentimento que nutre por ela, nessa ocasião, declara seu amor e lamenta não ter nada pra lhe oferecer, pois não sabendo como poderia sustentar a si próprio quanto mais sustentaria outra pessoa. Então, decide viver no Centro.

Sou uma espécie a caminho da extinção, não tenho futuro, não tenho sequer presente… não tenho nada que lhe oferecer… a olaria fechou e eu não aprendi a fazer outra coisa… não tenho mais remédio. (p. 300).

Após o inquérito solicitado pelo Centro para avaliar os bonecos de barro de Cipriano, eles foram rejeitados. Assim, a última esperança de Algor de manter em funcionamento a olaria, morria naquele momento.

Cipriano se vê refém do pequeno apartamento no Centro. Como estava sem trabalhar, sem ter o que fazer, decide começar a conhecer melhor o Centro. Passeia e se aventura como se descobrisse um mundo novo. Nas suas andanças, numa das ocasiões, ele escreve as frases que ficam expostas nos letreiros das lojas e as lê para a filha e o genro, se apercebendo do vazio que o Centro representava, em que tudo se resumia a consumir e incitar a vontade dos clientes.

Não obstante, um episódio vai modificar os acontecimentos da família Algor. Desde que se mudaram para o Centro, estavam sendo realizadas obras de construção em um depósito frigorífico no subsolo. Entretanto, houve um incidente, e a obra precisou ser parada para que fosse avaliada por especialistas. Marçal foi informado de que a obra colocou à mostra no piso, algo estranho. Para averiguar tal fato, foram chamados geólogos, arqueólogos, sociólogos, até mesmo médicos legistas. Ao tomar conhecimento desse fato, o que chamou a atenção de Cipriano foi que, além desses profissionais terem sido requisitados, os guardas deveriam manter essa informação em sigilo.

Em decorrência desse acontecimento misterioso, Cipriano decidiu, durante o turno da madrugada de Marçal ir às escondidas tentar descobrir o que havia no buraco de 34 metros de profundidade que precisava ser tão protegido. Apesar do receio do genro de perder o emprego por essa aventura do sogro, ele lhe indica o caminho que devia seguir para desvendar o segredo. Assim sendo, com uma lanterna nas mãos e muita audácia, entra na gruta. Lá Cipriano encontrou algo que o abalou emocionalmente: seis corpos humanos, três homens e três mulheres, atados a um banco de pedra. “Um violento tremor sacudiu os membros de Cipriano Algor, a sua coragem fraquejou como uma corda.” (p. 331).

Ao sair da gruta, chorou sobre os ombros do genro. Perplexo, indaga-o e tem uma conversa com esse: Sabes o que é aquilo, Sei, li alguma coisa em tempos, respondeu Marçal, E também sabes o que o que ali está, sendo o que é, não tem realidade, não pode ser real, Sei, E contudo eu toquei com esta mão na testa de uma daquelas mulheres, não foi uma ilusão, não foi um sonho, se agora lá voltasse iria encontrar os mesmos três homens e as mesmas três mulheres, as mesmas cordas a atá-los, o mesmo banco de pedra, a mesma parede em frente, Se não são os outros, uma vez que eles não existiram, quem são estes, perguntou Marçal, Não sei, mas depois de os ver fiquei a pensar que talvez o que realmente não existe seja aquilo a que damos o nome de não existência. (p. 333).

Cipriano, ao relatar esse fato à filha, compreende que, na verdade, os corpos “essas pessoas somos nós… somos nós, eu, tu, o Marçal, o Centro, tudo provavelmente o mundo”. (p. 334-335). Após essa descoberta, ele decide deixar o Centro, salvar a sua vida e voltar para a Olaria. Lá chegando, tem um encontro emocionado com Isaura e lhe conta os últimos acontecimentos do Centro, e o motivo de ter voltado. Nessa ocasião, decide finalmente tê-la como sua companheira.

Após uns dias do ocorrido, Marçal pede demissão ao Centro. O fato de ter visto corpos o acordou para a realidade alienante em que estava vivendo. Quando questionado acerca do motivo que o levou a tomar tal decisão, ele responde: “Quem não se ajusta não serve e eu tinha deixado de ajustar-me.” (p. 347).

Desse modo, Cipriano, Marta, Marçal e Isaura decidem deixar a olaria também, ir em busca de uma nova vida, levando com eles o Achado.

Antes disso, Algor posiciona os bonecos de barro em frente da porta de sua casa. Assim, com a chuva, eles voltariam do barro ao pó. Nesse sentido, a caverna representa a condição do homem no contexto atual, cuja trajetória vai, tanto no plano denotativo como no conotativo, também do barro ao pó, tal qual objetos que, quando não são mais úteis, são descartados.

No momento da partida, ao passar pelo Centro, descobrem que até mesmo da descoberta dos corpos o Centro se apropria para tirar proveito: “Brevemente, abertura ao público da caverna de Platão, atracção exclusiva, única no mundo, compre já a sua entrada.” (p. 350).

No enredo, Cipriano representa a pessoa que consegue ser arrastada para fora da caverna e enxergar a realidade. Ele é o único que consegue perceber a preponderância econômica do Centro Comercial.

Dessa forma, podemos compreender por que motivo Saramago intitulou sua obra com esse título. A caverna, nesse caso, é o Centro Comercial, ou um shopping, local em que não há janelas, e só se pode ver o seu interior.

O Centro exerce grande influência na vida das pessoas e pode guiar os gostos das pessoas ao que convém ou não; incitar as vontades para consumirem, é claro, no Centro; instigar a cobiça das pessoas por quererem ter mais e a qualquer custo, entre outros motivos. Tudo gira em torno do Centro, e os que são seus concorrentes sofrem por estar se rivalizando com tamanho sistema. “Para o Centro só existe um caminho, o que leva do Centro ao Centro.” (p. 233).

Ao escrever A Caverna, Saramago nos exorta a nos identificar com Cipriano Algor, o homem comum que adquire sabedoria, que se liberta, buscando meios paliativos para se sustentar no Centro, mas que não se deixa cegar por ele.

Em suma, embora o livro já tenha dez anos, trata de um tema atual: a diferença entre dois mundos distintos: o Centro Comercial, que é exigente, competitivo, e que, na realidade, representa o capitalismo em sua fase moderna; e Cipriano, oleiro, que representa o modo simples da vida, além das inovações.

Há um convite explícito ao leitor para que reflita sobre as condições da nossa sociedade, para as consequências advindas da modernização do capital e sobre a nossa atitude perante tudo isso: se temos percebido ou se estamos estáticos, cegos, sendo passivamente envolvidos pela modernização.

Para Saramago, é possível escapar dessa caverna chamada capitalismo, como fez Cipriano que não se moldou a esse Centro, tendo uma visão crítica sobre ele, que aumentou quando conheceu de fato esse Centro quando lá morou.

Referência

SARAMAGO, J. A Caverna. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. 352 p.

Andreza Marques de Castro Leão – Pós-Doutora no Departamento de Psicologia da Educação. Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/Araraquara/SP. Bolsista da Fapesp.

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Homo Zappiens: educando na era digital – VEEN; VRAKKING (C)

VEEN, W.; VRAKKING, B. Homo Zappiens: educando na era digital. Trad. de Vinícius Figueira. Porto Alegre: Artmed, 2009.  Resenha de: PETARNELLA, Leandro; GARCIA, Eduardo de Campos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 2, p. 175-179, Maio/Ago, 2010.

A sociedade está em permanente metamorfose. Na atualidade, a força motriz das transformações sociais são as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Por consequência, educar crianças que se desenvolvem em uma sociedade alicerçada nessas novas tecnologias se torna uma tarefa tão difícil quanto arriscada, uma vez que essas enfrentam dificuldades em se ajustar ao sistema educacional atual, dadas suas íntimas relações com a tecnologia.

Partindo das considerações acima, Wim Veen e Ben Vrakking tecem no livro Homo Zappiens: educando na era digital, suas reflexões sobre um tema atual e polêmico: o papel da escola e da educação em uma sociedade tecnológica. Reflexões essas delineadas em 137 páginas, divididas em seis capítulos: “Tempos de Mudança” como primeiro capítulo; “Conhecendo o Homo Zappiens” como segundo capítulo; “Entendendo o caos” apresentando o terceiro capítulo e como quarto capítulo “Aprendendo de maneira divertida”. “Parando a montanha russa” (5º capítulo), antecede o sexto e último capítulo “O que as escolas poderiam fazer”.

No primeiro capítulo “Tempos de mudança”, os autores discorrem sobre alguns momentos nos quais a sociedade se viu diante do terror do bug do milênio, apresentando de forma fácil a necessidade de um novo saber sobre o velho conhecimento, para que se resolvam os problemas tecnológicos atuais. Segundo os autores, o bug do milênio levou o homem a refletir sobre sua consonância vivencial com a tecnologia, em vista de que a mesma se tornou uníssona em seu cotidiano juntamente com suas responsabilidades vitais. Por meio dessa necessidade, pode-se entender por que os autores denominaram a nova geração como Homo Zappiens.

Para exemplificar a denominação e levar o leitor à reflexão, os autores propõem uma narrativa ficcional, cuja personagem é nominada como Jack. A figura dramática de Jack, ambientalizada numa situação cotidiana, se vê num cenário tecnológico cujos objetos que o circundam conduzem sua vida. Nesse cenário, encontram-se aparelhos que se tornaram íntimos demais para nos desvencilharmos de seus objetivos, ou seja, aquilo que há três mil anos era algo impulsionado pelo músculo-força-cinética hoje é tecno-mecânica-elétrica.

Por meio de Jack podemos perceber que, com o desenvolvimento tecnológico, aquilo que no passado era usufruto de alguns, hoje se massifica transcendendo fronteiras, tempo e espaço. Os autores exemplificam essa facilidade de comunicação colocando Jack numa situação corriqueira: A personagem Jack encontra-se atrasada para o trabalho e parada no trânsito, a metros de distância de seu local de trabalho. Jack, então, se comunica por meio de um celular com sua secretária e, logo em seguida, atende um cliente, tudo isso por meio de um click.

Não é só o click que nos leva às facilidades na comunicação, mas tudo o que nos cerca: televisão, rádio, computador, etc. O fato é que não basta reconhecer que a tecnologia facilita o cotidiano do homem, mas que essa tecnologia, como parte da vida do homem, faz desse homem mais homem na representação social; melhor dizendo, um homem mais sábio, atualizado, antenado, zap. Em outras palavras: a tecnologia que se apresenta é parte da personalidade, de uma essência humana tecnológica, pois o homem contagia-se e se torna complacente com a tecnologia, passando, com o uso dela, a administrar seu “eu”. Desse modo, o tempo passa a ser um estimado bem, que iminencia um tempo em que viver os segundos e produzir nos segundos faz a diferença. Nessa perspectiva, o tempo deve ser administrado de forma orbital e tecnológico, pois, no labore, a postura perante qualquer equipe de trabalho deverá desenvolver e reconhecer o capital humano como meio para se dilatarem as possibilidades de crescimento. O Homo Zappiens se revela como um ser tecnologizado, cujo cotidiano faz dele alguém renovável, flexível como os autores tratam no capítulo seguinte.

No segundo capítulo “Conhecendo o Homo Zappiens”, os autores explanam sobre o comportamento das crianças que representam esses sujeitos, cujo cognitivo é delineado pelas tecnologias e suas convergências. O Homo Zappiens, sendo sujeito hodierno, age de forma dispersa ao olhar dos educadores, que, porém são, na verdade, multifuncionais, o que os leva a observar de forma rápida alguns diferentes meios tecnológicos, tais como, o celular, o MSN, a televisão, o rádio, etc. Nesse aspecto, as gerações tecnologizadas se concebem como a geração de rede, a geração digital, a geração instantânea e, entre tantas outras nominações, a cibergeração. Nessa perspectiva, os Homo Zappiens, por meio de um click, acessam e navegam instantaneamente em qualquer lugar e em qualquer tempo e, nesse navegar, plugam-se em jogos interativos, salas de bate-papo, ciberencontros, etc.

A diferença entre o Homo Zappiens e as outras gerações, segundo os autores, é concebida por meio do modo como ambos se relacionam com as tecnologias: os Homo Zappiens se tornam íntimos da tecnologia, porque aprendem numa relação de intimidade que se contextualiza pela prática e pela experimentação da tecnologia, enquanto as outras gerações se submetem às instruções para depois efetuar operações tecnológicas. Desse modo, as novas gerações têm um desenvolvimento tecnocognitivo enquanto às outras gerações, o real se baseia na instrução para a aprendizagem.

Dando continuidade a ideia de Homo Zappiens, o terceiro capítulo: “Entendendo o caos”, aborda a forma como as crianças da atual geração se familiarizam com a tecnologia. Sendo essa facilmente utilizada no cotidiano dos indivíduos, os Homo Zappiens visualizam na tecnologia uma possibilidade de socialização, o que ocorre por meio de jogos de LAN e mensagens instantâneas, ou seja, aquilo que para muitos (de gerações passadas) pode ser considerado um caos. Para os autores é o desenvolvimento da habilidade icônica, a de tarefas múltiplas, de zapear e a de colaboração que diferencia o Homo Zappiens dos demais sujeitos de gerações passadas. Entendamos por meio da ideia dos autores que, enquanto as gerações passadas assistiam a filmes observando a história e a interpretação, os Homo Zappiens decifram e compreendem como cada cena foi elaborada. Decifrar a tecnologia empregada é o grande desafio da tecnogeração, isto é, para ela construir o conhecimento. O mesmo ocorre, por exemplo, com o processo de leitura, cujos olhos atentos aos  vários ícones nas páginas da NET saciam a ânsia de aprender desses indivíduos, pensadores digitais.

Avançando o pensar, no quarto capítulo: “Aprendendo de maneira divertida”, os autores apresentam o homem como alguém que entende o aprender e o concebe por meio de uma verossimilhança entre o jogar. A interação virtual ou real tem como essência a potencialidade investigativa. Assim, para os autores, aprender é a capacidade de observar o meio e seu entorno, é adaptar-se às transformações ocorridas, é retransformá-lo. Desse modo, o Homo Zappiens vê e vive a interação por meio do contato e do convívio com a tecnologia-interativa ou a interação-sócio-humana. Mesmo porque o novo nada mais é que velhos processos reprojetados por novos meios, novas ferramentas.

Diante do contexto até aqui apresentado, os autores referem que o processo de aprender pode advir de duas concepções: a primeira proposta parte do senso comum e concebe a aprendizagem como um processo permanente no cotidiano de cada indivíduo; a segunda propõe que a aprendizagem se efetive por meio de níveis e que nem sempre a experiência evidencia aprendizagem. O Homo Zappiens aprende de forma que sua autonomia se evidencie, inclusive, por meio da escolha daquilo que se quer aprender e como se quer aprender. Nesse aspecto, podemos considerar que a nova geração fica atenta ao que aprende, por que aprende e, principalmente, como aprende, sendo essa forma a força motivadora da conduta dos Homo Zappiens, conforme relatam os autores no quinto capítulo Parando a montanha russa.

No sexto e último capítulo: “O que as escolas poderiam fazer”, os autores propõem que a escola, sendo meio para sistematização da educação e da aprendizagem, deve atender aos interesses e às necessidades da sociedade, entre esses: a necessidade de acompanhar ou preconizar as tecnologias inerentes aos avanços da sociedade. Partindo dessa concepção de escola, os autores propõem uma leitura da metodologia utilizada na educação atual, meio de poder que linearmente se desenvolve para que as pessoas se tornem emergentes, o que denota transformar-se de dominado em dominante. Assim, se concebe a escola como um espaço que se apropria das tecnologias e evolui para que essas estejam a serviço da emancipação do homem como sujeito autônomo, que se permite experimentar o novo a todo instante.

Nessa proposta de cenários educacionais, os autores propõem uma reflexão sobre quatro eixos cênicos: inovação, marketing, perseverança e melhoria o que implica uma maior liberdade de escolha no trajeto educacional de cada indivíduo. Os respectivos eixos devem ser construídos por meio de um novo design pedagógico, cujos professores devem ficar atentos aos desafios do novo a todo instante, sendo esse novo não só conhecer as novas tecnologias, mas dar espaço às novas atitudes educacionais, dentre elas, a atitude de confiar nos alunos no que tange ao fazer, ao querer e ao cumprir com liberdade, tendo como vértebra educacional o talento e a habilidade do Homo Zappiens, de estar imerso naquilo que faz, quando se apaixona pelo que faz. Desse modo, a organização e a formatação das avaliações devem, também, se modificar para dar espaço a mudanças significativas, mudando matérias em temas, avaliações em desafios, escrita em imagens…

Transformando as reflexões em um tecido orgânico, no comentário final, os autores propõem uma reflexão sobre os assuntos abordados, não esperando que o leitor aceite passivamente as ideias explicitadas no livro, ao contrário, recorrem sabiamente a todo critério de liberdade apresentado no decorrer do livro Homo Zappiens: educando na era digital, para concluir que, enquanto a geração Homo Zappiens for julgada por meio dos velhos paradigmas, nunca compreenderemos como essa geração brinca e se comunica, o que, na verdade, representa uma fonte de informações para que possamos lidar com nosso futuro digital e criativo.

Referências

VEEN, W.; VRAKKING, B. Homo Zappiens: educando na era digital. Trad. de Vinícius Figueira. Porto Alegre: Artmed, 2009. 141 p.

Leandro Petarnella – Professor na Universidade Nove de Julho (Uninove/SP). Mestre. Doutorando em Educação pela Universidade de Sorocaba (Uniso/SP) e em Administração pela Uninove/SP. Desenvolve pesquisas relacionadas à tecnologia e ao cotidiano escolar. E-mail: [email protected]

Eduardo de Campos Garcia – Professor na Universidade Nove de Julho (Uninove/SP). Mestrando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Especialista em Magistério do Ensino Superior pela PUCSP. E-mail: [email protected]

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Pesquisando fundamentos para novas práticas na educação online – MORAES et al (C)

MORAES, M. C.; PESCE, L.; BRUNO, A. R. (Org.). Pesquisando fundamentos para novas práticas na educação online. São Paulo: RG, 2008. 149 p. Resenha de: ROSA, Marcelo Prado Amaral. Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 2, p. 181-189, maio/ago. 2010.

O tema central do livro, Pesquisando fundamentos para novas práticas na educação online, é dirigido às considerações teórico-metodológicas, às abordagens educacionais e aos fundamentos epistemológicos que estão ocultos nas atuais práticas em educação online e tem como público-alvo os profissionais que estão de alguma forma relacionados à educação online na contemporaneidade.

A referida obra foi organizada por três autoras: Maria Cândida Borges de Moraes, Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Atualmente é professora no Programa de Pós- Graduação em Educação na Universidade Católica de Brasília e pesquisadora do Grupo Internacional Consolidado de Pesquisa (Giad) da Universidade de Barcelona, Espanha. Tem experiência na área de educação, com ênfase em fundamentos da educação, Educação a Distância, atuando, principalmente, nos seguintes temas: epistemologia, didática, paradigma, complexidade, transdisciplinaridade, informática na educação e Educação a Distância (EAD). É autora e/ou coautora de outras 22 obras, sendo algumas dessas: i) Complexidade e transdisciplinaridade em educação: teoria e prática docente (2010); ii) Como pesquisar em educação a partir da complexidade e da transdiciplinaridade? (2008); iii) Ecologia de los saberes: una comunidad de conocimiento para una nueva conciencia (2008); iv) Pensamento eco-sistêmico (2008). Nessa obra, analisa as recomendações do documento do ForGRAD – Fórum de Pró-Reitores de Graduação das Universidades Brasileiras sobre políticas e diretrizes em EAD, destacando a necessidade de uma reconfiguração do cenário epistemológico dos ambientes digitais de aprendizagem; Lucila Maria Pesce de Oliveira (Lucila Pesce) é Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e Pós- Doutora em Filosofia e História da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora adjunta nível I na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Tem pesquisado temas como: aprendizagem em ambientes digitais, formação de educadores em ambientes digitais, educação em saúde mediada por computador.

Publicou outros dois livros: i) Educação on-line: cenário, formação e questões didático-metodológicas (2010); ii) Formação on-line de educadores: identidade em construção (2009). Nessa obra, a autora promove uma reflexão sobre as possibilidades de se efetivar a avaliação formativa nos Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVAs); e Adriana Rocha Bruno é Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professora adjunta na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atua principalmente nos temas: educação online, didática e didática online, aprendizagem de adultos em ambientes digitais, formação de educadores, neurociência e neuropsicologia, linguagem emocional e educação e tecnologias. Publicou em 2009, Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA): a prática com Moodle. Nessa obra, a autora anuncia a mediação partilhada e a interação digital, tecidas pela linguagem emocional, em ambientes de aprendizagem online como possibilidade para transformar a prática pedagógica em uma aprendizagem integradora.

A obra em questão está composta por elementos pré-textuais e textuais. Os primeiros são: capa, ficha catalográfica, dedicatória, epígrafe, prefácio, apresentação e sumário. Os segundos são compostos por seis capítulos escritos por seis diferentes autores; cada um dos capítulos apresenta subdivisões internas: i) Educação a Distância e a ressignificação dos paradigmas educacionais: fundamentos teóricos e epistemológicos: i.i) resumo; i.ii) introdução; i.iii) análise contextual da problemática educacional; i.iv) visão ecológica e sistêmica da realidade; i.v) ambiente digital de aprendizagem sob enfoque ecossistêmico; i.vi) reconfigurando o cenário epistemológico da EAD; i.vii) pressupostos teóricos e epistemológicos norteadores das ações de educação a distância; i.viii) princípios norteadores das ações em EAD; i.ix) considerações finais; i.x) referências bibliográficas; (Maria Cândida Moraes); ii) Avaliação formativa: desafio aos processos de formação veiculados nos ambientes virtuais de aprendizagem: ii.i) resumo; ii.ii) introdução; ii.iii) avaliação da aprendizagem e as distintas concepções educacionais; ii.iv) Avaliação formativa: primeiras aproximações; ii.v) avaliação nos Ambientes Virtuais de Aprendizagem: apontamentos iniciais; ii.vi) considerações finais; ii.vii) referências; (Lucila Pesce); iii) Mediação partilhada e interação digital: tecendo a transformação do educador em ambientes de aprendizagem on-line, pela linguagem emocional; iii.i) resumo; iii.ii) introdução; iii.iii) mediação pedagógica e interação digital; iii.iv) a mediação partilhada; iii.v) a mediação partilhada em ambientes de aprendizagem on-line; iii.vi) a linguagem emocional como “tom” da mediação partilhada; iii.vii) considerações finais; iii.viii) referências bibliográficas; (Adriana Rocha Bruno); iv) Planejamento em ação e sistemas sociais humanos: expressões do cuidado em educação on-line: iv.i) resumo; iv.ii) introdução; iv.iii) os alunos: seres vivos, seres humanos; iv.iv) o cuidado: identificando e respeitando diferentes estruturas; iv.v) o grupo: sistemas sociais humanos; iv.vi) o planejamento e a formação de sistemas sociais; iv.vii) o cuidado: identificando emergências; iv.viii) conclusão: o cuidado para não fechar… idéias; iv.ix) referências bibliográficas; (Rosamaria de Medeiros Arnt); v) Ambientes virtuais de aprendizagem: os velhos problemas dos ambientes presenciais?; v.i) resumo; v.ii) introdução; v.iii) ambientes de aprendizagem: algumas considerações; v.iv) conclusão; v.v) referências bibliográficas; (Duglas Wekerlin Filho); vi) Sentipensar, tecnologias e mídias digitais: possíveis interfaces do pensamento transdisciplinar no trabalho docente em ambiente virtual de aprendizagem: vi.i) resumo; vi.ii) introdução; vi.iii) objetivos; vi.iv) metodologia; vi.v) componentes teóricos de apoio à pesquisa; vi.vi) análise dos dados obtidos no campo de pesquisa: um olhar inicial; vi.vii) considerações finais; vi.viii) referências bibliográficas; (Acássia Araújo Barreto). A obra completa apresenta 149 páginas.

No capítulo “Educação a Distância e a ressignificação dos paradigmas educacionais: fundamentos teóricos e epistemológicos”, o objetivo principal é analisar as recomendações estabelecidas no documento apresentado no Fórum Nacional de Pró-Reitores de Graduação das Universidades Brasileiras (ForGRAD), em setembro de 2002. De forma introdutória, a autora destaca a potencialidade da Educação a Distância (EAD) para a democratização do acesso à educação, frisando que a mesma não deve ser vista como a redentora dos problemas educacionais nacionais.

Ainda: observa que a política estabelecida no ForGRAD é de apontamento e não de operacionalização da EAD. Na subdivisão i.iii, a autora destaca duas realidades que a sociedade vive na contemporaneidade, em virtude da globalização: a expansão tecnológica e a expansão da pobreza. Como consequência dessas duas realidades, a crise nos fundamentos do conhecimento reflete-se no sistema educacional. Salienta o despreparo dos atores educacionais para atuarem em um mundo que funciona em rede. Ao fim dessa subdivisão, evidencia a importância da EAD pela possibilidade de vir a colaborar para a ressignificação dos paradigmas educacionais em voga. Na subdivisão capitular seguinte, i.iv, a autora destaca que, em função do funcionamento do mundo (sistêmico-organizacional), existe a necessidade de revisão dos paradigmas educacionais. Ressignificar tais paradigmas, partindo da visão ecossistêmica, significa compreender a relação indissociável entre indivíduo e contexto, pois a aprendizagem é fruto de uma cooperação global que envolve todo o organismo. Na subdivisão capitular que segue, i.v, a autora define e diferencia, superficialmente, ambientes digitais de aprendizagem construcionistas e instrucionistas. Na i.vi, é explicitado que ressignificar os paradigmas educacionais implica escolha de princípios e teorias que sejam capazes de fundamentar e organizar o conhecimento a ser construído no ambientes de aprendizagem, conhecimento esse amparado por um novo paradigma (ecossistêmico); a partir desse novo paradigma, é possível desenvolver uma nova práxis cognitiva/emocional.

Na i.vii, são apresentados pela autora seis desdobramentos provenientes dos pressupostos norteadores das propostas em EAD e que foram indicados no documento ForGRAD, tendo como referência o livro Paradigma educacional emergente (1997). Na i.viii, a autora traz sete princípios norteadores das atividades em EAD de acordo com o documento Forgrad: autonomia, pesquisa, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, relação teoria e prática, trabalho colaborativo, dialogicidade e construcionismo contextualizado. Na i.ix, a autora destaca que o conhecer e o aprender são processos complexos que emergem, de dentro para fora, a partir de relações entre sujeito e objeto na criação de circunstâncias que possibilitem vivências significativas aos sujeitos aprendentes.

No capítulo “Avaliação formativa: desafio aos processos de formação veiculados nos Ambientes Virtuais de Aprendizagem”, o objetivo principal é refletir sobre as possibilidades de se efetivar a avaliação formativa nos AVAs. Na subdivisão capitular ii.iii, a autora traz os desdobramentos das cinco perspectivas ideológicas básicas, das quais se originam diferentes concepções de avaliação de aprendizagem, juntamente com os diferentes paradigmas educacionais existentes e seus reflexos nas práticas de avaliação. Na ii.iv, a autora distingue avaliação formativa de avaliação somativa, discorrendo e salientando a primeira, na qual é buscada a adequação entre diagnóstico inicial do processo educativo e o tratamento didático a ser implementado. Na subdivisão seguinte, ii.v, a autora procura analisar as especificidades dos AVAs e avançar na reflexão acerca dos recursos dos ambientes de rede que podem contribuir com a efetivação da avaliação formativa. Ao fim, a autora aprofunda a discussão sobre as possibilidades de se efetivar a avaliação formativa nos ambientes de rede, baseada em três categorias: avaliação e metarreflexão; leitura, escrita e avaliação; e avaliação e situação de interlocução. Na ii.vi, é afirmado que a maioria dos AVAs oferece recursos para que se efetive a avaliação formativa, sendo que essa contribui com uma melhor intervenção docente na aprendizagem do aluno, contribuindo para o estabelecimento de uma atitude discente reflexiva sobre seu próprio percurso.

No capítulo “Mediação partilhada e interação digital: tecendo a transformação do educador em ambientes de aprendizagem online, pela linguagem emocional”, o objetivo principal é refletir a respeito da mediação partilhada e da interação digital, tecida pela linguagem emocional em ambientes de aprendizagem online, como possibilidade transformar a prática pedagógica. Na iii.iii, a autora acentua a importância dos conceitos de interação, mediação pedagógica e interatividade, para focar a linguagem como um instrumento mediador no processo de mediação, uma vez que a mediação pedagógica é gerada na interação.

Na subdivisão seguinte, iii.iv, o foco é a construção de um ambiente que favoreça ao aluno ser um ser ativo no processo de aprendizagem, materializando, assim, a parceria entre formador-pesquisador e alunospesquisadores.

Na iii.v, é ressaltado que a intencionalidade nem sempre é suficiente para se atingirem os objetivos da mediação partilhada. Nessa subdivisão, iii.vi, é evidenciada a importância da linguagem emocional utilizada pelo mediador nos ambientes online, pois a linguagem emocional empregada pode ser uma ponte ou um abismo para o diálogo.

Por fim, na iii.vii, para haver mediação pedagógica em AVAs, o professor necessita estar envolvido com o tema a ser trabalhado para, assim, ter condições de contagiar o resto do grupo.

No capítulo “Planejamento em ação e sistemas sociais humanos: expressões do cuidado em educação on-line”, o objetivo principal é refletir e apresentar alguns questionamentos sobre o planejamento em ação e a formação de sistemas sociais em cursos a distância, apoiados nos pressupostos dos autores Maturana e Varela. O enfoque é a ideia do cuidado, sendo esse uma atitude que envolve preocupação com o outro, além de uma relação afetiva que remete à responsabilidade. Na iv.iii, a autora proporciona uma visão panorâmica da teoria autopoiética de Maturana e Varela. Na iv.iv, é explicitado o cuidado que deve ser tomado quando se é coordenador de um ambiente de aprendizagem e ao se planejar estratégias que permitam conhecer a estrutura de cada participante. Na subdivisão que segue, iv.v, há uma conceitualização de grupo voltada aos ambientes de aprendizagem, além de uma definição de sistemas sociais e implicações que daí decorrem, de acordo com Maturana. No seguimento capitular, na iv.vi, a autora traz os conceitos de intenção e atenção ao iniciar o planejamento de um curso de ambiente digital, correlacionando esses conceitos com a função dos participantes dos sistemas sociais. Na sequência do capítulo, na iv.vii, são evidenciadas as diferentes situações de participação em cursos a distância (visível, invisível e ausente), podendo, assim, através do cuidado e da atenção, identificar as emergências que acabam interferindo nas interações. Na subdivisão que encerra o corpo do capítulo, iv.viii, os AVAs apresentam vantagens e desvantagens em relação aos ambientes presenciais de aprendizagem e que, mesmo tendo os objetivos planejados de forma clara, não se pode traçar previamente todos os caminhos dos cursos a distância.

No capítulo “Ambientes Virtuais de Aprendizagem: os velhos problemas dos ambientes presenciais?”, o objetivo principal é apresentar alguns problemas que ocorrem nos ambientes de aprendizagem, virtuais ou presenciais, elencando algumas situações que demonstram como esses problemas surgem e como podem ser superados. Na subdivisão terceira desse capítulo, v.iii, o autor apresenta um panorama geral sobre os ambientes de aprendizagem, fazendo relações com a velocidade da produção do conhecimento na sociedade, entre o ensino presencial, o ensino virtual e a presença da tecnologia nas escolas. Afirma, ainda, que não basta ter tecnologia para uma aprendizagem satisfatória dos aprendizes, pois o que tem que mudar é a forma de mediação pedagógica do professor com base na emoção e no cuidado; esse é o papel principal do professor: mediador das situações de aprendizagens. Na v.iv, o autor salienta que há muitos problemas nos ambientes presenciais que ocorrem também nos ambientes virtuais, porém podem ser superados a partir das possibilidades oferecidas em literatura de acesso geral. A autora acrescenta, também, que os problemas específicos dos AVAs necessitam ser avaliados com maior profundidade, o que não implica evidentemente imobilizar os processos de uso de tecnologias em educação.

No último capítulo: “Sentipensar, tecnologia e mídia digitais: possíveis interfaces do pensamento transdisciplinar no trabalho docente em Ambiente Virtual de Aprendizagem”, o objetivo é analisar as possíveis interfaces do pensamento transdisciplinar na ação docente, no contexto da formação de professores desenvolvida com AVAs. Nas subdivisões seguintes do capítulo, a autora descreve as partes do projeto “Sentipensar, tecnologias e mídias digitais: educando desde e para a vida”, destinado a professores das escolas públicas do Estado de Sergipe. Além disso, a autora também buscou examinar as possibilidades de criação de cenários e redes de aprendizagem integrada na formação docente e refletir sobre o papel docente, observando a necessidade de construção de uma nova prática diante das emergências, especialmente em atividades de formação de professor. Na vi.iv, é descrita a ambientação, a abordagem e os procedimentos do projeto. Na vi.v, consta a base teórica do projeto, embasada, fundamentalmente, na transdisciplinaridade, complexidade, no pensamento ecossistêmico, na mediação pedagógica e formação docente. Na vi.vi, os dados coletados indicaram a presença de categorias que se mesclaram e se revezaram ao mesmo tempo. Ainda: evidenciou que a atividade docente se desenvolveu sobre três eixos: a espera vigiada, o rigor científico, e a amorosidade. Encerrando o capítulo, no vi.vii, a autora afirma que os cursos de formação de professores devem erguer sua metodologia focada na ecologia dos saberes, sendo que as mudanças que se pretende nos cursos de formação de professores implicam um processo de transformação do educador.

Os aspectos gerais e específicos, que seguem abaixo, sobre o livro resenhado, ratificam a recomendação dessa leitura para profissionais e/ ou estudantes envolvidos com a linha tecnologias e educação.

  • Aspectos gerais: 1. as autoras organizadoras da obra são autoridades reconhecidas nacional e internacionalmente, quando se trata da temática educação e tecnologia, o que potencializa a tendência de indicação do livro; 2. na obra é ampliada a visão sobre os fundamentos e conceitos que rodeiam o tema educação online, favorecendo um panorama geral aos interessados pela área em que se enquadra o livro; 3. os textos (capítulos) apresentam uma característica de clareza e padronização de escrita, o que certamente favorece o entendimento das abordagens teóricas e metodológicas apresentadas como essenciais, visando a discussões sobre educação online; e a montagem do livro, em relação à ordem dos capítulos apresentada aos leitores, demonstra uma preocupação com uma leitura que introduza de forma gradual o leitor na área da educação mediada pela tecnologia, pois o livro inicia com fundamentos teóricos e epistemológicos e finaliza com a aplicação de um projeto baseado em um AVA.
  • Aspectos específicos: Capítulo 1: traz uma análise pontual e esclarecedora da autora sobre as recomendações estabelecidas no documento que contém a política e as diretrizes para uso da EAD nos cursos de graduação (ForGRAD); Capítulo 2: apresenta, de forma concisa e dentro de uma cronologia, as perspectivas ideológicas das quais se originam diferentes concepções de avaliação de aprendizagem, além de trazer, da mesma maneira que o Capítulo 1, os paradigmas educacionais existentes e seus reflexos nas práticas de avaliação; Capítulo 3: Explicita os conceitos de mediação e interação digital, de modo a dar o “tom” da compreensão que a autora espera que o leitor venha a ter dentro do contexto que ela estabelece; Capítulo 4: aborda predominantemente o cuidado necessário com o planejamento e a formação de sistemas sociais em EAD, sob a lente das formas de participação que os AVAs propiciam, fazendo com que seja despertada a atenção para as intenções dos partícipes dos ambientes de aprendizagem; Capítulo 5: o autor traça um paralelo comparativo entre os problemas que se apresentam nos ambientes de aprendizagem, presenciais e virtuais, alertando para o risco de que a tecnologia venha a ser apenas uma “nova roupagem” metodológica, e não, um modo privilegiado de mediar a aprendizagem dos aprendizes; e Capítulo 6: a autora apresenta o projeto “Sentipensar, tecnologias e mídias digitais: educando desde e para a vida”, indo da sua elaboração até algumas considerações sobre o potencial deste e alguns resultados obtidos. Esse capítulo fornece subsídios preciosos para a avaliação de projetos que incluam o uso de tecnologias na educação.

Referências

MORAES, M. C.; PESCE, L.; BRUNO, A. R. (Org.). Pesquisando fundamentos para novas práticas na educação online. São Paulo: RG, 2008. 149 p.

Marcelo Prado Amaral Rosa – Licenciado em Química pela Universidade Regional Integrada e do Alto Uruguai (URI), campus de Frederico Westphalen/RS. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Games em educação: como os nativos digitais aprendem – MATTAR (C)

MATTAR, João. Games em educação: como os nativos digitais aprendem. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2010. Resenha de: PESCADOR, Cristina M. Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 2, p.191-195, Maio/Ago, 2010.

Em suas 181 páginas, o livro Games em educação: como os nativos digitais aprendem, escrito por João Mattar e publicado pela Pearson Prentice Hall, 2010 (SP), oferece uma leitura agradável e esclarecedora, por vezes provocante, abrangendo pesquisas sobre jogos eletrônicos e computacionais – games como o autor prefere generalizar – e o processo de ensino e aprendizagem.

Com ilustração de Alexandre Mieda, a capa do livro chama a atenção para a imagem estilizada de um jovem sentado em frente de uma tela de computador, interagindo com o equipamento e, a seu lado, na escrivaninha, estão dispostos diversos tipos de games, com seus consoles e joysticks ou modelos portáteis.

O livro tem prefácio escrito pelo Prof. Dr. David Gibson, ele próprio um pesquisador do tema, desenvolvendo estudos sobre jogos e simulações digitais na educação, na Universidade de Vermont (EUA), e tendo ministrado cursos sobre jogos, simulações e aprendizagem e sobre Second Life na Boise State University e como professor convidado na Korea National University of Education.

O autor, João Mattar, tem formação acadêmica em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e Bacharelado em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Com Mestrado em Tecnologia Educacional pela Boise State University (EUA) e Doutorado em Letras pela USP, dedica-se à pesquisa na área de tecnologias aplicadas à educação, tendo desenvolvido material didático para a área de Educação a Distância (EAD). Faz das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) um meio de divulgação de seu trabalho, através do blog De Mattar (http://blog.joamattar.com) e do hábito de manter atualizações constantes em seu perfil em redes de relacionamento como o facebook e o twitter. Com isso, é possível acompanhar suas “andanças no mundo acadêmico”, pois, através desses recursos, o autor informa suas leituras, sua participação em eventos, palestras e, recentemente (abril/2010), divulgou um curso com a temática do livro: Games em Educação, hospedado no Second Life. É também com essas postagens que o autor mantém um canal aberto para novos contatos em sua rede de networking1 e para divulgar suas atividades acadêmicas.

Um exemplo desse uso das redes de relacionamento e das TICs é o modo como o livro Games em educação: como os nativos digitais aprendem foi amplamente anunciado pelo autor em seu blog, em seu perfil de facebook, em listas de discussão do Google groups, coordenadas por ele e através do twitter, sendo a informação repassada pelos internautas através dos mesmos meios.

O livro foi organizado em duas partes principais: a primeira, sob o título “Conceitos e teorias”, compreende três capítulos: (1) “Estilos de aprendizagem dos nativos digitais”; (2) “O uso de games em educação”; e (3) “O novo design instrucional para os nativos digitais”. Na segunda parte do livro, “Games na prática”, o Capítulo 4 discorre sobre “Design e produção de games educacionais”; o Capítulo 5 trata de “Experiências no Exterior”; e o Capítulo 6 apresenta “O cenário no Brasil”. Ao cabo, o leitor tem acesso a dois apêndices com exemplos práticos: o primeiro apresenta uma análise desenvolvida pelo autor enquanto estudava jogos na Boise State University, “Aprendendo matemática com Yu-Gi-Oh! para PS2”, e o segundo apêndice apresenta alguns pontos sobre “Second Life e educação”. Para os professores que optarem por adotar o livro em suas aulas, há um Companion Website, que consiste em um endereço eletrônico onde é possível encontrar material de apoio para as aulas, tais como, apresentações em power-point, resenhas escritas por ele sobre as obras citadas no livro e muitos outros links úteis.

Em sua introdução ao livro, Mattar critica a escola atual e apresenta ao leitor seu entendimento de que “o aprendizado necessita de motivação para um envolvimento intenso, o que é atingido pelos games”. (2010, p. xiii). Ele fundamenta essa afirmação com teorias que entendem a aprendizagem como resultado de ações colaborativas e em estudos sobre a utilização, por exemplo, de games online multiusuários, que exigem que seus jogadores saibam trabalhar em grupo e estejam dispostos a aprender com seus colegas.

Amparado em autores como o educador e pesquisador americano Prensky, que cunhou a expressão “nativos digitais”, o autor provoca o leitor em toda a extensão do seu livro, convidando-o a repensar seu posicionamento em relação aos games e videogames, apresentando uma grande compilação de textos e pesquisas sobre o tema, incluindo trabalhos desenvolvidos no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa, a partir dos quais o autor vai tecendo suas próprias concepções e ideias. A rede de conceitos e teorias sobre aprendizagem, estilos de aprendizagem e games que Mattar constrói é tão complexa e intrincada, que, por vezes, fica difícil para o leitor distinguir os limites entre os autores que estão sendo citados por ele e suas próprias palavras. No entanto, há momentos em que ele mesmo desfaz essa teia, esclarecendo e destacando aspectos importantes, reconstruindo a evolução de determinados conceitos historicamente e despertando no leitor certo sabor de “quero mais”. Ao término de cada capítulo, esse desejo e essas dúvidas podem ser saciados ou esclarecidos através de uma vasta bibliografia, onde Mattar indica livros, artigos, pesquisas, tanto no formato impresso, como em endereços eletrônicos.

O trabalho de Mattar se destaca pela ênfase que dá aos estilos de aprendizagem da nova geração, nascida em meio a computadores, internet, videogames e outros tantos recursos digitais. São os “nativos digitais”, ou seja, jovens que incorporaram os recursos e as mídias digitais em seu cotidiano de tal forma que sequer os percebem como tecnologia. Para eles, o acesso à informação que precisam deve ser rápido, quase imediato e, por isso, muitas vezes recorrem à internet e a ferramentas de busca antes de pesquisarem em meios impressos tradicionais. Utilizam para isso seus computadores ou aparelhos celulares, que também servem como tocadores de mídia (música e vídeo) e canais de comunicação com seus amigos através das ferramentas de comunicação e mensagens eletrônicas do tipo Messenger, mensagens de texto nos celulares, etc.

Na opinião de Mattar e dos inúmeros autores que ele cita no seu texto, buscando suporte para seus argumentos (Prensky, Oblinger e Oblinger, Papert, entre outros), as experiências desses jovens com as mídias digitais representam uma transformação significativa na forma como eles aprendem e produzem conhecimentos. Ele destaca o game como um importante sinalizador dessas transformações, distinguindo-o de outros recursos midiáticos anteriores a eles, desde programas de TV até CD-ROMs, pois o jogo não permite a passividade (característica de tais recursos) diante dos quais, muitas vezes, o jovem era convidado apenas a assistir a alguma ação na tela da TV ou interagir de forma reativa, clicando para dar sequência a alguma ação na tela do computador com o CD-ROM. Com o game, a interatividade é mútua, sendo o jovem constantemente convidado a participar de forma ativa e estratégica, instigando sua criatividade e capacidade de análise, na busca de soluções e o motivando a progredir em suas conquistas, seguindo para novas fases do game, com novos desafios a vencer.

No entanto, Mattar observa que essas habilidades parecem não estar sendo valorizadas nas escolas, sendo o game e a diversão deixados do lado de fora enquanto os sistemas educativos perpetuam a separação de um mundo de coisas que se faz “dentro e fora da escola”. Para ele, as ações presentes nos games permitem que os jogadores possam ressignificar imagens e objetos de outros games, usando suas descobertas anteriores na manipulação de situações atuais. Explorando o mundo do game, as regras se tornam aparentes e, à medida que joga, o jogador vai aprendendo. O autor vê esse comportamento como algo peculiar dessa geração dos “nativos digitais”, caracterizando seus estilos de aprendizagem com base em ações interativas e colaborativas e, em seu livro, literalmente convida outros autores e pesquisadores para conversarem com ele sobre esse assunto, buscando respaldo teórico e científico para o que ele entende ser o modo com que os nativos digitais aprendem. Para ele, o game é muito mais do que uma atividade lúdica: pode ser um recurso didático a favor da educação, focado no processo de construção, cujo caminho pode ser determinado pelo próprio aluno, em conjunto com seus pares e sob a orientação atenta de professores e educadores.

Assim, o autor convida seu leitor/educador a pensar e a repensar suas próprias práticas diárias, a refletir sobre a importância dos estilos de aprendizagem e das peculiaridades dos jovens que chegam às nossas salas de aula hoje e dos paradigmas que surgem com essas mudanças. Sua viagem pelo amplo universo de pesquisas, realizadas na área, lança uma luz sobre novas ideias e considerações em direção a um novo design instrucional, a partir do qual se possa dar voz aos “nativos digitais” nas discussões e buscar atender à necessidade de preparar profissionais para trabalharem em educação com esses novos desafios a enfrentar.

Mattar nos convida a manter a mente aberta a mudanças e reconhece que há uma concordância mais ou menos generalizada quanto à necessidade de que essas mudanças ocorram. As mídias digitais podem ser uma nova direção a tomar, especialmente o game, mas, para isso, ele afirma que “é preciso um trabalho de evangelização” (p. 148), trabalho que ele toma para si, na tentativa de divulgar não apenas sua própria visão de possibilidades voltadas a um ensino simultaneamente sério e divertido e que leve em consideração os estilos de aprendizagem dos alunos da geração dos “nativos digitais”, mas também de fornecer ao leitor curioso novas fontes de consulta e, quem sabe, conquistar adeptos para sua proposta de mudar o futuro, respeitando as capacidades e os potenciais dos alunos.

Nota

1 Termo utilizado para se referir à tentativa de construir uma boa rede de relacionamentos dentro da sua área de atuação.

Referências

MATTAR, João. Games em educação: como os nativos digitais aprendem. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2010. 181 p.

Cristina M. Pescador – Professora de Inglês no Programa de Línguas Estrangeiras (PLE) da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Especialista em Educação a Distância. Mestre em Educação pela UCS. E-mail: [email protected]

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A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço – LÉVY (C)

LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2007. Resenha de: FOR, Celso Samir Guielcer de. Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 2, p. 197-200, maio/ago, 2010.

A obra de Pierre Lévy que tem por subtítulo: “por uma antropologia do ciberespaço” mostra uma tentativa epistemológica de construir alguns referenciais sobre o pensamento baseado na velocidade e nas transformações da informática e das tecnologias da informação no mundo contemporâneo.

O texto é estruturado de tal forma que cada parte se completa. É uma espécie de grande quebra-cabeça que, aos poucos, vai se mostrando, revelando com uma unidade temática e de sentido; em outras palavras, cada capítulo compõe uma parte do projeto, e cada parte expõe as facetas do projeto, um texto bastante metafórico, mas contando com uma objetividade de sentido e de significação do ciberespaço e da inteligência coletiva.

O ciberespaço é um lugar onde os acontecimentos estão em constante transformação e onde as infovias garantem a velocidade dessas transformações.

A partir da afirmação no prólogo, podemos começar a demonstrar a construção de um projeto realmente efetivo de uma possível nova forma de racionalidade. Esse projeto está baseado na ideia de mundialização das características humanas, conforme excerto extraído da obra: Na verdade, as decisões técnicas, a adoção de normas e regulamentos, as políticas tarifárias contribuirão, queiramos ou não, para modelar os equipamentos coletivos da sensibilidade, da inteligência e da coordenação que formarão no futuro a infra-estrutura de uma civilização mundializada. (p. 13).

Lévy alerta para o fato de que voltamos a ser nômades, e esse nomadismo está vinculado ao problema da velocidade, e essa está “lincada” a viagens em um mundo de significados e a uma multiplicação exagerada de saberes e de conhecimentos. Esse nomadismo não está vinculado à ideia de um espaço territorial geográfico. É visualizando o problema da relação do social que nos afastamos e que contraímos ainda mais nossas relações e nossas trocas propriamente humanas.

Então, o projeto da inteligência coletiva é um projeto de estabelecimento de relações entre indivíduos, talvez isolados, que podem agora entrar em contato com outros.

O problema da inteligência coletiva é descobrir ou inventar um além da escrita, um além da linguagem tal que o tratamento da informação seja distribuído e coordenado por toda parte, que não seja mais o apanágio de órgãos sociais separados, mas se integre naturalmente, pelo contrário, a todas as atividades humanas, volte às mãos de cada um. (p. 17).

O livro está dividido em duas grandes partes: 1- A engenharia do laço social; 2- O espaço do saber. Para acompanhar a estrutura e a visão que Lévy entrelaça, gostaria de seguir seu pensamento. Primeira parte: Cap.1 Os justos. Ética da Inteligência Coletiva; Cap. 2 As qualidades humanas. Economia da Inteligência Coletiva; Cap. 3 Do molar ao molecular. Tecnologia da Inteligência Coletiva; Cap. 4 Dinâmica das cidades inteligentes. Manifesto por uma política molecular; Cap. 5 Coreografia dos corpos angélicos. A teologia da Inteligência Coletiva; Cap. 6 A arte e a arquitetura do ciberespaço. Estética da inteligência coletiva. Segunda parte: Cap. 7 Os quatro espaços; Cap. 8 O que é um espaço antropológico?; Cap. 9 Identidades; Cap. 10 Semióticas; Cap.

11 Figuras do espaço e tempo; Cap. 12 Instrumentos de navegação; Cap. 13 Objetos do conhecimento; Cap. 14 Epistemologias; Cap. 15 As relações entre espaço. Para uma filosofia política.

Na primeira parte, Lévy vai tratar mais das situações dos humanos que se ligam uns aos outros ocupando espaços. O primeiro capítulo da primeira parte (p. 35 a 40) com o título: “Os justos. Ética da inteligência coletiva” refere que a ética que ele menciona é a da hospedagem. Ser hóspede e ser hospedado; a relação de respeito e cumplicidade dentro das trocas intensas expostas. E, para colorir essa densidade, usa a metáfora bíblica de Sodoma e Gomorra. Lot dá hospitalidade a estranhos. E essa hospitalidade é demonstrada na persistência em não entregar os estrangeiros. Poderíamos, a partir da visão da mulher de Lot, pensar como a tentação ataca também o justo, e, principalmente, como, a partir de um justo, podemos formar o grupo dos justos, apesar de serem minoria e construir uma sociedade dos justos.

No segundo Capítulo: “As qualidades humanas. Economia da inteligência coletiva” (p. 41 a 46). Busca lançar pistas para pensarmos um pouco sobre as condições da produção de uma subjetividade, como principal atividade econômica. O terceiro Capítulo: “Do molar ao molecular. Tecnologia da inteligência coletiva” (p. 47 a 58) é uma tentativa de montar uma hierarquia, que não é estática, mostrando como as partes e todos se relacionam ao todo. No fim do capítulo, o autor mostra um quadro esquemático mostrando a evolução da técnica e da tecnologia. Capítulo 4: Dinâmica das cidades inteligentes. Manifesto por uma política molecular (p. 52 a 82). É um estudo importante para representar a democracia em tempo real e reconhecer a importância de usarmos os meios de comunicação para podermos atuar nesse espaço de informação como verdadeiros cidadãos. Ainda no Capítulo 5: “Coreografia dos corpos angélicos. A teologia da Inteligência Coletiva.

Elabora uma ideia que visa a mostrar o elemento ontológico da comunicação, uma quase metafísica da comunicação. E o Capítulo 6: “A arte e a arquitetura do ciberespaço. Estética da Inteligência Coletiva”.

Constrói uma estética, formas mostrando elementos fundamentais da estética e da construção de elementos sociais e ontológicos da continuação das obras continuadas. Aqui ele tenta estabelecer um vínculo entre o real e o virtual.

Na segunda parte sob o título “O espaço do saber”, acontece o entrelaçamento dos elementos assim chamados antropológicos. Capítulo 7: “Os quatro espaços” mostra quatro condições de evolução do pensamento e desenvolvimento do mesmo. Por isso, no Capítulo 8, ele se pergunta sobre o espaço antropológico.

No Capítulo 9, o que se constata é a reconstrução dos fragmentos estabelecidos desde o início de sua análise e até a construção de seu projeto. Por isso, o Capítulo 9 tem por título “Identidades”. Já no Capítulo 10, o que temos é uma construção significativa sobre o problema da própria significação, cujo título é “Semióticas”. Nos Capítulos 11 e 12, as possibilidades de entrelaçamento entre o real e o virtual são abordadas, agora, dando ênfase à necessidade de entrelaçamento e efetivação do projeto de Inteligência Coletiva.

Por fim, os três últimos Capítulos (13, 14 e 15) representam a concretização do projeto de Inteligência Coletiva como uma condição antropológica e propriamente efetiva no meio das pessoas a partir do meio técnico informacional, mostrando a efetividade do processo de Inteligência Coletiva e do social. Por isso, a inteligência do todo não resulta mais mecanicamente de atos cegos e automáticos, pois é o pensamento das pessoas que pereniza, inventa e põe em movimento o pensamento da sociedade (p. 31).

Referências

LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2007. 212 p. Recebido em 15 de abril de 2010 e aprovado em 3 de maio de 2010.

Celso Samir Guielcer de For -Licenciado em Filosofia. Especialista em Informática Educativa. Mestrando em Filosofia da Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

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O jogo do Eu: a mudança de si em uma sociedade global – MELUCCI (C)

MELUCCI, Alberto. O jogo do Eu: a mudança de si em uma sociedade global. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2004. 184 p. Resenha de: SALVA, Sueli. Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 155-159, jan./abr. 2010.

Esse livro direciona-se a todos aqueles que têm o desejo de compreender o ser humano que habita o mundo contemporâneo buscando saber quem ele é, e como se torna quem é em suas multiplicidades.

Alberto Melucci nasceu em Rimini, na Itália, em 1943 e faleceu em 12 de setembro de 2001. Sociólogo e psicólogo, atuou na Universidade de Milão como professor de Processos Culturais e na Escola de Psicologia Clínica. Também atuou como professor em outros países da Europa, da Ásia, da América Latina, da América do Norte e desenvolveu uma intensa atividade de pesquisa. O autor produziu uma vasta produção bibliográfica centrada nos problemas da teoria sociológica, análise da ação coletiva, mudança social, mudança cultural e identidade, aprofundando as duas últimas temáticas. Possui várias publicações sobre os processos de globalização, sociedade planetária, vida pessoal, vida cotidiana e sobre as relações sociais. Centra-se, nos últimos anos sobre o processo de transformação de si em uma sociedade que muda em grande escala e com um ritmo nunca antes imaginado. Essa é a temática central da obra: O jogo do Eu: a mudança de si em uma sociedade global. No Brasil a obra de Alberto Melucci ficou conhecida através do Professor Dr. Nilton Bueno Fischer, que a difundiu no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nilton partiu no dia 25 de julho, deixando ainda mais intenso o frio do dia mais frio do inverno de 2009, e sem a sua dedicação essa obra não estaria traduzida e publicada no Brasil.

Para apresentar a obra O jogo do Eu… tomo as palavras de Touraine (1998, p. 73), que diz: “O sujeito não é uma ‘alma’ presente no corpo ou o espírito dos indivíduos. Ele é a procura, pelo próprio indivíduo, das condições que lhe permitem ser o autor da sua própria história.” Nas palavras de Touraine (1998), o processo de busca do indivíduo “das condições que lhe permitem ser o autor de sua obra” está atravessada por inúmeros processos presentes na sociedade contemporânea. Para Melucci (2004), em O jogo do Eu: a mudança de si em uma sociedade global, esses processos não podem acontecer fora do próprio sujeito na sua relação consigo e com o mundo. A leitura dessa obra é, portanto, um convite para olhar o sujeito, sua experiência cotidiana, a relação consigo e com o mundo, procurando compreender como ele se move entre os artefatos que o circunda, na tentativa de construção da própria história. O livro instiga a construir uma sociologia da escuta, capaz de pôr em contato verdadeiro o observador e o observado, ou seja, alerta para o compromisso de olhar para o sujeito, considerando não apenas o ponto de chegada, mas os dilemas, as alegrias, as emoções, os conflitos enfrentados durante o percurso de construção de si.

O livro tem o tema da identidade como o foco central, sempre se contrapondo ao princípio da compreensão da identidade como absoluta, argumentando acerca da multiplicidade do eu, expondo a complexidade que envolve a tentativa de responder a uma pergunta simples: Quem sou eu? A busca da resposta sobre Quem sou eu? convive com outro dilema: o de tentar compreender Como me torno quem sou?. Ao tentar compreender Como me torno quem sou?, é possível visualizar o caminho construído individualmente na cotidianidade. São os labirintos do percurso que inundam de sentido a experiência do viver.

A obra está dividida em dez capítulos, e cada um deles aborda aspectos importantes da constituição do sujeito, sua relação consigo, com o outro, com o tempo, com a complexidade da sociedade contemporânea, com os processos de mudança acelerados, com a corporeidade, com o universo social e cultural, com a natureza. O consistente trabalho empírico de Alberto Melucci como sociólogo e psicólogo clínico se reflete no aprofundamento teórico de cada tema tratado e nos convida a refletir sobre os homens e as mulheres, habitantes deste mundo e suas experiências cotidianas. Essas experiências, fundantes na busca da construção de si, se movem entre o limite das estruturas e as possibilidades excessivas do mundo contemporâneo que nos impulsiona à escolha. Para o autor cada sujeito em seu viver cotidiano carrega a marca dessa tensão, sem que ela possa ser resolvida. Cada ser busca, de um lado, o impulso dinâmico para criar o espaço e os conteúdos da experiência e, de outro, a necessidade de considerar os limites naturais intrínsecos da experiência. Nessa busca constrói a si mesmo, cuja mecânica não está estruturada sobre uma engrenagem fixa. Nesse espaço do jogo, o sujeito precisa aprender a se mover, sob pena de se perder. A experiência possibilita que ele jogue a partir do que se apresenta em cada momento, pois esse jogo é dinâmico e exige o aprendizado de novas estratégias para se mover, que se torna possível através da abertura de si mesmo para o outro.

A preocupação com a busca de si que cada homem e cada mulher experimentam ao longo da vida, no intuito de se encontrarem, como sujeitos em suas múltiplas identidades é um dos aspectos em que o autor se detém. Para ele a identidade pessoal se insere em uma complexidade, dada a particularidade das experiências vivenciadas por um a um dos sujeitos. O Eu não pode ser compreendido de maneira absoluta e imediata; esse sempre conservará elementos enigmáticos, que dificultam que se responda de maneira definitiva à pergunta: Quem sou eu? A resposta à pergunta Quem sou eu? conterá sempre a ambivalência, uma vez que, para respondê-la não é suficiente que se tenha certa similaridade com o outro, mas também é preciso diferenciar-se reivindicando uma singularidade. Cada um de nós pertence a uma pluralidade de grupos, gerados por múltiplos papéis sociais, nosso eu torna-se múltiplo, entramos e saímos constantemente dos grupos de pertencimento com mais rapidez do que no passado, nos movemos “como animais migrantes nos labirintos da metrópole, viajantes do planeta, nômades do presente”. (MELUCCI, 2004, p. 60).

Para o autor a identidade se funda na relação social, é caracterizada como capacidade de reconhecer os efeitos da própria ação e reconhecê-la como nossa. As nossas ações não são o simples reflexo dos nossos vínculos biológicos e ambientais, são produções simbólicas de sentidos que, ao serem reconhecidas por nós mesmos, se tornam nossa propriedade e possibilitam a troca com os outros. Dada a dinâmica na produção da identidade, o autor argumenta que a palavra identidade parece não comportar o caráter processual da construção de nós mesmos, por esse motivo o autor sugere a palavra identização.

Nosso percurso de vida contém as diferentes dimensões do tempo, cuja metáfora da espiral as sintetiza. Essas dimensões são representadas pelo círculo, que simboliza a circularidade do ritmo da natureza que, aos poucos, vai serem substituído pela flecha. A flecha representa a meta a ser alcançada, o progresso, a salvação. Essa dimensão se mostrou bastante útil para a religião e para a indústria na modernidade. Por último, a metáfora dos pontos que se identifica com a dimensão fragmentada e descontínua da contemporaneidade cuja perspectiva de futuro se mostra sombria, e o tempo, como uma sequência de temporalidades desconexas.

Essa pluralidade de dimensões representa a temporalidade que vive o homem. Esse, por sua vez, inunda-se de outras temporalidades, relacionadas com a condição humana e expressam o desejo do homem de fluir e resistir ao tempo. A temática do “tempo” entrelaçado à análise de experiências individuais e ações coletivas se expressa em sua multiplicidade.

O corpo também é foco de preocupação do autor, pois ele considera seu papel fundante na construção e na perda da identidade, cujas experiências estão mergulhadas em uma sociedade em constante mudança que também transforma a experiência humana do tempo. O corpo, da forma como o conhecemos hoje, como cada um o tem e que se desenvolveu desde o seu nascimento, é resultado de um processo de construção no qual está implicada a forma como o nosso contexto social e cultural pensa e se relaciona com esse corpo. Esse pressuposto nos permite admitir que o corpo se transforma continuamente através dos estímulos que recebe e se constitui através da interferência que sofre do meio em que habita. Tendo sido relegado a áreas marginais ao longo da História, no tempo contemporâneo, cresce o interesse pelo corpo, pois ele é considerado “símbolo e instrumento de comunicação e canal da nossa afetividade, é nossa propriedade única e inalienável, que permite que sejamos reconhecidos quando outras formas de identificação vacilam”.

(MELUCCI, 2004, p. 93). Ao mesmo tempo, o interesse pelo corpo responde a um apelo do mercado, elevando-o a produto, sujeito, e, ao mesmo tempo, objeto. De outro modo, olhar para o corpo, prestar atenção aos seus sinais é um modo de valorização de si. A atenção ao corpo e a busca pelo bem-estar físico pode ser uma possibilidade de encontro com a sua temporalidade e com a sua totalidade, ou seja, corpo como corporeidade. Em sua delicada atenção à corporeidade, o autor atenta para a dimensão do tempo interno que corresponde ao tempo de eros, subjetivo, descontínuo, reversível e imprevisível, que depende da percepção, das situações e das experiências de cada um. Temporalidade essa que co-habita com o tempo externo que corresponde à marcação da máquina, cujas características correspondem à linearidade, irreversibilidade, previsibilidade. Tempo interno e tempo social precisam coexistir. Muitas vezes, o tempo interno, o tempo do corpo, submete-se ao tempo social, provocando conflitos e angústia, esses gerados pelo excesso de possibilidades que nos são oferecidas e que excedem aquilo que realmente podemos viver.

Melucci nos alerta sobre as questões ecológicas argumentando que esse tema, de certa maneira, virou moda; entretanto, essa temática não apenas revela a preocupação com o planeta, mas as possibilidades de intervenção na natureza desenvolvidas pelo homem. O conhecimento científico que está à disposição da humanidade não pode retroceder. A ação humana depende desses conhecimentos, mas esses também expõem um dilema de difícil solução. Dispor desses recursos significa ampliar a possibilidade de intervir na humanidade, mas, ao mesmo tempo, responder à natureza, àquela dimensão que nos constitui como seres capazes de construir sentidos para o viver.

Através da obra o autor nos convida a viver de forma menos narcisista, que nosso percurso seja impulsionado pela busca do encontro com o outro, cujo tecido que simboliza esse encontro pode ser ricamente ornado com as relações humanas, as quais as palavras jamais serão capazes de descrever.

Referências

MELUCCI, Alberto. O jogo do Eu: a mudança de si em uma sociedade global. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2004. 184 p.

Sueli Salva – Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora no Departamento de Metodologia do Ensino da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

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As imagens do outro sobre a cultura surda – TROBEL (C)

TROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. rev. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009. Resenha de: NEVES, Gabriele Vieira. Conjectura, Caxias do Sul v. 15, n. 1, p. 151-154, jan/abr, 2010.

Nas últimas décadas, as pesquisas no campo dos Estudos Surdos e Estudos Culturais proporcionaram um novo olhar sobre a surdez.

Longe de serem considerados como um grupo de pessoas marcado pela deficiência e pela ânsia de cura e normalização, hoje os surdos são pensados como um grupo identitário caracterizado por elementos próprios que marcam sua diferença. Nada melhor para ilustrar essa perspectiva do que apresentar a trajetória da autora da obra As imagens do outro sobre a cultura surda. Karin Strobel é surda, formada em Pedagogia e Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Trabalhou em diversas escolas de surdos e participou da equipe pedagógica do Departamento de Educação Especial da Secretaria de Educação do Paraná. Atualmente é professora no curso de Letras/Libras da UFSC e diretora-presidente da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis).

Tendo em vista essas informações, poderíamos dizer que, por si, a autora já seria um modelo representativo da comunidade surda como grupo cultural fortemente marcado pela identidade e pelo “orgulho de ser surdo”. Mas Strobel vai além do seu próprio modelo. A obra é permeada por relatos, memórias, sonhos e situações do cotidiano de surdos desafiados a viver em um mundo nem sempre acessível, impregnado por olhares de estranhamento, de preconceito e ignorância sobre sua diferença.

Desde o primeiro capítulo “Qual conceito trazemos sobre a cultura?”, ao assumir uma postura notadamente epistemológica, a autora evidencia sua preocupação em estabelecer distinções e explicitar conceitos.

Depois de fazer uma breve contextualização histórica do conceito de cultura e trazer algumas possíveis definições, a ênfase recai sobre a ideia de cultura fundamentada nos Estudos Culturais a qual sustentará seus argumentos nos capítulos posteriores. A partir da origem etimológica da palavra cultura que vem do latim colere = cultivar, Strobel tece a metáfora dessa como o cultivo da linguagem e da identidade, realizada coletivamente e de maneira performativa. No caso dos surdos, o cultivo e a colheita se dão dentro da comunidade surda, campo fértil para o florescimento de sua identidade e de sua cultura.

No capítulo seguinte, intitulado “Os surdos têm cultura?”, são traçadas as primeiras linhas para a apresentação dos surdos como grupo cultural minoritário ou, como prefere a própria autora, como povo. Dessa maneira, a cultura surda é definida como o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável ajustando-o com suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas.

[…] Isso significa que abrange a língua, as idéias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo. (STROBEL, 2009, p. 27).

Essa opção de se referir aos surdos como povo é o tema do terceiro capítulo: “Povo surdo ou comunidade surda?” Nesse, é esclarecida a distinção entre comunidade surda, que abrange surdos e ouvintes militantes da causa surda, tais como: pais, intérpretes e professores, e o povo surdo, composto apenas por surdos, ligados por um traço em comum, que é a surdez. Assim como os judeus estão unidos por um laço religioso, e os alemães, por uma nacionalidade, os surdos estão ligados pela surdez e pela forma visual de perceber o mundo. A cultura surda e a língua de sinais são referências para o povo surdo e para sua constituição identitária.

No Capítulo 4, “Os artefatos culturais do povo surdo”, a autora apresenta oito artefatos culturais que podem caracterizar a cultura surda, e que são entendidos como as ilustrações da cultura, como aquilo que vai além do material, constituindo o sujeito e as formas de ver, entender e transformar o mundo. Os artefatos elencados são: a experiência visual, que constitui os surdos como indivíduos que percebem o mundo através de seus olhos; o linguístico que se refere à criação, utilização e difusão das línguas de sinais; o familiar que abrange a questão do nascimento de crianças surdas em lares ouvintes e de crianças ouvintes em famílias de surdos, sendo que, na maioria dos casos, as crianças surdas são uma dádiva para famílias surdas e uma lástima para famílias ouvintes. A literatura surda que abrange criações, tais como: poesia em língua de sinais e livros publicados por autores surdos. As artes visuais que são consideradas o artefato onde se localizam as artes plásticas e o teatro surdo. Existem, ainda, os artefatos compostos pela vida social e esportiva e o artefato político, destacando-se pelos líderes surdos e as lutas sociais através de organizações e associações. Por último, a autora aponta as criações e transformações materiais, tais como telefones adaptados, campainhas luminosas, entre outras tecnologias criadas para melhorar as condições de acessibilidade.

Em “As representações imaginárias sobre a cultura surda”, são discutidas situações onde os surdos são ensinados a se narrar, se perceber e se comportar como ouvintes. Essas autopercepções de deficiência são incutidas nas crianças surdas desde muito cedo, prejudicando a formação de sua identidade e o sentimento de pertencimento a uma comunidade.

Do ponto de vista histórico, a autora reflete no Capítulo 6: “História cultural: novas reflexões sobre a história dos surdos”, a necessidade de escrever a história dos surdos de uma maneira diferente, sem que essa seja apenas uma metanarrativa escrita por ouvintes, na qual os personagens principais são ouvintes. Essa outra forma de escrever a história contemplaria, também, experiências e visões de professores surdos.

Strobel aborda a inclusão de maneira mais ampla, ao tratar também da inclusão social do surdo, no mercado de trabalho, nos ambientes sociais e da necessidade de que seja garantida a acessibilidade em todos os locais de convívio social. Frequentemente, a discussão fica sempre em torno da questão escolar, quando, na verdade, o surdo é excluído também dos espaços sociais se não são oferecidos intérpretes em eventos e locais de atendimento público, tais como: hospitais, delegacias, aeroportos e museus, ou quando não há programação televisiva e cinema nacional com legenda, ou ainda, quando no local de trabalho e na própria família não é utilizada como forma de comunicação a língua de sinais. Essa temática é abordada em “A in(ex)clusão dos surdos: prática (inter)cultural?” Além disso, são levantadas, entre outras questões provocativas: Será que a inclusão de surdos em escolas regulares se constitui verdadeiramente em uma prática intercultural? Será que de fato os surdos querem ser “incluídos”? No último capítulo: “Como podemos compreender as peculiaridades da comunidade surda e nos envolver com elas”, são propostas algumas ideias e sugestões de como os ouvintes podem se aproximar da comunidade surda. Para a autora, o primeiro passo é a aproximação da comunidade surda através das associações, das escolas e dos eventos com a participação de surdos. Outro caminho complementar é a leitura e pesquisas sobre o tema, procurando informações e esclarecimentos acerca das particularidades de se viver em um “mundo visual”. Mas o fundamental é a convivência formal e informal com os surdos; é no contato com o outro e com sua diferença que se origina a prática intercultural e a construção da identidade.

Assim, a obra representa uma excelente contribuição para os Estudos Surdos, tanto pelas suas reflexões teóricas e indagações instigadoras quanto pelo aprofundamento em temas de grande relevância e de ampla discussão na atualidade, tais como: inclusão, formação identitária, acessibilidade, educação de surdos, entre outros. Tudo isso é tratado sob a ótica de quem vive a experiência da surdez. Trata-se, também, de um convite para conhecermos um pouco mais a cultura surda e repensarmos os olhares e as imagens que construímos sobre os surdos e sua diferença.

Referências

STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. rev. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009.

Gabriele Vieira Neves -Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania – CORTINA (C)

CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005. Resenha de: RIZZON, Gisele. sociedades de cunho capitalista: o conceito de cidadania e o de economia. Conjectura, Caxias do Sul, v 14, n. 3, p. 223-227, set/dez, 2009.

O livro Cidadão do mundo: para uma teoria da cidadania é, basicamente, uma análise que considera, excepcionalmente, os aspectos: sociais, econômicos, civis e interculturais de um princípio que se destacou, substancialmente, nos últimos tempos: a cidadania. A referida obra foi escrita por Adela Cortina, doutora em Filosofia e Professora de Ética e Filosofia Política na Universidade de Valência, Espanha. Seus trabalhos, no âmbito da fundamentação da moral e em ética aplicada, gozam de ampla projeção na Espanha e em outros países, especialmente, na América Latina.

A obra está organizada em sete capítulos. O primeiro trata de uma teoria da cidadania. Os capítulos, compreendidos entre o segundo e o sexto, abordam pontos relevantes da cidadania nos âmbitos político, social, econômico, civil e intercultural, sendo que, para cada um desses aspectos, é designado um capítulo em especial. No sétimo capítulo, a temática envolve o processo de educar, sendo esse, segundo a autora, imprescindível para a constituição da cidadania. A obra consta, também, de um capítulo introdutório e um epílogo.

“Para uma teoria da cidadania” é o título do primeiro capítulo. Nesse, a autora, de maneira bastante relevante e consciente, afirma que “entende-se que a realidade da cidadania, o fato de se saber e de se sentir cidadão de uma comunidade, pode motivar os indivíduos a trabalhar por ela”. (p. 27). O sentir-se cidadão está diretamente relacionado com o processo de conhecer os princípios relevantes que regem o conceito de cidadania. Cortina expõe como sendo um desses princípios o sentimento  de pertença, por parte dos membros de uma determinada comunidade.

Nesse mesmo capítulo, ela trabalha uma dimensão histórica do conceito de cidadania, conceito esse excepcionalmente antigo, mas que, no fim no século XX, ressurge com vigor deslumbrante, principalmente, em virtude do aumento de sentido da concepção de justiça social.

No segundo capítulo, “Cidadania política: do homem político ao homem legal”, a temática está centrada na “origem da noção ocidental de cidadania, a essa dupla raiz grega e romana do tempo que o acompanha ao longo de sua história, criando não poucas confusões”. (p. 30). Assim, os conceitos de cidadão e de cidadania são buscados nos tempos remotos e clássicos de Atenas dos séculos V e IV a.C. e de Roma do século III a.

  1. até o século I da Era Cristã. Cortina, no decorrer desse capítulo, explicita a influência que esses conceitos tiveram na percepção e na definição do conceito de cidadão, em âmbitos teóricos e práticos, o que faz com que melhor se compreenda a conceituação em vigor na contemporaneidade.

A autora, nesse capítulo, compõe o texto por meio de estratégias de escrita, que se utilizam de uma ordem temporal, auxiliando, dessa forma, a construção de um pensamento ordenado, em nível de compreensão, das sucessivas mudanças conceituais ocorridas no decorrer dos diferentes tempos históricos.

O Capítulo 3, “Cidadania Social: do Estado do Bem-Estar Social ao Estado de Justiça”, tem como foco de discussão central o nascimento e o desenvolvimento histórico do Estado do Bem-Estar Social, assim como a crítica à solidariedade institucionalizada, por esse Estado instituída. Segundo Cortina, o que haveria de se institucionalizar é um mínimo de justiça e não o bem-estar, pois esse promove um “Estado paternalista [que] gerou um cidadão dependente, ‘critiqueiro’ e não crítico, passivo, apático e medíocre”.

(p. 64). Nesse sentido, uma proposta que prime por uma cidadania, consciente e efetiva, não se constitui de forma plena. O conceito de liberdade também está em pauta nesse capítulo, e ele é colocado em direta contraposição com a postura paternalista do Estado do Bem-Estar Social, principalmente em âmbito político, uma vez que nesse Estado são os “governantes [que] decidem em que consiste o bem do povo sem contar com ele”. (p. 67).

“Cidadania Econômica: a transformação da economia” é o título do quarto capítulo da obra Cidadãos do mundo. O enunciado da primeira seção desse capítulo: “O que significa ser um cidadão econômico?” traz um questionamento que, de maneira sucinta e direta, põe em pauta dois conceitos dicotômicos, porém convergentes, que se apresentam nas sociedades de cunho capitalista: o conceito de cidadania e o de economia.

Também, nesse capítulo, a autora lembra que as organizações econômicas precisam ser vistas como um grupo de pessoas que se unem, também, para fins dotados de cultura, não somente tendo em vista bens materiais e lucro financeiro. Assim, “a empresa não é entendida como um tipo de máquina, orientada exclusivamente para a obtenção do benefício material, mas como um grupo humano, que se propõe a satisfazer necessidades humanas com qualidade”. (p. 82). Cortina tece uma argumentação que coloca o recurso humano como elemento de fundamental importância dentro de um cenário de ordem econômica. O conceito de ética também transita neste campo de estudo, uma vez que esse é um conceito que se relaciona, diretamente, com processos de intercâmbio entre relacionamentos humanos.

No quinto capítulo: “Cidadania civil: universalizar a aristocracia”, a autora faz uma reflexão a partir do pressuposto de que toda pessoa pertence a uma sociedade civil. Afirma, ainda, que somente haverá uma cidadania civil, se houver a integração dessas mesmas pessoas a uma sociedade. Para elucidar esse pressuposto, Cortina toma, como um dos princípios essenciais, a qualificação do trabalhador. Para isso levanta a ideia de (Reich/Reino) e afirma que “a principal fonte de riqueza dos povos é a qualificação dos que neles trabalham, é a qualidade dos seus recursos humanos”, (p. 114); assim, a existência de profissões precisa ser caracterizada por atividades sociais de caráter ocupacional, que zelem por uma postura ética e de cooperação entre os envolvidos. Nesse capítulo, um ponto bastante “delicado” é colocado em pauta pela autora, que é a questão da qualificação dos trabalhadores. Para ela os trabalhadores precisam ser considerados uma fonte de riqueza e não somente a mais-valia que eles produzem às organizações, principalmente as de cunho capitalista.

O conceito de cultura é o ponto-chave do capítulo seis, intitulado “Cidadania intercultural: miséria do etnocentrismo”. Nesse, a autora explica como sendo fundamental o processo de entendimento do multiculturalismo, e que, “para respeitar uma posição não é preciso estar de acordo com ela, e sim, compreender que ela reflete um ponto de vista moral com o qual não compartilho, mas respeito em outro”. (p. 146). Por meio dessa concepção, outras situações são conflitantes, como, por exemplo, a caracterização de cultura, a identificação de diferentes tipos de cultura, assim como a construção da identidade social, uma vez que há essa necessidade, por parte do homem, para se sentir pertencente a  determinado grupo. O estudo construído passa pela percepção da importância necessária que deve ser dada ao processo identitário de cada sujeito, seja ele cultural, político, seja ele econômico, geográfico, principalmente, aqueles que atuam em meios nos quais o processo de respeito ao outro é imprescindível.

Revelando como sendo fundamental pensar sobre a cidadania por vias históricas, sociais, civis, econômicas e interculturais, como propôs Cortina nos capítulos anteriores, no sétimo “Educar na cidadania: aprender a construir um mundo juntos”, ela disserta sobre a necessidade da presença do educar para a constituição da cidadania. Educação, aqui apresentada, não tem apenas uma conotação formal, mas é estendida a todo processo que tenha como propósito o progresso dos modos de percepção do “capital axiológico”. (p. 181). Dentre os valores que a autora elenca como sendo os componentes da ética cívica estão presentes: a liberdade, a igualdade, o respeito ativo, a solidariedade e o diálogo. Tais valores explicitam que todo cidadão precisa ver-se como sujeito participante do contexto social, sendo que, por participante, ela entende aquele que atua ativamente e age ante a situações sociais apresentadas.

Para concluir, no epílogo, intitulado “O ideal da cidadania cosmopolita”, a autora afirma que há um ideal cosmopolita, que, de alguma maneira, está nas entranhas da natureza humana, que projeta esse humano na criação de uma cidadania, também cosmopolita, na qual todos os cidadãos se sintam como verdadeiros cidadãos. Para a efetivação dessa cidadania cosmopolita, Cortina explicita algumas teorias como sendo insustentáveis para o alcance desse fim, dentre elas, o “individualismo possessivo”. (p. 205). Em oposição, apresenta algumas situações que promovem a cidadania: a “lúcida e sábia solidariedade” (p. 205), a promoção da “Aldeia Global (por uma globalização econômica e ética)” (p. 206), e o “interculturalismo universal” (p. 207). É com essa perspectiva, qual seja a de uma construção para a cidadania, que Cortina encerra sua obra. Numa palavra: não é só o Estado ou um grupo de cidadãos que a efetiva, mas o conjunto de toda a sociedade, incluindo cada um dos seus componentes.

A relevância da obra pode ser representada pela seguinte afirmação: “O reconhecimento da cidadania social é conditio sine qua non na construção de uma cidadania cosmopolita que, por ser justa, faça com que todos os homens se sintam e se saibam cidadãos do mundo.” (p. 210). Faz-se a proposição ancorada na explicitação que Cortina efetiva no decorrer da obra, e que, de forma substancial, aborda a necessária promoção de uma teoria à cidadania, para que todos os cidadãos realmente se sintam Cidadãos do mundo. Por fim, faz-se uma relação entre um processo de real cidadania e a promoção de uma cultura para a paz, pois ambos têm por finalidade a valorização de cada sujeito social, assim como o seu contexto. O sentir-se presente, atuante e construtor de um espaço é a pedra fundamental de todo processo que visa à efetiva autovalorização social e, consequentemente, de respeito ao outro.

Referências

CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005. p. 210.

Gisele Rizzon – Graduada em Pedagogia pela Universidade de Caxias do Sul e Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]

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Pedagogia da convivência – JARES (C)

JARES, Xesús R. Pedagogia da convivência. Trad. de Elisabete de Moraes Santana. São Paulo: Palas Athena, 2008. Resenha de: BRUM, Lisiane Reis. Conjectura, Caxias do Sul, v 14, n. 3, p. 217-222, set/dez, 2009

Merece destaque a obra do professor Xesús R. Jares: Pedagogia da convivência (2008), por apresentar uma importante discussão acerca da convivência e da educação para a convivência, como questões prioritárias para o conjunto da cidadania, tendo em vista que a análise histórica revela que a convivência e a educação dos jovens têm sido tratadas como tema de grande preocupação pela sociedade diante da constatação da perda de valores básicos e também do aumento da violência em múltiplas formas.

A obra agrupa debates inspirados na experiência pessoal de Jares como pai, como professor, e como coordenador de programas de convivência realizados na Espanha. O trabalho apresentado pretende abordar cinco conteúdos essenciais, que originam os cinco capítulos nos quais se estrutura o livro: revelar os marcos e conteúdos da convivência; explicar os dados mais significativos de pesquisas que realizou na Galícia e nas Ilhas Canárias, Espanha, sobre a situação de convivência em centros educativos de Ensino Médio; apresentar propostas para fundamentar e tornar operativa a pedagogia da convivência nas escolas; expor uma experiência concreta do processo de implantação de uma equipe de mediação em uma escola de Ensino Médio; e, por último, refletir sobre o papel das famílias no processo de educar para a convivência.

Na introdução, Jares tece um breve comentário sobre o quanto determinados valores, formas de organização, sistemas de relação, normas, formas linguísticas, expressão de sentimentos, expectativas sociais e educacionais contribuem para determinado modelo de convivência na sociedade. Em determinadas populações e contextos sociais, bem como nos diferentes setores do sistema educacional, o autor constata que o “problema da convivência” é um dos aspectos que mais preocupam a sociedade, posto que o sistema econômico-social, a perda de respeito e dos valores básicos de convivência, a perda da liderança educativa da família e do sistema educacional, além do aumento da ocorrência e da visibilidade da violência, contribuem para a atual situação da convivência que se constata.

No primeiro capítulo, “Sobre a convivência e os conteúdos de uma pedagogia da convivência”, Jares contextualiza os diferentes âmbitos que considera mais importantes e que incidem na convivência. O autor chama a atenção para a importância da família, âmbito inicial de socialização, onde aprendemos os primeiros hábitos de convivência, às vezes, determinantes dos modelos de convivência futuros. O segundo grande âmbito de socialização, ao qual ele se refere, é o sistema educacional, como espaço que deixa vestígios no âmbito da convivência, tendo em vista que professores e professoras estimulam determinados modelos de convivência.

Outro âmbito de importante socialização é o grupo de iguais e que, por conta do tipo de relações sociais que vivemos, não se situa a partir da adolescência como era tradicionalmente, mas em idades mais precoces. Além disso, os meios de comunicação, particularmente a televisão, tem forte incidência nos modelos de convivência ao exercer enorme influência sobre determinados comportamentos, valores e relações sociais.

Os espaços e instrumentos de lazer, dominados por grandes centros comerciais e a consequente cultura do consumo, concomitantemente aos contextos político, econômico e cultural dominantes e que, inexoravelmente, condicionam a convivência social, obviamente não foram negligenciados pelo autor.

Após destacar os principais âmbitos em que ocorrem as diferentes formas de relação e de convivência, o autor destaca, ainda, conteúdos de natureza moral, ética, ideológica, social, política, cultural e educativa, com os quais a convivência tem referência. Ganham especial atenção os direitos humanos como marco regulador da convivência, pois, como lembra Jares (p. 29), os direitos humanos representam o consenso mais abrangente sobre valores, direitos e deveres para viver em comunidade.

Todavia, o cumprimento dos direitos é acompanhado de limitações, pois toda convivência também implica deveres para com os demais, sejam eles em qualquer âmbito: na família, na comunidade educacional, no país,  assim como em relação aos valores de justiça, liberdade, paz, etc. Nessa perspectiva, com muita objetividade e clareza, o autor ainda faz referência a alguns conteúdos de natureza humana, de relação e de cidadania, esses fundamentais para a convivência. Dentre eles, destacam-se o respeito, o diálogo, a solidariedade, a não violência, a felicidade, e a esperança que, ligados ao otimismo, facilitam a convivência positiva e necessária para encarar a função educadora.

Ainda no primeiro capítulo, o autor lembra alguns fatores desagregadores da convivência, quando são listados o ódio, a ideia de inimigo, os fundamentalismos, as mentiras, a corrupção, e a dominação, que traz em seu bojo a detenção de um poder calcado no uso da violência.

Por fim, tendo em vista que, recentemente, na Espanha, foi aprovada a Lei Orgânica de Educação (LOE), a incorporação ao currículo da disciplina Educação para a cidadania e os direitos humanos, o autor apresenta algumas reflexões nesse sentido e aponta que, para que a nova disciplina seja apoiada e tenha valor, precisa ser integrada ao currículo com as maiores garantias e sob o aporte de disciplinas como Filosofia, Sociologia, Direito e História, fundamentalmente.

Com o objetivo de analisar de forma global a relação entre conflituosidade e convivência, o autor apresenta, no segundo capítulo, os principais resultados de pesquisa realizada na Galícia, entre 1998 e 2002, e também na Comunidade Autônoma de Canárias, em 2002 e 2003. A convite do Instituto Canário de Avaliação e Qualidade Educacional (Icec), a pesquisa foi centrada em investigações sobre a percepção que professorado e alunado do Ensino Médio de escolas públicas e particulares conveniadas têm sobre diferentes dimensões da relação conflito/ convivência. As pesquisas apresentaram resultados semelhantes e, pelo fato de a investigação nas Ilhas Canárias ter sido publicada pelo Icec (2004), os resultados apresentados nessa obra são dados inéditos da investigação realizada na Galícia.

A pesquisa foi estruturada em três blocos temáticos, estreitamente inter-relacionados e apresentados de maneira clara pelo autor: Conflito, disciplina e convivência; Percepção de violência e Estratégias para favorecer a convivência.

Os dados foram obtidos através da aplicação de questionários com 22 perguntas e 110 itens para o alunado e 32 perguntas com 208 itens para o professorado. As principais conclusões referidas pelo autor indicam que tanto professores quanto alunos possuem uma percepção negativa do conflito, que se explica pela confusão que se estabelece ao relacionar conflito com violência e indisciplina.

Jares aponta que modificar essa percepção negativa do conflito é um dos desafios prioritários a serem enfrentados para encarar a realidade do conflito como algo natural e tratá-lo, a partir daí, como uma oportunidade para aprender, ou seja, como um fato educativo. Outros dados demonstram que professores e alunos têm uma boa percepção da convivência entre ambos, mas também coincidem no fato de terem uma percepção negativa da indisciplina e da violência dos educandos na escola, resultados que podem estar relacionados a opiniões concentradas em determinados sujeitos, mais do que no conjunto, tanto pelos professores quanto pelos alunos.

Outro ponto relevante do estudo é que ambos reconhecem serem poucos os espaços destinados e muito raramente são utilizadas estratégias didáticas que favoreçam a convivência, confirmando, de forma clara e contundente, a escassa bagagem metodológica e organizativa que desafia os professores a melhorar a convivência nas escolas. Além disso, através da análise das diversas dimensões educacionais formuladas na pesquisa, é possível destacar uma visão pouco otimista dos sujeitos pesquisados sobre o uso de algumas atividades propostas pelo estudo para favorecer uma convivência positiva nas escolas.

Em relação ao medo de ir à escola e ao sentimento de apreço em relação aos seus próprios colegas e ao professorado, o estudo pôde analisar o desenvolvimento social dos alunos e a sua integração à vida escolar. Os dados refletem que a maioria dos estudantes nunca sentiu nenhum tipo de medo dos professores ou medo de ir à escola, mas a percentagem, quanto ao apreço do professorado, apresentou uma tendência negativa e, consequentemente, preocupante.

Após expor os dados da investigação, é no terceiro capítulo, “Âmbitos de intervenção”, que o autor apresenta propostas para centros educacionais a partir de três ideias fundamentais: o planejamento tanto para o espaço da classe quanto da escola, assim como da comunidade educativa (professores, alunos e mães/pais); grande repertório de atividades didáticas; e participação de todos os setores da comunidade educativa, a partir da ideia-chave de corresponsabilidade. Para a exposição desse “Plano de Intenção”, o autor precisou examinar o marco legislativo dessa temática, as propostas de escola e de aula, assim como a formação do corpo docente, tema, aliás, que deve exigir um esforço máximo por parte da administração educacional, das universidades e dos coletivos profissionais.

O quarto capítulo: “A mediação nas escolas”, é interessante por apresentar a experiência realizada em uma escola de Ensino Médio sobre um dos métodos de resolução de conflitos que está sendo utilizado em centros educativos: a mediação. Segundo Jares, a mediação consiste na intervenção de uma parte (alheia ao conflito e imparcial) com o objetivo de facilitar que as partes cheguem por si mesmas a um acordo por meio do diálogo, em que o processo de mediação passa de binária, entre as duas partes, a ternária, com a presença de um(a) mediador(a).

O que confere caráter educativo à mediação é o fato de que o mediador não tem poder para impor uma solução, cujos protagonistas do conflito são os que preservam o controle da situação e tentam chegar a um acordo. O capítulo revela como foi posto em andamento a experiência de mediação, a formação dos mediadores e mediadoras, as situações que intervieram, os obstáculos encontrados, as opiniões dos mediadores, o professorado, etc. Dentre as informações importantes, é possível destacar, nesse capítulo, a dificuldade apontada pelos mediadores em manter a imparcialidade durante os conflitos e a percepção do professorado em ressaltar a diminuição da conflituosidade na escola, desde a implantação do programa.

Ao considerar a família como âmbito fundamental na socialização e o impacto e comoção intelectuais causados no autor, devido às grandes mudanças que vêm ocorrendo na família espanhola, algumas análises são realizadas, no último capítulo: “Educar para a convivência desde as famílias”. Sobre o papel das famílias na educação para a convivência, o capítulo é organizado em três partes. Em um primeiro momento, é feita uma análise sobre as relações família-escola; num segundo momento, é feita uma abordagem dos diferentes erros que todos consideram estar sendo cometidos na educação de filhos e filhas; e, finalmente, algumas estratégias para favorecer a convivência nas famílias e facilitar a resolução pacífica de conflitos.

Diante do valor da educação e com a preocupação em fazer surgir uma rica reflexão acerca da pedagogia da convivência, como uma das alternativas possíveis para uma educação voltada para a paz, Jares encerra sua obra com um tema adequado à realidade atual. Os resultados obtidos em sua investigação demonstram a importância de pensar uma educação voltada para a mediação de conflitos, mas que apresente o enorme desafio, qual seja o de ser aplicada nos principais âmbitos da educação: a família e a escola.

Referências

JARES, Xesús R. Pedagogia da convivência. Trad. de Elisabete de Moraes Santana. São Paulo: Palas Athena, 2008. p. 239.

Lisiane Reis Brum – Licenciada em Educação Física. Coordenadora-Geral da Academia-Escola da Universidade de Caxias do Sul. Mestranda em Educação pela mesma instituição. E-mail: [email protected]

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Não violência na educação – MULLER (C)

MULLER, Jean-Marie. Não violência na educação. Trad. de Tônia Van Acker. São Paulo: Pala Athena, 2006. Resenha de: ZANOTTO, Karin. Conjectura, Caxias do Sul, v 14, n. 3, p. 209-215, set/dez, 2009.

Jean-Marie Muller, filósofo francês é pesquisador há mais de trinta anos da teoria da não violência, é autor de 27 livros relacionados ao tema e coloca em prática o que prega. Dentre os quais destacam-se aqueles já traduzidos para o português: Não-violência na educação e O princípio da não-violência: uma trajetória filosófica, ambos editados pela Editora Palas Athena, e Princípios e métodos de intervenção civil pela Editora Piaget. Em 1970, para protestar contra a venda de aviões Mirage ao governo militar brasileiro, fez greve de fome. Participou da ação do Batalhão da Paz, que conseguiu pôr fim aos testes nucleares a céu aberto realizados pela França, em 1972.

Muller é fundador e diretor do Instituto de Pesquisas sobre a Resolução Não-Violenta de Conflitos e participa das reuniões da Defesa Nacional Francesa. A ideia de não violência defendida por Muller não é sinônimo de passividade ou covardia. Na maioria das vezes, há mais coragem na não violência do que na violência. Um exemplo disso foi o que aconteceu com Rosa Parks, a mulher negra que, no início da década de 50, lançou a resistência dos negros nos EUA, ou seja, os ônibus, na época, tinham lugares reservados para brancos. Certa vez, ela se sentou em um desses lugares e permaneceu sentada, quando um branco pediu que ela se levantasse. Quando o condutor do ônibus pediu o mesmo, ela continuou lá e não se moveu nem quando os policiais chegaram. Permanecer sentada exigia muita resistência, energia e coragem. Para Muller, principalmente por não se dar de forma natural, a construção de uma sociedade não violenta é tarefa difícil.

O livro Não-violência na educação faz parte das iniciativas promovidas para a Década Internacional para uma Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças no Mundo (2001-2010) pela Unesco que, originalmente, o publicou. Nele Muller recomenda uma abordagem muito prática de como resolver confrontos violentos nas escolas. Explica que a cultura da violência já está instalada nas sociedades de nosso tempo e é diariamente reforçada por todos os meios de comunicação. Quando uma criança toma o brinquedo de outra, a sociedade vê como perfeitamente natural que a segunda avance e o arranque de volta ou tome outro brinquedo em retaliação ou, ainda, que bata no colega. Contudo, conforme aponta o autor, a contraviolência gera apenas mais violência – a primeira criança vai sentir-se agredida e também ela retribuirá, levando a uma possível escalada de violências que não beneficia nenhum dos participantes e poderá até causar a destruição do brinquedo originalmente disputado. Já a não violência é vista como algo utópico, contrário até à natureza humana agressiva e competitiva. O professor Muller, nesse livro, define violência não como sendo agressividade, esta sim, natural na espécie humana, mas como ameaça à vida ou à integridade do outro. A violência é um desrespeito básico do humano pelo outro, que o torna passível de ser usado ou explorado ou destruído.

No primeiro capítulo, o autor discorre sobre o conflito, explicando que nosso relacionamento com os outros forma nossa personalidade, pois que se existe somente em relação a outros. A existência individual como ser humano tem menos a ver com estar-no-mundo e mais com estar-com-os-outros. No entanto, a experiência de encontro com o outro tende a ser marcada por adversidades e confrontos, surgindo o medo dos outros, pois o aparecimento de um outro ao meu lado pode ser ou não perigoso. O medo pelo outro é duas vezes maior quando não se parece comigo, quando não fala a mesma linguagem, não tem a mesma cor de pele, não acredita no mesmo Deus. Assim, os outros me preocupam, assustam. Segundo o autor, é preciso transformar o conflito, transformar o confronto em um nível de cooperação, para que se chegue à solução de problemas conflitantes, pois a rivalidade entre os humanos somente é superada quando cada um limita seus próprios desejos, quando existe o respeito pelo outro, ou seja, quando busca o grau certo de distância, para que as pessoas possam ver, reconhecer e identificar umas às outras sem fusão nem confusão. Para formar uma comunidade humana, os homens devem manter um relacionamento de duas mãos: baseado na dádiva e na partilha, porque é na bondade que reside a hospitalidade. A violência é uma fraqueza, e a bondade é a força dos fortes.

No segundo capítulo, Muller fala sobre a agressividade, especificando que não é a violência que é natural no ser humano, mas a agressividade, pois o ser humano é instintivo e impulsivo, e a agressividade faz parte do instinto. É uma energia que pode fazer o bem ou pode fazer o mal. É uma força combativa; assim, mostrar agressividade é aceitar o conflito com o outro, sem precisar submeter-se a ele, pois, como o medo está presente em cada indivíduo, ele juntamente com a emoção, dispara o instinto de sobrevivência e mobiliza o ser humano para se proteger. De fato, é necessário que o medo seja domesticado, ou seja, que os sentimentos que ele provoca sejam dominados, a fim de que a agressividade não seja uma violência destrutiva.

No Capítulo 3, o autor discorre sobre a violência, especificando que ela surge de um desejo ilimitado que se confronta com os limites impostos pelos desejos dos outros. Ser violento, conforme Kant, é “usar a outra pessoa simplesmente como meio, ignorando o princípio de que as outras pessoas, como seres racionais, devem sempre ser consideradas também fins”.

Certamente, todos estão de acordo com o autor, posto que a violência é um abuso em si. Com certeza, pois o autor tem razão: toda violência contra o ser humano é uma violação: a violação do seu corpo, da sua identidade, da sua personalidade, da sua humanidade; ela é brutal, ofensiva, destrutiva e cruel; afeta o semblante, deformando-o em virtude do sofrimento infligido; toda violência é desfigurante, é despersonalizante.

E o pior: as pessoas violentadas pela experiência verificam que também são capazes de ser violentas com os outros. Portanto, a violência fere e marca também o semblante do perpetrador. O resultado, conforme Weil, é que a prática da violência petrifica o ser humano, transforma o perpetrador e a vítima em um “coisa”, que os despersonaliza completamente.

No quarto Capítulo, Muller escreve sobre a não violência, esclarecendo que, para Gandhi, a não violência perfeita é a total ausência de animosidade em relação a tudo quanto vive. Em sua forma ativa, a não violência se expressa como cordialidade em relação a tudo que vive.

Assim, o primeiro requisito para a não violência é a negação: é preciso que se deixe de lado toda animosidade em relação ao nosso semelhante.

A animosidade, na visão de Kant, é determinada pelo egoísmo, no sentido de amor exclusivo por si mesmo, sendo que o cuidado de si não deixa lugar algum para o cuidado dos outros. Quando o ser humano age “sempre se defronta com seu querido eu, que nunca deixa de aparecer no final, e o resultado, como se observa cotidianamente, é que, quando dois indivíduos se encontram, cada qual desejando fazer que seus próprios desejos, necessidades e interesses prevaleçam, “segue-se de modo inevitável um confronto, que tende perigosamente à violência, que nada mais é que o choque entre dois egoísmos. Por isso, com certeza, é preciso proibir-se o cometer-se violência contra qualquer pessoa. Cada pessoa deve agir de tal forma que seu comportamento e suas decisões possam ser considerados adequados para todos, ou seja, que possam ser universalizados. E é necessário que aquele que parte para a violência reflita sobre: que parte da sua natureza vai decidir cultivar em si próprio? Nos outros e especialmente nas crianças, a decisão a ser tomada envolve tanto uma escolha filosófica quanto educacional, pois o ser humano que é capaz de ser razoável e/ou violento, tem a liberdade de escolha: diante de uma provocação, ou usar a violência ou usar a razão.

No quinto capítulo, explicando sobre a democracia, o autor coloca que o que dá a cada ser humano o autocontrole e os recursos, para dizer sim ou não à violência, de acordo com sua avaliação pessoal, é a educação.

Esse autocontrole permite participação, e participação significa democracia. Por isso, as crianças, na escola, devem ter espaço para praticar a democracia, devem ser incentivadas para usar esse espaço, que pode ser expandido à medida que os alunos forem crescendo. Aprendizado esse que deve permanecer sob a autoridade de adultos que devem estabelecer limites e, em alguns casos, limites não negociáveis com as crianças.

Entretanto, democracia tem um significado mais essencial: um governo que respeita as liberdades, os direitos humanos. Ela é uma aposta na sabedoria do povo. Sabe-se que a verdadeira democracia não é o governo do povo, mas dos cidadãos, e o ideal democrático implica uma igual distribuição entre os cidadãos, não só de poder, mas de propriedade e conhecimento. O fundamento da política é o diálogo humano e não a violência, pois essa só acontece entre os seres humanos quando o diálogo é interrompido. A cidadania jamais deve basear-se na disciplina cega, mas na responsabilidade e na autonomia pessoal de cada um.

No sexto capítulo, o autor comenta a mediação, que significa um método de regulação não violento de conflitos, ou seja, é a intervenção de um terceiro que se coloca entre os protagonistas de um conflito, entre dois adversários, alguém que se virou contra, que está em oposição e podem ser dois indivíduos, duas comunidades ou duas nações que se enfrentam e se opõem uma à outra. O objetivo da mediação é levar os oponentes a se voltarem um para o outro, a fim de dialogar, entender-se mutuamente e, se possível, encontrar um acordo capaz de abrir caminho para a reconciliação. Contudo, a mediação só pode acontecer se os dois adversários concordarem em se envolver voluntariamente no processo conciliatório. O importante é saber se o papel vital do mediador é facilitar a expressão e incentivar a escuta de ambos os lados, a fim de restabelecer a comunicação, dirimir os mal-entendidos e permitir a compreensão mútua.

No sétimo capítulo, Muller esclarece sobre os maus-tratos, colocando que o mundo da escola encontra-se na intercessão de três espaços: a família, a vida econômica e a vida política. A tarefa assumida pelos educadores – de formar uma criança tendo em vista basear o plano educacional nos princípios da não violência – bate de frente com a realidade, na qual as coisas facilmente se desviam para bem longe desse ideal, pois as crianças vão à escola e levam consigo todos os problemas que encontram: situações de violência dentro da própria família ou na vizinhança, até mesmo dentro dos portões da própria escola. Isso posto, conclui-se que é importante que os professores estabeleçam relações de cooperação com os pais e pessoas com responsabilidade pessoal, porque o abuso ou maus-tratos contra crianças é uma das categorias de violência mais disseminadas na nossa sociedade. Comprovadamente, essa violência causa traumas graves, que deixam marcas duradouras em sua vida afetiva e psicológica.

Também, que as primeiras relações que a criança tem com as pessoas mais próximas e mais queridas contribuem de forma decisiva para a construção de sua identidade. A criança que experimenta a violência, muito provavelmente, se tornará um adulto violento, corre sérios riscos de se tornar incapaz de respeitar os outros e, ainda mais, estudos já comprovaram que as crianças que são respeitadas e amadas pelos mais íntimos durante sua infância ficam predispostas a respeitar e a amar os outros e têm força para resistir ao desprezo, à raiva e à coisificação por parte do outro. Por isso, erradicar a violência contra as crianças é um grande desafio, e é dever dos professores denunciar as violações, as negligências observadas nas crianças que educam.

No oitavo capítulo, o autor discorre sobre a delinquência e explica que a escola faz parte da comunidade onde está inserida. A criança é diretamente afetada pela delinquência com a qual seus alunos estão envolvidos fora dos portões da escola. A violência parece ser o último recurso dos indivíduos privados de toda e qualquer participação na vida da comunidade, e sua violência é uma demonstração de sua existência.

Ela exerce um fascínio para os que se sentem excluídos e, por isso,  humilhados. Ela é um pedido de socorro, é a expressão do desejo de comunicar-se. É obrigação da sociedade ouvir esse grito. É preciso entender a violência para também proibi-la. A violência é sinal de que os que se entregaram a ela não foram capazes de encontrar limites, e estão pedindo que lhes sejam agora impostos. As crianças e os adolescentes precisam enfrentar os limites estabelecidos pela autoridade dos adultos, pois esses oferecem a eles a segurança necessária para que consigam estruturar sua personalidade. A ausência de limites fá-los mergulhar em ansiedade, e a ansiedade gera violência. Mas os adultos só conseguirão demarcar os limites novamente se eles mesmos exibirem uma atitude não violenta. É na escola básica que um professor atento, observador, pode detectar aquela criança que está indo diretamente para a delinquência: comportamento antissocial, grosserias, agressão verbal, provocações. Já nos primeiros anos de escola, é preciso frear esse processo com a mediação de especialistas no assunto.

No nono capítulo, o autor ensina que se deve educar a criança em cidadania. Explica que, através da educação, deve-se ter em vista erradicar a violência, e, como as leis justas são o fundamento do Estado Democrático de Direito, na escola, as regras estabelecidas pelo professor devem levar as crianças a aprender a conviver num ambiente de respeito mútuo.

No décimo capítulo, o autor escreve sobre a autoridade, explicando que uma educação não violenta não decreta que os adultos devem deixar de exercer sua autoridade, pois, para que a personalidade da criança se estruture, é preciso que aprenda a obedecer, e o adulto deve exigir obediência. Nesse viés, acredita-se que a autoridade do adulto deve prevalecer sempre, mas sempre através de um processo de comunicação e diálogo que permita à criança sentir que o mundo da escola é seu, que é um lugar onde ela tem o direito de falar, onde seus pontos de vista serão ouvidos e levados em conta, pois é muito fácil uma criança passar dos limites. O essencial é que a educação fomente a autonomia ao invés da submissão; uma mente crítica em vez de obediência passiva; responsabilidade em lugar de disciplina; cooperação em substituição à competição; e solidariedade no lugar de rivalidade. Segundo o entendido, quando há submissão demais, surge um adulto sem caráter. A criança precisa entender que a não violência é lei universal, ou seja, o princípio ético que qualquer ser racional deve observar. A base da vida comunitária não é o amor, mas a justiça e o respeito pelos direitos de todos.

No décimo primeiro capítulo, ao explanar sobre a “solução construtiva de conflitos”, o autor advoga que o relacionamento entre professor e aluno jamais estará livre de conflitos, e é responsabilidade do adulto não suprimir esses conflitos em nome da submissão da criança. O educador deve buscar soluções construtivas para os conflitos que surgem, cedendo espaço para as necessidades e solicitações expressas pela criança.

Isso a ajudará a construir autoconfiança, pois o ambiente da sala de aula se torna insuportável, quando os dois extremos de uma situação levam professores e alunos a um impasse. E ninguém é beneficiado. Fato esse absolutamente visível, pois a construção da autoconfiança não é apenas o fim primeiro da educação, mas também o meio. É importantíssimo que o professor envolva os alunos na busca de soluções, devendo apelar à criatividade dos alunos e ter a ousadia de perguntar a eles que soluções proporiam. O lugar onde a violência surge com muita frequência, comprovadamente, é no pátio da escola. O professor sempre precisa ficar muito atento, pois é importante sempre que haja adultos por perto nesses momentos para garantir o cumprimento das regras no pátio: separar as crianças que brigam, terminar com a violência e descobrir, através do mediador (pai, professor ou até mesmo um aluno preparado), a origem dos conflitos, permitindo que a criança perseguida se sinta protegida, pois o seu papel é restabelecer a comunicação entre as partes em conflito, permitindo que cada um apresente seu ponto de vista. Desse modo, o adulto estará ajudando a criança a solucionar, juntamente com a outra, o desentendimento. Considera-se de suma importância a tese do professor Muller ao colocar que a não violência se apresenta como o único meio para garantir a convivência pacífica e a justiça entre todos os seres humanos. Esse princípio deve, pois, ser ensinado cotidianamente, nas escolas.

Referências

MULLER, Jean-Marie. Não violência na educação. Trad. de Tônia Van Acker. São Paulo: Pala Athena, 2006. 110 p.

Karin Zanotto – Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]

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Educar para a paz em tempos difíceis – JARES (C)

JARES, Xesús R. Educar para a paz em tempos difíceis. Trad. de Elizabete de Moraes Santana. São Paulo: Palas Athena, 2007. Resenha de: BASSO, Nestor. Conjectura, Caxias do Sul, v 14, n. 3, p. 201-207, set/dez, 2009.

Xesús R. Jares, autor de Educar para a paz em tempos difíceis (2007), nasceu em Vigo, Espanha, e faleceu em setembro de 2008. Doutorou-se em Pedagogia pela Universidade de Santiago de Compostela, catedrático de Didáctica e Organización Escolar na Faculdade de Ciências da Educação na Universidad de la Coruña. A cátedra foi obtida com “Modelos de educación para la paz y el desarrollo”. Foi fundador e coordenador do Colectivo Educadores pela Paz, em 1983, na Galícia. Também foi membro do Comitê Executivo da Associação Internacional de Educadores para a Paz (AIEP) e presidente da Associação Galego-Portuguesa de Educação para a Paz (AGAPPAZ). Publicou diversas obras e, dentre os principais títulos, destacam-se Pedagogia da convivência, Aprendendo a conviver e Educação e direitos humanos.

Na obra que dá o título a esta resenha, Jares introduz a educação para a paz (EP) como se fosse uma carta topográfica. Pretende explicar e levantar um mapa global da educação para a paz. Diz: “Se, como sabemos, educar para a paz é sempre um processo complexo e problemático, não há dúvida que compreender essa necessária e atrativa tarefa torna-se ainda mais relevante nos tempos difíceis e incertos em que vivemos.” (p. 11).

Destaca a diversidade de alunos e o choque de valores que permeia a comunidade educacional, no contexto atual, como fatores e dificuldades da área. Lembra que, quando as condições são mais difíceis, deve-se atuar com mais “compreensão e paixão” (p. 11), pois aceitar a situação como ela se apresenta não ajuda a transpor as dificuldades. As condições difíceis devem ser transpostas com inteligência, muito trabalho e com harmonia.

Jares deixa claro, em suas reflexões, que não se pode hesitar e nem transigir diante da violência, em especial, no que diz respeito à educação. Alerta que, à educação deve-se dedicar maior atenção, pois, no longo prazo, dela se pode esperar melhores frutos. E, dentre os diversos aspectos pertinentes à educação, sobre dois deles entende ser fundamental debruçar-se: o conteúdo dos programas educacionais e a formação dos professores.

O conteúdo precisa tratar da cultura da paz e dos direitos humanos; os professores devem ser entendidos como agentes/condutores do processo educacional e para tal preparados. Constrói a obra Educar para a paz em tempos difíceis dividida em quatro capítulos. O Capítulo 1 apresenta as bases teóricas da educação para a paz iniciando pela contextualização histórica. Mostra os elementos teóricos e as implicações educativas do modelo de EP que defende e o denomina “crítico, conflituoso e não violento”. Em primeiro lugar, escreve que a EP, em seu percurso histórico, tem um legado amplo, rico e plural, estruturado em quatro grandes ondas, que passam pelas disposições à Escola Nova, contribuições da Unesco, pesquisa para a paz e subsídio pedagógico da não violência. Em segundo lugar, analisa os conceitos básicos nos quais sua proposta de EP se fundamenta: paz positiva, que se volta à perspectiva criativa do conflito, ou seja, compreensão de que a paz não é o contrário da guerra, mas da violência, e que abarca questões de sustentabilidade, justiça, igualdade, desenvolvimento, direitos humanos, entre outras. Em terceiro lugar, esclarece o significado de educação para a paz, vendo-a como um processo contínuo e permanente “a partir – e para – determinados valores, como a justiça, a cooperação, a solidariedade, o compromisso, a autonomia pessoal e coletiva e o respeito”. (p. 45). Em quarto lugar, trata dos componentes que constituem a EP, provenientes da sua evolução histórica. Por quinto aborda e examina as implicações do modelo no que se refere à prática na escola, no que pertence à estrutura e organização dos conteúdos, ao método didático-pedagógico e aos aspectos da aprendizagem e à avaliação dos resultados.

O Capítulo 2 aborda educação e direitos humanos e analisa a relação entre os dois conceitos. Estrutura o capítulo em três pontos. No primeiro, desenvolve suporte conceitual de direitos humanos, situando-os como questão central e importante. Entende o sentido de dignidade do ser humano como uma condição moral a ele conexa, sem nenhum tipo de distinção, seja da econômica, física, cultural, seja ela racial, sexual, etc. Passa pela ideia da universalidade dos direitos humanos e pelo entendimento de que são fruto de um processo histórico e, portanto, uma “concepção construída historicamente”. (p. 75). No segundo, trata dos princípios didáticos mais importantes a partir dos quais deve ser analisada a opção educacional. Entende que as estratégias didáticas para operacionalizá-la devem estar inspiradas: na vivência dos direitos humanos; na conexão com a prática do dia a dia da escola e o ambiente em ela que se insere; no entendimento de que “a educação para os direitos humanos, como parte da educação para a paz, é uma educação pela ação e para a ação” (p. 82), dentro de uma visão mutável de realidade e suscetível de transformações; no envolvimento do aluno no processo de ensino e aprendizagem estimulado-o a interagir e a dar sua contribuição na escolha do método; na definição dos fins e na própria avaliação dos resultados; no cuidado com as coerência dos enfoques, preferentemente globalizantes e interdisciplinares, mas homogêneos e coerentes com o fim que se busca e, finalmente, na compreensão de que o processo de ensino e aprendizagem não pode estar despido do componente afetivo e experiêncial. “É preciso agregar-lhe os afetos, as percepções, os sentimentos e as sensações das experiências vitais dos educandos.” (p. 86). No terceiro, faz uma análise das diretrizes organizacionais essenciais a partir das quais é recomendado tratar a educação para os direitos humanos. E, na dimensão organizacional, Jares diz que “um projeto curricular de educação para a paz e direitos humanos tem de abordar a relação dos termos organizacionais – estrutura, normas, estilo de direção, participação, comunicação, sistema de relações, tratamento de conflitos, avaliação institucional, etc. – com os valores e objetivos que tal projeto busca”. (p. 87).

Destaca a importância da criação de um clima de confiança, segurança e apoio mútuos no ambiente escolar, e o situa como fator que torna o trabalho mais agradável tanto para os professores como para os alunos. Essas condições fazem emergir uma atmosfera de interatividade positiva para o desenvolvimento das atividades que favorecem, entre educandos e educadores, a comunicação, o respeito, o interesse e o compromisso coletivo voltados à consecução da paz e dos direitos humanos. A escola, assim constituída e democraticamente organizada, torna-se terreno fecundo para a consolidação da educação para a democracia e para os direitos humanos e, complementarmente, facilita o desenvolvimento e a utilização de estratégias para uma solução não violenta dos conflitos que surgem no cotidiano. A resolução de conflitos, nesse contexto, sedimenta a democratização dos centros escolares e a emancipação dos membros envolvidos.

O Capítulo 3 trata da educação para a paz depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 e 11 de março de 2004, em Nova York e Madrid, respectivamente. O autor, não obstante o rastro de dor que a violência terrorista causou nos Estados Unidos e em Madrid, lembra que a educação para a paz é uma necessidade anterior a esses eventos (e aos que os sucederem). “A violação dos direitos humanos, a injustiça social, a precarização do trabalho, a pobreza – o chamado genocídio silencioso – não são conseqüência do atentado nos Estados Unidos” (p. 110) refere ele. Na verdade, a gravidade desses fatos mostra, com muita clareza, a necessidade de intensificar e divulgar os princípios e valores da educação para a paz, bem como a reordenação de seus conteúdos e possibilidades de estudo.

Para o autor, a devastadora passagem dos atentados, recém-referidos, provocou consequências como: a retomada da ideologia do bem contra o mal – nós os bons, diante dos outros, os maus –; favorecimento à militarização da sociedade e às intervenções militares; perda de determinadas liberdades e violação de direitos, agudização de comportamentos discriminatórios, transformação dos direitos humanos em uma das principais vítimas (sem direitos humanos não pode haver segurança nem democracia) e imposição de uma visão unilateral de mundo – reforço da hegemonia mundial dos Estados Unidos.

Os meios de comunicação, entende Jares, deram ampla e retumbante divulgação ao atentado que causou a queda das torres gêmeas e que ceifou a vida de mais de três mil pessoas em Nova York. O episódio que acabou se transformando em um marco cruento da história recente da violência, por nenhum motivo pode ser minimizado, e nem seus causadores devem ser aliviados dos rigores da justiça. Observa que há outros atentados que assolam o universo… No mesmo instante em que se dava essa tragédia, muitos milhares de pessoas entregavam sua vida à eternidade, vítimas de outras mazelas (evitáveis) que arruinam o mundo, como, por exemplo, a fome e a miséria. Para Jares, “seja no campo social, seja no educativo, essa realidade deve ter prioridade absoluta, na medida em que a pobreza envergonha a existência da humanidade, por ser causadora do maior número de mortes e sofrimento no planeta”. (p. 116-117).

Dentre as tantas formas que expressam outras situações de violência situam-se: o aumento vertiginoso da dívida externa, o aumento da pobreza, a redução da ajuda ao desenvolvimento que amplia a distância entre ricos e pobres e a flexibilização das condições de trabalho que implicam a precarização do próprio trabalho. Para o autor, não ter trabalho remunerado, digno e estável significa caminhar na direção do progressivo aumento da exclusão social, que desemboca num contexto de precariedade humana “produzindo” a formação de pessoas dóceis, submissas e intimidadas nas suas reivindicações; pessoas em constante ambiente de conflito.

“Os atentados de 11 de setembro reforçaram a ideia de priorizar a educação para o conflito e sua solução não-violenta, a educação para o desenvolvimento e a educação multicultural e anti-racista.” (p. 131). Para levar adiante a implementação dessa proposta educacional, é preciso que se priorizem: o valor da vida humana e a cultura da não violência; a busca da verdade e o ensino da verdade histórica; a busca da verdade que leve, necessariamente, às causas dos problemas tais como: desigualdade, miséria, terrorismo, fundamentalismo de grupos e outros; a valorização da justiça e a rejeição da vingança e do ódio; o combate ao medo que obstaculiza a racionalidade e nega a essência do sentido educativo; a luta contra a ignorância e a manipulação do processo informacional; o direito à educação, à democracia; os direitos humanos e o Estado de Bem-Estar Social; reformas que façam das Nações Unidas uma autêntica organização internacional, mais democrática e operativa; a possibilidade de alternativas a um mundo desigual, injusto e violento que tornem conhecidas as conquistas da população e a educação como esperança e compromisso social, no papel de transformadora de situações injustas e perversas.

O Capítulo 4 aborda a educação para a convivência como processo de alfabetização em conflitos. Diz Jares: “Educar é uma tarefa nobre, complexa e difícil, porém atrativa e necessária, uma constatação que nos parece cada vez mais transparente à medida que avançamos na idade e, talvez em conhecimento.” (p. 157). No campo educacional, os fundamentos e os âmbitos de estudo têm se tornado cada vez mais complexos. O crescente multiculturalismo, a globalização, a violência e os conflitos de toda espécie plasmam sociedades complexas. A convivência em sociedade está mais complexa, tornando-se necessário e urgente construir o aprendizado do convívio. Para o autor, aprender a conviver é um dos pontos em que deve se alicerçar a educação para o século XXI, uma vez que a carência de aprender a conviver se configura em “uma necessidade inadiável de todo projeto educacional, além de uma requisição formal de nossas leis”. (p. 159). O desenvolvimento de um projeto educacional que opere com eficácia num mundo desigual, injusto e violento, precisa ser conduzido por bons educadores. Educadores, que saibam trabalhar com o aprendizado do convívio, da equidade, da justiça social, da liberdade, dos direitos humanos, e que cultivem a educação para a paz, sem exceção.

Precisa-se empreender uma prática docente em que o ensino dos conteúdos não se faça de maneira fria, mecânica e falsamente neutra. Para essa realidade, infelizmente, não se pode esquecer que “ainda é clara e indubitavelmente deficitária a formação de docentes em temas de paz, resolução de conflitos, etc.” (p. 162).

No âmbito e no campo específico da formação de docentes, a capacitação em termos de paz, resolução de conflitos, democracia, direitos humanos, etc. continua sendo assustadoramente deficitária, como atestam as investigações do autor. A educação para a paz perpassou os umbrais da universidade mais tarde do que as demais etapas do sistema educacional, e os estudos a respeito dela ainda enfrentam desconfiança e rejeição acerca da idoneidade ou da cientificidade por parte dos acadêmicos. No estudo da educação para a paz, “aposta-se em alguns valores explícitos, na consideração da educação como uma atividade política e na orientação para a ação, que se chocam com as concepções técnicas e científicas da educação e, consequentemente, seriam descabidos na academia orientada pelo pensamento tecnocrático”. (p. 163). Os professores precisam ser preparados com habilidades e conhecimentos teórico-práticos dos conteúdos-chave que devem fazer parte do processo da formação dos jovens. Devem ter a compreensão positiva de conflitos, isto é, entender que é necessário enfrentá-los como um valor que pode e deve gerar debates que acabam resultando em base para a crítica pedagógica. O conflito não é algo que tenha um jeito único e, portanto, uma resposta generalizada para todo tipo de situação. A intervenção tem de valer-se da combinação de saberes vertidos das diversas disciplinas que se ocupam da matéria.

Ainda, outros aspectos são igualmente importantes e fundamentais na preparação do quadro docente. Para Jares, o professor deve saber distinguir e considerar o que há de diferente entre agressividade e violência.

A agressividade faz parte da conduta humana, entendida como combatividade positiva, como força para a autoafirmação física e psíquica do indivíduo, e não necessariamente deva se transformar em violência.

Ao professor cabe distinguir, separar e intervir de forma adequada. Diante dos conflitos devemos ser duros com os problemas, mas sensíveis com as pessoas. (GANDHI apud JARES, 2008).

Jares considera que é fundamental planejar o trabalho educacional para a convivência. Ensina que “a aprendizagem da convivência não pode ser uma tarefa improvisada”. (p. 177). Tanto o espaço onde se dá o processo de ensino e aprendizagem quanto a estrutura curricular precisam ser planejados e organizados tendo presente o conjunto dos protagonistas e as ações da comunidade educacional.

Quando trata do estímulo a uma cultura da paz, Jares assim se pronuncia: “Consideramos que a educação para a convivência não pretende transmitir unicamente determinadas estratégias e habilidades para resolver conflitos.” (p. 185-186). Para ele há um objetivo mais amplo e ambicioso: “construir uma nova cultura e relações sociais onde a violência não faça sentido”. (p. 186). Uma cultura que respeite a diferença, a diversidade de raças, as culturas e os credos. Uma cultura de solidariedade, de tolerância e implacável na defesa da liberdade, da democracia e dos direitos humanos. É preciso aprender a conviver.

Referências

JARES, XESÚS R. Educar para a paz em tempos difíceis. Trad. de Elizabete de Moraes Santana. São Paulo: Palas Athena, 2007. 193 p.

Nestor Basso – Professor no Centro de Ciências da Administração. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul

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Competência discursiva e gêneros textuais: uma experiência com o jornal de sala de aula – BALTAR (C)

BALTAR, Marcos. Competência discursiva e gêneros textuais: uma experiência com o jornal de sala de aula. Caxias do Sul: Educs, 2006. Resenha de: FARENZENA, Deline. Desafio ao tradicional. Conjectura, Caxias do Sul, v. 14, n. 2, p. 255-261, Maio/Ago, 2009.

Ao mesmo tempo que os professores falam e propõem aos seus alunos atividades de produção textual, devem se instrumentalizar acerca de aspectos que envolvem a produção de um texto. É por isso que produzir textos não é tão simples quanto parece, pelo menos não da maneira como nos propõe Marcos Baltar – professor no Departamento de Letras da Universidade de Caxias do Sul – RS. Para ele, produção textual abrange, entre outros aspectos, leitura e escrita de gêneros textuais diversificados e, em especial, o desenvolvimento da competência discursiva.

Nesse seu livro Competência discursiva e gêneros textuais: uma experiência com o jornal de sala de aula, resultado de sua Tese de Doutorado, realizado na Universidade Federal do Rio Grande Sul (UFRGS), sob a orientação do Professor Dr. Paulo Coimbra Guedes, o autor se refere às contribuições que o jornal pode trazer ao ensino de línguas e, dessa forma, dirige-se tanto àqueles que desenvolvem pesquisas a respeito da linguagem quanto aos que estão, de alguma forma, ligados à educação.

As duas partes que compõem o livro: percurso teórico e jornal de sala de aula complementam-se entre si. Da primeira, fazem parte os capítulos sobre competência, gêneros textuais e ações pedagógicas, essas necessárias ao desenvolvimento da competência discursiva escrita. Nessa parte, destacam-se os estudos de Hymes, cujo objetivo é compreender a capacidade dos indivíduos como membros de uma comunidade linguística. Sendo assim, considera o contexto, o que o torna diferente de Chomsky. Destacam-se, também, as contribuições da linguística, da sociologia e da psicologia em relação ao desenvolvimento dos estudos sobre gênero, havendo espaço também para tratar do interacionismo sociodiscursivo, proposto por Bronckart. Quanto às ações pedagógicas, dá maior importância à pedagogia de projetos, em que o foco deixa de ser o ensino e passa a ser a aprendizagem.

Da segunda parte, extraem-se dois capítulos: “O processo histórico-metodológico da pesquisa”, em que o autor relata a própria experiência e o trabalho realizado em duas escolas; e “Os gêneros textuais do jornal de sala de aula”, em que explicita qual é a relevância de desenvolver um trabalho com gêneros, bem como os resultados da pesquisa.

Além disso, um grande ponto a favor, nesse livro, é terem sido anexados os jornais produzidos em sala de aula nas escolas onde desenvolveu a pesquisa. Sobre isso, é válido comentar que uma proposta como essa traz inúmeros benefícios ao processo de ensino e aprendizagem da língua materna, tornando-a enriquecedora, pois, de certo modo, ela se afasta dos moldes tradicionais de produção textual, que objetivam apenas atribuir uma nota e que, portanto, dissociam a produção de seu uso real da linguagem, que é a comunicação. Nesse sentido, Freire (1996, p. 18) já defendia que “transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador”.

Também merece destaque a escolha feita por Baltar, ao optar em realizar a construção de um jornal que, além de reunir uma vasta diversidade de gêneros, é também um “suporte” para esses. Além disso, por meio da produção dessa obra, percebe-se que novos gêneros surgiram, frutos da atenção que os alunos dedicaram aos próprios assuntos escolares. Desse modo, percebe-se, ainda, o quanto um trabalho como esse pode gerar um envolvimento maior dos alunos, fazendo com que se sintam responsáveis pela sua produção e que se comuniquem mais no próprio grupo e com os outros. Sem dúvida, a proposta de Baltar pode ser considerada uma forma de tornar o ensino de língua mais real e, portanto, mais significativo àqueles que a estudam.

Diante disso, não há como finalizar esta análise sem indicar que tal obra cabe muito bem aos professores que desejam dar início à realização de um trabalho com jornal em sala de aula, uma vez que o jornal permite não somente a leitura e a produção de gêneros diversificados, como também o contato com o mundo externo, repleto de acontecimentos, e, dentre eles, cita desde os problemas sociais até os progressos da ciência e os avanços tecnológicos, que precisam ser encarados pelo aluno para que se torne um ser muito mais crítico e autônomo em relação ao que acontece ao seu redor.

É por isso que, voltando ao professor e, mais precisamente, ao papel que desempenha, Freire (1996) destaca que o educador tem o dever de reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão, fazendo-o sair da comodidade. E reforça que essas condições implicam ou exigem a presença de educadores e educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes. E talvez seja justamente esse objetivo, dentre outros, que o trabalho de Baltar visa a alcançar, bem como, talvez sejam esses comportamentos ou atitudes desse tipo que seu livro busque despertar ou seria provocar?

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 304. (Coleção Leitura)

Deline Farenzena – Mestranda no Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

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História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: ensino primário e secundário no Brasil – SOUZA (C)

SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: ensino primário e secundário no Brasil. São Paulo: Cortez, 2008. Resenha de: BERGOZZA, Roseli Maria. História da educação: uma forma de aprender. Conjectura, Caxias do Sul, v. 14, n. 2, p. 255-260, maio/ago, 2009.

A autora Rosa Fátima de Souza, licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia, atualmente é professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Unesp (SP), Pós-Doutora pela University of Wisconsin (EUA) Obteve o título de Mestre pela Universidade de Campinas (SP). Realizou estágio de Doutorado na Universitad Autónoma de Barcelona. Seus trabalhos têm versado especialmente sobre temas como: cultura escolar, história do Ensino Fundamental e do Médio (nomenclatura atual), do currículo e do patrimônio histórico escolar. É livre-docente pela Unesp desde 2006.

A obra é composta por quatro capítulos, constituídos por estudos específicos sobre a história do ensino no Brasil. O primeiro capítulo aborda as transformações ocorridas no currículo da então escola primária entre os anos de 1890 e 1960. O segundo analisa a configuração do currículo predominante na Primeira República. O terceiro examina as transformações ocorridas na educação, entre as décadas de 30 e 60, contemplando as reformas educacionais de 1931 e 1942. O último capítulo aborda os Ensinos Fundamental e Médio, seguindo a lógica das novas concepções educacionais vigentes na época, amplamente difundidas no País, a partir da década de 60, como, por exemplo, a cultura técnica e científica, a educação para o trabalho e as transformações na cultura escolar brasileira.

Inicialmente, a autora faz uma reflexão histórica sobre as transformações da cultura escolar brasileira no século XX e traça um panorama mundial sobre os procedimentos didáticos e as tendências pedagógicas, anteriores ao século XX. Educar o povo seria uma preocupação central do projeto educacional republicano, e caberia à escola primária moldar o novo cidadão, para conviver com a nova e moderna sociedade. Nesse período, a crença no poder da escola tornouse uma ideia muito difundida, tendo a escola primária a atribuição de moldar o caráter das crianças, “incutindo-lhes especialmente valores, virtudes, normas de civilidade, e de amor ao trabalho”, ajudando na construção e consolidação da Nação brasileira. A veiculação desses valores cívico-patrióticos se fazia necessária, de tal forma que, segundo a autora, se buscou fazer da escola primária uma instituição eminentemente republicana.

Muitas das análises realizadas pela autora levam em consideração a realidade e dados relativos ao Estado de São Paulo. Porém, sempre que possível, estabelece relações com as transformações da cultura escolar no Brasil.

Em 1890, a reforma inicia pela Escola Normal, ampliando os programas e excluindo a educação religiosa, reafirmando a laicidade da escola pública e adotando o método intuitivo como marco de renovação educacional. Em 1892, com a mudança no sistema de eleições dos 14 milhões de habitantes estimados na época, só era permitido votar a quem soubesse ler e escrever. Por esse emotivo a maioria da população brasileira encontrava-se fora da participação política, posto que a taxa de analfabetismo aproximada, na época, era de 85% da população, caracterizando, assim, um grande problema a ser resolvido na incipiente República.

Souza considera que a institucionalização da escola pública primária no Brasil, no início do século XX, ocorreu por um processo de múltiplas diferenciações, incluindo os critérios de seleção escolar que eram rígidos e reveladores de contradições: seria uma educação voltada para o povo, mas altamente hierarquizada e excludente. No entanto, as Escolas Normais tiveram um papel determinante na formação do magistério primário de acordo com os ideais da escola republicana e da moderna pedagogia.

Segundo Souza, olhar para as práticas de ensino nos permite olhar também para a cultura escolar primária. Os exemplos que a autora utiliza mostram a identidade cultural, peculiar das escolas primárias. Essas foram sendo construídas através dos hábitos diários, como, por exemplo, a formação de fila para entrada na escola, o canto do Hino Nacional, a chamada, o registro, no caderno, do cabeçalho, as respostas em coro, as arguições orais, a exigência de silêncio. Como não nos é possível reconstruir o universo escolar, olhar para as práticas nos possibilita uma relativa aproximação com a cultura escolar primária.

Destacam-se, também, as práticas simbólicas que, realizadas nas instituições escolares, contribuíram para consolidar as ideias, os valores e as representações sociais ligadas à constituição de nacionalidade, como o respeito aos símbolos nacionais, o sentimento patriótico e, principalmente, o reconhecimento do valor social e cultural da escola.

A divulgação e a publicidade da escola no meio popular também se deram pelas comemorações cívicas, religiosas, festas de encerramento, exposições de trabalhos, preleções, dentre outras. Nessas celebrações, as instituições escolares contribuíram para a preservação da memória nacional, além de agir sobre o imaginário e os sentimentos das famílias, dos alunos, propiciando uma grande visibilidade para a escola perante a sociedade.

Na década de 20, surgiram novas práticas, como, por exemplo, a constituição de corpos saudáveis e viris, o ideal de patriotismo, o canto orfeônico criado para desenvolver o gosto artístico pela poesia e pela música nacionais.

Na década de 30, o ensino primário foi organizado sob os princípios da Escola Nova. No texto, a autora relaciona nomes importantes do movimento escolanovista brasileiro, os quais passaram pela direção do ensino público de São Paulo, como, por exemplo, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Sud Mennucci e Almeida Júnior.

A nova pedagogia escolanovista explicitava a orientação através de indicações metodológicas já descritas no Código de Educação do Estado de São Paulo, em 1933, como, por exemplo, “o ensino terá como base essencial a observação e a experiência pessoal do aluno, e dará a este largas oportunidades para o trabalho em comum, a atividade manual, os jogos educativos e as excursões escolares”.1 De acordo com a autora, os princípios doutrinários da Escola Nova reagiram contra a determinação sistemática e lógica dos programas, principalmente os utilizados pela escola primária, que foi um dos temas centrais nos projetos de modernização da sociedade brasileira, propagado pelos republicanos.

O então ensino secundário no Brasil tinha suas bases nos seminários e colégios jesuítas fundados na época colonial. Com as reformas pombalinas de 1759 e 1772, foram instaladas as aulas régias de latim, grego, retórica e filosofia. No entanto, a escola secundária, no início do século XX, destinava-se ao atendimento de um grupo minoritário, geralmente de representantes de grupos sociais com algum poder aquisitivo e expressava o interesse por estudos desinteressados, não havia relação com o mundo do trabalho. A autora afirma: “A formação das classes dirigentes continuou privilegiando a arte da expressão, a erudição lingüística, o escrever e o falar bem, o domínio das línguas estrangeiras e a atração pela estética literária.” (SOUZA, 2008, p. 89-90).

Porém, não era consensual essa padronização, tanto que Souza recorre a vários autores para explicitar que, no fim do Império, o ensino secundário encontrava-se em situação precária, e a questão da cientificidade, nos estudos secundários, já estava sendo discutida. Os defensores dessas ideias propalavam o preparo dos jovens para fazer frente aos novos desafios da sociedade moderna.

Em 1890, a reforma instituída pelo Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, Benjamin Constant, embora de orientação positivista, buscou a ampliação e a formação científica na educação secundária, contudo não chegou a se consolidar. As dificuldades notadas entre 1890 e 1900 declaram os entraves em ordenar um currículo estável, sendo, inclusive, dessa época, o Exame de Madureza, conferido aos concluintes do Ensino Secundário, para verificar os conhecimentos e o desenvolvimento intelectual desses alunos. Caso obtivessem êxito, lhes era conferido o grau de Bacharel em Ciências e Letras.

O caráter seletivo do ensino secundário evidenciou-se no início do século XX, tanto que a maioria dos estados brasileiros manteve, até 1930, um único ginásio público instalado nas suas capitais, a demanda era atendida pela iniciativa privada. A autora coloca dados, como, por exemplo: que o Brasil, em 1907, possuía 373 unidades escolares, 172 para o sexo masculino e 77 para o sexo feminino. Nessas escolas, encontravam-se matriculados 30.426 alunos, sendo que 23.413 eram do sexo masculino.

No fim da Primeira República, o ensino secundário foi tema de muitos debates na sociedade brasileira. No Congresso de Instrução Superior e Secundária, em 1922, realizado no Rio de Janeiro, algumas discussões giraram em torno de vários temas, dentre eles: a exigência ou não do latim como disciplina obrigatória. A síntese das teses e recomendações desse congresso estão publicadas na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, na seção documentos de 1944.

A autora afirma que, através da reforma de 1925, conforme Decreto de 13 de novembro de 1925, mesmo indiferente aos debates sobre a divisão do ensino secundário em ciclos e a diversificação dos programas, institui-se o sentido unitário da escola, referendando o caráter elitista do ensino secundário no País, destinado aos que pudessem fruir de uma educação longa e voltada para estudos de nível superior e com uma sólida base em cultura geral. Em seis anos de curso secundário, os alunos deveriam estudar 25 matérias obrigatórias, o estudo de Italiano e Alemão era facultativo.

Outra questão amplamente discutida, na década de 20, foi o Ensino Clássico versus Ensino Científico, ou seja, qual seria o mais adequado diante das novas necessidades da sociedade brasileira.

A escola secundária passa por uma remodelação e consolidação importantes, entre os anos de 1930 e 1960, principalmente através das reformas federais implantadas no governo de Getúlio Vargas: A Reforma Francisco Campos em 1931 e a Reforma Capanema em 1942.

Na Reforma Francisco Campos, os pressupostos da Escola Nova foram retomados e, dentre tantos pontos, um foi especialmente enfatizado: preparar os jovens para a vida e, principalmente, para o trabalho. A duração do ensino secundário passa para sete anos, e o ingresso ao primeiro ciclo se dava pelo Exame de Admissão. Segundo a autora, no que diz respeito à seleção cultural, a reforma trouxe um equilíbrio entre estudos literários e científicos, e o cientificismo foi revitalizado, embora a autora ressalte que, em parte, o currículo do ensino secundário perdeu o caráter humanista, tão acentuado até então.

A reforma que ficou conhecida como Capanema, na verdade, era a Lei Orgânica do Ensino Secundário, de 9 de abril de 1942, proposta pelo ministro Gustavo Capanema. Essa reforma buscou o resgate da formação humanista e do ensino secundário como ensino das elites, resultando no Curso Clássico, com ênfase às letras, e o Científico com foco nas ciências, de acordo com as intenções para estudos posteriores.

Porém, em meados do século XX, o ensino secundário brasileiro sofreu grandes mudanças, inclusive na forma de acesso, atendendo à demanda das diferentes camadas sociais e perdendo o caráter elitista, adquirido anteriormente.

Anísio Teixeira e Lourenço Filho, citados pela autora, indicavam que a democratização do ensino se fazia necessária, quer pela necessidade de o Estado oferecer vagas, quer para atender às necessidades do tempo presente, tornando-se uma escola prática para enfrentar as novas mudanças sociais e econômicas que estavam se consolidando no Brasil.

Na década de 60, são inúmeras as mudanças ocorridas, em função, inclusive, das lutas ideológicas, políticas e sociais. A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi aprovada em dezembro de 1961. Conforme a autora, seria a primeira vez que a união passaria a não mais controlar o ensino secundário desde o período imperial. Porém voltaria a centralizar e a burocratizar a educação, através da Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971. Mas foi na década de 70 que a escola pública consolidou-se no Brasil, bem como a sua universalização e expansão, adaptando-se, geralmente, de acordo com as demandas políticas e econômicas da sociedade brasileira.

Em síntese, a obra de Rosa Fátima de Souza é de suma importância para todos os pesquisadores da História da Educação, principalmente para os de alinhamento teórico com a história cultural, leitura importante para professores de História da Educação, pedagogos e interessados nas valiosas contribuições históricas acerca da organização do trabalho escolar, do currículo e das reflexões sobre a cultura escolar.

Em outros termos, a autora apresenta uma visão panorâmica do percurso histórico da educação no Brasil. Nesse sentido, considera-se essa obra de Souza um texto básico para os estudiosos da área da educação e uma leitura obrigatória para profissionais que, direta ou indiretamente, atuam no meio educacional.

Nota

1 Código de Educação do Estado de São Paulo (apud SOUZA, 2008, p. 77-78).

Roseli Maria Bergozza – Aluna do Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

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Como usar a biblioteca na escola: um programa de atividades para a Pré-Escola e o Ensino Fundamental – KUHLTHAU (C)

KUHLTHAU, Carol. Como usar a biblioteca na escola: um programa de atividades para a Pré-Escola e o Ensino Fundamental. Trad. e adap. por Bernadete Santos Campello et al. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. Resenha de: NEVES, Nathalie Vieira. Conjectura, Caxias do Sul, v. 14, n. 2, p. 251-254, maio/ago, 2009.

A biblioteconomista estadunidense Carol Kuhlthau, na obra Como usar a biblioteca na escola: um programa de atividades para a Pré-Escola e o Ensino Fundamental, traduzido e adaptado por Bernadete Santos Campello e outros pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), propõe uma série de atividades integradas ao currículo, a fim de familiarizar o aluno com o ambiente informacional da biblioteca escolar.

Baseada na teoria cognitiva de Piaget, a autora organizou o programa de atividades em fases de acordo com as características psicológicas de crianças e adolescentes e com as habilidades que se buscam desenvolver em cada idade. Dessa forma, segundo Kuhlthau, ao se implementar esse programa de atividades na escola, espera-se que no Ensino Médio os alunos usem a biblioteca de maneira plenamente autônoma e independente.

A Fase I, “Preparando a criança para usar a biblioteca”, compreende o período anterior à escolarização da criança, sendo dividida em duas etapas: “Conhecendo a biblioteca”, em que são realizadas atividades com crianças de 4 a 6 anos para estimular a atitude positiva em relação à biblioteca, e “Envolvendo as crianças com livros e narração de histórias”, em que as crianças de 6 e 7 anos começam a se envolver com livros e histórias.

Segundo Kuhlthau, entre 4 e 7 anos, as crianças gostam de histórias simples e objetivas, com ilustrações, canções, fantoches e marionetes. O ambiente da biblioteca deve ser agradável, convidativo e acessível: os livros infantis devem estar ao alcance das crianças, e os critérios de ordenação devem ser identificáveis. A contação de histórias exige expressividade, estímulo à imaginação e um ambiente confortável (crianças em semicírculo, sentadas em almofadas).

Na segunda etapa dessa fase, a criança deve começar a entender e relacionar o significado do livro com suas experiências de vida, habilidades que podem ser desenvolvidas através dos 3 ds (discussão, dramatização e desenho). Como as crianças veem televisão durante muitas horas por dia, torna-se extremamente importante planejar espaços para que elas discutam sobre o significado do que foi visto e percebam os elementos não linguísticos que influenciam seus julgamentos.

Como exemplos de habilidades desenvolvidas nessa fase, podem-se elencar: compreender que os materiais da biblioteca estão organizados numa ordem: escolher, cuidar e devolver os livros emprestados, selecionar livros de seu interesse, reconhecer os elementos do livro (capa, lombada, folha de rosto: título, autor, ilustrador, tradutor), discutir sobre as histórias e perceber o ritmo dos poemas.

Algumas sugestões de atividades para serem desenvolvidas nessa fase são: Encontre a estante (os alunos devem localizar o livro a que pertence a etiqueta recebida); Mexendo com os sentimentos (as crianças dramatizam sentimentos despertados pela história); e Histórias ilustradas (exposição e paráfrase de livros visuais).

A Fase II, “Aprendendo a usar os recursos informacionais” é destinada a alunos de 1ª a 4ª séries, e nela são realizadas atividades que visam a desenvolver habilidades de pesquisa nos recursos informacionais da biblioteca. É dividida em quatro etapas etárias: “Praticando habilidades de leitura” (7 anos); “Expandindo os interesses da leitura” (8 anos); “Preparando para usar os recursos informacionais de maneira independente” (9 anos); e “Buscando informação para trabalhos escolares” (10 anos).

Nas duas primeiras etapas, geralmente as crianças começam a se interessar por contos populares e contos de fadas. Conforme a autora, nas atividades de discussão, é importante que as crianças sejam orientadas a dar respostas objetivas, relevantes e coerentes com a pergunta e a exemplificar com experiências próprias, a fim de dar maior significação ao que foi lido. A dramatização ajuda a criança a vivenciar os sentimentos dos personagens e a perder a inibição, enquanto o desenho, juntamente com as atividades orais e escritas, estimula as crianças a expressarem suas ideias de diferentes maneiras.

Exemplos de habilidades desenvolvidas nas duas primeiras etapas: identificar a localização e o assunto dos livros pelas lombadas; localizar informações em enciclopédias, dicionários, materiais eletrônicos, jornais, revistas e audiovisuais; participar de discussões coletivas; recordar, resumir e parafrasear histórias; compreender personagens, cenários e enredos; e relacionar a sonoridade ao significado do poema.

Algumas atividades sugeridas para essas duas etapas da segunda fase: Compartilhando leituras (os alunos apresentam informalmente um livro de que gostaram); Notícias (em duplas, as crianças analisam e leem jornais, em seguida comentam); Formatos relacionados (exibição de filme baseado em fatos e exposição de livros, mapas, cartazes relacionados à história); e Brincando de ser autor (os estudantes escrevem seus próprios livros destinados a crianças menores e os expõem na biblioteca).

Na 3ª e 4ª etapas da Fase II, as crianças começam a usar a biblioteca de forma mais independente. Segundo a autora, é importante que o professor oriente o aluno a pesquisar em mais de uma fonte e a produzir textos coerentes, coesos e sintéticos, já que as crianças tendem a produzir cópia e a se ater a mínimos detalhes. As atividades em grupo são muito importantes, pois estimulam a participação ativa, a expressão de opiniões, a responsabilidade, a resolução de conflitos e a reflexão sobre os próprios atos.

Compreender o sistema de classificação do acervo, começar a avaliar a qualidade de um livro, compreender a função da bibliografia, pesquisar em várias fontes de referência e apresentar de forma oral ou escrita as informações coletadas são algumas das habilidades a serem desenvolvidas nessas duas etapas finais Fase II.

Alguns modelos de atividades para a 3ª e a 4ª etapas são: Agenda de leituras (as crianças anotam em um caderno o autor, o título e o número da chamada dos livros que leram, além de um comentário sobre as obras lidas); Os descobridores (assistir a um filme de História, comparando o passado e o presente); Multiplicando as leituras (cada criança faz um cartaz divulgando um livro que gostou de ler; depois, o professor expõe os trabalhos na biblioteca); e Autobiografia (as crianças escrevem sua própria biografia através de lembranças evocadas).

A última fase, Fase III (“Vivendo na sociedade da informação”), é direcionada a alunos de 5ª a 8ª séries, e visa a desenvolver nos adolescentes a habilidade de conhecer de maneira crítica o ambiente informacional da sociedade contemporânea. Essa fase está dividida em duas etapas: “Usando os recursos informacionais de maneira independente” (11 e12 anos) e “Entendendo o ambiente informacional” (13 e 14 anos).

Kuhlthau afirma que na adolescência os alunos começam a desenvolver um raciocínio abstrato, maduro que torna possível formular hipóteses e delimitar tópicos textuais, além de combinar, num texto coerente, diversas informações oriundas de várias fontes. Muitos alunos não se interessam mais pelos livros infantis, daí a importância das obras juvenis, que representam uma ponte entre o mundo infantil e o mundo adulto.

As atividades de produção de audiovisuais levam os alunos a uma visão mais crítica dos meios de comunicação social, ao vivenciarem os papéis de diretor, roteirista, repórter e ao compararem os formatos de informação da televisão e dos materiais bibliográficos. Além disso, criar um espaço de discussão sobre a mídia também ajuda a desenvolver a capacidade de avaliação e seleção de programas e leituras.

Como algumas habilidades, desenvolvidas na última fase do programa, podem ser citadas: precisão na busca por assuntos; discernimento crítico para escolher livros, periódicos, audiovisuais e programas de televisão; e interpretar o significado de muitas formas de literatura.

Para a Fase III, Kuhlthau sugere, entre outras atividades: Almanaques (com o auxílio de almanaques, os alunos elaboram questões para uma gincana com a turma); Lista dos melhores (cada aluno faz uma lista dos livros que mais gostou; o professor lê as listas e, juntamente com os alunos, faz uma outra com os dez livros mais votados); e Gravando a reportagem (em grupos de cinco componentes, os adolescentes gravam quatro sequências para uma reportagem).

Em suma, Como usar a biblioteca na escola… discute a importância da biblioteca escolar na formação humana e sugere estratégias efetivas para o estímulo à leitura, à pesquisa e ao debate na escola. Dessa forma, por ter uma abordagem teórica consistente, uma linguagem clara e uma adaptação à realidade brasileira, essa é uma obra de extrema relevância para bibliotecários, professores-pedagogos, professores de língua e literatura, enfim, para todos os profissionais da educação.

Nathalie Vieira Neves – Graduanda em Licenciatura em Letras pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Bolsista BIC/ Fapergs no Projeto de Pesquisa “Educação, linguagem e práticas leitoras”.

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Conjectura | UCS | 2009

Conjectura Filosofia e Educacao Decepção

O escopo da revista Conjectura – Filosofia e Educação (2013-) é incentivar a investigação e o debate acadêmico acerca da Educação e da Filosofia em seus diversos aspectos, prestando-se como um instrumento de divulgação do conhecimento. Para tal, busca qualificar-se continuamente, observando os critérios indicados pelo Qualis/Capes: publicação mínima de 18 artigos por volume, dos quais 60% de autores vinculados a pelo menos 4 instituições diferentes da que edita a revista com indicação da afiliação institucional. Em cada número publicado, pelo menos 1 artigo será proveniente do exterior.

Periodicidade – Os itens da revista, após serem aprovados, serão publicados em fluxo contínuo, no sistema Ahead of Print.

Esta revista oferece acesso livre imediato ao seu conteúdo, seguindo o princípio de que disponibilizar gratuitamente o conhecimento científico ao público proporciona maior democratização mundial do conhecimento.

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